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FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PESQUISA E MONOGRAFIA ANA LUIZA RIBEIRO CUNHA TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI: A redução à condição análoga à de escravo e o direito ao respeito da dignidade humana. PESQUISA APRESENTADA COMO REQUISITO PARA CONCLUSÃO DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DO CENTRO UNIVERCITÁRIO DE BRASÍLA, UNICEUB. ORIENTADORA: PROFª MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA. BRASÍLIA

TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI:

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Page 1: TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI:

FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE DIREITO

NÚCLEO DE PESQUISA E MONOGRAFIA

ANA LUIZA RIBEIRO CUNHA

TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI:

A redução à condição análoga à de escravo e o direito ao respeito da dignidade

humana.

PESQUISA APRESENTADA COMO REQUISITO PARA CONCLUSÃO DO CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO DO CENTRO UNIVERCITÁRIO DE BRASÍLA, UNICEUB.

ORIENTADORA: PROFª MARIA ELIZABETH GUIMARÃES TEIXEIRA ROCHA.

BRASÍLIA

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2005

Para meus pais, Antonio Luiz Cunha e Regina M. R. Cunha, pelas virtudes ensinadas e pelo apoio, confiança e amor que sempre me deram;

Vandete Macedo Ribeiro, por todos os conselhos, ensinamentos, mensagens de paz e alegria, que ficarão para sempre em minha mente como referencial de bondade e felicidade, o que transforma a saudade num sentimento de gratidão por tê-la tido como avó;

Rachel Maria Cunha, por me propor o tema sobre trabalho escravo contemporâneo e por ter me ajudado com o material de pesquisa;

Péricles Luiz Cunha, por estar sempre disposto a me orientar e me esclarecer;

Eduardo Molina de Oliveira, pela compreensão, paciência e incentivos;

Eder Batista, por me enviar algumas fotos utilizadas no último capítulo;

Maria Elizabeth Teixeira Rocha, minha orientadora, pelas dicas, correções e críticas.

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“Às vezes, fora do Brasil, quando me perguntam como é a nossa luta aqui por Direitos Humanos, eu digo: Direitos Humanos no Brasil? Isso é um luxo! Nós ainda estamos lutando por direitos animais”.

Frei Beto1

1FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 18.

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RESUMO:

Trata-se de uma pesquisa destinada a retratar a violência praticada no meio rural brasileiro, onde se escravizam seres humanos, objetivando um maior lucro nas produções, sendo que os infratores se aproveitam da ignorância e falta de oportunidade de pessoas miseráveis, explorando-as e barateando a mão-de-obra. Assim, o fazendeiro contrata uma pessoa com experiência em aliciamento de peões, conhecida como “gato”, que ilude e transporta os empregados até a fazenda, onde são submetidos a condições subumanas de vida e de trabalho, sem respeito às suas dignidades, de forma que seus direitos trabalhistas não são observados. Além disso, esses peões não podem deixar a propriedade rural em razão de uma dívida criada quando o gato paga a sua pensão e, também, pelos produtos adquiridos no armazém da fazenda. Diante desses fatos, fica evidenciada a complexidade do crime de trabalho escravo, que envolve outros delitos a ele conectados, o que exige uma atuação rápida e eficiente no combate a essa prática, que se perpetua em virtude do capitalismo, da impunidade, das precárias condições de vida dos trabalhadores, da reincidência destes no aliciamento, da falta de políticas sociais etc. Sendo assim, é necessário que o Governo dê maior apoio aos órgãos estatais e às ONGs que atuam contra a escravidão, para que brasileiros subalternos tenham respeitadas as garantias de dignidade, previstas na Constituição Federal, para que, respeitando os direitos humanos, haja uma mudança na visão, que algumas pessoas têm, de poder explorar cidadãos menos favorecidos em benefício próprio, por possuírem poder político e econômico.

Palavras-chaves: Trabalho escravo; fazenda; gato; aliciamento; exploração; dívida; dignidade; respeito; trabalhador.

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SUMÁRIO:

1 DIREITOS HUMANOS E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA: ........................................ 9

2 BREVE HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: ............................................14

3 O ESCRAVO APÓS A ABOLIÇÃO E A ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XXI: ..............22

4 AS ORIGENS DO DIREITO DO TRABALHO E A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

INTERNACIONAL E BRASILEIRA:..........................................................................29

5 O SIGNIFICADO DO TERMO ESCRAVIDÃO E A POLÊMICA EXISTENTE A

RESPEITO DESSA TERMINOLOGIA: ......................................................................36

6 AS PRINCIPAIS CAUSAS DA PRÁTICA DO TRABALHO ESCRAVO

CONTEMPORÂNEO NO BRASIL: ............................................................................40

6.1 Impunidade: ............................................................................................................................. 40

6.2 Capitalismo:............................................................................................................................. 50

6.3 A questão da competência para julgar crimes de trabalho escravo: ........................................ 53

6.4 A contribuição das precárias condições sociais: ..................................................................... 59

7 MÉTODOS DE ERRADICAÇÃO DO CRIME: .........................................................62

8 O PROBLEMA DA REINCIDÊNCIA: ......................................................................83

8.1 Reincidência dos fazendeiros infratores: ................................................................................. 83

8.2 Reincidência do trabalhador nas formas de aliciamento e escravidão: ................................... 85

9 EXPOSIÇÃO DE CASOS REAIS: ............................................................................91

9.1 Casos, depoimentos e fazendas denunciadas pela prática ilícita de trabalho escravo:............ 91

9.2 Processos, denúncias, decisões, jurisprudências e documentos: ............................................. 99

9.3 Fotos: ..................................................................................................................................... 142

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INTRODUÇÃO:

São vários os temas, dentro do Direito, que merecem uma maior atenção pelo

seu grau de importância para com os indivíduos. Tendo em vista que o homem não vive

isoladamente, sabemos que o Direito foi criado pela sociedade e para ela mesma, assim, podemos

concluir que todos esses temas abordam, como alvo principal, as pessoas que a compõe. Dessa

forma, pela Constituição Federal e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, são

resguardados os direitos e garantias fundamentais que cabem ao homem, tendo em vista uma

condição de vida melhor e mais justa para cada um dos brasileiros.

A violação desses direitos causa um profundo sentimento de revolta e de

impotência perante o Estado que, muitas vezes, não consegue atender a todas as demandas da

população ficando, assim, boa parte da sociedade lesada em sua integridade física e moral.

Com o aumento das injustiças sociais e com a freqüente onda de crimes, que

muitas vezes acontecem às cegas perante a justiça e à própria população, resta-nos dar um maior

enfoque na área dos Direitos Humanos. Dentre vários crimes que violam os direitos fundamentais

dos cidadãos, o que mais me chama a atenção é o referente ao artigo 149 do Código Penal, pois,

mesmo após a Lei Áurea, continua existindo em nosso país, principalmente em fazendas,

reduzindo o homem a uma situação de subordinação que se dá por cerceamento de liberdade e

coação (por isso não ser chamada de escravidão e sim condição análoga a esta). De acordo com

os dizeres de Luis Camargo (Ministério Público do Trabalho) em sua Definição de Trabalho

Escravo – Distinção entre trabalho escravo, forçado e degradante, "esta coação poderá ser de

três ordens: moral, psicológica e física".

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Muitas vezes o empregador faz ameaças ao empregado, o agride fisicamente e

estabelece entre eles uma dívida que nunca se extingue: o empregado é obrigado a adquirir

materiais de trabalho, alimentação e transporte por conta própria, fazendo com que esta dívida se

transforme numa bola de neve que aumenta cada vez mais sendo, dessa forma, obrigados a

permanecerem no local de trabalho para pagar tal dívida; o que nunca acontece. Dessa forma, a

escravidão contemporânea seria melhor denominada de servidão por dívida, já que a pessoa não

pode abandonar o local de trabalho em virtude desta2.

Diante do que foi dito, passo agora a expor a pesquisa feita nesses últimos

meses, com base em publicações dos órgãos estatais, pesquisas na Internet e na página da OIT

Brasil, documentos enviados pela SEDH, seminários e doutrina, relatando os problemas centrais

que norteiam o tema Trabalho Escravo no século XXI, de modo que fique esclarecido, desde já,

que esta monografia tem, por fim, expor a abordagem de uma situação dramática que,

infelizmente, ocorre nos dia atuais, configurando uma afronta às Leis brasileiras e que ocorre às

escondidas de tal maneira que, às vezes, ao falar com colegas e conhecidos, muitos deles ficam

incrédulos quanto à existência do crime e de sua tamanha incidência no presente século. Por isso,

gostaria de dizer que os tópicos iniciais como “Direitos Humanos e sua evolução histórica”,

“Breve histórico da escravidão no Brasil”, “As Origens do Direito do trabalho e a Legislação

trabalhista internacional e brasileira” etc, têm a função de servir, somente, como base para que se

possa entender que o problema dessa escravidão, mesmo sendo atual, tem suas origens em

tempos remotos, desde a colonização brasileira, passando pela abolição dos negros, também pelo

problema do capitalismo, que faz com que as pessoas busquem cada vez mais riquezas para

satisfazer seu consumismo, servindo, destarte, como impulso para que a prática escravocrata se 2MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Disponível em: <www.pgt.mpt.gov.br/index.html>. Acesso em: 12 set. 2003.

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perpetuasse ao longo do tempo, pois, mesmo com a proibição desta desde a Lei Áurea, uma vez

que o não pagamento de trabalhadores enseja em lucro maior para o proprietário rural, estes

procuram um meio de burlar a Lei proibitiva e encontrar uma prática mascarada de se escravizar

pessoas, o que consiste, hoje em dia, na servidão por dívida: tema central deste trabalho

monográfico.

E assim, gostaria de finalizar esta introdução, com o pedido de que todos que

por ventura leiam as linhas a seguir – além da banca examinadora e de minha orientadora - se

atinem para os fatos humanos, não somente aos fatos jurídico-processuais, uma vez que a minha

real intenção é fazer-se conhecer mais um pouco a respeito da barbaridade praticada contra

trabalhadores humildes, vítimas de um sistema capitalista que transforma seres humanos em

robôs cuja principal função é obter o maior lucro possível, mesmo que para isso tenha que agir de

uma forma egoísta, satisfazendo seus prazeres em detrimento da liberdade de cidadãos que não

têm seus direitos garantidos, ou seja, em detrimento de pessoas pobres, sofridas e humilhadas

que, através de práticas como esta, têm suas dignidades roubadas, preferindo ficar no anonimato,

tocando suas vidinhas precárias, e sem lutar por seus direitos mínimos garantidos pela

Constituição Brasileira. E assim, em virtude de tudo o que foi dito, tenho para mim que, em

suma, podemos caracterizar o escravagismo atual com apenas duas palavras, a saber, crime

egoísta.

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1 DIREITOS HUMANOS E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA:

Ao falar em Direitos Humanos, deve-se ter em mente que, do ponto de vista da

doutrina jurídica, estes se referem aos direitos inerentes à pessoa humana quando consagrados em

textos jurídicos internacionais que, ao serem inclusos nas Constituições, recebem a nomenclatura

de DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. Assim, o estudo dos Direitos Humanos está

ligado ao estudo do Direito Constitucional, tendo importante contribuição, na proteção de tais

direitos, o movimento constitucionalista, que possibilitou a inserção destes nas Constituições3.

Tal movimento se deu, segundo Alexandre de Moraes4, após a independência das 13 Colônias,

nos Estados Unidos da América e a partir da Revolução Francesa, em 1791.

Como os referidos direitos passaram a fazer parte das Constituições, sabe-se

que cabe “a todo Estado assegurar a dignidade da pessoa humana”, o que no Brasil constitui “um

princípio fundamental da República”. No entanto existe, entre Estado, Poder e Direitos Humanos,

“uma tensão constante na história da humanidade” 5. Isso porque cada um de nós tem sua própria

visão em se tratando de Direitos Humanos, pois nossas ideologias, religiões e influências não são

iguais. Contudo, “há coisas em comum em qualquer acepção de Direitos Humanos”, ou seja,

questões mínimas de dignidade ao próximo, defendendo os mais fracos e desfavorecidos dos

mais fortes e poderosos, garantindo-lhes respeito às suas vidas e, nesse ponto, diante da visão que

3ROBERT, Cinthia; Danielle Marcial. Direitos Humanos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 1999, p. 3 – 4.

4MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos artigos 1º a 5º da Constituição Federal do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 1988, p.18.

5ROBERT, Cinthia; Danielle Marcial. Direitos Humanos: teoria e prática. P. 07. Op.Cit.

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se tem nos tempos atuais, todos concordam em proporcionar ao cidadão o respeito à sua moral,

seu trabalho e sua existência6.

“Estado é a organização política nacional, soberana, composta de órgãos e aparelhos ideológicos públicos e privados, dirigida e dominada por um grupo social, que mantém e justifica sua dominação e obtém o consenso imposto a toda a nação através da força bruta ou por meio da concessão limitadas de direitos e liberdades fundamentais” 7.

Nesse sentido, os Direitos Humanos passaram a fazer parte do Estado Nacional,

embora venham se tornando internacionais, com intuito de proteger as pessoas pertencentes à

classe social dominada do abuso de poder. Segundo Fernando Barcellos de Almeida, em seu livro

Teoria Geral dos Direitos Humanos, o conceito destes direitos consiste nas seguintes palavras:

“[...] ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a estes, expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência, e permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais” 8.

Diante do conceito de Estado e de Direitos Humanos, cabe, contudo, ressaltar a

importância de se saber, pelo menos um pouco, a respeito da evolução histórica dos Direitos

resguardados ao homem. Ao observar a história da humanidade nota-se que os direitos humanos

não são algo inerente à mesma, pois foi apenas a partir de determinado acontecimento histórico

que tiveram, os seres humanos, seus direitos assegurados. A fim de se compreender com clareza a

evolução dos citados direitos, mister se faz, estabelecer qual fato histórico positivou tais direitos,

e, neste ponto, existem duas possíveis datas: 1215, com a outorga da Magna Carta pelo rei João

Sem Terra ou em 1789 na Revolução Francesa. Vale ressaltar, porém, que bem antes disso, em

6ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p.17.

7Ibidem, p. 19. 8Ibidem, p. 24.

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1690 a.C., já existira outras formas de proteção do indivíduo perante o Estado, a exemplo do

conhecido Código de Hamurabi. Este foi Rei da Babilônia e “tudo podia, sem necessidade de dar

satisfação de seus atos a ninguém. Mas ele preferiu limitar, pela Lei, os seus próprios poderes e

os poderes de seus esperados descendentes ou sucessores” 9, verbis:

“Que o oprimido – proclamava Hamurabi – que tenha um litígio venha ante minha imagem de Rei de Direito e leia as inscrições do meu Código, que ouça minhas preciosas palavras e que meu código se aplique à sua causa” 10.

Porém de acordo com Cinthia Robert e Danielle Marcial11, atribui-se a

consagração normativa dos Direitos Humanos ao dia 28 de agosto de 1789 com a promulgação da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, composta de 17 artigos.

Após ter sido feito o estudo do tema proposto, vale destacar o resumo da

evolução histórica dos direitos do homem reunidas em cinco fases principais:

Citando Fernando Barcellos de Almeida12, dizemos que a primeira fase nada

mais era que a concessão arbitrária de um monarca com poderes absolutos e estas eram tidas

como justas e inteligentes (ex.: Código de Hamurabi; o Imperador Claudius Tibério, de Roma e

Frederico II, da Suádia, imperador das duas Sicílias). Numa segunda fase, teremos os direitos

humanos como “sendo conquistas das elites, do alto clero ou da aristocracia, contra o monarca,

como foi o caso do rei João Sem Terra que outorgou aos seus súditos, mas essencialmente, aos

barões, que o pressionaram, a Magna Carta, em 1215, na Inglaterra”. Evoluindo para uma terceira

fase, encontramos os Direitos do Homem (já com esta denominação e com a exclusão da mulher) 9ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 42 – 43.

10Ibidem, p. 43. 11ROBERT, Cinthia; Danielle Marcial. Direitos Humanos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 1999, p.07.

12ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. P. 42 – 47. Op. Cit.

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como pertencentes a uma classe em ascensão, a burguesia, que teria na ocasião o poder

econômico e mais tarde, após a Revolução Francesa, teria também o poder político. Na quarta

fase teremos a conquista dos Direitos Humanos por parte das classes sociais dominadas que não

detêm o poder político, que alcançam, através deles, direitos sociais econômicos, e culturais. Na

quinta e última fase, os Direitos Humanos, já na sua terceira geração, se internacionalizam

tornando-se supranacionais sendo alguns deles impostos pela comunidade internacional.

Tais etapas não possuem uma separação rígida entre si, ora se misturando, ora

evoluindo “de maneira cronológica invertida, ou se antecipam ou se pospõem”. Contudo, apesar

da quinta fase da evolução dos direitos do homem representar uma internacionalização desses

direitos, há paises em que, em pleno século XXI, governam de forma semelhante à do século XII,

a exemplo do reinado a Arábia Saudita, mesmo sendo membro das Nações Unidas13.

“Uma outra tentativa de se racionalizar a evolução dos Direitos Humanos é

apresentada pelo jurista espanhol Rafael de Asís Roig14 [...] Ele cita três processos históricos nos

Direitos Humanos”: Positivação (sem esta os direitos não se completam ficando apenas no plano

das idéias), Generalização (“ampliação da titularidade dos direitos e outro setores da população,

com uma realização jurídica”) e Internacionalização (quando se toma a consciência de que a

proteção em nível estatal é insuficiente, “que pode encontrar seu limite na razão de Estado”.

Importante torna-se dizer que o processo de internacionalização é realizado de forma integrada

com a positivação e a generalização).

13ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 42 – 47.

14Apud ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. P. 46 – 47. Op. Cit.

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Diante disto, é possível concluir que a quinta fase da evolução dos Direitos

Humanos (juntamente com a quarta fase, que atribuiu aos menos favorecidos, garantias sociais

econômicas e culturais) teve relevante importância na luta contra o desrespeito da dignidade

humana e a favor da garantia dos direitos fundamentais do homem, visto que sua

internacionalização demonstra uma preocupação mais profunda com tais direitos, principalmente

no que tange o tráfico de pessoas e o trabalho forçado15.

15ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 42 – 47.

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2 BREVE HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL:

No Brasil a escravidão surgiu quando se deu início à colonização do país16, que,

em sua estrutura, “combinava três caracteres: grande propriedade de terra, monocultura e trabalho

escravo”.17 Contudo, ao contrário do que se pensa, os primeiros seres escravizados foram os

índios, e não os negros trazidos da África. Ao passo que os índios eram eficazes na extração do

pau – brasil, estes eram ineficazes na agricultura, de forma que, em meados do século XVI,

iniciou-se a captura de negros africanos para que estes trabalhassem na lavoura e no engenho de

açúcar, uma vez que a sociedade colonial precisava garantir o baixo preço e a rentabilidade do

produto no mercado externo, ao passo que necessitava também, assegurar o baixo custo interno

de produção18.

O transporte dos escravos era feito de forma brutal: crianças eram retiradas de

suas famílias, pessoas capturadas na África e levadas ao porão dos navios, onde se amontoavam,

e faziam toda a viagem quase que na mesma posição, sem higiene, sem água, sem alimentação

adequada, o que resultava num grande número de mortos. Tal captura muitas vezes era feita por

nativos da região, outras vezes por comerciantes de escravos, de forma que acordos foram feitos

com reis da própria África, uma vez que os informavam dos lucros trazidos pelo tráfico, tendo,

assim, a permissão destes para implantar um monopólio no comércio de africanos para serem

escravizados19 , de forma que:

16ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/2.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004. 17PRADO JÚNIOR, Caio apud Jacob Gorender. O Escravismo Colonial. Ed. Ática: São Paulo, 1980, p.17. 18ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Op.Cit. 19NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 64 – 72.

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“Assim vemos a ganância em sua corrente contagiosa perverter por amor ao luxo, os próprios governos negros, e estes de parceria com os enviados europeus e americanos condenando anualmente milhares de compatriotas, que os estrangeiros resgatavam para o cativeiro. Farsa era essa adrede preparada para livrar os reis da nódoa do tráfico de seus súditos, e ao mesmo tempo para honrar os negociantes negreiros, cujo comércio pareceria clemente, visto ser para salvar da morte milhares de homens. A isso só há uma resposta: foi o tráfico que fez as condenações chegarem a esse algarismo importante: se não houvesse a procura não haveria oferta, e os reis não proscreveriam a tantos de seus compatriotas” 20.

Quanto a números, pode-se dizer que, na América, o primeiro surgimento da

escravidão foi com Colombo e o “comércio de gentios”. Assim, presume-se que a armada de

Cabral trouxe os primeiros escravos, uma vez que àquela época, “a escravidão do negro estava

muito espalhada em Portugal”. Dos inúmeros cativos transportados em navios negreiros havia

uma perda de vinte e cinco por cento de pessoas até chegarem ao destino. Tem-se um cálculo

aproximado do número de importação e exportação de escravos no período que vai de 1798 a

1847. “A soma total da exportação nesses 49 anos montou a 1.463.106, a de mortalidade a bordo

a 331.050; a da importação a 1.084.956 [...] assim, temos um milhão e meio de homens

exportados da África pelo Atlântico”, havendo uma perda de 25% das pessoas “uma pequena

redução de quinhentos mil homens que só escapavam ao cativeiro porque sucumbiam na asfixia

do porão” 21.

Eram dois os modos de escravidão no Brasil – Colônia: o patriarcal, que se

caracterizava por uma economia natural e, também, o colonial que visava a produção de bens

comerciáveis e lucrativos, de forma que a escravidão se estabeleceu como “tipo fundamental e

estável de relação de produção”22. A escravatura era a maneira de como o proprietário de terras

lidava com o trabalho e, assim, sua preocupação consistia apenas em “esclarecer o efeito da

20NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 65. 21Ibidem, p. 68 – 75. 22GORENDER, Jacob. O escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980, p. 60.

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economia exportadora-escravocrata sobre a distribuição da renda”23. No entanto, do período que

vai do ano de 1530, até um pouco antes da metade do século XIX, a escravidão, que era

sustentada pelos donos de terras e pelo poder, era apenas moralmente errada, sendo poucas as

pessoas que viam em tal prática, um ato de selvageria e, mesmo não concordando com a

escravatura, a viam como necessária e obrigatória para o desenvolvimento do país tendo, assim,

de suportá-la24.

Dessa forma, ao penetrar na sociedade brasileira, a escravidão destruiu a maior

parte de seus fundamentos morais, afetando, assim, o progresso estatal, visto que o abalo causado

em cada força social foi de tal grandeza que o laço moral dos cidadãos foi, de certo modo,

desatado. Além disso, princípios foram violados e, conseqüentemente, também houve a violação

das Leis, uma vez que estas não passam de um encadeamento lógico dos princípios. Assim, ao

penetrar na sociedade brasileira, a escravidão gerou direitos contra a moral, tornando o direito

imoral e com força coercitiva, mostrando-nos que o regime escravocrata violava direitos naturais

porque, além de enfraquecer a moral e a religião, a escravidão fez do trabalho, principalmente os

manuais, uma ocupação rebaixada, o mais vulgar meio de trabalho. E foi assim que a instituição

escravocrata destruiu o fundamento moral da propriedade, atacou os costumes, vez que houve

perda da virtude ora maculada pela escravidão, tendo, ainda, atacado, de forma brutal a família,

pois aniquilavam a dignidade da mãe e dos filhos, ao serem violentados, de forma que feriam a

honra do pai, além de submetê-los a castigos terríveis caso houvesse qualquer tipo de

manifestação por parte de qualquer membro da família escravizada25.

23FURTADO, Celso apud Jacob Gorender. O escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980, p. 18. 24TRAGETÓRIA Social, Política e Econômica do Negro no Brasil: aspectos da violência racial. Disponível em: <www.dourados.ms.gov.br/proas-violenciaracial.htm>. Acesso em: 12 nov. 2003.

25NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 1 – 4.

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O tráfico de escravos entre a África e o Brasil era considerado um negócio

lucrativo para o traficante, assim como para os compradores, e foi por esse motivo que os negros

cativos formaram a maior parte da massa trabalhadora, no Brasil, no período que se estende do

século XVIII ao XIX. Vale ressaltar que o tráfico negreiro era basicamente dominado por

portugueses, espanhóis, holandeses e, também, ingleses26.

A partir do ano de 1830, por motivo da expansão cafeeira, surgiu o aumento da

necessidade de mão-de-obra escrava, ao passo que houve, também, o crescimento das

manifestações contra a prática de tráfico de negros africanos. Tais manifestações foram

motivadas mais pela concorrência do que por questões humanitárias, isso porque, vindo da

Inglaterra a maior parte da pressão contra o comércio de negros, esta se via ameaçada no mercado

externo, uma vez que o tráfico de escravos fora proibido nas colônias inglesas da Guiana e do

Caribe27. E assim, a escravidão passou a ser vista como economicamente errada, e não mais

apenas moralmente errada como outrora, havendo, destarte, alteração do quadro político e

econômico do país28.

“A escravidão na grande lavoura sempre foi uma instituição simultaneamente

política e econômica”, ou seja, ela não teria existido sem que houvesse medidas coercitivas e

legais concebidas com intuito de estabelecer a condição do escravo, e assim, não admitindo

formação de “modos alternativos de organização social”.Tais medidas serviam de base para a

dominação racial, subordinando o negro, de maneira que por tais fatos passaram a contribuir para

26ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/2.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

27Ibidem. 28TRAGETÓRIA Social, Política e Econômica do Negro no Brasil: aspectos da violência racial. Disponível em: <www.dourados.ms.gov.br/proas-violenciaracial.htm>. Acesso em: 12 nov. 2003.

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o surgimento de uma classe social dominadora. Contudo, a escravidão não passava de “uma

instituição em crescente antagonismo com a sensibilidade moral da época” 29.

No ano de 1830 o tráfico já ra visto como um ato de pirataria e deveria estar

extinto, por razão de um tratado feito entre Brasil e Inglaterra, onde estava previsto o fim do

comércio negreiro neste citado ano. E foi assim, com a proibição, que se deu o maior apogeu do

tráfico, tornando-se contrabando30. Em 1831, por meio de acordo firmado com a Inglaterra, foi

declarado ilegal, em território brasileiro, o tráfico de negros; mesmo assim, eram exportados para

o Brasil vinte mil negros por ano, sendo que esses 20.000 “representavam no desfalque que

produziam na população da África, aumentado pelos perigos da travessia sob o canhão inglês,

cerca de duzentas mil vidas”, de forma que a entrada ilegal de africanos cativos continuava

ocorrendo no país31. Diante disso, o parlamento britânico aprovou, em 1845, a Bill Aberdeen,

permitindo a captura de navios negreiros brasileiros, por parte da Marinha de Guarda Inglesa,

tornado, assim, mais difícil e menos lucrativo o tráfico de negros32, podendo-se dizer que tal Lei

se torna, de certa forma, um ultraje à soberania brasileira, ao mesmo tempo em que faz da

Inglaterra a “defensora da humanidade”, mesmo tendo, este país, estabelecido a Bill Aberdeen

por motivos puramente econômicos 33.

Políticos, liberais e conservadores, se declararam contra o tráfico no Império,

por mera conveniência, mas continuavam aceitando a prática do regime escravista, uma vez que

estes o viam como essencial para o progresso ecônomo e financeiro do País. Foi somente em

29FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A Emancipação e seu Legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNpq, 1988, p. 17 – 28.

30NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 68 – 82. 31Ibidem, p. 82. 32ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/2.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004. 33NABUCO, Joaquim. A escravidão. P. 76. Op. Cit.

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1850, por meio da Lei de Eusébio de Queirós, no Governo de D. Pedro II, que foi declarado o fim

do tráfico de escravos. A partir desse momento, começou a crescer, no país, a campanha

abolicionista, sendo que a abolição se concretizaria, aproximadamente, quarenta anos após a

fixação desta Lei34.

O processo revolucionário mais dramático em suas conseqüências sociais e

também humanas, ocorrido no Brasil do século XIX, foi a abolição da escravidão35, que, por sua

vez, caracterizava-se como um “movimento social e político” que ocorreu, mais precisamente,

entre os anos de 1870 e 1888, com o intuito de defender o fim da escravidão em nosso país.

Mesmo tendo começado a declinar em 1850, foi somente após a Guerra do Paraguai que o

movimento abolicionista ganhou maior força. Isso porque os escravos que voltavam da guerra,

por terem recebido medalhas e títulos, recusavam-se a voltar à condição servil de antes, uma vez

que condecorados, não gostariam mais de serem submetidos às vontades de seus senhores.

Assim, o problema social passa a ser uma “questão política para a elite dirigente do segundo

reinado”. Também foi nessa época que imigrantes vindos da Europa começaram a formar uma

classe de trabalhadores assalariados, que veio a substituir o regime de escravidão legal que

existira até pouco tempo antes36.

A primeira Lei abolicionista foi a do Ventre Livre, em 1871, que possuía

poucos efeitos práticos, vez que os “filhos de escravos nascidos a partir daquela data” eram

livres, no entanto, permaneciam sob os cuidados de seus senhores até que estes completassem 21

34ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/2.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004. 35FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNpq, 1988, p. 17.

36ABOLIÇÃO da escravatura no Brasil. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/3.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

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anos de idade. Em 1885, o governo, ao ceder mais um pouco às reações contra a escravidão,

resolveu promulgar a Lei dos Sexagenários, que libertava escravos com mais de 60 anos de idade,

possuindo, também, pouco efeito prático, pois poucos escravos atingiam tal idade, e os que

atingiam não tinham de onde tirar sustento próprio. Ainda sobre a Lei dos sexagenários,

importante é frisar que os escravos com 60 anos ou mais somente eram libertos, mediante um

pagamento devido a seus donos37.

Mesmo com o surgimento das chamadas leis abolicionistas, o movimento

contra a escravidão tinha se tornado forte e cheio de adeptos. Intelectuais e políticos formaram a

Sociedade Brasileira contra a Escravidão, tendo tal sociedade, como membros, nomes

importantes como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. A Partir da criação destas, varias outras

sociedades surgiram no Brasil, de forma que artistas, políticos, parlamentares, intelectuais,

jornalistas, mergulharam no movimento abolicionista, procurando disseminar esta idéia a todos,

por meio de apresentações, publicações etc e, assim, foram angariando dinheiro para pagamento

da carta de alforria de muitos escravos. Cabe, aqui, dizer que o primeiro estado brasileiro a

decretar o fim da escravidão em seu território foi o Ceará. Contudo, o movimento dos próprios

escravos também foi de suma importância, uma vez que começaram a sair dos cativeiros,

buscando suas liberdades na cidade, fazendo com que o movimento abolicionista se misturasse

com a campanha republicana. Por isso ganhou o apoio dos militares, pois estes, insatisfeitos com

o Império, não mais participavam da captura de escravos fugitivos. Houve, certamente,

campanhas abolicionistas vindas do exterior, principalmente dos países europeus, tudo isso

37ABOLIÇÃO da escravatura no Brasil. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/3.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

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contribuindo, conjuntamente, para que se devolvesse a liberdade roubada dos povos trazidos da

África38.

Em 13 de maio de 1888, o governo imperial sucumbiu às pressões políticas que

vinham de intelectuais, políticos, da população e do exterior, não esquecendo da importante

participação dos próprios negros escravos no movimento, em virtude de suas rebeliões e fugas

para os Quilombos, fazendo com que, nesta data, a Princesa Isabel assinasse a Lei Áurea,

extinguindo a escravidão no Brasil. Com isso, deu-se o fim do Império, vez que se tornou

evidente a insatisfação dos fazendeiros com a abolição da escravatura, pois exigiam indenização

pela perda de seus homens, sendo que tal ressarcimento lhes foi negado. Destarte, tais fazendeiros

aderiram ao movimento Republicano, e assim o Império Brasileiro perdeu “sua última coluna de

sustentação política” 39.

38ABOLIÇÃO da escravatura no Brasil. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/3.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

39Ibidem.

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3 O ESCRAVO APÓS A ABOLIÇÃO E A ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XXI:

A abolição trouxe difíceis questões acerca do sistema de organização da

economia e das relações sociais que veio a substituir a escravidão, pois toda a sociedade,

existente no período da grande lavoura, ao passar pelo referido processo de emancipação,

vivenciou uma série de conflitos a respeito do controle da mão-de-obra, ou seja, da formação da

classe dos libertos40. Assim, mesmo com a extinção da escravatura no Brasil, a condição dos ex-

escravos continuou da mesma maneira, sendo eles ainda subalternos, uma vez que dependiam de

seus ex-senhores e geralmente não tinham de onde tirar sustento próprio41.

“Na maioria dos casos, alguma forma de coerção foi empregada em uma tentativa de forçar ex - escravos a voltarem a trabalhar nas fazendas, ainda que nenhuma generalização possa se dar conta da complexidade das relações de trabalho que surgiram em sociedades específicas. Em toda parte o resultado do processo de emancipação e o grau de autonomia alcançado pelos antigos escravos dependia de uma elaborada série de relações de poder”.42

Após a abolição, os negros tiveram uma certa dificuldade para integrar-se à

sociedade brasileira, pois as reformas agrária e educacional pregadas pelos abolicionistas, nunca

se concretizavam. Além disso, os negros passaram a concorrer, no mercado de trabalho, com os

imigrantes europeus, sendo que, no decorrer do século XX, surgiram inúmeros movimentos que

visavam a defesa dos direitos da população negra, e lutavam pela cidadania plena dessa

40FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu legado. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNpq, 1988, p. 27.

41ABOLIÇÃO da escravatura no Brasil. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/3.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

42FONER, Eric. Nada Além da Liberdade: A emancipação e seu legado. P. 27 – 28. Op. Cit.

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população, formando, assim, uma classe social considerada inferior e desfavorecida

economicamente.43.

“A indiferença da sociedade brasileira pela condição do escravo, marcada pela convicção de que ele não era igual em direitos e dignidade, explica porque não foram criadas condições mínimas de sobrevivência digna aos libertos pela Lei Áurea e seus descendentes. E, em parte, influi na existência da escravidão no Brasil hoje. Essa intolerância dissimulada ainda viceja na sociedade brasileira”44.

O fato de ter havido uma escravatura no Brasil, implantou no inconsciente dos

brasileiros considerados ‘livres’ a idéia de que o ser humano de cor negra não passava de um

instrumento de trabalho que quando se desgastava, era substituído por outro. O negro era

comparado a um animal de tal forma que, quando não conseguia mais manter um trabalho

produtivo, em razão de fraqueza, idade avançada ou velhice, era levado ao tronco para receber

chicotada como punição45. Assim, mesmo com a extinção em 1888, pela lei Áurea, a herança da

escravidão permanece na sociedade brasileira, na forma de discriminação racial, social e

econômica46.

No presente século, a escravidão ainda é verificada, no entanto, esta se dá de

uma maneira diferente daquela que se deu no século XVIII, pois em 1888, o escravismo era

assegurado pela lei e aceito pelos costumes da época, de forma que o negro era considerado uma

mercadoria. Já na escravidão contemporânea, o peão pode ou não ser uma mercadoria.

Entretanto, entre essas duas formas de escravidão, há semelhanças, como, por exemplo, a

43NEGROS no Brasil: História, Cultura e os Quilombos. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/1htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

44DODGE, Rachel Elias Ferreira. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 49.

45TRAGETÓRIA Social, Política e Econômica do Negro no Brasil: aspectos da violência racial. Disponível em: <www.dourados.ms.gov.br/proas-violenciaracial.htm>. Acesso em: 12 nov. 2003.

46ESCRAVIDÃO, Tráfico de Escravos, sociedade e Religião Afro-brasileira, Zumbi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/africa/2.htm>. Acesso em: 12 dez. 2004.

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privação de cidadãos e de seus direitos, retirando-lhes a garantia à dignidade humana47. Assim,

podemos afirmar que, pela existência de uma ligação entre a idéia de dignidade da pessoa

individual com o princípio da liberdade de cada cidadão, a escravidão, antes de se configurar

como crime contra a liberdade da pessoa, torna-se um crime contra a própria dignidade humana48.

Todavia, existem inúmeras formas de se escravizar um ser humano, contudo, será dada ênfase,

nessa pesquisa, somente à escravidão por dívida existente em propriedades rurais brasileiras, isso

porque diante das inúmeras formas de relações trabalhistas que caracterizam a sociedade

capitalista atual, seria inútil à finalidade deste trabalho, fazer uma classificação das formas de

trabalho consideradas como escravocratas, uma vez que, além da escravidão no campo, já foi

detectada uma ampla diversidade de sujeição de pessoas à condição análoga à de escravo também

no meio urbano, ou seja, em casas, oficinas, na indústria etc 49.

No Brasil, a prática de trabalho forçado acontece, com mais freqüência, na

fronteira agrícola, ou seja, na Amazônia. Contudo, tal fronteira não fica restrita somente à

geográfica, uma vez que a escravização de trabalhadores se dá na fronteira da civilização, pois é,

a meu ver, uma forma bárbara de se obter lucro em detrimento de pessoas que fazem parte de

uma classe social inferior; ocorre também na fronteira espacial, vez que os lugares de aliciamento

e recrutamento de pessoas são escolhidos de forma a dificultar a fuga dos capturados e buscando,

ainda, dificultar a descoberta de tal prática pela fiscalização do governo; pode-se dizer, destarte,

que a escravidão se dá na fronteira de etnias e culturas, se aproveitando da discriminação racial e

social dessas pessoas humildes que se tornam vítimas do crime ora abordado; e, também, na

47MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997, p. 103.

48CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <www.pgr.mpf.gov.br/pfdc/gts/trabalho_escravo/documentos/diversos.html>. Acesso em: 23 nov. 2004.

49MARTINS, José de Souza. Fronteira. A Degradação do Outro nos Confins do Humano. P. 81 – 111. Op. Cit.

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fronteira de visões de mundo, pois ocorre, principalmente, em virtude da ignorância do

trabalhador que busca desesperadamente por emprego para poder se sustentar e sustentar sua

família; cabe ressaltar que a escravidão se dá na fronteira da história, pois vem ocorrendo no

Brasil desde sua colonização e, sobretudo, na fronteira do humano, porque transforma a pessoa

em um objeto descartável, sem valor, que não merece cuidado e que serve somente para

exploração, de forma que quando não produz mais, é descartado50.

Os vestígios do escravismo que persistiram, de uma forma cultural, na maneira

de pensar de alguns fazendeiros, que buscam de forma desesperada o lucro em suas produções,

nunca foram totalmente superados. Mesmo com o advento da Constituição de 88, que determinou

a igualdade de direitos entre os trabalhadores rurais e urbanos, fica claro o afastamento entre

direito formal e relações de trabalho que se dão no dia-a-dia. Assim, sabendo-se que a

semelhança entre a escravidão contemporânea e a oitocentista é a privação da liberdade e o

afastamento da dignidade humana das pessoas vitimadas, a diferença básica existente entre elas,

se configura na idéia de que o escravo não é mais uma mercadoria, e sim um simples objeto para

consumo imediato e momentâneo, visando um posterior descarte51.

Como não é mais lícito possuir escravos, foram criados métodos para

dissimular tal prática. Dessa forma, os fazendeiros contratam os chamados “gatos”, que são

pessoas com experiência em recrutamento de trabalhadores e contratação de serviços rurais que,

na verdade, têm a intenção de ludibriar e levar recrutados para fazendas distantes onde estes

50MARTINS J.S. apud CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

51MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho, SIT. O Trabalho Escravo e as Políticas Governamentais para sua Erradicação. Brasília, 2003, p. 02 - 05. Documento enviado por Rachel Maria Cunha, assessora da SEDH.

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dificilmente serão descobertos ou conseguirão fugir. Os “gatos” têm a função de iludir pessoas

que se instalam em pensões à espera de algum emprego, por meio de promessas de boa

alimentação, estadia e salário. Assim, a pessoa é levada até a fazenda, já possuindo dívida, pois o

“gato” pagara suas contas na pensão. E dessa maneira, o fazendeiro se apodera do trabalhador,

por meio da chamada “servidão por dívida”. É justamente neste meio, onde se enquadra a cadeia

que contribui para tal prática - que vai desde o gato, passando pelos policiais que se calam, pelos

donos de pensões até chegar ao proprietário rural – que se cria a relação social que ensejará no

cativeiro do peão, transformando a superexploração dos capturados em escravidão, concretizando

a servidão por dívida em primeira instância, pois é no momento de sua captura que se estabelece

o que passa a ser devido pelo trabalhador, e não exatamente na fazenda, vez que o proprietário

rural fará uso temporário do peão, e depois se livrará dele. Contudo, cabe ressaltar, que o

trabalhador acaba fazendo mais dívidas na fazenda, ao adquirir produtos na cantina da

propriedade rural52.

Chegando à Fazenda, o aliciado percebe que as condições de trabalho são

desumanas, e acaba por contrair mais dívida, pois é obrigado a adquirir objetos e alimentos

essenciais para a sobrevivência, a preços exorbitantes, que aumentam cada vez mais o valor

devido ao patrão. A tentativa de fuga pode ensejar em castigos, surras e até morte, sendo que a

única solução para estas pessoas é trabalhar até o fim do serviço e, se por sorte, não forem

transferidos para outras fazendas, serão libertos sem receber nada e com suas dignidades

feridas53. O termo ‘escravidão’ sugere a redução de pessoas à coisas, de forma que sua existência

52MARTINS, José de Souza. Fronteira. A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997, p. 104 – 105.

53MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho. O Trabalho Escravo e as Políticas Governamentais para sua Erradicação. Brasília, 2003, p. 05 - 09. Documento enviado por Rachel Maria Cunha, assessora da SEDH.

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e legitimidade leva-nos à conclusão do tanto que a dívida está incorporada às relações trabalhistas

no meio rural, influenciando na visão que o trabalhador escravizado tem da relação com seu

patrão, uma vez que este, realmente, passa a achar que não pode sair do local de trabalho em

virtude da dívida adquirida, sem questionar a origem desta. A freqüente ocorrência desse fato se

dá porque, muitas vezes, os peões se acham ignorantes de forma que o patrão, por ser rico e

estudado, compreende muito mais a relação de trabalho, fazendo com que este tenha razão em

relação à dívida. Assim, muitos deles ficam no local de trabalho por longos períodos tentando

quitar o que devem, até por medo da prisão, por não terem pagado tudo o que consumiram

durante a estadia na fazenda54.

As formas de escravidão neste século comportam, portanto, o aliciamento de

trabalhadores rurais em locais distantes, assim como o pagamento da conta da pensão onde estes

se encontravam; o precário transporte; a já citada cadeia de intermediários, além das condições de

trabalho degradantes e perigosas; ameaça e coação por uso de violência; cerceamento da

liberdade dos indivíduos e, por fim, o endividamento que se dá de uma maneira forçada, pois os

trabalhadores são obrigados a comprar o material de trabalho, pagar pelo seu alojamento,

alimentação, remédios e tudo mais o que for necessário para que sobrevivam. Sabendo que as

empreitadas ocorrem, de forma regular, na fronteira agrícola, vale frisar que esta se dá em forma

de desmatamento para utilização de madeira, derrubada da flora local para abertura de pastos e

fazendas, dentre outras, como a utilização do trabalho escravo em carvoarias, colheitas etc55.

54ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

55MORO, Luiz Carlos, Relator do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu voto dado em relação ao processo CNDS nº 13/2001.

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A concentração de renda faz do Brasil um país com uns dos piores índices de

desenvolvimento humano do mundo56. Dessa forma, tem-se em vista que quem escraviza, não é

apenas o fazendeiro infrator, mas também é o “capital desumano”, vez que implica na exploração

do “homem pelo homem”, que por sua vez é resultado da “globalização econômica”, fazendo

disso não somente um problema do Brasil, mas um problema de todo o mundo.57 Assim, “dos

vinte municípios com os piores IDHs no Brasil, dezesseis, portanto, estão situados onde há

incidência de 80% do trabalho escravo” do país.58 Logo, o aliciamento criminoso de pessoas se

vale da pouca educação das vítimas, assim como se vale da fome e da falta de oportunidade de

emprego que garanta a subsistência do cidadão59.

Tendo por base o ponto de vista estabelecido no parágrafo anterior, não seria

incorreto afirmar que existe, hoje em dia, uma ideologia que visa “humanizar” as coisas, ou seja,

é dado mais valor a bens materiais, às riquezas, deixando de lado os valores, a moral e o respeito

pelos seres humanos, ao passo que é dada ao homem característica de “coisa”, uma vez que o

explora e descarta após desfrutá-lo ao máximo. Assim, pode-se dizer que esta ideologia também é

culpada pela prática escravocrata persistente no Brasil60.

56COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p.44.

57CALDAS, Roberto de Figueiredo. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 41.

58COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P.44 – 45. Op. Cit. 59DODGE, Raquel Elias Ferreira. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P.50. Op. Cit. 60COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P.47. Op. Cit.

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4 AS ORIGENS DO DIREITO DO TRABALHO E A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA INTERNACIONAL E BRASILEIRA:

O trabalho sempre foi o elemento de distinção das posições sociais, econômicas

e políticas dos indivíduos. No entanto, na pré-história, a forma de trabalho era determinada pela

idade, ou seja, os mais velhos, por já terem cumprido sua função e terem sido úteis à tribo quando

novos, usufruíam o trabalho dos mais jovens, sem, contudo, que houvesse uma exploração de

cunho econômico, pois, nesse caso, o que existia era apenas uma rotina que se seguia em virtude

de tempo61.

É na sociedade escravagista que se verifica, pela primeira vez, a exploração do

trabalho de uma forma abrangente, uma vez que os mais poderosos submetiam determinadas

pessoas a situações degradantes por meio de coação física ou, ainda, por coação econômica. Por

exemplo, na Democracia Direta Ateniense, de poucos séculos Antes de Cristo, o trabalho escravo

era considerado indispensável e aceitável, uma vez que precisavam de indivíduos para a

realização das atividades mais desgastantes, enquanto seus donos se dedicavam ao

desenvolvimento do intelecto. Assim, eram escravizados os inimigos de guerras por eles

vencidos, e também pessoas que eram consideradas cidadãs anteriormente e que acabaram

empobrecendo, tudo isso sob o argumento de que necessitavam de mais tempo para o estudo62.

A sociedade Romana utilizou-se do trabalho escravo como uma forma de

consolidar sua potência perante as pessoas de todas as localidades, o que amedrontava as demais 61COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Competência da justiça do trabalho para julgar os crimes contra a organização do trabalho. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/palestra_drgrijalbo_oit.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2003.

61Ibidem. 62Ibidem.

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nações, em razão do poder que esta tinha em decorrência de suas conquistas e domínio de grande

parte do mundo, pois tornou muitos Estados soberanos em províncias romanas. Dessa forma,

percebe-se que a História da Antiguidade está fortemente vinculada e entrelaçada com o serviço

forçado de pessoas que se submetiam ao trabalho escravo por diversos motivos, ou seja, por

serem inimigos de guerra capturados, pessoas pobres, bandidos, estrangeiros etc63.

Nos demais modelos de sociedade que se deram após este período, o trabalho

dos seres humanos passou a ser explorado, mas com características diferentes da escravidão.

Como exemplo pode-se citar a Idade Média, onde surgiu a figura do servo caracterizando o

feudalismo que consistia, basicamente, na submissão de vassalos - por serem economicamente

menos favorecidos - em relação aos senhores proprietários de terras, que, além de riquezas,

tinham o apoio da nobreza64.

Contudo, formas diversas de trabalhos surgiram com o advento das Cruzadas,

que veio a proporcionar uma expansão do comércio, fazendo com que uma nova classe social

surgisse. Essa nova classe era a detentora do poder econômico, uma vez que as novas rotas

comerciais fizerem com que inúmeras pessoas se tornassem ricas, formando, assim, a burguesia,

que veio a derrubar o sistema do feudalismo vigente até então65.

Dentro desse contexto, vem à tona o movimento do iluminismo, que

vislumbrava e detectava a impossibilidade de uma convivência pacífica entre o regime capitalista

63COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Competência da justiça do trabalho para julgar os crimes contra a organização do trabalho. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/palestra_drgrijalbo_oit.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2003.

64Ibidem. 65Ibidem.

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da liberdade individual e a ordem política dos reis, e foi assim que se deu impulso para a

ocorrência da Revolução Francesa66.

A revolução Industrial da Inglaterra firmou o capitalismo, contudo de uma

forma diversa, caracterizando uma outra fase, revelando, contudo, outras maneiras de exploração

de trabalho, por meio de longas jornadas de atividades laborais, trabalho de mulheres e crianças

sem nenhuma proteção social etc. Com as reações contra esta exploração surgiram as primeiras

legislações com o fim de proteger o trabalho e suas relações. Nesse contexto, importante foi

Marx, o maior crítico do capitalismo, ao vislumbrar “no excedente da força de trabalho não

remunerada pelos patrões” - Mais Valia – toda a base de sustentação deste sistema econômico.

Assim, Marx lutava pelo fim das classes sociais e a instauração do socialismo e, posteriormente,

do comunismo67.

Em suma, o Direto do trabalho surgiu da reação da classe operária aos abusos

do capitalismo, atendendo também ao receio da burguesia que se viu amedrontada com o

comunismo na Europa68, isto é, a legislação trabalhista surgiu, basicamente, dos resultados da

Revolução Industrial, dos efeitos da entrado do Estado Neoliberalista (que passou a intervir na

liberdade das partes da relação de trabalho) e da reivindicação, mais do que justa, dos

trabalhadores à suas proteções69.

66COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Competência da justiça do trabalho para julgar os crimes contra a organização do trabalho. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/palestra_drgrijalbo_oit.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2003.

67Ibidem. 68Ibidem. 69 COSTA, Wagner Veneziani; Valter Roberto Augusto; Marcelo Aquaroli. Novo Exame de Ordem. São Paulo: Madras, 2005. Pg. 231.

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No Brasil, devido ao atraso de sua economia, o fenômeno do surgimento do

Direito do Trabalho foi retardado, tendo sido a mão-de-obra escrava utilizada durante três séculos

e meio. As primeiras leis brasileiras de proteção social surgiram na transição do Século IX para o

XX, com a reunião de todas essas leis na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. No

ano de 1946 houve a integração da Justiça do Trabalho ao poder judiciário, retirando-lhe o caráter

administrativo que lhe era próprio70.

Como a escravidão foi extinta, a partir do novo modelo de economia vigente no

país, passaram a surgir novas formas de se escravizar um indivíduo. Contudo, no Código Penal

Brasileiro não há uma definição de trabalho escravo, e sim de ‘redução à condição análoga a de

escravo’, sendo que o mesmo se pode dizer com relação às convenções internacionais. Assim, vê-

se que há uma definição legal a respeito da escravidão onde o conceito de trabalho escravo e

trabalho servil a ele está vinculado71.

O fato de escravizar cidadãos foi um dos primeiros assuntos tratados pela

Sociedade das Nações, consolidada em 1919, que, em 1926, adotou uma Convenção que proibia

toda e qualquer prática de trabalho escravo e, também o tráfico de seres humanos para tal fim.

Nela a escravidão vem definida como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se

exercitam os atributos do direito de propriedade ou algum deles”. Vale lembrar, ainda, que as

70COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Competência da justiça do trabalho para julgar os crimes contra a organização do trabalho. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/palestra_drgrijalbo_oit.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2003.

71CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

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partes contratantes, no caso dessa convenção, ficam responsabilizadas, contudo, por evitar

situações análogas à escravidão, caso se utilizem trabalho obrigatório ou forçado72.

Quanto ao trabalho forçado, a OIT adotou o Convênio nº 29, mediante o qual os

Estados ratificantes ficam obrigados a extinguir a prática do trabalho forçado ou obrigatório, seja

qual for sua forma, salvo, apenas, em caso de serviço militar, dos trabalhos realizados em

carceragem etc, ou seja, aqueles impostos pelo Estado. Aí se vê a diferença entre trabalho forçado

ou obrigatório, do trabalho escravo. Este último priva o cidadão de sua liberdade, ao passo que os

primeiros são formas de trabalho compulsórias, ou seja, o Estado obriga as pessoas a realizarem

certo tipo de trabalho por determinado tempo73.

Em 1948 as Nações Unidas assinaram a ‘Declaração Universal dos Direitos do

Homem’, a qual afirma, em seu artigo 4º que "Ninguém será mantido em escravidão ou servidão;

a escravidão e o tráfico de escravos são proibidos em todas as formas". Como conseqüência foi

adotada, em 1956, uma Convenção suplementar que acabou ampliando o conceito de trabalho

forçado, ao incluir "as instituições e práticas análogas à escravidão de 1926 tais como a servidão

da gleba, a servidão por dívida, formas servis de casamento, exploração da prostituição,

exploração de crianças e adolescentes”. Em 1957, foi aplicado o convênio nº 105, abolindo a

prática de trabalho forçado74.

No ano de 1975, foi estabelecido, pelo Conselho Econômico e Social das

Nações Unidas, um grupo de trabalho, composto de cinco membros “representantes de cada uma

72Ibidem. 73CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

74Ibidem.

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das cinco regiões geopolíticas”, com intuito de tratar das formas contemporâneas de escravidão,

fazendo deste uma Subcomissão da Comissão de Direitos Humanos, que se reúne de ano em ano

para examinar os casos que lhe são confiados. Assim, podem participar das reuniões deste grupo,

como observadores, os representantes dos Estados-membros, das ONGs reconhecidas e membros

dos demais organismos das Nações Unidas. O trabalho deste grupo gerou a tendência que existe

hoje no direito internacional, de se fazer conhecer as novas formas de sujeição à escravidão,

assim como divulgar e combater as antigas formas que passaram a ser inaceitáveis para a

sociedade. E diante disso, vemos que nos documentos internacionais, nada se fala a respeito de

escravidão, isto é, não está tipificado em nenhuma Convenção e em nenhum documento a

escravidão propriamente dita, uma vez que não encontramos o termo ‘trabalho escravo’e sim

termos como ‘trabalho forçado’, ‘redução à condição análoga à de escravo’ etc75.

Diante do fato de se saber que em toda escravidão há trabalho forçado, mas que

nem todo trabalho forçado é escravidão, no Brasil, nos anos que vão de 1992 a 1994, surge “uma

discussão entre autoridades governamentais e organizações não-governamentais sobre a

existência de forçado ou trabalho escravo”, tema que será tratado em outro tópico desta pesquisa.

Contudo, novas práticas de escravidão ainda não incorporadas às Convenções continuam

surgindo. Tais práticas são observadas pelo grupo de trabalho da ONU e apesar de não estarem

descritas nas convenções, poderiam ser integradas à Legislação brasileira76.

Em nosso Código penal, o tipo que criminaliza a escravidão se encontra

descrito no artigo 149, sendo este aberto, ou seja, cabe ao juiz definir se é análogo à condição de

75CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

76Ibidem.

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escravo o fato que se deu. De acordo com o citado artigo, é crime “reduzir alguém a condição

análoga à de escravo”, com pena de reclusão de dois a oito anos. Por tais motivos, não se pode

julgar tomando por base uma tipificação fechada, pois impediria o reconhecimento

jurisprudencial de novas formas contemporâneas de escravidão. Sendo assim, essas discussões

que se travam no plano judiciário e administrativo, a respeito de se caracterizar certas situações

que ocorrem nos campos brasileiros como trabalho escravo, não podem ser encaradas como

negativas isso porque impediria o reconhecimento, pela coletividade, de novas situações análogas

à escravidão. Por isso, é possível se chegar à conclusão de que o problema não está na Lei em si,

e sim, na consciência dos patrões que escravizam, dos órgãos e pessoas competentes que se

omitem, no sistema social que impõe uma busca incontrolável pelo lucro etc 77.

No Brasil, uma nova forma de escravidão contemporânea é a existente entre as

relações de trabalho rural, por isso, quando falamos em trabalho escravo, estamos nos referindo a

esse tipo de exploração. Contudo, entre as formas de trabalho que devem ser proibidas estão a

escravidão na forma da antiguidade Clássica; qualquer modo de servidão que negue a dignidade

ou a liberdade do homem, por exemplo, a servidão da gleba; o trabalho forçado tal qual o que

ocorreu nos campos de concentração nazistas; qualquer outra forma que se assemelhe à

escravidão ou servidão e que negue ou inferiorize a dignidade e a liberdade da pessoa

individual78.

77CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004

78Ibidem.

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5 O SIGNIFICADO DO TERMO ESCRAVIDÃO E A POLÊMICA EXISTENTE A RESPEITO DESSA TERMINOLOGIA:

Uma grande discussão que se trava é a respeito do termo correto para a

caracterização do crime ora abordado. Uma vez que não há mais escravatura, visto que essa foi

abolida, não pode existir um artigo no Código Penal Brasileiro, versando sobre tal prática79.

De 1992 a 1994 houve uma grande discussão a respeito da existência de

trabalho forçado e escravo no Brasil. Autoridades governamentais negavam a existência enquanto

órgãos não-governamentais apontavam sua ocorrência no país. Foi, entretanto, por meio das

pressões internacionais que as autoridades admitiram a prática do crime80.

No entanto, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que existe desde o século

passado, trata do fato de reduzir alguém à condição análoga a de escravo, o que não significa

exatamente escravidão, e sim, no caso de servidão por dívida, uma forma de cerceamento da

liberdade individual por meio de uma dívida estabelecida, o que força o trabalhador a continuar

oferecendo seus serviços no intuito de quitar tal divida que possui com o empregador81.

A essência do crime de trabalho escravo, nos dias de hoje, se encontra na

sujeição de uma pessoa à outra, ou seja, no sentido do domínio físico e psicológico. E, assim,

79PLASSAT, Frei Xavier, coordenador da campanha contra o trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra. Entrevista concedida a Jô Soares. Programa do Jô, 27 abr. 2004. Disponível em: <http://programadojo.globo.com/>. Obs: Clicar no Link ‘entrevistas’.

80CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

81CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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mesmo permanecendo como estado de Direito, a liberdade do escravizado é excluída como fato.

Dessa forma, torna-se uma pessoa totalmente submissa à vontade de seu patrão como se fosse um

escravo propriamente dito. Destarte, o crime consiste em apoderar-se de um ser humano e reduzi-

lo à condição de coisa, comprando-o, vendendo-o, sem consultar a vontade deste, tornando

irrelevante seu consentimento no que tange as suas prestações de serviços82.

Tal vínculo trabalhista é diverso do que era estabelecido entre escravo e patrão

no regime escravocrata oitocentista, onde o custo do negro africano era altíssimo. Hoje em dia, o

escravo contemporâneo sai a custo quase zero, uma vez que o “gato” apenas paga o transporte até

a fazenda e, se houver, paga também a dívida do trabalhador aliciado em alguma pensão,

iniciando, assim, a referida dívida, vez que o gasto com o transporte, alimentação, alojamento e

materiais de trabalho serão anotados no caderno de dívida que fica na posse do “gato”. Mesmo

assim, diante das agressões, privação da liberdade e desprezo, a dignidade do ser humano é

roubada, assemelhando-se, nesse ponto, com a escravidão do Brasil Colonial83.

Além do Artigo 149 do Código Penal, existe, também, a legislação trabalhista

aplicada no meio rural, lei 5.888, desde a década de 70. Há, ainda convenções e acordos

internacionais que tratam da polêmica da escravidão contemporânea, como por exemplo, as

convenções internacionais de 1926 e de 1956, que versam sobre a proibição da servidão por

dívida, e que entraram em vigor no Brasil no ano de 1996. Existe, além disso, as convenções 29 e

105, da OIT, datadas de 1930 e 1957, respectivamente, que tratam deste mesmo tema, e, para

82OLIVEIRA, Neide M.C. Cardoso de. Atuação do MPF em relação ao crime de trabalho Escravo. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mpft.pdf>. Acesso em: 13/12/2004.

83CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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finalizar, verifica-se, ainda, a Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e

seus Seguimentos, de 1998. Dessa forma, não se pode falar em dúvida quanto à terminologia e

tentar eximir a culpa dos fazendeiros adeptos de tal prática criminosa, por acreditar que a Lei não

explica detalhadamente o que é o Trabalho Escravo e, por isso, os empresários não sabem o que é

proibido fazer. Contudo, tais empresários são pessoas instruídas e conscientes, de forma que suas

fazendas e empresas possuem assessoria jurídica, assim como uma assessoria contábil de alto

nível, uma vez que, em boa parte dos casos, são os grandes latifundiários que praticam a

escravidão mascarada pela dívida. Por isso, não se pode negar o fato de que manter um

trabalhador em situações precárias de moradia, alimentação e submetê-los a um trabalho

degradante afronta no mínimo os direitos fundamentais de um cidadão, o que já se tornaria uma

infração. “Como se vê, o conceito de trabalho escravo é universal e o conceito legal é mais do

que claro” 84.

De qualquer maneira, todos nós sabemos o que é escravidão, e também

sabemos as condições mínimas necessárias para não ferir a dignidade de uma pessoa. Além do

mais, o artigo 149, CP, em seu parágrafo único, considera como condição análoga à de escravo,

submeter uma pessoa à vontade de outra pelo uso de fraude, violência ou por intermédio da

privação de direitos sociais, assim como a dos direitos individuais; ameaça, ou qualquer meio

diverso que torne impossível a hipótese da pessoa se tornar livre da situação em que é mantida85.

As inúmeras modalidades de trabalho forçado pelo mundo possuem dois pontos

em comum, que são “o uso da coação”, assim como a “negação da liberdade”. Em nosso país, a

84CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

85COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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soma do trabalho degradante com a privação da liberdade resulta na prática ora em questão,

sendo que o termo utilizado pela OIT para designar tal prática de servidão por dívida é o termo

Trabalho Escravo86 , o grande problema acerca da correta terminologia a ser empregada está no

fato de que ao artigo 149 do CP se encontra tipificado no capítulo dos “crimes contra a liberdade

individual”, o que gera confusão tanto no âmbito da competência para apreciar tais crimes, como

na esfera trabalhista, e assim, muitos fazendeiros se escusam desta prática utilizando o argumento

de que a lei não explica corretamente o que vem a ser a escravidão contemporânea87. No entanto,

importante é que fique explicito que ao se falar em trabalho escravo, venha em mente, de

imediato, a servidão por dívida, de acordo com os termos utilizados pela OIT.

86CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

87COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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6 AS PRINCIPAIS CAUSAS DA PRÁTICA DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL:

Para tentar esclarecer os motivos que levam empresários rurais à práticas

escravocratas, serão expostas, a seguir, algumas das causas mais comuns que perpetuam o crime

em enfoque.

6.1 Impunidade:

Ao falarmos em trabalho escravo, vamos de encontro a bens jurídicos

fundamentais, consagrados pela Constituição Federal, que garantem a dignidade da pessoa

humana e os valores sociais do trabalho. Nesse sentido, é importante que se use de alguns

artifícios jurídicos para tentar combater o problema da impunidade como causa de escravidão

moderna88.

Como se sabe, as sanções fora da área penal são insuficientes por si só no

combate ao trabalho escravo, inclusive do ponto de vista econômico, o que derruba o pensamento

de que as penas que atingem as contas bancárias do fazendeiro seriam eficazes na luta contra o

crime em questão. Por isso, a intervenção do direito penal torna-se extremamente necessária, para

que se evite uma linha de raciocínio, como se tem hoje, de “custo-benefício” por parte de certos

empresários rurais, que acham compensatório escravizar pessoas, pois sabem que na pior das

hipóteses receberão sanções de cunho econômico que, uma vez pagas, restaria somente como

mais um “custo de produção” 89.

88COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Cunha, assessora da SEDH.

89Ibidem.

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A Justiça do Trabalho da 8ª Região condenou uma fazenda em 30 mil reais, e

também duas Fazendas em 60 mil reais, sendo que este dinheiro vai para o FAT – Fundo de

Amparo ao Trabalhador. Além dessas condenações, em 2002 a Vara itinerante90 “renovou as

esperanças do Ministério Público do Trabalho”, ao se deslocar para dentro das fazendas, e lá se

proceder ao pagamento dos direitos trabalhistas das pessoas que ali se encontram. Isso tudo

graças à produção da petição que é feita na hora, recebida pela Vara tendo, logo, a decisão e a

autorização judicial do bloqueio da conta do fazendeiro que se dá por meio de um notebook.

Dessa forma é enviado um avião com o valor bloqueado e a partir daí é feito o pagamento dos

direitos trabalhistas das pessoas escravizadas91. Mesmo com o intuito de punir os escravocratas,

por parte da Justiça do Trabalho, o uso do trabalho escravo ainda é lucrativo, pois, para os

fazendeiros, essa prática barateia a mão-de-obra, otimizando seus lucros, de forma que ainda

ficam, de certa maneira, seguros uma vez que poucos infratores são denunciados por manter

trabalhadores nessas situações em suas fazendas92.

Torna-se, então, necessária a intervenção do Direito Penal nas relações

escravocratas, como forma de intimidação, prevenção e retribuição à conduta ilícita praticada.

Nesse sentido, cabem as palavras de Nicolao Dino de Castro e Costa Neto ao dizer que “[...]

Direito Penal exerce papel relevante na proteção dos valores fundamentais. Irradia seus efeitos,

destarte, em relação aos comportamentos que ofendem os bens mais caros da coletividade” 93.

90Vide p. 82. 91PEREIRA JÚNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 25 – 31.

92CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

93Apud COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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Contudo, a aplicação penal nesses casos, torna-se difícil mesmo com as

tipificações do Código Penal Pátrio, a saber, artigo 149, 203 e 207, além das diversas leis,

tratados e convenções assinados com o intuito de se prevenir e erradicar o trabalho escravo. Isso

porque existe uma certa dúvida que paira sobre a interpretação do artigo 149, CP, que versa sobre

o crime de reduzir alguém à condição análoga a de escravo, uma vez que o conteúdo do artigo é

considerado vago sendo que, “somente quando pessoas fossem encontradas acorrentadas em uma

senzala oitocentista haveria a configuração do crime” 94. Entretanto esse absurdo é contestado por

Cezar Bitencourt95 ao relatar que:

“os meios ou modos para a prática do crime são os mais variados possíveis, não havendo qualquer limitação legal nesse sentido; o agente poderá praticá-lo, por exemplo, retendo os salários, pagando-os de forma irrisória, mediante fraude, fazendo descontos de alimentação e habitação desproporcionais aos ganhos, com violência ou grave ameaça etc”.

Diante de tal descaso referente à interpretação do citado artigo do Código

Penal, necessária se torna uma alteração na legislação existente, com o objetivo de superar as

equivocadas formas de interpretação que giram entorno desse tipo penal96. Não obstante, esse

tema será tratado adiante.

Algumas pessoas se apóiam no aspecto cultural para redimir a culpa do

fazendeiro infrator, contribuindo, ainda mais, para a impunidade97. Sendo assim, afirmam que é

um costume da região a contratação de trabalhadores somente por um curto período. No entanto

há uma imensa diferença entre os empregadores que fazem um “contrato de trabalho de curta

94COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao trabalho forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

95Apud COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao trabalho forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Op.Cit. 96COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao trabalho forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Op.Cit. 97CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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duração” – sem assinar carteira trabalhista, mas sem deixar de pagar os direitos do trabalhador – e

fazendeiros que mantém pessoas trabalhando em sua propriedade, vinculados a esse trabalho em

virtude de uma dívida empreitada pelo ‘gato’ e pela coação física e moral, sem a possibilidade de

deixar o local onde se encontram. O empregador honesto cumpre todas as normas relativas à

segurança e saúde, respeitando a dignidade do trabalhador, ao passo que o infrator submete as

pessoas a condições subumanas, sem direito à saúde, higiene, alojamento decente, tampouco

segurança em seu local de trabalho98.

É justamente pelo que foi exposto no parágrafo anterior que o desrespeito à

dignidade e o cerceamento da liberdade não podem ser vistos e encarados como manifestação

cultural de uma determinada região, mas sim como uma imposição da vontade daqueles que

possuem maior poder econômico e social, vontade esta movida pela busca insaciável pelo lucro,

gerada pelo modo capitalista de pensar dos tempos atuais. Se realmente fosse parte da cultura

local, tal crime seria praticado por quase todos os fazendeiros da região, o que não se pode

afirmar, vez que somente alguns fazendeiros utilizam o trabalho escravo, reiteradamente, em suas

propriedades99.

Contudo, não podemos deixar de lado certas relações de trabalho que realmente

fazem parte da cultura da região, sem que configure trabalho escravo, é o caso em que se dá esse

tipo de relação em propriedades abertas, sem cerceamento da liberdade e sem interferência dos

98TAVARES, Rodolfo. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo.Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 99CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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capangas do local, mas que possui condições de trabalho precárias, sendo que este é o meio

oferecido pelo mercado de trabalho e pela cultura a esse povo100.

Outro fator que contribui diretamente para a continuidade da impunidade,

ocorre em função da reciprocidade e apoio, muitas vezes existente, entre fazendeiros e agentes do

Estado, fazendo com que muitos infratores sejam encobertos por quem necessita da influência

destes para que continuem em seus cargos; ou ainda por repressão vinda desses proprietários

rurais que passam a fazer ameaças à vida dos agentes estatais e das suas famílias e estes, por

medo, se omitem, contribuindo, destarte, com o déficit de denúncias nesse caso101.

Vários são os casos de ameaças a Auditores Fiscais, Juízes, Delegados e

promotores que atuam na luta pela repressão do trabalho escravo. Dentre os vários exemplos,

vale mencionar o Juiz Jorge Ramos Vieira, que atuava como juiz do trabalho na comarca de

Paraupebas, PA, que foi ameaçado de morte, por várias vezes, devido sua atuação no combate ao

trabalho escravo, comprovando, mais uma vez que, quem escraviza, além de desrespeitar os

direitos do cidadão, desrespeita, também a Constituição Federal, vez que esta assegura os

referidos direitos. Segundo este magistrado, “os escravagistas do sul do Pará estão rindo à-toa

porque se livraram de autoridades que estavam lhes impondo a lei” 102.

A impunidade não pode ser justificada pela idéia que se tem da

impossibilidade de aplicação da lei trabalhista na região de fronteira agrícola amazônica, sob o

100CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

101COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 44 – 47.

102TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Notícias do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: <http://ext02.tst.gov.br/pls/no01/no_noticias.Exibe_Noticia?p_cod_noticia=2944&p_cod_area_noticia=ASCS>. Acesso em: 23 ago. 2005.

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pretexto de que isso geraria desemprego na região. A partir do momento em que se tem

necessidade de aplicação de mão-de-obra humana, deverá ser seguida a risca a lei que protege as

relações de trabalho. Com isso, todo empregador que não contratar trabalhadores rurais sob os

ditames de tal lei, ficará sujeito às sanções penais, administrativas e trabalhistas, em virtude da

violação dos preceitos legais impostos a ele103.

Os dispositivos legais que proíbem a prática de trabalho escravo no Brasil estão

enraizados na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, caput, e incisos II e XIII. Quanto

ao Código Penal, esse tema é tratado pelo artigo 149, assim como pelo 197, inciso I. A Lei nº

9.777, datada de 29 de dezembro de 1998, veio alterar os artigos 132, 203, e 207 do Código Penal

Brasileiro, contudo, versa sobre o tema da frustração dos direitos trabalhistas e do aliciamento de

pessoas para levá-las a outro local do território nacional104.

No setor internacional do combate ao crime ora abordado, o Brasil tornou-se

signatário de certos documentos, a saber, Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura

(1926), ratificada pelo país no ano de 1966 e promulgada pelo Decreto nº 58.563; Convenção

Suplementar sobre a Abolição da Escravatura (1956); Convenção nº 29 da Organização

Internacional do Trabalho (1930), ratificada em 1957 e promulgada pelo Decreto 41.721;

Convenção nº 105 da Organização Internacional do Trabalho (1957), ratificada em 1965 e

103CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

104CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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promulgada pelo Decreto nº 58.822; assim como a Declaração sobre os Princípios e os Direitos

fundamentais no Trabalho, da OIT, adotada em 1998105.

Como já foi dito, são formas análogas à escravidão, de acordo com as opiniões

internacionais, a que se dá de forma semelhante da praticada na Antiguidade Clássica; modos de

servidão que privem a liberdade ou neguem a dignidade da pessoa individual; o trabalho forçado

como, por exemplo, o que se deu nos campos de concentração nazistas, assim como qualquer

outra situação equivalente à servidão ou escravidão, desrespeitando e negando a dignidade e a

liberdade do ser humano. Isto posto, vale ressaltar que pelas convenções internacionais a

escravidão por dívida no meio rural brasileiro se caracteriza como forma análoga à escravidão, de

tal sorte que no Brasil, os defensores dos direitos humanos queixam-se, não da falta de leis

nacionais contra tal prática, mas da falta de uma definição legal dessas situações semelhantes à

escravidão, para que haja a punição dos infratores pelo sistema penal - porque a falta da definição

torna-se uma desculpa para o fazendeiro, vez que este alega a falta de clareza da Lei - reduzindo,

assim, a impunidade existente.106

Mesmo com a existência de todos os preceitos contra o trabalho escravo,

citados nos parágrafos anteriores, muitos fazendeiros não se sentem sujeitos à legislação e, por

isso, continuam escravizando, tendo por base a idéia de que não podem ser punidos, fazendo

assim, ameaças contra quem se dedica ao trabalho de repressão à essa atitude107. Sabe-se,

105CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

106CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

107MELO, Luis Antonio Camargo. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

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entretanto, que todo e qualquer homem pode cometer crimes e sabe-se, também, que a sociedade

sempre luta a favor da conservação das ações que ocorrem de forma normal e não agressivas no

cotidiano. Assim, sempre haverá uma reação social contra as ações que ameacem ou contrariem a

população, definindo, então, as ações ilícitas que podem ser cometidas. Nesse sentido, pode-se

afirmar que a pena é vista pelas pessoas como uma forma de defesa social e que, por isso, não

pode deixar de ser aplicada, caracterizando-se como meio de prevenção e de repressão às atitudes

ofensivas ao meio social108.

Dentro deste contexto de impunidade, sabe-se que a presença do Estado na

região de fronteira agrícola sempre existiu, vez que os empréstimos e financiamentos subsidiados

aos empreiteiros agrícolas sempre foram realizados, com o intuito de promover o pregresso. Por

isso, não se pode dizer que a falta de punição é culpa da ausência do Governo, vez que este

sempre se manifestou no local109. Entretanto, o desenvolvimento econômico brasileiro, que é uma

das metas do Governo, exige um certo nível de ética, o que torna inaceitável o fato de haver um

uma ligação entre tal desenvolvimento e as práticas ilícitas de escravidão110. Assim, inadmissível

é aceitar a exploração humana em prol do desenvolvimento agrário111, sendo que a impunidade

deve ser combatida pelo Estado que, por muito tempo, se tornou omisso em relação à defesa dos

economicamente desfavorecidos da região, favorecendo apenas os fazendeiros com o intuito de

se obter avanços para o país, deixando de lado certas questões relacionadas aos direitos humanos

dos cidadãos. No entanto, o Estado vem mudando seu foco de atenção e, hoje em dia, empenha

108ANDRADE, Vera Regina de. A ilusão de Segurança Jurídica: Do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 68.

109CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

110ROSSETO, Edson Carvalho Vidigal. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

111PEREIRA, Armand. . II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

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uma luta contra a prática degradante de exploração da mão-de-obra humana, o que significa um

avanço para a sociedade112.

De qualquer forma, mesmo existindo as citadas disposições legais contra a

prática de trabalho escravo, o número de pessoas condenadas por este crime é muito baixo. Por

isso, o volume de casos denunciados cresce enquanto a quantidade de fazendeiros condenados

diminui e, assim, o trabalho escravo vem aumentado em virtude de determinados fatores como a

instabilidade das condições econômicas que surgem do crescimento econômico desbalanceado;

falta de fiscalização por falta de recursos humanos e materiais, assim como a lenta atuação

jurídica. O Governo tem a consciência da necessidade de uma punição mais rigorosa e severa,

contudo, nada indica que algo realmente eficiente esteja ocorrendo contra a prática deste crime,

porque, mesmo havendo planos de combate e erradicação, falta mais incentivo, por parte do

Estado, ao combate à escravidão, faltando também maior apoio a quem realmente luta pelo

controle desta situação113.

Os processos criminais relativos ao artigo 149 do Código penal, muitas vezes

são arquivados sem serem julgados ou até mesmo antes do oferecimento da denúncia, pois a

prescrição do crime impede o seguimento das ações. Dentre os raros processos que estão em

andamento, pode-se dizer que os fazendeiros acusados da prática delituosa nunca serão julgados,

muito menos condenados, em decorrência da demora da conclusão dos inquéritos, da lentidão do

judiciário, da falta de testemunhas, permitindo que o acusado fique foragido até que ocorra a

112CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

113CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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prescrição da sua pena o que torna, dessa maneira, evidente a impunidade no meio rural do país.

Contudo, não é somente no âmbito penal que a impunidade persiste. Na área trabalhista, as

multas devidas não são pagas, muitas vezes nem são cobradas e, além do mais, o valor cobrado

desses fazendeiros é, para eles, simplório e, portanto, sem efeito114.

As estatísticas oficiais obtidas são referentes apenas ao número de trabalhadores

resgatados pela Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, por isso, conclui-se que não

há precisão nessa contagem, pois a quantidade de escravos divulgada não condiz com a realidade,

uma vez que o crime continua sendo praticado, cada vez mais, por proprietários rurais nos

confins do Brasil. A não punição dos infratores, a lentidão dos processos judiciais e a falta de

entrosamento entre os órgãos estatais acabam contribuindo para a permanência da prática

delituosa no país. E, para finalizar, importante é dizer que, nos raros casos de condenação por

esse delito, quem acaba sendo punido é o intermediário, gato ou gerente, ou ainda o pequeno

proprietário rural, de forma que o grande produtor, dono de enormes fazendas, nunca é

penalizado115.

Para o Ministério público, no entanto, o autor do crime é o empregador final,

porque o dono da propriedade rural é o responsável por tudo o que nela ocorre, isso porque se

presume que o mesmo visite, ainda que raramente, sua fazenda. Por isso não se pode excluir a

responsabilidade penal do fazendeiro até porque este utiliza os serviços de terceiros – gatos e

gerentes de suas fazendas - para não cumprir as Leis do Trabalho, escravizando indivíduos e

114MORO, Luiz Carlos, Relator do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu voto dado em relação ao processo CNDS nº 13/2001.

115CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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tendo por fim um lucro maior em sua produção. Estes terceiros, só devem ser denunciados

conjuntamente com os patrões quando participam de maneira direta na manutenção dos

trabalhadores aliciados em regime de escravidão na fazenda, isto é, quando por meio de ameaças

físicas ou psicológicas, impedem que os empregados se libertem da condição de escravo. Há que

se observar, também, mais um detalhe para não escusar o fazendeiro do crime em tela, ou seja, há

que se esclarecer que esses terceiros também não têm seus direitos trabalhistas observados de

forma correta, sendo que o lucro da atividade ilícita fica vinculado apenas ao dono da

propriedade rural116.

Assim, a prevenção ao crime fica cada vez mais difícil, de forma que a

erradicação se torna cada vez mais distante, sendo que o mais prejudicado diante desta situação é

o trabalhador e sua família, e estes não podem ficar dependendo eternamente da atividade do

governo – uma vez que esta até hoje tem se mostrado ineficiente – que procura, com a punição, a

solução para o problema e também o resgate da dignidade do trabalhador. No entanto, esta

punição não ocorre de forma concreta, o que significa um atraso no emprenho contra o crime de

trabalho escravo 117.

6.2 Capitalismo:

Outro fator que contribui para a existência da prática de trabalho escravo no

Brasil é a busca, por parte dos empresários rurais, pelo lucro e por uma melhor posição no

mercado. Por tal motivo, alguns fazendeiros usam meios ilícitos para alcançar este fim e superar a

concorrência diminuindo, para isso, seus gastos pecuniários ao explorar a mão-de-obra de

116OLIVEIRA, Neide M.C. Cardoso de. Atuação do MPF em relação ao crime de trabalho Escravo. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mpft.pdf>. Acesso em: 13/12/2004.

117VILELA, Ruth. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

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pessoas, sem garantir a estas os direitos trabalhistas devidos, a segurança, a saúde e a dignidade

de seus empregados118.

Assim, o capitalismo contribui para tal crime. Mas neste caso, não se fala no

capitalismo em sua estrutura, onde aparece o estado Neoliberal intervindo na relação de trabalho

para a proteção das partes; não se fala num capitalismo que estabelece a possibilidade de

trabalhar e perceber lucros para ter uma vida melhor; mas sim em suas conseqüências, como, por

exemplo, a vontade de possuir e consumir cada vez mais, para mostrar um bom status social, faz

com que pessoas esqueçam seus valores e passem a agir de forma cruel, sem observar as

condições que oferecem para seus empregados. Contudo, além de despertar a ganância em certos

indivíduos, pode-se dizer que o trabalho escravo no Brasil teve início a partir do momento em

que houve a necessidade de expandir e modernizar o país, dentro de uma perspectiva capitalista

(gastar pouco e lucrar muito) de promover a economia e gerar lucros para se obter o

desenvolvimento.119

Portanto, a prática contemporânea de trabalho forçado que se deu no Brasil

deve ser tomada a partir de 1966, quando da expansão da fronteira agrícola amazônica. O que

ocorreu, na verdade, foi que no período que vai de 1964 a 1985, ou seja, quando vigorava no

Brasil a ditadura militar, foi imposto “um plano de ocupação econômica da região amazônica”,

em base consideradas modernas na época. “Os pressupostos geopolíticos gerados pela tensão da

guerra fria” aceleraram a necessidade de ocupação da região e, como a abertura e exploração do

118CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

119 MARTINS, J. S., apud CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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território foram feitas sob a ditadura militar, onde havia falta de liberdade e muita repressão, os

trabalhadores não podiam nem se quer reclamar das más condições a que eram expostos, pois

poderiam ser acusados de “subversão a ordem”. Entretanto, o objetivo de cunho econômico dessa

ocupação, obviamente, também existiu120.

Mesmo estando a região ocupada por tribos indígenas, o medo gerado pela

guerra fria, fazia com que ficasse no pensamento da população o lema “integrar para não

entregar” e, com isso, procurava ocupar os espaços tidos como vazios. Acontece que o

fundamento econômico usado para ocupar a região não era coerente com a destinação de tal

proposta, uma vez que atividade escolhida para a ocupação, a agropecuária, não necessita de

muita mão-de-obra e, assim, esvazia o território, uma vez que precisa de amplos pastos para o

gado e para a plantação. Contudo, mesmo com essa incoerência, foi esse o modelo adotado pelo

Governo e promovido por meio de altos incentivos fiscais. Assim observando, podemos

correlacionar as formas modernas de trabalho forçado com a teoria do capital por ser a escravidão

moderna um produto do sistema capitalista de produção, aonde se busca gastar o mínimo possível

e alcançar o maior lucro que possa existir121.

Os empreendimentos agropecuários de ocupação da fronteira conservaram a tal

lógica capitalista de investimento intensivo em dinheiro, visto que esses empreendimentos foram

financiados a juros muito baixos e pela capacidade de utilização, de forma forçada e explorada,

120MARTINS, J. S., apud CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

121CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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da mão-de-obra humana. Logo, dentro das expectativas de combate à exploração do trabalho,

posto que, como já foi dito, as fronteiras não são, nesse caso, somente geográficas, “mas moveis,

versáteis e adaptáveis à história e à historicidade”, fica evidente que a “prática de trabalho

forçado acompanha a dinâmica econômica da reprodução de capital”, em prol do lucro visado

pelos empreendedores122.

De acordo com a escritora inglesa Binka Le Breton, o modelo de

desenvolvimento da Amazônia se deu de forma semelhante à ocupação do Faroeste americano,

ou seja, na época houve uma série de más conseqüências, mas, após longo lapso temporal, tal

ocupação foi a responsável pela firmação de um continente capaz de oferecer oportunidades para

todos que nele habitam. Isso porque a ocupação consistia em “dar direito de posse aos pequenos

agricultores, e estimular os caubóis a entrarem na terra prometida”. Contudo, no Brasil os

resultados foram diferentes, principalmente em face do regime militar que estava implantado na

época, que pouco entendia sobre a economia de seu país. Assim, a degradação ambiental ocorreu

em grandes proporções, até porque essa questão não interessava a quase ninguém, além de ser

vista como um empecilho para o desenvolvimento econômico da região. Nesse contexto,

importante é citar a tendência que sempre existe da exploração humana seguir e andar lado a lado

com a expansão e o desenvolvimento. Assim, diferentemente da ocupação do faroeste americano,

a ocupação amazônica se deu de forma errada, uma vez que grande quantidade de dinheiro foi

entregue a pessoas inconseqüentes que exploraram toda a região, além das pessoas, sem que fosse

levada em conta a degradação local e humana, tudo isso em prol da corrida pelo maior lucro

atingível. O grande problema que existe, hoje em dia, é o fato de que não se conseguiu, ainda,

encontrar um modo melhor de desenvolvimento da Amazônia, de forma que as explorações

122Ibidem.

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humanas persistem, forçando o Governo a tomar providências mais adequadas com intuito de

achar uma solução e moralizar o interior da Amazônia, uma vez que alguns fazendeiros não

respeitam a Lei, tampouco a dignidade humana, tudo isso num local onde falta infra-estrutura,

escolaridade para os necessitados e que, em contrapartida, predomina a corrupção e o comodismo

de forma que o poder dessas pessoas inescrupulosas implanta o medo em quem realmente se

interessa pela causa e tenta solucionar o problema123.

6.3 A questão da competência para julgar crimes de trabalho escravo:

A escravidão contemporânea caracteriza-se por um “sistema perfeitamente

integrado, onde cada peça tem seu papel definido, tendo por condições básicas de sua

permanência a ganância e o lucro a qualquer custo, as vistas grossas das autoridades, a

impunidade de seus operadores, o silencio constrangido da sociedade”. Por esses motivos nos

últimos oito anos apenas dois fazendeiros foram condenados, de forma que suas penas quando

não suspensas foram substituídas por entrega de mantimentos a pobres da região, apenas por

poucas semanas, o que não tem muita eficiência, haja vista ser a pena de baixo valor pecuniário,

o que não impede a repetição, por parte do empregador, do crime. A situação se agrava ainda

mais a partir do momento em que a Justiça Federal, tomando por base uma antiga jurisprudência

do STF, passou a negar sua competência e, dessa forma, começou a devolver os casos de trabalho

escravo já denunciados para a Justiça Comum. Por isso existe a afirmação de que esses casos

serão esquecidos e deixados para trás, sem ocorrer o julgamento devido. Destarte, a impunidade

123BRETON, Binka Le. Trabalho Escravo a chaga do Brasil aberta para o mundo. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/entrevistabinka.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2003.

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do sistema, em face da questão da competência se agrava, configurando-se como um dos

principais agentes da persistência deste crime124.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 109, inciso VI, determina que a

competência para julgamento de crimes contra a organização do trabalho é da Justiça Federal,

cabendo a apuração à Polícia Federal125. No entanto, existe uma determinada corrente

jurisprudencial que transfere para Justiça Estadual o julgamento desses delitos. O problema é que

no âmbito do Poder Judiciário, a competência de processar e julgar esses crimes é dos juízes

federais, vez que a questão criminal não cabe ao Ministério Público do

Trabalho126. Tal corrente se baseia no fato de que para o STF, o trabalho forçado contemporâneo,

não faz parte dos crimes contra a organização trabalhista, porque não afronta as organizações que

visam preservar os direitos e deveres dos trabalhadores, sob uma visão coletiva dos fatos que as

envolvem. Por essa razão, são várias as manifestações da Justiça Federal afirmando que a Justiça

Comum Estadual deve ser a competente no caso de processo e julgamento dos referidos

crimes127.

Diante do que foi dito, importante é ressaltar que no final dos anos 70, o

Tribunal Federal de Recursos, que, inclusive, já foi extinto, entendeu que práticas que ofendem a

“organização geral do trabalho ou dos direitos dos trabalhadores, considerados coletivamente”

124PLASSAT, Fr. Xavier. Direitos humanos no Brasil 2002. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, em parceria com a Global Exchange, 2002, p. 105 – 110.

125CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

126COSTA, Flávio Dino de Castro e. O combate ao Trabalho Forçado no Brasil: aspectos jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

127SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Aperfeiçoamento Legislativo para o Combate ao Trabalho Escravo: oficina de trabalho. Brasília: OIT, 2002, p. 06. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha. Assessora da SEDH.

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seriam de competência da Justiça Federal, de modo que qualquer ato que atente contra direito

trabalhista individual, sem colocar em risco o conjunto da organização do trabalho, seria de

competência da Justiça Estadual128.

Assim, o TFR, mediante o aceite do STF, no ano de 82, editou a Súmula nº 115,

in verbis:

“Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização geral do trabalho ou direito dos trabalhadores considerados coletivamente”

A respeito desta súmula, importante é falar que nenhum dos julgados que

levaram à sua formulação se referia a casos de trabalho escravo ou forçado. Contudo, tal súmula

acabou se estendendo aos citados casos, sem um estudo específico de suas finalidades. Por isso

estamos, no momento atual, com dúvidas oriundas de uma orientação jurisprudencial antiga, da

qual não foi feita uma análise adequada a respeito de novos fatos e novas leis que surgiram após a

edição da Súmula gerando, assim, a polêmica da competência129.

Entretanto, o legislador de 1988 renovou ao tomar a decisão de incluir os

crimes contra a organização do trabalho, sem exceção, à competência da Justiça Federal. De

acordo com a Constituição vigente, em seu artigo 21, inciso XXIV, cabe à União organizar e

manter a inspeção do trabalho, e isso faz com que a incidência do artigo 190, IV, deste mesmo

diploma legal, seja atraído de forma que, uma interpretação feita de maneira sistemática, pode

128COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

129COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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levar à conclusão de que sejam crimes contra a organização do trabalho, como cita este último

artigo130.

No ano de 1998, novas modalidades de crimes contra a organização do trabalho

surgiram e foram adicionados às tipificações do Código Penal pátrio, como podemos citar os

artigos 203 e 205, especificadamente seus parágrafos 1º e 2º, o que contribuiu para extravasar o

pensamento que vinculava à ofensas apenas individuais. Assim, mesmo que se opte por seguir o

enunciado da Súmula 115, estamos diante de uma variedade de tipos penais novos, que tratam de

crimes relacionados com direitos coletivos, assim como crimes enlaçados com a organização

geral do trabalho131.

Vale ressaltar, ainda, que os crimes contra a organização do trabalho lesam,

também, a previdência social e, por isso, “os trabalhadores submetidos à situação análoga à de

escravo são segurados obrigatórios da previdência social”. Dessa forma, é negado a esses

trabalhadores não só os direitos trabalhistas essenciais, mas também os previdenciários, de tal

forma que isso configura crimes tipificados nos artigos 297 e 337 – A, CP. Sendo assim, fica

evidenciado um laço existente entre crime que atenta contra a organização do trabalho e contra a

liberdade individual, uma vez que em quase todos os relatos se verifica a conexão entre o crime

tipificado no artigo 149 do Código Penal e os citados nos artigos 203 e 207, ambos do referido

Código, lesando, assim, a previdência social, em virtude da prática da redução à condição

análoga à de escravo132.

130Ibidem. 131Ibidem. 132COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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Dessa mesma maneira, ocorre “a conexão dos crimes contra a organização do

trabalho com outros delitos federais”, como o uso do trabalho escravo para desmatamento ilegal

em áreas de preservação ou em terrenos indígenas133. Assim, quem tira proveito da prática de

exploração da mão-de-obra humana pratica, também, uma série de outros crimes e contravenções.

Um exemplo seria a degradação ambiental onde há incidência de trabalho escravo, vez que esse

tipo de exploração, como já foi dito anteriormente, geralmente serve para desmatamento na

Amazônia134.

Tomando por base o fato de que o crime descrito no artigo 149, CP, ora em

exame, afronta a dignidade da pessoa humana, assim como a liberdade de trabalho, não se pode

deixar de falar no evidente desvio da função social da propriedade135. Tal função social é citada

pela Constituição Federal, em seu artigo 186, I, II, III e IV, ao afirmar que a propriedade rural só

é assegurada quando esta não deixa de cumprir os requisitos listados neste artigo e em seus

respectivos incisos136. E nesse sentido, importante é frisar que o que foi citado neste parágrafo,

isto é, os valores abordados são pecúlios que a União se comprometeu a defender, devendo,

assim, ficar sob a responsabilidade da Justiça Federal a competência para julgamento de tais

crimes, sendo que o Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado em 13 de maio de 2002,

veio reforçar a idéia de federalização dos delitos em tela ao estabelecer escopos a fim de

regularizar a questão da competência como, por exemplo, a meta de número 403 que surgiu com

133 Ibidem. 134CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

135SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Aperfeiçoamento Legislativo para o Combate ao Trabalho Escravo: oficina de trabalho. Brasília: OIT, 2002, p. 05 – 07. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

136KAIPPER, Carlos Henrique. Consultor Jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Desapropriação da fazenda e castanhal Cabaceiras; PA: Um marco na luta pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente e pela regulação das relações de trabalho no campo. Texto enviando, via e-mail, por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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o intuito de “sensibilizar juízes Federais para a necessidade de manter no âmbito Federal a

competência para julgar crimes de trabalho forçado” 137.

Trabalho escravo além de ser um problema criminal é também um desrespeito à

dignidade humana e um problema previdenciário, sendo que todos esses problemas devem ser

velados pela Justiça Federal. A questão da competência para julgar o crime, aliada à baixa pena

atribuída a este, tem inibido qualquer ação penal efetiva, pois, se julgado, pode-se abrandar a

punição, transformando-a em alternativa, fazendo com que a questão da competência, juntamente

com a impunidade gerada por essa indecisão, contribua para a permanência da escravidão,

tornando-se um empecilho na tentativa de combate a esse crime138.

6.4 A contribuição das precárias condições sociais:

Como fator que causa a utilização do trabalho escravo no Brasil, pode-se citar,

também, as precárias condições de vida que pairam sobre as vítimas de tal exploração. Assim, há

a possibilidade de afirmar, com veemência, que a pobreza possibilita o trabalho escravo139, de

forma que os escravos contemporâneos não deixam de ser vítimas da fome, pois pertencem a

grupos vulneráveis de pobreza, sendo que o critério utilizado para escravizar um indivíduo deixa

de ser a cor, passando a ser a condição de miséria em que este se encontra140.

“Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, sem distinção de cor ou credo. Porém,

137SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Aperfeiçoamento Legislativo para o Combate ao Trabalho Escravo: oficina de trabalho. Brasília: OIT, 2002, p. 5 – 8. Documento enviado por Rachel Maria Cunha, assessora da SEDH.

138CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

139CAMPOS, Marcelo. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 140DANTAS, Marinalva Cardoso. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 24.

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tanto na escravidão imperial como na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos” 141.

As condições de vida das pessoas que acabam se tornando um escravo são tão

precárias que a necessidade que eles passam faz com que qualquer trabalho seja aceito142. Assim,

existem milhares de brasileiros escravizados pela falta de oportunidade na vida, pois nunca

tiveram direito à saúde, educação, dinheiro e, por serem essas pessoas pobres, ficam sem

alternativas e acabam explorados pela própria pobreza e ignorância, também pela dívida gerada

ao ser iludido pelo “gato”, sendo que grande parte desses trabalhadores vem de locais como

Piauí, norte de Minas Gerais, Pernambuco, Tocantins, Ceará, Alagoas e Bahia, ou seja, de lugares

onde há grande índice de pobreza e miséria. Depois de aliciados nas citadas localidades, são

levados para trabalhar, de forma degradante, na área conhecida por “nova fronteira agrícola” que

fica ao sul do Pará, Maranhão e na parte norte do Mato Grosso. Nessas áreas, a mão-de-obra é

usada de forma superexplorada seja nas derrubadas ilegais, na limpeza dos pastos, nas carvoarias

etc143.

A concentração de renda se traduz numa desigualdade regional no Brasil de

forma que os municípios com piores índices de desenvolvimento humano são os que possuem

maior incidência do trabalho escravo, o que mostra que a concentração de riqueza apenas gera

141CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

142MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P. 34. Op. Cit. 143BRETON, Binka Le. Excertos de seu livro Vidas Roubadas. Brasil 2003: A face Humana da Escravidão. Disponível em: <www.ilo.org/public/region/ampro/brasilia/trabalho_forçado/brasil/documentos/face-humana-escravidao.pdf>. Acessado em 21 nov. 2003.

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61

maior sofrimento humano, além de contribuir para a prática escravagista, uma vez que não

oferece às pessoas carentes condições mínimas de educação, saúde e emprego digno144.

Contudo, não basta que o governo tome medidas de erradicação do crime por

meio de Leis e Emendas Constitucionais, é preciso, também, que se gere a oportunidade de

melhoria de vida para que as pessoas fiquem mais esclarecidas a respeito de seus direitos e

deveres, sem a necessidade de se subordinar a um trabalho degradante145. Além da

implementação das citadas políticas públicas nos estados fornecedores desse tipo de mão-de-

obra, é preciso, também, “atacar a cadeia produtiva do fazendeiro” escravocrata, além de “causar

impacto” na sociedade para que esta passe a dar mais valor a esse problema e, através da força

social, se enraizar na defesa dos direitos humanos, contribuindo, assim, para a tentativa de

erradicação do crime146.

“O trabalhador escravo é o produto da desigualdade, da distribuição de renda, é produto da desigualdade até mesmo na distribuição das terras nesse país. Ele é também o resultado da ineficácia, da ineficiência dos nossos poderes constituídos, do Ministério Público, do Poder Judiciário e do Poder Executivo”147.

144COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 44 – 45.

145PEREIRA, Armand. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 146PEREIRA JUNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P. 26 – 30. Op. Cit. 147PEREIRA JUNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 25.

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62

7 MÉTODOS DE ERRADICAÇÃO DO CRIME:

Por se saber que a dívida que escraviza seres humanos é aquela adquirida

quando da suposta contratação para uma temporada de trabalho, sabemos, também, que existe o

trabalho escravo, no Brasil, em vários setores, isto é, o crime é identificado nas mais simples

áreas de extrativismo, em derrubadas e até nas mais sofisticadas fazendas de gado que, muitas

vezes, pertencem a grupos econômicos de conhecimento no mercado internacional. No caso

desse crime, existe uma relação onde o empregador acha que possui domínio e direito absoluto

sobre a pessoa do empregado e sobre seus serviços, tudo em razão do capitalismo que, segundo

os dizeres de José de Souza Martins, leva à “formas coercitivas extremadas de exploração do

trabalhador, produzidas em momentos e circunstâncias particulares da reprodução do capital” 148.

Tendo em vista que tais relações ilícitas de trabalho se baseiam na vontade de

se obter, de forma rápida, a multiplicação do capital do empregador, importante é dizer que seu

combate e erradicação se tornam, a cada dia que se passa, mais difíceis. Isso porque existe uma

cadeia de produção entre o fazendeiro e o empregado que solidifica a persistência da prática

escravocrata. Tal cadeia, como já foi dito anteriormente, vai da pensionista, passando pelo gato

sustentado pelo pistoleiro e apoiado pela dona do bordel, passando, também, pelos policiais que

se omitem, pelos transportadores de trabalhadores aliciados até se chegar ao proprietário rural.

Assim, sempre que houver, por parte dos fazendeiros, o tratamento de trabalhadores como se

fossem mercadorias, as pessoas que formam essa cadeia lucrarão e, dessa forma, continuarão

existindo barreiras que dificultarão o trabalho realizado em prol da solução deste problema. Por

isso mister é apontar, aqui, que a cadeia somente existe porque não há uma política

148MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 81 – 85.

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governamental de desenvolvimento e melhoria das condições humanas nesses locais e, assim,

pela exploração, pela conveniência, ignorância e comodismo, a cadeia persiste contribuindo para

a prática do crime de trabalho escravo. Entretanto, com a solução desses problemas sociais, as

pessoas que constituem essa cadeia poderiam ter mais autoconfiança e esperança, de forma que

passariam a não aceitar a exploração do próximo, dando um grande passo no empenho que há

contra a exploração do trabalho humano149.

O trabalho Escravo desrespeita os Direitos humanos, vez que existe a prática de

tortura; é, também, uma afronta à Lei criminal, por haver lesão corporal, cerceamento da

liberdade e homicídios, não deixando de ser, destarte, um problema previdenciário150. Para isso,

necessário se torna a criação de meios que busquem a prevenção da prática escravagista no

Brasil, uma vez que “a submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravo afronta todo

um sistema de órgãos e instituições federais que tratam de prevenir e reprimir esta prática”. A

aplicação efetiva e mais severa da pena criminal é necessária, contudo, não se cogita que a

simples existência de normas penais seja capaz de erradicar tal exploração, por isso, é importante

que haja a atuação conjunta dos sistemas, isto é, que haja a responsabilização civil, administrativa

e penal, pois, pela ordem jurídica, seria o combate mais adequado contra o crime ora em

questão151.

149BRETON, Binka Le. Trabalho Escravo a chaga do Brasil aberta para o mundo. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/entrevistabinka.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2004.

150 CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

151COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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Foi em 1995 que o Brasil assumiu de vez a existência do trabalho escravo no

país152, mesmo tendo, desde a década de 70, buscado soluções para os casos de exploração que

eram descobertos153. Foi a partir do momento em que foi assumida a prática escravagista no país

que foi criado o Grupo de Executivo para o Combate ao Trabalho Forçado – GERTRAF – e o

Grupo Especial de Fiscalização Móvel. No atual Governo, foi criado o Plano Nacional para a

Erradicação do Trabalho Escravo, ao passo que também foi criada a CONTRAE – Comissão

Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo – e dessa forma descobriram que os escravagistas

são os grandes latifundiários, que utilizam alta tecnologia em suas fazendas, ou seja, são pessoas

esclarecidas e conscientes, que conhecem a legislação e sabem da existência do crime e que,

mesmo assim, são capazes de tratar melhor seus gados e plantações do que os seres humanos que

trabalham em suas propriedades, realizando o serviço que gerará lucro para seu negócio154.

É notório o fato de que esse não é problema existente somente no Brasil. A

escravidão existe em vários países no mundo inteiro e, nesse contexto, é notável e respeitável o

empenho realizado pela Organização Internacional do Trabalho no combate às práticas

escravocratas do século XXI. No Brasil, o Ministério Público do Trabalho atua conjuntamente

com a OIT, sendo que possui em sua organização o já citado Grupo Especial de Fiscalização

móvel – GEFM – que é ligado à Secretaria de Inspeção do Trabalho, funcionando como grande

aliado do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, pois realiza as operações

152CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

153CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

154CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Op Cit.

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65

designadas por este e que, trabalhando ao lado de ONGs como a CONTAG, Comissão Pastoral

da Terra etc, luta contra a escravidão no país155.

Ao se falar em fiscalizações realizadas em fazendas, com intuito de detectar

trabalho escravo e proporcionar as denúncias contra este crime, importante é a atuação do Grupo

Especial de Fiscalização Móvel que, desde sua criação, vem exercendo um papel essencial na

reprimenda à prática escravocrata contemporânea. Sobre a importância e o papel exercido pelo

GEFM, relatam Ruth Beatriz Vasconcelos Vilela156 e Rachel Maria Andrade Cunha157,

respectivamente, in verbis:

“Visava-se, assim, centralizar o comando para diagnosticar e dimensionar o problema; garantir a padronização dos procedimentos e supervisão direta dos casos fiscalizados; assegurar o sigilo absoluto na apuração das denúncias; deixar a fiscalização local livre de pressões e ameaças [...] Além disso, as ações de Fiscalização Móvel, sendo extra-rotineiras, possibilitam o levantamento preliminar de dados para depurar o conteúdo das denúncias, permitindo um planejamento e uma execução mais cuidadosos, sempre em parceria com a Polícia Federal – parceria que, em alguns casos, inclui os Ministérios Públicos, o IBAMA e Funai.”.

[..]

“A Fiscalização Móvel, constitui a estrutura operacional do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF) no combate ao trabalho escravo. Subordinado à Câmara de Política Social do Conselho de Governo [...]” 158.

Assim fica evidente que a Fiscalização é feita através das operações do GEFM,

de forma que essas operações ocorrem em sigilo e sempre há participação da Polícia Federal, que

atua como polícia Judiciária, e também como protetora dos integrantes do Grupo. Nesse sentido,

155MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (SEDH); MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (SIT). O Combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Brasília DF, Maio de 2002, p. 08 – 09. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

156Secretária de Fiscalização do Ministério de Trabalho e Emprego. 157Assessora da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. 158Apud CAMARGO, Luis. Definição de Trabalho Escravo – Distinção entre Trabalho Escravo, Forçado e Degradante. 2003, p. 23. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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importante é a presença de um procurador nas fazendas e regiões onde são feitas as inspeções do

GEFM159, pois, segundo as palavras de Luis Camargo, do MPT, “além de dar suporte aos

Auditores Fiscais do Trabalho, o procurador do Trabalho poderá promover, in loco, a coleta de

dados indispensáveis à propositura de eventual ação para a tutela dos interesses envolvidos” 160.

As equipes de fiscalização são formadas por Auditores Fiscais do Trabalho,

Delegados e agentes da Polícia Federal, membros do Ministério Público do Trabalho e Ministério

Público Federal, sendo que todos eles agem de acordo com os ditames da Lei. Quanto à atuação

da Polícia Federal, as equipes móveis devem estar prevenidas quando do momento da

fiscalização, uma vez que nessas fazendas, existem seguranças, gatos, capangas, fortemente

armados para intimidar os trabalhadores e, assim, podem atentar contra os integrantes das equipes

fiscalizadoras, uma vez que estes têm suas vidas ameaçadas, devendo, então, estar armada, a

Policia Federal, tão somente para preservar a segurança, a integridade física e moral, além da

dignidade dos seres humanos que se encontram no local161.

Contudo, nas regiões onde há fiscalização do Grupo Móvel, os empregadores

procuram novas formas alternativas do trabalho escravo, onde a privação da liberdade não se faz

mais por meio de armas e agressões físicas ou psicológicas, isso porque é implantado no

pensamento de trabalhador que a dívida impagável o vincula ao patrão, de forma que não pode

abandonar o local onde labora. O isolamento geográfico da fazenda também coopera para a não

159MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho. O Trabalho Escravo e as Políticas Governamentais para sua Erradicação. Brasília, 2003, p. 9 - 10. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

160CAMARGO, Luis. Definição de Trabalho Escravo – Distinção entre Trabalho Escravo, Forçado e Degradante. 2003, p. 23. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

161CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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utilização de armas e a manutenção do peão nas piores condições de trabalho162. Assim, a força

moral dispensa o emprego da violência física, pois o empregado se sente realmente endividado e

culpado por isso, de forma que se nega a sair da fazenda sem antes quitar o débito163.

Infelizmente há pouco incentivo financeiro para as fiscalizações e, visando a

melhoria da atuação do grupo móvel em suas empreitadas contra fazendeiros escravocratas, a

CONATRAE encaminhou ao Presidente da República uma nota pedindo o aumento das diárias

de policiais federais e auditores fiscais do trabalho164, pois a quantia que recebem não é suficiente

para cobrir todos os gastos com hospedagem e alimentação, por isso, os integrantes do grupo se

alojam em locais poucos seguros e que não oferecem boas condições de estadia, porque são,

geralmente, escuros e sujos165, de forma que, por isso, sugerem o aumento financeiro uma vez

que têm suas vidas postas em risco em virtude dos locais perigosos, portanto, mais baratos, em

que eles têm que se hospedar. As diárias oferecidas atualmente são de sessenta reais, o que,

obviamente, é muito pouco. Então, por falta desses recursos, a CONTRAE reivindica um

aumento desse valor para a quantia de 120 reais, o dobro do que eles recebem, para que haja uma

melhoria e uma maior eficiência do Grupo Móvel em suas tentativas de combate ao crime166.

Entretanto, caso não ocorra esse aumento, as ações contra os escravocratas podem ficar

162MORO, Luis Carlos, Relator do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu voto dado em relação ao processo CNDS nº 13/2001.

163ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

164ÉBOLI, Evandro. Ações contra trabalho escravo podem ser paralisadas em abril se a diária de servidores não for aumentada. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/imprensa/index.htm>. Acesso em: 08 abr. 2005.

165GAZETA ON LINE. Associação de procuradores pede aumento na diária dos fiscais. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/imprensa/index.htm>. Acesso em: 08 abr. 2005.

166 Segundo Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH, houve um aumento, em 2006, nas diárias dos auditores fiscais. Entretanto, tais diárias ainda são insuficientes, ainda mais se comparadas às diárias percebidas pelos membros do Ministério Público.

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comprometidas, por exemplo, somente neste ano, cinco operações de fiscalização foram

interrompidas sendo que, se o aumento não for dado, as ações futuras correm, também, o risco de

serem canceladas167. Essas reivindicações não são novas, os Auditores Fiscais do Trabalho há

anos pedem melhorias das condições de trabalho, mas até o presente momento não conseguiram

nada168.

Diante da falta do que foi dito a respeito das dificuldades passadas pelo Grupo

Móvel e visando, ainda, uma melhoria na luta contra o trabalho escravo, o Ministério do

Desenvolvimento Agrário, juntamente com o INCRA, estão elaborando um plano para

erradicação da exploração de mão-de-obra escrava, que fala na necessidade de integração do

Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo com o Ministério do Trabalho e

Emprego e, também, com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, buscando, ainda, apoio

parlamentar na Câmara dos Deputados169.

O trabalho escravo no país dos agronegócios é lucrativo para os fazendeiros,

como nos dizeres de Jorge Antonio Vieira, essa prática é “um business próspero alimentado por

miséria, ganância e impunidade” 170. Assim, o trabalho rural, até 1943 era excluído da CLT,

sendo que o Estatuto do Trabalhador Rural e o Estatuto da Terra, surgiram anos mais tarde, em

1964. O trabalho rural ficou tanto tempo excluído da Legislação trabalhista porque não

interessava ao Estado, naquela época, legislar contra o grupo que o sustentava, que era formado 167ÉBOLI, Evandro. Ações contra trabalho escravo podem ser paralisadas em abril se a diária de servidores não for aumentada. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/imprensa/index.htm>. Acesso em: 08 abr. 2005.

168VILELA, Ruth. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 169MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. MDA terá plano contra Trabalho Escravo. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/imprensa/index.htm> Acesso em: 08 abr. 2005.

170VIEIRA, Jorge Antonio. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

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por ricos proprietários de terras que tinham o poder de determinar, por meio de apoio e

financiamento, quem estava ou não no governo. Contudo, essa realidade mudou de tal forma que,

hoje, o Estado empenha uma luta contra a escravidão em nosso meio rural, não importando quem

pratique o crime. Mas para isso, fica evidente a necessidade de saber e compreender o cotidiano,

os costumes e os problemas das regiões onde incide o trabalho escravo para que, a partir da ação

conjunta do Ministério do Trabalho, Ministério Público, Polícia Federal, fiscais do trabalho,

dentre outros, se abra uma exceção ao princípio da inércia do poder judiciário para que este possa

atuar, nesse caso específico, ex officio, pois diante de tanta dificuldade, tal inovação viria

somente beneficiar a campanha contra a escravidão171.

Ainda no combate ao trabalho escravo, no dia 13 de maio de 1996, foi criado o

Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH – lançado pelo ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso. Nesse programa buscava-se prevenir e reprimir o trabalho escravo, mas, em

13 de maio de 2002, o PNDH foi ampliado, passando a se chamar PNDH II. Agora, ao invés de

possuir cinco metas como o primeiro programa, este contém dez172, in verbis:

“1) Dar continuidade à implantação das Convenções nº 29 e 105 da OIT, que tratam

do trabalho forçado;

2) Apoiar a aprovação da proposta de emenda constitucional que altera o artigo nº 243

da Constituição Federal, incluindo entre as hipóteses de expropriação de terras,

além co cultivo de plantas psicotrópicas, a ocorrência de trabalho forçado;

171FONSECA, Vicente José Malheiros. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

172CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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3) Apoiar a reestruturação do Grupo Executivo de Repressão ao trabalho forçado –

GERTRAF, vinculado ao Ministério do Trabalho;

4) Fortalecer a atuação do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e

emprego com vistas à erradicação do trabalho forçado;

5) Criar, nas organizações policiais, divisões especializadas na repressão ao trabalho

forçado, com atenção especial para as crianças, adolescentes, estrangeiros e

migrantes brasileiros;

6) Criar e capacitar, no âmbito do Departamento da Polícia Federal, grupo

especializado na repressão do trabalho forçado para apoio consistente às ações de

Fiscalização Móvel do MTE;

7) Promover campanhas de sensibilização sobre o trabalho forçado e degradante e as

formas contemporâneas de escravidão nos estados onde ocorre trabalho forçado e

nos pólos de aliciamento de trabalhadores;

8) Sensibilizar juízes federais para a necessidade de manter, no âmbito Federal, a

competência para julgar crimes de trabalho forçado;

9) Estudar a possibilidade de aumentar os valores das multas impostas aos

responsáveis pela exploração de trabalho forçado;

10) Propor nova redação para o artigo 149 do Código Penal, de modo a tipificar de

forma mais precisa o crime de submeter alguém à condição análoga à de escravo.”

O Presidente Luis Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional para a

Erradicação do Trabalho Escravo e, no tocante ao artigo 149 do Código Penal, pode-se dizer que

tal Plano visa a mudança da classificação atual do tipo penal discutido, transformando-o em

crime hediondo, com pena fixada de 4 a 8 anos de reclusão para quem infringir a Lei. Claro que

reações vindas de quem defende o Direito Penal Mínimo surgirão com relação ao aumento da

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punição e, também, contra a existência do crime considerado como hediondo, contudo, vê-se que

a proposta não é tão absurda e sim razoável, pois estamos diante de crimes graves, uma vez que a

escravidão está longe de ser um crime de menor potencial ofensivo. Por isso, a pena, nesse caso,

deve ser mais severa e o tipo penal tido como hediondo173.

Quanto ao artigo 203 do Código Penal, este é considerado um crime de menor

potencial ofensivo, pois a pena máxima a ele atribuída não ultrapassa dois anos. Contudo, essas

infrações não são leves, pois atacam e agridem o “núcleo fundamental do princípio da dignidade

da pessoa humana”. Por isso, torna-se importante, no combate ao trabalho escravo, um aumento

nas penas previstas para estes delitos, no entanto, a política criminal não pode se tornar

“encarceradora” e rígida ao extremo de forma que, se assim for, pode se tornar injusta e errônea,

pois deve ser permitida a aplicação de penas alternativas, caso sejam detectadas pequenas

irregularidades, contudo mais brandas que a escravidão em sua pior forma, de acordo com o que

dita o artigo do Código Penal174.

São vários os métodos utilizados em prol da erradicação do trabalho escravo, e

notável é a necessidade de punir os criminosos para que se tenha algum tipo de prevenção. Como

é sabido, “o empresário é o responsável legal por todas as relações trabalhistas em seu negócio”,

além disso, a Constituição Federal só permite a posse da propriedade rural quando seu dono faz

com que se cumpra corretamente a função social desta. Dessa forma, para assegurar a

propriedade de suas terras e para não ser acusado de práticas ilegais de escravidão, o fazendeiro

deve observar e seguir adequadamente a legislação trabalhista, e ficar atento a tudo o que ocorre

173COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

174Ibidem.

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dentro de sua propriedade. Por isso, o empregador deve acompanhar o serviço e as ações de seus

empregados, além de fazer o contrato de trabalho dentro dos ditames estabelecidos pela CLT175.

Ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho e Ministério Público

Federal, assim como as publicações das Listas Sujas, chamadas, hoje em dia, de Cadastros de

Empregadores, são medidas que vêm sendo tomadas no combate ao trabalho escravo

contemporâneo. Quanto ao Cadastro de Empregadores, este se resume a uma lista onde estão

relacionadas empresas e pessoas que praticaram o crime, de forma que os nomes arrolados têm

suas linhas de crédito encerradas em agências públicas. No entanto, o que se percebe é que

somente a suspensão dos créditos não surte efeitos e, assim, é necessária a implantação de

medidas mais drásticas, colocando em risco a perda da fazenda onde foi detectado o trabalho

escravo. Por isso é almejada a aprovação de um dispositivo constitucional que permita a

expropriação da terra onde for localizada a prática de exploração de mão-de-obra176.

Entretanto, são vários os fazendeiros e empresas que estão, atualmente, pedindo

em sede de liminar, para que tenham seus nomes excluídos da Lista Suja. Como estas liminares

têm sido concedidas, as pessoas que lutam contra o trabalho escravo ficam descontentes e, assim,

acabam perdendo o ânimo, uma vez que todo o empenho contra o crime e a impunidade está

sendo em vão, deixando que se conclua que todo o esforço de nada adiantou, pois se vê que a

mobilização contra a escravidão é pequena. A Associação Nacional dos Procuradores do

Trabalho – ANPT – está pedindo aos Tribunais Superiores para que sejam revertidas essas

decisões, uma vez que esse cadastro de empregadores que utilizam a exploração do trabalho é

175CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

176Ibidem.

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muito importante no combate a esse delito, de forma que as liminares acabam por enfraquecer

essa luta177. Já são nove as fazendas que, por ordem judicial, tiveram seus nomes retirados da

relação, sendo que, em virtude das liminares, seus donos voltam a ter acesso ao crédito

público178. De acordo com Sebastião Caixeta, “seria um imenso contrasenso se a Administração

Pública concedesse incentivos à empregadores que desrespeitam a lei, mantém trabalhadores em

situações degradantes e exploram o trabalho escravo”, por isso, os juízes devem analisar com

mais cautela os pedidos de retirada de nomes da Lista Suja, dando maior apoio ao combate à

escravidão179.

Não só a Justiça Federal como também a Justiça Estadual estão beneficiando

fazendeiros ao retirarem seus nomes da Lista Suja. Exemplos de empresas que já foram

beneficiadas serão arroladas a seguir180:

“-Fazenda Cabaceiras, da Empresa Jorge Mutran, no Pará. Principal atividade: gado;

- Fazenda Peruano, de Evandro Mutran, no Pará. Principal atividade: gado e inseminação;

- Fazenda Mutun, da Pinesso Agropastoril, em Mato Grosso. Principal atividade: algodão;

- Fazenda Pantera, de Nivaldo Barbosa. Principal atividade: gado;

- Fazenda São José, de João José de Oliveira. Principal atividade: gado;

- Fazenda Malu, da Agromon S/A, no Mato Grosso;

177INFOJUR. Procuradores do Trabalho criticam liminares contra Lista Suja. Disponível em: <www.infojur.com.br/noticia.php?codnoticia=2072>. Acesso em: 08 abr. 2005.

178DECISÕES da Justiça beneficiam escravocratas – Agencia Carta Maior. Documento enviado via E-mail pela Assessoria da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.

179INFOJUR. Procuradores do Trabalho criticam liminares contra Lista Suja. Op.Cit. 180DECISÕES da Justiça beneficiam escravocratas – Agencia Carta Maior. Op. Cit.

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- Fazenda Marabá, de José Pupin, no Mato Grosso. Principal atividade: algodão;

- Fazenda Sol Nascente, de Reinaldo Zucatelli, no Pará. Principal atividade: gado;

- Maeda S/A Agroindustrial, Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Mato Grosso. Principal atividade: algodão e soja”181.

Ainda nesse sentido, existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN

– no Supremo Tribunal Federal, contra a inclusão de nomes e a própria existência da Lista Suja.

De acordo, novamente, com Sebastião Caixeta, vale relatar o que por ele foi dito na tentativa de

fazer valer o Cadastro de Empregadores182:

“Todos os argumentos contrários à manutenção dessa lista são improcedentes, uma vez que este [SIC] somente retrata situações que já foram decididas definitivamente no âmbito Administrativo, respeitando o princípio da publicidade desses atos e servindo como instrumento de comunicação entre os órgãos da Administração e o Ministério Público”.

Conforme dita Flávio Dino de Castro e Costa183, verbis:

“O artigo 173, parágrafo 5º, da Constituição Federal estabelece que: “A Lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza , nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. Ora, a utilização de mão-de-obra escrava é contrária à ordem econômica, conforme o artigo 170 da Constituição, que estabelece que aquela “tem por fim assegurar a todos existência digna”, incluindo-se entre os seus princípios a “função social da propriedade”e a “livre concorrência”. O trabalho escravo privilegia injustamente os empresários que dele se utilizam, distorcendo a livre concorrência. Demais disso, para que uma propriedade rural cumpra sua função social é imprescindível que observe as “disposições que regulam as relações de trabalho”, de acordo com o art. 186 da

181DECISÕES da Justiça beneficiam escravocratas – Agencia Carta Maior. Documento enviado via E-mail pela Assessoria da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.

182INFOJUR. Procuradores do Trabalho criticam liminares contra Lista Suja. Disponível em: <www.infojur.com.br/noticia.php?codnoticia=2072>. Acesso em: 08 abr. 2005.

183COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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Carta Magna. Logo, a interpretação sistemática da Constituição abre a possibilidade de que uma Lei institua a responsabilidade penal da pessoa jurídica em casos de trabalho forçado, podendo-se ainda cogitar de uma eventual proposta de emenda Constitucional[...]”

Dentro deste contexto, no dia 12/05/2004, a Comissão da Câmara dos

Deputados, mesmo com as restrições investidas por parte da bancada ruralista, aprovou a

Proposta de Emenda Constitucional, que visa o confisco de imóveis rurais onde forem detectados

crimes de trabalho escravo184. Entretanto, hoje em dia, a PEC está na Câmara dos Deputados para

ser aprovada em segundo turno e será remetida, novamente, ao Senado Federal para nova

apreciação. Na verdade faltou uma intervenção mais objetiva para a aprovação da Proposta de

uma vez185.

Existe um dispositivo na Carta Magna que prevê o confisco de glebas de

qualquer região do país onde forem encontradas plantações de psicotrópicos que, após a

expropriação, são destinadas ao assentamento de colonos, para que estes produzam alimentos e

produtos medicamentosos, sem que seja dado direito algum de indenização ao proprietário do

imóvel rural. Trata-se do artigo 243 da Constituição Federal186. Logo, a aprovação da PEC para a

expropriação de terras onde há prática de trabalho escravo não seria uma novidade em nosso

ordenamento jurídico, e alem disso, seria de suma importância para a prevenção do crime

abordado187. Contudo, o que é permitido, hoje em dia, é a desapropriação de terras onde se

encontram trabalhadores escravizados, mediante indenização, o que não surte efeito uma vez que,

184GOES, Severino, Assessor de Imprensa: Projeto Combate ao Trabalho Escravo, escritório da OIT Brasil. Documento enviado, via e-mail, por Rachel Maria Andrade Cunha. Assessora da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.

185MELO, Luis Antonio Camargo de. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

186COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

187CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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mesmo violando as disposições das leis trabalhistas e a função social da propriedade rural, tais

indenizações podem chegar a custos altíssimos que acabam sendo vistas como “um prêmio aos

proprietários”. Mas essa alternativa, que antes era muito usada, hoje me dia não ocorre com

grande freqüência sendo aplicada, para fins de reforma agrária, enquanto não é aprovada a PEC

de expropriação de terras188.

O artigo 186 da Constituição Federal estabelece os requisitos que devem ser

cumpridos para que a função social da propriedade rural seja cumprida, são eles189:

“I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio

ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

Com efeito, um marco histórico pela luta contra o trabalho escravo se deu com

a desapropriação da Fazenda e Castanhal Cabaceiras, localizada em Marabá, PA, que ocorreu no

ano de 2004. A desapropriação se deu com fulcro no interesse social, visando a reforma agrária,

por ter a fazenda descumprido, além da função social ambiental, a função social trabalhista da

188COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

189In Constituição Federal.

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propriedade rural e, dessa forma, a sanção beneficiará cerca de 340 famílias no sul do Pará, sendo

que o imóvel possui 9.774 hectares190.

Obviamente somente a aprovação da PEC não resolverá o problema do trabalho

escravo em nosso país. É preciso que se tomem medidas mais eficazes em se tratando de

prevenção nos locais de aliciamento, por exemplo, geração de emprego, educação e

melhoramento das condições de vida do trabalhador, fazendo com que este não tenha necessidade

de sair de sua região a procura de emprego e acabar sendo iludido por um “gato”. Contudo, essa

Lei, se aprovada, será somada às outras medidas de combate ao crime, tornando-se uma

ferramenta de suma importância191.

Com o intuito de se evitar que fazendeiros explorem a mão-de-obra humana, a

Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil, recomenda que seja observada a

legislação trabalhista em sua publicação “Alerta aos produtores rurais”. Há também o esforço por

parte da Federação da Agricultura do Pará que distribui aos sindicatos rurais de sua região, o

manual “Fazenda Legal é Produtor Tranqüilo – roteiro para o cumprimento da legislação

trabalhista da propriedade rural”.192 Em 1997, foi realizada, na região Norte, uma campanha

preventiva voltada não para o empregador, mas sim para o empregado, alertando-o para que não

seja escravizado. Essa campanha se chamava “De Olho Aberto Para Não Virar Escravo!”, sendo

que materiais didáticos foram utilizados para um maior e melhor esclarecimento. A campanha

190KAIPPER, Carlos Henrique, consultor jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Desapropriação da fazenda e castanhal cabaceiras / PA: um marco histórico na luta pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente e pela regulação das relações de trabalho no campo. Texto enviando, via e-mail, por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

191CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

192Ibidem.

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sensibilizou e orientou pessoas, realizou encontros e promoveu a capacitação nas regiões

consideradas focos de trabalho escravo, e, além disso, acompanhou algumas operações de resgate

de trabalhadores explorados193.

A imprensa também se torna uma aliada no combate à escravidão no século

XXI, e foi graças às divulgações feitas por esta que o problema passou a ser debatido e fazer

parte da opinião pública, fazendo o assunto alcançar proporções nacionais. O grande problema é

que não há denúncia em número suficiente da prática delituosa, mesmo com todo o país sabendo

de sua existência. A OIT é uma organização de grande importância em se tratando de erradicação

do trabalho escravo, uma vez que esta, além de tocar campanhas contra tal prática, fez com que

houvesse um processo contra o Brasil, na Organização dos Estados Americanos, em virtude da

tentativa de homicídio que se deu contra José Pereira quando tentou fugir de uma fazenda onde

era mantido como escravo. A solução encontrada foi o pagamento de uma indenização de 52 mil

reais a José Pereira, por parte do Brasil. Assim, a prática criminosa de exploração humana,

utilizada por alguns fazendeiros, acaba por causar prejuízo à Nação que tem que pagar pela

ganância destes produtores194.

Sendo o agronegócio fundamental para o desenvolvimento econômico do país,

não é necessário que haja exploração para que este se dê de forma lucrativa, tanto que o MTE, em

suas fiscalizações, encontrou produtores rurais que não utilizam mão-de-obra escrava, agindo

conforme cita a Lei. Por isso, nada obsta para que os fazendeiros criminosos deixem a exploração

e passem a produzir sem a margem de lucro que percebem com esta, competindo, dessa maneira,

193MORO, Luis Carlos, Relator do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu voto dado em relação ao processo CNDS nº 13/2001.

194CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

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igualmente no mercado, com aqueles que agem em conformidade com a legislação. Por isso, o

país deve operar contra o trabalho escravo, isolando os empresários escravocratas, impedindo,

assim, que toda a atividade econômica fique prejudicada pela prática delituosa de poucos

fazendeiros195.

No combate ao crime, vale ressaltar também, uma estratégia de trabalho

adotada pelo Ministério Público Federal, de trabalhar com uma “cesta de crimes”, para que,

assim, não haja prescrição e conversão da pena mínima em pena alternativa, de tal sorte que,

somente ajuízam as devidas ações penais quando há indícios de cerceamento da liberdade e

afronta à dignidade da humana. Dessa forma, busca mostrar que o crime é praticado juntamente

com outros ilícitos, o que já foi citado ao se frisar a conexão existente entre a prática escravocrata

e outros delitos como, por exemplo, a degradação ambiental196.

A ofensiva contra a escravidão no campo já rendeu resultados, sendo que do

período que vai de 2001 a 2003, 184.000 trabalhadores foram encontrados em regime de

escravidão, sendo que entre 2003 e fevereiro de 2004, 264.000 trabalhadores foram localizados e

libertos. Em janeiro de 2003, houve o assassinato dos Auditores Fiscais em Unaí, MG, o que

prova, mais uma vez, o risco que correm as pessoas que se empenham na luta pela extinção da

escravidão, ressaltando a necessidade de maior apoio por parte do Governo para que se obtenha

resultados mais favoráveis do que os já atingidos. Contudo, até outubro de 2004, 7.014

trabalhadores foram libertados197 e, em outubro de 2005, 65 pessoas foram resgatadas pelo grupo

195CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

196OBSERVATÓRIO SOCIAL EM REVISTA. Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Santa Catarina: Junho, nº 6, 2004. p. 07.

197BERZOINI. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

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de fiscalização no sudeste do Pará, sendo que cinco mulheres estavam presentes entre os libertos.

Dados revelam que somente neste ano, 179 pessoas foram libertadas no Pará198, de forma que a

meta de libertação desejada ainda está longe de ser alcançada199.

Quanto às estatísticas de datas anteriores, pode-se dizer que de 1995 até 2001,

as operações de fiscalização libertaram mais de 3.400 trabalhadores escravizados, sendo que

desde 1995 a Comissão Pastoral da Terra mencionava que 26047 pessoas foram encontradas em

cativeiro. No que diz respeito à Polícia Federal, esta em pareceria com o Ministério Público do

Trabalho, até 2002 “prendeu em flagrante delito 26 pessoas e instaurou 18 inquéritos

policiais”200. Dados referentes ao mês de dezembro de 2004 relatavam a existência de “348

Procedimentos Administrativos em andamento e outros 374 foram arquivados”. Afirma, também,

que foi firmado “167 Termos de Compromissos de Ajustamento de Condutas e impetrou 22

Ações de Execução de título extra judicial”. Além disso, diz ter ingressado com “111 Ações Civis

Públicas, 24 Ações Civis Coletivas, quatro Ações Cautelares, quatro Reclamações Trabalhistas”.

Não bastando, o MTE participou de 71 operações de fiscalização do grupo móvel201.

Entretanto, tais estatísticas não podem ser encaradas como exatas, uma vez que

os números apresentados não são tão precisos, pois as estatísticas, por serem oficiais, referem-se

apenas à quantidade de trabalhadores rurais libertados durante as operações de fiscalização

realizadas nas fazendas, de tal forma que estas informações não retratam de forma real a

198JORNAL HOJE, Rede Globo, 05 out. 2005. 199 DADOS DE 2006 DO QUADRO DAS OPERAÇÕES DO GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL, enviado pela SEDH: Até o mês de abril, 112 trabalhadores foram libertados.

200SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Aperfeiçoamento Legislativo para o Combate ao Trabalho Escravo: oficina de trabalho. Brasília: OIT, 2002, p. 05. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

201MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Disponível em: <www.pgt.mpt.gov.br/escravo/geral/estatisticas.htm>. Acesso em: 13 set. 2005.

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quantidade de pessoas que foram ou que ainda são submetidas à prática degradante de trabalho,

pois grande número de escravizados não chega nem ao conhecimento do grupo de fiscalização

móvel, devido ao difícil acesso e localização das propriedades rurais 202.

O Brasil é considerado, pela OIT, como um exemplo para todo o mundo, isso

porque assume o problema do trabalho escravo na região e tenta combatê-lo, contudo, o Governo

precisa do apoio da sociedade203, havendo a necessidade de atacar o problema em sua origem, ou

seja, nos estados fornecedores de mão-de-obra para os escravagistas e, também, nas cadeias que

levam a essa prática. Para isso seria necessária a implantação de uma política pública social

efetiva que proporcionasse melhores condições de vida, educação e saúde aos necessitados. Mas

para isso, imprescindível se torna a participação conjunta das instituições do Governo, fazendo

com que a fiscalização se torne mais célere e eficaz, ocorrendo, assim, apuração do crime e a

punição dos infratores, assim como o ressarcimento dos trabalhadores de forma mais rápida e

justa. Um exemplo de atuação integrada foi a participação agregada do Ministério do Trabalho

(através do Grupo Móvel), Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho que, juntos,

realizaram o pagamento de mais de 90 trabalhadores204. Vale ressaltar aqui uma importante

atuação do Ministério Público, que “consiste na articulação com órgãos e agentes sociais visando

202CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

203OBSERVATÓRIO SOCIAL EM REVISTA.Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Santa Catarina: Junho, nº 6, p. 05.

204PEREIRA JÚNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 25 – 31.

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à alteração da Constituição Federal, da legislação penal e trabalhista, de modo a imprimir maior

efetividade ao combate ao trabalho forçado” 205.

Outra iniciativa de grande importância que merece ser mencionada é a Vara

Itinerante que vai até a fazenda, nas operações de fiscalização, e lá faz o pagamento dos direitos

trabalhistas dos empregados que estavam sendo explorados, sem que estes precisem ir até uma

Vara Trabalhista. Na própria fazenda é recebida a petição do Ministério Público e, logo em

seguida, a causa é decidida por juizes do trabalho que atuam in loco, o que dá maior celeridade ao

combate em questão206.

Além disso, é preciso causar impacto na sociedade através da divulgação de

fotos, filmes, para que a população passe a enxergar o problema e, assim, por meio da força

social, dar-se mais valor aos Direitos Humanos – que não recebe dos brasileiros a atenção dada

pelos estrangeiros – e mais um passo no processo de afronta ao trabalho degradante no Brasil207.

Finalizando este tópico, importantes são as palavras de Frei Xavier Plassat ao

afirmar que, verbis:

“Erradicar o trabalho escravo é muito mais complicado que tirar simplesmente um trabalhador da escravidão e punir o infrator. É importante mudar o rumo desse modelo de desenvolvimento que vem consumindo, sem nunca se saciar, florestas e vidas humanas” 208.

205MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (SEDH); MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (SIT). O Combate ao Trabalho Forçado no Brasil. Brasília DF, Maio de 2002, p. 10. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

206PEREIRA JÚNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 28.

207Ibidem, p. 30. 208OBSERVATÓRIO SOCIAL EM REVISTA. Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Santa Catarina: Junho, nº 6, 2004. p 09.

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8 O PROBLEMA DA REINCIDÊNCIA:

8.1 Reincidência dos fazendeiros infratores:

Evidente é que as Leis existentes em nosso país são insuficientes, tanto que a

reincidência de fazendeiros em práticas escravocratas nas propriedades rurais é grande. Decerto,

existe a incidência da multa e do corte do crédito do infrator, no entanto, o uso de trabalho

escravo ainda é lucrativo para o fazendeiro, uma vez que agindo dessa forma, eles conseguem

baratear a mão-de-obra e, além disso, para eles vale a pena delinqüir porque somente uma

pequena parcela desses infratores é denunciada por este crime. Na realidade, menos de 10% dos

envolvidos nessa situação ilícita, entre os anos de 1996 e 2003, foram denunciados, sendo que a

realidade não muda muito em 2004 e 2005, de forma que os poucos que assim o são, pagam

apenas os direitos trabalhistas devidos a seus empregados209.

A idéia arrogante e prepotente que têm os empregadores de que estão acima da

lei por possuírem poder político e econômico na região210, contribui para a impunidade destes,

fazendo com que haja realmente a reincidência no crime, uma vez que, com suas ameaças e

chantagens, as autoridades locais se intimidam em puni-los, fazendo com que o uso da

exploração do trabalho humano seja um risco a ser assumido, pois, se não for detectado o

trabalho escravo pela fiscalização do governo, sairão lucrando. Contudo, se for detectada a

escravidão, apenas pagarão os direitos trabalhistas dos peões211.

209CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Disponível em:<http://www.ilo.org/public/portugue//region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mentiras_final.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2004.

210MELO, Luis Antonio Camargo de. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004.

211CONATRAE. Desmascarando as mentiras mais contadas sobre o trabalho escravo no Brasil. Op Cit.

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O problema reside no fato de que o Direito Penal alcança em um todo as

camadas sociais inferiores e, por isso, é tido como “lato” por essas pessoas. Já a elite, acha que o

Direito Penal é “estrito”, ou seja, voltado somente para os delinqüentes de classes sociais

subalternas, por isso, os fazendeiros vêem a tipificação do crime como um meio indesejado, pois

preferem a pena pecuniária, por serem consideradas “riscos a serem corridos”, como já foi dito

anteriormente 212.

Nesse contexto, vale esclarecer que um fazendeiro nunca é visto como um

criminoso pela população, pois todos acham mais efetiva a atuação da política criminal quando

esta se aplica às condutas tidas como mais perigosas e nocivas à sociedade como um todo e,

assim, os delitos que ocorrem sem uma repercussão social grande, deixam de ser observadas pela

coletividade. No caso de trabalho escravo, o crime ocorre em fazendas distantes, de forma oculta,

dificultando o seu conhecimento por parte da sociedade, que não sabe das barbáries cometidas

nos campos brasileiros213. Assim, o senso comum social tem uma visão maniqueísta de mundo,

pois divide o ser humano e as relações entre estes em bem e mal. Por isso, o senso comum

considera os homens de bem como aqueles que possuem valores e uma vida boa e regrada, sem

vícios e com tranqüilidade, ao passo que os homens maus seriam aqueles que colocam em risco a

tranqüilidade dos cidadãos bons. Dessa forma, o criminoso é visto pela sociedade de uma forma

estereotipada pelo citado senso comum, como uma pessoa violenta, má, pobre, excluída, negra

etc, de tal sorte que o fazendeiro, por não se enquadrar nesse estereótipo, não é visto, perante os

cidadãos como um delinqüente, o que contribui para sua impunidade, conseqüentemente, para a

212COSTA, Flávio Dino. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 213BARATTA, Alessandro apud CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Em busca de uma definição jurídico-penal de trabalho. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/wiecko.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2004.

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reincidência no crime de trabalho escravo e impedindo a extensão da cidadania aos que dela

necessitam na região214.

Citando como exemplo de reincidência, dentre os vários existentes, podemos

frisar o caso da Siderúrgica Pindaré, da Queiroz Galvão, que aparece na lista do Grupo Móvel em

1996, 1997, 1998, 2002 e 2003, por manter trabalhadores em situações de trabalho

degradantes215. Há também o caso da Fazenda e Castanhal Cabaceiras, que foi inclusa na lista

suja e posteriormente desapropriada, em virtude de ter sido constatado trabalho escravo por

quatro vezes, em fiscalizações feitas pelo Grupo Móvel, mostrando, destarte, que o problema da

reincidência existe, além de ser grave216.

8.2 Reincidência do trabalhador nas formas de aliciamento e escravidão:

Hoje, os trabalhadores considerados como escravos são aqueles brasileiros

pertencentes a um grupo social específico e que praticam atividades rurais, mas que, mesmo

trabalhando nesse meio, não possuem terra ou qualquer outro tipo de propriedade. Além disso,

esse grupo de pessoas não tem boas condições financeiras para sustentar suas famílias e, por isso,

esses indivíduos acabam vendendo seus serviços a preços insignificantes, cabendo ressaltar que

214ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.20.

215OBSERVATÓRIO SOCIAL EM REVISTA. Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Santa Catarina: Junho, nº 6, 2004. p 14 – 15.

216KAIPPER, Carlos Henrique, consultor jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Desapropriação da fazenda e castanhal cabaceiras / PA: um marco histórico na luta pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente e pela regulação das relações de trabalho no campo. Texto enviando, via e-mail, por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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são também submetidos a condições degradantes de trabalho, de forma que não têm resguardado

seus direitos trabalhistas217.

O que faz o trabalhador aceitar e se submeter ao trabalho escravo é a noção de

dívida que ele tem para com o patrão e a falta de opção que sua situação impõe. Assim, fica

trabalhando nessas condições, mesmo que por muito tempo, para pagar o que acha que deve. Por

isso, pode-se dizer que a relação entre o fazendeiro e o empregado é quase nula, pois, na maioria

das vezes, o fato de o trabalhador aceitar o trabalho degradante para pagamento da dívida, não é

nem percebido pelo patrão, que só está interessado na exploração da mão-de-obra humana, sem

ter qualquer contato com o explorado. Essa situação é negativa, uma vez que acaba se

incorporando na cultura regional e, assim, passa a influenciar, de certa forma, a maneira que os

explorados vêem suas relações com seus empregadores218.

Normalmente os escravizados são nordestinos, sem condições de vida, mas

também existem os escravos de outras etnias: pobres que, em geral, não possuem nem registro

civil, ou seja, a maioria deles é miserável, ingênua e ignorante219. Contudo, não é somente no

Norte do país onde ocorre trabalho escravo, pois mesmo sendo o local de maior foco deste, tal

prática de aliciamento e escravidão se dá nos demais estados brasileiros, como no Rio de Janeiro,

onde utilizam a escravidão em usinas, granjas e olarias, sendo que o aliciamento ocorre no Rio

Grande do Norte e na Paraíba. Em São Paulo, dá-se o fenômeno na indústria do vestuário, e o

aliciamento geralmente se dá no Norte de Minas e no Sul do Pará. O Rio Grande do Sul alicia

217MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho. O Trabalho Escravo e as Políticas Governamentais para sua Erradicação. Brasília, 2003, p. 03. Documento enviado pela SEDH.

218ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

219FARIAS, Maria Eliane Menezes de FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 25.

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trabalhadores brasileiros para a Venezuela, sendo que foi constatado também o aliciamento para

exploração na colheita da maçã. Na Bahia, ocorre o recrutamento de mão-de-obra por intermédio

de um “gato”, para o plantio e preparação do sisal e na extração de britas. Em Pernambuco,

ocorre tal crime no meio urbano, em empresas fornecedoras de serviços para empresa do ramo de

telefonia. No Ceará, aliciam-se pessoas para trabalhar no Mato Grosso ou em São Paulo. No Pará,

há o aliciamento de pessoas do norte e nordeste do Brasil para trabalhar nas fazendas, em

desmatamentos etc. No Paraná, verifica-se o trabalho forçado em pedreiras e no meio rural.

Tocantins alicia pessoas de Minas Gerais, Maranhão e do próprio estado para o trabalho na

exploração do carvão vegetal. Santa Catarina utiliza-se do fenômeno na colheita de maçã, na

industria de móveis e esquadrias e em distribuidora de papéis. Rondônia e Acre exploram índios

e crianças nas queimadas, desmatamentos, plantio e colheitas. No Maranhão, usam o trabalho

forçado em reflorestamento, fazendas e carvoarias.No Espírito Santo, escravizam bóias-frias na

colheita de café e nas carvoarias, com aliciamento de pessoas em Minas e no próprio estado, para

exploração na Bahia. Em Goiás, se encontram trabalhadores que foram aliciados na Bahia e

levados para trabalhar na capina e colheita das sementes de braquiária. Em Sergipe são aliciados

trabalhadores para serem explorados na Bahia na colheita de laranja. No Piauí há trabalho

escravo na industria de açúcar e álcool, em carvoarias e, também, na extração da cal, o que

destrói, inclusive, sítios arqueológicos. Em Mato Grosso o aliciamento se dá para a exploração da

mão-de-obra em fazendas e madeireiras, sendo que em Mato Grosso do Sul há exploração

indígena na destilaria de cana de açúcar, de forma que o trabalho escravo também é praticado

com mão-de-obra nordestina. Assim, vê-se que o aliciamento, juntamente com a exploração de

pessoas, não é um problema que ocorre em poucos estados brasileiros, e sim uma situação

degradante que se dá em todo o território nacional, não importando se este local é ou não

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urbanizado, tampouco se tem um bom IDH. O que se pode afirmar, contudo, é que os locais mais

pobres, como Norte e Nordeste, são locais de maior foco dessa prática220.

Assim, grupos sociais em situação de vulnerabilidade, mesmo sabendo da

existência da violência, por terem sofrido com ela, acabam sendo enganadas com falsas

promessas de benefícios ou de pagamento para que consintam com a exploração de seu trabalho,

o que caracteriza o aliciamento feito pelo “gato” 221. Esse crime só ocorre, todavia, pela

existência de viabilidade econômica, social e política 222 , o que faz com que pessoas aceitem ter

o seu trabalho explorado, pois acham que é preferível estar empregado de qualquer jeito a não ter

nenhum trabalho e, por isso, se submetem a patrões inescrupulosos, pois passam dias a fio

trabalhando, sem ganhar um salário suficiente para pagar por sua moradia e alimentação na

fazenda, que são cobradas pelo próprio empregador223.

Além disso, o empregado escravizado se sente tão excluído e diminuído que

acaba aceitando as condições trabalhistas impostas a ele, evidenciando, dessa forma, a baixa

auto-estima do trabalhador rural brasileiro224. Muitos explorados sentem vergonha de suas

situações, por isso, varias vezes, não se manifestam contra o crime, aceitando a exploração, de

forma que, em virtude da violência que sofrem, necessário se faz empenhar um grande esforço na

tentativa de melhorar ou manter a auto-estima dessas pessoas. O fato dos trabalhadores mantidos

220LIKCS, T. M. apud CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

221CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

222PEREIRA JÚNIOR, Loris Rocha. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 26.

223MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P. 34. Op. Cit. 224MIRANDA, Nilmário. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P. 36. Op. Cit.

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como escravos esconderem o que ocorria com eles durante a estada nas fazendas, dificulta a

punição dos infratores de tal maneira que se pode dizer que, por achar que deve pagar a dívida ao

patrão e por medo de ser preso por estar errado ao querer se livrar da situação em que vive, o

empregado não utiliza os instrumentos de defesa oferecidos pela Lei, o que prejudica a

construção e formação de uma condição social melhor como, por exemplo, a de um assalariado

com seus direitos trabalhistas observados e respeitados225.

Existe oferta de mão-de-obra, assim, deve ser garantido trabalho decente para

todas essas pessoas, garantindo, ao mesmo tempo, em relação ao empregador, lucro e

competitividade226. Contudo, o que vemos hoje é a “subsistência do coronelismo no Brasil”, com

a perpetuação do crime de trabalho escravo, que acaba sendo ocultado por omissão dos agentes

estatais que estão vinculados ao “sistema de reciprocidade” para com os “coronéis” ou, ainda,

ameaçados de morte, juntamente com sua família, a mando do infrator227.

Na tentativa de evitar a reincidência do trabalhador rural como vítima deste

crime, existe, nos municípios, uma proposta de juntar esforços com o intuito de implantar

programas e ações sociais evitando, assim, o recrutamento de trabalhadores que aceitam tal

prática pela falta de oportunidade que têm na vida228. E nesse sentido, cabem as palavras

225ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

226VILELA, Ruth. II Jornada de debates sobre Trabalho Escravo. Brasília, STJ, 23 e 24 nov. 2004. 227COSTA, Flávio Dino. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 45.

228MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho. O Trabalho Escravo e as Políticas Governamentais para sua Erradicação. Brasília, 2003, p.13. Documento enviado pela SEDH.

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proferidas por Valderez Maria Monte Rodrigues, representante do SINAIT e do Grupo Móvel de

Fiscalização229:

“O que fazer para que o trabalhador escravo liberte-se definitivamente? [...] Não sei tudo, mas tenho uma certeza: a inclusão urgente desse homem naquilo que chamamos de cidadania, com a garantia dos direitos básicos, através do conhecimento, da alfabetização, da qualificação profissional, políticas públicas de geração de renda com a fixação desse homem ao campo que ele tanto ama, proporcionado-lhe, e à família, assistência médica, odontológica e até mesmo psicológica porque não?,[SIC] escola adequada e digna para os filhos, terra, estrada, transporte, crédito e assistência técnica, enfim, uma reforma agrária competente e real. Antes mesmo dessas conquistas, urge que os escravagistas sejam punidos com os rigores da lei, desde o pagamento das multas trabalhistas, prisões exemplares, expropriação. [...] E, mais um detalhe: que se crie a obrigação de que esses senhores de escravos devolvam aos cofres públicos o valor relativo ao custo de cada Grupo Móvel que tiver que fiscalizar a situação que ele mesmo criou. Aí sim, poderemos pretender a legítima liberdade aos trabalhadores escravizados, aos subcidadãos que produzem riqueza e grandes lucros aos agronegócios no Brasil”.

O trabalhador rural brasileiro possui direitos mínimos à preservação de sua

dignidade, de tal forma que, qualquer tratamento que não alcance esse patamar ensejará, sem

sombra de dúvida, em um trabalho degradante, fazendo com que se amplie, ainda mais, o já

imenso número de pessoas escravas que temos no Brasil230.

229In FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais. P. 73. Op. Cit. 230MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2003: Anais da Oficina Trabalho Escravo: Uma Chaga Aberta. Brasília: OIT, 2003, p. 35.

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9 EXPOSIÇÃO DE FATOS REAIS:

9.1 Casos, depoimentos e fazendas denunciadas pela prática ilícita de trabalho escravo:

Relembrando, a escravidão contemporânea é um fato que realmente existe, de

maneira altamente clandestina e, por ocorrer às escondidas, existe um grande desconhecimento

social em relação è realidade da exploração no meio rural brasileiro231, cabendo relembrar, aqui,

que além da existência quase que oculta do crime, devido a distância e a vigilância nas fazendas,

este é sempre negado por parte dos escravos libertados, por razão de vergonha e medo, vez que

sofreram muita violência por parte dos capangas e, também, por achar que o direito penal irá

prejudicá-lo e vê-lo como culpado e devedor. Isso porque, como já foi dito, as classes inferiores

vêem a política criminal voltada para eles, nunca para os ricos fazendeiros232. Por essas razões, os

parágrafos a seguir serão dedicados à exposição de fatos que realmente vêm sendo praticados no

meio rural brasileiro.

Para começar, interessante é relatar um incidente vivido por Binka Le Breton:

Ela relata que acompanhou uma fiscalização do grupo Móvel que, segundo ela, não foi muito

bem sucedida, “por razões fora do controle do Grupo Móvel”, pois nem todos os trabalhadores

foram libertados. Além disso, o dono da fazenda não concordou em fazer o pagamento dos

trabalhadores, gerando tensão nessa fiscalização, inclusive por parte dos policiais federais. O

dono da fazenda – Chico Filho – chamou seu advogado, que veio com um integrante da Polícia

Federal, alegando que o preço a ser pago não estava de acordo coma situação, que o banco não

231BRETON, Binka Le. Trabalho Escravo – A chaga do Brasil aberta para o mundo. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/entrevistabinka.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2004.

232ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

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poderia pagar a dívida, pois não teria dinheiro suficiente para isso, de forma que o ressarcimento

dos empregados não foi realizado, ficando o grupo Móvel desmoralizado perante os

trabalhadores, não só pelo fato de não conseguirem as quitações de dívidas do patrão para com os

peões, mas pela notável desunião entre os Auditores Fiscais e os Policiais Federais, pois estes

últimos evadiram-se do local, deixando todos em uma situação vulnerável de segurança. Outro

fato interessante se deu em uma entrevista que Breton conseguiu com o Senhor Quagliato –

fazendeiro denunciado por prática de trabalho escravo em suas terras – que a recebeu muito bem,

transparecendo uma figura educada e profissional, o que contrasta com o fato de suas fazendas

terem sido apontadas como locais de exploração do trabalho humano. Esse incidente vem

comprovar, mais uma vez, o que já foi afirmado: esses criminosos não se enquadram no

estereótipo de infrator estabelecido pelo senso comum de uma sociedade, haja vista ter dinheiro,

educação etc233.

Existem, também, empresas que utilizam a mão-de-obra escrava e, quando

detectadas, firmam acordo para regularizar a situação, de forma que depois se descobre que até

mesmo o acordo foi fraudado e a prática continua nas fazendas. É o caso da Agropecuária Rio

Largo, localizada ao sul do Pará, que em 2000 foi verificada a prática escravocrata no local,

sendo que um acordo foi firmado, por escrito, junto ao Ministério Público, prometendo a

regularização dos funcionários. Assim, “mandaram cópias dos recibos de recolhimento de

impostos e das carteiras de trabalho dos peões”, além de terem enviado retratos de novos

alojamentos e de um bom refeitório, dando a impressão de que está tudo organizado e de acordo

com a Lei. Não bastando, afirmaram que os trabalhadores recebiam duzentos reais por cada mês

233 BRETON, Binka Le. Trabalho Escravo – A chaga do Brasil aberta para o mundo. Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/entrevistabinka.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2004.

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de serviço. Contudo, em 2002, uma nova fiscalização foi feita, e lá foram encontrados sessenta

homens em situação análoga à de escravo, que eram obrigados a assinar recibos comprovando o

pagamento do salário que, na verdade, nunca receberam. Assim, quem não assinava, tinha o

nome publicado no jornal, informando que o mesmo tinha abandonado o serviço e, por cada uma

dessas supostas pessoas, era depositado o valor de noventa e seis reais em juízo, o que não deixa

de ser lucrativo para o fazendeiro, pois deposita essa quantia mínima, mas sonega todos os

direitos trabalhistas de seu peão, barateando o custo de sua produção, de forma que, ao firmar um

compromisso e simular seu cumprimento, passa a acobertar o crime com a própria lei. “Se eu não

tivesse acompanhado a diligência e confiasse somente nas provas documentais, acharia que os

fazendeiros cumpriam a lei, afirma Hideraldo Machado, Procurador do Trabalho, presente à

fiscalização” 234.

Vele lembrar, também, o caso da já citada Fazenda e Castanhal Cabaceiras, cuja

desapropriação se deu, no diário oficial, no dia 19 de outubro de 2004. Foi constatado pelo

INCRA/MDA, que o Grupo Especial Móvel detectou, por quatro vezes, exploração da mão-de-

obra, além de uma série de irregularidades em relação às normas de trabalho, situação que fez

com que o nome da empresa fosse citado na “lista suja”, ou melhor, “cadastro de empregadores”.

Na última fiscalização feita na fazenda, foram encontradas dezoito pessoas, inclusive um menor

de dezesseis anos, trabalhando em situação análoga à de escravo, sem alojamento adequado, além

da má alimentação, falta de higiene, saúde e segurança. Por isso, foi fixada uma multa de R$

1.350.440,00 por dano moral que foi destinada ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). E foi

o descumprimento da função social trabalhista da propriedade que ensejou a desapropriação da

234CACCIAMALI, Maria Cristina; Flávio Antonio Gomes Azevedo. Trabalho forçado: exclusão ou opção pela inclusão? Disponível em: <www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/artigo_f.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

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área rural, tendo o Decreto Presidencial se fundamentado, também, no inciso III do artigo 186 da

Constituição Federal, de forma que toda a área foi destinada a beneficiar cerca de 340 famílias no

sul do Pará235.

Vários relatos de trabalhadores submetidos à prática escravagista também

podem ser citados como, por exemplo, “a comida era servida em latões nunca lavados, e o

alojamento fedia a chiqueiro. E a gente dormia amontoado”, foi o que disse um trabalhador de

uma destilaria do MS denunciada pelo crime ora em questão (Folha de São Paulo, 11/05/91), de

forma que frases como “bebiam a mesma água que os cachorros”, “morando numa pocilga”,

“viviam que nem porcos”, são vistas e ouvidas muitas vezes em denúncias e fiscalizações contra

o crime de trabalho escravo. Ainda nos depoimentos dos empregados, presente estava, com

freqüência, a palavra “humilhação” e frases como “não tivesse um juízo muito forte

enlouquecia”, e assim, essas pessoas preferem se esconder por trás de sua exploração, pois é o

único meio que encontram de se proteger da falta de dignidade. A situação causada pela dívida é

tão absurda e agressiva que uma viúva, para garantir a dignidade do marido falecido, aceitava a

sua exploração e a de seus filhos, numa fazenda onde eram criados gados, para pagar o que era

devido ao empregador. Assim, tais pessoas acabam perdendo a esperança e não vêem a

possibilidade de melhorar de vida, ou de morar e trabalhar em um lugar mais digno, o que

fortalece a baixa auto-estima dos trabalhadores, contribuindo para a reincidência destes como

vítimas da exploração236.

235KAIPPER, Carlos Henrique. Desapropriação da fazenda e castanhal cabaceiras / PA: um marco histórico na luta pela reforma agrária, pela preservação do meio ambiente e pela regulação das relações de trabalho no campo. Texto enviando, via e-mail, por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

236ESTERCI, Neide. A dívida que escraviza. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/grupos_encerrados/trab_escravo/documentos/esterci.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2004.

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Logo abaixo, está transcrito um e-mail enviado pela assessoria da Secretaria

Especial de Direitos Humanos, onde se expõe a impunidade, a lentidão nas ações, dentre outros

problemas que, infelizmente, são realidade nos dias de hoje:

Condenações por trabalho escravo são poucas: Bernardo de La Peña BRASÍLIA. A Procuradoria da República move pelo menos 202 processos criminais na Justiça Federal contra fazendeiros, agenciadores de trabalhadores rurais, conhecidos como gatos, e empresários acusados de manter trabalhadores escravos em todo o país. O número de processos, maior do que os 166 de infratores incluídos nas três "listas sujas" do trabalho escravo, feitas pelo Ministério do Trabalho a partir de operações de fiscalização, entretanto, não garante a punição. * Sabemos de apenas duas condenações nos últimos dez anos, mas se houver alguma outra este número não passa de cinco * afirma a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko de Castilho. Só entre denúncias apresentadas por procuradores da República entre março de 2003 e junho do ano passado são 39 processos, nos quais foram denunciadas 125 pessoas, 51 delas proprietárias das terras onde foram encontrados trabalhadores escravos. Além desses, outros 85 processos penais e pelo menos 87 inquéritos, que envolvem prisões e medidas cautelares, tramitam pela Justiça Federal nos 27 estados brasileiros. Provar a culpa de proprietários é difícil A subprocuradora atribui o pequeno número de condenações às dificuldades inerentes ao processo penal. A polêmica sobre de quem é a competência para julgar os casos, se da Justiça Federal ou da Justiça comum, também é apontada pelos especialistas como um problema. A jurisprudência, classificada como antiga pela subprocuradora, admite que os processos podem ser julgados pela Justiça comum. * Na área penal, é necessário mostrar a consciência e a vontade do fazendeiro de tratar as pessoas como escravos. Isso é mais fácil em relação aos gerentes das fazendas, mas mais difícil quando se trata do dono. Já teve juiz que absolveu proprietários apesar de as pessoas estarem vivendo como porcos num barraquinho. Os donos da fazenda costumam alegar que as pessoas já viviam assim * explica a subprocuradora. * Eles acham que peão é peão. Pode dormir no chão, beber água suja e receber menos de um salário-mínimo. Lentidão da Justiça pode causar prescrição do crime

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A lentidão da Justiça muitas vezes pode provocar também a prescrição do crime. Para o chefe da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, Luís Camargo, as ações criminais na Justiça são importantes por representar o fechamento do cerco aos proprietários de terras que exploram trabalhadores como escravos: * Só duas coisas têm feito com que esses escravocratas modernos recuem: uma é a indenização por danos morais (determinada pela Justiça trabalhista), e a segunda é a lista do governo que faz com que seque o financiamento público para estes infratores * afirma Luís Camargo. Ele admite que a jurisprudência sobre o assunto é desfavorável. * A Justiça Federal remete para a Justiça comum o julgamento dessas demandas. Isso é ruim porque a Justiça estadual é mais sujeita a pressões e injunções que acabam prejudicando os julgamentos. Severino Goes Assessor de Imprensa Projeto Combate ao Trabalho Escravo Escritório da OIT no Brasil.

Gostaria de citar, também, um caso de trabalho escravo detectado numa

fazenda, localizada ao Oeste da Bahia, que foi discutido judicialmente em Barreiras, que por sinal

é minha cidade natal. O texto a ser citado, foi enviado via e-mail por Rachel Maria Andrade

Cunha, da Secretaria Especial de Direitos Humanos:

Empresa condenada a pagar indenização por danos morais aos trabalhadores:

A Justiça Trabalhista condenou uma empresa e um fazendeiro da Bahia por submeter empregados a trabalho análogo à escravidão. A juíza Alice Maria Santos Braga, titular da vara do Trabalho de Barreiras, município na região oeste do Estado, atendeu à reclamação dos agricultores Antonio Rodrigues Paé, 37, e Inácia Cordeiro, 43, contra a empresa Roda Velha Agroindustrial Ltda, localizada no município vizinho de São Desidério, e o fazendeiro José Leite Filho de Barreiras. Os trabalhadores foram assistidos na ação pela AATR (Associação dos Advogados Trabalhistas Rurais da Bahia).

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Nos esclarecimentos preliminares da ação, os advogados informaram que a Roda Velha ficou conhecida nacionalmente em 2003 por ter sido alvo da maior libertação de trabalhadores em regime de trabalho escravo registrada até então no país. O fato ocorreu entre os dias 19 de agosto e 5 de setembro de 2003. Cerca de 800 trabalhadores, entre eles crianças e adolescentes, foram encontrados em condições análogas à de escravidão na lavoura de café da empresa, sendo que destes, mais de 70 trabalhadores encontravam-se enfermos sem qualquer assistência médica.

A partir daquela operação, a Bahia, com ênfase na região Oeste, passou a figurar entre os sítios que mais fornecem e utilizam mão-de-obra escrava no Brasil. "Portanto, a utilização do trabalho compulsório e degradante na propriedade da primeira Reclamada não é novidade e encontra-se amplamente noticiada, sendo que os reclamantes [trabalhadores] estiveram submetidos à condição análoga a de escravo no período em que ali laboraram, situação constatada pela equipe de fiscalização móvel entre os dias 19.08.03 e 05.09.03", afirmaram os advogados.

De acordo com a inicial da ação, os trabalhadores sujeitavam-se à imposição de trabalhos degradantes análogos a de escravo e teriam tolhido o seu direito de ir e vir caso permanecessem por mais tempo na fazenda, uma vez que prepostos dos empregadores os mantinham a seu julgo utilizando-se de "supostas" dívidas superfaturadas que os empregados contraíam no barracão (ou cantina) da propriedade, relativas à hospedagem, alimentação, instrumentos indispensáveis ao trabalho, tudo a ser descontado do salário.

A fiscalização do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego constatou ainda uma série de violações às normas trabalhistas, entre elas: trabalhadores sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico; admissão de empregados sem assinatura da CTPS; ausência de exames médicos admissionais; falta de material necessário para a prestação de primeiros socorros; não fornecimento de equipamentos de proteção individual; não fornecimento de abrigos para proteção contra intempéries; falta de condições mínimas de conforto e higiene para as refeições; não fornecimento de água potável em condições higiênicas; não fornecimento de alojamentos e condições sanitárias em situação minimamente adequada; retenção indevida de salários e verbas rescisórias; coação do empregado por dívidas contraídas no barracão; e manutenção de "segurança" armada na propriedade.

"Com efeito, a conduta das Reclamadas merece a reprovação mais profunda deste MM. Juízo, pois, atuando em conjunto, arregimentaram mão-de-obra nos

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moldes do que se denomina escravagismo contemporâneo [comumente capitaneado por grandes empresas agrícolas e intermediado pelo gato, falso empreiteiro, testa-de-ferro], em que trabalhadores em situação de extrema pobreza são ludibriados, enganados por promessas fantasiosas e coagidos, moral e fisicamente, ao trabalho forçado em condições indignas", requereram os advogados.

Decisão

No seu despacho a juíza Alice Maria entendeu que a instrução processual "demonstrou à saciedade, sujeição dos trabalhadores a condições desumanas, com graves prejuízos à honra dos reclamantes, redução de sua estima própria e/ou social, violado sua moral e respeitabilidade, atingindo os direitos de sua personalidade".

A magistrada deferiu o pedido de indenização por dano moral, na razão de R$ 9.275 para cada Antonio e Inácia, na razão de metade do piso normativo para cada dia de duração do vínculo empregatício. Com relação aos demais pleitos requeridos pelos advogados, a juíza acatou a maior parte dos pedidos. Ela julgou procedente em parte o pedido, para reconhecer a existência da relação de emprego entre os trabalhadores e o fazendeiro José Leite Filho, mas o condenou e a Roda Velha Agroindustrial a pagarem a Antonio e Inácia, com juros e correção, as seguintes parcelas: verbas rescisórias; multa legal; repouso semanal remunerado; restituição de descontos, além da já citada indenização por dano moral. Coube ainda a José Leite retificar a CTPS do casal de trabalhadores.

Severino Góes

Assessor de Imprensa

Projeto Combate ao Trabalho Escravo

Escritório da OIT no Brasil.

São inúmeros os casos de exploração do trabalho humano no Brasil, o que seria

impossível e monótono citá-los nesta pesquisa, de forma que este tópico, assim como os

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seguintes, tem por fundamento, apenas, expor de uma forma clara e com dados reais a absurda

afronta à dignidade humana que existe contra os menos favorecidos econômica e socialmente em

nosso país.

9.2 Processos, denúncias, decisões, jurisprudências e documentos:

Por pedidos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, não serão citados

nomes, nem os números relativos ao documento anexado abaixo. Seu conteúdo expressa o

conflito de competência para julgamento do crime de trabalho escravo, fator que dificulta, de

forma significativa, o combate ao crime.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 2ª Câmara de Coordenação e Revisão

VOTO N.º: PROCESSO MPF N.º: PROCESSO N.º: REQUERENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – PR/GO REQUERIDO:

IRREGULARIDADE NA CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES PARA O “ARRANQUIO” DA LAVOURA DE FEIJÃO. CRIMES CONTRA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. INOBSERVÂNCIA AS NORMAS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIAS. ÍNDIOS INTEGRANDO O GRUPO DE TRABALHADORES. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA

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FEDERAL. OBSERVÂNCIA À SÚMULA N.º 122 DO STJ. VOTO PELA DESIGNAÇÃO DE OUTRO MEMBRO DO MPF PARA O OFÍCIO.

1.Trata-se de procedimento administrativo, instaurado pela Procuradoria Federal dos Direitos do

Cidadão, em face do relatório conclusivo da Ação Fiscal apresentada pelo Ministério do Trabalho

e Emprego, relativo à ocorrência de supostas irregularidades praticadas pela empresa XX

XXXXXXX XXXXXX XXXX, no Município de Cabeceiras de Goiás/GO na contratação de

trabalhadores para colheita da lavoura de feijão do Sr. XXXXXX XXXXXXX XX XXXXX.

2.Consta dos autos, que os trabalhadores foram contratados pela aludida empresa, sem o devido registro na CTPS e que a mesma não os fornecia equipamentos de proteção para colheita do feijão, nem tampouco havia material de primeiros socorros. Forram alojados em precariamente, pois muitos dormiam no chão, dada a insuficiência de camas, as instalações sanitárias eram precárias, sujeitando as pessoas a fazerem suas necessidades nos quintais ou lotes vagos dos vizinhos. Quanto a alimentação, os trabalhadores tinham que pagar pela marmita oferecida, sendo que muitas essas estragavam, devido o intervalo de tempo em que eram preparadas e consumidas. E ainda, parte destes trabalhadores eram indígenas. [grifo nosso] 3.Encaminhado os autos à Procuradoria da República no Estado do Goiás, a Procuradora-chefe remeteu os autos à Coordenadoria Jurídica para distribuição. 4.O Procurador da República, Dr. DIVINO DONIZETE DA SILVA, houve por bem requerer a declinação da competência à Justiça Comum Estadual [grifo nosso], por entender que “a competência da Justiça Federal, conforme preceitua o art. 109, VI, da Constituição Federal, é

restrita ao processamento e julgamento dos crimes praticados contra a organização do

trabalho” (fls. 03).[grifo do autor]

5.O MM. Juiz Federal da 11ª Vara da Seção Judiciária de Goiás, discordando das razões expendidas pelo Membro Ministerial, firmou a competência para processar e julgar o feito, determinando retorno dos autos ao MPF, para as providências cabíveis.[grifo nosso] 6.O representante do Parquet Federal insistiu na declinação do juízo, no que foi indeferido pelo ínclito julgador, que remeteu os presentes autos ao Procurador-Geral da República, consoante o art. 28 do CPP.[grifo nosso] 7.É o relatório.

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8.Com a devida vênia, discordo do entendimento do ilustre colega DIVINO DONIZETE DA SILVA. 9.Extrai-se da análise dos autos, que os trabalhadores foram aliciados pelo “gato” (empreiteiros) para trabalhar na lavoura de feijão do Sr. WILSON BATISTA DO COUTO. 10.Este trabalhadores foram contratados sem o devido registro legal na CTPS para trabalhar em território nacional diverso do qual residia e submetido a condições desumanas, conforme o relatório do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego. 11.Ademais, dentre os trabalhadores contratados para a colheita do feijão, estavam integrantes da raça indígena (Xacriabás). 12.Pois bem, verifico que os autos noticiam, em tese, conduta delituosa contra a organização do trabalho previsto nos arts. 203 e 207 do CP, crime de redução à condição análoga à escravo (art. 149, do CP), bem como crimes previdenciário, face à ausência de registro destes trabalhadores, burlando desta forma os interesses da Fazenda Federal.[grifo nosso] 13.O art. 109, inc. VI, da CF, definiu que o julgamento dos crimes praticados contra a

organização do trabalho seriam da Justiça Federal. Porém, coube aos operadores do direito

interpretar e definir o que seriam delitos praticados em detrimento a organização trabalhista, haja

vista a variedade de tipos penais inseridos no Título IV, do Código Penal Brasileiro.

14.Os Tribunais firmaram jurisprudências no sentido de que seriam da competência da

Justiça Federal aqueles crimes que violassem a organização geral do trabalho ou direitos

dos trabalhadores considerados, coletivamente, segundo a Súmula n.º 115 do extinto

Tribunal Federal de Recursos, razão pela qual crimes desta natureza, praticados contra a

liberdade individual dos trabalhadores, ou seja, individualmente considerados, são

remetidos à Justiça Estadual para o seu regular processamento.[grifo nosso]

15.No caso, não se aplica tal interpretação, visto que a ofensa aos direitos, ora trabalhistas, ora previdenciários e quiçá outros, ainda não constatados nesta sumária investigação, fora em detrimento de um grupo de mais de 200 pessoas, conforme o relato dos fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego.[grifo nosso]

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16.É censurável a conduta de certos empresários que contratam trabalhadores, aproveitando-se da situação de dificuldade que passa essas pessoas nos longínquos rincões deste país, e no intuito de aumentar seus lucros, sem o devido controle e fiscalização dos entes estatais dada a dimensão do território nacional, e disto se aproveitam para ilidir o fisco, legislação trabalhista, previdenciária e a própria proteção aos direitos humanos. 17.Em face da relevância da matéria, entendo que a hipótese é do interesse nacional, e por conseguinte da competência da Justiça Federal para processa e julgar fatos desta natureza.[grifo nosso] 18.Sobre o tema, a Oficina de Trabalho-Aperfeiçoamento Legislativo para o Combate ao Trabalho Escravo, no qual contou com a participação de órgãos e entidades governamentais - dentre elas: MPF; MPT PF; OAB, ponderou no seu relatório conclusivo, verbis:

“(...) Pelo critério do interesse da União, objetivamente identificado, o resultado da avaliação satisfaz também ao modelo de definição da competência federal. O delito em exame ofende claramente interesses da União Federal, expressos na Constituição, já que atenta contra a dignidade da pessoa humana, a liberdade no trabalho, e retira a função social da propriedade, valores que a União Federal comprometeu-se a defender, assumindo inclusive compromissos internacionais, como visto. Veja-se que o art. 34, VII, “b”, da CF atribui mesmo ao ente central o poder de intervenção nas entidades da Federação, para preservar os “direitos da pessoa humana. (...)”[grifo do autor]

19.A propósito, cito a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

“PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REDUZIR ALGUÉM À CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO (ART. 149, CP). FRUSTRAR DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA (ART. 203, CP). CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA. CONFIGURAÇÃO DE INTERESSE ESPECÍFICO DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ORDEM DENEGADA. 1. Número expressivo de pessoas, 135 (cento e trinta e cinco), trabalhando para empresa agroindustrial em condições sub humanas, análogas às de escravo, sem observância das leis trabalhistas e previdenciárias. Configuração de crime contra a organização geral do trabalho.

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2. Interesse da União no combate às práticas atentatórias contra a dignidade da pessoa humana e a liberdade do trabalho. Competência da Justiça Federal. 2. Ordem denegada.” (HC 01000448089/MT, TRF 1ª R, Rel Des. CARLOS OLAVO, DJU 02.02.2004, p. 00014)

“PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REDUZIR ALGUÉM À CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO (ART. 149, CP). ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE TRABALHO (ART.197, CP). FRUSTRAR DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA (ART. 203, CP). ALICIAMENTO DE TRABALHADORES DE UM LOCAL PARA OUTRO DO TERRITÓRIO NACIONAL (ART.207). AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA. CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. CONFIGURAÇÃO DE INTERESSE ESPECÍFICO DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ORDEM DENEGADA. 1.Materialidade comprovada e indícios de autoria. Presentes os pressupostos legais para o recebimento da denúncia. Art. 41 do CPP. 2.Trabalho prestado em condições sub humanas, análogas às de escravo, sem observância das leis trabalhistas e previdenciárias. Configuração de crime contra a organização geral do trabalho. 3. Interesse da União no combate às práticas atentatórias contra a dignidade da pessoa humana e a liberdade do trabalho. Competência da Justiça Federal. 4. Ordem denegada.” (HC 01000132467/MA, TRF 1ª R, Rel. Des. CARLOS OLAVO, DJU 14.11.2003, p. 24)[grifo do autor]

20.Outrossim, verifica-se que havia entre os trabalhadores vitimados pela conduta ora narrada, a

existência de índios da etnia Xacriabás, o que reforça, ainda mais, a definição da competência da

Justiça Federal para processar e julgar os delitos, sobretudo, porque houve ofensa a direitos

(individuais e coletivos) dos indígenas e a sua própria organização econômica e social.

21.A questão não é nova. Esse egrégio Superior Tribunal de Justiça consolidou sua jurisprudência, a teor do enunciado nº 140, no sentido de que “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que indígena figure como autor ou vítima”.[grifo do autor]

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22.Essa orientação, no entanto, conflita com entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal que, em acórdãos proferidos na vigência da atual Constituição, nos termos do inciso XI do artigo 109, proclamou competir à Justiça Federal o processo e julgamento de ação penal instaurada para apuração de delitos praticados por indígena ou contra ele, “pois todos os direitos dos índios são tutelados pela União, conforme dispõe o artigo 231 da Carta Magna” (RT 758/687).[grifo do autor] É o que demonstram os julgados adiante reproduzidos:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. ÍNDIO. JUSTIÇA ESTADUAL: INCOMPETÊNCIA. ARTIGO 109, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Caso em que se disputam direitos indígenas. Todos os direitos (a começar pelo direito à vida) que possa ter uma comunidade indígena ou um índio em particular estão sob a rubrica do inciso XI do art. 109 da Constituição Federal. Habeas corpus concedido para que se desloque o feito para a Justiça Federal, competente para julgar o caso.” (HC nº 71.835/MS, Rel. Ministro FRANCISCO RESEK, in DJU de 22/11/1996)[grifo do autor] “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. HOMICÍDIO. CRIME PRATICADO CONTRA SILVÍCOLA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. A Constituição Federal, em seu art. 231, impôs à União o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial do conjunto, sua cultura, sua terra, sua vida. 2. Sendo a vida do índio tutelada pela União, é competente a Justiça Federal para julgar o feito, não estando a Justiça Estadual, na presente ordem constitucional, legitimada a conhecer das infrações penais cometidas por ou contra silvícolas. Recurso conhecido e provido.” (RE nº 192.473/RR, 2ª Turma, Rel. Ministro MAURÍCIO CORRÊA)[grifo do autor]

23.A Constituição Federal, inovando em relação à Carta de 1969 e atribuindo fundamento constitucional aos direitos indígenas, deu ao silvícola tratamento distinto, seja no intuito de reconhecer sua organização social, cultura, costumes, línguas, crenças e tradições, além do direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas (art. 231), seja para conferir competência à Justiça Federal para processar e julgar as lides que tenham por objeto a disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI). 24.Em preciosa reflexão sobre o tema, sob o enfoque processual, a partir do tratamento constitucional reservado à sociedade indígena, o ilustre Subprocurador-Geral da República CLÁUDIO LEMOS FONTELES não teve receio de afirmar que o artigo 231 da Carta Política, inquestionavelmente, impôs à União “o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial do conjunto: sua cultura; sua terra; sua vida. Sua cultura, porque aos índios há o reconhecimento constitucional de sua ‘organização social, costumes, línguas, crenças e tradições’. Sua terra, porque aos índios há o reconhecimento constitucional ‘dos direitos sobre as terras que

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tradicionalmente ocupam’. Sua vida, quer na expressão do indivíduo considerado de per se quer na expressão da liderança, ou das lideranças do grupo, quer na expressão do próprio grupo, porque a cada índio, em particular, e a todos em coletividade, estende-se o dever de proteção constitucionalmente imposto à União: ‘Proteger e fazer respeitar todos os seus bens’. Bens, por óbvio, não só os economicamente mensuráveis, mas os inestimáveis como a vida, a integridade física, a honra etc. Ora, como dissemos antes, porque o art. 231, caput, da CF, ‘impõe à União o dever de preservar as populações indígenas, preservando, sem ordem de preferência, mas na realidade existencial do conjunto, sua cultura, sua terra, sua vida’ e porque o inc. IX (sic) do art. 109 da mesma Carta, que o primeiro operacionaliza, marca na Justiça Federal de 1º grau a competência jurisdicional para as contendas sobre direitos indígenas, a Justiça estadual não mais está legitimada a conhecer das infrações penais cometidas por, ou contra índios. Sem sobressaltos, à luz do novo texto constitucional é de se estabelecer nova orientação jurisprudencial para tais assuntos criminais” (Os julgamentos de crimes cometidos contra comunidades indígenas pela Justiça Estadual. Revista da Procuradoria-Geral da República, nº 3, 1993, p. 59/61).[grifo do autor] 25.Assim também entendeu o Excelso Pretório nos precedentes antes invocados: o termo “direitos indígenas” compreende todos os direitos que a comunidade ou um índio em particular possam ser titulares. A proteção que se pretendeu dar ao silvícola justifica a competência da Justiça Federal sempre que houver ofensa a seus direitos, não apenas os inestimáveis, mas os economicamente mensuráveis. 26.Não se trata de dar foro privilegiado aos autores de crimes contra indígenas, mas de dar exata aplicação à norma constitucional que declara a Justiça Federal como “juiz natural” das causas que tenham por objeto a disputa de direitos indígenas, pouco importando, se o índio é o autor ou a vítima da conduta delituosa. 27.Pretendeu o constituinte, na elaboração dos preceitos insertos nos artigos 109, inciso XI, e 231, dar integral proteção ao índio, em qualquer situação, remetendo para a Justiça Federal todas as causas cíveis e penais que tenham por objeto direitos indígenas. Deslocar a competência para a Justiça Estadual é contrariar frontalmente esses dispositivos, especialmente, o preceito constitucional de índole processual. 28.A Sexta Câmara de Coordenação e Revisão (Comunidades Indígenas e Minorias) do

Ministério Público Federal, em parecer da antropóloga Maria Fernanda Paranhos acerca dos

trabalhadores índios do Estado do Mato Grosso do Sul e do fenômeno do trabalho fora, descreve

essa realidade (violação da organização geral do trabalho e dos direitos dos trabalhadores

indígenas considerados coletivamente) e realça a ocorrência de maltratos (SIC) aos direitos, à

cultura, aos costumes e à organização social e econômica do grupo étnico Terena. Esse estudo

traz importantes conclusões:

“As condições de trabalho denunciadas como existentes nas destilarias, caracterizadas pela comercialização de todos os produtos necessários ao índio fora de sua Terra e o endividamento permanente

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nos alojamentos associado à baixa remuneração dentro das usinas, podem ser enquadradas na nossa noção de ‘mecanismos repressivos de imobilização da mão-de-obra na agricultura’. Essa noção refere-se a uma relação específica que se estabelece entre a classe proprietária rural e a mão-de-obra agrícola. O uso da mão-de-obra indígena de forma servil ou semi-servil enquadra-se nesta noção que se distingue de outros sistemas de trabalho agrícola nos quais os assalariados têm a liberdade de recusar um trabalho ou as condições deste e ir embora. O ponto extremo dessa relação é a escravatura. Considerando que a Constituição Brasileira garante o respeito à diversidade cultural e toda cultura possui concepções de dignidade humana, é de grande importância a intervenção dos poderes públicos na proteção dos direitos dos trabalhadores indígenas. Na defesa desses direitos, alguns pontos parecem fundamentais:

a) o objeto do processo aqui em referência enquadra-se indubitavelmente no contexto das relações interétnicas. Portanto, a realidade étnica do caso exige do profissional do direito máxima cautela ao investigá-lo e julgá-lo.

b) os Terena têm direito à proteção de sua forma de organização econômica.

c) os Terena têm direito ao trabalho, dentro ou fora de suas terras. Trabalho aqui entendido dentro da concepção de respeito à especificidade cultural como aquele que atende ao modo de ser tradicional dos Terena, que o faz se sentir digno, dentro ou fora do seu território.

d) o trabalhador indígena tem direito à justa remuneração. Remuneração esta não só baseada no salário, mas que propicie ao trabalhador condições de vida e saúde.

e) os trabalhadores indígenas têm direito ao equilíbrio nas relações de poder contratual entre os empregados e os seus empregadores.”[grifo do autor]

29.Em outra frente, a competência da Justiça Federal, em matéria criminal, prevista no inciso IV

do artigo 109, também é aplicável à hipótese porque evidenciado interesse da União na demanda,

precisamente pela necessária intervenção da FUNAI na proteção dos indígenas em face de sua

incapacidade civil. O interesse federal em atuar na tutela dos silvícolas, em especial quanto às

suas relações sociais fora das reservas, justifica a competência da Justiça Federal. Os contratos de

trabalho de locação de serviços realizados com indígenas em processo de aculturação dependem

de prévia aprovação do órgão de proteção dos silvícolas e, na forma dos artigos 16, § 2º, e 37 da

Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), em qualquer caso de prestação de serviços por indígenas em

processo de integração, a FUNAI, incumbida de assistir essas comunidades, deverá exercer

permanente fiscalização das condições de trabalho, “denunciando os abusos e providenciando a

aplicação das sanções”. Na espécie dos autos, a denúncia faz expressa referência a fatos

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relacionados com a tutela dos direitos indígenas, especialmente quanto à necessidade de

autorização da FUNAI para contratação de mão-de-obra indígena e à expedição irregular de guias

de trânsito.

30.O disposto nos incisos IV, VI e XI do artigo 109 da Carta Magna evidencia, portanto,

interesse federal na matéria, seja pela especial atuação da União na tutela e na defesa dos direitos

dos silvícolas, seja pela quebra da harmonia e do equilíbrio imprescindíveis à ordem econômica e

social.

31.Nessa ótica, por haver conexão de delitos de competência federal (artigos 203 e 207, do CP) e mesmo desconsiderando os fundamentos sobredito a respeito da competência da Justiça Federal acerca do delito de redução à condição análoga à de escravo (art. 149, CP), predomina a competência da Justiça Federal, nos termos da Súmula n.º 122 do STJ.[grifo nosso] 32.Ante o exposto, voto pela designação de outro Membro do MPF para o ofício por entender que é da Justiça Federal a competência para processar e julgar os fatos relatados neste feito.

Brasília, 7 de outubro de 2004

CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES

Relatora

O documento a seguir é do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do

Brasil e, a meu ver, contém importantes questões, inclusive relatos das fiscalizações feitas em

propriedades rurais:

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Processo: CNDS nº 13/2001 Origem: Comissão Nacional de Direitos Sociais Proponente: Dra. Cléa Anna Maria Carpi da Rocha Interessado: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do

Brasil

Assunto: Solicitação de análise e manifestação referente à exploração do trabalho escravo ou congênere no Brasil

RELATÓRIO

Em decorrência de artigo/denúncia publicado no Jornal Folha de São Paulo em 18 de julho de 2001, que Doutora Cléa Anna Maria Carpi da Rocha, DD. Secretária de nossa Comissão Nacional de Direitos Sociais, solicita uma análise, para posterior manifestação, acerca da aprovação, pelo Ministério do Trabalho, de parecer da sua Consultoria Jurídica, impondo uma desoneração das penalidades impostas aos empregadores de trabalho escravo ou condição semelhante.

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Houve a juntada do artigo “Trabalho Escravo no Brasil”, de autoria do Frei Betto, que denunciava uma certa dose de leniência governamental em relação à matéria. O processo respectivo me foi distribuído, por ordem do Presidente da CNDS, Dr. Renato César Vianna Gomes, impondo-me, entre outras obrigações, um inseparável compromisso com a causa da extinção da exploração escravagista no Brasil. Ouvimos, ainda, o Frei Henry de Roziers, explanando sobre a sua atuação, como membro da igreja e da Pastoral da Terra e como advogado, na região do sul do Pará e do Bico de Papagaio. Autos relatados.

VOTO

1. Conveniência e Oportunidade Importância extrema tem o assunto que nos trazem os presentes autos. Conecta-se com o Direito Constitucional; Direito Penal; Direito Civil, estando centrado, obviamente, nas searas dos Direitos Humanos e, de modo específico, no Direito do Trabalho. E, infelizmente, o Brasil, ainda nessa matéria, é exemplo negativo, o que ressalta a importância, conveniência e oportunidade da discussão que ora trazemos ao Conselho Federal. Imperiosa a urgente discussão da matéria.

2. Denúncia da Comissão Pastoral da Terra A Comissão Pastoral da Terra, instituição cristã vinculada à Igreja Católica e à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, cujos trabalhos são realizados desde 1975, tem denunciado o que se passa em nosso país. Vale a pena reproduzir alguns de seus documentos, que contêm declarações e fotografias que merecem divulgação, para que tenhamos noção do grau de abrangência da iniqüidade correspondente ao tema:

“Há anos Maranhão, Tocantins, Piauí, Ceará, Minas Gerais são percorridos por empreiteiros do Pará e Mato Grosso. Estes empreiteiros são conhecidos como gatos. Eles caçam trabalhadores rurais para derrubadas de mata, roço de juquira, limpeza de pasto, aceiro e conserto de cerca. Chegam com promessas bonitas de emprego e salário mas depois, quando os peões entram nas fazendas, encontram ameaça, espancamento e trabalho escravo. Milhares de pessoas sofreram muito nos últimos anos e dezenas, ao tentarem sair do cativeiro, foram torturadas e até mortas.

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Escravidão por dívida e trabalho forçado não são resquícios do passado em fazendas remotas e

atrasadas. Encontram-se nos desmatamentos, na produção de carvão, nos seringais e garimpos, em

projetos com incentivos fiscais de bancos e multinacionais. São consequências de uma receita

de modernização e da limitada democracia brasileira.

(Alison Sutton, Trabalho Escravo, 1994)

Nos últimos anos, nós os brasileiros, temos sido submetidos à vergonha de ver o Brasil várias

vezes interpelado por instâncias internacionais de Justiça pela existência do trabalho escravo. Vergonha não pela interpelação em si, mas

porque elas significam não só a existência como a continuidade deste crime de lesa-humanidade.

(Fórum Permanente contra a Violência no Campo)

1. a CPT e o trabalho escravo no Brasil

A Comissão Pastoral da Terra se preocupa há anos com a permanência do trabalho escravo no Brasil. A primeira denúncia conhecida sobre conceito moderno de trabalho escravo é de 1972, realizada por Dom Pedro Casaldaliga, de acordo com o critério divida impagável.

No século 19 já havia situações de trabalho escravo - trabalho de imigrantes - por divida de viagem e alimentação. Na Alemanha, na época, houve um movimento para a libertação dos trabalhadores. E possível que tenha havido outras denuncias no âmbito da Igreja. No Brasil, ha dados de trabalho forcado com os soldados da borracha (trabalho obrigatório), onde muita gente morreu - mais de 40 mil - promovido também pelo governo. Nas décadas de 70-80, tem-se noticias de trabalho forcado em fazendas na Amazônia. Em 73, quando o governo militar fornece subsídios a grandes empresas da Amazônia, e estimado em 100 mil o numero de trabalhadores escravizados, por ano, ate a década de

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80. Em 77, vem de Conceição do Araguaia a 1a. noticia de trabalho escravo em fazendas, dada pelos próprios trabalhadores fugitivos dessa situação. Em 74, teria havido na fazenda Bradesco - sul do Para, a queima de 60 peões. Os trabalhadores contratados fora do estado eram levados de avião para tornar a fuga mais difícil. Normalmente, a contratação e o aliciamento se dão no Piauí, Rio Grande do Sul, Paraná, Maranhão, Espirito Santo, e os trabalhadores só se dão conta da situação de divida de viagem, cantina, ferramentas, quando chegam ao local.

O que fizemos? A primeira grande denúncia foi em 1984, o caso da fazenda da Vale do Rio Cristalino, da Volkswagen, no Sul do Pará. Os peões conseguiram escapar a pé da fazenda e foram parar em São Félix do Araguaia. Houve mobilização e a idéia de flagrar os responsáveis foi frustrada. Na época, o governador do Pará era Jader Barbalho. Não se conseguiu fazer o flagrante, então convocou-se a imprensa nacional e internacional e se fez a denúncia. Havia indícios de que eram 600 trabalhadores. Mais tarde, uma matéria publicada na Alemanha afirmou que havia 800 trabalhadores escravizados.

É muito difícil conseguir informações exatas sobre o número de peões escravizados. O peão fala, no máximo, do grupo que foi com ele, do local onde estava. Nem sempre tem contato com o todo. O gato geralmente tem outros grupos. Quem sabe da realidade são os gerentes ou proprietários que sempre negam.

Nos anos 90, o Fórum contra a Violência no Campo tem sido um veiculo forte de denúncia e debate do problema. Ele é composto de entidades da Sociedade Civil, dentro das quais a CPT, e governamentais: Ministério Público Federal, Ministério do Trabalho, INCRA entre outras pelas denúncias sucessivas realizadas, diretamente pela CPT ou através do Fórum, as autoridades começaram a se preocupar com a questão:

• Abril de 1993: o então presidente da CPT, Dom Augusto Alves da Rocha, denuncia em audiência com o ministro do Trabalho, Valter Barelli e ao Procurador Geral do Trabalho.

• Anos 92 e 93: denúncias em instâncias internacionais da ONU, OIT, Parlamento Europeu e OEA. A CPT e representada pelo Pe. Ricardo Rezende e Dr. Marcelo Lavénère, então presidente da OAB.

• 11.04.94 - Darci Frigo, representando a CPT, faz pronunciamento na 19ª sessão da Subcomissão da ONU - grupo de trabalho sobre a escravidão contemporânea.

Com isso conseguimos alguns instrumentos legais e institucionais para combater melhor o trabalho escravo:

• 24.03.94 - Instrução normativa do Ministério do Trabalho: dispondo sobre os procedimentos da inspeção do trabalho na zona rural.

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• 1995: criação do GERTRAF, grupo executivo de repressão ao trabalho forçado, e implantação do Grupo Móvel de Fiscalização, pela SEFIT, seção de fiscalização do Ministério do trabalho

• final de 1998: a lei sobre o trabalho escravo, em tramitação há 2 anos, é votada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República em 28.12. 98.

Os números levantados pela CPT chegaram a 26.000 em 1995 enquanto que em 1991, o total apurado atingia 4.883. Difícil de fazer comparações rigorosas de um ano para o outro já que, até entrar em ação o Grupo Móvel, em 96, os únicos números disponíveis são os números fornecidos por informantes, fugitivos ou, com a margem de erro que essa informação comporta: a mais como a menos. O peão escravizado só tem conhecimento da frente de trabalho onde foi contratado. A partir de 1996 os números contabilizados se restringem aos trabalhadores efetivamente resgatados em operações de flagrante realizadas pelos fiscais do Ministério do Trabalho. Das 4.883 vítimas contabilizadas em 1995, 821 foram encontradas no Pará (86 no Maranhão, 90 no Mato Grosso). Já em 1996 o número apurado no Pará, a partir dos relatórios do Ministério do Trabalho, foi de 674, em 1997, de 473 e em 98 foram contabilizados pela CPT, 254 só no sul do Pará. Em abril de 99 já foram resgatados 185 peões só no Sul do Pará. Quando se sabe das dificuldades para se chegar à informação e à posterior dificuldade para montar uma operação de resgate, é permitido pensar que esses números não passam da ponta do iceberg.

As formas de escravização comportam habitualmente os seguintes elementos: aliciamento em região distante, pagamento antecipado dos gastos do peão (pensão, feira, transporte), transporte em condições péssimas, cadeia de intermediários desde o dono da pensão até os distintos gatos, condições de trabalho precárias e perigosas, coação por meios violentos, ameaças e cerceamento da liberdade, prática do endividamento reforçado pelo sistema da compra no barracão da fazenda ou da frente de trabalho. As empreitas mais habituais, nas regiões de fronteira agrícola são o desmatamento, a derrubada para abertura de fazenda ou pastos novos, a limpeza de juquira ou juquirão, além de obras específicas (ex.: linhão da Eletronorte a partir de Tucurui-PA). No interior dos Estados, embora muitas vezes no limite entre escravidão e trabalho super-explorado, há repetidos casos em carvoarias e serrarias (MA, MG, MS, MT).

2. Os desafios atuais da luta contra o trabalho escravo

Tivemos em 1997 uma experiência inovadora, realizada na Grande Região Norte, visando a articular as estratégias de trabalho a fim de prevenir e combater o trabalho escravo nos Estados de Maranhão, Tocantins, Pará e Mato Grosso: Campanha ‘De olho aberto para não virar escravo!". Essa Campanha partia da observação - de novo confirmada pelos casos flagrados de 1997 para cá no sul do Pará - de que Maranhão e Tocantins são regiões preferenciais de aliciamento, fornecedores de mão de obra, para as empreitas realizadas no Pará e Mato Grosso, em regiões cada vez mais distantes (ex.: região do alto Xingu). Apoiada em material didático especialmente realizado (material de

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sensibilização voltado para os trabalhadores sujeitos a contratação; material de orientação para monitores da Campanha, material de divulgação para opinião pública), a Campanha teve desdobramentos diferenciados conforme a região envolvida desde encontros de sensibilização e primeiras orientações, encontros de capacitação nas regiões de incidência de trabalho escravo até acompanhamento de operações de resgate e das pendências que delas decorrem (ações criminais e trabalhistas, orientação às vítimas, proteção a testemunhas e/ou vítimas).

Vale ressaltar que:

1. A forma como chegamos até as informações é sempre ‘por um fio’. Requer uma boa capilaridade por parte de uma rede consistente de agentes treinados e motivados, com presença nos bairros de cidades a forte concentração de peões (ex: sul do Maranhão, norte do Tocantins, sul do Pará, leste do Mato Grosso). Consciente de seus limites, a CPT procura ampliar o leque de atores envolvidos nesse trabalho de vigilância: grupos locais de direitos humanos, equipes pastorais, etc.

2. A denúncia é o passo essencial para correta apuração dos casos e realização do resgate das vítimas. A falta de compromisso por parte de várias autoridades locais – às vezes omissão, às vezes conivência – implica na absoluta necessidade de se ter encaminhamentos claramente definidos e confiáveis, junto ao Grupo Móvel de Fiscalização da SEFIT.

3. Devido os laços de dependência/amizade que vem se tecendo entre os peões e seus gatos, a extrema mobilidade e a falta de alternativa de subsistência para essa categoria de trabalhadores cuja vida se confunde com a peonagem (peão do trecho), é muito difícil tirar grande proveito dos resgates realizados: a volta à mesma situação continua sendo a maior probabilidade. Conforme os casos, essa situação exige ações de emergência (socorro imediato às vítimas) e soluções mais duráveis, onde deve se discutir localmente as oportunidades de organização e de emprego. A CPT pode assumir papel incentivador para tais ações.

4. Devemos atentar ao fato que aos poucos, nas regiões objeto de fiscalização do Grupo Móvel, a tendência é de aparecer formas alternativas de trabalho escravo onde o cerceamento da liberdade não é mais caracterizado por uma vigilância armada: a dívida impagável por si só com a ajuda do isolamento geográfico, basta para submeter o peão e lhe impor as piores condições de trabalho. É preciso levar a fiscalização a encarar essas novas táticas.

5. Impunidade: no acompanhamento às pendências penais, os processos criminais por trabalho escravo (art. 149 CP) são muitas vezes arquivados antes de chegarem ao julgamento e, às vezes, antes mesmo da denúncia ou da pronúncia, por razão de prescrição. Em 22/08/97 a Justiça Federal de Marabá comunicou a relação de 11 processos criminais ligados à prática do trabalho

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escravo (período de 80 a 92). Desse número só 3 processos estavam ainda em andamento sendo os demais arquivados ou até sem notícia. Tudo indica que os demais nunca chegarão ao julgamento por não se encontrar mais, depois de tanto tempo, nem as testemunhas nem os acusados, que são foragidos ou com pena prescrita. Por morosidade ou má vontade da Polícia Federal, inquéritos demoram anos antes de serem concluídos. È preciso acompanhar de maneira qualificada o andamento dos processos criminais de trabalho escravo no Ministério Público e na Justiça Federal. Na parte trabalhista, a situação é idêntica: as multas não são pagas, nem provavelmente cobradas. Sob pena de favorecer a recidiva no crime do trabalho escravo (já bastante evidente nos casos apurados), é preciso cobrar do Ministério do Trabalho a execução das sanções das infrações lavradas nas operações de fiscalização. O valor das multas, de qualquer maneira, são irrisórias por esses grandes fazendeiros e não tem efeito dissuasivo.

6. Os debates da sociedade organizada, tais como os realizados no Fórum Nacional contra a Violência no Campo e contra o Trabalho Escravo, são de primeira importância neste combate. Em 09/09/97, por exemplo, foi o Fórum quem pressionou o presidente do INCRA, Dr Milton Seligman, para desapropriar a fazenda Flor da Mata, no Sul do Pará (por motivo de trabalho escravo). Apesar de fortes reações por parte dos políticos (grupo do governador Siqueira Campos, Estado do Tocantins) ligados à empresa tocantinense Umuarama, dona da fazenda, os quais foram até o Ministro para tentar descaracterizar o trabalho do Grupo Móvel, da PF e da CPT-Xingu, a desapropriação ocorreu e foi implantado um projeto de assentamento de 400 famílias removidas da reserva indígena vizinha dos Kaiapó-Xicrín. Foi muito questionado e denunciado o fato que o proprietário da fazenda Flor da Mata recebeu do governo federal uma indenização de R$ 2.500.000, enquanto ele tinha comprado a fazenda, 3 anos antes, pelo valor de R$ 100.000. Por isso o Fórum esta articulando a preparação de um projeto de lei para que, em caso de trabalho escravo, a fazenda seja confiscada sem direito a nenhuma indenização. Foi também o Fórum quem acompanhou cuidadosamente o andamento do projeto de lei sobre o trabalho escravo, o qual foi votado pelo Congresso no fim de 98. O mesmo vale, a fortiori, dos demais espaços de âmbito internacional (OEA, ONU, OIT). Várias Representações contra o governo brasileiro por omissão na apuração de casos de trabalho escravo encontram se na Comissão Interamericana da OEA em Washington.

3. Extratos de Relatórios de Fiscalizações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego Mais uma vez, valemo-nos do trabalho da Comissão Pastoral da Terra, que pesquisou extratos de relatórios de fiscalização e ações do Ministério do Trabalho, muito significativas:

Extratos de relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho

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Agropecuária Umuarama Ltda - Parauapebas (pa) - trabalhadores alcançados na ação fiscal: 78

A Agropecuária Umuarama Ltda. foi fiscalizada pelo Grupo Móvel no final do mês de agosto deste ano. Na oportunidade os trabalhadores foram encontrados em condições degradantes de vida e trabalho. Ao retornar constatamos que não houve alteração na relação trabalhista e nas condições de vida e trabalho imposta aos empregados daquela fazenda. Os trabalhadores foram encontrados alojados em barracões cobertos de plástico, com alimentação fornecida sob sistema de barracão, sem registro em CTPS, sem Equipamentos de Proteção Individual - EPI, sem que lhes seja fornecida água potável. São descontados dos trabalhadores valores-referentes a alimentação, EPI e as despesas com pensões de onde são recrutados pelos "gatos" e levados para a fazenda, conforme constatamos nos cadernos de dívidas que são anotadas e controladas pelo "gato". Aos trabalhadores não é permitida a saída da fazenda sem que antes tenham liquidado os débitos contraídos com o "gato".

Fazenda Brasil Verde - Xingara (PA)-nº de trabalhadores alcançados na Ação Fiscal: 78

As condições de vida e trabalho dos trabalhadores da Fazenda Santa Lúcia não diferem das demais fazendas fiscalizadas pelo Grupo Móvel no Sul do Pará, os trabalhadores foram encontrados alojados em barracões cobertos de plásticos, com alimentação fornecida sob sistema de barracão, sem registro em CTPS, sem o fornecimento de água potável, sem Equipamentos de Proteção Individual - EPI, sujeitos, portanto, a acidente do trabalho. Não é permitida aos trabalhadores a saída do local de trabalho sem que antes tenham liquidado débitos contraídos relativos às despesas com alimentação, EPI, bem como com pensões de onde são recrutados e levados para trabalhar na fazenda. RELATÓRIO DE FISCALIZAÇÃO NO ESTADO DO PARÁ - 25/11 A 07/12/96 - SEFIT - COORD. DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL

REGIÃO NORTE 01.

Fazenda Primavera - Curianópolis/PA n° de trabalhadores alcançados na Ação Fiscal: 218

Foram encontrados na Fazenda Primavera 218 (duzentos e dezoito) trabalhadores, sendo que 83 (oitenta e três) são trabalhadores permanentes da fazenda e os demais 135 (cento e trinta e cinco) trabalham no roço de juquira, em precárias condições de vida e trabalho, sem CTPS anotada, sem Equipamentos de Proteção Individual - EPI, alojados em barracões cobertos de plástico, com alimentação fornecida sob o sistema de barracão. São debitados aos trabalhadores valores referentes à alimentação, EPI, despesas com pensões de onde são recrutados pelos "gatos" e levados para trabalhar na fazenda. Os trabalhadores iniciam a prestação de serviço já com uma dívida considerável sempre crescente e de difícil liquidação, tendo em vista os baixos salários a que são submetidos e os altos preços dos produtos vendidos pelo "gato". Os trabalhadores estavam há vários meses sem

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dos produtos vendidos pelo "gato". Os trabalhadores estavam há vários meses sem receber seus salários; o empregador, apesar de notificado, não efetuo o pagamento dos salários que se encontravam em atraso, nem tão pouco demonstrou o interesse de modificar a situação degradante a que os trabalhadores são submetidos naquela fazenda. Apenas cerca de 30 (trinta) trabalhadores os quais manifestaram o desejo de sair da fazenda tiveram seus salários quitados. Durante a entrevista com os trabalhadores, vários deles confirmaram a denúncia de vigilância armada e maus tratos impostos pelo "gato". Foram apreendidas pela Polícia Federal várias armas de fogo e motoserras, sendo que as últimas foram entregues ao IBAMA em Xinguara/PA.

Grupo especial de fiscalização móvel - SEFIT - Coord. regional 01 - Fiscalização no Pará (25/11 a 07/12/96)

Reconheço que os bois recebem um tratamento muito melhor que os peões. Eu não forneço água limpa porque eles não gostam, eles preferem beber da água do côrrego. Nós devemos manter esses homens ocupados nas fazendas para que eles não se juntem ao Movimento dos Sem Terra." Se uma ONG dessas que defendem direitos humanos entrar nas nossas fazendas nós vamos todos em Lana".

FAZENDA MARINGÁ - COMODORO (MT)

(...) Apesar do insucesso da noite anterior, e da informação que nos. foi passada pela equipe do IBAMA que haviam duas frentes de trabalhos, seguimos até a sede da fazenda onde o Sr. A. D. do V. nos aguardava para apresentar o dito contrato de empreita com Antônio D. Ao nos apresentarmos, o proprietário da fazenda apresentou-nos apenas 6 (seis) carteiras de trabalho de empregados seus da sede, com função de serviços gerais, e pediu-nos desculpas por não apresentar o contrato. Lembrara que era Semana Santa e seria impossível apresentar o contrato. Seguimos rumo à frente de trabalho que não havíamos visitado, agora sem as presenças do proprietário, que dizia ter outras atividades a fazer, e do empreiteiro que teria se deslocado ate a cidade de Vilhena-RO. Já nesta outra frente de trabalhos constatamos todas as irregularidades possíveis referentes à segurança, higiene e saúde, além das trabalhistas. Passamos a obter as informações sobre os maus tratos, intimidação e trabalhador que teria sido amarrado com ordem de espancamento.

Foi encontrado um trabalhador com tuberculose ativa e sob medicação especifica, alojado com mais alguns. Fomos informados da morte de 2 trabalhadores por acidente de trabalho e 2 mortes por doença no período de 27/01 a 04/04/96.

À medida que os trabalhadores iam sendo entrevistados, ia crescendo a confiança entre eles e a manifestação de querer sair da fazenda. Confessaram ter pavor do Sr. Antenor D. e um deles possuía uma edição da revista Veja que abordava a chacina de Corumbiara, na Fazenda Sta. Elina, em Rondônia. Alegavam que haviam contratado determinado valor por um alqueire de mata derrubada, mas estavam sendo obrigados a limpar um alqueirão, exatamente o dobro daquele

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contratado. Nesse dia iniciamos a retirada dos trabalhadores das frentes de serviço para sede da fazenda, abrigando-os sob um galpão ao lado do hangar. Tal operação se tornou dificílima pelos motivos abaixo relacionados: Falta de transporte suficiente e adequado; Intempéries; Acampamentos distantes s de onde nos encontrávamos e em que existiam ainda muitos trabalhadores; Impossibilidade de atingirmos os locais indicados utilizando nossos veículos. Mesmo que utilizássemos um trator, restariam 8 km de caminhada.

A solidariedade entre os trabalhadores se fez gritante. Apareceram voluntários que foram em busca de seus companheiros nos acampamentos mais longínquos.

SEFIT - região 04 - Fiscalização no MT (abril 1996)

FAZENDA MARINGÁ - COMODORO (MT)

Enquanto os trabalhadores iam chegando das frentes de trabalho, a equipe foi providenciando a alimentação junto ao administrador da fazenda. Subdividindo-se, os Agentes da Inspeção pressionaram o "gato" que já a essa altura encontrava-se sob a vigilância da Polícia Federal, a apresentar a lista de preços dos produtos e objetos vendidos aos trabalhadores.

Nos cadernos apreendidos havia apenas a quantidade e sem preços arbitrados, o que aconteceria na hora do acerto final e como é de costume, ninguém teria saldo. À medida que os trabalhadores foram chegando, a revolta por não saber o que teriam a receber foi se tornando perigosa, pois estavam a mais de 2 meses trabalhando e até então não haviam recebido nenhum centavo pelo serviço prestado, com exceção de alguns que teriam recebido no momento da contratação adiantamento, alguns em espécie, outros com suas contas em pensões saldadas pelo "gato". Foi então que os agentes da Inspeção resolveram colocar os preços nos produtos com base num romaneio de vendas apresentado pelo "gato", dai resultando dois extremos: os fiscais do time (sub-gatos) receberiam o maior saldo de sua história e a outra parte dos trabalhadores nada teria a receber, pelo contrário, estava pagando para trabalhar.

SEFIT - região 04 - Fiscalização no MT (abril 1996)

FAZENDA MARINGÁ - COMODORO (MT) - NOTAS RELEVANTES

01) À entrada da fazenda, existe uma placa cuja mensagem é a de repressão violenta em caso de invasão;

02) Em dois momentos, pelo menos, o Sr. A. D. do V. tentou desviar a atenção da fiscalização e da Polícia Federal para a questão do Movimento Sem Terra, alegando que a denúncia só poderia ser do MST;

03) Em conversa telefônica com a coordenação, chegou a afirmar que com a saída

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dos empregados, a fiscalização estaria trabalhando a favor do MST;

04) Embora a Ação Fiscal tenha sido organizada em praticamente 24 horas e não houvesse notícias na imprensa, o fazendeiro já nos esperava e determinava aos empregados que escondessem as moto-serras e armas. Induziu alguns, que confessaram mais tarde, a falar mal do "gato";

05) Antes de chegarmos a fazenda na primeira visita, encontramos uma equipe do IBAMA retornando a Cuiabá, cujas informações que nos repassou não condizeram com o que encontramos. Informou que a situação do crime ecológico não existia e que não havia operação com moto-serras e que nas frentes de trabalho existiam cerca de 80 trabalhadores;

6) Durante nossa permanência na cantina, na primeira noite de trabalho, mesmo com a presença dos Agentes da Polícia Federal, o fazendeiro pressionou a esposa de D. a sabotar o gerador de energia elétrica colocando água no mesmo ou usando qualquer meio para nos deixar no escuro. Apavorada, com medo de ser presa, a Sra. .M. resistiu e num determinado momento o fazendeiro, Sr. A., perdeu a calma e partiu para agressão física, pressionando fortemente a cabeça da senhora. Tal fato só chegou ao nosso conhecimento quando estávamos resgatando os empregados e sem a presença do Sr. A;

07) Em uma das frentes de trabalho, um dos trabalhadores possuía uma edição da revista "Veja" com a reportagem sobre o "massacre de Corumbiara", ocorrido na Fazenda Sta. Elina em Rondônia;

08) As medidas que dependiam do empregador para a retirada dos empregados se fez lenta e com entraves, chegando inclusive a declarar que só retiraria em tomo de 20 empregados para o que seu representante teria autorização;

(9) Na madrugada de 04/04, houve esvaziamento, com a retirada de trabalhadores da Fazenda, por estarem sem registro;

10) Observamos que na sede ou imediações da fazenda, não há sequer uma horta para subsistência dos empregados, muito menos qualquer tipo de outra cultura. A alimentação dos trabalhadores consiste em arroz, feijão e carne, a qual é fornecida aos sábados. 11 ) Grande parte dos empregados é constituída dos chamados "peões-de-trecho", aqueles que já perderam o sentido da cidadania, não possuem referências da história passada e o futuro será como e o presente, de "pensão" em "pensão", a mercê de algum "gato" que vá "comprá-los" . Muitos não possuem, sequer, qualquer documento de identificação (CTPS, carteira de identidade, etc.);

12) Durante a nossa permanência em Comodoro, já com os empregados resgatados e sob a nossa responsabilidade fomos informados de que pistoleiros do fazendeiro

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estavam rondando, além do Centro Comunitário, à Casa das Irmãs;

13) Foi de fundamental importância a colaboração do Prefeito Municipal de Comodoro. Ao solicitarmos veículos e abrigo, não houve sequer o questionamento de que era feriado. Tomou providências imediatas e a contento;

14) Buscamos o apoio da Casa das irmãs e ali ficou sendo a nossa base de comunicação telefônica. Foi outro apoio importantíssimo sem o qual teríamos corrido grande risco;

15) Durante conversa telefônica entre a coordenadora e o fazendeiro, solicitada pelo mesmo, ocorrida no guichê da empresa de ônibus. E ele deu a entender que já estava pesquisando sobre a vida pregressa dela, dizendo que sabia que ela morara anteriormente em cidade-tal. Tentou saber qual o endereço atual e a mesma respondeu-lhe não ter no momento endereço fixo, por força da função. Fez questão de enfatizar que com o esvaziamento da fazenda, o MST invadiria.

SEFIT - região 04 - Fiscalização no MT (abril 1996)

Irregularidades

1. Trabalhadores sem registro (sanada com a assinatura das CTPS); 2. Salários em atraso, (sanada com o pagamento durante a fiscalização); 3. Trabalho de menor de 14 anos; 4. Omissão do socorro: 7 pessoas contraíram malária no local sendo que um

dos trabalhadores foi encontrado em crise, sendo socorrido pela nossa equipe e levado ao Hospital em Xinguara.

5. Trabalhadores acidentados também foram encontrados no local. 6. Não fornecimento de EPI. Apenas a bota era fornecida a alguns, para

posterior desconto; 7. Alojamentos cobertos de plástico, sem pisos e sem paredes; 8. Comprometimento total do salário através da alimentação fornecida no

sistema de barracão, com preços superfaturados, gerando o endividamento crescente, conforme podemos comprovar através dos cadernos de anotação das dívidas dos trabalhadores, (cópia anexa), como também pela obrigação de comprar no barracão por imposição do "gato", pelo isolamento do local de trabalho e pela distância existente entre o desmatamento e as cidades ou povoados mais próximos.

SEFIT - região 01 - Fiscalização no PARÁ (23/08 a 02/09/96)

Fazenda Rio V.(PA)

Para fiscalizar a Fazenda Rio V. tivemos algumas dificuldades, devido principalmente a ausência de um informante que nos levasse aos alojamentos ou até o local onde havia trabalhadores no roço de juquira. Encontramos um número reduzido de trabalhadores que desempenhar atividade no campo propriamente

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dito, ou seja, no roço, na fabricação de cercas, etc., entretanto tal dificuldade não impediu a realização do trabalho, tendo em vista que a Fazenda possui 158 empregados permanentes. Cumpre ressaltar que as irregularidades constatadas pela equipe na Fazenda Rio V e posteriormente C., são idênticos aos das demais fazendas da região, ou seja, barracões cobertos de plásticos, sem piso e sem paredes, não fornecimento de água potável, falta de assinatura de CTPS, trabalho da criança e do adolescente, apesar de serem as Fazendas do Grupo Q., consideradas de grande porte.

SEFIT - região 01 - Fiscalização no PARÁ (23/08 a 02/09/96)

DESTILARIA GAMELEIRA (MT)

Encontramos ali total desrespeito às normas de segurança, saúde e higiene no trabalho. Segundo declarações dos trabalhadores cortadores de cana as condições de trabalho são péssimas. Constatamos que a comida servida no jantar, chega ao alojamento já fermentada, para isso estivemos presentes ao local, assistindo (...). No corte de cana, encontramos vários trabalhadores com lesões (cortes significativos declarando que não procuravam o Posto da Destilaria porque ali só existe uma enfermeira que exerce as funções de Médica. cujos atestados" para licença não são respeitados. Resumindo os empregados não recebem os dias parados por acidente, Não é fornecido Equipamento de Proteção individual, há jornada excessiva, tanto no corte quanto na indústria. Outra constatação durante a nossa permanência durante a noite, observando a vida nos alojamentos, foi a de vigilância armada. Para tal. acionamos o Delegado Regional de Polícia de Confresa, que apreendeu a arma e proibiu que o fato se repetisse. A Auxiliar de Enfermagem Maria T. A. de P. supre a falta de médico, prescreve medicação, faz suturas, assina Declarações (tipo Atestado Médico) atendendo, inclusive acidentes de trabalho, problemas odontológicos, otorrinolaringológicos, etc .. Termos de Declaração apreendidos e acostados ao presente. Tivemos o relato dos trabalhadores de que é prática dos mesmos, trabalhar doentes, pela falta de assistência da empregadora; e que durante esta safra o empregado Cícero A. da S.- CTPS 67893 - 00032 - PE, CPF - 800746694-00 oriundo de Amaraji - PE, residente à Vila Nossa Senhora de Fátima, adoeceu com crises de dores abdominais fortes, febre e não conseguia a devida assistência. Segundo seus companheiros, ia ao corte diariamente e muitas vezes caia, contorcendo-se de dores. Não conseguindo mais trabalhar, foi obrigado pela administração da empresa a solicitar dispensa, e retornar a origem, onde faleceu logo ao chegar. A empregadora é reincidente e deverá ser acompanhada com rigor na próxima safra.[grifo nosso] Grupo especial de fiscalização móvel - SEFIT - Coord. regional 04 - Agosto de 1996.”

4. A Lei de Dezembro de 1998 Em decorrência da grave repercussão do problema, o Brasil aprovou a Lei 9.777/1998, que tenta impor limites penais à ação dos empregadores inescrupulosos.

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LEI Nº 9.777, DE 29 DE DEZEMBRO DE 1998.

Altera os arts. 132, 203 e 207 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Os arts. 132, 203 e 207 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passam a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 132. .......................................................................

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais."

"Art. 203. .........................................................................

Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência." (NR)

"§ 1º Na mesma pena incorre quem:

I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental."

"Art. 207. .....................................................................

Pena - detenção de um a três anos, e multa."(NR)

"§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem.

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§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental."

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 29 de dezembro de 1998; 177o da Independência e 110

o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

5. Repercussão Internacional O prejuízo é da humanidade. Mas é particular do Brasil e assume proporções internacionais. Há denúncias feitas pela Organização Internacional do Trabalho. Outras na imprensa internacional. Ilustra-se com a reportagem germânica do Dreikönigsaktion, denominada Nein zur Sklavenarbeit, que pode ser mal traduzida por “Não à Escravidão”. O relatório de Alisson Sutton, ilustrada representante da Organização Internacional do Trabalho aponta uma atomização de competências, divididas entre o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Ministério Público Federal; tudo isso implica em dispersão de ações e ausência de um trabalho sinérgico que talvez viesse a ser solucionado com a ampliação da competência jurisdicional trabalhista para abarcar todos os contornos, inclusos os penais, da relação jurídica trabalhista, assim entendida qualquer forma de labor.

6. Prêmio e Dinheiro aos Infratores Após passada a fase mais aguda das denúncias, o Governo Brasileiro não apenas arrefece o tom fiscalizatório do trabalho escravo, mas, pior do que isso, há denúncias de que infratores, ao invés de punidos, são premiados, através de desapropriações remuneradas.

“CPT protesta diante da "premiação" dada a fazendeiro que escraviza trabalhadores

A operação da fiscalização realizada pelo grupo móvel do Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal na Fazenda Agropecuária Maciel II, localizada no município de São Félix do Xingu, sul do Pará, entre os dias 18 e 28 de março/99, concluiu que 175 trabalhadores (número exato de trabalhadores que receberam as carteiras de trabalho expedidas pelo Grupo de Fiscalização) eram mantidos em regime de escravidão naquela fazenda, sob as mais perversas condições de humilhação, exploração e violência.

Há cerca de um ano e meio atrás numa fiscalização realizada pelo mesmo Grupo de Fiscais flagrou-se a existência de trabalho escravo na Fazenda Flor da Mata, localizada a menos de 100 Km da

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na Fazenda Flor da Mata, localizada a menos de 100 Km da Agropecuária Maciel II, de onde foram resgatados 220 trabalhadores. Na época do flagrante na Fazenda flor da Mata o governo saiu a campo para demonstrar sua preocupação com o quadro de barbárie impetrado contra os trabalhadores naquela fazenda. Numa espetacular operação de marketing o Ministro da Reforma Agrária Raul Jungmann declarava à imprensa que a Fazenda Flor da Mata seria confiscada e destinada para reforma agrária e que situações como aquela seriam mais toleradas pelo governo. Outro pronunciamento veio do então Ministro do Trabalho, Paulo Paiva, registradas pelo jornal Folha de São Paulo na época. Segundo o Ministro, "por não se tratar de desapropriação o Governo não teria que pagar pela terra ou pelas benfeitorias da propriedade", confiscando o imóvel para fins de Reforma Agrária, punindo com esta medida o proprietário. Entretanto, nada disso foi feito. Pelo contrário. A fazenda foi desapropriada e o fazendeiro só não recebeu, ainda, a vultuosa soma de R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais) na negociação devido às denúncias de superfaturamento no processo de desapropriação da área pelo Movimento Sindical do Pará e pela CPT.

Com a fiscalização na fazenda Agropecuária Maciel II mais uma vez a sociedade brasileira e o governo tomaram conhecimento deste perverso sistema de exploração a que estão submetidos centenas e até milhares de trabalhadores. E a sociedade brasileira precisa saber o que será feito diante deste caso.

O governador do estado do Pará, Almir Gabriel, já se pronunciou afirmando que é contra o trabalho escravo e que a fazenda Agropecuária Maciel II deva ser desapropriada para fins de Reforma Agrária. (O LIBERAL,) Há rumores de que o Ministro da Reforma Agrária, Dr Raul Jungmann, também se pronunciou sobre a desapropriação da fazenda, alegando que com esta medida irá coibir a prática a prática de trabalho escravo no Brasil.

A CPT considera que com esta medida do governo fica patente que não há nenhum risco para os fazendeiros que submetem os trabalhadores ao regime de escravidão. Pelo contrário, continua sendo um negócio altamente lucrativo, podendo o fazendeiro, inclusive, receber uma premiação por esta prática, na medida em que suas terras são desapropriadas para fins de reforma agrária, o que em si é um bom negócio e o quadro de violência e super exploração de centenas e até milhares de trabalhadores espalhados em inúmeras fazendas deste país, principalmente na região amazônica, se mantém sem que nada seja feito para alterar este quadro.

A CPT considera que se quer, de fato, erradicar o trabalho escravo no Brasil é preciso uma ação mais rigorosa por parte do governo. Caso

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contrário, em nosso país, os direitos dos trabalhadores se constituirão em letra morta. A questão dos Direitos Humanos não passará de mero discurso e os direitos mais elementares dos trabalhadores continuarão sendo abertamente desrespeitados enquanto estas práticas criminosas ficam absolutamente impunes. E o que é pior, muitas vezes os criminosos, a exemplo do que ocorreu com os proprietários da Fazenda Flor da Mata, e que poderá ocorrer com o proprietário da agropecuária Maciel II, recebem até "premiações". Nesse sentido, a CPT entende que a solução passa pelo confisco imediato da fazenda onde se confirmar a existência de trabalho escravo e a punição rigorosa dos fazendeiros. Caso contrário, continuaremos a assistir, ano após anos, a este perverso sistema de exploração e de morte de centenas de homens vítima destes crimes.

A CPT espera que o governo, desta vez, faça justiça. Neste caso, confiscando, imediatamente, a Fazenda Agropecuária Maciel II.”

Tudo isso porque há uma Portaria do Ministério do Trabalho indicando para Reforma Agrária as terras em que há trabalho escravo. Entretanto, a indenização não é vedada, o que promove, caso queira o proprietário alienar sua fazenda, o trabalho escravo devidamente premiado com a indenização. A Portaria é silente sobre a não indenização e assim está redigida:

Portaria nº 101, de 12 de janeiro de 1996

Dispõe sobre o encaminhamento de relatório de fiscalização do trabalho rural ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, para os fins da Lei Complementar nº 76, de 06 de junho de 1993.

O Ministro de Estado do Trabalho, no uso de sua atribuições legais, e

Considerando que, em muitas propriedades rurais, os trabalhadores têm sido submetidos, diuturnamente, a forma degradante de trabalho, desrespeitando-se os direitos trabalhistas básicos;

Considerando que as disposições que regulam as relações do trabalho têm sido reiteradamente infringidas nas propriedades rurais, apesar da ação da fiscalização do trabalho, descaracterizando-se função social da propriedade;

Considerando que, de acordo com o art. 184, caput, da Carta Magna, compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social;

Considerando que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, os requisitos de aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores, conforme o art. 186 da Constituição Federal;

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Considerando que, de acordo com a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, art. 9º, § 4º, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais;

Considerando que, nos termos da referida Lei, a exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel;

Considerando que, nos termos do art. 2º da Lei nº 8;629/93, a propriedade rural que não cumprir a função social é passível de desapropriação, respeitados os dispositivos constitucionais;

Considerando que a ação da desapropriação é proposta pelo órgão federal executor da reforma agrária, resolve:

Art. 1º O Ministério do Trabalho ao constatar, por via da Fiscalização, que em função dos dispositivos violados, os

trabalhadores, naquela propriedade, são submetidos a forma degradantes de trabalho, desvirtuando a função social da propriedade, encaminhará relatório circunstanciado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a fim de subsidiar proposta de ação de desapropriação, de acordo com o art. 2º § 1º, da Lei Complementar nº 76, de 06 de junho de 1993.

Art. 2º Para os fins previstos no artigo 1º desta Portaria, a Secretaria de Fiscalização do Trabalho - SEFIT ou a Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho - SSST, à vista dos relatórios expedidos pela fiscalização móvel, verificará a reincidência do descumprimento das normas trabalhistas básicas e as de Segurança e Saúde e emitirá relatório circunstanciado.

Parágrafo único - O relatório será instruído com cópias autênticas dos autos de infração lavrados e cópias das decisões proferidas na forma do parágrafo único do art. 635 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, bem como cópias das notificações e orientações emitidas pelo agente da inspeção do trabalho.

Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

Paulo Paiva

Para tentar corrigir tal falha, gritante, o Senador Ademir Andrade apresentou Proposta de Emenda à Constituição, número 57/99, que dá nova redação ao art. 243 da Constituição Federal, sobre a destinação de área de culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou de exploração de trabalho escravo. A matéria tramita com o Parecer 755/01-CCJ e está aprovada desde 17 de outubro de 2001, após reunião deliberativa da Subseção de Coordenação Legislativa do Senado. Mas, como nos adverte Frei Betto, no artigo de inauguração dos presentes autos, o Ministério do Trabalho acaba de reduzir até mesmo a pena administrativa pecuniária imposta sobre os exploradores de mão de obra escrava. Tudo através de uma interpretação de que, quando da violação dos direitos dos trabalhadores rurais, são aplicáveis penalidades da antiga Lei 5.889/73, e não as regras Consolidadas, mesmo que estejam hoje urbanos e rurais equiparados pela Constituição Federal. O absurdo da situação está retratado naquela denúncia, que revela que ao empregador rural que se vale de mão de obra escrava, se primário, sua multa não pode superar

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R$720,00 (setecentos e vinte reais). Eis o preço da manutenção da escravatura no Brasil. Menos oneroso que nos tempos em que o país se sustentava como o último dos ocidentais a manter a escravidão. E se renunciar ao direito de recorrer, pode o proprietário das terras não ter qualquer sanção administrativa além de apenas R$360,00 (trezentos e sessenta reais) pagos, pois pode valer-se da redução de 50% (cinqüenta por cento) das penalidades, oferecida aos que renunciam ao recurso.

7. Direitos Humanos Violados A forma com que se estrutura o combate ao trabalho escravo no Brasil faz com que haja diversas violações de textos fundamentais. Estão violados os artigos 18 da Declaração dos Direitos Fundamentais do Homem e do Cidadão, de 1793; 4º e 23 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, pelos quais...

“Art. 18. Todos os homens podem vender os seus serviços, seu tempo, mas não podem vender sua pessoa e nem ser vendidos. Sua pessoa não é uma propriedade alienável. A lei não reconhece nenhuma domesticidade; o que pode haver é apenas um contrato de serviços e de reconhecimento entre o homem que trabalha e o que o emprega.” “Art. 4º. Ninguém será obrigado à escravidão nem à servidão; a escravidão e a servidão são proibidos sob todas as suas formas.” “Art. 23. Toda pessoa tem direito ao trabalho; à livre escolha de seu trabalho, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego.”

Não há, em suma, como admitir tal situação em nosso território nacional. Somos exemplares, quando se trata em parâmetro negativo de tratamento social e aos trabalhadores em geral.

8. CONCLUSÃO Em decorrência do exposto, concluímos por indicar ao Egrégio Conselho Federal as seguintes proposições e providências:

1. Oficiar ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados, inclusive para as Comissões específicas, iniciando por todos os membros da Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara dos Deputados, relacionados em anexo, onde a Proposta hoje se encontra, propugnando pela urgência na aprovação da PEC 0438/2001, de autoria do Senador Ademir Andrade;

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2. Oficiar ao Ministério do Trabalho e Emprego, solicitando explicações acerca da enorme redução, não apenas de valor, mas também da quantidade de autuações, na aplicação de multas aos que se valem de trabalho escravo, bem como informações acerca das eventuais aplicações da lei que criminaliza a prática da exploração do trabalho escravo e das ações executivas que intentam aplicar a nova norma;

3. Solicitar ao Ministério do Trabalho e Emprego a manutenção e intensificação dos esforços de fiscalização e prevenção do trabalho escravo;

4. Oficiar ao Ministério Público do Trabalho, à Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, ao Ministério Público Federal, à Fundação Pedro Jorge, solicitando providências no sentido de coibir a prática do trabalho escravo;

5. Oficiar ao Ministério da Justiça e aos Secretários de Estado de Justiça dos Estados-Membros abarcados pelas denúncias, solicitando providências no sentido da eliminação dessa prática criminosa no país;

6. Oficiar à Organização Internacional do Trabalho, dando-lhe ciência do contido no presente voto;

7. Dar ciência à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil do presente voto, louvando-lhe os esforços, em especial da Pastoral da Terra, no sentido de erradicar o trabalho forçado ou escravo;

8. Propugnar pela concentração da competência judicial, para abranger todos os aspectos decorrentes do trabalho escravo, inclusive de cunho penal, evitando-se a atomização do combate à exploração do trabalho humano em diversas instituições e competências.

9. Manifestar-se publicamente sobre a questão, inclusive com a eventual promoção de um seminário específico, procurando atrair a atenção da comunidade internacional, da mídia e dos governantes para que todos nos empenhemos na solução dos males que a escravidão impõe.

Brasília, Distrito Federal, 12 de novembro de 2001. Comissão Nacional de Direitos Sociais

Luís Carlos Moro Relator

Por fim, gostaria de acrescentar uma liminar proferida pelo Juiz Jorge Antonio

Ramos Vieira:

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9.3 Fotos:

As fotos que serão exibidas são registros obtidos durante uma fiscalização feita

no Oeste da Bahia, onde se detectou prática de trabalho escravo, ilustrando, assim, a realidade das

precárias condições de vida a que são submetidos os trabalhadores rurais:

Acima, modo de preparo de alimento no local de trabalho dos empregados escravizados.

Nota-se a falta de higiene e os precários equipamentos utilizados para fazer a comida. Vale

lembrar que todo o material usado por eles, mesmo sendo de baixa qualidade, são vendidos

a preços acima do normal e anotados no caderno do “gato”.

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Local de depósito dos alimentos e produtos de higiene adquiridos a preços exorbitantes, em

que os nomes dos trabalhadores que adquirem tais produtos, ficam anotados na caderneta

do “gato”, juntamente com os respectivos valores, caracterizando, assim, a dívida que

escraviza nos dias atuais.

Muitos dos alimentos, remédios e produtos de limpeza estão vencidos, mas mesmo assim são

vendidos e cobrados dos trabalhadores.

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Exploração do serviço de pessoas em uma carvoaria. Nota-se que estão trabalhando sem

qualquer proteção ou segurança, sendo que, muitas vezes, até a fabricação do carvão é

ilegal, pois ocorre clandestinamente, uma vez que, para a produção, precisam desmatar

áreas de preservação, cometendo, o empregador, não só o crime de trabalho escravo, mas

uma serie de crimes e contravenções ambientais.

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Alojamento: O local onde dormem os explorados não tem segurança alguma, ficando os

trabalhadores a mercê das condições climáticas e riscos oferecidos pela própria natureza.

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CONCLUSÃO:

Ao realizar esta pesquisa, pude chegar a uma idéia do quanto os valores morais

e o respeito à dignidade do homem estão banalizados em nossa sociedade, nos dias atuais. A

lógica que melhor explica esse fato é a de que o modo e produção capitalista e a ambição por

mais poder e dinheiro, fazem com que pessoas de uma classe social mais elevada, busquem, na

ignorância dos menos favorecidos econômica e socialmente, uma fonte a mais de lucro. Por isso,

utilizam o trabalho escravo para baratear o custo de sua produção, reduzindo pessoas a condições

animalescas, sendo que, nas grandes fazendas, os animais, o plantio e a produção são mais bem

tratados que os próprios trabalhadores.

Concordo com o empenho do governo em reprimir a escravidão por dívida,

contudo, necessita-se de uma maior intervenção, de um maior apoio e mais interesse por parte do

Estado, uma vez que, a impunidade (penal, civil ou trabalhista), a meu ver, é a maior vilã nessa

história, juntamente com o capitalismo. Entretanto, a aplicação da sanção penal deve ser imposta

apenas como forma de prevenção, uma vez que o que se necessita, realmente, além das multas,

confiscos e prisões, é política social efetiva que instrua a população e dê a esta a consciência de

seus deveres e direitos, resgatando, dessa forma, a dignidade perdida por muitos brasileiros que,

por viverem em completa miséria, acabam aceitando a submissão e a exploração por parte dos

ricos deste país. Não podemos dizer, no entanto, que, no lugar da impunidade e do capitalismo, a

grande vilã é a falta de políticas sociais governamentais porque, mesmo que o Estado atuasse de

forma justa e adequada para com os cidadãos, a ambição imposta pelo mundo capitalista faria

com que pessoas praticassem o crime de trabalho escravo, mesmo que para isso houvesse a

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necessidade de se criar uma nova forma de exploração, contudo, diferente da que conhecemos

atualmente.

Cabe ressaltar que não sou adepta da aplicação, em grande escala, do sistema

penal, em virtude do estigma deixado por este quando se impõe sobre alguma pessoa. Mas em

certos casos, quando o crime continua ocorrendo desenfreadamente, pela existência da

impunidade, o sistema penal deve ser utilizado, fazendo-se mais rigoroso em certas situações,

para que haja, pelo menos, um meio de prevenção do crime, isso porque se nada afetar a

liberdade e a moral (se é que existe) do infrator perante a sociedade, a prática de trabalho escravo

persistirá, uma vez que, para o fazendeiro, vale a pena correr o risco de delinqüir porque, caso

sejam flagrados e denunciados (o que nem sempre ocorre), somente pagarão os direitos dos

trabalhadores e, no máximo uma indenização, de forma que a sanção penal não será aplicada

porque os processos acabam sendo arquivados por prescrição, falta de testemunhas, acordos com

autoridades locais etc. Quando há condenação, esta não surte muito efeito, pois a pena acaba

sendo convertida em prestação de serviços para a sociedade.

Claro que as normas penais não resolverão sozinhas o problema da exploração

do trabalho humano no meio rural, mas estando diante de bens jurídicos tidos como fundamentais

pela nossa Constituição Federal como, por exemplo, a “dignidade da pessoa humana” e os

“valores sociais do trabalho”, que dão fundamento ao Estado Democrático de Direito, a aplicação

da tutela penal mais rígida passa a ser aceitável e legitimada237.

237 COSTA, Flávio Dino de Castro. Combate ao Trabalho Forçado no Brasil: Aspectos Jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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A federalização da competência para julgar tais crimes também é de grande

importância no combate ao trabalho escravo, porque, além de ser assim estabelecida a

competência, pela Constituição Federal, evita-se, ao mesmo tempo, que com a competência da

justiça Estadual, empregadores fiquem impunes em virtude de qualquer vínculo que possa existir

entre órgãos estatais e fazendeiro, pois é evidente que são vários os casos de apoio e

reciprocidade política e financeira nas regiões. Além do mais, a complexidade do fato de se

escravizar uma pessoa exige a tutela Federal, vez que o crime envolve uma série de outros delitos

e contravenções penais, como, por exemplo, sonegação previdenciária, degradação ambiental,

exploração humana, desrespeito à dignidade do cidadão etc. Por isso, em caso de trabalho

escravo, a Justiça Federal deverá se incumbir de resolver o problema, não importando se a ofensa

ocorra de forma coletiva ou individual, pois a União, expressamente, se comprometeu a

resguardar os direitos e a dignidade do cidadão, assim como tratar dos demais delitos conectados

com a escravidão.

Mesmo com todos os resgates de trabalhadores ocorridos ao longo do tempo,

não se pode dizer que o número de escravizados tenha diminuído, pois a incidência de trabalho

escravo não diminuiu, uma vez que os proprietários rurais preferem delinqüir, vez que o crime

nem sempre é detectado nas fazendas, ficando, assim, ilesos os infratores. Tomando por base o

fato de que nem sempre se verifica a exploração nas fazendas, conclui-se que a estimativa da

quantidade de trabalhadores escravizados não corresponde à realidade, pois o cálculo é feito

tendo-se por base o número de trabalhadores libertos. Assim, é correto afirmar que, em virtude da

distância das fazendas, da falta de manifestação dos explorados e da violência, o número de

escravos do Brasil contemporâneo é muito maior do que se pensa atualmente.

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O fato da sociedade não enxergar o rico fazendeiro como um delinqüente

também contribui, fortemente, para que o crime passe despercebido e os criminosos impunes. O

senso comum estereotipa os infratores de forma que é mais fácil pensar que os criminosos são os

escravizados e não os fazendeiros. Assim, o sistema penal, corroborado pelo senso comum, ajuda

de certa forma na persistência do crime, uma vez que sua atividade de selecionar e estigmatizar

pessoas, tem como alvo somente os pobres e excluídos que se enquadram no citado estereótipo

estabelecido pela sociedade, deixando de punir grandes e poderosos criminosos sendo, assim, um

empecilho na construção da cidadania.

Por isso, concluo que a prática escravocrata, além de ser egoísta – pois explora

os seres humanos, aproveitando-se de suas péssimas condições de vida, visando obter maior lucro

na produção em benefício próprio – é, também, arrogante, pois o fazendeiro acha que nada irá

acontecer contra ele em virtude do seu dinheiro e de suas influências. Na verdade, o criminoso,

mesmo sendo uma pessoa instruída, acaba transparecendo ignorância, uma vez que, se cumprisse

a lei trabalhista e oferecesse condições dignas de trabalho, ele poderia se isentar de correr o risco

de ser acusado de trabalho escravo, e poderia, também, lucrar com a contratação de um número

menor de trabalhadores, pois se sabe que um trabalhador que tem seus direitos observados e

cumpridos, de forma que exerça seu serviço num local apropriado e seguro, produz com mais

eficiência do que três pessoas submetidas a situações desumanas.

Assim, pelos motivos ditos acima, para concluir este tópico final, cabem

algumas palavras que, a meu ver, são a síntese do que seria um combate sério ao trabalho

escravo:

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“Intensificação da repressão; integração melhor do grupo móvel; fim da impunidade; sanções econômicas pesadas aos escravocratas; confisco da terra; corte de financiamento; multas pesadas e indenizações por danos; determinação da competência Federal; rito acelerado e, sobretudo, geração de emprego e renda, reforma agrária e qualificação nas regiões de origem dos trabalhadores”238.

238 PLASSAT, Frei Xavier. Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Observatório social em revista. Santa Catarina: Junho, nº 6, p 09.

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REFERÊNCIA EM LISTA:

ALMEIDA, Fernando Barcelos de. Teoria geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1996.

ANDRADE, Vera Regina de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

ANDRADE, Vera Regina de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

CAMARGO, Luis – Ministério Público do Trabalho. Definição de trabalho escravo – Distinção entre trabalho escravo, forçado e degradante. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

COSTA, Flávio Dino de Castro e. O Combate ao trabalho forçado no Brasil: Aspectos jurídicos. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

COSTA, Wagner Veneziani; Valter Roberto Augusto; Marcelo Aquaroli. Novo Exame de Ordem. São Paulo: Madras, 2005.

FONER, Eric. Nada além da liberdade: A emancipação e seu legado. Tradução de Luiz Paulo Rouanet; revisão técnica de M. Monteiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília, CNpq, 1988.

FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, JAN. 2003, Porto Alegre (RS). Anais da oficina de trabalho escravo: uma chaga aberta. Brasília: OIT, 2003.

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1980.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC, 1997.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA – SEDH -; MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO – SIT -. O combate ao trabalho forçado no Brasil. Brasília, 2002. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

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MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Secretaria de Inspeção do Trabalho. O trabalho escravo e as políticas governamentais para sua erradicação. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: Teoria geral, comentários aos artigos 1º a 5º da Constituição Federal do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 1988.

MORO, Luiz Carlos – relator do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu voto dado em relação ao processo CNDS nº 13/2001. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

NABUCO, Joaquim. A escravidão. Compilação, organização e apresentação de Leonardo Dantas Silva; prefácio de Emanuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

OBSERVATÓRIO SOCIAL EM REVISTA. Trabalho Escravo no Brasil: o drama dos carvoeiros, a responsabilidade das siderúrgicas, a campanha para a erradicação. Junho, 2004, nº 6.

ROBERT, Cíntia; Danielle Marcial. Direitos humanos: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.

SECRETARIA DE ESTADO DOS DIREITOS HUMANOS. Organização Internacional do Trabalho. Aperfeiçoamento legislativo para o combate ao trabalho escravo – oficina de trabalho – Brasília, 2002. Documento enviado por Rachel Maria Andrade Cunha, assessora da SEDH.

REFERÊNCIA EM LISTA DE SITES DA INTERNET:

www.dourados.ms.gov.br

www.infojur.com.br

www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/index.php

www.pgr.mpf.gov.br

www.pgt.mpt.gov.br

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ANEXOS:

I DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS:

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III)

da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família

humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz

no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos

bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os

homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e

da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para

que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos

humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos

homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de

vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com

as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a

observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mis alta

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importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

A Assembléia Geral proclama

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por

todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da

sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação,

por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de

caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância

universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos

dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo I

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e

consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo II

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta

Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião

política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra

condição.

Artigo III

Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão

proibidos em todas as suas formas.

Artigo V

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI

Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.

Artigo VII

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.

Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente

Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo VIII

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Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os

atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela

lei.

Artigo IX

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo X

Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um

tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de

qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo XI

1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua

culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham

sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam

delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que

aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo XII

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua

correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da

lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XIII

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada

Estado.

2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo XIV

1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros

países.

2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por

crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XV

1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.

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2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de

nacionalidade.

Artigo XVI

1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retrição de raça, nacionalidade ou

religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em

relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

Artigo XVII

1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo XVIII

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a

liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo

ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em

particular.

Artigo XIX

Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de,

sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por

quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo XX

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo XXI

1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, diretamente ou por

intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em

eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente

que assegure a liberdade de voto.

Artigo XXII

Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo

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157

esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de

cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao

livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo XXIII

1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e

favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.

3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure,

assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se

acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus

interesses.

Artigo XXIV

Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e

férias periódicas remuneradas.

Artigo XXV

1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e

bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais

indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice

ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças

nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI

1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus

elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-

profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e

do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A

instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos

raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da

paz.

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3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus

filhos.

Artigo XXVII

1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as

artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.

2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer

produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Artigo XVIII

Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades

estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo XXIV

1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de

sua personalidade é possível.

2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações

determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e

respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da

ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos

propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a

qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer

ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

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II CONVEBÇÃO Nº 122 SOBRE A POLÍTICA DE EMPREGO DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO:

Convenção sobre a Política de Emprego

nº 122 de 09 de julho de 1964.

A Convenção entrou em vigor no âmbito internacional em 17/07/66. No Brasil, aprovada pelo

Decreto Legislativo 61, de 30/11/66, foi ratificada em 24/03/69 (Decreto Legislativo 66.499,

27/04/70)

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho,

Convocada em Genebra pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do

Trabalho, e tendo-se reunido ali a 17 de junho de 1964, em sua 48a sessão:

Considerando que a Declaração da Filadélfia reconhece a obrigação solene da Organização

Internacional do Trabalho de incentivar entre as nações do mundo programas que

procurem alcançar o pleno emprego e a elevação dos níveis de vida e que o Preâmbulo da

Organização prevê a luta contra o desemprego e a garantia de um salário que assegure as

condições de vida adequada:

Considerando outrossim que nos termos da Declaração da Filadélfia caba à Organização

Internacional do Trabalho examinar e considerar as repercussões das políticas econômicas e

financeiras sobra política de emprego à luz do objetivo fundamental, segundo o qual "todos

os seres humanos, qualquer que seja sua raça, credo ou sexo, tem o direito de assegurar o

seu bem-estar material e o seu desenvolvimentos espiritual dentro da liberdade e da

dignidade da tranqüilidade econômica e com as mesmas possibilidades".

Considerando que a Declaração Universal Dos Direitos do homem prevê que toda pessoa

tem direito a trabalhar, à livre escolha de emprego, e condições justas e favoráveis de

trabalho e à proteção contra o desemprego.

Tendo em conta os termos das convenções e recomendações internacionais do trabalho

existentes que estão diretamente relacionadas com a política do emprego e em particular a

convenção e a recomendação sobre o serviço do emprego em 1949, a recomendação sobre a

formação profissional em 1962, assim como a convenção e a recomendação concernente à

discriminação (emprego e profissão), em 1958.

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Considerando que estes instrumentos deveriam estar localizados dentro de um contexto

mais largo de um programa internacional visando assegurar a expansão econômica

fundada sobre o pleno emprego, produtivo e livremente escolhido.

Depois de haver decidido que estas proposições à política do emprego que são as

compreendidas no oitavo item da agenda da sessão.

Depois de haver decidido que estas proposições tomariam a forma de uma convenção

internacional.

Adota neste dia 9 de julho de 1964,a convenção seguinte, que será denominada "

CONVENÇÃO SOBRE A POLÍTICA DO EMPREGO

Artigo 1º

§1. Com o objetivo de estimular o crescimento e o desenvolvimento econômico, de elevar os

níveis de vida, de atender às necessidades de mão-de-obra e de resolver o problema do

desemprego e do subemprego, todo membro formulará e aplicará, como um objetivo

essencial, uma política ativa visando promover o pleno emprego, produtivo e livremente

escolhido.

§2. Essa política deverá procurar garantir:

a) Que haja trabalho para todas as pessoas disponíveis em busca de trabalho;

b) Que este trabalho seja o mais produtivo possível.

c) Que haja livre escolha de emprego e que cada trabalhador tenha todas as possibilidades

de adquirir as qualificações necessárias para ocupar um emprego que convier e de utilizar,

neste emprego, suas qualificações, assim como seus dons, qualquer que seja sua raça, cor,

sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social.

§3. Essa política deverá levar em conta o estado e o nível de desenvolvimento econômico

assim como a relação entre os objetivos de emprego, e os outros objetivos econômicos e

sociais, e será aplicada através de métodos adaptados às condições e usos nacionais.

Artigo 2º

Todo membro deverá, através de métodos adaptados às condições do país e na medida em

que estas o permitirem:

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a) Determinar e rever regularmente, nos moldes de uma política econômica e social

coordenada, as medidas a adotar com o fim de alcançar os objetivos enunciados no "art.

1º".

b) Tomar as disposições que possam ser necessárias à aplicação destas medidas, inclusive

quando for o caso, a elaboração de programas.

Artigo 3º

Na aplicação da presente convenção, os representantes dos centros interessados nas

medidas a tomar, e em particular os representantes dos empregadores e dos trabalhadores,

deverão ser consultados a respeito das políticas de emprego com o objetivo d elevar em

conta plenamente sua experiência e opinião, e assegurar sua total cooperação para

formular e obter apoio para tal política.

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III CONVENÇÃO SOBRE A ABOLIÇÃO DO TRABALHO FORÇADO DA ORGANIZAÇAO INTERNACIONAL DO TRABALHO:

Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado (1957)

Adotada pela conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua 40a sessão, em 25 de junho de 1957.

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, convocada em Genebra pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, e tendo-se reunido a 5 de junho de 1957, em sua quadragésima sessão;

após ter examinado a questão do trabalho forçado, que constitui o quarto ponto da ordem do dia da sessão;

Após ter tomado conhecimento das disposições da Convenção sobre o Trabalho Forçado, 1930;

Após ter verificado que a Convenção de 1926, relativa à escravidão, prevê que medidas úteis devem ser tomadas para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições análogas à escravidão, e que a convenção suplementar de 1956 relativa à abolição da escravidão visa a obter a abolição completa da escravidão por dívidas e da servidão;

Após ter verificado que a convenção sobre a Proteção do Salário, 1949, declara que o salário será pago em intervalos regulares e condena os modos de pagamento que privam o trabalhador de toda possibilidade real de deixar seu emprego;

Após ter decidido adotar outras proposições relativas à abolição de certas formas de trabalho forçado ou obrigatório que constituem uma violação dos direitos do homem, da forma em que foram previstos pala Carta das Nações Unidas e enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem;

Após ter decidido que essas proposições tomariam a forma de uma convenção internacional, adota, neste vigésimo quinto dia de junho de mil novecentos e cinqüenta e sete, a Convenção que se segue, a qual será denominada "Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado, 1957"

Artigo 1º

Qualquer membro da Organização do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma:

a) como medida de coerção, ou de educação política ou com sanção dirigida a pessoas que tenham ou exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida.

b) como método de mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico.

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c) como medida de trabalho.

d) como punição por participação em greves.

e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.

Artigo 2º

Qualquer membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique a presente convenção se compromete a adotar medidas eficazes, no sentido da abolição imediata e completa do trabalho forçado ou obrigatório, tal como descrito no "artigo 1º "da presente Convenção.

Artigo 3º

As ratificações formais da presente Convenção comunicadas ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registradas.

Artigo 4º

§1. A presente Convenção apenas vinculará os membros da Organização

Internacional do Trabalho cuja ratificação haja sido registrada pelo Diretor-Geral.

§2. Esta Convenção entrará em vigor doze meses após terem sido registradas pelo Diretor-Geral as ratificações de dois membros.

§3. Em seguida, a Convenção entrará em vigor, para cada membro, doze meses após a data em que a sua ratificação tiver sido registrada.

Artigo 5º

§1. Qualquer membro, que houver ratificado a presente Convenção, poderá denunciá-la ao término de um período de dez anos após a data da sua vigência inicial, mediante comunicação ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registrada. A denúncia surtirá efeito somente um ano após ter sido registrada.

§2.Qualquer membro, que houver ratificado a presente convenção, e no prazo de um ano após o término do período de dez anos mencionado no parágrafo precedente não tiver feito uso da faculdade de denúncia prevista no presente artigo, estará vinculado por um novo período um novo período de dez anos e, em seguida poderá denunciar a presente convenção no término de cada período de dez anos, nas condições previstas no presente artigo.

Artigo 6º

§1. O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho notificará a todos os membros da Organização Internacional do Trabalho do registro de todas as ratificações e denúncias que lhe forem comunicadas pelos membros da Organização.

§2. Ao notificar os membros da Organização do registro da segunda ratificação que lhe tiver sido comunicada, o Diretor-Geral chamará sua atenção para a data em que a presente Convenção entrará em vigor.

Artigo 7º

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O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho comunicará ao Secretário-Geral das Nações Unidas, os dados completos a respeito de todas as ratificações e atos de denúncia que houver registrado de acordo com os artigos precedentes.

Artigo 8º

Sempre que julgar necessário, o Conselho de Administração da Repartição

Internacional do Trabalho apresentará à Conferência Geral um relatório sobre a aplicação da presente Convenção, e examinará a conveniência de inscrever na ordem do dia da Conferência a questão de sua revisão total ou parcial.

Artigo 9º

§1.Caso a Conferência adote uma nova Convenção que importe na revisão total ou parcial da presente, e a menos que a nova Convenção disponha de outra forma;

a) a ratificação, por um membro, da nova convenção que fizer a revisão, acarretará, de pleno direito, não obstante o "artigo 5º" acima, denúncia imediata da presente desde que a nova Convenção tenha entrado em vigor;

b) a partir da data da entrada em vigor da nova Convenção que fizer a revisão, a presente deixará de estar aberta à ratificação pelos membros.

§2. A presente Convenção permanecerá em vigor, todavia, na sua forma e conteúdo, para os membros que a tiverem ratificado e que não retifiquem a que fizer a revisão.

Fonte: TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. "A Proteção Internacional dos Direitos

Humanos" p.297/299.

Page 165: TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL DO SÉCULO XXI:

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IV CONVENÇÃO SUPLEMENTAR SOBRE A ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO:

Convenção Suplementar Sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas & agrave; Escravatura (1956)

Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66, de 1965.Depósito do instrumento brasileiro de

adesão junto à Organização das Nações Unidas e entrada em vigor, para o Brasil, a 6

de janeiro de 1966.Promulgadas pelo Decreto nº 58.563 de 1º de junho de

1966.Publicadas no "Diário Oficial" de 3 e 10 de junho de 1966.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Departamento de Assuntos Jurídicos Divisão de Atos Internacionais

DECRETO Nº 58.563 – DE 1º DE JUNHO DE 1966

Promulga a Convenção sobre Escravatura de 1926 emendada pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956.

O Presidente da República,

Havendo o Congresso Nacional aprovado pelo "Decreto Legislativo nº 66, de 1965", a Convenção Sobre a Escravatura, assinada em Genebra, a 25 de setembro de 1926 e emendada pelo Protocolo aberto à assinatura na sede das Nações Unidas, em Nova York, a 7 de dezembro de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, adotada em Genebra, a 7 de setembro de 1956.

E havendo as referidas Convenções entrado em vigor, para o Brasil, a 6 de janeiro de 1966, data em que foi depositado o instrumento brasileiro de adesão junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.

Decreta que as mesmas, apensas por cópia ao presente Decreto, sejam executadas e cumpridas tão inteiramente como nelas se contém.

Brasília, 1º de junho de 1966; 145º da Independência e 78º da República.

H. CASTELLO BRANCO

Juracy Magalhães

PREÂMBULO

Os Estados Membros, à presente Convenção,

Considerando que a liberdade é um direito que todo ser humano adquire ao nascer.

Conscientes de que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé na dignidade e no valor da pessoa humana.

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Considerando que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembléia Geral como o ideal comum a atingir por todos os povos e nações, dispõe que ninguém será submetido a escravidão ou servidão e que a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos sob todas as suas formas.

Reconhecendo que, desde a conclusão, em Genebra, em 25 de setembro de 1926, da Convenção sobre a escravatura que visava suprimir a escravidão e o tráfico de escravos, novos progressos foram realizados nesse sentido.

Levando em conta a Convenção de 1930 sobre o Trabalho Forçado e o que foi feito ulteriormente pela Organização Internacional do Trabalho em relação ao trabalho forçado ou obrigatório.

Verificando, contudo, que a escravidão, o tráfico de escravos e as instituições e práticas análogas à escravidão ainda não foram eliminados em todas as regiões do mundo.

Havendo decidido, em conseqüência, que a Convenção de 1926, a qual continua em vigor, deve agora ser ampliada por uma convenção suplementar destinada a intensificar os esforços, tanto nacionais como internacionais, que visam abolir a escravidão, o tráfico de escravos e as instituições e práticas análogas à escravidão.

Convieram no seguinte:

SEÇÃO I INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Artigo 1º

Cada um dos Estados Membros à presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza, que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente e logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou não na definição de escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926:

§1. A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for eqüitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida.

§2. A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição.

§3. Toda instituição ou prática em virtude da qual:

§4. Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa, prometida ou dada em casamento, mediante remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus pais, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas.

§5. O marido de uma mulher, a família ou clã deste têm o direito de cedê-la a um terceiro, a título oneroso ou não.

§6. A mulher pode, por morte do marido, ser transmitida por sucessão a outra pessoa.

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§7. Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito anos é entregue, quer por seus pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remuneração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente.

Artigo 2º

Com o propósito de acabar com as instituições e práticas visadas na "alínea c" do "artigo primeiro" da presente Convenção, os Estados Membros se comprometem a fixar, onde couber, idades mínimas adequadas para o casamento; a estimular adoção de um processo que permita a ambos os futuros cônjuges exprimir livremente o seu consentimento ao matrimônio, em presença de uma autoridade civil ou religiosa competente, e a fomentar o registro dos casamentos.

SEÇÃO II TRÁFICO DE ESCRAVOS

Artigo 3º

§1. O ato de transportar escravos de um país a outro, por qualquer meio de transporte, ou a cumplicidade nesse ato, constituirá infração penal segundo a lei dos Estados Membros à Convenção, e as pessoas reconhecidas culpadas de tal informação serão passíveis de penas muito rigorosas.

§2. Os Estados Membros tomarão todas as medidas necessárias para impedir que os navios e aeronaves autorizados a arvorar suas bandeiras transportem escravos e para punir as pessoas culpadas desse ato ou culpadas de utilizar o pavilhão nacional para tal fim.

§3. Os Estados Membros tomarão todas as medidas necessárias para que seus portos, seus aeródromos e suas costas não possam servir para o transporte de escravos.

§4. Os Estados Membros à Convenção trocarão informações a fim de assegurar a coordenação prática das medidas tomadas pelos mesmos na luta contra o tráfico de escravos e se comunicarão mutuamente qualquer caso de tráfico de escravos e qualquer tentativa de infração desse gênero de que tenham conhecimento.

Artigo 4º

Todo escravo que se refugiar a bordo de um navio de Estados Membros à presente Convenção será livre ipso facto.

SEÇÃO III ESCRAVIDÃO E INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Artigo 5º

Em qualquer país em que a escravidão ou as instituições e práticas mencionadas no "artigo primeiro" da presente Convenção não estejam ainda completamente abolidas ou abandonadas, o ato de mutilar, de marcar com ferro em brasa ou por qualquer outro processo um escravo ou uma pessoa de condição servil – para indicar sua condição, para infligir um castigo ou por qualquer outra razão, - ou a cumplicidade em tais atos constituirá infração penal em face da lei dos Estados Membros à Convenção, e as pessoas reconhecidas culpadas serão passíveis de pena.

Artigo 6º

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§1. O ato de escravizar uma pessoa ou de incitá-la a alienar sua liberdade ou a de alguém na sua dependência, para escravizá-la, constituirá infração penal em face da lei dos Estados Membros à presente Convenção, e as pessoas reconhecidas culpadas serão passíveis de pena; dar-se-á o mesmo quando houver participação num entendimento formado com tal propósito, tentativa de cometer esses delitos ou cumplicidade neles.

§2. Sob reserva das disposições da alínea introdutória do artigo primeiro desta Convenção, as disposições do "parágrafo primeiro" do presente artigo se aplicarão igualmente ao fato de incitar alguém a submeter-se ou a submeter uma pessoa na sua dependência a uma condição servil resultante de alguma das instituições ou práticas mencionadas no artigo primeiro; assim também quando houver participação num entendimento formado com tal propósito, tentativa de cometer tais delitos ou cumplicidade neles.

SEÇÃO IV DEFINIÇÕES

Artigo 7º

Para os fins da presente Convenção:

§1. "Escravidão", tal como foi definida na Convenção sobre a Escravidão de 1926, é o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de propriedade, e "escravo" é o indivíduo em tal estado ou condição.

§2. "Pessoa de condição servil" é a que se encontra no estado ou condição que resulta de alguma das instituições ou práticas mencionadas no artigo primeiro da presente Convenção.

§3. "Tráfico de escravos" significa e compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de uma pessoa com a intenção de escravizá-la; todo ato de aquisição de um escravo para vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por venda ou troca, de uma pessoa adquirida para ser vendida ou trocada, assim como, em geral, todo ato de comércio ou transporte de escravos, seja qual for o meio de transporte empregado.

SEÇÃO V COOPERAÇÃO ENTRE OS ESTADOS PARTES E COMUNICAÇÃO DE

INFORMAÇÕES Artigo 8º

§1. Os Estados Membros à Convenção se comprometem a prestar-se mútuo concurso e a cooperar com a Organização das Nações Unidas para a aplicação das disposições que precedem.

§2. Os Estados Membros se comprometem a enviar ao Secretário-Geral das Nações Unidas exemplares de toda lei, todo regulamento e toda decisão administrativa adotados ou postos em vigor para aplicar as disposições da presente Convenção.

§3. O Secretário-Geral comunicará as informações recebidas em virtude do "§2" do "presente artigo" às outras Partes e ao Conselho Econômico e Social, como elemento de documentação para qualquer debate que o Conselho venha a empreender com o propósito de formular novas recomendações para a abolição da escravidão, do tráfico de escravos ou das instituições e práticas que são objeto da Convenção.

SEÇÃO VI

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CLÁUSULAS FINAIS Artigo 9º

Não será admitida nenhuma reserva à Convenção.

Artigo 10º

Qualquer litígio que surja entre os Estados Membros à Convenção quanto à sua interpretação ou aplicação, que não seja resolvido por meio de negociação, será submetido à Corte Internacional de Justiça a pedido de uma das Partes em litígio, a menos que estas convenham em resolvê-lo de outra forma.

Artigo 11º

§1. A presente Convenção ficará aberta, até 1º de julho de 1957, à assinatura de qualquer Estado Membro das Nações Unidas ou dos organismos especializados. Será submetida à ratificação dos Estados signatários e os instrumentos de ratificação serão depositados em poder do Secretário-Geral das Nações Unidas, que o comunicará a todos os Estados signatários ou aderentes.

§2. Depois de 1º de julho de 1957, a Convenção ficará aberta à adesão de qualquer Estado Membro das Nações Unidas ou dos organismos especializados, ou de qualquer outro Estado que a Assembléia Geral das Nações Unidas haja convidado a aderir. A adesão se efetuará pelo depósito de um instrumento na devida forma em poder do Secretário-Geral das Nações Unidas, que o comunicará a todos os Estados signatários e aderentes.

Artigo 12º

§1. A presente Convenção se aplicará a todos os territórios não autônomos, sob tutela, coloniais e outros territórios não metropolitanos representados por um Estado Membro no plano internacional; sob reserva das disposições do "§2" do "presente artigo", a parte interessada deverá, no momento da assinatura ou da ratificação da Convenção, ou ainda da adesão à Convenção, declarar o ou os territórios não metropolitanos aos quais a presente Convenção se aplicará ipso facto por farsa dessa assinatura, ratificação ou adesão.

§2. Quando for necessário o consentimento prévio de um território não metropolitano, em virtude das leis ou práticas constitucionais do Estado Membro ou do território não metropolitano, a Parte deverá esforçar-se por obter o consentimento do território não metropolitano, dentro do prazo de doze meses a partir da data da sua assinatura, e, uma vez obtido esse consentimento, a Parte deverá notificá-lo ao Secretário-Geral. A partir da data do recebimento dessa notificação por parte do Secretário-Geral, a Convenção se aplicará ao território ou territórios mencionados na referida notificação.

§3. Terminado o prazo de doze meses mencionado no parágrafo precedente, as Partes interessadas informarão o Secretário-Geral dos resultados das consultas com os territórios não metropolitanos cujas relações internacionais lhes incumbam e que não hajam dado o seu consentimento para a aplicação da presente Convenção.

Artigo 13º

§1. A Convenção entrará em vigor na data em que dois Estados sejam Partes à mesma.

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§2. Entrará depois em vigor, no tocante a cada Estado e território, na data do depósito do instrumento de ratificação ou de adesão do Estado interessado ou da notificação da sua aplicação a esse território.

Artigo 14º

§1. A aplicação da presente Convenção será dividida em períodos sucessivos de três anos, o primeiro dos quais começará a contar-se a partir da data da entrada em vigor da Convenção segundo o disposto no "§1" do "artigo 13".

§2. Qualquer Estado Membro poderá denunciar a presente Convenção, dirigindo, no mínimo seis meses antes da expiração do período trienal em curso, uma notificação ao Secretário-Geral. Este comunicará essa notificação e a data do seu recebimento a todas as outras Partes.

§3. As denúncias surtirão efeito ao expirar o período trienal em curso.

§4. Nos casos em que, de conformidade com o disposto no "artigo 12", a presente Convenção se haja tornado aplicável a um território não metropolitano de uma das Partes, esta poderá, com o consentimento do território de que se trate, notificar, desde então a qualquer momento, ao Secretário-Geral das Nações Unidas, que a Convenção é denunciada em relação a esse território. A denúncia surtirá efeito um ano depois da data do recebimento da notificação pelo Secretário-Geral, que comunicará a todos os outros Estados Membros essa notificação e a data em que a tenha recebido.

Artigo 15º

A presente Convenção, cujos textos inglês, chinês, espanhol, francês e russo são igualmente autênticos, será depositada no arquivo da Secretaria das Nações Unidas. O Secretário-Geral fornecerá cópias certificadas autênticas da Convenção para que sejam enviadas aos Estados Membros, assim como a todos os outros Estados Membros das Nações Unidas e organismos especializados.

Em fé do que os abaixo assinados, devidamente autorizados por seus respectivos Governos, assinaram a presente Convenção nas datas que figuram ao lado das suas respectivas assinaturas.

Feito no Escritório Europeu das Nações Unidas, em Genebra, em sete de setembro de mil novecentos e cinqüenta e seis.

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V CONVENÇÃO RELATIVA A ESCRAVATURA DA ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS:

Convenção relativa à Escravatura

Aprovada pelo Decreto Legislativo nº 66, de 1965.Depósito do instrumento brasileiro de adesão

junto à Organização das Nações Unidas e entrada em vigor, para o Brasil, a 6 de janeiro de

1966.Promulgadas pelo Decreto nº 58.563 de 1º de junho de 1966.Publicadas no "Diário

Oficial" de 3 e 10 de junho de 1966.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Departamento de Assuntos Jurídicos

Divisão de Atos Internacionais

DECRETO Nº 58.563 – DE 1º DE JUNHO DE 1966

Promulga a Convenção sobre Escravatura de 1926 emendada pelo Protocolo de 1953 e a

Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956.

O Presidente da República,

Havendo o Congresso Nacional aprovado pelo "Decreto Legislativo nº 66, de 1965", a

Convenção Sobre a Escravatura, assinada em Genebra, a 25 de setembro de 1926 e emendada

pelo Protocolo aberto à assinatura na sede das Nações Unidas, em Nova York, a 7 de dezembro

de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e

das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, adotada em Genebra, a 7 de setembro de

1956.

E havendo as referidas Convenções entrado em vigor, para o Brasil, a 6 de janeiro de 1966, data

em que foi depositado o instrumento brasileiro de adesão junto ao Secretário-Geral das Nações

Unidas.

Decreta que as mesmas, apensas por cópia ao presente Decreto, sejam executadas e cumpridas

tão inteiramente como nelas se contém.

Brasília, 1º de junho de 1966; 145º da Independência e 78º da República.

CONVENÇÃO SOBRE A ESCRAVATURA ASSINADA EM GENEBRA, EM 25 DE

SETEMBRO DE 1926, E EMENDADA PELO PROTOCOLO ABERTO À ASSINATURA

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OU À ACEITAÇÃO NA SEDE DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, NOVA

YORK, EM 7 DE DEZEMBRO DE 1953

Artigo 1º

Para os fins da presente Convenção, fica entendido que:

§1. A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou

parcialmente, os atributos do direito de propriedade.

§2. O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de um

indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o

propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um

escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim como, em geral, todo ato de comércio

ou de transporte de escravos.

Artigo 2º

As Altas Partes contratantes se comprometem, na medida em que ainda não hajam tomado

as necessárias providências, e cada uma no que diz respeito aos territórios colocados sob a

sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela:

a) A impedir e reprimir o tráfico de escravos.

b)A promover a abolição completa da escravidão sob todas as suas formas,

progressivamente e logo que possível.

Artigo 3º

As Altas Partes contratantes se comprometem a tomar todas as medidas necessárias para

impedir e reprimir o embarque, o desembarque e o transporte de escravos nas suas águas

territoriais, assim como, em geral, em todos os navios que arvorem os seus respectivos

pavilhões.As Altas Partes contratantes se comprometem a negociar, logo que possível, uma

Convenção Geral sobre o tráfico de escravos que lhes outorgue direitos e lhes imponha

obrigações da mesma natureza dos que foram previstos na Convenção de 17 de junho de

1925 relativa ao Comércio Internacional de Armas ("Artigos 12, 20, 21, 22, 23, 24 e

parágrafos 3, 4, 5 da seção II do anexo II") sob reserva das adaptações necessárias, ficando

entendido que essa Convenção Geral não colocará os navios (mesmo de pequena tonelagem)

de nenhuma das Altas Partes contratantes numa posição diferente da das outras Altas

Partes contratantes.Fica igualmente entendido que, antes e depois da entrada em vigor da

mencionada Convenção Geral, as Altas Partes contratantes conservam toda liberdade de

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realizar entre si, sem, contudo derrogar os princípios estipulados no parágrafo precedente,

entendimentos especiais que, em razão da sua situação peculiar, lhes pareçam convenientes

para conseguir, com a maior brevidade possível, a abolição completa do tráfico de escravos.

Artigo 4º

As Altas Partes contratantes prestarão assistência umas às outras para lograr a supressão

da escravidão e do tráfico de escravos.

Artigo 5º

As Altas Partes contratantes reconhecem que o recurso ao trabalho forçado ou obrigatório

pode ter graves conseqüências e se comprometem, cada uma no que diz respeito aos

territórios submetidos à sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela, a tomar as

medidas necessárias para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório produza condições

análogas à escravidão.

Fica entendido que:

§1. Sob reserva das disposições transitórias enunciadas no "§2." abaixo, o trabalho forçado

ou obrigatório somente pode ser exigido para fins públicos.

§2. Nos territórios onde ainda existe o trabalho forçado ou obrigatório para fins que não

sejam públicos, as Altas Partes contratantes se esforçarão por acabar com essa prática,

progressivamente e com a maior rapidez possível, e, enquanto subsistir, o trabalho forçado

ou obrigatório só será empregado a título excepcional, contra remuneração adequada e com

a condição de não poder ser imposta a mudança do lugar habitual de residência.

§3. Em todos os casos, as autoridades centrais competentes do território interessado assumirão a responsabilidade do recurso ao trabalho forçado ou obrigatório.

Artigo 6º

As Altas Partes contratantes, cuja legislação não seja desde já suficiente para reprimir as

infrações às leis e regulamentos promulgados para aplicar a presente Convenção, se

comprometem a tomar as medidas necessárias para que essas infrações sejam severamente

punidas.

Artigo 7º

As Altas Partes contratantes se comprometem a comunicar umas às outras e ao Secretário-

Geral da Organização das Nações Unidas as leis e regulamentos que promulgarem para a

aplicação das disposições da presente Convenção.

Artigo 8º

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As Altas Partes contratantes convêm em que todos os litígios, que possam surgir entre as

mesmas quanto à interpretação ou à aplicação da presente Convenção, serão encaminhados

à Corte Internacional de Justiça, se não puderem ser resolvidos por negociação direta. Se os

Estados entre os quais surgir algum litígio, ou um deles, não forem Partes no Estatuto da

Corte Internacional de Justiça, esse litígio será submetido, à vontade dos Estados

interessados, quer à Corte Internacional de Justiça, quer a um tribunal de arbitragem

constituído em conformidade com a "Convenção de 18 de outubro de 1907" para a solução

pacífica dos conflitos internacionais, quer a qualquer outro tribunal de arbitragem.

Artigo 9º

Cada uma das Altas Partes contratantes pode declarar, quer no momento da sua

assinatura, quer no momento da sua ratificação ou adesão, que, no que diz respeito à

aplicação das disposições da presente Convenção ou de algumas delas, sua aceitação não

vincula todos ou qualquer dos territórios que se acham sob a sua soberania, jurisdição,

proteção, suserania ou tutela; e cada uma das Altas Partes contratantes poderá

posteriormente aderir em separado, total ou parcialmente, em nome de qualquer deles.

Artigo 10º

Se suceder que uma das Altas Partes contratantes queira denunciar a presente Convenção,

a denúncia será notificada por escrito ao Secretário-Geral da Organização das Nações

Unidas, que enviará imediatamente uma cópia autenticada da notificação a todas as outras

Altas Partes contratantes, informando-as da data de recebimento.A denúncia somente

produzirá efeito em relação ao Estado que a tenha notificado, e um ano depois de haver

chegado a notificação ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.A denúncia

poderá, outrossim, ser feita separadamente no que diz respeito a qualquer território que se

ache sob a sua soberania, jurisdição, proteção, suserania ou tutela.

Artigo 11º

A presente Convenção, que será datada de hoje e cujos textos francês e inglês são

igualmente autênticos, ficará aberta até 1º de abril de 1927 à assinatura dos Estados

Membros da Sociedade das Nações.A presente Convenção será aberta à adesão de todos os

Estados, inclusive os Estados não membros da Organização das Nações Unidas, aos quais o

Secretário-Geral haja enviado uma cópia autenticada da Convenção.A adesão se efetuará

pelo depósito de um instrumento na devida forma em poder do Secretário-Geral da

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Organização das Nações Unidas, que dará disso conhecimento a todos os Estados partes à

Convenção e a todos os outros Estados contemplados no presente artigo, indicando-lhes a

data em que cada um desses instrumentos de adesão foi depositado.

Artigo 12º

A presente Convenção será ratificada e os instrumentos de ratificação serão depositados no

Escritório do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, que o notificará às Altas

Partes contratantes. Convenção produzirá seus efeitos, para cada Estado, a partir da data

do depósito do instrumento de ratificação ou adesão.