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Cadernos da Escola de Comunicação UNIBRASIL Número 1 - Out/Nov 2003 56 Seção Especial A Natureza e os Limites dos Discursos Jornalísticos Rosane Rosa* Discurso jornalístico Produção de sentido Cotidiano social. Palavras-chave * Rosane Rosa, Jornalista, Relações Públicas e Mestre em Ciências da Comunicação. Docente da PUC/PR e da Universidade Tuiuti do Paraná. Biografia Resumo Partindo da premissa de que os acontecimentos são sem- pre publicizados a partir de uma subordinação aos modelos culturais jornalísticos, questionamos a natureza, o papel, os limites e a legitimidade do discurso dos media noticiosos: que cotidiano social é este que é ofertado ao consumidor de infor- mações em forma de notícia? De que forma os media constro- em um cotidiano que, todavia, não é a cena de fundo - o fato em si? O que nos interessa são as especificidades de um cam- po produtor de sentido: o jornalismo, o que ele faz de anunciabilidade, visibilidade, semantização e como os media jornalísticos interferem, via discurso, nos demais campos soci- ais, legitimando-se como palco obrigatório de passagem do cotidiano social. Keywords Journalistic discourse Meaning production Social life Abstract Based on the premiss that facts are always publicized on subordination to journalistic cultural models, we question the nature, the role, the limits and legitimacy of the medias discourse: what social daily life is offered to the information news consumer? In what ways do the media build a daily life that is not the background scene, the fact itself ? What interests us are the details of a meaning production field: what journalism produces regarding anunciability, visibility, semantization, as well as how journalistic media interfere, via discourse, on the other social fields. In such a way journalism legitimates itself as compulsory stage of passage of social life.

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Cadernos da Escola de ComunicaçãoUNIBRASIL

Número 1 - Out/Nov 2003

56

Seção EspecialA Natureza e os Limites dosDiscursos JornalísticosRosane Rosa*

Discurso jornalísticoProdução de sentidoCotidiano social.

Palavras-chave

* Rosane Rosa, Jornalista,Relações Públicas e Mestre emCiências da Comunicação. Docente da PUC/PR e daUniversidade Tuiuti do Paraná.

Biografia

Resumo

Partindo da premissa de que os acontecimentos são sem-pre publicizados a partir de uma subordinação aos modelosculturais jornalísticos, questionamos a natureza, o papel, oslimites e a legitimidade do discurso dos media noticiosos: quecotidiano social é este que é ofertado ao consumidor de infor-mações em forma de notícia? De que forma os media constro-em um cotidiano que, todavia, não é a cena de fundo - o fatoem si? O que nos interessa são as especificidades de um cam-po produtor de sentido: o jornalismo, o que ele faz deanunciabilidade, visibilidade, semantização e como os mediajornalísticos interferem, via discurso, nos demais campos soci-ais, legitimando-se como palco obrigatório de passagem docotidiano social.

KeywordsJournalistic discourseMeaning productionSocial life

AbstractBased on the premiss that facts are always publicized

on subordination to journalistic cultural models, we questionthe nature, the role, the limits and legitimacy of the mediasdiscourse: what social daily life is offered to the informationnews consumer? In what ways do the media build a daily lifethat is not the background scene, the fact itself? What interestsus are the details of a meaning production field: whatjournalism produces regarding anunciability, visibility,semantization, as well as how journalistic media interfere, viadiscourse, on the other social fields. In such a way journalismlegitimates itself as compulsory stage of passage of social life.

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57Introdução

“As notícias são virtualmente foreground (emprimeiro plano) com muito pouco background”.1

Desejamos problematizar a natureza eos limites dos discursos jornalísticos comoinstância de simbolização, pois no mesmo ins-tante que representam a principal forma de oscampos sociais atingirem visibilidade pública,é também uma forma de chamar a si a noçãode uma verdade absoluta atribuída ao fato.

Quais são os limites do discursojornalístico ao sabermos que a ação dos me-dia, voltados para o dar sentido, passa por vá-rios processos, dentre os quais o movimentode extração, seguindo operações e padrõestecnoculturais? O modo de dizer dos mediasegue processos enunciativos próprios a cadaum deles, mas recebe influência de outrosmodos de dizer, propondo outros ditos envi-ados à apreciação do mundo dos leitores.

Pretendemos destacar o papel dos me-dia na modelização dos fatos, na sua condiçãode “fala intermediária”2 do acontecimento, re-cebendo-o dos campos de origem para destiná-lo ao consumidor final; porém, transforman-do-o em uma referência produzida, segundoseus ditames e sua competência. Posiciona-sesempre como um lugar que reinventa e cria oespaço para os demais campos, a partir denormas e regras determinadas por cada veícu-lo. No entanto, do outro lado, pode haver uma

ineficácia, algo da ordem do limite interno àprópria competência discursiva.

A Incompletude dos DiscursosJornalísticos

Na verdade, não há uma notícia3 com-pleta que sirva de medida ao acontecimento,nem mesmo o conjunto de projeções que cadaveículo e consumidor fazem com base na suaexperiência de mundo e no sentido em ofertapara gerar outras significações. A verdade éque não temos como mostrar, de maneira ob-jetiva, a “verdade” do acontecimento na sua“cena primária”,4 uma vez que “(...) o discursojornalístico sempre funciona como um ‘discurso segun-do’, a saber, um discurso relatador das ‘ações alheias’,ou de discursos alheios, apoiando-se, quase sempre, emfórmulas autônomas – fórmulas tecno-lingüísticas queemanam de outros campos discursivos – a‘intertextualidade’”.5

Os media implicam uma parte do todo6

social, mesmo que superficialmente, mas sa-bemos que a única forma de representar a to-talidade é selecionando uma parte dela, mes-mo porque o todo-parcial que os media mos-tram, dão-nos a certeza de que não podemos,realmente, ter acesso ao todo-geral; porém, éuma forma de socializá-la.

Segundo Fausto Neto,7 a “cena primá-ria” nunca é resgatada; é sempre enunciada e

1 TRAQUINA, 1993, p. 187.2 FLAHAULT, 1979.3 RODRIGUES, 1990. A diferença de acontecimento e notícia se esclarece pelo conceito de extração: o acontecimento éa mensagem recebida, e a notícia é a mensagem emitida.4 FAUSTO NETO. Em Busca da Cena Primária. São Leopoldo. Artigo xerox, s/d.5 Ibid. , p. 16

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58atualizada sobre outras formas. O que temossão narrativas e versões sobre os fatos, que setornaram “um passado inacessível”. O todoque os media mostram é sempre uma leitura.Portanto, sempre será uma verdade relativa,uma vez que a restituição do fato nunca sedará de maneira completa. “A cena primária – oocorrido – não pode ser restituída. Ela nos falta. Ojornalismo, porém, movimenta suas éticas e suadeontologia em função de reavê-la. É escravizado pelojogo da linguagem, por onde pensa dar conta desta fal-ta. Porém, o que faz, afinal de contas, é produzir ver-sões, produzir novas cenas(...)”.8

O discurso jornalístico não reflete arealidade. Traduz e a constrói via recursosdiscursivos, simulando realidades mediantetodo um sistema próprio de cada veículo, emque os jornalistas captam um certo númerode informações e que são transformadas emnotícias por meio do discurso perpassado pe-las rotinas produtivas, pela experiência do jor-nalista, pela ideologia e cultura do veículo. Éno campo mediático que o cotidiano dos cam-pos sociais ganha anunciabilidade, transparên-cia e pluralidade para o consumidor, mas essavisibilidade se dá sob uma forma específicado campo dos media, e não, dos de origem; éofertada como verdade absoluta pelos veícu-los que tentam vender seu produto no com-petitivo mercado do discurso da informação.

Os problemas clássicos do jornalismo

estão relacionados à “desobjetivação”9 doacontecimento. A concepção do jornalismonão se julgava arbitrária, mas é pura objetivi-dade. Logo, o que surgia no meio ou além doofertado era descartado como “ruído”, poiscontradizia a sua visão de mundo, em nomedo que se possa julgar ser a objetividade, masnão é mais que a objetivação,10 isto é, um sis-tema de idéias autojustificadas que se fechana interpretação e na produção de sentidos,fundamentados em regras próprias de cadaveículo.

Ao se adotar uma visão que incorporaessa dimensão interativa e social do processode produção dos discursos jornalísticos, paracompreendê-lo, devemos levar em considera-ção a experiência dos sujeitos no mundo, co-nhecer os elementos que fundam essa experi-ência e que vão mediar a sua relação com omundo. No entanto, é necessário incorporar,nessa discussão, elementos que ultrapassam anoção de consciência individual e englobam aquestão da ação estrutural mais ampla daquiloque, segundo Darnton,11 é aprendido porosmose dentro da cultura organizacional. Ocaminho da análise e interpretação deve pas-sar pelo exame dessa experiência e incorporartanto o que é relatado como acontecimentocomo aquilo que se oferece como possibilida-de e que compõe também a compreensão domundo num determinado tempo e espaço so-cial. Portanto, para apreender o significado, é

6 Entendemos este todo como a capacidade dos media de apresentar uma diversidade de pontos de vista sobre determi-nado tema em pauta.7 Em Busca da Cena Primária. s/d8 FAUSTO NETO, Ibid. , p. 18.9Ver nota 13 – objetivação.10 Processo pelo qual a subjetivação se corporifica em produtos avaliáveis para ela e para os outros como elementos de ummundo comum. (Dicionário Aurélio, 1986).11 1990.

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59necessário ater-se também ao que não é ditoliteralmente, mas que aponta para amultiplicidade de vozes e o contínuoengendramento de sentido no trabalho deenunciação.

Na contemporaneidade, o discursojornalístico não é produzido por uma seqüên-cia de causa e efeito, nem espelha a realidadeassistida, mas representa uma construção damesma, que é disponibilizada socialmente. Naconstrução desse discurso, o jornalista e a cul-tura organizacional do veículo não são maisdissociados do acontecimento capturado. Ofato observado é aprisionado pelas normas,leis, modos de enunciar de cada veículo, atéporque é necessário dar-lhe uma forma paraque atinja o espaço social e seu cotidiano.

Os “Constrangimentos” Mediáticos

Por onde se constroem os limites dodiscurso jornalístico? Existem elementos es-truturais no sistema hierárquico, cujas linhasgerais se destacam com nitidez, seja noorganograma funcional, no layout do ambi-ente de trabalho ou no fluxo do processo deprodução da notícia. Em decorrência disso,com igual ou maior nitidez no próprio jornalque acaba sendo uma representação de poder,mostra quem mais se aproximou dos critérioseditoriais do veículo. Assim, cada edição dojornal “é um mapa, que os jornalistas apren-dem a ler e a comparar com seus mapas men-tais (...) num esforço de saberem onde se situ-am e para onde estão indo.”12 Aprendem a lere a escrever segundo o sistema hierárquico bemcomo a conviver com a frustração: não há es-paço para a criatividade e singularidades, mas,

sim, para adequações a uma forma pré-deter-minada, através da qual a notícia dever serencaixada, e o que sobrou é lixo não reciclável.

A distribuição das matérias e os cortesfazem parte de um “sistema de reforço positivo enegativo”.13 Denota a linha editorial e ideológi-ca do veículo, isto é, retrata sua concepção demundo. Logo, as notícias são o ponto de vistade determinado veículo sobre um aconteci-mento, podendo gerar um estado de frustra-ção em seus membros, que primam pelacriatividade e singularidade. “Os repórteres na-turalmente escrevem para agradar os editores que con-trolam o sistema de recompensas (...) mas não existenenhuma maneira direta de receber um reforço redi-gindo a melhor matéria possível.(...) O poder do editorsobre o repórter, assim como o do diretor sobre o edi-tor, realmente gera uma tendência na maneira de redi-gir as notícias (...)”14

Segundo essa concepção, a principalpreocupação dos jornalistas não está em in-formar e, sim, em impactar o grupo de refe-rência, em manter e construir o próprio status.Pensamos que se trata de um constante exer-cício de avaliação do desempenho e não deuma preocupação exclusiva em dar à luz aosacontecimentos sociais. Funciona como umaespécie de passarela, onde o talento profissio-nal se expõe, submetendo-se à aprovação oureprovação de seus pares. Dessa forma, “osrepórteres são os leitores mais vorazes e precisam con-quistar seu status diariamente, ao se exporem a seuscolegas de profissão”.15

Independente dos milhares de leitoresque suas matérias possam atingir, o retornoda opinião pública ao jornalista é mínimo eaté inexistente. Nesse ambiente de

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60competitividade e insegurança, os jornalistasaprendem a conviver e a trabalhar sob muitapressão e submissão, e até, perigosamente, sesujeitarem à política do veículo. É um cederpelo cansaço, ou desistir. O principal valordefendido é, segundo Darnton,16 acompetitividade, pois, dessa forma, ninguémfica seguro em relação ao seu status, obrigan-do-se a um renovado e estressante esforço.Podemos pensar que os jornalistas encontram-se constantemente entre uma situação de li-berdade e coação, autonomia e dependência,sob o risco constante de canalizar ou distorcera matéria para que se ajustem as idéias préviasdo editor. O trabalho de conciliar forças con-trárias torna a atividade jornalística estressante.“Seu desejo de elucidação rompe-se, esvai-see, em seu lugar, institui-se, por conseqüência,a narrativa esquematizada pelos manuais deredação, pelas fórmulas acabadas (...)”17

Constata-se que as mensagens passampor um processo de estruturação de várias fa-ses até chegar ao receptor. O repórter filtrasuas idéias entre o grupo de referência, a cul-tura organizacional que já está perpassada nodiscurso do editor e no manual de redação etc.“Os toques pessoais - observações ou citaçõesinteligentes - satisfazem ao senso de habilida-de do repórter e açulam o instinto dopreparador em passar a caneta.”18 Nas suasatividades, o repórter convive constantemen-te com uma “liberdade vigiada”, pois todo oseu trabalho é sujeito a uma padronização,perdendo-se os toques pessoais, os critériosde qualidade e seu próprio “discernimentojornalístico”. Fere, segundo DARNTON,19 suaidentidade profissional, pois não possui auto-nomia. Ele segue um processo pré-concebi-do, pelo qual outras falas se articulam, se su-

bordinam e se fundem.

Pode-se constatar que os elementos es-truturais influenciam fortemente na forma eno conteúdo das matérias jornalísticas, comotambém, na comunicação organizacional, poiscada traço estrutural está carregado por valo-res culturais.

Para além desses constrangimentos, o“métier” do jornalista deve ser visto, também,da perspectiva de uma “comunidadeinterpretativa” “(...) um grupo unido pelas suasinterpretações compartilhadas da realidade”,20

que “(...) produzem textos e - determinam a formadaquilo que é lido - “21 e também “(...) exibem cer-tos padrões de autoridade, de comunicação e de memó-ria quando interagem mutuamente.”22 Os membrosde uma comunidade interpretativa “estabelecemconvenções que são predominantemente tácitas e nego-ciáveis no que respeita à forma como os membros deuma comunidade podem (reconhecer, criar, experienciare falar sobre textos)”.23

Submerso ao discurso jornalístico estáa auto-imagem do profissional, pois “o jornalde cada dia mostra quem ficou com as melho-res matérias (...) as designações, os cortes e adistribuição ou jogo das matérias fazem partede um sistema de reforço positivo e negati-vo”.24 Ou seja, trata-se de um constante exer-

12 DARNTON, 1990, p. 73.13 Id., Ibid.14 Ibid. p. 74-77.15 DARNTON, 1990, p. 72.16 Ibid.17 FAUSTO NETO, Em busca da Cena Primária s/d, p. 26.18 DARNTON, 1990, p. 77-78.19 Ibid.20 HYMES, (Apud. Zelizer, 2000, p. 38)21 FISH, (Apud. Zelizer, p. 38.)

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61cício de avaliação de desempenho, não em re-lação à opinião pública25 ou aos leitores emgeral, mas, preponderantemente, pela sua “co-munidade interpretativa”.26 Sendo assim, odiscurso do jornalista é uma espécie de “ter-mômetro” que mede o êxito profissional, parasi mesmo e para o seu grupo de referência;logo, o que fundamenta, estrutura, aproximaou distancia essa comunidade é a práticadiscursiva. Sob esse aspecto, podemos pensarque os jornalistas, além de representarem uma“comunidade interpretativa”, são antes e, es-sencialmente, uma comunidade discursiva,uma vez que as identificações e as estranhezasbem como seu status se dá em nível discursivo.Pensamos, como hipótese, que se trata de umacomunidade de caráter narrativo-interpretativo-virtual que constrói a realidadepública, preocupada, segundo DARNTON,27

essencialmente, com seu grupo de referência,cuja convivência se dá muito mais em nívelsimbólico do que físico.

Seguindo essa esteira, podemos pensarque os jornalistas fundamentam seus relatosem coberturas, em que o dito popular “nadase cria, tudo se recria” também faz sentido parao discurso jornalístico. Este é produzido nacontemporaneidade a partir de padrões bem-sucedidos no passado e construídos pela pró-pria “comunidade interpretativa”. Portanto,além do discurso jornalístico ser tecido a par-tir de múltiplos discursos, provenientes dosdiversos campos sociais envolvidos em umacontecimento social, em pauta nacontemporaneidade, há uma consulta e umintercâmbio com um passado bem-sucedido.Logo, há um diálogo entre o passado, o pre-sente e o futuro como pré-requisito da cons-trução do “discurso da atualidade”.28 Trata-se de

uma somatização, ou melhor, de uma acumu-lação progressiva de significações, do passadopara o presente “(...) em matéria de discurso social,tudo leva a pensar que o ‘novo’ para ser recebível, sópode se apoiar no já-recebido ainda que venha subvertê-lo”.29

Nesses termos, a notícia é, por si só,algo da ordem da incompletude, em que sem-pre o mostrado é uma parte ou uma formaçãosubstitutiva da complexa interação social, masé a parte disponível à sociedade. As outras es-sências ficaram desfocadas da linha ideológi-ca do veículo que procedeu à captura.30 Asregras específicas de cada veículo instituem asingularidade de cada acontecimento.

A Padronização das Singularidades

A noção de subjetividade era vista, atéa década de 70, como “ruído”, por ameaçar origor da objetividade, que caracteriza o dis-curso mediático acadêmico. Mas, quando pre-tendemos falar do discurso jornalístico, excluirqualquer dimensão interpretativa em nome deuma observação, supostamente objetiva, semsombra de dúvida, é utópico e, no mínimo,ingênuo, pois esse fato se mostrou insuficien-te para dar conta das complexas relações soci-ais. Autores como BAKHTIN31 e VERÓN32

defendem que não existem observações isen-tas da ideologia e da cultura, nas quais o cida-dão e as instituições estão socialmente envol-vidas. Dentro dessa visão, poderíamos dizerque as Ciências Sociais, dentre as quais a Co-municação, na verdade, não passam de um tra-balho interpretativo. As noções de significa-do, produção de sentido, contexto e represen-tação tornaram-se relevantes. Passaram a ser

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62caracterizadas por um espectro de abordagemvariado e, por vezes, confuso, mas nãodesconsiderado: como ruído; isto é, valoriza-do como complementar, porque, em uma so-ciedade que se diz democrática, não poderiahaver uma única forma de análise e informa-ção dos acontecimentos sociais.

As Multifaces da Verdade Jornalística

No campo jornalístico, há dualidade naquestão da verdade: de um lado, há a questãoda verdade sobre as informações, sobre o fatoobservado ou recebido. Mas, por outro, há oproblema da verdade em relação às finalida-des, às políticas do veículo, e isso põe, às ve-zes, em risco, em destroços, as informaçõesbásicas, trazidas pelos jornalistas, fornecidaspelas fontes.

Sob esse aspecto, podemos verificar queo discurso jornalístico é frágil e sujeito a múl-tiplas complementações e, mesmo, alterações;por vezes, podemos até questionar a verdadede suas informações. Mas, por qualquer viésque analisemos o campo jornalístico, ou o cam-po organizacional, concluímos que as infor-

mações são relativas e que não existe “a ver-dade”, e, sim, pontos de vista. Portanto, a com-plexidade da “semiose da mediatização”33 nãopode ser reduzida à objetividade ou subjetivi-dade, ou seja, ao questionamento de que a in-formação é verdadeira ou falsa, o quanto dainformação é objetiva ou subjetiva, pois as duasse fundem na produção da notícia, construin-do uma outra cena, com a pretensão de seraceita como a “primária”. As distorções co-meçam com o primeiro contato do jornalistacom a informação, de como ele a enxerga e arecorta a partir de seu mundo de experiência,pois, do contrário, não haveria informações,notícia, enfim, o “discurso da atualidade”.

“O mundo é mediado por nossos sentidos comsuas habilidades e suas limitações. (...) não podemosdizer simplesmente que conhecemos o mundo, todo nos-so conhecimento é biológico e socialmente mediado.Então, não há possibilidade alguma de um indivíduoter acesso privilegiado à realidade e alegar ter o conhe-cimento ‘da verdade’”.34

Ao contrário da visão marxista, que viaa ciência e a ideologia como antagônicas,VERÓN,35 como LANG, se preocupam coma presença do ideológico nos discursos soci-

22 DEGH, (Apud. Zelizer, p. 38)23 COYLE E LINDLOF, (Apud. Zelizer, p. 38)24 DARNTON, 1990, p. 73.25 Não se trata de ignorar a importância do retorno da opinião pública, mas de admitir que se trata de uma via de mão única,com insignificantes retornos, por exemplo, através das cartas dos leitores que também sofrem constrangimentos.26 ZELIZER, 2000.27 1990.28 Apesar desse intercâmbio, o discurso da atualidade, na sua superfície, reforça uma importância do presente em detri-mento de um passado, aparentemente inexistente, e de um futuro inexpressivo.29 LANDOWSKI, 1992, p. 123.30 Utilizamos o termo captura, pois entendemos que é um ato que requer tensão, opção, conflito da escolha da oferta dasinterpretações e até uma certa violência com relação as outras partes desprezadas.31 1995.32 1980; 1997.

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63ais, já que a questão da significação e a ques-tão da ideologia estão para ele profundamen-te ligadas. O autor recupera o ideológico comodimensão estrutural de qualquer prática.

“Falar de ‘ideológico’ é tentar falar danatureza produtiva de qualquer fenômeno desentido, pois esta noção de ‘ideológico’ não ésenão o nome do sistema das relações entre osentido (sempre discursivo) e o sistema pro-dutivo que torna possível dar conta de seuengendramento”.36

O ideológico não é um obstáculo paraa produção da informação, nem é algo incom-patível a ele e, sim, um pré-requisito: “(...) é onome das condições que tornam possível o conhecimen-to”.37 É o traço da origem social dos discur-sos, pois se constituem vestígio do social, si-tuando-se no processo de produção. “(...) osdiscursos sociais são objetos semioticamente heterogêne-os ou ‘mixtos’, nos quais intervêm ao mesmo tempo,várias matérias significantes e vários códigos (...)”.38

Há muitos discursos jornalísticos quesão meia verdade e outros, megaverdades, poiso crivo final é dado, dentre outros aspectos,pela cultura do veículo que predomina comsua autonomia. Por outro lado, não temoscomo fugir da complexidade da fusão objeti-vidade-subjetividade. Tudo é representação darealidade; portanto, os discursos são incom-pletos e sujeitos a equívocos e a interpreta-ções diversas.

É complexa a função mediadora entrea experiência dos campos sociais e a socieda-de como um todo, podendo provocar crisesde identidade e conflito entre os envolvidos.Trata-se de um jogo de negociação entre oscampos com interesses, verdades e equívocos

que permitem avançar ou retardar a convivên-cia entre os consensos e as diferenças. O cam-po jornalístico não possui a verdade, comodeixa transparecer em seu discurso, mas sem-pre joga no nível da verdade e em nome daverdade. Nem um campo possui a verdadeabsoluta. Todos podem complementá-la oudistanciá-la, dependendo da cultura, ideolo-gia, experiência e de outros fatorescondicionantes, como o tempo e espaço.

O discurso mediático se efetua segun-do regras e princípios específicos, ou seja, amanipulação social dos campos e dos indiví-duos tratados com objetividade em proveitode uma determinada ordem, cultura e formaeficaz de atingir o consumidor. Acreditamosque essa “engendração” pode ser legítima ape-nas na medida em que for respeitado o jogopluralista dos campos sociais, ou seja, “a con-dição de diversidade significativa”39 pela açãodos “consumidores-cidadãos”40 e se o campoestratégico atua com ética, pois não podemosesquecer que, com a mediatização, o processode manipulação não age somente sobre a na-tureza do acontecimento, mas reflete e é re-fletido no conjunto de todos os campos e ato-res sociais envolvidos.

O discurso que representa o todo apa-rece, ideológica e culturalmente, camuflado deuma visão parcial do mundo, ocupando-se deuma prática por vezes reducionista, excluindoa riqueza das diferenças culturais. Pelo poderque o campo mediático exerce sobre a socie-dade como um todo, é fundamental uma aber-tura na contextualização dos acontecimentos,pautada em fundamentos éticos, o que permi-tirá uma maior liberdade de produção de sen-tido por parte dos consumidores, pois “seja qual

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64for a amplitude da definição do contexto, sempre pode-ria haver contextos mais vastos, cujo conhecimento in-verteria ou modificaria nossa compreensão de aspectosparticulares”. 41

O discurso mediático não é apenas umdiscurso que constrói a atualidade como umtodo, proporcionando uma sensação de eman-cipação aos consumidores, na medida em quepossibilita acesso às informações dos “mun-dos privados”, mas também apresenta um pa-drão bem específico de cultura que se impõesobre as demais, sob a justificativa de mediara todos, espécie de um advogado social.

Objetividade-Subjetividade – AAmbivalência Complementar dosDiscursos Jornalísticos

Há uma dupla face da verdade nos dis-cursos jornalísticos que julgamos importanteressaltar: há a objetividade acadêmica e a dosmanuais de redação que, acredita-se, têm seufundamento, sua justificação no universo deacontecimentos sociais que, sem uma ordemestabelecida, poderiam transformar-se em umcaos, uma fábula.42 Por outro lado, existem asobservações dos diferentes olharesjornalísticos e observações de instituições crí-ticas. A objetividade do acontecimento, “averdade”, pode ser inteiramente distinta dasemitidas por um ou por outro veículo, embo-ra sobre o mesmo fato social. Tais diferençassão decorrências das regras, hierarquia, expe-riências, cultura que cada veículo julga seremas mais adequadas e vitais para a sociedade. Ainformação acaba sendo um instrumento paraa reprodução de um determinado sistema so-cial. “(...) os media, através das especificidades de suaslinguagens, travam, muitas vezes, mais diálogos entre

si do que se lançam ao trabalho de dar conta do relatode acontecimentos. Há uma contaminação permanenteentre processos de linguagens uns dos outros”.43

O trabalho dos editores é, de certa for-ma, dirigir os jornalistas para a produção deuma realidade condizente com a culturaorganizacional do veículo, ou seja, nortear oprocesso de produção da notícia segundo umacerta perspectiva ética-ideológica. Portanto,assim como o diretor da empresa jornalísticaexerce poder sobre o editor, da mesma forma,exerce o editor sobre a sua equipe, definindoum estilo na forma de redigir as notícias, oque implica um poder de controle sob a reali-dade a ser mediatizada.

Não é, simplesmente, o acontecimentoque encontra um veículo para ser socialmenteinstituído, mas é o veículo que captura44 oacontecimento para transformá-lo em sua ver-dade submetida às respectivas regras. A partirdaí, o acontecimento passa a ser refém dosmedia. Não é o acontecimento que atinge vi-sibilidade pelo veículo, mas é o veículo que dáa sua visibilidade ao acontecimento. Portanto,não se trata de uma simples exposição do acon-tecimento, mas são procedimentostecnoculturais que geram um outro aconteci-mento, com os ingredientes selecionados einstituídos pelos media.

33 VERON, 1997.34 LANG, 1999, p. 360.35 1980.36 VERON, 1980, p. 114.37 Id., Ibid.38 Ibid. , p. 78.

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65A Face Indubitável do DiscursoJornalístico

Para muitos leitores, a concepção daverdade, apresentada pelos veículos, identifi-ca-se com a verdade do acontecimento. Masqual é a verdade do acontecimento? “A verda-de já não é mais procurada no sentido da investigação,do reconhecimento das fontes, dos pontos de vista, dacontrariedade, do paradoxo, da pista. Ela é hoje sub-metida a um novo mecanismo. Vale simplesmentemostrá-la.”45

Na atualidade, os media jornalísticos sãotalvez o lugar público mais relevante e estraté-gico, onde se encontra a “verdade” em rela-ção à realidade social, na sua pluralidade deoferta e acesso. Os discursos jornalísticos nossão dados como “indubitáveis”, pois se basei-am em apreensão in loco do fato, com confir-mação de testemunhas, detalhes de observa-ções, todos confirmando a mesma visão, osmesmos dados, como se outros não existis-sem. A questão é que os elementos excluídosnão ganham existência, porque não se enqua-dram nas regras previamente colocadas pelacultura jornalística e assimiladas pelos seusprodutores. Na estrutura jornalística, cabe ape-nas uma determinada construção lógica e co-erente, condizente com a culturaorganizacional. É uma arquitetura de sentidosdifícil de ser questionada pelo consumidor-ci-dadão, que não recebe a pluralidade das vi-

sões sobre o fato, nem tem acesso ao sistemade produção para emitir seu próprio julgamen-to a respeito de seu funcionamento.

Em contrapartida ao discurso veicula-do por determinado media, outros veículospodem fazer surgir, incessantemente, tambémsob suas regras, novas informações ou, me-lhor, outras visões e construções que podemrelativizar o que o primeiro selecionou, obri-gando o mesmo a se complementar com ainteração do mundo exterior, cuja principalreferência são os demais veículos. Quer dizer,o aparecimento de novas informações pelosconcorrentes sugere que o contexto seja ex-pandido e seja dada uma nova “emolduração”46

à notícia. As novas informações surgem sem-pre de forma inacabada, porque o processode produção da notícia é também “aperfeiço-amento das regras de observação e apreensão”,aprendizagem e reciclagem. Portanto, não querdizer que as versões anteriores eram falsas;foram consideradas limitadas e insuficientes.Trata-se de um regime, através do qual as ins-tituições se relacionam através das interpreta-ções que, para uns, é verdade e, para outros, émentira, mas que não passam de diferentespontos de vista, o que faz parte do constantejogo de construções e de disputa de sentido.Mas, afinal, o que é o ocorrido? Quem sabe oque ocorreu na totalidade do fato referencial?Dentro das regras de produção de cada veícu-

39 TRAQUINA, 1993, p. 214.40 CANCLINI, 1997.41 BATESON, 1993, p. 133.(tradução nossa).42 VATIMMO, 1989.43 FAUSTO NETO, Em busca da cena primária, s/d, p. 25.44 Captura no sentido de tirar do “habitat” natural para deslocá-lo para outro campo estranho ao seu, desprezando asespecificidades que não comportam o novo “habitat”. Há uma espécie de aprisionamento das normas específicas doveículo que a capturou e da forma que a capturou.

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66lo ou de outra instituição social isso semprese dará sob uma determinada ótica. Portanto,nenhuma interpretação é falsa ou verdadeira,certa ou errada. Interpretações são sempreinterpretações; são apenas o ponto de vista dequem olha e diz que se sobrepõe a outros pon-tos de vista. As estratégias discursivas sempretêm, como horizontes, interpretações, cujossentidos se constroem em um clima de tensãoentre os campos envolvidos.

A lógica dos discursos mediáticosjornalísticos não comporta uma prova ineren-te de uma verdade absoluta como o veículoprocura passar em seu discurso “acabado”. Aobjetividade torna-se, portanto, insuficiente,pois o sistema jornalístico não pode ofertar averdade exclusiva em si mesma, diante de in-terpretações que situam essa verdade. Assim,a busca da verdade, ao contrário do que é lar-gamente alardeada pelos veículos e pelo am-biente acadêmico, é aberta e da ordem daincompletude.

No entanto, apesar de toda busca pelaobjetividade, a questão da incompletude, porexemplo, resulta dos vários enfrentamentosque os media têm, pois são um campo públi-co de tensão, disputa e negociação, em que seconfrontam mutuamente os diversos campos

sociais, os diferentes discursos e visões demundo, ideologias, culturas e interesses. Todoacontecimento assujeita-se, por isso, a umasérie de regras como condição para atingir vi-sibilidade e legitimidade sociais.

Poderíamos pensar que o discursojornalístico possui perfil seletivo, pois descar-ta a disponibilidade dos discursos, que não sãoúteis às condições de produção da sua ofertacomunicativa. Para os que permanecem, pre-domina uma relação de complementaridade,pois os campos se estruturam como diferen-tes, porque trazem, na sua condição, a com-preensão das suas singularidades, marcas dospróprios rituais, que lhes conferem as diferen-ças. Porém, o campo jornalístico posiciona-sediante dos demais, construindo o discurso queserá socializado e, em decorrência, acabadirecionando o desenrolar da própria realida-de. O veículo tem poder de relativizar, valori-zar ou desfazer o discurso dos outros; podedelegar ou tirar poderes, pois é ele que admi-nistra e opera o espaço, o palco de onde sediscursa sobre o cotidiano social. Possui, por-tanto, a competência específica junto aos ti-pos de discursos sociais e de sua penetraçãonas demais práticas discursivas.

45 FAUSTO NETO. Em busca da cena primária, s/d, p. 24.46 GOFFMAN, 1996.47 RODRIGUES, 1990, p. 224.48 Ibid.49 VERÓN, 1983. Refere-se ao modo como cada veículo modela seu discurso a fim de atingir o consumidor. Regula osvínculos e conduz a produção de sentido.50 SAPERAS, 1993, p. 54.51 MCCOMBS, 1981, p. 210-221.52 No sentido de relativizar o efeito de uma agenda sobre a outra.53 1979, p. 13.54 Id., iIbid.

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67Os media reelaboram o discurso das

demais instituições, transformando-os emoutros discursos, destinados a um público di-ferenciado. Porém, “as fronteiras (...) não são (...)sempre claras nem indiscutíveis, mas marcadas porrelações de permanente tensão, que podem muitas ve-zes despoletar situações de conflito”.47 As compe-tências moral e ética dos discursos mediáticosfazem parte da natureza tensional de suasinterações com os atores e campos sociais en-volvidos em determinado acontecimento.Entre outras funções dos discursos mediáticos,destacadas por RODRIGUES,48 revela-se afunção especular que diz respeito ao seu pa-pel estratégico dentro das sociedades moder-nas, tentando homogeneizar a vida coletiva e,também, as funções estratégicas de composi-ção do discurso mediático, cujas modalidadesmais importantes são a de naturalização, dereforço, de compatibiliza-ção, de exacerbaçãodos diferendos, de transparência e de altera-ção do regime de funcionamento. Mas é inge-nuidade pensar que o discurso mediático con-seguirá representar, a contento, os diversospontos de vista dos campos envolvidos, umavez que têm o seu próprio predomínio. As-sim, a tensão e o conflito convivem perma-nentemente nesse campo de negociação.

A reorganização e significação social docotidiano passa obrigatoriamente pelos mediaque operam por exemplo, através deagenciamentos, a visão social do mundo. Oleitor busca, no jornal, uma atualização docotidiano social. De certa forma, somos con-dicionados pelas agendas e pelos “contratos deleitura”.49 A “Agenda Setting Function”, parteda constatação de que, através da sua capaci-dade simbólica, os media exercem “(...) parainfluenciar e determinar o grau de atenção que o públi-

co dedica a determinados temas expostos à atenção eao interesse coletivos”.50 Sendo assim, podemospensar que a relevância de determinado assun-to ou a posição mercadológica de determina-da instituição e a sua imagem perante a opi-nião pública está vinculada à sua aparição nosmedia. Se isso for verdade, temos que reco-nhecer que os media, de certa forma, são um“termômetro” social, pois têm o poder de darrelevância a uns acontecimentos e de discri-minar outros, seja pela hierarquização ou dis-tribuição do espaço no veículo, seja por apli-cação de sanções, que acabam direcionando aprodução de sentidos dos consumidores.

A “Agenda Setting” postula que os con-sumidores incorporam a mesma relevânciadada pelos media nas suas próprias agendas,ignorando elementos histórico-sócioculturais,que também influenciam na avaliação dos re-ceptores para aceitação, ou não, da ofertamediática. “A idéia básica da ‘Agenda-Setting’ afir-ma a existência de uma relação directa e causal entre oconteúdo da agenda dos media e a subseqüente percep-ção pública de quais são os temas importantes do dia.Afirma-se uma aprendizagem directa por parte dosmembros do público relativamente à agenda dos me-dia.(...) A ‘Agenda-Seting’ origina-se no âmbito geralrelativo ao modo como as pessoas organizam eestruturam o mundo ao seu redor”.51

Relativizando essa influência, pensamosque, dependendo do tema, os consumidores,a partir de sua experiência, adaptam ou criama própria agenda, com certa autonomia,52 emrelação aos media. Acreditamos que a relevân-cia coincide apenas quando tocar em algumponto de sua experiência de vida; caso con-trário, o consumidor-cidadão fará a própriaseleção e até o descarte. Nesse sentido,

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68reportamo-nos a FLAHAULT,53 quando afir-ma que as palavras não têm o poder de criar oobjeto real a que se referem, mas possuem “umsentido, para quem as pronuncia ou as ouve, apenas seeste previamente deparou, fora do saber, com as reali-dades que essas palavras permitem detectar, mas cujaexperiência o seu uso não pode substituir”.54

Seguindo essa esteira, a análise da ca-pacidade de possível influência dos media no-ticiosos sobre a audiência deve levar em contavários elementos: a variedade de estilos apli-cados em cada veículo, condicionantes de or-dem tecnológicas e o perfil histórico-sóciocultural e político dos consumidores, queinfluenciam na processualização do sentidoofertado. Se não fosse assim, parece que esta-ríamos novamente retomando uma visão line-ar de causa e efeito.

Outra questão que julgamos relevantequanto à possível influência do discursojornalístico no tecido social é a tematizaçãoque representa os efeitos resultantes da capa-cidade simbólica dos media para estruturarema opinião pública que “(...) não consiste na genera-lização do conteúdo das opiniões individuais atravésde fórmulas gerais, aceitáveis por todo aquele que façauso da razão, mas sim na adaptação da estrutura dostemas do processo de comunicação política às necessida-des de decisão da sociedade e do seu sistema político”.55

Seguindo essa perspectiva, podemosafirmar que a opinião pública não se caracte-riza pela livre discussão de opiniões individu-ais e coletivas sobre temas diversos, mas, prin-cipalmente, através do sistema seletivo dosmedia que atribuem relevância a determina-dos temas.

A solução dos problemas de interesse

público se dá mediante constrangimentostecnoculturais e no confronto dos campos eatores envolvidos em determinado tema no“tablado dos media”. A tematização, portan-to, se define como “(...) o processo de selecção e devaloração de determinados temas de interesse introdu-zidos de forma contingente na opinião pública (...)”,56

reduzindo a complexidade da realidade sociale realizando uma mediação entre consumido-res e sistemas simplificados e homogeneizadosem que a opinião pública opera. Sendo assim,apesar das preferências individuais, os consu-midores podem optar somente entre as sele-ções temáticas previamente estabelecidas pe-los media.

Para adquirir relevância pública, o temadeve corresponder à fundamentação das re-gras57 prévias à tematização, ou seja, priorida-de clara de determinados valores, crises ou sis-temas de crise, status do emissor de uma co-municação, sintomas do êxito político, novi-dade dos acontecimentos e dores ou sucedâ-neos da dor na civilização. Os temas que nãose enquadram nesses critérios são simplesmen-te excluídos da comunicação pública comodesprovidos de valor cultural de interesse co-letivo, o que nos sugere a existência de umaacultura, ou melhor, uma cultura a margem damediática, não obrigatoriamente menos rele-vante.

A tematização é resultante de um pro-cesso seletivo que permite o conhecimento deproblemas com relevância social, mas signifi-ca também um tratamento estético da notíciaque determina a possibilidade da suacontextualização num discurso jornalísticomais amplo à sua interpretação e a solicitaçãoda atenção pública para certos aspectos da atu-

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69alidade do cotidiano social.

O “discurso da atualidade” é pautadono futuro, servindo de orientação para o pre-sente, vislumbrando e abrindo possibilidadese explorando as conseqüências de uma ação.Um trabalho que antecipa os desdobramen-tos dos fatos, que abre e indica caminhos, au-mentando, com isso, a sua autonomia e umacerta submissão dos demais campos. Estamosassistindo, em tempo real, a uma sociedadeorquestrada pelos media, cujo espetáculo sedá no seu tablado. No espetáculo do cotidia-no, portanto, os media acumulam a dupla fun-ção de maestro e de palco, enquanto que oscampos sociais se revezam como atores sobas regras e normas desse mediador, essencial-mente de caráter técnico.

Ao procurar entender o sistema demediatização no f luxo de suasinterdependências, não se pode ignorar a com-plexidade58 das interações sociais e do proces-so de produção, uma vez que sãoconstituidoras da totalidade. A complexidadeestá na circulação, nos envios e reenvios quepossibilitam inovação e realimentação ao sis-tema, pois, tirando a circulação da interação,restaria o isolamento dos campos. Assim, osenvios e reenvios, negociações e mediaçõestornam a mediatização complexa.

Só temos liberdade para escolher qual

o perfil com que mais nos identificamos; po-rém, a um deles temos que nos vincular, poisessa é a forma de que dispomos para acessarao cotidiano social em tempo real e na suapluralidade, mesmo de forma superficial. Des-sa forma, nesse jogo de mostra-esconde, so-mos todos, ao mesmo tempo, “livres e coagi-dos”.59

A interação entre os jornalistas e osacontecimentos também é elemento funda-mental de um sistema, pois o olhar/significa-ção é sempre singular, viabilizado pela experi-ência de cada sujeito que contamina e é con-taminado pelo de outros campos em interação.Por exemplo, cada veículo enuncia discursos,comprometido com as instituições que sãosuas fontes, anunciantes, concorrência, e, porsua vez, o jornalista faz a matéria para mantero status entre seus pares. Por isso, além dasreferências coletivas, as experiências individu-ais de cada campo e ator também são condi-ções de produção de sentido. A notícia é, por-tanto, uma construção feita diante de ingredi-entes de complexidades da atividade humanae da cultura de cada veículo. Essa soma de fa-tores aponta, pois, para o fato de que o dis-curso jornalístico é uma construção de um realem meio às incompletudes do que ele não podeinstituir ou objetivar.

55 LUHMANN, 1978, p. 97-98. O autor insere a sua definição de opinião pública e a sua elaboração de tematização noâmbito de uma das suas mais importantes contribuições para a sociologia sistemática: o desenvolvimento do conceito desociedade complexa, que podemos assimilar ao conceito de sociedade pós-moderna.56 SAPERAS, 1993, p. 94.57 BÖCKELMANN,1983, p. 65-80.58 Entendemos que o complexo faz parte do processo de mediatização, o que pode acontecer é de o olhar dos atores ecampos sociais envolvidos serem abortivos.59 FLAHAULT, 1979.

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