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Um retiro anual Vamos fazer o nosso retiro anual. É um fazer . Mas não, fazer no sentido de manufacturar uma coisa. No manufacturar uma coisa basta até certo ponto agenciar a coisa. Aqui no agenciar uma coisa não é importante se perfazer. Como o retiro anual não é uma coisa, mas sim um recolhimento no nosso próprio ser , no interior de nós mesmos , o fazer no retiro anual é um perfazer-se , i. é, trabalho de crescimento na maturação de transformação de nós mesmos, a partir da nossa essência: é a con-versão. Vivemos no agenciamento das coisas dos nossos afazeres. Fazemos isto ou aquilo. Perdemo-nos no afã dos trabalhos cotidianos, nos afazeres da nossa profissão, nas vicissitudes das solicitações da nossa situação. Nos tornamos sujeitos e agentes do fazer de agenciamento, e acossados pelo ritmos de produção, nos desgastamos, nos doamos sem retorno. Perdemos o senso e o jeito para o trabalho de per-feição de nós mesmos. Não sabemos mais nos recolher na ação penosa, apoucada mas fecunda do crescimento na maturação de transformação de nós mesmos a partir da nossa essência. É, pois, necessário reaprendermos a nos perfazer em nós mesmos. É necessário reaprendermos a nos concentrarmos e nos assentarmos na essência de nós mesmos: precisamos do retiro , do retiro anual. No retiro, nos retiramos. De onde, para onde? Do fazer dos afazeres e das vicissitudes dos nossos agenciamentos usuais...

Um retiro anual

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Um retiro anual

Vamos fazer o nosso retiro anual. É um fazer. Mas não, fazer no sentido de manufacturar uma coisa. No manufacturar uma coisa basta até certo ponto agenciar a coisa. Aqui no agenciar uma coisa não é importante se perfazer. Como o retiro anual não é uma coisa, mas sim um recolhimento no nosso próprio ser, no interior de nós mesmos, o fazer no retiro anual é um perfazer-se, i. é, trabalho de crescimento na maturação de transformação de nós mesmos, a partir da nossa essência: é a con-versão.

Vivemos no agenciamento das coisas dos nossos afazeres. Fazemos isto ou aquilo. Perdemo-nos no afã dos trabalhos cotidianos, nos afazeres da nossa profissão, nas vicissitudes das solicitações da nossa situação. Nos tornamos sujeitos e agentes do fazer de agenciamento, e acossados pelo ritmos de produção, nos desgastamos, nos doamos sem retorno. Perdemos o senso e o jeito para o trabalho de per-feição de nós mesmos. Não sabemos mais nos recolher na ação penosa, apoucada mas fecunda do crescimento na maturação de transformação de nós mesmos a partir da nossa essência.

É, pois, necessário reaprendermos a nos perfazer em nós mesmos. É necessário reaprendermos a nos concentrarmos e nos assentarmos na essência de nós mesmos: precisamos do retiro, do retiro anual.

No retiro, nos retiramos. De onde, para onde? Do fazer dos afazeres e das vicissitudes dos nossos agenciamentos usuais...

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Referente ao subsídio para a reflexão e estudo I

I. SECRETARIADO DA PASTORAL VOCACIONAL

Desafios:

Na pastoral vocacional, dar aos candidatos, desde o início, a compreensão da nossa vocação como vocação de ser não tanto padre, mas sim religioso franciscano, isto tanto para os candidatos leigos como clérigos. É que essa vocação de ser religioso franciscano é a nossa primeira e essencial tarefa, onde se exige tanto ou mais ainda de formação do que ser apenas padre.

Tirar portanto da orientação vocacional o resto da idéia obsoleta, se ainda houver, de que para ser irmão franciscano não se exige tanto estudar e se empenhar intelectualmente. Isso significa: tirar inteiramente de nossas cabeças o preconceito de que para ser irmão basta ser disponível, caseiro, serviçal e piedoso e que, para isso, não se requer tanto o empenho de uma busca espiritual mais exigente e estudos.

Rever e atualizar os critérios para a avaliação dos candidatos e sua recepção, tornando-os mais claros e exigentes em referência:

- exigências de estudos;

- um modo de ser pietista, tradicionalista no que toca à vida espiritual;

- valorização maior do modo de ser urbano, contra uma certa tendência condescendente para com o modo de ser rural.

II. SECRETARIADO DA FORMAÇÃO E ESTUDOS

Desafios:

Dar uma formação espiritual mais autônoma e mais exigente, que acompanhe as diferentes exigências de crescimento das diferentes etapas de formação, principalmente dos estudos de filosofia e de teologia.

Fazer um projeto mais claro e próprio para os irmãos, a partir das exigências e dos desafios que o ser religioso franciscano hoje propõe. Fazer esse projeto não apenas adaptando-o ao que já existe (p. ex. em Rondinha), mas digamos totalmente novo, dando bastante tempo e trabalho de preparação para que saia um projeto próprio, adequado, como existe para a formação do clérigo.

Já desde o tempo dos estudos de filosofia e de teologia, não ter receio de encaminhar os estudantes mais dotados nessas áreas, para que se preparem para a tarefa de formar-se para ser professor ou formador.

Rever a modalidade da formação intelectual dos seminaristas menores, no que se refere ao estudo do primário e do secundário. É que há nível de escolaridade bastante baixa, e isto também nos nossos seminários. Estudar, ao menos como alternativa, o projeto de formar os nossos seminaristas nos centros de estudo dos colégios que a Província tem e que são de exigências boas e bem altas.

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A respeito do projeto São Vicente, Petrópolis, colocar a questão com maior franqueza e objetividade, sem rodeios, sem esconde-esconde de interesses, com o medo de melindrar pessoas, para que o projeto possa ser discutido sobre a verdade mais explicitamente colocada.

SUBSÍDIO PARA A REFLEXÃO E ESTUDO II

1a parte:

Item 1. 2. 3.:

>>> Os sintomas descritos nos item 1,2,3 parecem indicar que reina entre nós uma grande ausência de um núcleo mais profundo e essencial, algo como um enraizamento maior na clarividência e na força espiritual, a partir da qual se torna possível toda a tentativa de melhoria. Todas as tentativas de revigoramento, remanejamento, incentivos vindos da psicologia, sociologia etc. etc., não surtem efeito duradouro, devido ao nível muito baixo de capacidade espiritual de todos nós. Estamos confusos, vagos, diletantes naquilo que é próprio nosso: o espiritual. O cultivo do engajamento no espírito é a tarefa da formação permanente.

Desafio: pois para a formação permanente no tocante ao 1, 2, 3 seria:

- Seja qual for a forma que a formação permanente tome no seu acionamento dentro da Província, aos poucos, mas metódica e conscientemente concentrar todos os esforços em adquirir ou em recuperar uma compreensão mais clarividente, essencial e exigente do que seja o espírito e a vida espiritual, limpando-os de preconceitos que vêm principalmente de tradicionalismo, progressismo, pieguismo etc.

- Para isso, criar um estilo de acionamento da formação permanente que não se disperse em aspectos psicológicos, sociológicos, pastorais, terapêuticos etc., mas sim que se concentre no espiritual no sentido todo próprio, evangélico e atual. Quanto aos aspectos psicológicos, sociológicos, pastorais etc., é interessante incentivar o estudo e o cultivo dos mesmos, mas como curso à parte.

2ª Parte

Apesar de muito boa vontade e de trabalhos estafantes que assumem na tarefa de coordenar uma Província tão grande como a nossa, parece haver da parte do Pe. Provincial uma falta de liderança mais clara. Assim, há muitas ações, decisões e declarações que no fundo acabam numa espécie de empurra-empurra de responsabilidades, com o medo de se queimar e queimar os confrades. Aparentemente parece haver muito mais diálogos e consultas do que antes, mas na realidade, por não se dizer a verdade de modo mais direto numa conversa pessoal mais demorada, talvez por receio de ofender etc., as coisas não ficam claras, criando assim uma sensação de confusão e ausência de rumo.

Desafio:

A equipe provincial precisa rever e repensar as suas funções com maior nitidez e executar realmente essas funções, não as deixando vagas etc.

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ESPIRITUALIDADE, ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA... O QUE É ISTO, REALMENTE?

Introdução

O tema do nosso encontro é: Espiritualidade, espiritualidade franciscana... O que é isto, realmente?

O tema, assim formulado, é muito vasto. Por ser vasto, se pode falar disso e daquilo e a gente sempre fala do tema, com o risco de, no entanto, dele nada ou pouco dizer. Por outro lado, por ser vasto, pode estar prometendo aos participantes do encontro tudo e nada, no sentido de cada participante, a partir da sua necessidade e expectativa, esperar do tema uma determinada abordagem.

Assim, para sair dessa perplexidade inicial de abordagem do tema, vamos recorrer a um expediente a modo de self-service nos restaurantes, onde se oferece o que se tem, e cada qual, se a comida for tragável de alguma forma, faz o seu próprio prato, conforme o seu estômago.

O que se oferece é uma compreensão particular da espiritualidade e da espiritualidade franciscana, bastante problemática, devido à situação em que me encontro. Não tenho formação na espiritualidade; sou portanto amador e diletante nessa matéria. As reflexões que consigo fazer de alguma forma, embora bastante espúrias, são de cunho mais filosófico. Por isso, as pessoas que entendem da espiritualidade dizem: “Isto que você diz ser espiritualidade realmente é filosofia e não propriamente espiritualidade”. Mas por outro lado, as pessoas que entendem da filosofia dizem: “É diletantismo, espiritualizar assim a filosofia, como você o faz, quando fala da espiritualidade”. Certamente, essas críticas mencionadas não são boa propaganda para a proposta da reflexão que segue. Mas é esta a realidade situacional, seu limite e sua possibilidade. Esta é pois a oferta da casa desse self-service de reflexão. Talvez a única coisa útil dessas reflexões é que elas podem suscitar questões.

A pergunta: O que é isto, realmente?

A pergunta o que é isto? é uma senhora pergunta. Na realidade, ela contém em si uma dupla tendência de busca.

A primeira tendência de busca nos é mais conhecida. É a busca que tenta determinar o que seja uma coisa, distinguindo ente e ente, coisa e coisa. Esse é o modo de buscar próprio das ciências positivas. Nessa perspectiva, poderíamos entender a pergunta do nosso encontro – o que é isto realmente, a espiritualidade? – como uma pergunta que capta o que é espiritualidade, distinguindo-a de um outra ‘realidade’, a ela afim, p. ex. da teologia mística, da psicologia profunda etc. Para que haja esse tipo de compreensão, é necessário haver uma afinidade comum a ambas as coisas, em cuja referência se pode estabelecer a diferença entre ambas. Nesse sentido, tanto a espiritualidade como a teologia mística estão subsumidas sob o conceito comum da teologia cristã. Por sua vez, a teologia cristã pode se distinguir da teologia muçulmana, tendo como base comum a teologia como tal. Mas por outro lado, a espiritualidade p.ex. pode servir de conceito comum, debaixo do qual se pode distinguir a espiritualidade dominicana, da espiritualidade franciscana. Assim se estabelece toda uma ramificação de divisão ou diferenciação ascendente e descendente. Descendente na direção da compreensão da

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‘coisa’, cada vez mais particular e individual, portanto na direção disto e daquilo; ascendente na direção da compreensão cada vez mais comum ou geral, cujo conceito o mais geral e comum é o do ser. Esse modo de compreender se chama generalização, trata-se da compreensão pela classificação. A ‘coisa’ aqui diferenciada e classificada se chama objeto. Generalização ou classificação é o modo como as ciências positivas ordenam os objetos do seu saber dentro de uma determinada perspectiva do seu projeto.

A segunda tendência de busca implícita na pergunta o que é isto? nos é menos conhecida, embora nós a exerçamos sempre de novo. É a pergunta filosófica pela essência de uma coisa. Por isso, o advérbio “realmente”, acrescentado à pergunta é apenas uma redundância. É modo de perguntar que vem da Antigüidade Grega e determinou a dinâmica da busca denominada filosofia ou metafísica que perfaz a vigor da assim chamada razão ocidental.

A pergunta O que é isto?, de hoje, está implícita na pergunta de antigamente tì tò ón (, que se traduz literalmente: o que é o ente? À primeira vista, a pergunta O que é o ente? parece não ter lá muita referência à nossa pergunta O que é isto? (espiritualidade, realmente?)..! Mas tem a ver, sim, e muito. Em que sentido?

Eu pergunto O que é isto realmente, a espiritualidade? Eu aponto o meu dedo para a espiritualidade e pergunto: isto ali, o que é? realmente, que coisa é? A espiritualidade é isto, algo consistente, um o quê ali já colocado. A esse o quê chamavam os antigos de substância, res, coisa. O quê está ali colocado diante ou ao redor de mim como um quê consistente, como uma substância, nós o chamamos de ente (res, coisa, realidade, realmente). Estamos pois perguntando: o ente, o quê é?, o que está na dinâmica do em sendo, o ens, o ente? Estamos submetendo a espiritualidade ao interrogatório, buscando interpelá-la, para que ela nos diga, nos confesse em que consiste o seu ser.

Assim, a pergunta O que é ente? (tì tò ón) tem uma afinidade toda própria com a pergunta O que é isto, a espiritualidade, realmente?, no sentido de buscar a compreensão do ente (da coisa). Mas ao mesmo tempo é diferente em referência à primeira tendência da busca existente na pergunta pela espiritualidade, formulada como o que é isto. Pois aqui nessa segunda tendência também implícita na pergunta o que é isto, não se busca compreender o ente, distinguindo-o do ente, mas sim diferenciando o ente do ser, e tentando captar o ente no seu ser e o ser no seu ente . Portanto: essa senhora pergunta, em tendo diante ou ao redor de si o ente, a coisa indicada com o nome espiritualidade, a submete ao interrogatório, investigando-o no seu ser: o que é isto, a espiritualidade, realmente? Aqui nessa orientação da busca, não permanecemos na coisa, no ente, nisto ou naquilo. Ultrapassando na busca todas as ramificações (sub e/ou supra-ramificação) classificatórias da coisa ou do ente, indagamos junto do ente, esteja ele em que nível de ramificação estiver, pelo seu ser. Esse ser acerca do qual a pergunta submete o ente ao interrogatório não coincide com o ser acima mencionado como o conceito o mais comum ou geral na escala ascendente da ramificação generalizante. O que é o ser, a essência de um ente, ou de uma coisa? Para compreender o que é o ser, a essência, reflitamos rapidamente acerca dessa segunda tendência da busca que está na formulação o que é isto, o ser ? (aqui a espiritualidade), que usualmente na Filosofia hoje recebe a denominação de Questão do sentido do ser, examinando o que é questão e o que é sentido.

Questão do sentido (do ser)

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Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere). Significa: buscar, procurar, sentir falta e ir atrás do que me falta, investigar, pesquisar, perguntar, fazer perguntas para saber a verdade, interrogar, indagar, inquirir, perquirir, esquadrinhar. A palavra portuguesa querer vem também do quaerere. É um ato ou uma ação da qual temos experiência no nosso cotidiano. Mas talvez não pensamos muito a estrutura interna própria, sui generis dessa ação que no fundo impregna todos os nossos atos, no que eles têm de saber e conhecer, de compreender. Só que aqui saber, conhecer, compreender, o que usualmente chamamos de intelectual ou racional, não deve ser entendido como se fosse um ato ao lado de outros atos, mas sim como elemento fundamental que impregna, está em todos os atos como um seu momento essencial. É algo semelhante à claridade (-obscuridade) que está em diferentes intensidades em todas as cores, sejam elas quais forem. Questão portanto é ato ou ação de buscar conhecer, mas no sentido de investigação ou de interrogação, de ir atrás das coisas, para desvelá-las, para desocultá-las naquilo que elas realmente são .

Sentido do: sentido pode significar “os sentidos” i. é, os “órgãos” de captação que denominamos vista, ouvido, olfato, gosto e tato. Refere-se portanto ao modo de conhecer chamado conhecimento sensível, cuja capacidade se chama sensibilidade ou sensualidade. Mas significa também significação, importância, meta, o móvel, como quando p. ex. dizemos: o sentido da vida. Sentido do ser significaria nesse caso: significação do ser; importância do ser; a meta, o móvel do ser...? Infelizmente todas essas palavras acima mencionadas não conseguem dizer bem o que se deve entender por sentido, quando dizemos questão do sentido do ser. Tentemos, pois, através de umas descrições circunvagas, acercar-nos melhor do que quer dizer a palavra sentido na expressão “questão do sentido do ser”.

Sentido vem do verbo latino sentire (sentio, sensi, sensum, sentire). Sentire quer dizer sentir, perceber, captar, entender, compreender, adivinhar. Significa também apreender com 5 sentidos, sofrer a captação, ser passível de atingimento, ser sensibilizado no sentimento. Trata-se, pois, de um ato de conhecer, mas com um cunho, um modo todo próprio. Em que consiste esse modo todo próprio? Consiste naquele modo de captar que ocorre, quando percebemos, apreendemos as coisas através dos sentidos sensoriais. Só que, aqui, quando falamos de sentidos sensoriais, devemos nos livrar das representações que já de antemão fazemos, quando falamos de sentidos (enquanto 5 órgãos da apreensão sensível). Pois essas representações já estão de tal maneira fixas, em demasiado, dentro de uma interpretação psicológica e também metafísica dos sentidos e da percepção sensível como da apreensão sensorial, que não nos libertam o próprio fenômeno vivenciado na percepção sensível. A percepção sensível em todos os 5 sentidos contém em si uma acentuada predominância da passividade receptiva. Se nos libertarmos da representação, que bloqueia a imediata percepção da vivência como tal e que a congela dentro de uma determinada interpretação tradicional psicológica e também metafísica do que é percepção sensível, podemos intuir de imediato que essa passividade é o que constitui digamos o vigor essencial, a vida propriamente dita dos sentidos ‘sensoriais’ e das suas apreensões, e ao mesmo tempo das percepções do sentimento, do conhecimento (mesmo intelectual e racional) num certo nível da profundidade da sua constituição. Mas, em que sentido? E como? Para intuirmos tudo isso, vamos mexer um pouco na nossa compreensão usual do que seja a passividade.

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Usualmente a passividade e a atividade são representadas como movimento de uma coisa física. O ativo é algo em movimento físico e o passivo é algo parado. Essa compreensão do ativo e passivo segundo o movimento físico, é a mais estática que possuímos. Ela é inteiramente inadequada para captar a atividade e a passividade dos entes vivos, muito menos dos fenômenos humanos, principalmente da liberdade. Nos fenômenos dos entes vivos e nos fenômenos humanos, passividade e atividade não são propriamente duas coisas opostas. Elas são por assim dizer dois momentos recíprocos de uma e mesma dinâmica. Na dinâmica da vida e da liberdade, o momento passivo é como que o fundamento do momento ativo. A passividade ali é como silêncio de fundo onde toa e repercute o som (= atividade). É como a abertura de possibilidade do todo (=passividade), dentro da qual surgem as diferentes concreções (atividades). É que toda e qualquer atividade, primeiro deve ser possibilitada através de uma recepção prévia do todo, do horizonte, do espaço da possibilidade, dentro do qual se tornam possíveis e atuais as diferentes e variegadas atividades. (Descrever esse fenômeno, p. ex., no Volley na importância decisiva da recepção do saque inimigo para todo o processo posterior do jogo; na concentração de toda a orquestra para receber a possibilidade do lance da totalidade possível da sinfonia no toque inicial).

Na passividade receptiva que, por assim dizer, prepara o ponto de salto do surgimento da possibilidade do todo, no qual se sucedem as concretizações ativas da realização de uma obra, surge uma abertura de disponibilidade atenta a um a priori. Esse a priori não é uma possibilidade ali prejacente como espaço vazio, espaço-vácuo de privação e carência, mas sim um toque vivo, algo como direção prévia de condução, prenhe de esboços de consumação vindoura. Esse ductus prévio do toque na condução para a consumação final que há de vir se chama SENTIDO; e o seguir esse ductus se chama sentir. Sentire, sentir significa portanto a dinâmica do atingimento do lance inicial, a dinâmica do princípio-envio: o a-viar-se, o seguir, ir atrás de uma direção viva prévia, ir atrás de vestígio, in-vestigar. É nesse sentido de encetar o caminho, do enviar-se, do aviar-se que a palavra alemã para o sentido, Sinn, para sentir, sinnen, cuja forma antiga é sinnan, significa: viajar, ir, tender. O sentido é, portanto, o ductus, a direção, que se dá como o(s) esboço(s) do todo, sob cuja orientação a nossa busca se a-via na investigação do que há de vir como o desvelamento do que ali sempre sub-siste sem ser isto ou aquilo, como abismo insondável de possibilidades sem fim.

Essa disposição para o ductus do abismo insondável da possibilidade se chama a espera do inesperado.

O ser jamais o captamos como objeto, como coisa ou ente. Pois o ser somente vem à fala no momento do toque da disposição da espera do inesperado. Como entender melhor essa presença do ser que jamais pode ser captado como objeto-ente, mas sim “sentido” como ductus de uma condução? Uma possibilidade disso seria perguntar, junto do ente, junto da coisa, disto e daquilo, e em perfazendo o movimento da generalização que é ao mesmo tempo de particularização, na acribia de classificação. E se fizermos tudo isso até os limites da possibilidade de ‘tudo’ saber a modo de classificação sobre isto e aquilo, ‘sentiremos’ a fixação dessa primeira tendência da pergunta “o que é isto?”, numa predeterminação do sentido do ser como coisa, o quê, como substância que está oculta debaixo do conceito o mais comum do ser no processo de generalização. Na medida em que sentirmos essa predeterminação como aquilo que nos dá a base para podermos processar a classificação do nosso saber sobre isto e aquilo, percebemos a grande indeterminação desse conceito do ser geral e comum.

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Indeterminação que guarda e conserva como tesouro precioso, mas ao mesmo tempo nos esconde e encobre a “realidade” do sentido do ser.

Examinemos à guisa de repetição, à mão da pergunta “o que é isto a espiritualidade, realmente?”, esse sentido predeterminado do ser comum e geral como coisa que nos encobre a profundidade dinâmica do sentido do ser, ao mesmo tempo em que nos dá a segurança e fixação para podermos elaborar o nosso saber a modo de classificação.

A ambigüidade da pergunta “o que é isto”, na ânsia do saber sobre

O que é isto, a espiritualidade, realmente? O que é isto? Nessa formulação da pergunta estamos submetendo a espiritualidade ao interrogatório, buscando interpelá-la, para que ela nos diga, nos confesse em que consiste o seu ser. Em vez de ser dizemos também essência.

Essência é aquilo que faz com que uma coisa seja o que ela é nela mesma; o que ela é realmente.

Tudo isso nos soa terrivelmente monótono, chato, abstrato e formal. É que são arrazoados da filosofia!! De que se trata, pois, mais concretamente, ou melhor, mais realmente?

Observemos atentamente a situação: ao perguntarmos pela essência da coisa, exigimos, sim sentimos a necessidade de que a resposta seja real: O que é isto, a espiritualidade, realmente?

O que estamos buscando? A essência, o ser da espiritualidade.

Na exigência, está pressuposto que encontremos a coisa ela mesma, realmente. Por que será que a formulação coisa ela mesma realmente nos soa concreta, real; ao passo que essência ou ser nos soa abstrato, formal, sim ‘filosófico’?

Resposta: É porque ao perguntarmos O que é isto, realmente a espiritualidade , na impostação da busca já estamos predeterminados no que se refere à compreensão da essência ou do ser numa expectativa : a saber, de querer compreender a essência ou o ser de um ente como coisa, como um quê, como isto ou aquilo. Com outras palavras, ao buscarmos, em perguntando o que é isto, a espiritualidade, realmente , a nossa busca só está interessada, sim, disposta em compreender, distinguindo coisa e coisa, diferenciando ente e ente. Assim, p. ex. queremos saber concreta e realmente, i. é, a modo da diferenciação existente entre uma coisa e outra, em que consiste a diferença entre a espiritualidade e teologia, entre espiritualidade e mística, psicologia, sociologia, espiritualidade budista, comunista etc.; em que consiste o próprio de uma coisa e o próprio da outra.

O que acontece com a nossa busca, com a nossa pergunta, se a essência, o ser de uma coisa, não for coisa?; ou melhor, não corresponder no seu modo de ser ao modo de ser da coisa? Acontece que a busca na sua procura da compreensão, por não encontrar o modo de ser prefixado, habituado, o modo de ser no qual con-cresceu e se tornou concreta, só encontra diante de si uma indeterminação, um vácuo, um nada confuso, o qual tenta de alguma forma coisificar como abstrato, formal, indeterminado. Acontece que essa indeterminação, esse caráter de ser abstrato e formal, atribuído à essência, ao

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ser, excita em nós uma irritada impaciência que exige na busca uma solução, uma finalização mais determinada, mais concreta, mais real, i. é, mais coisa: O que é isto a espiritualidade, realmente?

No entanto, essa irritada impaciência só surge, para quem o interesse da busca chegou a um certo nível de engajamento. Nível de engajamento da busca que não se contenta mais com as explicações, definições e compreensões que distinguem ente e ente, coisa e coisa, e que estão em uso como nosso saber ordinário, óbvio do senso comum, na vida e nas ciências.

Com outras palavras, a busca que pergunta com irritada impaciência: Afinal de contas, o que é isto, realmente, a espiritualidade, está impaciente e irritada, porque não está mais na tranqüila indiferença de estar instalada bem “burguesmente” no saber óbvio do seu uso, quer na vida, quer nas ciências, que apenas constata fatos; mas porque está buscando mais amplamente, mais profundamente e mais originariamente. E, no entanto, ao mesmo tempo essa irritação e impaciência mostra que a pergunta ainda não percebeu que a essência, o ser, o que constitui o mais amplo, o mais profundo e o mais originário de uma coisa não pode ter o mesmo modo de ser como disto ou daquilo. Por isso, ela tem ainda a expectativa de encontrar a essência e o ser como coisa, como concreto e determinado a modo disso ou daquilo. O estado de coisa não muda essencialmente, mesmo que a pergunta não apresente em si ‘psicologicamente’ esse caráter de impaciente e irritado, mas com muito interesse e curiosidade busca averiguar melhor e mais os fatos. A pergunta assim impostada, embora já esteja no nível de uma busca mais intensa, ainda não entrou no “estado de choque”, muito menos no “estado de graça” da pergunta pela essência, pelo ser. Para isso, seria necessário despertar para a pergunta de modo todo próprio e novo, entrando mais e mais na radicalização do inter-esse da pergunta essencial. Isto significa por sua vez que a pergunta o que é isto, realmente, a espritualidade? é uma daquelas perguntas que exigem uma determinação maior. No entanto, não da determinação da área ou do âmbito do objeto da pergunta, como que querendo distinguir entre coisa e coisa, entre uma área de coisas e outra área de coisas, mas determinação no sentido de decisão da disposição de engajamento radical na busca de quem foi atingido por um toque de fascínio e atração, sim da necessidade de uma busca que o lance para fora de si, na disposição clara e precisa da espera do inesperado. Essa disponibilidade é o que chamamos de Pergunta pela essência, pelo ser de uma coisa.

Pergunta pelo ser, sentido do ser e o saber originário

Em perguntando “espiritualidade, espiritualidade franciscana, o que é isto, realmente?”, estamos ao mesmo tempo colocados em 2 tendências atuantes na nossa existência: a) na busca do saber sobre uma coisa, de modo ordenado, coerente, bem organizado, partindo da compreensão mais geral do ser até o mais particular e, vice-versa, do mais particular até ao mais geral. Esse modo de compreender os entes na sua totalidade, porém, já parte a priori de uma prefixação dos entes como coisas, põe a coisa como objeto sobre o qual adquire conhecimentos, certos e adequados. No jargão filosófico dizemos então: o ser das coisas é coisidade; b) na busca do sentido do ser de cada ente, cada vez na sua totalidade, em cuja busca não sabemos de antemão o sentido do ser, mas antes nos dispomos na atinência absoluta da espera do toque do sentido do ser. Aqui não pomos o ente como objeto. Antes, deixamos ser no ductus do sentido do ser que vem. O que assim vem à fala jamais é uma coisa, um objeto, mas sempre um

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mundo. Trata-se pois de um “saber” não mais no sentido de um conhecimento sobre isto ou aquilo; mas sim de um conascer, tornando-se todo ausculta e ressonância da gênesis de um mundo no seu sabor de origem, i. é, no seu surgir, a partir da imensidão, profundidade e criatividade da vigência da Vida. Trata-se pois de um saber todo próprio, elementar e originário, com suas leis, métodos, conceituações e precisões lógicas próprias, portanto uma ciência, não mais a modo das ciências positivas, mas sim a modo originário. A esse modo de saber, a tradição do Ocidente chamou-o de Espírito. É esse modo todo próprio de saber que caracteriza o saber próprio de três dimensões fundamentais criativas da existência humana, a saber, a dimensão fé, arte, e pensar. Embora haja diferença própria cada vez no saber originário dessas dimensões, o seu modo de ser é o mesmo. Assim, o que na nossa fé (“religião” cristã) chamamos de espiritualidade é esse modo todo seu do saber originário na dimensão da fé. Por isso, a reflexão que quer pensar a espiritualidade, mesmo que o faça a partir da filosofia, deve na dimensão do pensar, tornar-se no seu modo de “saber” o mesmo da espiritualidade, i. é, espírito.

O saber da ciência originária é o corpo a corpo da existência como seu sopro vital

Essa disposição ou exposição clara e precisa da espera do inesperado que é a pergunta pela essência, pelo ser é o corpo a corpo da existência como sopro vital.

Mas o que se quer dizer com a expressão corpo a corpo da existência como sopro vital? Corpo a corpo é quando nos doamos, nos engajamos de tal sorte que damos tudo que somos e temos, direta e simplesmente, na absoluta positividade, incondicionalmente, na total necessidade da liberdade para. Esse modo de ser é o que chamamos de autonomia da liberdade, o ter que ser da liberdade que constitui a essência da existência humana. Esse modo de ser do corpo a corpo da liberdade para é o que caracteriza, o que o Ocidente chamou de espírito. É que spiritus significa sopro vital. E o sopro vital é tudo que temos e somos elementarmente.

Perguntamos como tema: Espiritualidade, espiritualidade franciscana... o que é isto, realmente, a espiritualidade? Na medida em que examinamos o que se busca com essa pergunta, percebemos que o modo de ser da pergunta pela essência ou pelo ser tem o modo de ser do espírito. Examinemos pois esse modo de ser do espírito, lendo os seguintes textos.

Textos e troca de idéias

RegNB, XI: E todos os irmãos cuidem de si (sibi) para que não se caluniem, nem contendam em palavras (verbis) (cf. 2 Tim 2, 14); antes realmente (immo) se empenhem em reter silêncio, quando quer que Deus lhes alargue a graça (gratiam largietur). Nem litigiem entre si, nem com outros, mas procurem humildemente responder dizendo: Somos servos inúteis (cf. Lc 17,10).

EpMin: Frei N, ministro: O Senhor te bendiga (cf. Num 6, 24a). Digo-te, assim como posso, do fato da tua alma (de facto animae tuae), que aquelas coisas que te impedem de amar ao Senhor Deus, e aqueles que te fizerem impedimento, sejam ele frades ou outros, também se eles te fustigarem, tudo deves tê-lo por graça (pro gratia). E assim queiras e não outra coisa. E isto seja a ti por (per) verdadeira obediência do Senhor Deus e minha, porque firmemente sei que esta é a verdadeira obediência. E os ames

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(dilige), os que te fazem estas coisas. E não queiras outra coisa deles, senão quanto o Senhor te der. E nisso os ames; e não queiras que sejam cristãos melhores.

Beato Frei Egídio de Assis, Ditos Notáveis: Cap. XV: Da cautela espiritual a qual deve-se ter continuamente.

Se queres ver bem, arranca os olhos e sê cego; se queres ouvir bem, sê surdo; se queres andar bem, amputa teus pés; se queres operar bem, amputa as mãos; se queres bem amar, tem-te ódio; se queres bem viver, te mortifica; se queres lucrar bem, saiba perder; se queres ser rico, sê pobre; se queres estar em delícias, aflige-te; se queres estar seguro, estejas sempre em temor; se queres ser honrado, despreza-te e honres os que te desprezam; se queres ter o bem, sustenta o mal; se queres estar em quietude, trabalha; se queres ser bendito, deseja ser maldito. Oh quão grande sabedoria é saber fazer isto! Mas, porque estas coisas são grandes, são dadas mas não a todos.

Se o homem vivesse mil anos e não tivesse algo a fazer além de cuidar do seu osso, teria bastante a fazer para dentro do seu coração, nem poderia chegar à perfeita consumação, tanto teria a fazer somente para dentro, no seu coração.

Quem não fizer de si duas pessoas, juiz e reitor (D. juiz e razão) não pode ser salvo. Ninguém deve querer ver ou ouvir algo, ou falar de alguma coisa a não ser só até aquilo que é para a sua utilidade e de nenhum modo proceder para além. Quem não quer conhecer, não será conhecido. Mas ai de nós, porque aqueles que têm os dons do Senhor não conhecem; e os que não os têm não os buscam.

O homem configura a Deus como quer; mas Ele mesmo sempre é tal qual Ele mesmo é.

Mc 12,43-44: E chamando a si os discípulos, disse-lhes: Em verdade eu vos digo que esta viúva que é pobre lançou mais do que todos os que laçaram moedas ao tesouro. Pois todos os outros lançaram do que lhes sobrava. Ela, porém, da sua penúria lançou tudo que tinha, toda a sua vida.

O espírito da razão ocidental

Esta disposição da busca como a espera do inesperado, nesta pura exposição ao limite de si mesmo na doação corpo a corpo à possibilidade da própria impossibilidade, aparece no Ocidente no início, como Espírito e depois como Razão. Por Razão Ocidental, entendemos a paixão sui generis de um saber todo próprio e dominante que antes de tudo e continuamente e sempre de novo coloca em questão suas próprias pressuposições e busca sempre de novo o fundo do que ali já prejaz como realidade e sua verdade.

Essa paixão apareceu inicialmente nos gregos como Logos; nos medievais, como mens e sua speculatio e hoje aparece no matemático das ciências físico-matemáticas, das assim chamadas ciências naturais. O matemático das ciências naturais porém é ambíguo: por um lado indica as disciplinas matemáticas; por outro lado a essência do matemático. Para podermos ver melhor a essência do matemático nesse sentido essencial como o próprio do nosso modo de ser e pensar moderno, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do matemático e em que sentido o matemático, conforme o

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élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.

O matemático e o “eu penso” de Descartes

Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela também acerca do ente na sua totalidade aparece em Descartes.

Costumamos citar Descartes como aquele que realizou a ruptura revolucionária contra o passado, no pensamento moderno. Assim, é praxe dizer que Descartes, em duvidando metodicamente de tudo, a modo de alguém que diz ‘suponhamos, façamos de conta que tudo é duvidoso’ nos conduz gradualmente, de um conhecimento mais duvidoso para um menos duvidoso, até numa aproximação cada vez maior se achegar à verdade certa e indubitável no fato da existência de um eu que tudo pensa, tudo sente, tudo percebe, portanto do eu-sujeito, do núcleo do solipsismo do subjetivismo moderno. Daí a nossa mania de colocar o pensamento moderno como filosofia da imanência do subjetivismo, unilateral, centrado em si, antropocêntrico, em contraposição à tradição, que era realista, aberta ao Ser, teocêntrica, universal etc. Mas talvez em Descartes, a afirmação absoluta do “Eu penso, logo sou” não tenha muito a ver com o subjetivismo, nem com a imanência antropocêntrica, mas sim com o matemático das ciências modernas.

Pois na Modernidade, através das ciências naturais iniciantes, aos poucos, com a redução da explicação da natureza a extensão quantitativa, a movimento, massa e suas localizações no tempo e no espaço homogêneo, começa a dominar a compreensão matemática do universo. A essência do matemático que aparece aqui nessa interpretação físico-matemática do universo, do mundo, ultrapassa o nível das ciências naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto apriori, lançado não tão somente por sobre os corpos físicos da Natureza, mas sim por sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida pela qual os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projecto tem por pretensão e exigência fundamentar-se, fundar-se a si mesmo a partir e dentro de si, a ponto de, aqui, tudo que vem à fala já estar como já sempre sabido. Essa paixão da autoidentidade implica que se coloque em questão todo o saber até o presente, independente se esse saber era sustentável ou não. Nesse sentido, Descartes duvida, não porque é céptico. Ele duvida de tudo porque coloca o matemático como o absoluto fundamento para todo o saber. Ele busca encontrar não somente uma lei fundamental para o reino da Natureza, mas para o saber do ente no seu todo. Essa posição fundamental matemática não pode ter nada que seja anterior a ela, não admite, não suporta nada que lhe fosse dado previamente a ela. Nada aqui pode ser pressuposto. Se aqui algo é dado, então tão-somente a própria posição (como ato, como ação) no sentido do pensar que põe o projeto como autoposicionamento autônomo do matemático, i. é, da evidência a partir de si nela mesma. É o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manthánein grego ( ).

Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. Nesse “eu penso”, nessa ação do autoposicionamento é que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” é que se expressa na fórmula: SOU. Cogito, ergo sum, i. é, cogito:sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição

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como autoresponsabilização, a densidade de autoidentidade da autopresença de si a si mesmo: = subiectum, i. é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, i. é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto, subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do Homem. Somente quando a essência, i. é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do matemático que é e está no “Eu” não é mais vista, é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.

O “Eu penso: sou” assim compreendido, portanto, não é o polo subjetivo de um outro polo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “penso”, o esquema sujeito - objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes, o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do sujeito-eu na sua autoidentificação. Pois no cogito, i. é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, se funda o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vêm ao encontro a lance do projeto, i. é, ao “meu” encontro como ob-jecto, i. é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto.

Dar-se a si mesmo a partir de si, na coerência dessa autodoação, e permanecer na absoluta fidelidade dessa autoafirmação, aparece inicialmente como hibris da “autonomia” da negação da dependência e da alteridade, como o fechamento imanentista no endeusamento do eu-sujeito-homem. Na realidade esse modo de aparecer como hibris pode ser apenas um efeito colateral da Razão Ocidental, do Espírito, que vem a si, sempre mais na clara e precisa, portanto na pura captação de si como exposição corpo a corpo à possibilidade da impossibilidade de si como a espera do inesperado.

Conclusão

Iniciamos a nossa reflexão, examinando a última parte do título do nosso encontro: espiritualidade, espiritualidade franciscana..., o que é isto, realmente? Essa pergunta pela essência, pelo ser de uma coisa nada mais é que o modo de ser que no Ocidente recebeu o nome de Razão Ocidental ou Espírito. Espírito aqui é uma atitude, atitude expressa na formulação: corpo a corpo da espera do inesperado. É aqui que reside, não a hibris da autoafirmação e autosuficiência do endeusamento do homem, mas sim a radical autoresponsabilização da busca da verdade, que em assumindo a indigência da sua total finitude, leva a finitude, na doação de si, ao ponto de tornar-se corpo de impossibilidade de não poder ser a não ser apenas a pura doação de si, sem por que, sem para que, na pura aseidade da simples doação.

Quem hoje, em sendo acadêmico, em se doando à busca do intelecto, indaga pela espiritualidade, sem se empenhar em levar o próprio intelecto a essa radicalidade moderna da sua racionalidade, transforma a espiritualidade apenas num instrumento do seu poder, tornando-a pietista, fundamentalista, carismática.

Por isso, é de decisiva importância perguntar: Espiritualidade, espiritualidade franciscana... O que é isto, realmente?

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A espiritualidade

Introdução

Dissemos na I reflexão acerca da pergunta Espiritualidade, espiritualidade franciscana... O que é isto, realmente?que nessa pergunta formulada O que é isto? se oculta a pergunta pelo sentido do ser da espiritualidade. E que essa pergunta pertence à busca da essência, que tem o modo de saber todo próprio, caracterizado como interrogatório junto da coisas acerca do seu ser. E que essa pergunta acerca do ser na sua radicalidade não é outra coisa do que a disposição da espera do inesperado, na ausculta do sentido do ser. Dissemos também que, embora esse modo de ser da disposição da espera do inesperado no Ocidente, que recebe o nome de Espírito nas vicissitudes da Razão Ocidental, tenha tomado nos nossos tempos a forma do Matemático, ele permanece na sua raiz à espera do inesperado. Dissemos também que hoje, nós que aqui reunidos perguntamos “espiritualidade, espiritualidade franciscana, o que é isto realmente?” corremos o perigo de falsear a compreensão da espiritualidade cristã, se não levarmos a sério esse modo de ser “radical” que pulsa no subterrâneo da razão ocidental como Espírito.

Surge aqui uma suspeita: Não é essa disposição da espera do inesperado que no Ocidente, entre muitos outros nomes, recebeu principalmente o nome de Espírito, não é esse Espírito a essência da espiritualidade?

A resposta é: não exatamente. Pois essa espera do inesperado é antes a essência da ciência e da filosofia, que se move na dimensão do pensar. Ao passo que a espiritualidade cristã, se move no seu pensar, querer, sentir, agir e ser na dimensão da fé. Isto significa que nós, cristãos da epocalidade moderna, em hoje colocando a espiritualidade sob o interrogatório acerca do seu ser ou da sua essência, estamos convocados para uma tarefa toda própria e epocal, de buscar a radicalidade do pensar e da fé, não na fácil síntese colocada a modo de uma “filosofia cristã”, mas sim na precisão de uma diferenciação radical dessas duas dimensões de totalidades absolutas, e justamente nessa diferenciação radical entrever um encontro próprio da espera do inesperado com a essência da espiritualidade cristã na identidade de um diálogo sui generis que caracteriza o mistério da encarnação.

Nesse nosso encontro não vamos falar tematicamente da essência ou do ser da espiritualidade cristã. É que para isso falta-me um preparo melhor, e também o tempo para isso não é suficiente. Antes, reflitamos assim avulsamente uma questão, referida sim à essência da espiritualidade cristã, mas por assim dizer indiretamente, não satisfazendo completamente o tema do nosso encontro que se intitula: Espiritualidade, espirtualidade franciscana... o que é isto, realmente?

Trata-se de uma questão que aparentemente vem da necessidade prática na formação da vida religiosa consagrada. Nessa formação distinguimos usualmente entre a formação inicial e formação permanente ou continuada. Na formação inicial estudamos a espiritualidade. Depois continuamos em cursos de atualização e outros agenciamentos de reivitalização espiritual estudando espiritualidade. O que fazemos realmente e o que entendemos por espiritualidade em tudo isso que fazemos na formação inicial e continuada? E para os que são clérigos e devem estudar filosofia e teologia, como se relaciona esse estudo com a espiritualidade e vice-versa? Com outras palavras, como se

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relacionam a formação espiritual e os estudos filosófico-teológicos e os estudos técnico-científicos das profissões que exercemos como religiosos? Não é assim que aqui nessa questão reina quase em toda parte uma perplexidade, devido a insegurança, indeterminação, sim confusão; e lá onde não há aparentemente perplexidade e tudo vai assim normalmente bem a modo da normalidade “invejável” da sã razão comum, o que há realmente não é tanto normalidade, mas sim antes ingenuidade, alienação tradicionalista e acomodação? Em sendo franciscanos, somos ao mesmo tempo mais ou menos ou fanaticamente carismáticos, focolarinos, da espiritualidade do catecumenato, fãs do método de meditação inaciana, juntamente com zen, yoga, tai-chi-chuan à la new age, ora com acento nitidamente “socialista” e socializante, ora com um sabor agri-doce do pietismo, de um misticismo particularista, misturado com psicologismo barato. E reagindo contra essas confusões, uma insistência fanática na volta às fontes da espiritualidade fundacional, que raia ao terrorismo espiritualista do fundamentalismo partidarista ou à ingênua infantilidade de um franciscanismo esteticista e romântico ao sabor da simplicidade ecológica de um irmão sol e irmã lua etc. Ou quando deixando de lado toda essa confusão, insistimos em dar e receber uma formação espiritual mais sóbria, fundamentada, a partir das fontes franciscanas, em recorrendo aos estudos científicos, recitamos interminavelmente jargões cientificistas de uma historiografia monótona, sem vida nem espírito, reduzindo o carisma e o vigor do Espírito a fatos historiográficos, sociológicos ou vivências psicológicas de indivíduos ou grupos.

Em tudo isso, porém parece haver uma dupla tendência na compreensão do que seja a espiritualidade, a saber, de um lado a espiritualidade deveria ser um saber objetivo, uma ciência fundamentada pela historiografia, sociologia, principalmente pela psicologia etc.; de outro lado a espiritualidade não seria nada assim “intelectualizada e racionalista”, mas sim vivência, crença, práxis e visão do mundo e da vida, portanto mundividência ou mundivisão. (cf. o critério de composição das matérias de um curso de espiritualidade p. ex. franciscana). Anterior a todas essas divisões em área das ciências e em áreas de mundividências, em áreas do conhecimento real objetivo e áreas da experiência subjetiva, não haveria uma “realidade” básica, fundamental, e sua captação própria, acessível a todos? Acessível e digamos natural, cuja tomada de conhecimento exige de cada qual muito estudo e trabalho adequado? Digamos uma ciência, mas ciência elementar, originária, concreta e vital?

A proposta para a reflexão do nosso encontro acerca da espiritualidade é: considerar a espiritualidade como uma ciência, mas como uma ciência toda própria, digamos originária e elementar do que chamamos de Espírito i. é, do sopro vital do cristianismo. Dito de outro modo, a espiritualidade seria a teologia por excelência.

A proposta dessa ciência originária teria o estilo do que a filosofia moderna no seu início, p. ex. em Descartes (1596-1650) denominou de mathesis universalis ou em Pascal (1623-1662) recebeu o nome de espírito de fineza (em contraste com o espírito de geometria). Esta seria o tomar “conhecimento” da experiência imediata e concreta originária da Vida, de modo imediato e vivo, mas “sabida”, i. é, saboreada nas estruturações concretas do seu surgir e constituir-se como “clarear-se e se fazer mundo” no sentido do verbo grego phaínesthai (phaínein).

Espiritualidade como clarear-se e se fazer mundo

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Clarear-se e fazer-se mundo se diz em grego phaínesthai. E o que se clareou e se fez mundo se chama phainómenon, em português fenômeno.

Usualmente, entendemos por fenômeno o que aparece, o que se apresenta, se mostra. E quase sempre de modo incomum, extraordinariamente.

O verbo grego phaínesthai, do qual vem o phainómenon, quer dizer mostrar-se. É interessante observar que os verbos possuem “voz”: ativa, quando a ação é praticada pelo sujeito; passiva, quando a ação é por ele recebida; e reflexa ou média, quando a ação é ao mesmo tempo praticada e recebida pelo sujeito. A forma ativa de phaínesthai o phaínein significa: trazer à luz, colocar na claridade, mostrar, fazer aparecer. Phaínesthai é voz média, i. é, indica uma ação que não é nem ativa nem passiva. Esta maneira de dizer “nem ativa nem passiva”, esconde um modo de ser todo próprio da ação medial: a dinâmica de tornar-se e ser “a si mesmo”. As palavras “fenômeno”, phaínesthai e phaínein têm origem de phos, que significa luz, claridade. O verbo phaínesthai significa, portanto: vir à luz, luzir, ser incandescência da claridade. Esse modo de ser da claridade se chama evideri em latim, de onde vem a palavra evidência. É neste sentido de e-vidência, de mostrar-se presente, de aparecer que devemos entender a palavra fenômeno. Fenômeno é, pois, o que assim se mostra a partir de si a si mesmo.

É nesse sentido de tornar-se presente, de vir à claridade, que dizemos: “A lua cheia apareceu”. É nesse sentido de se apresentar que fala a expressão popular: “Cresça e apareça”.

Os gregos, no entanto, em vez de “fenômeno”, diziam também ón, particípio ativo presente do verbo eínai que significa ser. Ón significa pois, literalmente, em sendo. Em português, dizemos ente; substantivado, temos então o ente. O ente é o ser. Os gregos, portanto, consideravam o ente, o ser, a partir da dinâmica do vir à luz, do luzir, do aparecer. Assim, fenômeno e ente dizem o mesmo. Com a palavra ente podemos de alguma forma, indicar tudo, todas as coisas. Tudo que podemos chamar de ente, podemos chamar também de fenômeno. Só que, no uso corrente, por “o ente” entendemos o ser como coisa, como algo estático; ao passo que por fenômeno entendemos o momento dinâmico da ação de aparecer. Daí a conotação de extraordinário, do incomum, na palavra fenômeno na sua acepção usual.

Aqui, é necessário se precaver contra a tendência, em uso, de entender o fenômeno como “aparência”, no sentido de exterioridade, i. é, “fachada externa de algo que está oculto atrás”. P. ex. a cor amarela dos olhos não é o mostrar-se, o apresentar-se da inflamação do fígado ela mesma. Se o fosse, deveríamos ver o próprio fígado inflamado. Aqui, a inflamação do fígado é a causa que produz o efeito “cor amarela dos olhos”.

O modo de ser da “e-vidência”, do fenômeno, é diferente do da aparência. No fenômeno, é a coisa ela mesma que se apresenta, se mostra, digamos pessoalmente, vem à claridade no seu ser e eclode como mundo. Nesse sentido, a claridade do luar que se intensifica cada vez mais não é sintoma da lua, mas a lua ela mesma no seu aparecer. A incandescência do carvão ardente não é fachada, aparência ou sintoma do carvão, atrás do qual o carvão ele mesmo se oculta, mas é o carvão ele mesmo em pessoa que “manda brasa” no seu ser carvão.

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Se entendermos assim o fenômeno, no seu sentido originário grego, e o ente, no seu sentido originário latino, como incandescência da claridade no ser, então podemos dizer que cada ente, cada fenômeno tem o seu modo próprio de mostrar-se na verdade do seu ser. Essa observação nada tem a ver com afirmação do subjetivismo. Pelo contrário, tem muito a ver com o respeito e com o rigor de uma abordagem real e adequada ao ente. Quando um fenômeno não é respeitado no mostrar-se todo próprio da verdade do seu ser, quando lhe é lançado um horizonte de abordagem e compreensão que vem de um outro interesse, de uma posição alheia ao próprio ente, ao próprio fenômeno, o aparecer do fenômeno, a sua “mostração” se torna defasada, desfocada. Em vez de a coisa ou causa ela mesma se apresentar pessoalmente na sua verdade, em vez de se revelar, é colocada sob a mira, sob o enfoque de uma outra causa. Então, o fenômeno como vir à luz do ente ele mesmo, ele mesmo no seu ser, decai para o estado deficiente de “aparência” no sentido de “falsificação”, no sentido de um “ser aparente”, mas não autêntico e verdadeiro. É nesse sentido que dizemos: “Nem tudo que brilha é ouro!” Quando a realidade se apresenta na dinâmica do e-videri, ela jamais se torna coisa, isto e aquilo como objeto, mas sim se abre como mundo. Nesse sentido a espiritualidade cristã é clarear-se e se fazer mundo da cristidade, da essência do cristianismo.

Espiritualidade cristã, a ciência elementar e originária do ser cristão?

Como clarear-se e se fazer mundo a espiritualidade é ciência. Em que sentido? No sentido do saber e compreender, clarear-se coerente, prenhe, i. é, impregnado, se atingindo de início ao fim, abrindo-se como nascer da totalidade mundo. O nascer do mundo com tudo que ele tem de concretude e riqueza de conteúdo é a Vida Cristã. A espiritualidade não coincide simplesmente com a Vida Cristã, pois a espiritualidade é o momento da clarividência, da e-vidência, da clareza, pureza e limpidez da compreensão, portanto da Razão Pura da Vida Cristã. Como tal é Fides quaerens intellectum.

Podemos assim dizer que a essência da espiritualidade está condensada na expressão da Escolástica Medieval fides quaerens intellectum. No entanto todo o problema é de como entender essa expressão.

Se entendermos a palavra fides como nossa crença cristã, e o intellectus como a razão humana, essa expressão parece significar a nossa crença sobrenatural se expressando, buscando uma concretização através da razão humana. E imediatamente surge a questão, como se dá esta síntese, qual é esse ponto de ligação entre o saber da Fé e o saber da Razão, entre o sobrenatural e o natural. É uma justaposição, uma mixagem, uma subsumpção, uma fundamentação, uma dialética? Fides necessita de intellectus para se expressar, para se fundamentar? Não há a possibilidade de ela mesma, a partir de si se expressar, se fundamentar? Para que a Razão e o seu saber por excelência, a Filosofia? Para que a Teo-logia? Por que não simplesmente a Fé? O que significa formar-se intelectualmente na Fé? E essas questões entram e se traduzem no cotidiano da nossa vida cristã em posicionamentos, que encontram a sua expressão numa linguagem como essa: Estudam, estudam a Teologia, mas não acreditam mais; eu que sou simples, ao menos tenho a Fé; essa gente que não estuda teologia, permanece no estado da ignorância da fé do carvoeiro; é necessário esclarecer e formar melhor a fé desse povo etc. E se desencadeia um rolo de discussões, onde se contrabandeiam compreensões de Fé e de intelecto, provenientes de outros contextos como p. ex. a fé

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como vivência do ato do sentimento, portanto um ato da área dos atos humanos irracionais, que necessita de uma orientação proveniente da razão etc.

Aqui, em vez de entrar nessas discussões, tentemos entender essa expressão fides quaerens intellectum não como indicativo da síntese fé e intelecto, mas sim como o vir à fala da estruturação interna da suprema experiência chamada Fé Cristã.

Por fé, aqui, não entendemos em primeiro lugar, nem nosso ato de fé como vivência, nem a nossa crença, nem a confiança nossa, nem a atitude de disposição, nem o conjunto de dogmas e artigos da nossa doutrina cristã. Tudo isso, de alguma forma, pode ser chamado de fé ou ser referido à fé, porque tudo isso já é fruto da fé.

Por fé entendemos a própria presença do Deus de Jesus Cristo, que se nos doou e nos amou primeiro (a aprioridade da Fé), vindo ao nosso encontro em Jesus Cristo seu Filho, no-lo dando para nossa salvação. Com essa descrição imperfeitíssima, se tenta acenar para a inefável e insondável ternura e vigor do amor misericordioso do Pai como ele se manifestou em Jesus Cristo e continua manifestando-o através da História da Salvação: a Fé é a Fidelidade de doação do Amor do Deus de Jesus Cristo, a Fidelidade que é o próprio Deus.

Tudo que de alguma forma pertence à nossa vida cristã, desde Jesus Cristo até um pequeno gesto de benção, toda a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, com tudo que ele implica, a vida cristã como Seguimento de Jesus Cristo, as doutrinas cristãs, os dogmas, as experiências místicas, as nossas atitudes de confiança, disponibilidade, amor e fidelidade, a nossa vocação, sim tudo, que é de alguma forma cristão, existe e ali está, porque tudo isso é sustentado, doado pelo Pai de Jesus Cristo, porque tudo isso é a própria Presença viva do Pai em Jesus Cristo como Fé, i. é, como Fidelidade da Doação do Pai. É nesse sentido que dizemos: não é assim que nós tenhamos a Fé, é a Fé que tem a nós. E até a possibilidade, a disposição de nos abrimos à Fé, é doação da Fé.

A nossa tentação aqui é de levantar uma falsa questão e perguntar: Mas se é assim, onde fica a nossa liberdade e responsabilidade? Embarcamos então na célebre polêmica do relacionamento entre a graça e o livre arbítrio. Essa questão, em referência à Fé, porém, é uma questão extrapolada. Levantar uma questão extrapolada é como levantar falso testemunho. Um falso testemunho parece verdadeiro e razoável, somente porque ele sorrateiramente infiltra, na raiz de uma verdade, uma pressuposição, que não é dessa verdade, mas tirada de um outro lugar, desviando assim o percurso de busca e investigação para outra coisa inteiramente diversa.

Quando se fala da Fidelidade do Deus de Jesus Cristo, que nos amou primeiro, portanto, absolutamente independente da nossa iniciativa, a tal ponto absolutamente primeiro, que a própria iniciativa de receber já é a iniciativa do Amor que é Deus, estamos falando já dentro da experiência possibilitada pela Fé e como Fé. E como se trata da experiência, é anterior a toda e qualquer explicação, anterior também à dúvida, se essa experiência não é um ato subjetivo psicológico etc. Aliás, a evidência é a própria experiência e não há testemunho mais verdadeiro do que o testemunho da experiência, i. é, o toque direto e corpo a corpo do Amor Primeiro que é o próprio Deus. As objeções surgem, quando, em vez de permanecer na experiência e buscar a inteligibilidade, a partir dos fios condutores, que surgem na própria experiência, nos dispersamos e disparamos a perguntar, a partir de certas pressuposições usuais, em que estamos atrelados, sem no

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entanto, ter evidência de que e a partir de onde estamos perguntando. Assim, ao objetarmos sobre as iniciativas livres de Deus e do Homem, estamos representando as iniciativas livres de Deus e do Homem como impulsos, que partem de e pertencem a dois pontos separados como ocorrência e coisa, ponto Deus e ponto Homem. Como um ponto não é o outro, dizer que aqui somente há uma iniciativa do ponto Deus, parece eliminar o ponto Homem. E como 2 não pode ser 1, entramos na perplexidade e perguntamos: Como? (e não o que é?; cf. a primeira reflexão: A pergunta: o que é isto, realmente?) Em vez de permanecermos na fidelidade à fluência viva da Fé, estamos sendo conduzidos e atrapalhados pelo princípio de contradição, hipostatizado como princípio que diz respeito a 1 e 1 e 1, à identidade concebida como igualdade de quantitativa de coisas. Com isso caímos completamente fora da experiência primitiva e primeira, nos extrapolamos completamente...

O testemunho da experiência, ao contrário, diz bem outra coisa, aliás inteiramente diferente. A tal ponto diferente que uma questão colocada como concorrência e contradição entre duas iniciativas, referindo-se a Deus que nos amou primeiro, e a nós que com gratidão recebemos uma tal doação, é semelhante à pergunta de alguém que, ao ouvir falar da grandeza de uma mãe gestante, que, atacada de câncer, apesar de terríveis dores, não toma nenhum remédio para aliviar a sua dor, por amor, para não prejudicar o bebê, que está no seu seio, pergunta quantos metros cúbicos tem a grandeza dessa mulher e quanto pesa...

Espiritualidade cristã como a lógica da gratuidade do encontro

A lógica da Fé, no sentido acima mencionado, é muito simples, i. é, una, inteiriça, coerente. Trata-se da experiência da gratuidade do encontro e encontro da gratuidade. A absoluta doação da fidelidade do amor do Pai é toda ela, inteira e radicalmente gratuita. Essa gratuidade, quanto mais claramente captada a sua gratuidade, suscita em nós também a doação da mesma natureza, portanto inteira e radicalmente gratuita. A uma doação primeira de encontro de tamanha boa vontade, só se pode corresponder da mesma maneira, ser do mesmo modo, ser uno, ser o mesmo. Esse ser o mesmo não é ajuntamento de duas coisas, mas simplesmente, concretamente a própria dinâmica e ser do Encontro, o próprio Encontro ele mesmo. Quem assim é dá o melhor de si, em tudo, e em assim se dando, se percebe não como dono, como proprietário da doação, mas sim agraciado pela doação do outro. Aqui não se trata de acionar ou não o livre arbítrio da minha vontade. Trata-se de um novo modo de ser, que atinge e impregna a nossa liberdade, despertando-a para a essência a mais entranhada dela mesma.

A esse modo de ser, talvez possamos denominar de afeição obediente. Trata-se de um movimento de crescente “passividade” (leia-se afeição), não no sentido da passividade vazia, neutra e indiferente, mas sim no sentido do aumento cada vez mais diferenciado e profundo da possibilidade de ser atingido, e em sendo atingido, deixar ser em máximo o ser de quem nos atinge. É o que se expressa na formulação usual: fazer a vontade de deus; receber a vontade de deus; acolher o Evangelho etc. Essa habilidade e esse hábito de co-responder podem crescer a tal ponto que, todo o vigor do nosso empenho não é outra coisa do que fluir grato e gratuito na gratuidade do outro, de tal sorte que podemos dizer como e com Jesus Cristo: “Meu alimento é fazer a Vontade do Pai” ou com e como São Paulo “Não eu, mas Cristo vive em mim”.

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Esse modo de ser é a essencialização sofrida pelo nosso ser, quando somos agraciados pela Fé, i. é, somos afetados, atingidos pela Fidelidade do Deus de Jesus Cristo: a Vida pela Fé e na Fé Cristã.

A espiritualidade cristã é um saber que con-stroi (se estrutura fluindo com) todo um mundo de conhecimento (leia-se conascimento) dentro e a partir do “horizonte”(ou melhor, toque) dessa afeição obediente. Por isso, tudo que vem à fala, a partir da afeição obediente da Fé, é Palavra de Deus, o Logos, o Verbum, a Colheita e Obra de Deus, a en-erge-ia de Deus. A sondagem e a ausculta do sentido do ser, que mergulha na profundidade aberta pela afeição obediente da Fé, nos conduz sempre de novo, cada vez mais no vislumbre da Imensidão abissal e do Mistério absoluto e último, i. é, extremo da Ternura do Amor do Deus de Jesus Cristo, que é tudo em todas as coisas.

Mas quem faz essa sondagem e ausculta não somos nós mesmos a partir de nós, mas sim o Espírito de Deus, i. é, o sopro vital da própria ternura do amor do Deus de Jesus Cristo, que continuamente mantém límpida, na precisão da gratuidade, a dinâmica desse ab-ismo.

Se agora, observarmos bem esse vigor da doação da gratuidade, que nos vem aa encontro, nos atingindo, impregnando todo o nosso empenho na afeição obediente a essa gratuidade, percebemos que esse modo de ser, embora muito mais excelente como a plenitude da liberdade, na necessidade da docilidade à Graça-Deus, possui muita semelhança com o modo de ser que na Filosofia aparece como Intelecto, i. é, como espera do inesperado (cf. a primeira reflexão: A pergunta: o que é isto, realmente?). Também no intelecto há o movimento de ausculta e de disponibilidade, em direção à profundidade do sentido do ser, para além, ou melhor, para aquém das pressuposições que nos dão base de construção aos nossos empenhos.Também no intelecto a busca da disponibilidade recorda algo como doação gratuita na radical responsabilização da liberdade. Também no intelecto há a acribia de manter sempre de novo a limpidez da espera do inesperado. Mas entre a afeição obediente da espiritualidade e a espera do inesperado da pergunta “O que é isto, o ser?” i. é, do espírito da razão ocidental, da filosofia, há uma diferença:

O que no intelecto é a vontade do trabalho, na afeição obediente da Fé é deixar-se levar na fluência da doação.

O que no intelecto é a plena atenção da especulação, na afeição obediente da Fé é a pregnância da translucidez.

O que no intelecto é precisão e rigor de penetração, na afeição obediente da Fé é a docilidade na ternura do Encontro.

O que no intelecto é o puro movimento de busca, sem conteúdo, na pura espera do inesperado, na afeição obediente da Fé é a Plenitude da Verdade absoluta, que contém tudo em todas as coisas.

No entanto, nessa diferença do modo de ser do intelecto e da afeição obediente da Fé, se observarmos bem o modo de ser do intelecto como a espera do inesperado, percebemos que ele pulsa como que no mesmo ritmo da repercussão da gratuidade da afecção obediente da fé.

Page 21: Um retiro anual

De repente, a expressão medieval fides quaerens intellectum nos faz suspeitar: Será que a afeição obediente da fé, na sua gratuidade, não busca com simpatia os que se dispõem de corpo e alma à busca e ao empenho no modo de ser do intelecto? Não porque a fé necessitasse do intelecto. Não para se expressar, não para se complementar ou complementar o intelecto. Mas sim, porque no intelecto há a repercussão do toque da afeição obediente...?! Pois, embora dentro de um contexto inteiramente diverso, não diz o Salmista que o abismo invoca o abismo? E o que se move no Encontro não é a syn-tonia da syn-patia?

Conclusão

Certamente essa tentativa de compreender o que seja a espiritualidade, a partir de questões da nossa práxis da formação, não somente é incompleta, mas muito insuficiente. Mas talvez possa provocar em nós reflexões, objeções e discussões nessa tarefa de compreender a espiritualidade não como isto ou aquilo, como coisa, mas sim como um modo de ser totalizante que nos envolve a partir de uma dimensão toda própria.