98
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PPGEL- PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ANA CRISTINA DA SILVA PEREIRA TRAVESSIAS DA REALIDADE HUMANA NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES Salvador 2016

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

  • Upload
    lekhue

  • View
    222

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PPGEL- PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

ANA CRISTINA DA SILVA PEREIRA

TRAVESSIAS DA REALIDADE HUMANA NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES

Salvador

2016

Page 2: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

2

ANA CRISTINA DA SILVA PEREIRA

TRAVESSIAS DA REALIDADE HUMANA NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudo de Linguagens - PPGEL-UNEB, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I da Universidade do Estado da Bahia, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza.

Salvador 2016

Page 3: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

3

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Pereira, Ana Cristina da Silva.

Travessias da realidade humana na trilogia de Antônio Torres / Ana Cristina da Silva Pereira. –

Salvador, 2016.

98f.

Orientadora: Profª. Drª. Lícia Soares de Souza.

Dissertação ( Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.

Campus I. 2016.

Contém referências e anexo.

1. Identidade social 2. Interação social. 3. Literatura e Historia. 4. Realidade. 5. Globalização. I.

Souza, Lícia Soares de Souza. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 306.4

Page 4: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

4

TERMO DE APROVAÇÃO

ANA CRISTINA DA SILVA PEREIRA

TRAVESSIAS DA REALIDADE HUMANA NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudo de Linguagens - PPGEL-UNEB, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I da Universidade do Estado da Bahia.

Aprovada em 31 de março de 2016.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza (Orientadora) Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da

Bahia

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães

Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Aleilton Fonseca Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade

Estadual de Feira de Santana.

Page 5: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

5

Este trabalho é dedicado ao meu pai e a minha mãe,

pessoas que valorizam os estudos, me apoiam e me fazem acreditar.

Meu respeito, amor e carinho.

Page 6: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

6

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de

Linguagens- PPGEL da Universidade do Estado da Bahia pelas valiosas contribuições

na condução das discussões e trabalhos.

Muitíssimo obrigada às professoras Beth Lima, Saionara Amaral e Marcia Rios

pelo excelente material indicado, suporte inicial para o aprofundamento deste trabalho.

Minha gratidão a Camila, Geisa e Danilo, funcionários da Secretaria do PPGEL.

Meu muito obrigada pela presteza e paciência.

Agradeço à minha orientadora pela competência, leveza e tranquilidade na

condução deste trabalho. Valorizo sua assertividade e objetividade nas análises.

Agradeço-lhe a confiança depositada e as sugestões de leitura, que tornaram

agradáveis a execução desse trabalho.

Expresso meu agradecimento à Banca Examinadora dessa dissertação: ao Prof.

Dr. Aleilton Fonseca pelas sugestões, contribuições e questionamentos do tema

durante a qualificação. Suas ponderações apontaram possibilidades de

encaminhamentos que se fizeram muito pertinentes e profícuos.

Agradeço calorosamente ao Prof. Dr. Carlos Magalhães pelo extremo cuidado

com que corrigiu o trabalho de qualificação, apontando minuciosamente questões que

deveriam ser reconsideradas na execução desta dissertação.

Agradeço à querida turma do mestrado pelo fortalecimento mútuo nos momentos

de temores, incertezas e dúvidas, recheando-os com alegria, solidariedade e muita

esperança.

Agradeço muito à minha mãe, que me fortalece, incentiva e nutre meus sonhos e

objetivos sempre.

Aos meus filhos, que muitas vezes tiveram que silenciar para não me incomodar

e, outras tantas vezes, abrirem mão de minha companhia, para que eu não me

desconcentrasse no desenvolvimento das atividades acadêmicas, todo o meu amor e

carinho.

Agradeço a Deus e, abaixo de Deus, aos orixás que me têm conduzido e

fortalecido, dando-me condições para acreditar sempre.

Page 7: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

7

RESUMO

Nessa dissertação apresentamos uma análise sobre a representação identitária

do personagem Totonhim na trilogia formada pelos romances Essa Terra (1976), O

cachorro e o Lobo (1997) e Pelo fundo da Agulha (2006) de Antônio Torres. Partiremos

da filosofia existencialista do pensador francês Jean Paul Sartre, que distingue o ser-

em-si, simples realidade humana, do ser-para-si, sujeito consciente de suas ações e

livre de determinações de qualquer ordem. A utilização destes conceitos sartreanos

fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

tensionam as ações do protagonista Totonhim e delineiam sua identidade. Em Essa

Terra a trama desenvolve-se através do relato do narrador Totonhim, que se vale da

memória para ressaltar o drama sofrido pelo seu irmão Nelo que, em seu trajeto de

retirante nordestino, não se identifica com a realidade vivenciada e busca integrar-se à

realidade metropolitana. Em O cachorro e o Lobo Totonhim é apresentado como sujeito

pós-moderno (fragmentado e complexo) que passa por um processo de des-

identificação decorrente do seu deslocamento da terra natal no interior da Bahia para

São Paulo, ao tempo em que se amplia nele uma situação de incomunicabilidade e

solidão que atingem culminância em Pelo fundo da agulha, último romance da trilogia.

Totonhim, recém-aposentado e sozinho, percebe-se como sujeito consciente de sua

realidade ao reconhecer não mais integrar-se ao antigo Junco de sua juventude como

também às demandas e injunções da grande metrópole. Utilizando como referência

Zigmunt Bauman, defenderemos a ideia de que o avanço da sociedade globalizada

aponta para o caráter efêmero, fluido e líquido das relações que o protagonista da

trilogia mantém durante toda a sua vida.

PALAVRAS CHAVE: Identidade; Realidade Humana; Absurdo; Globalização.

Page 8: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

8

ABSTRACT

The present work presents an analysis on the identity representation of Totonhim, on

the trilogy formed by three novels: Essa terra (1976), O cachorro e o Lobo (1997) and

Pelo fundo da agulha (2006) by Antônio Torres. Our way of research is based on the

existentialist philosophy by the French philosopher Jean Paul Sartre, who distinguished

the being-in-itself, simple human reality, from the being-for-itself, individual who is

conscious of his actions and free from determinations of any kind. The application of

these concepts grounds the conceptions of determinism and freedom that, through the

trilogy, strain the relationships between the protagonist Totonhim. On Essa terra the plot

is developed through the account by the narrator Totonhim, who uses his memories to

highlight the drama experienced by his brother Nelo who, in his northeastern journey,

does not identify himself with the local reality experienced in Junco and pursuits to

integrate himself into the São Paulo reality. On O cachorro e o Lobo Totonhim is

presented as an postmodern individual, fragmented and complex who goes through a

process of (des)identification born from the displacement from his homeland, in the

countryside of Bahia, to São Paulo, at the same time that, inside his heart, grows a

dilemma of solitude and lack of communication that reachs its culmination on Pelo fundo

da agulha, last novel of the trilogy. Totonhim, recently retired and alone, he is perceived

as a subject conscious of its reality by recognizing no longer integrate the old Junco of

his youth as well as the demands and injunctions of the great metropolis. Using as

Zygmunt Bauman reference, we defend the idea that the advancement of global society

points to the ephemeral, fluid and fluid relations which the protagonist of the trilogy

keeps throughout his life.

KEYWORDS: Identity; Human Reality; Absurdity; Globalization.

Page 9: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 11

1 O DESENCANTO COM O PROGRESSO NA TRILOGIA DE ANTÔNIO

TORRES.................................................................................................................... 22

1.1 A REALIDADE HUMANA.................................................................................... 32

1.2 INJUNÇÕES DA TERRA.................................................................................... 45

2 UIVOS DA MEMÓRIA............................................................................................ 58

2.1 UIVOS DO CACHORRO..................................................................................... 61

2.2 O DESENCANTO DO GENERAL: UIVOS DA DITADURA MILITAR................. 65

2.3 UIVOS DO LOBO.................................................................................................68

3 NUMA NOITE ESCURA DA ALMA....................................................................... 74

3.1 NELO, NUMA NOITE ESCURA DA ALMA.......................................................... 78

3.2 TOTONHIM, NUMA NOITE ESCURA DA ALMA................................................ 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS- UMA PAUSA QUE NÃO REFRESCA........................ 91

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 94

Page 10: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

10

A todas vós que já fostes ou que sois amadas

como um ícone guardado

na gruta da alma qual uma copa de vinho

à mesa de um banquete

ergo meu crânio repleto de versos. Maiakovski

Page 11: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

11

TRAVESSIAS DA REALIDADE HUMANA NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES

O que importa mesmo são os caminhos de cada ser humano.

Pierre le Fou Godard.

INTRODUÇÃO

Partir, viajar, andar por terras diversas, estabelecer-se noutro território. Na

literatura, muitas são as narrativas em que personagens empreendem viagens: viagem

interna do indivíduo em busca de autoconhecimento, compreensão de si e do mundo;

viagem externa em busca de conhecimento, riqueza ou aventuras. Narrar as

repercussões subjetivas que uma viagem ou travessia agenciam é também o mote que

norteia os três romances que fazem parte desse estudo dissertativo. Antônio Torres

publicou, em 1976, Essa Terra, romance que trouxe a problematização sobre a própria

identidade apresentada inicialmente pelos seus protagonistas, exibirá suas outras faces

nos dois outros romances que compõem a trilogia, O cachorro e o Lobo (1997) e Pelo

fundo da Agulha (2006).

Torres promove com Essa Terra o retorno do protagonista Nelo à terra natal após

um período de insucesso na metrópole, num “desexílio” que introduz de forma inédita,

na literatura brasileira, a temática do sertão numa nova perspectiva de retorno ao lugar

de origem. Apresenta o drama vivenciado Totonhim, narrador das desventuras do irmão

Nelo, que empreende uma travessia de retirante que não se identifica com a realidade

local e busca integrar-se à realidade paulistana, na crença de adquirir prosperidade e

sucesso.

Também insatisfeitas com a terra natal, a mãe e as irmãs do narrador seguem

destino similar pouco tempo depois ao partirem para uma cidade mais desenvolvida

economicamente. Excetua-se o pai que, obstinado, permanece solitário, naqueles

confins. Inexplicavelmente, o primogênito volta ao seu sertão depois de duas décadas

para dar fim à própria vida, enforcando-se num armador de rede, deixando estarrecida,

Page 12: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

12

com tal atitude extrema, a comunidade local.

Deslocar-se da terra natal e empreender uma travessia para um território estranho

requer a crença no figurado "fascínio abstrato da redenção na cidade grande, o nicho

paulistano como edênico de transformações,”1 de acordo com Jorge Araújo. Entretanto,

no lugar do Éden, os personagens encontram fracasso social, familiar e econômico,

deslocamento e perda dos traços mais essenciais de sua identidade local, numa

desintegração do indivíduo com a terra. Torres configura-se como um sismógrafo das

repercussões emocionais e psicológicas de sujeitos "submetidos à bateria dos

fenômenos sociais na contemporaneidade das cidades grandes.”2 Os efeitos desses

fenômenos repercutem nos personagens, de modo que, ao longo dos trinta anos,

observamos que alguns deles – sobretudo o protagonista Totonhim, foco central desse

estudo, serão tragados pelas demandas advindas do desenvolvimento do sistema

econômico e pelas imposições ideológicas que o mundo globalizado impõe.

Nesta conjuntura se sobressaem os sentimentos de angústia, responsabilidade

coletiva e esperança, a motivarem a tomada de algumas decisões que, por vezes, se

mostrarão malogradas. Buscamos aqui desenvolver o entendimento de que o

personagem central da trilogia se configura como mera realidade humana, conceito

desenvolvido pelo existencialismo3 sartreano para a condição de nadificação do

homem.

1 ARAUJO. Jorge de Souza. Floração de Imaginários: o romance no século 20. Itabuna/Ilhéus. Via Litterarum. 2008. P. 284-301. 2 ARAUJO. Jorge de Souza. Idem. Itabuna/Ilhéus. Via Litterarum. 2008. P. 284-5. 3 O Dicionário Básico de Filosofia de JAPIASSU & MARCONDES assim define essa corrente filosófica:

Existencialismo (fr. existentialisme): Filosofia contemporânea segundo a qual, no homem, a existência que se identifica com a liberdade, precede a essência; por isso, desde nosso nascimento, somos lançados e abandonados no mundo sem apoio e sem referência a valores; somos nós que devemos criar nossos valores através de nossa própria liberdade e sob nossa própria responsabilidade. Quando Sartre diz que a existência precede a essência, quer mostrar que a liberdade é a essência do homem “A liberdade do para si aparece com seu ser.” Assim, a filosofia existencialista é centrada sobre a existência e sobre o homem. Ela privilegia a oposição entre a existência e a essência. Quanto ao homem, ele é aquilo que cada um faz de sua vida, nos limites das determinações físicas, psicológicas ou sociais que pesam sobre ele. Mas não existe uma natureza humana da qual nossa existência seria um simples desenvolvimento. O cerne do existencialismo é a liberdade, pois cada indivíduo é definido por aquilo que ele faz. Daí o interesse dos existencialistas pela política: somos responsáveis por nós mesmos e por aquilo que nos cerca, notadamente a sociedade: aquilo que nos envolve é nossa obra. Como o pensamento filosófico (abstrato e generalizante) não apreende a existência individual, no qual a angústia tem um papel preponderante, o existencialismo abre-se para a literatura e para o teatro, fazendo a filosofia despontar em romances e peças teatrais.

Page 13: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

13

Para Sartre, o homem que inicialmente nada é, sente-se como que lançado num

cenário com o qual não se identifica, situação que lhe desperta a angústia. Para Sartre,

a angústia é própria da realidade humana, a apontar para a dificuldade humana em

conviver com o vazio de ser. O homem é então levado a buscar um caminho para que

se torne ser para si.

Em Essa Terra, as ações dos personagens promovem uma fusão entre

desequilíbrios locais de ordem econômica e política com questões de ordem universal

como a angústia, a alienação, além da questão da liberdade e do determinismo. Em O

cachorro e o Lobo, questões envolvendo as repercussões que as escolhas provocam

sobre o indivíduo e sobre a ocupação do espaço geográfico, apresentam-se delineadas

no breve retorno de Totonhim à sua terra. Na ocasião, Totonhim nota que o Junco, sua

terra natal, desenvolveu-se rapidamente, assumindo ares de cidade moderna, com

todas as implicações que a modernização impõe.

Uma das características marcantes desse processo de modernização das cidades

é a inexorável ligação entre o espaço físico, as relações entre seus habitantes e a

forma de manutenção e controle dessas relações, de acordo com Zimmermann (2009),

que atenta: “quanto mais avançamos no tempo, mais a aceleração dos processos

sociais e as modificações dos espaços urbanos tornam-se vertiginosas, mais

complexas, portanto, torna-se necessário seu acompanhamento e o estabelecimento de

normas de convivência.”4 Ainda segundo a autora, na contemporaneidade, as

modificações causadas pela urbanização crescente interferem nas relações entre os

agentes da dinâmica urbana, com uma marcante diminuição da solidariedade e um

crescimento da intolerância entre as pessoas. Nesta conjuntura ao retirar as pessoas

do espaço externo das ruas, nas quais o vínculo de camaradagem e compadrio era

calorosamente estabelecido por longas e despreocupadas conversas nos bancos do

jardins e portas de casa nota-se um processo de esfriamento das relações, próprios da

modernidade, que padroniza comportamentos e ações, uniformizando-as como em

qualquer lugar do mundo. 4 ZIMMERMANN, Giovana Aparecida. O lugar do outro: a imagem dos traçados urbanos como técnica de separação. Revista Outra Travessia. Santa Catarina: UFSC. Nº 8, p. 47, 2009. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/ view/16209 >.

Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 14: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

14

À medida que constata esta transformação, o personagem faz emergir, via

travessia memorialística, um Junco singelo e pungente, descrito em tons saudosos,

com apaixonada riqueza de detalhes. Após dez anos, as questões levantadas em O

cachorro e o Lobo serão aprofundadas e apresentarão irremediavelmente as suas

consequências em Pelo fundo da Agulha quando, na maturidade do personagem,

fazem-se notar, sobre sua individualidade, os efeitos da globalização e da

modernização que afeta não apenas a economia, mas as relações humanas de modo

perverso através da aceleração dos processos de produção, dinamização da economia

e exclusão dos contingentes considerados supérfluos ou improdutivos pelo sistema.

Essa Terra denuncia sutilmente os perversos mecanismos de subordinação

política e de exploração econômica a que são submetidos os protagonistas Nelo,

Totonhim, sua mãe e irmãs, e também, parcela da população brasileira que migra para

o sul em busca de fortuna e sucesso. Aleilton Fonseca complementa: ao problematizar

a viagem, o desenraizamento, a perda de referência, a desilusão e o desespero do

migrante sertanejo, Essa Terra põe em relevo uma feição particular desses problemas

na sociedade brasileira desigual, injusta e discriminatória.5 É uma tragédia que tem

como desfecho não apenas o suicídio de Nelo, como também a loucura da mãe, a

inconsequência das irmãs, a solidão do pai e seu desamparo em criar os três filhos

pequenos; e mais ainda, na decisão de Totonhim em ir para São Paulo, nas páginas

finais do romance, acenando para uma contraditória tentativa de compreensão das

escolhas de Nelo, conforme notamos no seguinte trecho:

Foi então que comecei a me sentir perdido, desamparado, sozinho. Tudo que me restava era um imenso absurdo. Mamãe absurdo. Papai absurdo. Eu absurdo. “Vives por um fio de puro acaso.” E te sentes filho desse acaso. A revolta, outra vez e como sempre, mas agora maior, mais perigosa. Não morrerás de susto, bala ou vício. Morrerás atolado em problemas, a doce herança que te legaram. [...] Nelo, querido, não vou chorar a tua morte. Foste em boa hora. Agora eu te entendo, é bem capaz que eu já esteja começando a te compreender.6

5 FONSECA, Aleilton. Essa Terra, ficção e realidade dos excluídos. IN: NOVAES E SEIDEL, Claudio Cledson e Roberto Henrique. (Orgs.) Espaço nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010, p. 63-4. 6 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 168.

Page 15: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

15

Totonhim catalisa uma série de vivências que demonstram uma crise que culmina

(incompreensivelmente) com a sua decisão em seguir o mesmo itinerário do seu infeliz

irmão, contrariando as expectativas de seu pai e lançando-se tragicamente ao mesmo

destino. Assim, o universo temporal e espacial no qual se desenrola a história, assume

a importância de se constituir como antinômico dos caminhos dos sujeitos oprimidos

pela frustração do sonho de progresso na metrópole. Tal antinomia aponta para a

existência de uma relação conflituosa com a terra, perceptível nos títulos das quatro

subdivisões do livro: 1-Essa terra me chama; 2- Essa terra me enxota; 3-Essa terra me

enlouquece e 4- Essa terra me ama. A estratégia estilística de personificação da terra

permite que o autor transforme-a assim em sujeito de importantes ações que são

sofridas pelo narrador. Nestas orações, o uso do pronome oblíquo ME demonstra que a

condição de objeto recai sobre Totonhim. O Junco é elevado à condição de produtor de

uma ação a ser diretamente sofrida por ele.

O narrador onisciente relata as ações qual figura demiúrgica que tem acesso aos

pensamentos mais íntimos e às motivações ocultas dos demais personagens,

demonstrando íntima familiaridade com as atividades humanas relatadas ou buscando

compreendê-las, conforme se observa no trecho supracitado, retirado dos parágrafos

finais do romance, quando o narrador se convence de que a melhor alternativa é seguir

o mesmo destino de retirante que nutre a esperança de uma transformação social, o

que o faz adotar o mesmo caminho de seu irmão primogênito.

Na medida em que julga tornar-se um “cidadão subdesenvolvido” bem sucedido,

a condição existencial de Totonhim sofre reflexos determinados pela ideologia

dominante. O termo cidadão subdesenvolvido é uma expressão utilizada pela irmã de

Totonhim para definir sarcasticamente a todos os habitantes do Junco que se esforçam

em se enquadrar em um modelo de cultura globalizada, livre de surpresas,

ambivalências ou distinções, à custa do sufocamento de suas características locais e

particulares, a partir do entendimento de que “ser local num mundo globalizado é sinal

de privação e degradação social.” 7 No trecho abaixo, após um longo período sem

7 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 6.

Page 16: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

16

manter nenhum contato familiar, Totonhim elucida o termo através de um diálogo com a

irmã Noêmia, pelo telefone:

-Você está por fora. Ainda está no tempo do serviço de alto-falantes. Agora todo mundo aqui é cidadão subdesenvolvido – ela deu uma gostosa gargalhada. Também ri, entendendo a brincadeira a respeito das pessoas do lugar que voltavam do Sul metidas a falar bonito, ou falando difícil, enchendo suas bocas com palavras de que nem sempre sabiam o significado, muitas vezes querendo dizer o contrário do que estavam dizendo. Depois, me arrependi. Não era caso de deboche. Era

de pena. 8

O termo cidadão subdesenvolvido é inicialmente empregado por Nelo que, em

Essa Terra, o utiliza para se expressar como um citadino bem falante e bem sucedido

economicamente, inserido nas benesses da (dita) civilização urbana. Declara Nelo: “A

coisa mudou sucessivamente nas resoluções intempestivas da minha vida. Agora,

agora, eu sou um cidadão subdesenvolvido.”9 Nelo enseja ser classificado como um

cidadão que está integrado à modernidade, fator preponderante e mobilizador de uma

mentalidade que direciona a comunidade e os personagens da trilogia para a mudança

cultural, que venha a integrá-los a um modelo identificado como superior, moderno.

Totonhim, em O cachorro e o Lobo, acena para o entendimento da existência de

motivações outras, para além daquelas de ordem econômica e geográfica que

justifiquem o surpreendente processo migratório que fazia milhares de sertanejos

buscarem a sorte na cidade grande: “Não me venham, por favor, com as razões da

seca, da pobreza, das dificuldades da vida, que isso, por si só, não explica tamanha

debandada.”10 Analiticamente, constata que fatores de ordem cultural têm

preponderância na motivação dos baianos, ressentidos de serem tratados com toda

carga de preconceitos e generalizações imputados aos retirantes nordestinos que

buscam melhores condições de vida nas metrópoles do sul do país.

Seguimos o caminho que aponta uma crítica à ideologia/cultura hegemônicas,

com base no entendimento de Terry Eagleton11 que fundamenta a ideia de que há

8 TORRES, Antônio. O cachorro e o Lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008. p.13. 9 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 33. 10 TORRES, Antônio. O cachorro e o Lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008. p. 79. 11 Utilizaremos o conceito de cultura presente nas seguintes obras: EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997 e EAGLETON, Terry. Cultura em crise. In___. A ideia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.

Page 17: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

17

motivos de ordem subjetiva que incidem sobre os caminhos escolhidos pelos

personagens. Ao considerarmos que nova conjuntura transforma a realidade de

Totonhim dramaticamente: de indivíduo inserido satisfatoriamente no sistema

globalizado de economia, como estável funcionário público e consumidor ativo até ser

finalmente descartado como excedente, destituído de força ativa para o trabalho, “mero

refugo humano”, utilizaremos como fundamental teórica Zigmunt Bauman. Totonhim

sofre os impactos de uma transformação econômica que marca a modernidade: em

nome do progresso, a sociedade do consumo renova o seu estoque produtivo,

descartando como excedentes aqueles que não representam uma maximização do

lucro. 12

Tomando como base teórica Sartre, partiremos do entendimento de que o ser

refugia-se na má-fé para explicar o próprio fato de existir diante da aterradora realidade

de não ter uma justificativa para si mesmo. O homem é habitado por uma falácia, o

desejo de ser, que é desejo de fundamentar-se com base no outro que não ele mesmo.

Jean Paul Sartre, traz o conceito de má-fé para se referir a uma atitude possível diante

do vazio de ser que habita a realidade humana. Compreendemos que Nelo e,

posteriormente, Totonhim, refugiam-se, assim, na ideologia e na cultura difundida

maciçamente na época histórica em que transcorre a narrativa para preencherem a sua

condição nadificada de mera realidade humana, esvaziada de fundamento. Em O

existencialismo é um Humanismo, Sartre defende que o homem se invente com base

no nada que ele é, ao invés de se autodeterminar por algo que lhe é exterior- seja a

família, Estado, partido, religião, ou ordenamentos sociais, biológicos ou psicológicos,

conforme se nota:

O homem apresenta-se como uma escolha a ser feita. Muito bem. Ele é, antes de mais nada, a sua existência no momento presente e está fora do determinismo natural; ele não se define anteriormente a si mesmo, mas em função do seu presente individual. Não existe natureza humana superior ao homem, mas uma existência específica lhe é dada em determinado momento.13

No decurso destas três décadas, o protagonista Totonhim empreende sua

travessia narrativa, na qual projeta vieses identitários que refletem as transformações

12BAUMAN, Zygmunt. Idem. p. 22. 13 SARTRE. Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 24.

Page 18: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

18

históricas e existenciais em sua essência. Partiremos da conjuntura histórica da época

em que o romance foi escrito, justificando a escolha deste caminho. As transformações

sócio-históricas do período em que o romance foi escrito e seus desdobramentos

ontológicos repercutem nas relações sociais, pessoais, econômicas e, sobretudo,

culturais que ocorrem na trilogia.

No segundo romance que compõe a trilogia, O Cachorro e o Lobo, o protagonista

Totonhim empreende as duas viagens simultâneas: uma externa, de breve retorno à

terra natal, Junco, e uma viagem interna, longa passeio memorialístico à terra que

permanece inalterada em sua lembrança. Publicado em 1997, O cachorro e o Lobo

desenvolve o fluxo de consciência memorialística de Totonhim durante as vinte e quatro

horas de breve regresso à sua terra, em ocasião da festividade de comemoração aos

oitenta anos do seu pai, que permanece na mesma casa em que criou os filhos. O

protagonista é um bem sucedido funcionário do Banco do Brasil, honrado pai de família,

completamente integrado à vida na metrópole, a comparar-se com um cachorro,

domesticado e previsível em suas ações.

Confrontado entre sua identidade e a de seu pai, Totonhim identifica-se como um

cachorro que, ao confrontar os caminhos e escolhas tomadas ao longo da vida,

percebe-se distinto do pai, caracterizado de acordo com a opinião do narrador, como

um lobo. Ausente de sua terra por duas décadas, Totonhim permite-se uma viagem

interna, na qual se depara com (seus) fantasmas e também lembranças de sua

juventude de rapaz interiorano ao admitir:

Guardei este lugar como última possibilidade de refúgio para criar galinha quando levasse um pé na bunda no emprego, na onda devastadora do enxugamento empregatício, na devoradora maré da reengenharia global. Ou quando estourasse uma guerra no Brasil. Ou anunciassem a chegada do fim do mundo, que não vai atingir estes confins, não sei se por misericórdia de Deus ou por falta de informação sobre o seu dia e hora, já que esta é uma terra sem rádio e sem notícias das terras civilizadas. Era o que eu pensava, antes de chegar e ver, com os meus próprios olhos, as antenas parabólicas sobre os telhados. E me perguntar: ainda terei algum lugar aqui? Preciso morrer para ter direito a esse lugar?14

O retorno ao Junco provoca-lhe a reflexão sobre como o processo de

14 TORRES, Antônio. O cachorro e o Lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008. p. 83.

Page 19: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

19

desterritorialização a que se sente submetido, além das determinações ideológicas que

incidem sobre as transformações culturais e espaciais de sua terra natal e sobre a

identidade fragmentada que o personagem reconhece como sua diante deste espaço

cênico.

Pelo fundo da agulha apresenta o protagonista ciente da realidade circundante.

Exibe agora um olhar crítico sobre a sua cidade natal e a metrópole, inclusive

discernindo sobre seu desenraizamento e fragmentação sociocultural, consequentes da

chamada modernidade e sua cultura de consumo. Lucidamente constata sofrer as

consequências das imposições decorrentes das demandas históricas, assim como

aquelas resultantes de suas próprias escolhas.

Avaliamos o vasto arcabouço crítico da obra de Antônio Torres, no que tange à

abordagem de temas e estudos relacionados à territorialização, migração, êxodo,

fragmentação identitária. O enfoque desse trabalho busca trazer uma contribuição de

ordem sociológica/filosófica. Partimos do entendimento de que, em Torres, o conflito

advindo deste deslocamento físico desencadeia outra viagem, interna, na qual o

personagem mergulha nas suas próprias motivações, buscando questionar e justificar

suas próprias escolhas.

A escolha do título Travessias da realidade humana na trilogia de Antônio Torres

parte do entendimento de que o personagem central Totonhim empreende travessias

singulares nos três romances. Travessias nas quais ele, é lançado forçosamente a um

projeto em que poderá vir a ser bem sucedido, no futuro. Totonhim explora um trajeto

que o leva subjetivamente e, através de uma escolha pessoal e arbitrária, a abrir mão

de uma dada identidade que é anulada em função desta possibilidade que pode ou não

se efetivar. É movido pela esperança. O conceito de travessia aqui utilizado dialoga

com o conceito existencialista, de projeção no futuro, pois, segundo Sartre:

O homem nada mais é do que aquilo que faz de si mesmo: é esse

o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou a da mesa. Pois queremos dizer que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro. De fato, o homem é um projeto que vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe

Page 20: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

20

antes desse projeto, não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser.15

Essas travessias o constituem como realidade humana, ser que se pensa e busca

se compreender com base nas escolhas e caminhos, esforçando-se para perceber os

reflexos que o fluxo da história tem sobre si. Os títulos das seções foram escolhidos de

acordo com as citações de Francis Scott Fitzgerald, aludidas por Antônio Torres como

suas preferidas no prefácio de Um cão uivando para a lua(1972), pertencente ao

período histórico de publicação de Essa Terra (1976). Estas citações de Fitzgerald são

utilizadas como epígrafes nos respectivos capítulos.

No primeiro capítulo, O desencanto do progresso na trilogia de Antônio

Torres, partiremos das seguintes questões que relacionam relato autobiográfico e

ficção: Quais as relações entre a literatura ficcional e a história contemporânea

brasileira sobre a migração para os grandes centros urbanos? Que questões

ontológicas se depreendem daí? Suscitamos tais questões para estabelecer a relação

entre ficção e interioridade do sujeito que narra, com base em Taylor, que entende que

nossa ideia de self está ligada ou mesmo constituída por um certo sentido de

interioridade.16 Torres admite a similaridade entre a paisagem descrita nos seus

romances e o povoado onde viveu durante a infância, em muitos dos seus aspectos

culturais e físicos.

O enfoque maior deste capítulo está nos reflexos da política desenvolvimentista

instaurada pelos governos militares, nos anos de chumbo da história do Brasil, período

de lançamento da obra. Ressaltamos que os aspectos históricos do período de

transição de país eminentemente rural para um país com política marcadamente

neoliberal e em processo de desenvolvimento industrial incidem sobre os

(des)caminhos que alcançaram considerável parcela da população referida nos

romances.

No segundo capítulo, Uivos da memória, abordaremos a questão da

identificação/des-identificação, tomando-se o Junco como principal referência espacial

15 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 6. 16 TAYLOR, Charles. As fontes do self: construção da identidade moderna. Tradução de Adail Ubirajara e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997. p. 149.

Page 21: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

21

a delinear a identidade dos personagens. Consideramos que, ainda que o Junco tenha

a sua face como ambiente hostil que enxota ou enlouquece o indivíduo, também se

configura como o local que forja positivamente a sua identidade, fazendo-o refletir seus

valores culturais através de uma aparente satisfatória integração homem-natureza.

Neste sentido, Totonhim criticamente se posiciona como um cachorro e, ao analisar-se

em suas relações com o meio, entende que seu pai é um lobo, um “bom selvagem”,

feliz e livre de determinações de ordem econômica que manipulem o seu modo de vida

e suas relações com os outros e, sobretudo, com o meio.

No terceiro capítulo, intitulado Numa noite escura da alma, trataremos sobre

como as consequências de exílio e desexílio repercutem no cerne do personagem

Totonhim, fragmentam-lhe a identidade, numa fratura da fixidez que até então marcava

a representação identitária do personagem. Totonhim, ao buscar inserir-se em um novo

padrão de vida representativo de uma cultura hegemônica, abre mão de uma identidade

considerada local e ideologicamente desvalorizada, para integrar-se a uma realidade

globalizada, sendo considerado um cidadão bem sucedido na escolha deste caminho.

Abordaremos ainda como os questionamentos que a maturidade traz, repercutem

em sua identidade e em sua relação com sua terra natal. Parece-nos que esta análise

que o personagem suscita é como que uma constatação de sua imersão numa noite

escura, na qual se vê confrontado diretamente com seus medos, receios e temores

mais profundos. Nesta noite escura da alma, o protagonista é levado a perceber os

reflexos de suas escolhas e caminhos ao longo de sua vida, desenvolvendo novas

interpretações de suas paixões e motivações, alterando em definitivo a sua relação com

o espaço geográfico, tanto em relação ao Junco quanto à metrópole onde vive.

Confrontaremos a realidade sócio-política da época em que as obras foram

escritas, buscando estabelecer as similaridades existentes e apontar a postura crítica

que se depreende desta estratégia estilística ao aliar ao cronotopo sócio-histórico,

cronotopos estéticos, cingindo a experiência histórica real com a criação ficcional.

Desde modo, com base nos estudos de Mikhail Bakhtin,17 buscaremos analisar as

implicações decorrentes da realidade sócio-histórica com a alternativa ficcional

empreendida por Torres.

17 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Page 22: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

22

1 O DESENCANTO COM O PROGRESSO NA TRILOGIA DE ANTÔNIO TORRES

O progresso é um desencanto contínuo. F. Scott Fitzgerald

Essa Terra (1976) é o romance aclamado como a obra prima de Antônio Torres,

sucesso de público e de crítica, traduzido para Cuba, Argentina, França, Alemanha,

Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, Espanha e Portugal. A densidade

desta narrativa é percebida por meio de situações limites nas quais o personagem

Totonhim catalisa uma série de vivências que são observadas também em dois outros

volumes, O cachorro e o Lobo (1997) e Pelo fundo da Agulha (2006). Trata-se de uma

trilogia na qual o protagonista faz a sua travessia entre dois mundos, peregrinando em

três viagens de si para si em espaços de dentro/fora da terra natal.

O autor admite a similaridade entre a paisagem descrita nos seus romances e o

povoado onde viveu durante a infância em muitos dos seus aspectos culturais e físicos.

Em entrevista a Rita O. Godet, Antônio Torres elucida:

Os cenários, os rostos e as vozes da minha infância contribuíram imensamente para a formação do meu imaginário. Agora, quanto ao momento em que os espaços geográficos se transformaram em espaços literários, eu me lembro: foi numa noite, na cidade de São Paulo, quando minha mulher, a Sonia, me pediu para lhe contar uma história do meu tempo de menino. Contei-lhe. E percebi que ela ficou muito emocionada. No dia seguinte escrevi um conto, ao qual dei o título de Segundo Nego de Roseno, que hoje está num livrinho chamado Meninos, eu conto. É

uma historinha singela, passada no Junco, que é hoje a cidade de Sátiro Dias, onde nasci. E foi exatamente esse conto que deu origem ao Essa Terra, que é o meu terceiro romance. Aí o Junco transformou-se

definitivamente em matéria da minha memória, com todos os desdobramentos conhecidos, pelo menos para quem já me leu, como no recente O Cachorro e o Lobo. No meu caso, o vivido conta muito. Tanto que há quem pense que tudo o que escrevo é autobiográfico. Nem tanto. E o ficcionista, onde é que fica? 18

18 GODET, Rita O. Essa entrevista com Antônio Torres se deu por ocasião da Conferência-Debate na Universidade Paris 8 sobre Essa Terra e Meu querido canibal em 2002. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/entrevista5.html> Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 23: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

23

Ao seu relato ficcional, o autor acrescenta lembranças armazenadas na memória

do vivido, reelaborando-as numa escrita que preserva os traços identitários de sua terra

natal, com uma sensibilidade que retrata poeticamente a paisagem daquela localidade.

Neste sentido, sua ficção aproxima-se da confissão na qual a escrita constitui uma

prova e como que uma pedra de toque que traz à luz os movimentos do pensamento,

ainda que guardemos as devidas distinções entre a narrativa de si na cotidianidade da

vida, com uma meticulosíssima atenção àquilo que se passa no corpo e na alma.19

Na trilogia em estudo, o fictício e o real são urdidos numa trama narrativa que

alinha o papel de denúncia social a respeito do êxodo rural e seus efeitos sobre uma

parcela da nossa população através de uma tematização sobre questionamentos

universais como a perda da identidade, o poder do capitalismo e a opressão do

sistema. A respeito da estreita relação entre história e ficção na literatura, Arfuch

considera:

No horizonte epistêmico em que nos situamos, há relativo consenso em assinalar que ambas compartilham os mesmos procedimentos de ficcionalização, mas se distinguem, seja pela natureza dos fatos envolvidos ‘verdadeiramente acontecidos’ ou produtos de invenção, seja pelo tratamento das fontes e dos arquivos.20

O eu-empírico de Torres é utilizado na narrativa não apenas como representação

fiel da realidade. O autor compromete-se com sua realidade geográfica, definindo um

sistema de metáforas orgânicas que desliza para o ficcional ao se revestir da mais livre

invenção, mas como "munição" que serve para desencadear sua criação. Torres rompe

as fronteiras entre ficção e história de modo crítico e problematizador, numa tessitura

que se projeta a partir de uma realidade sertaneja portadora de questões ontológicas

universais. Não é mera criação descontextualizada, visto que se estrutura tomando

como base dados que podem ser verificados, comparados com a trajetória histórica

vivida, conforme atesta essa entrevista ao Jornal Diário do Nordeste:

19 FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ____. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. 20 ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. p. 116-7.

Page 24: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

24

Muita gente me perguntava, e agora volta a me perguntar, se o que escrevo é autobiográfico, pelo meu gosto de escrever na primeira pessoa, falando da cidade onde nasci, Junco, no interior baiano. Além disso, meu percurso é parecido com o do Totonhim. Mas o que acontece é que me aprofundo nos personagens, como se eu e ele fôssemos a mesma pessoa. Muito da minha criação se deu através das pessoas com quem eu convivia em São Paulo, pessoas nordestinas, que se parecem com meus personagens e com quem eu remuniciava meus costumes. 21

Ao considerar as palavras de Antônio Torres na entrevista supracitada, notamos

traços do chamado pacto fantasmático: estratégia estilística própria da ficção e através

do qual se busca uma saída, ainda que precária, para o parentesco entre o discurso

ficcional e o autobiográfico.22 Para isso, o autor faz a utilização de elementos do real

com o objetivo de enriquecer a ficcionalidade.

Ressalvamos: no caso da autobiografia, a intencionalidade do autor se instala

em cada palavra da voz que fala no texto, de uma forma completa e absoluta. Torres

não faz biografia, de modo que não há acordo em relação à realidade representada.

Sua narrativa é urdida com total liberdade. A propósito deste artifício de criação literária,

Wolfgang Iser, em Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional discorre sobre

os processos de criação ficcional e produção da obra literária, enquanto expressão de

um estado de coisas que opera por cortes da realidade, que promovem uma

representação da realidade. Iser defende que:

[...] Cada texto literário é uma forma de tematização do mundo [...] Como esta forma não está dada de antemão pelo mundo a que o autor se refere, para que se imponha é preciso que seja nele implantado. Implantar não significa imitar as estruturas de organização previamente encontráveis, mas sim decompor.23

Ainda de acordo com Iser (1983), o mundo representado no texto é uma

materialidade que, por seu caráter de como se, não traz em si mesmo nem sua

21

TORRES, Antônio. Entrevista ao Diário do Nordeste: 1/10/1998. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/Nas%20lembr...pdf> Acesso: 20 de janeiro de 2016. 22 HOISEL, Evelina. Literatura e biografia: a trama das relações. In: Grande sertão: veredas; uma escritura biográfica. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006. p. 31. 23 ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz. (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. p. 388.

Page 25: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

25

determinação nem sua verdade, que devem ser encontradas no que ele chama de algo

outro. Inferimos daí que a existência de um pacto entre autor e leitores estabelecido

por meio de um jogo em que a ficção e a não ficção se interpenetram, dialogando entre

a realidade física e a realidade criada, abstrata e não passível de comprovação.

Este comprometimento com a verdade, segundo Lejeune, redimensiona o

conceito de Literatura. Não se trata de um texto autobiográfico simplesmente: no texto

autobiográfico ocorre a afirmação da identidade autor-narrador-personagem por meio

de um acordo entre o autor e seus leitores. O pacto biográfico compromete o autor a

narrar o vivido e o leitor a crer na veracidade da história.24

A trilogia de Antônio Torres toma por base o real histórico, questionando,

denunciando e apontando a vivência de parcela da população nordestina que

buscava/busca no êxodo a melhoria de sua condição de vida. Lejeune (2008) alerta

sobre a dificuldade em estabelecer uma oposição entre texto ficcional e texto

autobiográfico. Apesar da história e da ficção abarcarem os mesmos contextos sociais,

culturais e ideológicos, e se valerem das mesmas técnicas formais, não fazem parte da

mesma ordem do discurso. Essa Terra e os demais romances da trilogia não

estabelecem um acordo com seus leitores. Trata-se de gênero ficcional.

A ficção urdida nesta trilogia está amalgamada com a realidade histórica brasileira

sustentada por um Estado inoperante e distante. Projeta-se assim, como depoimento e

denúncia dos “perversos mecanismos de subordinação política e exploração

econômica”25 correspondentes ao período histórico brasileiro em que transcorre a

narrativa.

As transformações históricas ocorridas na narrativa refletem o vertiginoso

crescimento industrial, sobretudo do sul-sudeste do Brasil, caracterizando um ciclo de

modernização que não se restringirá às metrópoles, mas alcançará outras regiões do

país numa ação de interiorização iniciado na década de 1960, como parte de um

projeto de integração e desenvolvimento econômico no interior do país a partir do

governo de Juscelino Kubitschek. Antônio Torres relembra criticamente a conjuntura

24 LEJEUNE, Phillipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Org. Jovita Mª G. Noronha. UFMG, 2008. 25 FONSECA, Aleilton. Essa terra, ficção e realidade dos excluídos. In: NOVAES e SEIDEL. Cláudio Cledson e Roberto Henrique. (Orgs.) Espaço nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. p. 61.

Page 26: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

26

social a respeito dessa época:

Vivíamos uma era de progresso - a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, Itaipu, o BNH, o boom imobiliário, o DDD e o DDI, PNBs fantásticos, as fachadas da ditadura militar. Em seus porões os descontentes, ou dissidentes, uivavam até a morte, se não fossem resgatados antes no rabo de um foguete para o exílio. Nas selvas de pedra a classe média achava que finalmente havia chegado ao paraíso, enquanto seus rebentos exilavam-se num quarto, se entupindo de LSD ao som de Jimmy Hendrix e Janis Joplin, até a loucura. 26

Esse acelerado crescimento industrial aludido por Torres ocorreu de forma

desigual, concentrando em alguns setores da sociedade brasileira a riqueza e renda, de

modo que não se constatou a eliminação de problemas de desigualdade social

existentes na sociedade brasileira daquele período. Paralelo a este fato, presenciava-se

uma política intervencionista por toda a América sob influência capitalista norte-

americana, com o claro objetivo de coibir o avanço do comunismo no continente e

promover a integração ao capitalismo internacional. No Brasil, a emergente elite

brasileira, alinhada com os setores militares, esteve envolvida na grave crise

ocasionada pela disputa de diversas forças políticas que queriam ocupar o poder e que

culminou com a eclosão do golpe militar em 1964. Moraes esclarece:

Logo após o golpe de 1964, o governo anunciou que a intervenção militar seria passageira e teria como finalidade “sanear” e “salvar” o país do comunismo, da corrupção e da inflação. Em nome desse princípio, após 31 de março foram realizadas muitas ações violentas, apoiadas legalmente no Ato Institucional nº 1 (AI-1) como a cassação de mandatos e suspensão dos direitos políticos de lideranças sociais e de sindicalistas contrários ao regime. Houve perseguições de imprensa, lideranças civis e intelectuais e expurgos no funcionalismo, nas Forças Armadas e nas universidades.27

Tais medidas arbitrárias e coercitivas tiveram repercussão direta sobre a produção

literária deste período e da década seguinte. Seus efeitos fizeram-se sentir nas artes

26

TORRES, Antônio. Prefácio de Antônio Torres para a edição comemorativa dos 30 anos de lançamento de seu primeiro livro, Um cão uivando para a lua.IN:___ Um cão uivando para a lua. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/resenha_umcao.html> Acesso em: 20 de janeiro de 2016. 27 MORAES, José Geraldo Vinci de. Mudanças no Final do séc. XX. In:_____. História: Geral e do Brasil: ensino médio. Volume 3. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 164.

Page 27: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

27

enquanto meio de produção de sentidos políticos e ideológicos. Torres lançou-se como

escritor ao publicar Um cão uivando para a lua, em 1972. Após quatro anos, lança

Essa Terra. Em ambos, guardadas as devidas distinções, notamos personagens

complexos que flertam com a loucura e se mostram psicologicamente abalados. Em

Essa Terra, o flerte com a loucura pode ser exemplificado com o suicídio de Nelo, numa

atitude aparentemente injustificável diante de uma comunidade que o tinha como bem

sucedido retirante e completamente integrado à vida na metrópole.

Em Floração de Imaginários, Jorge Araújo avalia que Torres elabora um heroi que

empreende uma “busca desesperada de interlocução com a consciência pública para

relatar os frutos e derivações do transe por que passara toda uma geração nos

episódios culminantes do rabo-de-foguete histórico pós AI-5 e recrudescimento do

regime a partir de 1968.”28 Este cenário histórico de vigor da ditadura é descrito por

Torres na edição comemorativa dos 30 anos de lançamento de Um cão uivando para a

lua (1972) como uma inquietante atmosfera. Rememora:

O impressionante era que neste lado do paraíso, aqui nos subúrbios da América, estivéssemos vivendo a mesma inquietante atmosfera. Mas no tempo em que escrevi este Um Cão Uivando para a Lua - um tempo vivido entre São Paulo e o Rio de Janeiro, depois de andanças por Oropa, França e Bahia -, os meus autores preferidos eram outros, das Américas (a começar pelos brasileiros obrigatórios) e do mundo. E, onde quer que estivesse, sempre tinha à cabeceira um livro de Scott Fitzgerald, o que dizia: "Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã." O que morreu dizendo: "O progresso é o desencanto contínuo." Como todo mundo à minha volta, também ouvia os sons de uns e outros: Chico Buarque, Caetano & Gil, Vinicius de Moraes e Tom Jobim, Milton Nascimento, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Baden Powell - "todos os violões havidos e a haver," na definição magistral do já citado poeta português Alexandre O´Neill -, e todo o resto do pessoal, que incluía o teatro do Zé Celso Martinez Correia, e o de Boal, Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, de Plínio Marcos etc., e o cinema de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade etc., etc., etc., ah, meninos, era uma era de arte, na contramão do enquadramento da ordem & progresso: censura, prisões, tortura, desaparecimentos, mortes, nunca é demais lembrar. 29

28 ARAUJO, Jorge de Souza. Floração de Imaginários: o romance baiano no século 20. Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum, 2008. p. 285. 29 TORRES, Antônio. Prefácio de Antônio Torres para a edição comemorativa dos 30 anos de lançamento de seu primeiro livro, Um cão uivando para a lua.IN:___ Um cão uivando para a lua. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/resenha_umcao.html> Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 28: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

28

Essa inquietação recrudesceu nos anos seguintes, quando o presidente Emílio

Garrastazu Médici assumiu o poder. Seu governo correspondeu ao período da maior

onda de repressão política da história do país contra todos os que eram considerados

opositores do governo. Paralelo a isso, uma forte propaganda favorável ao governo

ressaltava que vivíamos o chamado “milagre brasileiro”, difundindo um clima de euforia

e ufanismo geral na sociedade. Slogans como: "Ninguém mais segura este país", “Esse

é um país que vai pra frente”, ou ainda "Brasil, ame-o ou deixe-o", impulsionam levas de

pessoas a buscarem o tão propalado progresso na cidade grande, sobretudo no eixo-

Rio-São Paulo, empreendendo longas viagens em condições desfavoráveis na

esperança de rapidamente estarem inseridos nos postos de trabalho no setor industrial

que estava em franca expansão.

Moraes (2010) elucida que essa relativa prosperidade da economia encobriu a

exclusão social de significativa parcela da sociedade brasileira que não se beneficiava

com o “milagre econômico”, visto que essas medidas favoreciam as classes sociais que

detinham poder e riqueza que estavam à frente do processo de expansão do setor

industrial e do aumento significativo das exportações agrícolas. Levados pelas

acentuadas desigualdades regionais e sociais, crescentes levas de nordestinos, sob a

esperança de melhoria econômica nas cidades, estimulavam o movimento migratório

para os grandes centros urbanos, numa ação que se refletia na ocupação desordenada

dos grandes centros urbanos.

A narrativa de Torres atesta que a construção de fronteiras físicas, econômicas e

sociais se mostram marcantes ao longo deste período histórico, em decorrência de uma

falta de intervenção política no sentido de minimizar seus efeitos dessa desigualdade

econômica. Estas disparidades passam a caracterizar as metrópoles. A respeito deste

acontecimento que se fortalece nos grandes centros urbanos, Zimmerman (2009)

ressalta que no momento as pessoas são amontoadas e obrigadas a ocupar um

mesmo espaço físico, sendo obrigadas a conviverem com uma proximidade que antes

não existia, diversas “distâncias” aparecem – culturais, sociais, religiosas. Assinala que

tal configuração requer o estabelecimento de pactos e regras para a boa convivência

Page 29: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

29

coletiva, respeitando-se as diferenças.30 Este modelo de convivência coletiva,

entretanto, não ocorreu no caso das grandes metrópoles brasileiras. Sua ocupação se

deu de modo desordenado e sem nenhum planejamento urbanístico. A estrutura

brasileira desde período histórico é marcada por uma concentração de riqueza e renda

em alguns setores do eixo sul-sudeste do país, excluindo boa parte da população da

aquisição de condições mínimas de moradia.

Em regiões remotas do Brasil, situadas no norte e nordeste, a modernização só

começa a ocorrer, de maneira limitada, após os anos de 1960 com o Plano de Metas de

Juscelino Kubitschek, o qual implantou uma política de integração no território nacional.

Essa política favoreceu a abertura de novas rodovias que conectam regiões até então

isoladas umas das outras por meio de uma modernização da malha viária. A partir daí,

as longas e desestimulantes viagens ficaram mais rápidas, acessíveis e menos

cansativas.

O setor industrial em expansão passou a gerar milhares de novos postos de

trabalho nos grandes centros urbanos. Nesse contexto de euforia, alguns postos de

trabalho expõem um estado particular de status que conferia distinção aos que tinham a

sorte de ocupá-los. Totonhim, por exemplo, desde que os homens do banco chegaram

ao Junco, nutria o desejo de ocupar aquela posição social. Rememorando o caminho

que teve de percorrer até se tornar o aposentado que, deitado na cama, racionaliza,

relembra o cunho da conversa com o colega de quarto, militante de esquerda, que o

admoestava a prestar o concurso para o Banco do Brasil nestes termos:

-Vamos nessa. Neste país, para quem veio de baixo, só existem quatro possibilidades de se fazer uma carreira segura: Forças Armadas, Igreja, Petrobrás e Banco do Brasil. Fora isso, só tendo cacife para entrar na vida política ou dar o golpe do baú, ou ficar dando cabeçada, dependendo da sorte. Mas não nos esqueçamos que estamos numa ditadura militar. Agora, as forças armadas só seduzem os que tem vocação para torturador. O quê? Estou exagerando? Exagero ou não, o fato é que o militarismo hoje assusta. E fardados estão sujeitos aos

30 ZIMMERMANN, Giovana Aparecida. O lugar do outro: a imagem dos traçados urbanos como técnica de separação. Revista Outra Travessia. Santa Catarina: UFSC. Nº 8, p. 48, 2009. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/ view/16209 >.

Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 30: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

30

confrontos com os que estão na luta armada, que eles chamam de terrorista. 31

A esperança na melhoria do poder aquisitivo aliada ao clima de euforia e

entusiasmo alardeados pelas propagandas pró-governo favoreceram o êxodo rural,

uma vez que a oferta de emprego aumentou de tal forma que os setores industriais

mais dinâmicos concorriam na contratação de trabalhadores assalariados.

Paralelamente à expansão industrial, novas demandas agrícolas surgiram relacionadas

ao suprimento de matéria prima do setor industrial.

A fibra do sisal, por exemplo, planta resistente à aridez e ao sol intenso do sertão

nordestino, passou a ser usada em substituição à fibra de vidro no enchimento de

assentos de bancos de carros, na crescente indústria automobilística. Necessitando de

pouco investimento financeiro, era uma alternativa atraente, sobretudo para a região

nordestina.

De acordo com estudos técnicos desenvolvidos por agrônomos da EMBRAPA-

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, “No Nordeste brasileiro, a cultura do

sisal tecnicamente é bastante simples, pois as diversas fases de sua exploração se

desenvolvem com o mínimo de tecnologia.”32 Houve um incentivo governamental

implementado por meio de empréstimos e pelo incentivo à aquisição de maquinário

novo em localidades remotas da região semi-árida nordestina, nas quais as condições

climáticas e do sol mostram-se pouco favoráveis para a exploração de outras culturas

que oferecessem a curto prazo resultados econômicos satisfatórios. Torres assim

retrata esse estímulo governamental que chegara ao Junco com a finalidade de

introduzir a emergente cultura do sisal:

Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse umas poucas braças de terra. Os homens do jipe foram direto para a igreja e pediram ao padre para dizer quem eles eram, durante o sermão. O padre disse. Falou em progresso, falou no bem de todos. O banco tinha a garantia do Presidente.

31 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 129. 32 SILVA, Odilon Reny Ribeiro Ferreira da. (Et all) Cultivo do sisal no nordeste brasileiro. Circular Técnica. EMBRAPA, 2008. p. 4. Disponível em: http:<//ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CNPA-2009-09/22318/1/CIRTEC123.pdf> Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 31: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

31

Se o presidente garante, a coisa é boa – o primeiro que abriu a boca a favor dos homens já estava diante deles, na porta da venda. Mas murchou, ao ouvir o conselho que não esperava: - Plante sisal. Está dando um dinheirão. Sisal ninguém sabia plantar, aí é que estava a encrenca. Os homens do banco discutiram, explicaram, prometeram máquinas e dinheiro e todas as ajudas. Depois o jipe voltou, trazendo as promissórias vencidas. Só então - e pela primeira vez na vida - alguns homens do Junco começaram a compreender que um padre também podia errar33

No estudo técnico sobre o cultivo do sisal, ressalta Silva (2008) que: “A

exploração do sisal concentra-se, geralmente, em áreas de pequenos produtores, com

predomínio do trabalho familiar, sendo, portanto, importante agente de fixação do

homem à região semiárida nordestina”34, alertando que a baixa rentabilidade pode vir a

inviabilizar a prática dos tratos culturais, que pode resultar no abandono das lavouras

ou em sua substituição por pastagens e/ou outras culturas, muitas vezes de alto risco,

devido às condições locais de solo e clima.

A introdução do sisal em determinadas propriedades rurais nordestinas se

mostrou desastrosa, uma vez que os pequenos agricultores não tinham o suporte

agronômico necessário para o desenvolvimento de uma nova e desconhecida cultura

agrícola. A falência financeira amargada por pequenos agricultores, ilustrada no trecho

supracitado de Essa Terra, fez pequenos agricultores arcarem com os prejuízos ao

perderem suas pequenas propriedades rurais por não terem condições de arcar com os

empréstimos contraídos neste período. As promissórias vencidas eram pagas com a

venda de suas pequenas propriedades. Antônio Torres ilustra esse fato por meio do pai

de Totonhim, que também se viu obrigado a vender sua pequena propriedade por conta

do prejuízo decorrente dos empréstimos contraídos para a introdução desta lavoura em

suas terras.

As desigualdades sociais e a pobreza aumentaram neste período, cobrando de

setores mais desfavorecidos economicamente o preço exorbitante deste

desenvolvimento econômico e financeiro. Na trilogia, Torres desenvolve uma ficção 33 TORRES, Antônio. Essa Terra. 2004. p. 17-8. 34 SILVA, Odilon Reny Ribeiro Ferreira da. (Et all) Cultivo do sisal no nordeste brasileiro. Circular Técnica. Campina G. EMBRAPA, 2008. p. 8. Disponível em: http:<//ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CNPA-2009-09/22318/1/CIRTEC123.pdf>. Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 32: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

32

que, ao situar-se neste delicado período histórico, revela a realidade perversa da

exploração econômica, a fragmentação de valores culturais e identitários e enfoca um

questionamento filosófico que promove uma crítica aos determinismos de ordem

socioculturais.

Com sua literatura, Torres reflete sobre os questionamentos ontológicos ligados

a todos aqueles que foram levados a ocupar desordenadamente os grandes centros

urbanos, imbuídos da crença numa melhor condição de vida nestes espaços

geográficos. Apropria-se do fenômeno da migração/êxodo, movimento real bastante

comum à parcela da população nordestina, valendo-se dessa realidade como força

motriz para a sua ficção. Dota seus personagens de ações surpreendentes ou até

injustificáveis, mas contraditoriamente humanas.

1.1 A REALIDADE HUMANA

Ao enfocar a motivação dos protagonistas na questão das escolhas, da

esperança e do sucesso que acreditam poder obter ao aventurar-se numa cidade com

condições de desenvolvimento urbano e melhores condições de trabalho,Torres utiliza

sua literatura para nos fazer perceber que um ato individual engaja toda a humanidade.

À luz do existencialismo sartreano, que norteia este estudo dissertativo, a subjetividade

marcará a configuração da “realidade humana” particularizando as escolhas e caminhos

percorridos pelos personagens da trilogia.

Para Sartre, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge

no mundo e só posteriormente se define. E se define através de um engajamento que

nos responsabiliza não apenas individualmente, pois nossas escolhas são oriundas dos

valores de uma coletividade da qual fazemos parte. Sartre elucida:

Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. Se por um lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir no mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito

Page 33: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

33

maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira.35

A questão da subjetividade, da responsabilidade, da liberdade advindas disso,

apresentarão seus desdobramentos e encaminhamentos em O cachorro e o Lobo e em

Pelo Fundo da Agulha, outras duas obras que compõem a trilogia. Torres depura sua

análise ontológica dos personagens, sobretudo na problematização suscitada por

Totonhim ao longo dos trinta anos em que são apresentados os reflexos das suas

escolhas, fazendo emergir as consequências decorrentes delas, sempre tomando como

cenário a sua relação com a terra natal. Evoca melancolicamente um sentimento de

perda irreparável a uma realidade que ficara no passado, e que é trazido à luz

unicamente pela sua memória, questionando se suas escolhas foram realmente as mais

sensatas.

A condição de angústia, que é uma marca característica das reflexões e

ponderações de Totonhim por toda a trilogia, reflete esse senso de responsabilidade

por saber que suas escolhas engajam a toda a humanidade representada pelo Junco.

“Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela

engaja a humanidade inteira.”36 Sartre considera que estamos condenados porque,

lançados ao mundo, somos obrigados a tomar decisões e a arcar com as suas

consequências, visto que o homem é responsável por tudo aquilo que escolhe e faz.

É a própria angústia que constitui a condição de sua ação por pressupor que o

indivíduo deve encarar a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, se

dê conta do valor da sua escolha, sendo o único responsável por ela. Nelo, por

exemplo, identificava-se com a fala e as roupas dos funcionários do banco que

chegaram ao Junco, levando suas propostas de empréstimo junto com vestígios da

civilização exterior àquela paragem.

O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda

35 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 6-7. 36 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 7.

Page 34: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

34

responsabilidade. 37

Isto posto, percebe-se que, para Sartre, há uma “ligação fundamental” entre o eu

e o tu, dada fundamentalmente pelo olhar. Diante da visita inesperada de

representantes de uma instituição bancária que chegaram ao Junco com o objetivo de

incentivar o cultivo de uma nova cultura agrícola, fornecendo subsídios para isso, Nelo

se sente motivado a ser um deles. Escolhe viver como os bancários que chegaram ao

Junco representando o progresso de uma modelo ideológico considerado superior. A

partir deste encontro, este personagem não só se exila de sua terra, como adota uma

nova identidade representativa dessa escolha. É a consciência que este personagem

apresenta que promove o reconhecimento de si e do outro com o qual se identifica. O

efeito de olhar o outro e perceber-se diferente, em carência, gera no ser a sua redução

à condição de objeto, mero ser-em-si, e daí deriva a vergonha, sentimento originário da

sua relação com o outro. Nelo fica deslumbrado com aquela imagem de progresso e

civilidade e essa imagem o motiva ao lembrar-se de que era chamado de tabaréu,

insulto dirigido pelos moradores de Inhambupe à leva de paus de arara coberto de lona

que saiam do Junco anualmente para comparecer aos festejos em homenagem a

nossa Senhora das Candeias. De modo similar, Totonhim pode ser identificado como

ser-em-si ao distanciar-se de sua identidade nordestina, num processo de des-

identificação com (os de) sua terra e escolha de outro modelo. Para Sartre:

De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal: o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. 38

Partindo especificamente do local que se configura como o presente real e

temporal, Torres apresenta o homem em sua universalidade ao levantar motivações

que estão para além daquelas de ordem econômica, social e ideológica. Sobressaem-

se também as motivações de ordem subjetiva. O cenário sertanejo é propício para

37 SARTRE, Jean Paul. Idem. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 7. 38 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 7.

Page 35: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

35

desencadear uma crise em relação à terra, que pode ser comprovada

emblematicamente nos títulos dos capítulos: “Essa terra me enxota”, “Essa terra me

enlouquece”. Esta personificação atribui ao Junco a relevância de projetar-se como

responsável pelas ações a serem sofridas pelos indivíduos. Porém, questões de ordem

subjetivas assumem maior relevância sobre as escolhas do personagem central, ainda

que o geográfico seja importante e preponderante a ponto de fazê-lo declarar que sua

terra natal o enxotava, o enlouquecia.

De maneira indelével, os questionamentos existenciais permanecem, mesmo

com o deslocamento do personagem de sua terra natal para a metrópole. Ivana Gund

(2006), em sua dissertação sobre os caminhos do sujeito migrante em Antônio Torres,

defende que o Junco se trata de um lugar mítico, “onde é possível a reflexão sobre

problemas da coletividade, seja a do sertão baiano, seja a de qualquer outra

comunidade que enfrenta uma situação de exclusão, de desamparo social, de exílio

interno.”39 A partir da problematização relativa à inadaptação do sujeito à cidade grande

e a fragmentação identitária decorrente desse evento, Torres traça, ao longo dos trinta

anos da trilogia, as transformações identitárias que se farão refletidas na construção de

seu protagonista durante esse decurso.

Aleilton Fonseca (2010) constata que a realidade ficcional d’Essa Terra engasta-

se na realidade da migração nordestina numa tessitura que confere à obra um caráter

universal, ao considerar que o fenômeno do êxodo, assim como o desenvolvimento

desigual dos lugares, é um fato comum a pessoas de todos os países, haja vista que a

migração e o deslocamento de refugiados são uma constante ao longo da história do

homem. Seus efeitos repercutem por toda parte, transformando culturas e valores dos

mais variados povos. Não é algo restrito ao Junco, portanto. Trata-se de um problema

universal. Fonseca esclarece:

O drama da viagem, do desenraizamento, da diáspora, da perda de valores fazem de Essa Terra um romance universal, pondo em relevo a

feição particular que este assume em território brasileiro, na trajetória

39 GUND. Ivana Teixeira Figueiredo. Exílio. IN:____. Por Essa Terra... destinos itinerantes: os caminhos do sujeito migrante em Antônio Torres. Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora: UFJF, 2006. p. 18. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/Por%20Essa%20Terra...%20destinos%20itinerantes.pdf>. Acesso: 20 de janeiro de 2016.

Page 36: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

36

sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, não só em termos concretos, no deslocamento dos corpos e das vivências, mas na transição de valores, comportamentos, imaginários e condições de

vida.40

Torres avança com a abordagem do tema ao suscitar questões outras de ordem

política, existencial e metafísica que são transcendentes à temática do êxodo, urdindo a

partir de aspectos físicos, sociais, econômicos, políticos, culturais da região sertaneja,

espaço essencial que estabelece uma interdependência profunda entre a ação, o lugar

e as personagens da trama.41 A problemática que começa a se afigurar no protagonista

em Essa Terra se desdobrará, de modo que esta fissura cultural e identitária se

vislumbra com maior propriedade em O cachorro e o Lobo(1997), no qual se configura a

ascensão social de Totonhim em sua inserção na metrópole e na adoção dos padrões

de consumo almejados pela comunidade do Junco que tinha no desafortunado irmão

Nelo, seu maior representante.

Os questionamentos filosóficos de Totonhim evidenciam uma tomada de

consciência a respeito dos valores sociais, das ideologias, da cultura de massa e seus

desdobramentos e aparecem com todas as suas nuances em Pelo fundo da agulha

(2006). O autor liga-se ao conteúdo histórico em que transcorre a trama, repercutindo

nestes três romances os efeitos decorrentes do momento histórico em que foram

escritos.

Sobre a relação dialógica estabelecida neste processo, Bakhtin discorre sobre

as prerrogativas relacionadas às interpretações do sentido e defende o papel do autor

nessa situação:

O autor reflete a posição emotivo-volitiva de seu herói e não a sua própria atitude para com o herói; esta, o autor a terá concretizado em um objeto, e não poderia, enquanto tal, ser objeto de análise de uma vivência reflexiva; o autor cria, mas não vê sua criação em nenhum outro lugar a não ser no objeto ao qual deu a forma; em outras palavras, ele só vê o produto em devir de seu ato criador e não o processo psicológico que preside a esse ato. Assim é, aliás, a natureza da vivência de qualquer ato criador: ele vive seu objeto e vive a si mesmo

40 FONSECA, Aleilton. Essa terra, ficção e realidade dos excluídos. In: NOVAES e SEIDEL. Cláudio Cledson e Roberto Henrique. (Orgs.) Espaço nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. p. 61. 41 CHAVES, Vânia Pinheiro. Um novo sertão na Literatura Brasileira: Essa Terra, de Antônio Torres. In: TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 184.

Page 37: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

37

no objeto, mas não vive o processo de sua própria vivência; mas não vê sua criação em nenhum outro lugar a não ser no objeto ao qual deu uma forma; trabalho de criação é vivido, mas trata-se de uma vivência que não é capaz de ver ou de apreender a si mesma a não ser no produto ou no objeto que está sendo criado e para o qual tende. Por isso o autor nada tem que dizer sobre o processo de seu ato criador, ele está por inteiro no produto criado, e só pode nos remeter à sua obra; e é, de fato, apenas nela que vamos procurá-lo. (Os aspectos técnicos do ato criador, a perícia, são claramente perceptíveis, porém, de novo, no objeto.) E quando o artista, além da obra criada e complementar.42

Para Bakhtin, não se pode prescindir do contexto para que se estabeleça o

entendimento entre o que o autor escreveu e seu conteúdo. Ressalva ainda a

relevância do autor no conteúdo ao ponderar sobre a importância do homem de um

tempo definido, de uma biografia e de uma visão do mundo inserida num determinado

contexto.

Ao considerarmos o fato de a trilogia desenvolver-se ao longo de três décadas, a

narrativa focaliza uma trajetória que inclui a adolescência, a juventude e a maturidade

do protagonista Totonhim por meio de uma diegese que, enquanto universo espacial e

temporal no qual se desenvolve a história, sofre consideráveis variações em relação

aos tipos de narrador que são expostos nos três romances. Assim, a trama de Essa

terra tem como ponto central o suicídio de Nelo ao apresentá-lo como protagonista, ao

focalizar toda a sua trajetória de vida, motivações, desejo de viajar para São Paulo,

suas desventuras e agruras na metrópole paulistana, assim como seu retorno

desventuroso e desesperançado ao Junco, a culminar com a sua morte numa forca,

fato que repercute sobre o destino dos demais personagens da trama.

Em Essa Terra, a valorização excessiva que a família e a comunidade

impunham a Nelo promovia o apagamento de Totonhim e de suas irmãs, assim como a

nulidade de seu pai e dos demais personagens que não demonstravam a iniciativa de

se aventurar numa viagem de saída daquela localidade. Seu suicídio despedaça o

modelo de sucesso que ele representava e desencadeia uma grave crise que leva

Totonhim a aventar: “Desta vez sou eu quem sente uma dor imensa. Na alma? Ela já o

viu morto e não acreditou. Não pode matar o seu sonho dourado, deve ser isso.”43 A

42

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 27. 43 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 150.

Page 38: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

38

síntese maior desta crise advinda da morte deste “sonho dourado” é a crise de loucura

da mãe, ilustrada no seguinte trecho:

Ela começa a se rasgar. Tem uma força inacreditável. Rasga-se com toda a brutalidade que as mães ofereceram aos filhos homens. Tento segurar-lhe as mãos. É difícil, mas estou tentando. A expressão de seu rosto me enche de pavor. “Filha. Não me fale em filhas”. Agora temo pelo pior de tudo: ela não vai aguentar. Em seu rosto eu vejo o fim. E se for? É voltar para dois enterros. Parece simples, mas não é.44

Neste ponto, Totonhim se configura como uma superação dos desejos,

subjetividades e escolhas do irmão suicida. Este protagonista se adensa a partir do

processo desencadeado pela morte de Nelo. A morte do irmão repercute sobre toda a

travessia que Totonhim irá empreender ao longo da narrativa. O insucesso financeiro e

pessoal de Nelo exige de Totonhim uma tomada de decisão. Este suicídio o fará

questionar, ponderar, justificar e escolher seguir o mesmo caminho exílico, buscando

comprovar que é possível um caminho diferente daquele tomado por Nelo. O papel de

arrimo desempenhado pelo irmão precisa ser compensado, e ao julgar que apenas ele

tem os requisitos para ocupar esse papel social, por ser homem e jovem, resolve seguir

o mesmo caminho, lançando-se num desconhecido destino, acreditando cegamente

que encontrará um caminho diferente daquele encontrado pelo seu abatido irmão.

Especificamente em Essa Terra, Totonhim afigura-se, de acordo com o

entendimento de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes em Dicionário de teoria narrativa

como um narrador homodiegético, que participa na história não como protagonista, mas

como testemunha que veicula informações advindas da sua experiência diegética: “quer

isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as

informações de que carece para construir o seu relato.”45 A respeito da dicotomia que

se estabelece no protagonismo do narrador em Essa Terra, Gonçalves (2014) em sua

tese de doutorado intitulada O percurso da memória nos romances de Antônio Torres: a

constituição do eu na fronteira entre o sertão e a cidade, observa que, apesar de Nelo

ser o centro das ações e das reminiscências dos demais personagens, toda a narrativa

é evocada pela memória de Totonhim que, em seu relato testemunhal, oferece-nos o

44 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 152-3. 45 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. p. 257.

Page 39: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

39

personagem central com uma participação discreta, pouco atuante nas cenas em que

se vê envolvido, projetando-se da maneira passiva nas cenas, ainda que recepcionado

efusivamente pelos seus familiares e demais conterrâneos que ao revê-lo após a longa

ausência demonstram empolgação e empatia com a sua presença. A respeito de Nelo,

Gonçalves (2014) defende que:

Os traços de sua personalidade são delineados aos poucos, pela união dos fragmentos de memória dos outros que conviveram com ele, sendo sua caracterização baseada mais no comportamento e na imagem exterior. O irmão Totonhim, em razão do seu papel duplo, tem mais importância na trama, ou seja, na maneira como a fábula é organizada. Dado como um narrador-personagem secundário, não exerce um papel de primeiro plano, embora participe dos acontecimentos. Sua função é mais importante no nível da enunciação do que no nível do enunciado, pois é por intermédio dele que conhecemos os demais personagens, embora, em alguns momentos, sua narração alterne com a de outros integrantes da família e com a de um narrador onisciente em terceira pessoa (que parece se identificar com ele próprio). 46

Deste modo, Totonhim concentra em Essa Terra os papéis de narrador,

testemunha e personagem das cenas, fazendo imanar do seu relato em 1ª pessoa, toda

a sua perplexidade diante de questões que o tocam. Gonçalves (2009) ainda registra

que nesta narrativa memorialística afloram várias recordações nas quais Totonhim

assimila a visão que possuía quando jovem, participante dos eventos passados,

intercalando-a com a perspectiva de narrador maduro que, no presente, avalia

conscientemente os fatos vivenciados no passado.

Em O cachorro e o Lobo, Totonhim, já maduro e bem estruturado

financeiramente, refaz a viagem de volta ao Junco, após um período de vinte anos,

apresentando-nos suas impressões a respeito de sua terra e as repercussões que esta

viagem tem sobre si. Personagem central e protagonista, neste relato em 1ª pessoa, é

um narrador autodiegético. Segundo a concepção do Dicionário de Teoria da Narrativa,

de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes:

46GONÇALVES, Rogério Gustavo. O percurso da memória nos romances de Antônio Torres: a constituição do eu na fronteira entre o sertão e a cidade. Tese de doutorado. São José do Rio Preto: UNESP, 2014. p. 74.Disponível:http:<//repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/122249/000812894.pdf?sequence=1> Acesso em: 2 de dezembro de 2015.

Page 40: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

40

A expressão narrador autodiegético, introduzida nos estudos narratológicos por Genette, designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história.47

Categorizam que este tipo de narrador se permite uma flexibilização tal em

relação à organização do tempo, que pode ocorrer uma sobreposição temporal entre

narrador e protagonista através do recurso estilístico do monólogo interior, que permite

ao personagem central estabelecido num tempo presente expor suas memórias

anteriores assim como as repercussões que se afiguram no presente, enquanto

detentor do conhecimento e consequências (finais?) de toda a história que relata,

entendida como conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos.

Em O cachorro e o Lobo a distância temporal permite que Totonhim possa

desapaixonadamente reconsiderar suas escolhas éticas, afetivas e ideológicas, visto

que se considera agora distinto daquele que vivenciou os fatos relatados. Esta

considerável distância temporal entre o passado da história e o presente da narração

favorece uma visão crítica do narrador em relação aos rumos que sua terra tomou ao

longo deste período. A análise monológica de Totonhim sobre seu passado e a sua

noção de transitoriedade e transformação temporal, apresentada na citação a seguir,

demonstra sua liquidez identitária:

Agora refaço o caminho com a certeza de que não é mais o mesmo. Parece intransitável, tantos são os seus buracos e regueirões. Por aqui passaram carros de bois, tropeiros, vaqueiros, cavaleiros endomingados, homens, mulheres e meninos, a pé, em bando, e também caminhantes solitários. Um dos meus entretenimentos, para passar o tempo quando ia ou vinha andando sozinho, era observar as marcas deixadas na areia por sapatos, alpercatas e pés descalços, como se fossem desenhos, e cada um diferente do outro. E essa estrada marcou também os meus dedões dos pés – tropecei muito em suas pedras. As tais pedras do meio do caminho, e aqui em sentido literal, nada figurado. Literalmente: doía pra burro. Machucava mesmo. Arrebentava a cabeça dos dedões. E se a estrada já foi mais do que parcialmente engolida pelas erosões, o mundo às suas duas margens também agora é outro, pertencendo ao mesmo estado. De abandono.48

47 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. p. 118. 48 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 133-4.

Page 41: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

41

O abandono a que se refere Totonhim é motivado pelas demandas da vida

moderna, que exigem que as pessoas, em escala global, sejam motivadas a escolher

os novos padrões de consumo e se identificar com eles, inserindo-se na cidade, lócus

da modernidade, abandonando antigos padrões de comportamento. Bauman

compreende que na passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” as

relações humanas se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que foi

levado para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. Afirma que

estas relações não podem servir como arcabouços de referência para as ações

humanas, a longo prazo, em razão de sua expectativa de vida curta que o tempo que

leva para desenvolver uma estratégia coesa e consistente, e ainda mais curta que o

necessário para a realização de um “projeto de vida” individual.49

A globalização traz consigo uma liquidez, conceito desenvolvido por Zygmunt

Bauman, que em Globalização: as consequências humanas, defende que a este

modelo econômico próprio da contemporaneidade arrasta as economias para a

produção do efêmero, do volátil e do precário. As relações deixam de ser imutáveis,

sólidas e passam a se ajustar aos contextos imediatos. Para ele, “a nossa sociedade é

uma sociedade de consumo.” 50 As mudanças dos paradigmas culturais e a

globalização conectam a todos no mesmo modelo cultural de consumo, tendo reflexos

diretos sobre os valores e sobre o modo de vida a ser adotado por seus membros,

assepticamente distantes do espaço privado em que eram vistos por entre bois,

vaqueiros e cavaleiros endomingados.

Ainda segundo Bauman, “as distâncias já não importam, ao passo que a ideia de

uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no ‘mundo real.”51 Nota-se

uma fragilização das distâncias territoriais, visto que não há mais “fronteiras naturais”

intransponíveis a serem ocupadas. Essa liquidez de fronteiras repercute diretamente

nas escolhas humanas, transformando-as aos (dis)sabores do processo de

globalização que abarca a todos, indistintamente.

49

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 7. 50 BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos. In:____. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 87. 51 BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos. In:____. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 19.

Page 42: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

42

Ao relacionar o dinamismo da pós-modernidade com a solidão e a padronização

da cultura e do consumo, Torres faz emergir, nos personagens da trilogia, uma

subjetividade que se apresenta em crise por estar destituída de um sentido cultural de

coletividade com a qual o sujeito se identifique. Tomamos por base o conceito utilizado

por Eagleton (2011) para cultura como prática significativa de um determinado grupo,

incluindo aí conhecimento, crença, arte, moral ou quaisquer outras capacidades

adquiridas pelo ser humano como membro de uma sociedade ao encarnar um modo

específico de ver o mundo.52

Totonhim constata que o desencanto com o progresso chegou ao Junco,

seguindo um modelo ideológico de cultura e consumo que padroniza locais e pessoas,

num mundo globalizado e que incluía, à época histórica em que transcorre a narrativa,

a televisão como seu principal instrumento de difusão de valores desse moderno modo

de vida. É, pois, com surpresa, que Totonhim constata que Seu Antão, seu pai, não

possui esse eletrodoméstico em casa:

Silêncio. É como um prêmio, uma benção, a prova definitiva de que valeu a pena ter vindo a este mundo onde não é preciso fechar os olhos para lembrar que tive uma vida antes e que não é igual à que tenho agora, seja lá o que for que faça a diferença entre uma coisa e outra, cargas e descargas elétricas, trepidações, hora marcada, pressa, sei lá. Parece mentira, mas nesta casa não tem televisão. Silêncio.53

A globalização da economia e as consequentes mudanças dos paradigmas

culturais decorrentes dessa transformação, que buscam conectar a todos no mesmo

modelo cultural de consumo, têm reflexos diretos sobre os valores e sobre o modo de

vida a serem adotados pela sociedade. Seu Antão apresenta-se como uma exceção a

esse modelo de integração e consumismo e talvez, por não ter uma televisão, não sofra

tanto os efeitos desse processo de midiatização.

Pierre Nora (1981) constata que o modo mesmo da percepção histórica que,

com a ajuda da mídia, dilatou-se prodigiosamente, substituiu uma memória voltada para

52 EAGLETON, Terry. Cultura em crise. In: ____. A ideia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp. 2011. p. 57-9. 53 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 34.

Page 43: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

43

a herança em sua própria intimidade, pela película efêmera da atualidade54, tendo na

televisão seu principal meio de difusão. A substituição da memória pela história tem

repercussões muito particulares na América Latina, ao considerarmos que as distinções

locais, a desigualdade social e a exclusão econômica que atingem grande parte da

população latina e brasileira fazem com que os avanços tecnológicos e os aspectos

positivos da globalização não contemplem uma (considerável) parcela da população

destituída do acesso à aquisição de determinados bens de consumo que passam a ser

valorizados como emblemas de status pela sociedade.

A memória coletivamente construída ao longo da história era validada pelos mais

velhos, narradores que detinham o papel de disseminadores das tradições de toda uma

coletividade. Com a aceleração da história, o antigo padrão perde espaço para as

novas configurações históricas da modernidade, cujo modelo paradigmático incentiva a

aquisição de bens que funcionam como simbólicos de sua inserção num estilo de

consumo que passa a ser valorizado socialmente. Como consequência, a sociedade

passa a produzir sujeitos ilhados e esmagados por uma abundância de tempo

redundante e inútil, no qual nada acontece, mas que tem a televisão como um

importante marcador de ações a serem desempenhadas ao longo do dia. Sobre esses

efeitos, Bauman esclarece:

Os habitantes do Segundo Mundo, ao contrário, vivem no espaço, um espaço pesado, resistente, intocável, que amarra o tempo e o mantém fora do controle deles. O tempo deles é vazio: nele “nada acontece”. Para eles, só o tempo virtual da TV tem uma estrutura, um “horário” – o resto do tempo escoa monotonamente, chegando e partindo sem exigir nada e aparentemente sem deixar vestígio. Suas marcas acumuladas aparecem de repente, imprevistas e sem serem convidadas.55

A transformação temporal que caracteriza o processo de modernidade aludida

por Bauman (1999) opera de maneira mecânica, monótona e impessoal a vida das

pessoas. No mundo globalizado em que estão incluídos, indivíduos perdem suas

referências territoriais, comunitárias e coletivas, solidamente construídas ao longo da

54 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. De Yara Alun Khoury. São Paulo: Projeto História-PUC-SP, 1981. p. 8. 55 BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos. In:____. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 92.

Page 44: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

44

história para agora poderem, através da cultura de massa, perceberem-se como parte

integrante de uma mesma comunidade globalizada que adquire, de tempos em tempos,

os mesmos bens de consumo.

Com certa melancolia, Totonhim nota, em suas digressões sobre suas vivências

no passado, que a realidade do Junco à sua frente se transformou, aproximando-se do

padrão de vida e consumo encontrado na metrópole. Melancolia que, aliás, como traço

da personalidade de Totonhim, é um componente sentimental marcante e recorrente

nas descrições memorialísticas do Junco.

Ao perceber as transformações culturais e ideológicas que repercutem

diretamente sobre a sua terra natal, ao longo da trilogia constata que a imagem

singelamente construída em sua memória a respeito de sua terra ficara no passado.

Neste fragmento a seguir nota-se a perplexidade de Totonhim frente a essa situação:

Já não vejo casas, gente, bois, ovelhas e cavalos nos pastos, galinhas e cachorros nos terreiros. O que há são as cercas de macambira e arame farpado, cancelas trancadas a cadeado. “Muitos pastos e poucos rastos. Uma só cabeça para um só chapéu. Um só rebanho para um só pastor.” Nenhum rebanho, na verdade. Nenhum pé de feijão. Quem quiser que compre no supermercado.56

O Junco agora permite que seus cidadãos possam trabalhar na urbe para

comprar no supermercado o feijão que antes plantavam. Inserindo-se num paradigma

da modernização e de regras impostas pelo modelo econômico, o Junco eleva-se a um

padrão de consumo que pode ser encontrado em qualquer outra localidade do mundo

com o mínimo de recursos “modernos”.

Paralelo a esse processo de ampliação de exigências, observa-se um

apagamento da memória coletiva que mantinha as antigas distinções históricas, que

suscita, a partir de Pierre Nora (1981) em Memória e história: A problemática dos

lugares a seguinte reflexão: “Pensemos nessa mutilação sem retorno que representou o

fim dos camponeses, esta coletividade memória por excelência cuja voga como objeto

56 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 134.

Page 45: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

45

da história coincidiu com o apogeu do crescimento industrial”.57 Por compreender que o

mundo inteiro que entrou “na dança”, pelo fenômeno conhecido da mundialização, da

democratização da massificação, da midiatização, que promove o apagamento das

“ideologia-memória” responsáveis por assegurar a transmissão de valores de uma dada

coletividade, este autor defende que o desmoronamento central de nossa memória só é

um exemplo do alcance da mundialização no qual estamos inseridos. Categoricamente

afirma que a aceleração da história acarretou uma ruptura com o passado e promoveu

o esfacelamento da memória.

Totonhim parece perceber que a memória que ele preserva do Junco está

condenada ao esquecimento por conta das mudanças na estrutura da sociedade na

contemporaneidade. Ao repetir o bordão popular “Uma só cabeça para um só chapéu”,

no trecho já citado de O cachorro e o Lobo, Totonhim apresenta consciência do

processo de individualização e de perda dos valores coletivos, em sua travessia pelo

Junco. Com desencanto, reconhece o isolamento do indivíduo como um traço

irreversda contemporaneidade.

1.2 INJUNÇÕES DA TERRA

O espaço geográfico em que transcorre a diegese da trama de Antônio Torres

assume a importância de se constituir como problematizador dos descaminhos e

perplexidades daqueles oprimidos pela frustração do sonho de progresso na metrópole.

Ítalo Moriconi(2008), no prefácio à 23ª edição de Essa Terra, observa que sertão e

periferia dos grandes centros urbanos podem ser considerados como espaços

sinônimos, intercomunicantes enquanto paisagem. A narrativa de Antônio Torres

operacionaliza sua trama tanto no sertão rural, regional, arcaico como no sertão

metropolitano, nacional e pós-moderno, representado pelas favelas e bairros

suburbanos enquanto espaços destoantes de uma identidade hegemônica.

Apesar de ter como espaço geográfico uma cidade ficcional do sertão baiano,

57 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. De Yara Alun Khoury. São Paulo: Projeto História-PUC-SP, 1981. p. 7.

Page 46: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

46

Essa Terra não pode ser considerado como romance regionalista, visto que a

problematização sobre o isolamento do ser, a perda de valores e a desterritorialização

são temas universais, que comportam vivências típicas de migrantes que se aventuram

a tentar a sorte em uma outra localidade mais desenvolvida economicamente, abrindo

mão de uma vida simples, rural, guiada por valores distintos daqueles encontrados

numa metrópole.

As aparentes distinções apresentadas por Antônio Torres entre o cenário rural

baiano e o (sonhado) éden urbano eclodem numa similaridade entre a aridez sertaneja

e o espaço das cidades grandes. Em Essa Terra os aspectos físico-geográficos da

localidade, principal espaço cênico da narrativa, são ilustrados através de construção

descritiva, cuja estilística evoca sentimentos contraditórios no narrador. Exemplifica

essa relação contraditória, o trecho seguinte no qual Totonhim ressalta os traços de

beleza natural da paisagem de sua terra:

O Junco: um pássaro vermelho chamado Sofrê, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder o seu ninho. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai verão. A barra do dia mais bonita do mundo e o pôr de sol mais longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó. As rosas do bem querer.58

Contudo Totonhim também reconhece o caráter perverso e excludente de sua

terra, como se observa na citação a seguir que destoa com esta acima, quando afirma:

“Minha terra não tem palmeiras. Tem suco de mata-pasto. Sumo, como se diz aqui.

Veneno da melhor qualidade [...].”59 Nota-se aí uma paródia da Canção do Exílio,

composição poética romântica, de exaltação à natureza brasileira em suas

características mais acentuadamente particulares. Composta por Gonçalves Dias em

1847, essa canção discorre sobre o desejo do eu-lírico em retornar à terra natal:

58 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 13-4. 59 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 149.

Page 47: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

47

Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra,

Sem que volte para lá; Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.60

Ao comparar a última estrofe desse poema romântico de Gonçalves Dias com o

sentido parafrástico atribuído por Totonhim, evidencia-se o uso da ironia como recurso

para criticar a condição inóspita que é infligida ao Junco. Diferente do poeta que

ressalta o caráter paradisíaco de sua terra, ao versejar positivamente as características

mais peculiares e exóticas da terra, pedindo a Deus que permita o seu retorno a ela,

Totonhim demonstra, através de seus tristes versos, o quão problemática é a sua

relação com uma terra que não oferece subsídios de sobrevivência aos seus, e que faz

brotar de solo não palmeiras onde cantam os sabiás, mas planta de veneno potente.

Esse sentimento negativo em relação à terra não se restringe ao Junco. Antes

trata-se de uma crítica a uma dada condição social, que se faz presente em qualquer

região do mundo. Totonhim demonstra estranhamento e repulsa em relação ao espaço

geográfico inicialmente encontrado na metrópole paulistana do qual, aos poucos, se

afasta. A descrição a seguir, retirada de Pelo fundo da agulha, descreve um espaço

63DIAS, Gonçalves. Canção do Exílio. Disponível em: http:<//www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2112> Acesso: 20 de janeiro de 2016.

Page 48: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

48

urbano a ser, via de regra, ocupado por altas taxas de imigrantes que ocupam

desordenadamente os grandes centros urbanos, nas adjacências dos seus postos de

trabalho, sem que tenham asseguradas, nestes locais, as mínimas condições de infra-

estrutura e dignidade de moradia aos seus moradores. Totonhim, antes de se tornar um

bem sucedido funcionário público, frequenta um destes bairros da periferia, onde pode

rever primos, conhecidos e pessoas que buscam se integrar à realidade paulistana.

Porém, à medida que se alinha aos valores e cultura hegemônica, distancia-se dessa

localidade:

Voltaria àquele subúrbio feio, pobre, triste. E nele encontraria pessoas com mais motivos para ter saudades da sua terra do que o escrivão de polícia que acabava de conhecer. Nem parecia que aquele lugar, chamado São Miguel Paulista, fazia parte das redondezas da maior cidade da América do Sul, da qual era um apêndice inchado, graças às contribuições dos retirantes sertanejos à sua densidade demográfica. O alto-falante da praça cantava: Eu penei, mas aqui cheguei...Eis aí: a voz do mesmo Luiz Gonzaga, o rei do baião, ouvida em todas as praças do sertão. Sentiu-se no Junco. De alguma maneira. Olhou em volta. O que viu foi a feiura de pequenos prédios que pareciam iguais uns aos outros, como se fossem engradados em que as pessoas se engarrafavam para dormir dentro deles. Ruas maltratadas. Calçadas estreitas. Mau cheiro nas esquinas. Não. Nada a ver com o Junco. Lá havia mais espaço de convívio. Bancos nos avarandados (“Traz café para as visitas, muié”) cadeiras nas portas das casas, para a prosa do anoitecer. Rodas de moças e rapazes em torno dos pés de tamarindo e de fícus. Não dava para dizer que a vida num subúrbio de uma capital era igual à de uma cidadezinha do interior.61

O trecho citado refere-se ao local onde morava uma namorada de Totonhim

abandonada por ele sob o vago pretexto da necessidade de estudar inglês, francês e

cursinho para o vestibular, desculpa para esconder, na verdade, seu cansaço com “as

mesmas histórias dos parentes” sobre seca, chuva e vontade de voltar para o nordeste,

além do medo e desconforto causado pela falta de condições dignas e seguras com as

quais ele se deparava quando ousava usufruir momentos a sós com a namorada. Tais

condições promovem um distanciamento em Totonhim que, aos poucos, vai perdendo o

interesse em se relacionar com seus confrades numa crescente rejeição que culmina

com o término do namoro.

61 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 141-2.

Page 49: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

49

No que pese o fato de Totonhim morar no centro da cidade e como funcionário

federal de uma instituição bancária ser considerado bem sucedido financeiramente, em

comparação aos seus conterrâneos, ele buscará integrar-se a uma outra realidade,

condizente com sua condição, deliberando por afastar-se daqueles estigmatizados em

razão de sua cultura, seus valores e modo de falar. Distancia-se das generalizações

preconceituosas e discriminatórias que atormentaram, por exemplo, seu desafortunado

irmão Nelo, que ouvira dos sogros, na ocasião em que sua futura esposa comunicara

aos pais o desejo de casar-se com um baiano, a seguinte declaração:

Todo baiano é negro. Todo baiano é pobre. Todo baiano é veado. Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia.62

A um só tempo, Nelo é vítima de uma série de discriminações, reiteradas por

frases preconceituosas que acoplam atributos de gênero- veado, de raça- preto, de

condição social- pobre e de não pertencimento- fuga para a cidade de origem, a todos

os que procuram estabelecer-se na metrópole. Totonhim busca afastar-se destes

estigmas associados aos nordestinos, chamados genericamente de baianos. Sua

mudança para uma localidade mais urbanizada e desenvolvida promove paralelamente

um distanciamento cultural e identitário. Ao inserir-se num contexto desenvolvido que se

configura como atributo de status social, ele se distancia do seu contexto identitário

natal, alvo de estigmas e acirradas discriminações por parte da comunidade dominante.

O progresso financeiro confere a Totonhim uma identidade diferente daquela

definida de modo preconceituoso e genericamente pelo termo “baiano”. Não interessa a

Totonhim a solidez de uma identidade que não se ajuste às demandas de sua nova

condição social. Levado por uma mudança de valores, próprios da “modernidade

líquida” na qual está incluso, Totonhim evidencia uma identidade líquida, de livre curso,

diante de uma situação na qual estar fixo e ser identificado não traz vantagens. Cabe a

cada indivíduo usar as próprias ferramentas e recursos para reconfigurá-la, por meio de

uma tomada de consciência da sua situação, conforme aponta Bauman (2005):

62 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.63.

Page 50: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

50

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age- e a determinação de se manter firme a tudo isso- são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.63

Totonhim se distancia de sua identidade de nordestino e se molda à identidade

representativa dos valores culturais relacionados à metrópole paulistana. A

transformação vivenciada pelo protagonista é própria da sua mudança social de

discriminado retirante nordestino em bem sucedido empregado do Banco do Brasil. Ao

se aposentar, será novamente desafiado a moldar-se a outra identidade.

No trecho a seguir, o narrador de Pelo fundo da agulha analisa as motivações

de Totonhim e os efeitos sociais provocados pelo êxodo, levando-o a fazer

determinadas escolhas que o distanciam de sua gente e da sua identidade nordestina:

Agora, estava ali para provar se era o homem certo para a mulher certa. Tinha a seu favor um emprego que poderia ser considerado “de futuro”. No Banco do Brasil. E estava estudando muito para ascender na empresa. Sua desvantagem: o sotaque, a denunciar o imigrante. Teriam os pais dela lido, em algum túnel, muro ou tapume, a inscrição que dizia: “Mate um baiano por dia para manter a cidade limpa?”64

As aglomerações humanas têm alterado problematicamente o perfil das cidades,

ao desenvolverem o medo urbano do outro, em determinados espaços interditados aos

que são considerados diferentes ou não pertencentes àquela esfera social, conforme

assinala Giovanna Zimmermann no artigo O lugar do outro: a imagem dos traçados

urbanos como técnica de separação (2009). Avalia: “A cidade, possui uma inexorável

ligação entre o seu espaço físico, as relações entre seus habitantes e a forma de

manutenção e controle dessas relações.”65 Compreende a necessidade de se tratar os

discursos e representações sobre a cidade como construções simbólicas plenamente

63

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p. 17. 64 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 149-50. 65 ZIMMERMANN, Giovana Aparecida. O lugar do outro: a imagem dos traçados urbanos como técnica de separação. Revista Outra Travessia. Santa Catarina: UFSC. Nº 8, p. 47, 2009. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/ view/16209 >. Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 51: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

51

dotadas de valores sociais, pois quanto mais avançamos no tempo, mais a aceleração

dos processos sociais e as modificações dos espaços urbanos tornam-se vertiginosas,

mais complexas e que exigem o estabelecimento de normas de convivência.

Para Zimmermann (2009) as distinções estabelecidas na urbe se configuram

como um fator de risco às relações humanas, pela dissolução de valores como a

solidariedade, a gentileza e a polidez. Alerta que a rotulação midiática estereotipada

destitui do outro o caráter de semelhante, perdendo-se a motivação de encará-lo como

semelhante. Alerta que “a estruturação das relações passa a ser mantida por uma frieza

e distanciamento, privilegiando as relações entre classes homogêneas e não mais à

vida urbana como um todo.”66 Totonhim vivencia, na prática, o modo cruel como são

abalizadas diferentes identidades culturais e, diante da violência de não ter sua

condição de humanidade reconhecida, rompe com as perversas engrenagens que as

forças produtivas do sistema reservam aos seus conterrâneos, de modo geral.

A cultura a ser seguida por Totonhim pauta-se assim com um modelo

ideologicamente construído ao longo da história brasileira sobre a representação do

que seria considerado como o ideal de civilização, modernidade e superioridade em

detrimento de outro modelo que está aliado ao que, ainda hoje, é considerado como

modelo de inferioridade e atraso.

Frente ao sistema econômico que o contempla desfavoravelmente e as injunções

da metrópole, Totonhim repensa sua identidade e faz a escolha que, segundo o seu

juízo de valor, mostra-se como mais segura e racional. Rompe com os laços de uma

comunidade que não representa o seu ideal de progresso e modernidade, num

processo de des-identificação com os antigos valores representativos daquela

coletividade, distanciando-se, conscientemente, de sua antiga cultura, avaliada como

inferior. Terry Eagleton em A ideia de Cultura(2011) delimita a ideia de cultura a um

complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de

um grupo específico.

Ao considerar que a condição de “humanidade” significa uma comunidade livre

de conflitos, na qual primeiramente somos homens para depois sermos cidadãos,

Eagleton reconhece o caráter utópico destes conceitos: “A cultura ou o Estado são uma

66ZIMMERMANN, Giovana Aparecida. Idem. p. 53

Page 52: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

52

espécie de utopia prematura, abolindo a luta em um nível imaginário a fim de não

precisar resolvê-la em um nível político.”67 Totonhim ajusta-se a uma identidade que

ideologicamente é caracterizada como representativa de prestígio e sucesso

econômico. Em Essa Terra, seu irmão Nelo o faz pela valorização do modelo

hegemônico representado pelos bancários que vão ao Junco fazer empréstimo para os

agricultores que tivessem interesse em investir numa nova cultura agrícola. Nesse

sentido, a identidade é uma criação que se forja como suporte ideológico utilizado na

manutenção dos valores que interessam aos grupos hegemônicos.

Segundo Bauman (2005), a ideia de identidade:

[Ela] se solidificou num “fato”, num “dado”, precisamente porque tinha sido uma ficção, e graças à brecha dolorosamente sentida que se estendeu entre aquilo que essa ideia sugeria, insinuava ou impelia, e ao status quo ante (o estado de coisas que precede a intervenção humana,

portanto inocente em relação a esta). A ideia de identidade nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é”, e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia. 68

Totonhim, bancário, representa esse sucesso há muito cristalizado em sua

memória e no imaginário da coletividade de onde saiu. Ele ergue uma realidade ao

nível do padrão estabelecido como ideal, projetando-se como um modelo

ideologicamente como positivo. A representação maior da valorização desse prestígio

social, no entanto, fora dada por seu desventuroso Nelo, conforme observamos no

trecho:

Nelo descobriu que queria ir embora no dia em que viu os homens do jipe. Estava com 17 anos. Ele iria passar mais três anos para se despregar do cós das calças de papai. Três anos sonhando todas as noites com a fala e as roupas daqueles bancários- a fala e a roupa de quem, com toda certeza, dava muita sorte com as mulheres.69

O prestígio há muito idealizado nos sonhos mais ambiciosos do seu irmão

67 EAGLETON, Terry. Cultura em crise. In: ____. A ideia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp. 2011. p. 17. 68 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p. 26. 69 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.18.

Page 53: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

53

primogênito sublima-se em Totonhim, que se afasta da identidade de retirante

nordestino ao incorporar os valores metropolitanos que, acredita, apagarão os estigmas

imputados aos baianos e fá-lo-ão o homem “certo” para uma honesta e bem criada

moça de família tradicional paulistana. Ao retirar-se em definitivo do longínquo bairro

onde se congregavam seus conterrâneos, ele ouve ecoar, no alto-falante daquela

comunidade suburbana da metrópole paulistana, um trecho da emblemática música

Pau de arara, de Guio de Morais e Luiz Gonzaga(1952):

Quando eu vim do sertão, seu môço, do meu Bodocó

A malota era um saco e o cadeado era um nó

Só trazia a coragem e a cara Viajando num pau-de-arara Eu penei, mas aqui cheguei

Trouxe um triângulo, no matolão Trouxe um gonguê, no matolão

Trouxe um zabumba dentro do matolão Xote, maracatu e baião

tudo isso eu trouxe no meu matolão.70

Essa canção, datada de 1952, refere-se a um período histórico no qual as

primeiras grandes levas de retirantes nordestinos estavam se lançando nas longas

viagens em busca de melhorias financeiras no sudeste do país, tangidos pelas severas

secas que marcaram este período, consideradas pelos historiadores e pelo presidente

Juscelino Kubistchek como as mais terríveis da história do Brasil.

Em sua tese de doutorado sobre o destino do migrante nordestino na região

metropolitana de São Paulo, Silva (2008) nota que os paus de araras foram

emblemáticos não do progresso, mas da precariedade que marcou o processo de

integração do mercado de trabalho no país, visto que esses veículos adaptados traziam

“empoleirados” um sem número de homens, mulheres e crianças que buscavam, em

viagens que duravam até duas semanas, melhorias de condições de vida no sul: “As

condições indignas de viagem e o perigo iminente de acidentes nas estradas eram

compensados pelo baixíssimo custo de deslocamento de uma população necessária

70 A letra da composição Pau de Arara encontra-se disponível no site: http:<//www.vagalume.com.br/luiz-gonzaga/pau-de-arara.html#ixzz3zmuS01cn>

Page 54: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

54

para a formação de um novo centro industrial em plena expansão.”71 Luiz

Gonzaga(1952) ressalta as parcas condições desse retirante que, além da coragem,

carrega em sua modestíssima bagagem, alguns instrumentos musicais símbolos da

cultura sertaneja - triângulo, gonguê, zabumba. Alia a esta parca bagagem outra de

natureza imaterial e simbólica de sua tradição cultural: xote, maracatu e baião. Ao

transportar no matolão esses objetos, o viajante, em seu trajeto para a cidade grande,

busca não apenas minimizar a saudade e o sofrimento de sua partida, mas sobretudo

perpetuar e difundir a sua cultura por outras paragens, mantendo viva suas lembranças

afetivas, mesmo longe de sua terra.

Totonhim cantarola os versos “Eu penei, mas aqui cheguei...”. Não obstante, ao

contrário do personagem cantado em verso por Luiz Gonzaga, ele se afasta destas

referências regionais, oprimido que se sente pela discriminação, violência e

preconceitos dirigidos aos seus conterrâneos. Em relação aos impactos da ideologia

hegemônica sobre a representação da identidade, Terry Eagleton (1997) assevera:

A condição de ser oprimido tem algumas pequenas compensações, e é por isso que às vezes estamos dispostos a tolerá-la. O opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e se identificar com seu poder; [...] Se tal dominação deixar, por muito tempo, de propiciar suficiente gratificação a suas vítimas, estas, com certeza, acabarão por revoltar-se contra ela. 72

A ideologia se refere principalmente a nossas relações afetivas e inconscientes

com o mundo, aos modos pelos quais, de maneira pré-reflexiva, estamos vinculados à

realidade social, considerando como essa realidade nos atinge “sob a forma de uma

experiência aparentemente espontânea, dos modos pelos quais os sujeitos humanos

estão o tempo todo em jogo, investindo em suas relações com a vida social como parte

crucial do que é serem eles mesmos.”73 Totonhim racionaliza e, diante dos

preconceitos contra baianos e nordestinos, sente-se seduzido a enquadrar-se a outro

modelo identitário. Busca se enquadrar a um padrão de pertencimento identitário mais

71 SILVA, Uvanerson Vitor da. Migrações internas, migrantes nordestinos e formação de um mercado de trabalho nacional. IN:____.Velhos caminhos, novos destinos: migrante nordestino na região metropolitana de São Paulo. São Paulo: USP. 2008. p. 27. 72 EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997. p. 13. 73 EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora da UNESP/ Editora Boitempo, 1997. p. 30.

Page 55: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

55

seguro e que seja considerado bem sucedido. Ele age como se as imposições de

ordem social fossem o fator mais preponderante para a sua existência, só se

desvencilhando desse condicionamento quando, finalmente aposentado, reflete:

Era a primeira de suas noites em que diria adeus ao despertador, como já o havia dito ao vínculo empregatício, aos sorrisos interessados, lealdades utilitárias, sinuosas insídias. E foi uma despedida sem festas. Sem flores, cintilações etílicas, beijos, abraços, apertos de mão, tapinhas nas costas, promessas de encontros fortuitos ao cair da tarde, ou um almoço dia destes, uma noitada de arromba, um carteado, nem mesmo um vago “a gente se vê por aí”, “manda um e-mail”, ou “telefona”, ou “vem jantar lá em casa”. Nada.74

Totonhim tem sua atuação condicionada a certos determinismos que o

transformam em ser redundante, de acordo com Bauman. Ser declarado redundante

significa ser considerado dispensável. “‘Redundância’ compartilha o espaço semântico

de ‘rejeitos’, ‘dejetos’, ’restos’, ‘lixo’ – com refugo.[...] O destino do refugo é o depósito

de dejetos, o monte de lixo.”75 Qual refugo humano Totonhim, em última instância, tem

subtraída a sua dignidade por já não possuir atributos socialmente valorizados na

comunidade ou nação na qual estava inserido, na medida em que a valorização de uma

dada identidade projeta-se como um modelo a ser seguido por todos os que pertencem

à sua “nação”, categorizando como descartáveis os que dela estão afastados.

O conceito de nação é desenvolvido por Benedict Anderson (2008) que, na obra

Comunidades imaginadas, analisa que a ideia de nacionalidade surgiu e se

desenvolveu quando, no séc. XVIII, o Iluminismo, a Enciclopédia e a necessidade de

fortalecimento do Estado Moderno começaram a aliar seus interesses de demarcação

territorial, difundindo a ideia de uma “unidade nacional” a ser buscada de modo

soberano, abarcando toda uma coletividade de indivíduos, refreando as distinções e

desconsiderando as particularidades e a diversidade entre seus membros.76

Totonhim escolhe uma trajetória que o encaminha para um modelo identitário

hegemônico que, ainda que represente status e modernização, acaba por afastá-lo de

74 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 19. 75 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 20 76 ANDERSON, Benedict. Imaginar é difícil, porém necessário. In: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Page 56: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

56

sua identidade primeva, dos seus conterrâneos e também de sua esposa, segundo ela

mesma que, num momento de crise conjugal, em Pelo fundo da agulha, constata:

-É exatamente aí que eu quero chegar. Nas suas escolhas. Continuando

o que eu vinha dizendo antes, pergunto: o que aconteceu com aquele cara com uma história diferente da minha, e que eu admirava tanto? Acabou se tornando igualzinho a mais um de minha família. Você quis ser como eles. E se perdeu de vista. Que merda, hein Filho?77

Benedict Anderson define nação como “uma comunidade política imaginada, e

imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.”78

Explica que é soberana por manter um enorme vínculo entre os seus membros, limitada

por ser dotada de barreiras que a separam de outras nações. Defende que o conceito

de nação é criado por grupos hegemônicos que, inseridos num determinado contexto,

necessitam deste suporte ideológico para as suas ações de dominação, forjando, em

última instância, uma identidade socialmente valorizada. Essa identidade, segundo nota

a esposa de Totonhim, torna-o igual a todos.

Totonhim, individualmente, busca as escolhas que julga melhor e que sabe serem

aquelas a que os outros também enaltecem como sendo os ideais, num processo de

atribuição de valores sociais e culturais que são compartilhados por toda uma

coletividade. Seu juízo de valor é forjado justamente por esta comunidade na qual está

inserido. Sartre considera:

Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio, e por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. [...]Escolher ser isso ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal: o que escolhemos é sempre o bem

77 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 180. 78 ANDERSON, Benedict. Imaginar é difícil, porém necessário. In: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 33.

Page 57: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

57

e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos.79

Ainda que a escolha de Totonhim possa parecer individual, subjetiva e levada por

iniciativa própria, na verdade reitera um paradigma identitário, embasado

primordialmente por Nelo, estendendo-se a sua mãe e irmãs, tios, primos, família e

conhecidos que reverenciavam os recém-chegados, incluindo aí as moças solteiras a

confiar esperançosamente no retorno triunfal de seus amados. O status alcançado

como funcionário de um banco federal confere a Totonhim uma projeção que o

distingue como imagem a ser seguida. Sua escolha reflete uma responsabilidade sobre

o futuro de toda uma população que projeta nele a ideia de sucesso. Ele “engaja a

humanidade inteira”. Sartre afirma: “Sou deste modo, responsável por mim mesmo e

por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras

palavras: escolhendo-me, escolho o homem.”80 Totonhim consolida a sua imagem

identitária e carrega por toda a vida a responsabilidade por essa escolha. Paga com a

sua fragmentação identitária por esse projeto.

Gonçalves (2014) observa que Totonhim sucumbe à lógica social da cidade, e

que, ao identificar-se com o cenário urbano à sua volta, molda-se ao mesmo, num

processo de assimilação de costumes caracterizado pela adoção de uma cultura

dominante.81 Deste modo, Totonhim acaba por se tornar vítima irrefreável do seu

próprio projeto de sucesso.

79 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 6-7. 80

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 7. 81

GONÇALVES, Rogério Gustavo. O percurso da memória nos romances de Antônio Torres: a constituição do eu na

fronteira entre o sertão e a cidade. Tese de doutorado. São José do Rio Preto: UNESP, 2014. p. 169. Disponível em:

http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/122249/000812894.pdf? Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 58: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

58

2 UIVOS DA MEMÓRIA

Memória! Junta na sala do cérebro as fileiras

Das inumeráveis bem-amadas. Derrama o riso em todos os olhos

Que de passadas núpcias A noite se paramente.

Maiakovski

Na contemporaneidade, a valorização de um estilo de vida considerado

moderno e urbanizado, próprio da globalização, privilegia a aquisição de bens

materiais, reflexo de um modelo ideológico que procura integrar membros de diferentes

comunidades numa única cultura globalizada e comum a todos os seus integrantes em

detrimento de realidades locais, particulares. Nessa conjuntura, velhas identidades

forjadas pela ideologia dominante têm sido sufocadas em prol de novas contingências

globais.

Entretanto, o pertencimento a uma determinada comunidade caracterizada por

uma dada identidade não anula o pertencimento a outra esfera identitária, uma vez que

as consciências de pertencimento e de identidade não são garantidas para toda a vida,

sendo bastante negociáveis e revogáveis. As decisões que o indivíduo toma, os

caminhos que percorre, a maneira como age, e a deliberação de se manter firme a tudo

isso, são fatores tanto para o pertencimento quanto para a fragmentação de sua

identidade.

Decorridas três décadas desde sua saída do Junco, com tempo ocioso a fazer-

lhe aflorar a reflexão, motivado pela solidão e pela ausência de falas externas “a jogar a

esmo os conflitos que o coração humano não consegue segurar”82,Totonhim, como

numa invocação dos versos de Maiakovski citados na epígrafe desta seção, vê-se

confrontado com a instauração de uma crise em relação ao seu principal papel social:

trabalhador que ocupa uma posição social de destaque numa importante instituição

82 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 8.

Page 59: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

59

bancária. Sua memória conduz a narrativa, num exame cuidadoso sobre as

consequências levadas pelas suas escolhas, sem deixar de analisar o papel das

demandas do sistema econômico.

Essa tensão em sua identidade é amalgamada pela sensação de perda de

referências demarcatórias da posição do indivíduo, antes tradicionalmente

compreendido como portador de uma essência ou uma interioridade supostamente pré-

existente.

Totonhim, que ao longo de toda a vida fora dotado de uma condição de

consciência que, segundo a filosofia de Sartre é chamada de condição de angústia,

representada pela responsabilidade de precisar fazer escolhas, como a de se levantar

todo dia, ao longo de vinte e cinco anos, para ir ao trabalho. Conscientemente busca se

ajustar ao que se espera de um destacado bancário. Ao assinar sua aposentadoria,

constata que a nova dinâmica da empresa compulsoriamente o destitui do direito de

escolha. Ao sair do banco, perambula desnorteado pela cidade, buscando digerir esse

novo e definitivo dado de sua vida. O narrador de Pelo fundo da Agulha assim expõe

Totonhim, ainda sob os efeitos impactantes do desligamento do banco: “O senhor se

pôs a vagar por ruas do passado, em busca de uma saída para o futuro...”83 Perplexo,

sozinho e lançado a uma nova realidade, Totonhim vê-se esvaziado de qualquer função

social numa sociedade que qualifica as pessoas de acordo com o cargo e posição que

ocupam na sociedade de consumo e que é marcadamente excludente.

A crise identitária vivenciada, apesar de nitidamente demarcada em Pelo fundo da

Agulha, já começa a apresentar suas marcas dez anos antes. Notamos seus indícios

quando, por ocasião da breve visita que Totonhim fez ao Junco, em comemoração ao

aniversário do pai e estando distante da terra há duas décadas, intenta aproveitar a

oportunidade para matar a saudade e relembrar fatos vividos durante sua infância. A

realidade que se apresenta, no entanto, mostra-se diferente daquela do seu imaginário.

Totonhim medita:

Amanhã cedo eu queria era tomar uma caneca de leite com sal, ordenhado diretamente do peito da vaca, sem a intermediação da Parmalat. Esqueça isso, Totonhim. Você não mora mais aqui. E não sabe de nada. É, de nada vezes nada. Chego à cancela. O cachorro não veio correndo de casa, pulando de alegria, para me receber. E a cancela

83 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 62.

Page 60: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

60

está presa no mourão, por uma corrente. Com algum cuidado e muito sacrifício –ai, minhas pernas- consigo saltá-las. E vou subindo a ladeirinha, aqui e ali encontrando algum vestígio do caminho que perfazíamos todo dia, agora encoberto pelo mato. Não será difícil encontrar o lugar onde a casa foi plantada, tão solidamente, pelo meu pai. O pé de fícus que reinava à sua frente, encopado e sombreante, ainda continua no mesmo lugar, como única referência de um tempo perdido para sempre.84

É nesta conjuntura sócio-histórica que se apresenta a fragmentação identitária

de Totonhim, ao reconhecer que a antiga realidade de sua terra, assim como as

referências que o fizeram enquanto indivíduo pertencente àquela comunidade, ficaram

num passado remoto e longínquo. “Um tempo perdido para sempre”. O Junco de

Totonhim transformou-se, pelos embates históricos que culminam na globalização da

economia, em um dado do passado. Totonhim ainda pensa sua terra natal enquanto

espaço de uma coletividade com características próprias e singulares legitimadas por

um passado comum - uma nação. Busca reconstruir essa nação num fluxo de

consciência em que demonstra sua perplexidade e esforço em compreender a nova

realidade daquela localidade. Todavia verifica que a única referência viva daquele

tempo é um pé de fícus, encopado e sombreante.

Os estudos sobre a problemática dos lugares e o papel que a memória assume

no contexto da história atual nos revela, com base nos estudos de Pierre Nora (1981)

que a consciência de ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma

memória esfacelada. Defende que o fim da história memória é marcado pelo fim da

ideia de nação enquanto consciência de coletividade. Em lugar da legitimação pelo

passado, a contemporaneidade é marcada pela legitimação pelo futuro. Constata Nora:

A nação não é mais o quadro unitário que encerrava a consciência da coletividade. Sua definição não está mais em questão, e a paz, a prosperidade e sua redução de poder fizeram o resto; ela só está ameaçada pela ausência de ameaças. Com a emergência da sociedade no lugar e espaço da Nação, a legitimação pelo passado, portanto, pela história, cedeu lugar à legitimação pelo futuro. O passado, só seria possível conhecê-lo e venerá-lo, e a Nação, servi-la; o futuro, é preciso

84TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008. p. 135.

Page 61: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

61

prepará-lo. 85

Este estudioso observa que a metamorfose histórica da memória se processou

via individualização da memória, marcada pelo deslocamento do histórico para o

psicológico, do social para o individual, do transitivo para o subjetivo, da repetição à

rememoração, inaugurando assim um regime privado de memória. A aceleração da

história, na contemporaneidade, marca o fim da história memória coletiva, lançando os

indivíduos a uma redefinição identitária a ser moldada/remoldada pelas demandas de

uma psicologia individual.

Esse confronto entre realidade atual e aquela invocada pela memória

problematiza a identidade que fora historicamente construída. O problema da

identidade é dado pela perda das âncoras sociais que a fazem parecer natural,

predeterminada e inegociável. Os efeitos da sociedade globalizada, aos poucos,

demonstram ter também chegado ao Junco, afetando - porém de maneira distinta-

Totonhim e seu pai, como analisaremos nas subseções seguintes.

2.1 UIVOS DO CACHORRO

O advento da modernidade e a consequente globalização organiza o mundo numa

nova perspectiva que naturaliza formas de exclusão, classificação e valorização das

pessoas com base na sua própria categorização e visão de mundo. Instaura nos

indivíduos um mal-estar em relação ao seu valor ante a sociedade do consumo.

Em análise dos processos de reelaboração que a identidade sofre com a

estruturação do moderno Estado globalizado, Bauman (2005) nota que “as identidades

ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em

pleno voo, usando os próprios recursos e ferramentas.”86 É nesta conjuntura sócio-

histórica que se apresenta a transformação identitária de Totonhim, ao reconhecer que

sua identidade ficou num passado que hoje só sobrevive em sua memória.

85

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. De Yara Alun Khoury. São Paulo: Projeto História-PUC-SP, 1981. p. 12. 86 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p. 35

Page 62: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

62

Ademais, ao ser contemplado pela aposentadoria, Totonhim vivencia a perda de

seu mais importante papel social, o de renomado funcionário de uma tradicional

instituição. Temporariamente vive o absurdo de uma vida sem esperança (mesmo que

ilusória) no futuro. Sente-se agora privado de ilusões, pois sabe não ter mais condições

de reinserir-se no mercado de trabalho como trabalhador ativo. Além destas perdas,

sem nenhuma delicadeza, seus ex-colegas de trabalho demonstram que sua ausência

não há de ser sentida, pois o mais importante é a vida – e o emprego - de cada um

deles. Sobre esse sentimento de privação de esperança, que denota um divórcio entre

o homem e a vida familiar, caracterizada por uma rotina, que alimenta uma noção de

continuidade e permanência, Camus esclarece:

Qual é então o sentimento incalculável que priva o espirito do sono necessário para a vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exilio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo.87

Esse sentimento incalculável aludido por Camus (2010) se configura como o

absurdo, como condição que destitui o homem de seu cenário, impedindo-o de

desempenhar o papel para o qual se julga capacitado, exilando-o de modo insolúvel.

Essa situação de absurdo vivenciada por Totonhim atinge seu clímax nas palavras

iniciais de Pelo fundo da agulha:

Era outra a cidade, e outro o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios. Cá está ele; na cama. Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Seria um exagero inscrevê-lo na lenda heroica. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas de sorte, mais a merecer uma

87 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. p. 21.

Page 63: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

63

menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor.88

Totonhim, recém-aposentado, separado da mulher e dos filhos, embalado pela

imagem da mãe enfiando a linha pelo fundo da agulha, repensa toda a trajetória de sua

vida, numa travessia de si para si, viagem interior do presente para o passado,

buscando resgatar os fios condutores de sua vida e da própria identidade. Pelo fundo

da agulha apresenta o protagonista ciente dos efeitos que o processo sócio-histórico

tem sobre si, ao reconhecer ser outra a configuração geográfica na qual está inserido:

outra cidade, outro pais, outro continente. Em sua corrida contra o tempo, Totonhim não

pode ser considerado nem heroi nem derrotado, apenas consolida-se como simples e

comum mortal sobrevivente aos embates do sistema.

Todavia, apesar do ápice do absurdo em que se encontra, Totonhim se distancia

do heroi mitológico Sísifo,89 emblema do absurdo. Este acata seu destino de modo

irrevogável, rolando eternamente a pedra morro acima. Diferentemente do heroi grego,

Totonhim mostra, a todo o tempo, seu desconforto com os caminhos a que é obrigado a

88 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 7-8 89 No Dicionário de Mitologia Greco-latina de Spalding o verbete referente a de Sísifo discorre que: Asopo, deus do rio do mesmo nome, que corre ao norte do Peloponeso, tinha uma filha de nome Egina, notável pela sua resplandecente beleza. Júpiter, que a vira, desejou-a vivamente. Aproveitou uma oportunidade em que a donzela estava só na sua câmara e apresentou-se sob a forma duma flama. A moça, inocente, aproximou-se para ver o inusitado espetáculo e o deus conseguiu enlaçá-la; depois de possuí-la, resolveu raptá-la. Asopo, aflito pelo desaparecimento da filha, pôs-se a sua procura. Chegou a Corinto. Ora, Sísifo, o rei, fora testemunha do rapto: vira quando Júpiter saíra do palácio com a gentil Egina. Sabia, pois, qual o autor da façanha. Sísifo quis fazer valer o seu conhecimento. Se Asopo fizesse jorrar numa fonte do rochedo sobre o qual estava a sua acrópole, diria quem era o autor do rapto. Asopo fez jorrar o manancial e Sísifo delatou-lhe o causador das suas inquietações. Asopo logo declarou guerra ao rei dos deuses. Mas não foi bem sucedido: Júpiter, com um raio, fê-lo voltar ao seu curso, do qual nunca mais saiu. A seguir o pai dos deuses quis vingar-se também do delator. Mandou-lhe a Morte. Sísifo, com suas manhas, conseguiu prender a Morte, e tão bem a prendeu que ninguém mais no mundo morria. Plutão, alarmado, foi queixar-se a Júpiter; já ninguém descia ao reino das sombras a fim de alegrar-lhe o negro coração. Júpiter, nessa emergência, foi obrigado a mandar o vigoroso deus Marte ajustar contas com o artificioso Sísifo. Marte não só conseguiu libertar a Morte das suas cadeias, mas prendeu nelas o rei. Antes de morrer, teve tempo ainda de levar a cabo notável perfídia, pediu a esposa que não inumasse seu corpo. Uma vez nos Infernos, começou a lastimar-se amargamente da negligência da mulher. Tanto falou e clamou que, a seu pedido, o rei Plutão concedeu-lhe licença de subir novamente a terra a fim de castigar a esposa. Sísifo foi e não voltou. Passaram-se os anos e Mercúrio viu-se obrigado a trazê-lo à força para os Infernos, onde sofreu castigo exemplar.

Consiste este em rolar montanha acima ingente bloco de pedra; quando o rochedo atinge o cume, despenha-se

declive abaixo, e o infeliz Sísifo, esfalfado, ofegante, recomeça a penosa tarefa de rolá-la montanha acima. E assim,

por toda a eternidade. (SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia Greco-latina. Belo Horizonte: Livraria

Itatiaia Limitada, 1965.)

Page 64: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

64

percorrer, exibindo sentimento de revolta, perplexidade e estranheza bem diferentes da

resignação que marca a conduta de Sísifo por todo o tempo em que desempenha o seu

papel.

Totonhim se sente privado de ilusões e de luzes, “vagando por ruas do passado”,

quando pega um táxi no qual o condutor, parolando durante a viagem, declara que tinha

setenta anos, que havia entrado em depressão ao se aposentar após vinte e cinco anos

de trabalho, que achara que ia morrer após a aposentadoria, que sua mulher o

incentivara a comprar um táxi e que agradecia a ela o fato de estar vivo. O falante

taxista então, ao fim da conversa, vaticina ao desiludido e sorumbático recém-

aposentado: “Aposentadoria mata, meu chefe.” E esta declaração faz Totonhim pensar

consigo mesmo: “Estava falando de corda em casa de enforcado.” 90 O cenário em que

Totonhim desempenha o seu papel social, ao longo das décadas em que transcorre a

narrativa, sofre impactos próprios das demandas da transformação histórica. Totonhim

sente dificuldade em aceitar essa nova dinâmica histórica, talvez pelo fato de ter

estagnado seus valores em outra época histórica em que a tradição histórica conduzia

a ação dos homens. Em sua travessia Totonhim sofre os impactos da aceleração da

história, que é assim definida por Pierre Nora:

Aceleração da história. Para além da metáfora, é preciso ter a noção do que a expressão significa: uma oscilação cada vez mais rápida de um passado definitivamente morto, a percepção global de qualquer coisa como desaparecida – uma ruptura de equilíbrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradição, no mutismo do costume, na repetição do ancestral, sob o impulso de um sentimento histórico profundo. A ascensão à consciência de si mesmo sob o signo do terminado. O fim de alguma coisa desde sempre começada.91

O desenvolvimento econômico do Junco, e as demandas decorrentes deste

fato, alteram de modo irreversível a dinâmica da cidadezinha, seus valores e modo de

vida. Totonhim mostra-se surpreso com a nova realidade encontrada e tem dificuldades

em ajustar sua memória afetiva à nova realidade. Com uma certa revolta e

90 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 62. 91 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. De Yara Alun Khoury. São Paulo: Projeto História-PUC-SP, 1981. p. 7.

Page 65: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

65

perplexidade, nota que aquele cenário, cristalizado em sua memória afetiva, de um

modo bem peculiar e singelo, já não existe, como se nota no trecho:

Eis-me aqui, na mesma praça, revendo as mesmas vendas e as mesmas casas, sem ninguém que olhe para mim, que me dê um sorriso, um abraço e um aperto de mão. Poxa, gente. Como todo mundo pode ter esquecido de que aqui joguei bola, andei de pés descalços, queimei a sola dos meus pés, vivi minhas utopias, sonhei muito e o verde era a cor dos seus sonhos? Sem drama, pessoal. Que é que é isso?92

Totonhim solitariamente “uiva”, convocando sua matilha a compartilhar sua

memória qual um cachorro domesticado e manso, não se dispondo ele mesmo a

transgredir a ordem estabelecida. Reconhece o caráter irrevogável das transformações

históricas e convoca através de um monólogo, uma coletividade de pessoas cuja ação

está circunscrita há um tempo e lugar do passado. Parece recusar-se a compreender

como todo mundo pode ter esquecido aquele Junco que existira e formara a sua

identidade. Percebe-se numa pátria perdida. Perde seu referencial de nação, visto que

não encontra quem compartilhe suas memórias nem se comprometa a preservar as

características que particularizavam e diferenciavam o Junco de qualquer outro lugar do

mundo. Isolado num território que se transmuta de familiar em exótico, o personagem

constata a existência de um processo de desterritorialização próprio do sistema

globalizante, que o destitui desta importante referência territorial.

2.2 O DESENCANTO DO GENERAL: UIVOS DA DITADURA MILITAR

Essa Terra foi lançado durante o período em que uma série de escritores,

cineastas, músicos, artistas plásticos, atores e dançarinos desenvolveram uma ficção

impura, ao transformarem suas narrativas em razão das vicissitudes históricas e,

sobretudo, da perseguição de cunho politico-ideológica a que se viram submetidos.

No desenvolvimento de estudos sobre os mecanismos de exclusão social

presentes no cinema e literatura brasileira, Lícia Souza (2013) comprova a existência de

92TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 79.

Page 66: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

66

transformações das narrativas do período em função das vicissitudes históricas

nacionais, acrescentando que tal modificação também foi fruto de uma agenda

transnacional. Nota que o Brasil nunca abstraiu o problema das lutas pela terra que

chega a se constituir em paradigma identitário na cultura brasileira.

Souza (2013) observa que o Brasil nunca deixou de lado o eixo temático da

violência que emana dos confrontos entre as classes privilegiadas política e

economicamente, e os modos como se articula o poder. Constata que faltam trabalhos

que contemplem as múltiplas faces da violência do Estado de direito em seus elos

diacrônicos e que permitam compreender a história brasileira93. Sobre essa fase, Torres

relembra que Um Cão Uivando para a Lua é desse tempo e lugar. Afirma no prefácio já

citado:

O título me veio numa noite escura, em São Paulo, quando num quartinho de um hotel barato na Alameda Barão de Limeira, eu ouvia o tempo todo Miles Davis tocando sem parar My funny Valentine, uma terna canção americana, do dia dos namorados, que aquele trompetista, um gigante do jazz, transformara num lamento lancinante. Como os uivos vindos lá do fundo dos quartéis e dos manicômios, num dos quais eu havia visitado um amigo, que tinha a cabeça raspada e espumava loucamente. Já não se entupia de LSD, mas com as drogas que os médicos lhe davam, para acalmá-lo - e que o deixavam muito excitado.94

Os uivos decorrentes das práticas de tortura que vinham do fundo dos quartéis e

que afetavam pessoas conhecidas por Torres, instauravam uma preocupante atmosfera

ao seu redor, despertando-lhe como escritor e impactando sua ficção. Jaime Ginzburg

(2007) alerta que a memória da ditadura militar brasileira se impõe como um problema

fundamental para a crítica literária:

Em um país em que as heranças conservadoras são monumentais, e as dificuldades para esclarecer o passado são consolidadas e reforçadas, o papel dos

agentes corresponde a uma necessidade histórica. Enquanto instituições e

arquivos ainda encerram mistérios fundamentais sobre o passado recente, o

93 SOUZA, Lícia Soares de. O realismo pós metafísico. Uma sociedade de exclusão no cinema e na literatura brasileiros. Feira de Santana: UEFS Editora, 2013. 94TORRES, Antônio. Um cão uivando para a lua. In: Prefácio de Antônio Torres para a edição comemorativa dos 30 anos de lançamento de seu primeiro livro, Um cão uivando para a lua. Disponível em: http:<//www.antoniotorres.com.br/resenha_umcao.html> Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 67: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

67

pensamento criativo pode procurar modos de mediar o contato da sociedade

consigo mesma, trazendo consciência responsável a respeito do que ocorreu.95

Os efeitos da ditadura são evocados em Pelo fundo da Agulha, através de uma

discreta caracterização do sogro, general militar reformado, que deixa escapar a

suspeita de participação nas práticas de tortura: “Cada qual que acrescente o seu ponto

ao conto da vida, paixões e morte do militar José Bonifácio Bueno, pai amoroso,

amantíssimo esposo e biriteiro moderado. Não se sabe se torturador”.96 Apesar de não

sabê-lo torturador, Totonhim se recusa a carregar consigo informações

comprometedoras referentes aos procedimentos do militar no exercício de suas

funções. Numa noite insuspeita, o general, que nutria o costume de bebericar com o

genro, chamou-lhe em particular e lhe entregou uma pasta com documentos sigilosos

que só poderiam ser abertos após a sua morte. Ninguém desconfiaria que o militar

reformado, depois de uma vida aparentemente próspera e tranquila, se suicidaria, no

banheiro de casa, após uma agradável noite festiva em companhia da esposa, filha e

genro. Algum tempo depois, ao queimar essa documentação, que sequer teve

coragem de abrir, Totonhim se questiona:

Foi por medo? Temeu estar de posse de documentos secretos, que poderiam incriminá-lo apenas por os haver lido, o que o incluiria na lista dos que sabiam demais, e o tornaria um alvo a ser detonado? Nesta hipótese, o general teria sofrido ameaças dos braços clandestinos das próprias Forças Armadas por discordar de suas práticas, métodos, chantagens, planos sinistros, o que o levou à reserva, quem sabe contra a sua vontade. Em assim tendo sido, a pasta estaria na mira de todos os envolvidos nos fatos anotados pelo seu sogro, com datas, locais, nomes, patentes, cargos. Confesse: só de pensar nisso o senhor tremeu nas bases.97

Totonhim deliberadamente se exime do envolvimento testemunhal com aquelas

informações graves e delicadas que poderiam colocar a sua vida em risco. Lembra-se

do que ocorrera com o casal de amigos que, após um tenso encontro de despedida

numa igreja, no qual relatavam que participariam de um treinamento de guerrilha, em

95 GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo. Revista de Literatura O eixo e a roda, v. 15. Belo Horizonte: 2007, p. 44-5. 96 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 189. 97 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 183-4.

Page 68: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

68

Cuba, encontraram a morte num ponto de ônibus na praça da Sé, quando foram

sumariamente fuzilados tiveram seus cadáveres recolhidos com rapidez, sem direito a

enterro, descartados que foram pelo sistema para que não pudesse haver

reconhecimento dos seus corpos.

Traumatizado pela perda abrupta do casal de amigos, Totonhim sabe do perigo

representado pela posse do material confiado a ele. Reconhece sua impotência e

pequenez diante do inclemente e irredutível sistema militar, recusando-se a abrir a

pasta. Não se mostra interessado no teor daqueles documentos. Seu desencanto com

o sistema é tamanho que Totonhim escolhe manter-se vivo e alheio a determinadas

informações. Essa escolha o faz queimar aquela papelada, numa ação que demonstra

os impactos psicológicos decorrentes da ditadura militar sobre ele.

2.3 UIVOS DO LOBO

A migração, na trilogia de Torres, mostra-se como a via que permite ao indivíduo

suprir suas fontes de narração. Mais que isso: capacita o narrador a confrontar

experiências através de travessias monológicas que lhe suscitam experiências e

(des)conhecimentos. Walter Benjamin em Magia e técnica, arte e política (1994) aponta

a existência de dois tipos de narradores que se interpenetram de múltiplas maneiras, o

narrador que empreende alguma viagem a uma realidade distante e desconhecida,

exemplificado na figura de um “marinheiro comerciante” e o narrador que, apesar de

nunca ter saído de sua terra, conhece suas histórias e tradições, qual um “camponês

sedentário”.

Adverte Benjamin, no entanto, que: “a extensão real do reino narrativo, em todo o

seu alcance histórico, só pode ser compreendida se levarmos em conta a

interpenetração desses dois tipos arcaicos.”98 Essa interpenetração, favorecida pelo

sistema medieval de produção, permitia que o conhecimento do mestre sedentário se

aliasse aos saberes e novas práticas dos aprendizes estrangeiros, o que promovia uma

98 BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre a literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Braziliense, 1994. p. 198.

Page 69: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

69

aproximação dialógica entre esses dois entendimentos. Observa que na

contemporaneidade a morte da narrativa se relaciona ao isolamento do indivíduo, que

já não encontra espaço onde possa falar de si, receber ou dar conselhos. O romance

contemporâneo convida o leitor solitário a refletir sobre o sentido da vida e da história.

Na trilogia percebemos que o saber tradicional, representado pelos moradores do

Junco, tendo seu maior expoente em seu Antão, e caracterizado pela busca harmônica

com o meio, é afetado negativamente pelos novos saberes que atribuem uma valoração

negativa ao modo de vida local, promovendo um apagamento do mesmo, ao tempo em

que valoriza o papel da informação, que expõe e explica os fatos de modo exato.

Benjamim (1994) nota: “Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é

decisivamente responsável por esse declínio,” 99 em vista do processo de massificação

As demandas da modernidade alteraram sobremaneira o estilo como as pessoas

viviam a partir da revolução industrial. A modernidade apresenta uma transformação

paradigmática. Vivemos uma época de crise de valores que antes, tradicionalmente

preservados, estão dando lugar à busca por um novo modelo civilizatório, caracterizado

por novos meios de sobrevivência em habitats que antes eram considerados

inadequados para o povoamento. Até então as pessoas habitavam suas comunidades,

sem a necessidade consumista de adquirirem bens que não fossem para a sua estrita

necessidade. A propósito dessa configuração sócio-econômica Bauman adverte que:

“Enquanto isso, o progresso econômico faz com que modos de existência efetivos se

tornem inviáveis e impraticáveis, aumentando desse modo o tamanho das terras

desertas que jazem ociosas e abandonadas.”100 Atualmente nota-se que o progresso

tecnológico tem corroído a capacidade de muitos locais sustentarem as populações que

antes eram modestamente acomodadas em seus habitats.

A posse de bens de consumo insere o sujeito em instâncias que lhe prometem

satisfação, prazer e até felicidade, transformando de modo irreversível o modo de vida

contemporâneo. A partir deste importante evento que marca a modernidade, as

pessoas deixaram a condição de produtores dos recursos necessários para a

manutenção de sua existência e passaram a vender sua força de trabalho para se

99 BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre a literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Braziliense, 1994. p. 203. 100 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 11 .

Page 70: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

70

tornarem consumidores. Visto que o consumo, na sociedade pós-moderna, é o

indicador de uma vida bem sucedida, romper com esse ciclo representa uma ruptura

com o sistema, uma inadequação social que marginaliza os que assim procedem.

O conceito de vagabundo, em Bauman (1999), contempla criticamente essa

classe de pessoas consideradas perigosas pelo sistema por não se enquadrarem ao

padrão de toda uma coletividade globalizada que tem como principal característica a

necessidade de manutenção do consumo de bens e serviços.101 Trazendo esse

conceito de Bauman para a trilogia de Torres, Seu Antão, também chamado de Seu

Totonho, pelas escolhas transgressoras e livres que empreende ao longo da trama,

assume para si o risco de ser considerado desajustado e selvagem. Considerado louco

pelos filhos e pela comunidade, seu Antão é assim descrito por Totonhim em O

cachorro e o Lobo:

Pronto. Agora temos o prazer de apresentar, orgulhosamente, o primeiro homem alegre. O senhor dos caixões. O que parece já ter enterrado todas as suas tristezas. Com vocês, o meu pai. Papai, o velho. Faz muito tempo que não vejo ninguém assim, rindo de orelha a orelha, sem nenhum sinal exterior de tensão, acabrunhamento, aporrinhação, estresse. Como se me dissesse: não vi o homem ir à Lua, nunca acompanhei um Campeonato Mundial de Futebol pela televisão – e por isso não vi o Brasil ser campeão do mundo nenhuma vez- não leio os jornais, só soube das guerras assim por alto, cada qual acrescentando um ponto ao seu conto, já não tenho mulher pra me aporrinhar o juízo, nem filho para me preocupar, durmo com os galos e acordo com as galinhas e, quando a vontade de uma boa prosa aperta, converso com os mortos. Sou um aposentado como trabalhador rural, recebendo um salário mínimo por mês, a mesma coisa que sua mãe recebe. O que dá para comprar sal, açúcar, cigarro e fósforos. O resto eu tiro da terra. Planto, colho e como. Feijão, aipim, milho, batata doce, banana, mamão, caju. É só cair uma chuvinha que eu planto. E o que eu planto sempre dá. Vivo sozinho e muito bem acompanhado. Se quiser, pode me chamar de louco ou selvagem, que pouco estou ligando. Mas faça o favor de acrescentar: um louco bem-comportado. Um bom selvagem. Quem sabe o último?102

A pressão da comunidade para que ele se enquadre no sistema consumista e

moderno não afeta seu Antão, apesar de ele reconhecer-se isolado, quem sabe o

101 BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos. In:____. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 85-110. 102 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 66.

Page 71: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

71

último de sua linhagem de loucos que não se deixam manipular por determinações

ideológicas, sociais ou qualquer outra que o faça perder a sua liberdade de bom

selvagem. É incompreendido por sua atitude de colocar-se à margem do sistema

consumista e globalizante, e o seu desajuste é sumariamente caracterizado como

loucura por todos que o circundam.

Seu Antão é caracterizado como um lobo. Escolhe viver isolado na zona rural,

numa casa herdada, longe do convívio urbano pela recusa em se enquadrar no modelo

globalizante de vida daquela coletividade a que pertence, ainda que marginalmente.

Mesmo tendo sofrido os impactos da perda de propriedades durante o período militar,

quando o fracasso na produção do sisal o obrigou a liquidar a sua pequena propriedade

rural para pagar as dívidas junto ao banco e aos credores, não se mostra ressentido

com a vida, como observa Totonhim no trecho:

Pelo que entendi até aqui, se é que já pude entender alguma coisa, o fato de haver perdido tudo um dia – pastos, casa, gado, cavalo, cachorro, mulher, filhos- não fez de meu pai um homem amargurado. Essa é a minha impressão. De qu ele foi capaz de digerir e purgar todas as suas tristezas. “O que passou, passou. E o passado não tem futuro’, diz hoje, sorrindo. Está vivo e ainda aqui, e isto é só o que lhe interessa.103

Sua adoção a um estilo de vida que o distingue daquele adotado pela

coletividade, ao tempo que lhe confere uma liberdade que poucos possuem, também o

coloca numa situação modesta, em termos de sobrevivência. Precisa encontrar

condições de harmonizar-se com o meio, para que possa sobreviver. Entendemos que,

além de características típicas de um lobo, Seu Totonho pode ser comparado ao

carcará, ave típica do sertão brasileiro, que vive sozinha ou em pequenos bandos, e

que consegue sobreviver em condições geográficas adversas. Animal onívoro e

bastante oportunista, come de tudo que encontra, adaptando-se bem em regiões de

poucos recursos alimentícios. Essa ave é tema de uma canção de protesto produzida

durante o período de ditadura militar no Brasil, intitulada Carcará, escrita em 1965 por

João do Valle em parceria com José Cândido. Maria Bethânia se tornou conhecida

nacionalmente ao entoá-la com sua dramática voz:

103 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 171.

Page 72: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

72

Carcará! Lá no sertão... É um bicho que avoa que nem avião É um pássaro malvado Tem o bico volteado que nem gavião Carcará.... Quando vê roça queimada Sai voando, cantando Carcará...Vai fazer sua caçada Carcará...Come inté cobra queimada Mas quando chega o tempo da invernada No sertão não tem mais roça queimada Carcará mesmo assim num passa fome Os burrego que nasce na baixada Carcará! Pega, mata e come Carcará! Num vai morrer de fome Carcará! Mais coragem do que homem Carcará! Pega, mata e come Carcará é malvado, é valentão É a águia de lá do meu sertão Os burrego novinho num pode andá Ele puxa no bico inté matá Carcará! Pega, mata e come Carcará! Num vai morrer de fome Carcará! Mais coragem do que homem Carcará! Pega, mata e come Carcará! "Em 1950 mais de dois milhões de nordestinos viviam fora dos seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou. 13% do Piauí! 15% da Bahia!! 17% de Alagoas!!!" Carcará...Pega, mata e come Carcará! Num vai morrer de fome Carcará! Mais coragem do que homem Carcará! Pega, mata e come!!!104

Em seu estudo dissertativo sobre a performance de Maria Bethânia no

espetáculo teatral Opinião, no qual essa canção é interpretada, Sylvia Gouveia (2012),

defende que a interpretação da canção por Bethânia, por ter acontecido em plena

ditadura militar, confere uma nova significação à letra, em virtude de sua dramaticidade

que atribui à música um status de canção de protesto. Considera que: “Tamanho foi o

impacto de sua interpretação que a canção foi ressignificada não apenas no âmbito do

Opinião, mas, de maneira especial, da conjuntura da época em decorrência da maneira

104 Disponível em: https://www.letras.mus.br/maria-bethania/164683/ Acesso: 20 de janeiro de 2016.

Page 73: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

73

como se deu a recepção da performance pela plateia do show”.105 A pesquisadora

explica que o espetáculo conseguia sintetizar expressões de descontentamento

oriundas tanto dos diretamente afetados pelo modelo econômico adotado pelo

militarismo, quanto dos opositores declarados da nova ordem, representados pelos

agentes sociais da esquerda.

Corajosamente Maria Bethânia fez uma grave denúncia relacionada ao êxodo

rural no meio da canção, ao apresentar dados estatísticos relacionados ao significativo

montante de pessoas, que abandonavam a região nordeste, num movimento migratório

de busca por melhores condições no sudeste do país, em virtude da: a) oferta de

trabalho decorrente do processo de expansão industrial; b) falta de política públicas

voltadas para o desenvolvimento agrícola e a fixação do homem à terra em seus

estados de origem.

Bethânia se refere ao carcará como sendo uma ave simbólica da bravura para

enfrentar as terríveis secas, mantendo-se corajosamente em seu habitat, por ser dotada

de mais coragem do que aquela encontrada nos homens, em seu enfrentamento

valente e até malvado aos seus adversários.

Seu Antão é também valente. Esse octogenário senhor, mesmo com as

limitações físicas decorrentes da idade, mesmo sofrendo o preconceito da comunidade,

a chamá-lo de louco, sendo vítima de calúnia por parte daqueles que o consideram um

ébrio- ele, que nem faz uso de bebida alcoólica-, busca manter a sua autonomia com

parcos recursos, recusando-se a se debandar para outra localidade, consciente de que

não é preciso muitos bens para sobreviver dignamente sem dever nada a ninguém.

105 Gouveia. Sylvia Cristina Toledo. Maria Bethânia, corpo e voz em cena: A performance de Carcará. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: UFSC, 2012. p. 12.

Page 74: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

74

3 NUMA NOITE ESCURA DA ALMA

Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã. F. Scott Fitzgerald

Recorrente na literatura brasileira, a temática sertaneja é amplamente explorada

por autores brasileiros. Dentre esses podemos citar a estilística de Morte e Vida

Severina(1955), no qual João Cabral de Melo Neto apresenta maestria poética na

abordagem da problemática da desigualdade, da exclusão e dos efeitos da seca em

versos de grande vigor e sensibilidade, nos quais se sobressai a esperança. A

irretocável prosa de Graciliano Ramos retrata, nos parágrafos iniciais da obra prima

Vidas Secas (1938), o cenário sertanejo com estética irretocável: “Na planície

avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes.’’106 Nestas obras,

questões de ordem social, geográfica e econômica se imbricam com questões de

ordem sociológica ao apresentar os efeitos da seca a repercutirem sobre indivíduos que

não possuem quase nenhuma condição de reverter o panorama em que vivem.

O cenário sertanejo, também presente na trilogia de Antônio Torres, é retomado

de forma inédita na literatura brasileira em um novo viés, o do insílio, como percebe

Ivana Gund em Por essa Terra... destinos itinerantes: os caminhos do sujeito migrante

em Antônio Torres (2006). Definindo insílio como a incapacidade do indivíduo em viver

na própria terra, a pesquisadora defende que esse processo na sociedade moderna

apresenta-se como uma grave cisão, pois revela profundas fissuras culturais,

econômicas e nas relações humanas que, ao estabelecer um cenário de desafeto,

marginalidade, e clandestinidade provoca grandes debandadas rumo a travessias

incertas. Refere-se à situação de “exílio interior” na qual o indivíduo se sente alienado.

Tal alienação lhe causa frustração porque o impede de uma realização plena. Na

trilogia, o insílio apresenta-se inicialmente como deliberação de Nelo.

Ao passar a não se identificar com o Junco e alimentar durante três anos o

desejo de se estabelecer numa longínqua metrópole, esse personagem se exila

106 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 3.

Page 75: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

75

internamente, qual estrangeiro em sua própria terra.107 Sua única saída é a fuga,

representada n’Essa Terra pelo êxodo para São Paulo, na fiel crença de que essa ação

representaria uma melhoria em sua condição de vida e integração social e cultural à

nova terra.

Apropriadamente Gund (2006) ressalta que o insílio é causado pela invisibilidade

social de determinadas populações, sendo visto como única alternativa de fuga para um

irrevogável destino.108

Essa invisibilidade aliena o indivíduo de sua própria terra,

fazendo-se perceber-se como estranho em um cenário outrora familiar. Renega a

própria terra em favor da esperança na possibilidade de uma convivência harmoniosa

com a metrópole, a ser concretizada no futuro. Na trilogia em estudo, além deste exílio

interno, são observadas também situações de desexílio, relacionadas ao processo

migratório, de exílio propriamente dito.

O termo desexílio, criado por Mario Benedetti, aponta para uma experiência de

retorno ao país natal que proporciona a remissão de lembranças que vão configurando

um referencial pessoal e coletivo e restauradores da memória. Em análise da obra de

Antônio Torres, Souza (2015) observa que “o desexílio mostra que todo deslocamento é

conflituoso e que o reencontro com o país natal, não apenas como espaço físico, mas,

sobretudo, como conjunto de valores modificado pelo tempo, mostra a natureza das

formações de personalidades híbridas.”109 Neste artigo, a autora defende que a ficção é

a esteira perfeita que arruma e desarruma as sensações e sentimentos diante de

sociedades modificadas por vicissitudes históricas e políticas. 110 De fato, Torres

instaura a estética do desexílio na trilogia ao delinear suas impressões a respeito da

condição social de uma coletividade marginalizada pela desigualdade social e pela

exploração econômica, que tem repercussões na subjetividade de alguns sujeitos que

vivenciam no exílio e no retorno à sua terra natal a perda de seus valores culturais,

sociais e individuais.

107 GUND. Ivana Teixeira Figueiredo. Por essa Terra... destinos itinerantes: os caminhos do sujeito migrante em Antônio Torres. Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora: UFJF, 2006. p. 18. Disponível em: http://www.antoniotorres.com.br/Por%20Essa%20Terra...%20destinos%20itinerantes.pdf. Acesso: 20 de janeiro de 2016. 108 GUND. Ivana Teixeira Figueiredo. Idem. p. 26. 109 SOUZA, Lícia Soares de. Estética do Desexílio em Torres e Laferriére. Disponível em http://www.antoniotorres.com.br/arquivos/OCachorro_link1_estetica.pdf Acesso em 2 de dezembro de 2015. 110 SOUZA, Lícia Soares de. Idem. S/p

Page 76: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

76

Na trilogia, inicialmente os efeitos do processo de desexílio ecoam de modo

muito particular em Nelo, exibindo um caráter de tragédia logo no início d’Essa Terra

em seu gesto extremo de dar cabo à própria existência a demonstrar indubitável e

fatalmente sua inadaptação e desesperança de reinserção à realidade circundante. Ao

longo desta narrativa, vão sendo apresentados outros sinais deste processo de

desexílio, como é possível notar no fragmento abaixo, na qual o onisciente Totonhim

repercute as reflexões do irmão Nelo:

E este sol ia secando tudo, secando o coração dos homens, secando suas carnes até aos ossos, secando-os até sumirem- e lá se vai o tempo, manso e selvagem, monótono como uma praça velha que faz força para não ir abaixo, como se isso não fosse inevitável, como se depois de um dia não viesse outro com seus dentes afiados para abocanhar um pedaço das nossas vidas, deixando em cada mordida os germes da nossa morte. E esta é a pior das secas. A pior das viagens. [...] É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que agora tanto faz. Porque o tempo que comeu o meu chapéu de palha, agora está comendo o lugar que deixei em São Paulo. Deu pra você entender, Totonhim?111

No trecho supracitado observamos que Nelo demonstra desencanto e

desesperança de reinserção tanto em sua antiga terra quanto na desencantada cidade

de São Paulo. Compreende Souza (2015) que o desexílio na obra de Torres é marcado

pelo trânsito de uma consciência de impotência social ante o espaço geográfico natal e

uma consciência de perda, que irrompe no retorno do protagonista para sua terra natal.

No breve e retorno de Nelo, o processo de desexílio culmina tragicamente com o seu

suicídio, atestando a sua completa desesperança em tentar se ajustar à realidade

espaço-temporal na qual estava inserido.

O desexílio em Totonhim se demonstra em uma consciência ressentida e

perplexa diante do confronto com a realidade atual do Junco, configurada

distintivamente daquela vivida por ele no passado. Nessa caminho, Totonhim é levado

a um processo de desconstrução que rompe os fios tecedores de uma identidade

cristalizada. Trata-se de um processo irreversível de fragmentação e inadequação com

a terra. Em análise sobre a questão do exílio e desexílio, Souza pondera:

111 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.123-4.

Page 77: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

77

A terra se configura como um não-lugar: ela se apresenta como um problema polissensorial entrelaçando variações argumentativas de um espaço de vida de um ex-habitante que vem revê-la expondo, consequentemente, sua própria dinâmica sensível, nos seus deslocamentos de exílio e desexílio.”112

Esse processo de desconexão se faz notar em Totonhim ao longo de toda a

trilogia. Racionalmente Totonhim se reconhece como estrangeiro. Tal situação se

fortalece ao longo da narrativa, delineando-se com toda a sua força emotiva no período

de luto pelo suicídio do sogro. A partir da lembrança silenciosa de uma citação113 de

Camus, Totonhim encontra o mote para entabular uma profícua consideração sobre o

suicídio, enquanto queima os papéis secretos confiados pelo sogro antes da sua morte:

-

Pensava que o estrangeiro aqui era eu, meu comandante- o senhor disse às cinzas da papelada de que era guardião. –E antes de mim, o meu irmão Nelo. Depois dele, meu primo Pedrinho, o que também pôs o pescoço numa corda. Dele guardei não uma pasta explosiva, mas o estilingue que me deu no dia em que vim embora. Um presente para o pior caçador de passarinho que o mundo já havia conhecido, ele disse. Eu, o estrangeiro.114

Numa esforçada tentativa de compreensão das causas que podem fazer

alguém abreviar de modo deliberado a própria vida, Totonhim divaga sobre as razões

que levaram o seu irmão, o seu sogro e seu primo Pedrinho a encurtarem suas próprias

vida. Totonhim não consegue perceber que estes suicidas, ao tomarem consciência da

densidade e da estranheza de um mundo, até então conhecido, desenvolvem em si um

112

SOUZA, Lícia Soares de. Estética do desexílio em Torres e Laferrière. p. 2. Disponível em: http://www.antoniotorres.com.br/Estetica%20do%20desexilio.pdf. Acesso: Acesso: 20 de janeiro de 2016. 113

A íntegra da citação de Camus aludida por Totonhim e transcrita em Pelo fundo da Agulha é essa: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois.... Há muitas causas para um suicídio e, de modo geral, as mais aparentes não tem sido as mais eficazes... Aquilo que provoca a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam muitas vezes de “desgostos íntimos” ou de “doença incurável”. São explicações válidas. Mas era preciso saber se nesse próprio dia um amigo do desesperado não lhe falou num tom diferente. Ele é o culpado. Porque isso pode bastar para precipitar todos os rancores e todos os cansaços ainda em suspenso... Um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões, é um mundo familiar. Mas, pelo contrário, num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, homem sente-se um estrangeiro.” (TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 183.) 114 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 182.

Page 78: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

78

sentimento de absurda perplexidade frente à vida. Seus suicídios representam a

desistência em se manterem vivendo de uma ilusão. Camus (2010) elucida:

O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós. Assim como há dias em que, sob um rosto familiar, de repente vemos como uma estranha aquela mulher que amamos durante meses ou anos, talvez cheguemos mesmo a desejar aquilo que subitamente nos deixa tão sós. Mais ainda não é o momento. Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo.115

Totonhim, movido que é por uma esperança inquebrantável e com uma

identidade liquidamente a se ajustar às demandas históricas até o momento de sua

aposentadoria, tem dificuldade em reconhecer que seu sogro, irmão e primo deixaram

de acreditar nas recompensas de uma vida até então familiar ao perceberem a

fragilidade dos cenários nos quais obedientemente atuaram por toda a vida, são

tomados por uma profunda estranheza àquela realidade que sempre viveram,

rebelando-se fatalmente contra ela.

3.1 NELO, NUMA NOITE ESCURA DA ALMA

Nelo pode ser comparado ao heroi mitológico Sísifo, já citado, imagem do herói

absurdo, castigado pelos deuses a rolar continuamente uma rocha, morro acima e vê-la

descer, refazendo, com passos pesados e regulares, a volta para o tormento cujo fim

não existe. Totonhim, ao longo da narrativa da trilogia, mostra-se otimista, não se

deixando vencer pela adversidade. Revela traços constitutivos do caráter absurdo

delineados em seu cerne, sobretudo pela sua consciência ante os problemas

existenciais seus e dos demais personagens como, por exemplo, na ocasião em que

reflete sobre o seu futuro, nos parágrafos finais do romance Essa Terra, quando se

convence de que sua melhor escolha é seguir o mesmo destino de retirante do irmão

suicida.

Antônio Cândido, em sua obra A personagem de ficção, nota que o mistério dos

115 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. p. 28.

Page 79: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

79

seres, produzindo ações inesperadas, só começa a ser conscientemente desenvolvida

por certos escritores a partir do sec. XIX como tentativa de sugerir e desvendar seja o

mistério psicológico dos seres, seja o mistério metafísico da própria existência.

Personagens de ficção passam a ser representados como seres trágicos, dotados de

uma “incomunicabilidade nas relações”, a saber, nas noções de verdade plural, de

absurdo, de ato gratuito, de sucessão de modos de ser no tempo, de infinitude do

mundo interior, conforme esclarece o trecho:

O romance retoma, no plano da caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Ela é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro. Sua evocação nos mais variados contextos os permite formar uma ideia completa, suficiente e convincente daquela forte criação fictícia.116

No parágrafo inicial de O Mito de Sísifo, Albert Camus declara que o suicídio é o

único problema filosófico realmente sério.117 É essa a trágica alternativa tomada por

Nelo que, ao retornar à terra natal, é recebido com grande contentamento, não apenas

pelos da família, mas por toda a população. Por ocasião do seu retorno, recebe tal

descrição do seu irmão Totonhim:

[...]... ele que, não tendo herdado um único palmo de terra onde cair morto, um dia pegou um caminhão e sumiu no mundo para se transformar, como que por encantamento, num homem belo e rico [...] Um monumento em carne e osso. O exemplo vivo de que a nossa terra

também podia gerar grandes homens.118

Essa descrição, entretanto, não encerra a caracterização do personagem feita

pelo autor. Notamos como característica do romance uma complicação crescente da

psicologia das personagens. Neste caso, de acordo com Antônio Cândido, a

personagem passa a ser tratada como “ser complicado, que não se esgota nos traços

116 CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. IN: CÂNDIDO, Antônio et. all. A personagem de ficção. 9ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992. p. 58. 117 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.p. 19. 118TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.p.10-1.

Page 80: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

80

característicos, mas tem certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o

desconhecido e o mistério”.119 Em Essa Terra, Antônio Torres teceu uma narrativa que

liga a simplificação dos incidentes do lugar e a unidade relativa de ação dos demais

personagens com os conflitos existencialistas proporcionados pelos protagonistas Nelo

e Totonhim.

A presença de personagens complexos num ambiente que se apresenta como

hostil cria uma situação de tensão ou crise. Tal situação de estranhamento do homem

em relação à terra, ou do personagem em relação ao seu espaço cênico, é o mote que

servirá de base ao absurdo: situação em que o homem se sente como um estrangeiro

ou exilado privado de uma identificação com o espaço físico/geográfico. Em Pelo fundo

da Agulha, Totonhim faz remissão a O Mito de Sísifo, citando-o longamente para buscar

compreender o seu lugar de estrangeiro. Diante dos documentos que o sogro pedira

que fossem cuidadosa e secretamente guardados para a posteridade. O narrador

onisciente apresenta o fluxo de consciência de Totonhim:

Pensava que o estrangeiro aqui era eu, meu comandante. O senhor disse às cinzas da papelada de que era guardião. E, antes de mim, o meu irmão Nelo. Depois dele, meu primo Pedrinho, o que também pôs o pescoço numa corda. [...] A contabilidade dos estrangeiros de sua vida ia longe.120 (TORRES, 2006, p. 182-3)

Torres estabelece uma tensão entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário,

simbólicos do divórcio entre o sujeito e sua terra, característica do absurdo. Camus

afirma: “O sentimento do absurdo nasce da comparação entre o estado de fato e certa

realidade, uma ação e o mundo que a supera. O absurdo é essencialmente um

divórcio.”121 Em Nelo, a consciência da absurdidade é dada pela descrença numa

transformação da sua identidade de baiano, interiorano, desempregado, alcoólatra,

traído e não integrado ao modo de vida que julgava melhor do que aquele que possuía

antes da infeliz tentativa de inserir-se no padrão sócio-econômico representativo de

119 CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. IN: CÂNDIDO, Antônio et. all. A personagem de ficção. 9ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992. p. 60-1. 120 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 18. 121 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. p.41.

Page 81: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

81

sucesso na metrópole paulistana. Essa constatação apareceu inicialmente na ocasião

em que prepostos de um banco se apresentaram no Junco como exemplo de pessoas

bem sucedidas e integradas ao mundo moderno de consumo e sucesso, fazendo iniciar

o processo de des-identificação do personagem.

Essa atitude de distanciamento da realidade local, que culminará no divórcio com

sua terra, se apresenta inicialmente na relação de rejeição com a terra, considerada

inviável para o progresso/satisfação de seus moradores que se sentem tangidos para a

cidade grande em busca não apenas de melhores condições financeiras, como também

de uma interação cultural representativa de valores urbanizados, distintos de uma

categorização pejorativamente relacionada à zona rural com o nome de tabaréu,

palavra que ridiculariza a todos os que não se adequam ao padrão de conduta

considerada moderna, civilizada, evoluída. Dentre os que ficam, nota-se uma atitude

que parece corroborar com o desejo de fuga do lugar, como se vê no fragmento:

Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar; isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade.122

Desse modo, a situação de insatisfação com a terra reflete-se tanto nos

personagens que saem do Junco em busca dos sonhos na cidade grande, quanto nos

que permanecem, numa atitude de espera, na terra natal. O anseio em afastar-se da

alcunha de tabaréu, considerado atrasado, involuído, faz as moças casadoiras do

Junco deliberarem pela solteirice na esperança de serem resgatadas pelos que se

aventuraram corajosamente a fazer riqueza na cidade grande. Enquanto isso,

praguejam contra a própria terra, considerada o fim do mundo, numa relação de

insatisfação que transfere a possibilidade de felicidade para um local que não

conhecem, num tempo que ainda virá e em um projeto que poderá ou não vingar.

Antônio Torres sugere, com a ampliação dessa insatisfação, a problematização

subjetiva e ontológica existente no cerne desses personagens. Desenvolve-se como um

122 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 14.

Page 82: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

82

mistério psicológico que pode ou não desencadear uma crise que culminará numa

tragédia, dependendo exclusivamente da consciência de inadequação do personagem

frente a essa situação. Camus aponta:

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono, e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o “por quê” e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento de consciência.123

É a partir dessa tomada de consciência que nasce o absurdo. São marcas do

absurdo o conflito, a crise, a angústia, a inadaptação e a dissociação entre o

personagem da ação/ator e o espaço da ação/cenário. Nesta situação o personagem se

sente como um estrangeiro diante do mundo que o cerca e crê em sua inexorabilidade.

“É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida

ou da esperança de uma terra prometida.”124 Esse sentimento pode ser observado a

seguir quando, Nelo, sob efeito da ingestão excessiva de álcool, se justifica para o

irmão narrador/protagonista:

Nascemos numa terra selvagem, onde tudo já estava condenado desde o princípio. Sol selvagem. Chuva selvagem. O sol queima o nosso juízo e a chuva arranca as cercas, deixando apenas o arame farpado, para que os homens tenham de novo todo o trabalho de fazer outra cerca, no mesmo arame farpado. E mal acabam de fazer a cerca têm de arrancar o mata pasto, desde a raiz. A erva daninha que nasceu com a chuva, que eles tanto pediram a Deus. Ele repetiu tudo isso para mim, pela manhã. 125

O personagem já não se identifica com a terra natal, nem com a terra do exílio,

qual um estrangeiro expatriado entre os seus dois mundos/terras: ser tragicamente

deslocado no tempo e no espaço, desterritorializado e sem esperança de continuidade

123 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. p. 27. 124 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. p. 21. 125 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 124.

Page 83: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

83

em lugar algum.

Aproximando o pensamento sartreano do drama existencialista vivido por Nelo,

verifica-se que este experimenta a angústia especialmente no momento em que aspira

a um estilo de vida distinto do seu, o que na maioria das vezes sinaliza um modo de ser

que padroniza as ações e unifica os homens, desconsiderando as particularidades e

individualidades que justamente fazem as diferenças entre estes.

Para Sartre, o homem não é responsável apenas pela sua individualidade em

seu projeto existencial, pois, ao escolher, escolhe a todos os homens, sendo

responsável perante a humanidade toda. De acordo com Sartre, sendo responsável,

não pode esquivar-se da angústia que o motiva a escolher. Ciente disso, ainda que

diante dos parentes e conhecidos, Nelo buscasse manter irretocável sua imagem de

pessoa bem sucedida financeiramente, demonstrava conscientemente não ter

condições de carregar essa responsabilidade coletiva, “esbagaçando-se” no álcool,

para tentar esquecê-la.

Nelo é dotado da consciência do absurdo em que vivia. O personagem ajuíza

(juízo lógico) e se incomoda com os rumos que deu à própria vida, mostrando-se não

conformado. Essa constatação leva o personagem a perceber a sua má-fé em busca de

outra identidade, como observamos no trecho abaixo, que representa um fluxo de

consciência de Nelo que, solitário e insone, se sente obrigado a analisar as escolhas

que fez ao longo de sua vida:

[...] Voltou à cama, pedindo a Deus que fizesse o dia amanhecer logo, depressa com esse relógio, tenha dó. Foi sua vez de descobrir que aqui as noites são mais lentas do que os dias. Tudo agora era uma imensa e exasperada saudade. Digam o que quiserem, mas uma cidade é outra coisa. – Volta, volta, vestida de branco e com um laço de fita nos cabelos. Volta, com duas estrelas dentro dos olhos. Volta para os meus braços, com um menino em cada braço. Uma confusão de desejos, arrependimento e dúvidas. Estragado pelos anos, esbagaçado pelo álcool, já não via onde pudesse recomeçar. Tivera uma mulher e filhos, como antes tivera empregos e latrinas asseadas. E um gênio ruim. 126

126 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 120-1.

Page 84: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

84

Nelo evidencia consciência da sua situação, alimentado pela crença de estar

diante de obstáculos ainda maiores que aqueles enfrentados no Junco, como o

preconceito por ser baiano, a traição pela esposa e pelo primo, a surra humilhante pela

polícia, esfacelamento de sua família paulista e a incerteza econômica em relação ao

seu futuro. Reflete longamente para atribuir a fatores externos a si uma força capaz de

impedi-lo de continuar lutando. Por fim, constata: “Não via onde pudesse recomeçar.”

O exílio interno de Nelo expresso na confusão de desejos, arrependimentos e

dúvidas proporciona a sua verdadeira travessia: deixar de “ser em si” para constatar,

segundo lhe parece, que não há como tornar-se “ser para si”. Nelo não exerce seu

poder de escolha, pois “estragado pelos anos, esbagaçado pelo álcool”, ele continua,

qual autômato, sendo determinado por fatores exteriores à sua subjetividade.

Constatando o absurdo de sua existência, esse personagem toma a atitude extrema,

descrita desse modo pelo irmão narrador:

Na roça me falavam de um pássaro mal-assombrado, que vinha perturbar uma moça toda vez que ela saía ao terreiro, a qualquer hora da noite. Podia ser o meu irmão quem acabava de piar no meu ouvido, pelo bico daquele pássaro noturno e invisível, que eu nunca acredite. Atordoado, me apressei e bati na porta e bastou uma única batida para que ela se abrisse – e para que eu fosse o primeiro a ver o pescoço do meu irmão pendurado na corda, no armador da rede. - Deixa disso, Nelo - bati com a mão aberta no lado esquerdo do seu rosto e devo ter batido com alguma força, porque sua cabeça virou e caiu para a direita. – Deixa disso pelo amor de Deus - tornei a dizer, batendo na outra face, e ele se virou de novo e caiu para o outro lado.127

O narrador se mostra perplexo e até descrente com a morte surpreendente

daquele que chegara há poucos dias como referencial de sucesso para todos, mas que,

com tal atitude, contradiz todos os prognósticos a seu respeito.

A instabilidade social e psíquica de Nelo, entretanto, contrasta com a opinião do

povo em geral e com as expectativas em torno da imagem de homem bem sucedido

que foi construída pela comunidade ao longo de sua ausência. Em seu infeliz retorno,

ele mantém essa representação de sucesso e prosperidade, sendo efusivamente

saudado por conterrâneos, parentes, vizinhos e toda a comunidade de sua terra natal.

127 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 12-3.

Page 85: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

85

No trecho seguinte, por exemplo, recebe elogios do tio, por ocasião de seu retorno

triunfal.

[...] Caboco setenta. Tu vale por setenta deste lugar. - Por que padrinho? - Porque tu já conhece quatro estados do mundo, não é, meu fio?128

O fato de Nelo conhecer outras terras, outras realidades e está inserido em outra

cultura, valorizada e considerada como exemplo a ser seguida por todos aqueles

dotados de coragem, esperteza e destemor, faz com que o tio defenda a ideia de que

seu afilhado vale por muitas dezenas de pessoas daquele povoado, pessoas simples

que não têm nenhum feito heroico para ser contado. Há, ainda, este outro trecho mais

representativo dessa construção imaginária que permanece inatingível até a sua morte

trágica, demonstrando o contraste entre a realidade psíquica do personagem e a

imagem projetada no imaginário da comunidade do Junco, que o tem como bem

sucedido, moderno, rico:

-Ah, Nelo. Tu tá rico como o cão, não é? -Dá pra ir vivendo – ele disse-, mas suas palavras não destruíam toda a nossa ilusão. -Rapaz de sorte. Sempre teve sorte, desde menino. 129

A ilusão de riqueza e sucesso, criada na comunidade, é corroborada por Nelo,

que em momento algum buscará refutar tal representação. Contudo, ainda que não o

faça publicamente, intimamente a crise em relação à representação desse fantasioso

modelo se revelará, especificamente para Totonhim, na ocasião em que Nelo,

embriagado e desiludido, sente-se perdido, desamparado e confuso com os rumos

lastimáveis em sua infeliz travessia na cidade grande. A consciência de Totonhim sobre

essa situação e uma busca pela onisciência fazem com que o narrador se esforce em

compreender suas referências familiares mais essenciais, mergulhando numa

“cosmogonia do lugar”130 como se houvesse uma relação causa/efeito entre o indivíduo

e seu espaço nativo.

128 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.11. 129 TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.25. 130 ARAUJO, Jorge de Souza. Floração de Imaginários: o romance baiano no século 20. Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum, 2008. p.290.

Page 86: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

86

3.2 TOTONHIM, NUMA NOITE ESCURA DA ALMA

Na trilogia, a dificuldade em descobrir a coerência e a unidade dos sujeitos

reflete-se em características típicas de personagens contemporâneos: fragmentários,

descentrados, complexos e sós. Esse deslocamento do ser de si para si promove ações

que permitirão aos personagens da trilogia transformarem sua realidade, ou não, num

confronto com a realidade inóspita que requer motivação e esperança - uma atitude

otimista, que requer mobilização e ação, diferente do quietismo, como explica Sartre:

Creio que respondemos, assim, a algumas das críticas feitas ao existencialismo. Vimos, portanto, que ele não pode ser considerado como uma filosofia do quietismo, já que define o homem pela ação; nem como uma descrição pessimista do homem: não existe doutrina mais otimista, visto que o destino do homem está em suas próprias mãos; nem como uma tentativa para desencorajar o homem de agir: o existencialismo diz-lhe que a única esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver. Nesse plano, estamos, por conseguinte, perante uma moral da ação e do engajamento.131

Alguns dos personagens de Torres desistem dessa luta, através do suicídio. Sua

atitude quietista132 atesta uma recusa em desempenhar o papel social que lhe cabe

neste grande teatro que é a vida. Reconhecem, no seu ato extremo, a ausência de

qualquer motivo profundo para viver. Recusam-se a sofrer. O suicídio destes

personagens denota a total falta de esperança que os nutria.

Em Pelo fundo da Agulha, Totonhim vivencia o auge de seu processo de

fragmentação identitária e isolamento social. Além da perda de uma de suas mais

importantes referências, a familiar, por ocasião da separação da mulher e dos filhos,

perde sua posição econômica e função social por conta da aposentadoria. A esse

respeito, é melancólica a recordação que Totonhim desenvolve, na manhã seguinte ao

131 SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 15. 132

O conceito de quietismo, utilizado aqui foi retirado de O existencialismo é um humanismo, no qual Sartre categoriza: ”O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros podem fazer o que eu não posso. A doutrina que estou lhes apresentando é justamente o contrário do quietismo. Visto que ela afirma: a realidade não existe, a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o homem nada mais é do que seu próprio projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto dos seus atos, nada mais que sua vida. (SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.p. 13.)

Page 87: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

87

dia em que assinou sua aposentadoria, em Pelo fundo da agulha:

O homem na cama riu. Estava a recordar-se de uma música dos bons tempos que tocava nos serviços de alto-falantes e nas rádios do interior. Teriam sido tão bons assim, aqueles tempos? Pelo menos eram mais simples, quando ainda se sonhava com um mundo a ser inventado, não exatamente este que está aí, do qual fugiria, se pudesse, para a Lua, onde, quem sabe, devia haver um porto seguro e gente feliz por não ter espelhos. Lua, oh, Lua! Oh, memoráveis serenatas em noites enluaradas para moças sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias engomadas, e com suas vozes cheias de esperança num radiante futuro, quando príncipes encantados viriam de longe nas asas de um pavão misterioso, para buscá-las. Era um povoado sem nome no mapa-múndi nas noites daquele tempo. E que assim se divulgava: sertão. Um lugar muito longe do futuro. E agora bem perto do seu coração.133

Deitado na cama, com todo um tempo livre para refletir, Totonhim, imbuído de

um sentimento de nostalgia e alguma dose de ressentimento pela perda dos seus mais

importantes referenciais identitários, se questiona se aqueles tempos realmente foram

bons, relembrando seus mais remotos sonhos de um mundo a ser inventado, mais

simples e diferente deste dinamizado pela aceleração da história e dinâmica das

cidades inseridas num modelo globalizado.

Totonhim empreende aqui uma viagem de si para si, exílio interno, no qual se

desloca do presente para um passado, tendo forçosamente que admitir que a ideia de

Junco preservada em sua memória se refere há um tempo em que o povoado ainda

nem era reconhecido como comunidade geograficamente representativa, visto não

possuir identificação no mapa-múndi. Admite que hoje seja apenas uma lembrança do

passado, sendo muito longe do futuro. Reconhece o caráter subjetivo de sua memória

ao afirmar que sua terra agora é bem perto do seu coração. Aceita por fim que o seu

Junco, construído pela sua memória, é fruto de um sentimento individual, não partilhado

coletivamente.

Mergulhado na noite escura da sua memória, ele se reconhece como sujeito de

um processo de exílio interno, por reconhecer que os novos arranjos da

contemporaneidade tragaram definitivamente a sua identidade coletiva, configurada

133 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 45-6.

Page 88: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

88

através de uma memória partilhada por seus membros. Reflete consigo mesmo: “O

recanto da memória. Da sua memória. Se Deus ainda existe, que evitasse a perda do

único patrimônio que verdadeiramente lhe importava. Pois agora sua vida seria só isso:

memória. E exílio. Num apartamento. Num quarto. Na cama.”134 Na situação em que

Totonhim se encontra, aposentado, descartado como “excedente humano”135 pela

empresa e pelos ex-colegas de trabalho, ele se percebe exilado, pedindo a Deus que

mantenha viva nele a memória do vivido, ainda que esta não seja partilhada por mais

ninguém.

Diante da ociosidade de não mais está vinculado à antiga comunidade da qual

fazia parte, Totonhim vê-se obrigado a apurar a sua reflexão a respeito da travessia que

trilhou ao vender-se compulsoriamente como produtiva força de trabalho, “produtor

potencial”. A aposentadoria e a consequente reação dos colegas de Totonhim a esse

fato lhe retiram a condição de pertencimento àquela coletividade no exato momento em

que assina seu termo de aposentadoria e torna-se dispensável como excedente ou

refugo. Ao perceber-se livre do papel de trabalhador com uma rotina rigidamente

estabelecida, sente estranhamento e choque frente a essa situação, assim relatado

pelo narrador:

O amigo aí está saindo de cena sem aplausos, é verdade. Isso lhe dói. “É na hora que te mandam para casa, para trocares de vez o terno e a gravata por um pijama, que tu descobres que não tiveste a menor importância.” – foi o que o senhor pensou, ao deixar a sua sala e andar, sozinho, a passos de aposentado, por um corredor ermo, vazio, inóspito, passando por portas e mais portas sem avistar vivalma. Todos os que antes lhe faziam festinhas, agora se aboletavam no auditório onde estava sendo realizada a cerimônia de posse do...outro! 136

Totonhim sente agora o caráter perverso do mundo globalizado no qual está

inserido. “No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças

frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não

funcionam.” 137 O corredor que durante décadas fora percorrido por Totonhim é agora

percebido como inóspito e vazio. Colegas que antes eram frequentemente encontrados

134 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p. 47. 135 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 136 TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006. p.39. 137 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005Identidade. p. 33.

Page 89: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

89

nesta travessia, agora o fazem perceber que as relações que haviam sido

estabelecidas ao longo do tempo em que conviveram possuíram um caráter provisório,

líquido, numa situação cotidiana própria da globalização.

Fora do mercado de trabalho que aquilata o poder de consumo como medida de

valor das pessoas, Totonhim é considerado agora redundante, descartável e facilmente

substituído, ocupando a posição de apenas mais um desempregado, um número a mais

a se enquadrar no grande índice de marginalizados pela sociedade de consumo.

As escolhas e renúncias que Totonhim empreende ao longo dos trinta anos da

narrativa, soam-lhe naturais e o fazem incorporar a identidade de um trabalhador

comum. Agora, decorridas três décadas desde sua saída do Junco, com tempo ocioso

a fazer-lhe aflorar a reflexão, motivado pela solidão e pela ausência de falas externas, é

levado a aprofundar a sua travessia identitária. Totonhim sente o choque entre a

imagem do Junco que se mantinha na sua memória cristalizada em vinte anos de

distância, no embate entre a realidade projetada pela sua memória e a que se mostra à

sua frente, própria de um processo de globalização que atinge de modo desigual

localidades diferentes.

Em O cachorro e o Lobo, através de um fluxo de consciência em que se

demonstram sua perplexidade e esforço em compreender a nova realidade de sua terra

natal, imagens bucólicas de um estilo de vida simples e agrário brotam da mente de

Totonhim, fazendo-o refletir sobre como as transformações provenientes do processo

de modernização alcançaram o Junco de modo deficiente:

Última esperança: a de que os que se foram, ao retornarem, ainda queiram pegar num eito, como antigamente. E se ninguém quiser mais saber de roça? De que servirão estas terras? Adiantará trocar o arado pelo trator? Sem um só pé de feijão, de que vive esse lugar? Do funcionalismo público? Um emprego na Prefeitura, na Câmara de Vereadores, nos dois hospitais, escolas e ginásios, na agência do Banco do Brasil, Correios e Companhia Telefônica. Mais uns caraminguás nas casas comerciais, e assim vai-se levando a vida. Eu quero mesmo é ver as ruas e ruas de feijão e milho, muito capim-sempre-viva, capim gordurinha, capim-de-angola, boi pastando e vaca leiteira sendo levada para o curral. 138

138 TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.p. 134-5.

Page 90: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

90

O processo de modernização brasileiro, mesmo alcançando os grotões mais

inóspitos do Brasil, não contemplou uma política eficiente de fixação do homem à terra,

fazendo com que a economia destas cidades fosse aquecida, quase que

exclusivamente, pelos salários provenientes do funcionalismo público destas

localidades. Totonhim reconhece esse problema estrutural em relação à economia do

Junco, tendo que admitir a limitação de recursos de sobrevivência em sua própria terra.

Ainda assim utopicamente nutre em seu íntimo sonhos de fartura rural com riqueza de

detalhes.

Page 91: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

91

CONSIDERAÇÕES FINAIS- UMA PAUSA QUE NÃO REFRESCA

Em consonância com a análise de Bauman, como parte do processo próprio da

era líquida em que vivemos a ressaltar o caráter excludente da globalização, Milton

Santos (2001) observa que, para a maior parte da humanidade, a globalização se

impõe como uma “fábrica de perversidades”, chegando a essa conclusão ao ser levado

pelos índices de desemprego crescente, pobreza e perdas salariais a atingirem a classe

média além de outros problemas que atingem a humanidade em escala mundial. Alerta

que:

A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente ligadas ao nosso processo de globalização.139

A supressão da função social sofrida por Totonhim é parte da ação de

renovação própria desta era líquida. As relações trabalhistas tornam-se superficiais,

com frágeis laços a serem desfeitos caso não representem lucro ao sistema. Totonhim

sente perplexidade de perceber-se sem cenário social, vivencia com toda lucidez o

caráter absurdo de sua vida.

Percebe que sua realização como ser é condicionada ao outro, exterior a ele. No

embate entre o para-si, que tenta afirmar sua individualidade, ele lutara pelo

reconhecimento do outro. A célebre afirmação sartreana “o inferno são os outros”

repercute na velhice do personagem, mas, tal qual uma chamada perdida, tardiamente

reconhecida, Totonhim sente-se inelutavelmente excluído pelo sistema, descartado

friamente como excedente pela empresa na qual esteve ligado durante vinte e cinco

anos, vinculado de forma reificada, através de uma exterioridade que o tornara

acessório, redundante.

Levado pela crença na superioridade de um modelo de cultura hegemônica,

reconhece que não há muito a ser feito, visto que o status financeiro, norteador das 139 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: São Pauto: Record, 2001. p. 20.

Page 92: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

92

relações de consumo num mundo globalizado, esfria as relações interpessoais, fazendo

com que seus ex-colegas do banco, mesmo após uma convivência de anos e anos, não

tenham feito nenhuma questão de demonstrar afeto ou consideração em sua

despedida.

Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre esclarece que o Humanismo

exige que o homem seja fundamento sem fundamento de todos os valores, que se

invente a partir do nada que ele é, ao invés de se autodeterminar por algo que lhe é

exterior – seja a família, Estado, partido, religião ou determinismo social, biológico ou

psicológico.140 Os personagens Nelo, Totonhim, a mãe e as irmãs têm as suas ações

de partida da terra natal motivadas pelo desejo de progresso econômico na metrópole.

Desejam usufruir das benesses da urbanidade e da civilização, abrindo mão de sua

identidade até então. Agem como se o determinismo social fosse o fator mais

preponderante para as suas existências.

Para os existencialistas primeiramente existe o homem, que só se define em sua

essência depois. Define-se com base em sua consciência, como define Sartre em O ser

e o nada:

A consciência é revelação-revelada dos existentes, e estes comparecem a ela fundamentados pelo ser que lhes é próprio. Mas a característica do ser de um existente é não se revelar a si, em pessoa, à consciência: não se pode despojar um existente de seu ser: o ser é o fundamento sempre presente do existente, está nele em toda parte e em parte alguma; não existe ser que não seja ser de alguma maneira ou captado através dessa maneira de ser que o manifesta e encobre ao mesmo tempo. Contudo, a consciência sempre pode ultrapassar o existente, não em direção ao seu ser, mas ao sentido desse ser.141

Inicialmente o homem não é definível, porque inicialmente ele nada é. Para

Sartre, o indivíduo só será algo depois, e ele será tal como ele se constituir, não

existindo, portanto, natureza humana pré-determinada. Sartre defende que o homem é

apenas aquilo que ele faz de si mesmo.

Contudo, ao avançarmos nesta questão, observamos a necessidade de

relativizar os conceitos da filosofia do pensador francês Jean Paul Sartre no que se

140 BORNHEIM, Gerd. O existencialismo de Sartre. In: In: REZENDE, Antonio (Org) Curso de Filosofia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar/SEAF, 1992 141SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica.23ª ed. Petrópolis, RJ:2010. p. 35.

Page 93: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

93

refere ao personagem Totonhim. Faz-se necessário ressalvar a importância que as

particularidades históricas e as próprias demandas sociais e econômicas assumem,

tanto para a sociedade humana como, em particular, para a sociedade brasileira

representada na ficção de Antônio Torres.

Os efeitos de uma globalização à brasileira, em seu caráter perverso,

excludente, na “adesão desenfreada aos comportamentos competitivos”142 repercutem

na subjetividade e nas escolhas que Totonhim é levado a tomar ao longo de trinta anos.

O avanço da sociedade globalizada demonstra que a liberdade de escolha se

reduziu drasticamente em função do caráter efêmero, fluido, líquido das relações e das

culturas, impulsionando as pessoas a uma ação de busca constante de poder e

permanência diante das exigências mercadológicas por novidade e adequações a

novas demandas. A velocidade com que ocorrem as transformações identitárias,

culturais, sociais tem sofrido uma aceleração que chega a ser considerada perversa,

descartando, excluindo e refugando pessoas, ao tempo em que dialeticamente instigam

as pessoas a buscarem sempre mais, a estabelecerem novos valores e padrões e a se

adequarem a uma identidade líquida, dinâmica e fluida.

142 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: São Pauto: Record, 2001. p. 21.

Page 94: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

94

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Imaginar é difícil, porém necessário. In: ANDERSON, Benedict.

Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ARAUJO, Jorge de Souza. Floração de Imaginários: o romance baiano no século 20.

Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum, 2008. p.284-301.

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de

Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BARBERO, Jesús Martin. Uma agenda pra a mudança de século. In:_____. Ofício de

cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Edições

Loyola, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2007. p. 7.

BAUMAN, Zygmunt. Turistas e vagabundos. In:____. Globalização: as consequências

humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.1999. p. 85-110.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,

2005.

BENJAMIN, Walter. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______.

Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre a literatura e história da cultura. 7ª ed. São

Paulo: Braziliense, 1994.

BORNHEIM, Gerd. O existencialismo de Sartre. In: In: REZENDE, Antônio (Org) Curso de

Filosofia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Zahar/SEAF, 1992.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: CÂNDIDO, Antônio et. all. A personagem

de ficção. 9ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992. p. 53-80

CHAVES, Vânia Pinheiro. Um novo sertão na Literatura Brasileira: Essa Terra, de Antonio

Torres. IN: TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Page 95: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

95

DIAS, Gonçalves. Canção do Exílio. Disponível em:

http:<//www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=211

2> Acesso: 20 de janeiro de 2016.

EAGLETON, Terry. Cultura em crise. In: ____. A ideia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Ed.

Unesp. 2011.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora

Boitempo, 1997. Introdução p. 11-4, cap. 1 p 15-40.

FONSECA, Aleilton. Essa terra, ficção e realidade dos excluídos. In: NOVAES e SEIDEL.

Cláudio Cledson e Roberto Henrique. (Orgs.) Espaço nacional, fronteiras e deslocamentos

na obra de Antônio Torres. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010. p. 59-64.

GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo.

Revista de Literatura O eixo e a roda, v. 15. Belo Horizonte: 2007, p. 43-54.

GONÇALVES, Rogério Gustavo. O percurso da memória nos romances de Antônio Torres: a

constituição do eu na fronteira entre o sertão e a cidade. Tese de doutorado. São José do Rio

Preto: UNESP, 2014. Disponível em:

http:<//repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/122249/000812894.pdf?sequence=1>

acesso: 20 de janeiro de 2016.

GUND. Ivana Teixeira Figueiredo. Por essa Terra... destinos itinerantes: os caminhos do sujeito

migrante em Antônio Torres. Dissertação de Mestrado. Juiz de Fora: UFJF, 2006. Disponível

em: http:<//www.antoniotorres.com.br/Por%20Essa%20Terra...%20destinos%20itinerantes.pdf>

Acesso: 20 de janeiro de 2016.

HERMANO; OLIVEIRA; MACHADO. Cibele, Cristiane e Isabel. Nas lembranças do Homem, a

releitura do passado: memórias em O cachorro e o Lobo, de Antônio Torres. Teixeira de Freitas:

Uneb, 2009.

HOISEL, Evelina. Literatura e biografia: a trama das relações. In: Grande sertão: veredas;

uma escritura biográfica. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de

Letras da Bahia, 2006. p. 20-42.

ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: COSTA LIMA, Luiz.

(Org.). Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. p. 384-416.

JAPIASSÚ & MARCONDES. Hilton e Danilo. Existencialismo.IN: _____. Dicionário Básico de

Filosofia. 4ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.99.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria

Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

Page 96: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

96

LUIZ GONZAGA. Pau de arara. io de Janeiro: RCA. 1952.

MAIAKOVSKI, Vladimir. A Flauta vértebra. IN____. Vida e Poesia. São Paulo: Martin Claret,

2006.

MARIA BETHÂNIA. Carcará. Rio de Janeiro: RCA Vitor. 1965.

MORAES, José Geraldo Vinci de. Mudanças no Final do séc. XX. In:____.História: Geral e do

Brasil: ensino médio. Volume 3. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 155-190.

MORICONI, Ítalo. Prefácio à Edição de bolso. In: TORRES, Antônio. Essa Terra. Prefácio da

23ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. Disponível em:

http:<//antoniotorres.com.br/essaterrabolso/prefacio_torres.htmL> Acesso: 20 de janeiro de

2016.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Trad. De Yara Alun

Khoury. São Paulo: Projeto História-PUC-SP, 1981.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2003.

REIS & LOPES, Carlos e Ana Cristina. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática,1988.

SILVA, Odilon Reny Ribeiro Ferreira da. (Et all) Cultivo do sisal no nordeste brasileiro. Circular

Técnica. Campina Grande, EMBRAPA, 20008. Disponível em:

http:<//ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CNPA-2009-09/22318/1/CIRTEC123.pdf >

Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

SANCHES NETO, Miguel. Prólogo. Torres, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de

Janeiro; São Paulo: Record, 2006.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal.

Rio de Janeiro: São Pauto: Record, 2001.

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural,

1987.

SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica.23ª ed. Petrópolis,

RJ: 2010.

SILVA, Uvanerson Vitor da. Migrações internas, migrantes nordestinos e formação de um mercado de trabalho nacional. IN:____.Velhos caminhos, novos destinos: migrante nordestino na região metropolitana de São Paulo. São Paulo: USP, 2008. p. 12-40.

SOUZA, Lícia Soares de. Estética do desexílio em Torres e Laferrière. Disponível em:

http:<//www.antoniotorres.com.br/Estetica%20do%20desexilio.pdf.> Acesso: Acesso: 20 de

Page 97: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

97

janeiro de 2016.

SOUZA, Lícia Soares de. O realismo pós metafísico. Uma sociedade de exclusão no cinema e

na literatura brasileiros. Feira de Santana: UEFS Editora, 2013.

SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia Greco-latina. Belo Horizonte: Livraria

Itatiaia Limitada, 1965.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 2008.

ROCHA, Iraci. Sujeito e identidade: estudo sobre modos de representações. Salvador: PPGEL.

2013 Disponível em:

http:<//www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/view/594/465>

Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

TAYLOR, Charles. As fontes do self: construção da identidade moderna. Tradução de Adail

Ubirajara e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997.

TORRES, Antônio. Entrevista ao Diário do Nordeste: 1/10/1998. Disponível em:

http:<//www.antoniotorres.com.br/Nas%20lembr...pdf > Acesso: 20 de janeiro de 2016.

TORRES, Antônio. Essa Terra. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

TORRES, Antônio. O cachorro e o lobo. 5ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.

TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha. 2ª Ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2006.

TORRES, Antônio. Vida e obra. Disponível no Site oficial do autor:

http:<//www.antoniotorres.com.br/vida&obra.html> Acesso: 2º de janeiro de 2016.

TORRES, Antônio. Um cão uivando para a lua.____.Prefácio de Antônio Torres para a edição

comemorativa dos 30 anos de lançamento de seu primeiro livro, Um cão uivando para a lua.

Disponível em:http:<//www.antoniotorres.com.br/resenha_umcao.html>

Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

TORRES, Antônio. Quando a cidade faz esquina com a escrita. Conferência. In: Légua & meia:

Revista de literatura e diversidade Cultural. Feira de Santana, UEFS, v. 6, n.º 4, 2008, p. 7-15.

ZIMMERMANN, Giovana Aparecida. O lugar do outro: a imagem dos traçados urbanos como técnica de separação. Revista Outra Travessia. Santa Catarina: UFSC. Nº 8, p. 45-53, 2009.

Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/ view/16209 >. Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

Page 98: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DE CIÊNCIAS PPGEL … · Meu respeito, amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS ... fundamentam as ideias de determinismo e liberdade que, ao longo da trilogia,

98