Trabalho Escravo Urbano

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    Revista da Universidade Ibirapuera - So Paulo, v. 2, p. 11-17, jan/jun. 2012

    O TRABALHO ESCRAVO URBANO NO BRASIL: UMAANLISE SOCIAL, ECONMICA E JURDICA

    Carlos da Fonseca NadaisUniversidade Ibirapuera

    Av. Interlagos, 1329 So Paulo [email protected]

    ResumoO presente artigo tem objetivo de mostrar como o trabalho escravo nas reas urbanas tem caractersticas sui generis, epor isso deve ter a ateno diferenciada do legislador e dos operadores do direito. A par de uma anlise sucinta do capi-talismo e suas implicaes s relaes de trabalho, bem como outros fenmenos a ele associados, como a globalizao,a exacerbao da competitividade entre as empresas e consequentemente, na busca da reduo de custos, resultam emalgumas prticas extremamente danosas ao trabalhador urbano: o trabalho escravo urbano.Algumas ferramentas importantes foram disponibilizadas pelo legislador, como a nova redao do artigo 149 do CdigoPenal, entretanto outras no se adequaram perfeitamente ao combate desse novo tipo de explorao, como a PEC243/2001. Uma caracterstica especial do trabalho escravo urbano ser utilizado, atualmente, pelas pequenas ocinas

    de costura que contratam imigrantes ilegais, atuando como empresas interpostas.Entendemos que, a par dessa caracterstica especca, a utilizao da responsabilidade solidria por empresas toma -doras de servios, que tenham atividade-m ligada confeco, seria um caminho interessante para extino dessa

    prtica pelas empresas interpostas. As empresas tomadoras devem controlar a cadeia de produo externa, ou enfrentaro Ministrio Pblico do Trabalho, juntamente com o Ministrio do Trabalho, rmando Termos de Ajuste de Conduta ou,

    ainda, suportando as penalidades administrativas, independente de compactuarem ou no com essa prtica nas empre-sas interpostas.

    Palavras-chave:trabalho escravo; concorrncia empresarial; responsabilidade social.

    AbstractThis article is meant to display as slave labor in urban areas has features sui generis, and therefore must have the specialattention of the legislature and law enforcement ofcers. Along with a brief analysis of capitalism and its implications for

    labor relations, as well as other phenomena associated with it, such as globalization, the intensication of competition be-

    tween companies and consequently, in the pursuit of cost reduction, resulting in some very practical harmful to the urbanworker: the contemporary slavery.Some important tools were made available by the legislature, as the new wording of Article 149 of the Penal Code, thoughothers did not t perfectly to this new type of exploitation, such as PEC 438/2001. A special feature of contemporary slave

    labor is being used currently by small sewing shops that hire illegal immigrants, companies acting as led.

    We understand that, along with this characteristic, the use of joint liability for companies withdrawing services, which havelinked to the activity-end clothing, would be an interesting way to extinction by the companies brought this practice. Theborrowing companies must control the external supply chain, or face the Ministry of Labour, together with the Ministry ofLabour, rming Terms of Adjustment of Conduct, or even supporting the administrative penalties, regardless of compact

    or not this practice in interposed companies.

    Keywords:slave labor, business competition; social responsibility.

    Revista da Universidade Ibirapuera

    So Paulo, v. 3, p. 11-17, jan/jun. 2012

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    I. INTERVENES ECONMICAS DE EXPLORA-

    O DOS TRABALHADORES

    1. O fenmeno da globalizao

    O capitalismo se desenvolve e se adapta stransformaes sociais que ele mesmo produz. Numa

    digresso at sculo XIX identicamos trs revolues

    industriais, ligadas evoluo tecnolgica: a primeira,

    com o uso da mquina a vapor; a segunda, da mquina

    eltrica e dos derivados do petrleo; e uma terceira, da

    automao por meios eletrnicos. Outra diviso possvel

    apresenta trs mudanas de paradigmas de relaciona-

    mento do capital com o trabalhador: 1- da explorao de-

    senfreada na primeira fase da revoluo industrial; 2- do

    cienticismo do trabalho taylorista-fordista e do just-in-

    time toyotista; 3- da interao dos sindicatos na soluo

    ou preveno de conitos.1

    Nesse processo de desenvolvimento do capita-

    lismo, houve a introduo da negociao sindical, pela

    melhor organizao dos trabalhadores, visando o au-

    mento negociado da produtividade e dos salrios, en-

    tretanto no necessariamente na mesma proporo de

    benefcios das partes.

    A organizao dos trabalhadores levou a algu-

    mas conquistas classe operria, levando os capitalis-

    tas a buscar locais em que a organizao dos trabalha-

    dores e o ordenamento jurdico fossem mais propcios

    produo, gerando o fenmeno da globalizao. A

    economia passa a se desenvolver em escala planetria:

    a tecnologia possibilita transmisso de dados em alts-

    sima velocidade; as empresas passam a ser transnacio-nais, tanto na produo, quanto na distribuio; e ocorre

    a integrao dos Estados, por meio de tratados interna-

    cionais.

    Se o trabalhador j no era insumo to relevante na ca-

    deia de produo, com a globalizao tornou-se cada

    vez mais uma pequena pea na grande tarefa da pro-

    duo. A globalizao dos mercados consumidores e

    produtores levou o capitalista a buscar o menor custo de

    produo para obter o maior lucro na circulao das mer-cadorias, e, assim conquistar novos mercados consumi-

    dores. Esse trip de objetivos causou extrema tenso

    na relao tripartite Capital-Estado-Trabalho, pois, se

    por um lado, o trabalhador vive a constante ameaa da

    perda do emprego/renda, por outro, o capitalista vive a

    constante ameaa da perda de sua posio no mercado

    de consumidores, e da prpria sobrevivncia do empre-

    endimento. Por m, o Estado tambm sente os reexos,

    com a possibilidade de perda de arrecadao e do con-

    trole social dos governados.

    Se por um lado, o fenmeno da globalizao deu opor-

    tunidade de maior satisfao material a uma parcela

    signicativa dos habitantes do planeta, tanto pelo vis

    da maior oferta de bens e servios, que redundou em

    barateamento das mercadorias e aumento da massa de

    consumidores, quanto pela ampliao da quantidade

    de trabalhadores ativos, decorrente desse aumento de

    produo; entretanto, por outro lado, a competitividade

    exacerbada leva maior precariedade do trabalho e a

    diminuio da renda dos trabalhadores. Assim aumen-

    tou-se a base de consumo, com mais trabalhadores com

    renda e produtos mais baratos, entretanto a massa de

    salrios e condies de trabalho no cresceram na mes-

    ma progresso.

    2. O aparecimento do trabalho escravo urbano

    Privado do consumo e em busca de integrar-se ao

    mercado de trabalho, em situaes extremas, alguns traba-

    lhadores so levados a aceitar situaes desumanas, que

    atentam sua dignidade e integridade fsica: trabalho escravo

    urbano. Essa nova modalidade de trabalho anlogo a escravo

    tem trs caractersticas relevantes, previstos no art. 3, 1

    da Instruo Normativa 91/2011, do Ministrio do Trabalho eEmprego:

    a) trabalho degradante, o fulcro da caracterizao

    o desrespeito aos direitos trabalhistas e de medicina do traba-

    lho pela inexistncia de: equipamentos de proteo, salrio

    adicional de jornada extraordinria, de insalubridade ou de

    periculosidade, boas condies de higiene.

    b) explorao do trabalhador, que semelhante ao

    trabalho degradante, mas se caracteriza pela situao em

    que o empregado submetido a jornadas de trabalho intermi-nveis, sem folgas semanais, sem registro na CTPS ou qual-

    quer garantia trabalhista bsica assegurada. Desse modo,

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    muitas vezes o trabalho alm de degradante tambm de

    explorao.

    c) trabalho forado que se caracteriza pela falta de

    liberdade de ir e vir do trabalhador. Assim, muitas vezes um

    trabalho degradante (indigno, mas com liberdade) passa,

    tambm, a ser um trabalho forado; assim o trabalhador pormeio de coaes passa a estar preso ao trabalho.

    Importante salientar que qualquer dessas formas

    desumanas de explorao do indivduo faz com que o tra-

    balhador perca sua caracterstica de ser humano, pela falta

    de liberdade ou pela perda de sua dignidade. Tal situao d

    plena inferncia a esse trabalhador que no houve desres-

    peito somente s normas de trabalho, mas tambm ofensa a

    uma diretriz de patamar ainda mais elevado, pois de forma

    generalizada, a sociedade entende direitos humanos como

    o conjunto dos direitos essenciais da pessoa humana e de

    sua dignidade2.

    Em todas as formas supracitadas de abuso do traba-

    lhador, o indivduo perde a caracterstica de igualdade com to-

    dos os homens, transformando em letra morta a Declaraes

    de Direitos Humanos. Assim o trabalho escravo urbano abar-

    ca, concomitantemente, essas trs formas de abuso: trabalho

    degradante, explorao do trabalhador e trabalho forado.

    Cabe ressaltar que as condies de trabalho escravo

    urbano tm algumas semelhanas com o antigo trabalho es-

    cravo, predominantemente rural. Esse ltimo era permitido

    poca, por um ordenamento jurdico, ou seja, havia reconhe-

    cimento dessa prtica como regular e legtima. J o primeiro

    manifestamente repudiado pela sociedade e proibido pelo

    ordenamento ptrio.

    A preocupao com as condies de trabalho no se

    restringem somente ao mbito nacional, haja vista, a relevn-cia das relaes comerciais que extrapolam as fronteiras dos

    pases, pois o fenmeno da globalizao leva a produo a

    operar em escala planetria. Assim a proteo ao trabalhador

    tambm se deu nesse mbito, com a atuao da OIT Orga-

    nizao Internacional do Trabalho.

    2. II- INTERVENES NORMATIVAS PARA PROTEO

    DOS TRABALHADORES

    3. A proteo normativa externa no combate ao tra-

    balho escravo urbano

    A OIT um rgo das Naes Unidas que pro-

    cura fomentar a Justia Social e os direitos humanos e

    laborais mundialmente reconhecidos. 3, que estabelece

    princpios de proteo ao trabalhador, preconizando o

    repdio das naes associadas ao trabalho degradante

    e forado, mais precisamente nas duas Convenes re-trodestacadas. Ressalta-se, entretanto, que tais textos

    tem cunho programtico, mas no se deve desprezar

    sua fora e importncia. Ademais, as convenes e nor-

    mas internacionais de trabalho podem entrar no ordena-

    mento jurdico dos pases membros, no caso do Brasil,

    por meio da raticao, que ato de direito interno pelo

    qual o governo de um pas aprova a conveno ou trata-

    do, admitindo sua eccia na sua ordem jurdica.4.

    A Conveno n 29 da OIT, que versa sobre o

    trabalho forado, foi raticada pelo Brasil em 25/04/1957

    e promulgada pelo Decreto n 41.721, de 25/06/1957,

    destaca que Todos os Membros da Organizao Inter-

    nacional do Trabalho que raticaram a presente conven-

    o se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forado

    ou obrigatrio sob todas as suas formas no mais curto

    prazo possvel.. O prprio texto deixa claro o objeto do

    comando repressor:

    Art. 2 - 1 Para ns da presente conveno, a expresso traba-

    lho forado ou obrigatrio designar todo trabalho ou servio

    exigido de um indivduo sob a ameaa de qualquer penalidade

    e para o qual ele no se ofereceu de espontnea vontade.

    A Conveno n 105 da OIT, que versa sobre a Abolio

    do Trabalho Forado, foi raticada pelo Brasil em 18/06/1965 e pro-

    mulgada pelo Decreto n 58.822, de 14/06/1966, vai mais alm daConveno n 29, e deixa mais explcito seu objetivo nal:

    Art. 2 - Todo Pas-membro da Organizao Internacio-

    nal do Trabalho que raticar esta Conveno comprome-

    te-se a abolir toda forma de trabalho forado ou obrigat-

    rio e dele no fazer uso:

    a) como medida de coero ou de educao poltica ou como

    punio por ter ou expressar opinies polticas ou pontos de

    vista ideologicamente opostos ao sistema poltico, social e

    econmico vigente;

    b) como mtodo de mobilizao e de utilizao da mo de obra

    para ns de desenvolvimento econmico;

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    c) como meio de disciplinar a mo de obra;

    d) como punio por participao em greves;

    e) como medida de discriminao racial, social, nacional ou

    religiosa. (g.n.)

    Assim, o objeto dessa Conveno contempla um objeto

    signicante ampliado que a anterior, abarcando novas

    situaes, mas que no apresenta desconformidade

    com o objetivo principal: abolir o trabalho forado.

    4. A proteo normativa interna no combate ao traba-

    lho escravo urbano

    Se por um lado, a competitividade empresarial, em es-

    cala global, exige a diminuio dos custos de produo;

    por outro, em mbito local determina uma disputa acir-

    rada no mercado de trabalho. Essa equao pende para

    o lado mais forte, do capital, e uma parcela de traba-

    lhadores se submetem s necessidades da produo.

    nesse cenrio que o Estado, o terceiro agente na relao

    capital-trabalho, tem que assumir seu papel de pacica-

    dor das tenses sociais, como destacamos em tpicos

    anteriores.

    As relaes de trabalho no Brasil esto submetidas, em

    grande parte, aos dispositivos da Consolidao das Leisdo Trabalho CLT, para dar cabo divergncia de inte-

    resses entre trabalhadores e patres. Dentre do leque

    de artigos, inicialmente cabe destacar um dispositivo em

    especial, que direcionar parte de nossa argumentao:

    Artigo 9 - Sero nulos de pleno direi to os atos praticados com

    o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar, a aplicao dos

    preceitos contidos na presente Consolidao.

    O comando claro e objetivo, visando proteger o

    trabalhador de toda e qualquer artimanha que possa re-tirar-lhe direitos trabalhistas. O trabalho escravo urbano,

    alm de todos os aspectos negativos j expostos, prima

    pela espoliao do trabalhador, pois permite ao capitalis-

    ta diminuir substancialmente o custo da produo em trs

    frentes: menor remunerao, prejudicando o trabalhador;

    sonegao scal, prejudicando o Estado; e concorrncia

    desleal, prejudicando outros empresrios; ou seja, prejudi-

    cando de uma s vez os trs atores da relao social de trabalho.

    O combate a ilcitos trabalhistas se d, preponde-

    rantemente, na esfera do Direito do Trabalho, do Direito

    Previdencirio e do Direito Tributrio, mas pelo vis eco-

    nmico, cabendo aplicaes de multas pecunirias pelo

    Poder Pblico. Esse procedimento, entretanto, no se ad-

    qua a represso ao trabalho escravo urbano. H a possi-

    bilidade da aplicao da legislao penal, que, in causu,

    pode obter um resultado mais efetivo, pois no depende da

    manifestao objetiva do trabalhador explorado.

    O Cdigo Penal, em seu artigo 149, possibilita o

    enquadramento desse tipo de relao exploradora, com

    penalizao de at 8 anos de recluso do responsvel, que

    constitui um marco regulatrio importante no combate ao

    trabalho escravo urbano, proporcionada pela alterao im-

    posta pela Lei n. 10.803/2003:

    Artigo 149 Reduzir algum a condio anloga a escravo, quer

    submetendo-o a trabalhos forados ou a jornada exaustiva, quer

    sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer restrin-

    gindo, por qualquer meio, sua locomoo em razo de dvida con-

    trada com empregador ou preposto.

    Pena recluso, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, alm da pena

    correspondente a violncia. (g.n.)

    Antes da alterao desse dispositivo penal, os ar-

    tigos 197 e 203, tambm do Cdigo Penal, j versavam

    sobre os delitos de uso da violncia para obrigar algum

    ao trabalho, bem como a frustrao de direito asseguradopor lei trabalhista:

    Art. 197 - Constranger algum, mediante violncia ou

    grave ameaa:

    I a exercer ou no exercer arte, ofcio, prosso ou indstria, ou

    a trabalhar ou no trabalhar durante certo perodo ou em deter-

    minados dias:

    Pena deteno, de 1 (um) ms a 1 (um) ano, e multa, alm da

    pena correspondente violncia.

    Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violncia, direito assegura-

    do pela legislao do trabalho.

    Pena deteno, de um ano a dois anos, e multa, alm da pena

    correspondente violncia.

    Esses comandos legais poderiam ser utilizados no

    combate ao trabalho escravo urbano, contudo, percebe-

    se que, devido a sua generalidade, as sanes cominadas

    so extremamente brandas, cotejando com a sano do

    artigo 149, com tipo penal mais especco.

    De todo modo, aqueles que se beneciam do tra-

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    balho escravo urbano tm pleno conhecimento da ilicitude,

    independente de dispositivos penais, quaisquer que sejam,

    pois o ato ilcito a conduta humana violadora da ordem

    jurdica. S pratica ato ilcito quem possui dever jurdico.

    A ilicitude implica sempre leso a um direito pela quebra

    de dever jurdico 5. Assim no h como tomar, por exemplo,

    usos e costumes, para abrandar ou at legitimar tais ilegalida-

    des.

    5. Princpios Constitucionais de proteo ao trabalhador

    Alando-se a um patamar normativo mais elevado,

    temos que a Constituio Federal, viga mestra do nosso

    ordenamento jurdico, aponta algumas diretrizes, como

    fundamentos e objetivos, da Repblica Federativa do Bra-sil, que tambm so as bases de supresso do trabalho

    escravo urbano, com nossos devidos grifos:

    Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos:

    III - a dignidade da pessoa humana;

    IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

    Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federa-

    tiva do Brasil:

    I - construir uma sociedade livre, justa e solidria;

    No menos importante temos o disposto no artigo

    5, inciso III, que determina que ningum ser submetido

    tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Trans-

    versalmente, ento, podemos armar que o trabalho escravo

    urbano tambm tem tratamento constitucional expresso.

    O artigo 170, da carta Magna, estabelece dois

    princpios da legitimidade da vida econmica, fundada na

    valorizao do trabalho humano e na iniciativa privada,

    dentro de um vis capitalista, sistema econmico adotado

    pelo Brasil. De um lado, o dispositivo consagra a economia

    de mercado, e de outro, a prioridade para a valorizao

    do trabalho, como condio de legitimidade da atividade

    capitalista. A perfeita execuo desse binmio no ser

    tarefa fcil num sistema de base capitalista e, pois, essen-

    cialmente individualista. que a justia social s se realiza

    mediante equitativa distribuio da riqueza 6. Tal simbiose

    de indicadores teria como resultado o equilbrio entre ca-

    pital e trabalho, ou seja, ambos so necessrios para que

    haja ordem econmica.

    Assim tanto pelo vis do Estado (arts. 1 e 3, CF),

    quanto do trabalhador (art. 5, III, CF), como da empresa

    (art. 170, CF), a Constituio Federal congrega os interes-

    ses desses trs atores, na busca do equilbrio na trade

    capital-Estado-trabalho.

    6. A PEC 438/2001 e o trabalho escravo urbano.

    A proposta de Emenda Constitucional PEC

    438/2001 de autoria do Senador Ademir Andrade, do PSB/

    PA, aprovada em 22/05/2012, que altera a redao do ar-

    tigo 243 da Constituio Federal, tem como foco principal

    o trabalho escravo rural, no vislumbrando, pelo menos de

    imediato, efetividade para o combate do trabalho escravo

    urbano, objeto desse trabalho. Pois vejamos, ento, como

    car o caput do dispositivo constitucional:

    Art. 243 - As glebas de qualquer local do pas onde forem locali-

    zadas culturas ilegais de plantas psicotrpicas ou a explorao

    de trabalho escravo sero imediatamente expropriadas e espe-

    cicamente destinadas reforma agrria, como assentamento

    prioritrio aos colonos que j trabalhavam na respectiva gleba,

    sem qualquer indenizao ao proprietrio e sem prejuzo de ou-

    tras sanes previstas em lei.

    O trabalho escravo urbano praticado com mais

    frequncia, no ramo txtil, onde os imigrantes latino-ameri-

    canos; em sua grande maioria so bolivianos, peruanos e

    paraguaios; laboram em pequenas confeces da capital

    paulista. Desse modo, o problema chega tambm ao m-

    bito de imigrao, pois em sua quase totalidade tratamos

    com imigrantes ilegais, atrados pela cantilena de boa re-

    munerao, no mnimo maior que nos pases de origem.

    Os prprios explorados encontram diculdadesem denunciar essa situao de trabalho, posto que tam-

    bm eles esto irregulares perante as leis nacionais e, sen-

    do assim, seriam eles tambm objeto de investigao da

    autoridade cienticada da irregularidade. O comando do art.

    125 da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) bem clara:

    Art. 125. Constitui infrao, sujeitando o infrator s penas aqui cominadas:

    I - entrar no territrio nacional sem estar autorizado (clandestino):

    Pena: deportao.

    Tambm h ainda o abandono que esses traba-

    lhadores estaro submetidos ao denunciar tal opresso,

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    explorao do trabalho alheio. Os limites dessa explorao, para

    preservao da dignidade humana do trabalhador, respeito a ou-

    tros valores humanos da vida em sociedade e favorecimento da

    melhoria da condio econmica do trabalhador, com os custos

    sociais consequentes, xam a essncia do modelo de sociedade

    que a humanidade ps-guerra resolveu seguir e do qual a Consti-

    tuio brasileira de 1988 no se desvinculou, como visto. (TRT15

    RO 03707-2005-130-15-00-9 - 11 Cmara - Sexta Turma Juiz

    Relator Jorge Luiz Soto Maior j. 10/09/2008).

    Desse modo, ocorrendo a prtica da explorao do tra-

    balhador em condio de trabalho escravo urbano, a empresa

    tomadora deve ser responsabilizada solidariamente com a em-

    presa interposta, em todas as implicaes pertinentes a relao

    laborativa indireta qual se beneciou economicamente.

    III. INTERVENES INSTITUCIONAIS DE PROTEO

    AOS TRABALHADORES

    8. Atuao do Ministrio Pblico do Trabalho MPT.

    O combate ao trabalho anlogo ao escravo, na

    regio urbana, uma bandeira importante levantada pelo

    Ministrio Pblico do Trabalho, com foco na indstria txtil.

    Muitas das investigaes e autuaes levaram a respon-

    sabilizao de grandes cadeias de comrcio e indstria de

    roupas, que se utilizaram, por terceirizao da costura das

    peas, de empresas que tinham trabalhadores em condi-

    o anloga a escravos.

    A competncia do Ministrio do Pblico do Traba-

    lho est denida na Constituio Federal, em seu artigo

    127, caput, destaca que:

    Art. 127. O Ministrio Pblico instituio permanente, essencial

    funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da or-

    dem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e

    individuais indisponveis.

    Sendo que o Ministrio Pblico do Trabalho um

    dos ramos especializados do Ministrio Pblico da Unio,

    como nos remete a leitura do artigo 24 da LC n 75/93:

    Art. 24. O Ministrio Pblico da Unio compreende:

    II - o Ministrio Pblico do Trabalho;

    Uma das possibilidades da atuao do MPT por

    intermdio de um Termo de Ajuste de Conduta TAC com

    as empresas que se utilizam ou beneciam do trabalho es-

    cravo urbano. O TAC um acordo em que a parte se com-

    promete a agir de acordo com as leis trabalhistas, como

    dispe o art. 5, 6 da Lei 7.347/1985:

    Art. 5. Tm legitimidade para propor a ao principal e a ao cautelar:

    6 Os rgos pblicos legitimados podero tomar dos interessa-

    dos compromisso de ajustamento de sua conduta s exigncias

    legais, mediante cominaes, que ter eficcia de ttulo exe-

    cutivo extrajudicial.

    Em termos gerais os TACs propostos pelo MPT s

    empresas que se utilizao de trabalho escravo, versam

    sobre aprimoramento: do controle pela empresa tomador

    de servios, do que ocorre dentro da cadeia produtiva e da

    vericao in loco das condies de trabalho dos fornece-

    dores e terceiros, com pesadas multas pelo descumprimento.

    9. Atuao do Ministrio do Trabalho e Emprego MTE.

    A atuao do Ministrio do Trabalho e Emprego,

    pela explorao do trabalhador condio anloga a es-

    cravo, se d pela lavratura de autos de infrao pelos audi-

    tores scais.

    Os comandos legais mais relevantes que autori-

    zam a atuao dos auditores do MTE no combate ao traba-

    lho anlogo condio de escravo so:

    Art. 628, da CLT. Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a

    toda vericao em que o Auditor-Fiscal do Trabalho con-

    cluir pela existncia de violao de preceito legal deve cor-

    responder, sob pena de responsabilidade administrativa, alavratura de auto de infrao.

    Art. 630, da CLT (...)

    3 - O agente da inspeo ter livre acesso todas dependn-

    cias dos estabelecimentos sujeitos ao regime da legislao, sen-

    do as empresas, por seus dirigentes ou prepostos, obrigados a

    prestar-lhes os esclarecimentos necessrios ao desempenho de

    suas atribuies legais e a exibir-lhes, quando exigidos, quais-

    quer documentos que digam respeito ao el cumprimento das

    normas de proteo ao trabalho.

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    O Ministrio do Trabalho e Emprego, calcado no

    artigo 2 da Portaria n 540 de 2004, inclui os empregado-

    res no Cadastro de empregadores que tenham mantido

    trabalhadores em condies anlogas de escravo (art.

    1), tenham sido condenados em processo administrativo prove-

    niente de autos de infrao lavrados pelos auditores scais.

    Art. 2. A incluso do nome do infrator no Cadastro ocorrer aps deci-

    so administrativa nal relativa ao auto de infrao lavrado em decorrn-

    cia de ao scal em que tenha havido a identicao de trabalhadores

    submetidos a condies anlogas de escravo.

    No so poucas nem frgeis, as armas disponveis pelo

    Ministrio do Trabalho e Emprego e do Ministrio Pblico do Tra-

    balho, mas ainda temos no Brasil a utilizao de trabalho anlo-

    go ao escravo, mesmo nas regies urbanas. A competitividade

    das empresas no mundo globalizado no causa suciente que

    essa situao degradante ainda exista no Brasil.

    IV - CONCLUSO

    A anlise da situao do trabalhador explorado passa

    inicialmente pela defesa de trs interesses bem demarcados na

    Constituio Federal do Brasil: a valorizao do trabalho e da

    dignidade da pessoa humana, como fundamentos da Repbli-

    ca, e seus objetivos, como a busca da sociedade mais justa e

    solidria, entretanto, com nos aponta Ferraz Jnior,

    h no mundo contemporneo uma forma pervertida de considerar o

    trabalho que, ao invs de valoriz-lo, o degrada. Trata-se do trabalho

    dominado pela necessidade pura e simples de sobreviver, de satisfazer

    a busca insana de multiplicao do mercado, e no de criar o mundo

    intermedirio humano9

    .

    Por um lado, o Estado imprescindvel na regulamen-

    tao das relaes de trabalho, que determinam grande parte

    das relaes sociais, atuando nas trs esferas de poder (art. 4,

    da Constituio Federal): legislativa (emisso das normas), exe-

    cutiva (atuao do MP e MTE), e judiciria (na percepo poltica

    nas decises exaradas).

    Por outro, o capitalismo, pela vertente neoliberal, ca-

    minha a passos largos para uma desregulamentao total daesfera do trabalho, e reclama pela liberdade de contratar, sem

    as amarras de um Estado que no responde velocidade das

    atuais trocas comerciais, que desestimula trs principais efeitos

    externos do capital: a criao de novos empregos, oferta de pro-

    dutos mais acessveis a todos e arrecadao de tributos ao Es-

    tado. Vimos, tambm, que o capitalismo desregulado pode levar

    a espoliao do trabalhador em condies inaceitveis.

    Se antes a imigrao foi soluo para substituio dotrabalho escravo, agora insumo para o trabalho escravo urba-

    no. Se antes a imigrao se dirigia a grandes reas de plantio na

    zona rural, agora se manifesta nas pequenas ocinas espalha-

    das na rea urbana. Se antes a imigrao proporcionava aos

    imigrantes prestar servio direto quele que se beneciava com

    seu trabalho, agora o foco so as empresas interpostas.

    Sempre haver a explorao da mo de obra no sis-

    tema capitalista, que nos trouxe benefcios e malefcios sociais,

    porm a liberalizao das relaes de trabalho pode levar, em

    casos extremos, a nveis inaceitveis de degradao do traba-

    lhador, saindo da esfera da disputa da concorrncia empresarial para o

    da desumanizao e aviltamento puro e simples do trabalhador.

    O Direito, estrutura bsica do Estado, deve dar conta

    das mudanas cada vez mais rpidas da vida social, pois dele

    que emana a certeza de uma sociedade mais justa e solidria.

    Os trs grupos que se debruam sobre a norma jurdica, os

    cientistas do Direito, os legisladores e os operadores do Direito

    devem estar atentos s novas prticas delituosas contra o traba-

    lhador utilizadas por algumas empresas.

    As empresas, por outro lado, cam merc da disputa

    de mercados, que at mesmo de outros pases, com legislao

    trabalhista menos protetiva, com legislao tributria menos es-

    poliadora, e com incentivo nanceiro mais abundante.

    Atuao dos rgos internacionais, do parlamento na-

    cional, das instituies pblicas preponderante, para erradicar

    essa chaga, que o trabalho escravo urbano. A legislao noest totalmente adequada, o Plano Nacional para Erradicao

    do Trabalho Escravo, ainda est longe de ser completado, os

    rgos estatais de combate de trabalho condio anlogo ao

    escravo no conseguem ainda alcanar todas as empresas,

    muitas vitrias esto sendo conseguidas.

    A realizao material dos trabalhadores, de acesso aos

    mercados de consumo e de trabalho, realizada dentro de uma

    ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano

    e na livre iniciativa, tem por m assegurar a todos existncia dig-na, conforme os ditames da justia social.

    Por justia social no trabalho devemos observar que o

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    salrio no h de ser mera retribuio pelo equivalente trabalho,

    mas algo que mantenha a dignidade humana, ainda que custa

    da mera remunerao do capital 10.

    A possibilidade da dignidade humana no trabalho est

    intimamente ligada aos ensinamentos de Norberto Bobbio que

    o problema fundamental em relao aos direitos do homem,hoje no tanto de justic-los, mas o de proteg-los 11.

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