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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
MESTRADO EM DANÇA
THAIS DE JESUS FERREIRA
FANDANGO PARANAENSE DA ILHA DOS VALADARES – PROCESSOS DE
TRADUÇÃO CULTURAL E APRENDIZAGEM INVENTIVA NA DANÇA
SALVADOR
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
THAIS DE JESUS FERREIRA
FANDANGO PARANAENSE DA ILHA DOS VALADARES – PROCESSOS DE
TRADUÇÃO CULTURAL E APRENDIZAGEM INVENTIVA NA DANÇA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial de conclusão do Mestrado em Dança, para obtenção do grau de Mestre em Dança. Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena Alfredi de Matos
SALVADOR
2016
Ao meu amor, Nicolas,
pequeno companheiro de vida e pesquisa.
À minha mãe, alicerce e porto seguro da minha trajetória.
A todos os meus mestres de sempre.
AGRADECIMENTOS
À Lúcia Matos pelas orientações provocativas que desestabilizaram ao
mesmo tempo em que me motivaram a percorrer os caminhos da pesquisa, ao seu
rigor e confiança necessários neste processo, por me direcionar fazendo a escrita
pulsar.
Ao Governo do Estado do Paraná por ceder a licença de dois anos para a
realização deste projeto. À Capes pela bolsa de estudos que viabilizou a dedicação
necessária.
Aos professores e alunos do Programa de Pós-Graduação em Dança pelo
compartilhamento dos múltiplos caminhos de se fazer/pensar dança. Pelo saboroso
percurso do conhecimento, que transbordou questionamentos e descobertas.
À professora Daniela Amoroso, grande entusiasta da cultura popular,
incentivadora desta pesquisa, por acreditar no Fandango como campo potencial
para investigação.
Ao professor Pedro Abib, por proporcionar o diálogo entre a cultura popular e
educação na academia, por aproximar os mestres e seus saberes populares da
Universidade.
A todos os aprendizes da dança e aos mestres dos grupos de Fandango:
Mestre Romão, Mestre Nemésio, Mestre Brasilio, Mestre Aorélio, por acolherem com
amor minha pesquisa, abrindo seus ensaios, bailes e a própria casa, participando
prontamente deste processo.
Ao Mestre Zeca pelas aulas de viola caipira e rabeca, que transbordaram
contos, causos e sorrisos em meio às notas musicais.
À família Pontes, Deneris, Alcides, Márcio e Fabíola, que me acolheram de
forma generosa para residir em sua casa na Ilha dos Valadares durante a pesquisa
de campo.
Ao Siqueira, cinegrafista do Fandango, por disponibilizar todos os registros
audiovisuais durante a imersão no campo.
À Fumcul (Fundação Municipal de Cultura e Turismo de Paranaguá) pela
disponibilização de materiais e por acreditar nesta pesquisa.
A José Maria pelos cafés e prosas no Instituto Histórico e Geográfico de
Paranaguá, que esclareceram muitas dúvidas e proporcionaram descobertas
inimagináveis sobre a história de Paranaguá e da Ilha dos Valadares.
Ao Centro Municipal de Educação Infantil Arcelina Ana de Pina, da Ilha dos
Valadares, por acolher o Nicolas e inseri-lo no Projeto de Fandango como pequeno
folgador, por proporcionar encontros das crianças com a cultura caiçara.
Aos gregos e troianos, Mi Bucadim Mais, Carlota Joaquina, Drink Neves e
Marta Bausch pelos caminhos cruzados e experiências compartilhadas.
À Lisette Schwerter pela tranqüilidade e paz da sua companhia, Ligia Martins
pelo seu olhar crítico e determinado me possibilitando ver sempre além, Michele
Favero pelas longas conversas, disponibilidade e apoio constante e Railda Prudente
por se fazer sempre presente na UFBA, em espetáculos e nos sambas, enfim a
todas pela amizade além do espaço da Universidade, pelo caminhar juntas neste
mestrado.
A toda minha família de Clevelândia pela compreensão nas distâncias e
ausências durante este processo, pelo amor que transpõe qualquer dificuldade. Às
crianças da dinda, Riccardo e Cecília, por todos os encantos e coloridices.
Ao meu amor, Alexandre, pela paciência e apoio neste período final da
pesquisa, por compartilhar sonhos.
À minha família baiana, em especial Áurea e Enzo, por nos ter acolhido
nestes dois anos, nos fazendo sentir em casa, por todo amor e cuidado recebidos.
Com nome de Deus começo
Com Deus quero começa
Sô muito chegado a Deus
Sem Deus não posso passa.
Versos do Fandango Paranaense
RESUMO
Essa dissertação trata dos processos de tradução cultural e de aprendizagem inventiva na dança do Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares, Paranaguá. O processo de tradução cultural consiste em um olhar para as tradições, atualizado e imbricado na dinamicidade da cultura popular, articulando, para tanto, perspectivas dos autores Bhabha (2013), Hall (2013) e Santos (2010). A aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2007) se dá pela problematização e invenção, e essa proposta é deslocada para analisar os processos de ensino-aprendizagem presentes na dança popular, mais especificamente no Fandango Paranaense, considerando como um campo da educação não-formal. Essa manifestação popular foi entrecruzada por processos de resistência e ressignificação, ao mesmo tempo em que por colonização e recolonização, possibilitando, de um lado, a inventividade e, de outro, a obliteração do processo de criação. Assim, a aprendizagem da dança popular brasileira, no caso o Fandango, se apresentou por diferentes aspectos, pela repetição e replicação de movimentos e pela ação criativa e inventiva nos estados de corpo. A cartografia (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009), como uma tipologia das pesquisas de cunho qualitativo, foi adotada como percurso metodológico, constituído no ato de pesquisar, visando entender a relação entre cultura e educação. Assim, a imersão no campo da pesquisa, a contextualização do Fandango e as ações corporificadas que emergiram do processo constituíram os caminhos. Para tanto, algumas pistas se compuseram delineando a pesquisa de campo: corpo-dança, corpo-texto e corpo-dança-caiçara; e para complementar as pistas norteadoras se criaram micro pistas que são: parar para olhar, ouvir e sentir; pousar e desfocar a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios; acompanhar processos; e descrever ações. As pistas criadas desenharam caminhos para a compreensão da problemática, que permitiu, pela observação participativa, a tradução cultural do Fandango Paranaense e o entendimento dos processos de aprendizagem na dança popular brasileira que apresentaram a ação corporificada de distintas formas, inventivas e/ou repetitivas, com as replicações abarcando as diferenças. Palavras-chave: dança, fandango, cultura popular, aprendizagem, inventividade.
ABSTRACT
This dissertation is about the processes of cultural translation and inventive learning in dance of the Fandango Paranaense by Island Valadares, Paranaguá. The process of cultural translation consists in a look to the traditions, updated and deep in the dynamics of popular culture, articulating, for both, perspectives of authors Bhabha (2013), Hall (2013) and Santos (2010). The inventive learning (KASTRUP, 2007) occurs by the problematization and invention, and this proposal is shifted to analyze the teaching-learning processes present in popular dance, more specifically in the Fandango Paranaense, considering as a field of non-formal education. This popular manifestation was interlaced by resistance and the resignification‟ process and in the same time for colonization and the recolonization enabling on one side the inventiveness and another the obliteration of the process of creation. Like this, the learning of Brazilian popular dance, in case the Fandango, if presented by different aspects, by repetition and replication of movements and by the action creative and inventive in the states of the body. The Cartography (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009), as a typology of the research of qualitative nature, was adopted as a methodological path, consisting in the act of search, aiming to understand the relation between culture and education. So, immersion in the field of research, the contextualization of the Fandango and actions embodied which emerged from the process, constituted the paths. So that, some tips is comprised outlining the field survey: body-dance, body-text and body-dance-caiçara; and to complement the tips guiding questions it was created micro tips that are: stop to watch, hear and feel; land and not give attention; intervene without infering; recording of sensations and desires; follow procedures; and describe actions. The tips created drew paths for the understanding of the problems that allowed, by participant observation, the cultural translation of the Fandango Paranaense and the understanding of the learning process in Brazilian popular dance that presented the action embodied in distinct forms, inventive and/or repetitive with the replications embracing the differences. Keywords: dance, fandango, popular culture, learning, inventiveness.
LISTA DE SIGLAS
CMEI – Centro Municipal de Educação Infantil
FUMCUL – Fundação Municipal de Cultura de Paranaguá
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Foto tirada na Associação de Cultura Popular Mandicuera - Ilha dos
Valadares .................................................................................................................. 17
Figura 2 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão – Mestre na janela de sua
casa. .......................................................................................................................... 25
Figura 3 - Desenho do diário de bordo – Fandango e seus atravessamentos – com
interferências do processo de análise dos dados. ..................................................... 28
Figura 4 - Fandango Bailado. .................................................................................... 29
Figura 5 - Fandango batido - diferença nos modos de bater o tamanco. .................. 97
Figura 6 - Ensaio Grupo Folclórico Mestre Romão ................................................. 105
Figura 7 - Nicolas e coleguinhas do CMEI Arcelina Ana de Pina em apresentação de
Fandango ................................................................................................................ 112
Figura 8 - Nicolas e Heloisa representando o Fandango (FUMCUL) na Festa do
Rocio - Nov. 2015. ................................................................................................... 112
Figura 9 - Ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares. ............................................ 113
Figura 10 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão - Outubro 2015. ................ 114
Figura 11 - Ensaio do grupo Pés de Ouro. .............................................................. 115
Figura 12 - Apresentação do Grupo Pés de Ouro - Boca Maldita - Curitiba - Out.
2015. ....................................................................................................................... 117
Figura 13 - Apresentação do Grupo Folclórico Mestre Romão - Boca Maldita -
Curitiba - Out. 2015. ................................................................................................ 117
Figura 14 - Grupo Mandicuera na Festa do Fandango Caiçara - Ago 2014. ........... 119
Figura 15 - Grupo Mandicuera - Baile do Fandango no Mercado do Café – Nov. de
2015. ....................................................................................................................... 119
Figura 16 – Grupo Ilha dos Valadares - Mercado do Café - Ago 2014. ................... 120
SUMÁRIO
DO EMBALO DA SANFONA ÀS BATIDAS DO TAMANCO – descortinando uma
experiência singular de fronteiras, raízes, deslocamento e descobertas .......... 11
1 AMANHECEEE!!!! O FANDANGO DA ILHA DOS VALADARES – UMA
MANIFESTAÇÃO CAIÇARA SOB PISTAS CARTOGRÁFICAS ............................. 18
2 TRADUÇÃO – O ESPAÇO FRONTEIRIÇO DA CULTURA .................................. 32
2.1 RESSIGNIFICAR E TRADUZIR – ENTRE-LUGARES DA CULTURA
POPULAR .............................................................................................................. 32
3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – REMINISCÊNCIAS ............................. 50
3.1 DOS BATIDOS AOS BAILADOS – CONTEXTUALIZAÇÃO DO FANDANGO 50
3.2 DANÇAS FOLCLÓRICAS OU DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS?
REVISITANDO O FOLCLORE, AS TRADIÇÕES E A CULTURA POPULAR ....... 60
3.3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – DISTINTAS CONFIGURAÇÕES .... 75
4 CAMINHOS E ENCONTROS – EDUCAÇÃO, CULTURA E PROCESSOS DE
APRENDIZAGEM NAS DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS ............................ 87
4.1 CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO – RELIGAÇÃO E ECOLOGIA DE
SABERES NO FANDANGO PARANAENSE ......................................................... 89
4.2 DANÇAR FANDANGO? PROCESSOS DE APRENDIZAGEM INVENTIVA .... 95
5 Ô DE CASA! ENTRE TAMANCOS, RABECAS, CAIÇARAS E BARREADOS –
OLHARES E SABERES DA CULTURA ................................................................. 110
5.1 DESVELANDO A ILHA E O FANDANGO – A TRADUÇÃO DE UMA
TRADIÇÃO .......................................................................................................... 110
5.2 FANDANGO - ENTRE A CRENÇA RELIGIOSA E A CULTURA POPULAR . 120
5.3 FANDANGO É DIVERTIMENTO TRABALHADO? CARA-CACHÊ! ............... 123
5.4 FANDANGO – REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
BRASILEIRO (IPHAN) ......................................................................................... 127
ARREMATE – ao som e na reverberação dos batidos do tamanco .................. 133
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 139
APÊNDICES ........................................................................................................... 143
11
DO EMBALO DA SANFONA ÀS BATIDAS DO TAMANCO – descortinando uma
experiência singular de fronteiras, raízes, deslocamento e descobertas
A dança permeou minhas vivências e experiências desde a infância, iniciou
quando meu avô, que era conhecido como “Gaúcho”, me levava aos bailes do CTG
(Centro de Tradições Gaúchas) vestida de prenda1 e me ensinava os primeiros
passos. Ele era o típico personagem rio-grandense e, além de ter uma grande barba
grisalha, estava sempre pilchado2 com bombacha, botas e chapéu, e no inverno
usava seu pala3. Foi com ele que aprendi a dançar meu primeiro vanerão4, e ele me
encantava só de olhar!
Quando entrei no 1º ano do Ensino Fundamental participei da minha primeira
apresentação gaúcha, a “Dança do Pezinho5”, popular no sul do Brasil, dançada por
muitas crianças por ser uma coreografia simples e cativante. Por volta dos meus
sete anos, minha família se mudou para o Rio de Janeiro e moramos ao lado de um
barracão que confeccionava figurino para a escola de samba “Mocidade
Independente de Padre Miguel”. Naquele universo de cores e texturas minha
imaginação fluía e se transformava, ganhava sacolas de penas coloridas e sobras
de figurinos, o que me proporcionava novos encontros com a cultura popular, em
especial o samba. No carnaval de rua do Rio de Janeiro a vibração e energia dos
“bate-bolas6” ficaram em minha memória. Na mesma época, tive minha primeira
paixão musical, que foi o “Canto da Cidade”, de Daniela Mercury, e também com
meus 8 anos foi minha primeira coreografia.
Quando retornamos para o sul minha paixão pelos carnavais foi aguçada e
durante oito anos organizei bloco, confeccionei fantasias e ensaiava coreografias
para cinco noites de carnaval. Na pequena cidade em que residia, Clevelândia-PR, o
1 Prenda, s. Joia, relíquia, presente de valor. Em sentido figurado, moça gaúcha. Prendado, s.
Reinado. (É um neologismo criado para designar o tempo em que a Primeira Prenda exerce o seu reinado). In: Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. (NUNES, 1998, p. 395). 2 Pilcha é a indumentária tradicional da cultura gaúcha, utilizada por homens e mulheres de todas as
idades. Portanto, pilchado é estar vestido a caráter, com a vestimenta gaúcha (NUNES, 1998). 3 O pala ou ponche é uma vestimenta tradicional dos gaúchos, usado para proteger do frio e do vento,
por sobre a vestimenta usual. Também pode servir como cobertor improvisado (NUNES, 1998). 4.Vanerão é um tipo de dança típica do gaúcho, uma das mais populares no sul do Brasil. O vanerão
com sua vivacidade exige bastante energia, tanto dos músicos – em especial aos gaiteiros – como dos bailadores. Os passos de Vanerão devem ser executados em três movimentos: dois para a esquerda e um para a direita. 5O “Pezinho” é uma dança popular rio-grandense em que todos os dançarinos obrigatoriamente
cantam, não se limitando, portanto, à execução da coreografia. 6 Personagens carnavalescos fantasiados, característicos do subúrbio (zona norte e zona oeste) do
Rio de Janeiro.
12
carnaval tradicionalmente acontecia no clube no ritmo das marchinhas, e todo o
sudoeste do Paraná era atraído para nossa festa.
Paralelo a isso, durante a adolescência participei de um grupo de danças
gaúchas, orientado ora por meu professor de Educação Física, Arthur, que também
tocava gaita (sanfona), ora por minha professora de arte, Nádia, casada com um
músico, que em horário extracurricular, e muitas vezes em sua casa, orientava
nosso grupo. Através destes professores tive maior contato com a dança, a arte,
com as músicas e tradições gaúchas. Neste período fazíamos apresentações no
CTG (Centro de Tradições Gaúchas), Clube Cultural e nos eventos escolares
organizados pela Secretaria de Educação do Estado e Município, e quando era
sediado Rodeio Crioulo no Parque de Exposições também participávamos enquanto
grupo.
Quando ingressei na graduação optei por Educação Física, e nela encontrei a
possibilidade de trabalhar com minhas paixões, a dança e o esporte.
No início da graduação realizei um projeto com crianças em situação de risco
social, alunos da rede municipal de Clevelândia, e apresentamos a coreografia
“Mostra sua cara” no Festival de Arte do Paraná, sendo convidados a reapresentar
várias vezes, e recebemos o título de destaque do FERA (Festival de Arte do
Paraná). Foi um momento marcante, pois foi meu primeiro trabalho com as danças
populares das regiões brasileiras. As crianças que faziam parte do projeto eram
talentosíssimas e foram imprescindíveis para o reconhecimento do projeto no Estado
e Município.
Na graduação não tive uma experiência muito positiva com a Dança, pois a
professora que ministrava a disciplina era formada em Direito e tinha no currículo
anos como bailarina do Teatro Guaíra. Sentia falta da didática nas aulas, além de os
conteúdos serem específicos da dança que ela praticava, porém encontrei outros
espaços de formação fora da academia. Durante dois anos fui bolsista da Escola de
Dança 8 Tempos, e, neste local de aprendizagem, pude conhecer outras danças de
salão além das gaúchas. Recebíamos na Universidade (UFPR, em Curitiba) grupos
de estrangeiros, japoneses, alemães, entre outros, e eu, como bolsista Pibic dava
aulas de samba, forró e danças gaúchas para estes estudantes.
O despertar apaixonado pelas cores e sabores da cultura popular cresceu
conforme o tempo foi passando, e, entre bailes, churrascos, rodeios e carnavais,
minha trajetória foi sendo construída e meu modo de vida foi se consolidando. Após
13
a graduação minha energia foi canalizada para o trabalho com danças de salão e
dança educativa7, tanto em escola particular como na rede municipal e estadual de
ensino. Encontrei, nas danças de diversas manifestações populares, aquilo que
acreditava ser uma possibilidade de trabalho interdisciplinar dentro das escolas e,
desta forma, foram intensificados meu estudo e prática enquanto docente nesta
área. Com isso, percebia a possibilidade de contextualizar o conhecimento para
meus alunos e fazê-los perceber como atores da própria história.
Desejei, no mestrado, ampliar meus estudos, dentro do universo da cultura
popular, a partir de uma prática etnográfica, preocupada e atenta a pensar a
educação no interior da sua morada: a cultura. Iniciei, através do pré-projeto, uma
intenção de compreender as danças populares no ensino formal público de
Salvador. Porém, no primeiro ano do mestrado, entre disciplinas teóricas e vivências
práticas, tanto na UFBA quanto em outros espaços, pude repensar meu objeto de
estudo.
Durante um estudo de campo, em agosto de 2014, na Ilha dos Valadares,
litoral paranaense, conheci o Fandango Paranaense – adotei maiúsculas para
destacar o objeto desta pesquisa, o qual já despertava meu interesse enquanto
professora da rede pública do estado do Paraná. O contato com o Fandango foi um
encontro determinante na minha trajetória acadêmica, pois a partir das observações
dos grupos de Fandango e dos diálogos e entrevistas realizadas com os mestres
pude redefinir meu projeto e publicar artigos relacionados.
Uma discussão que teve início nas primeiras apresentações do pré-projeto
nas disciplinas do mestrado, que diz respeito à utilização da nomenclatura Danças
Folclóricas ou Danças Populares, foi imprescindível para repensar meu
deslocamento do Paraná para Salvador, pois percebi, além do deslocamento
geográfico, que ocorriam simultaneamente deslocamentos conceituais da dança que
pesquiso.
O Fandango Paranaense da Ilha dos Valadares se apresentou como um
campo potencial para pesquisa, pois em suas vertentes encontrei um grupo que se
autodenomina folclórico, bem como outros três grupos que não fazem esta distinção.
7 Dança educativa é um termo que conjuga as áreas da Dança e da Educação num terceiro problema,
o ensino da dança para crianças e jovens no contexto escolar. Surge através do movimento arte-educação no Brasil, relacionando a questão da dança no campo educação, tais como: dança criativa, dança-educação, dança educacional e tantos outros termos derivados. Países como Inglaterra e Estados Unidos adotaram dance education.
14
O que de certo modo fulgura meu entendimento acerca dos deslocamentos que
vivenciei no trânsito entre o Paraná e Salvador, justificando minha vivência anterior
ao mestrado nas escolas estaduais, que tinham embasamento nas danças
folclóricas e o rompimento de fronteiras e conceitos ao me deparar com a dança
popular em Salvador. Sendo assim, encontrei no Fandango um lugar de
investigação que acolheu minhas vivências, meu processo de deslocamento e meu
desejo de pesquisa.
Ao perceber esses entrelaçamentos pude entender que a compreensão de
danças populares ou danças folclóricas recai na mesma questão com que me
deparei ao tentar definir o que é dança popular. Há uma dureza nos conceitos e uma
moleza nas noções, conforme observa o sociólogo Maffesoli (apud SILVA, 2012, p.
62) ao sugerir a possibilidade de ocorrer entre conceitos um deslizamento. Assim,
considera-se que eles sejam atravessados por múltiplas identificações, ou seja, não
é algo uno, acabado, coerente, coeso, linear, integral, único, original e estável. A
cultura não se fixa dessa maneira. Logo, é preferível ter uma compreensão mais
alargada – uma „noção‟, pois não há possibilidade de firmar ou fixar um conceito, e
sua „dureza‟ pode limitar o entendimento do acontecimento, que está sempre em
processo.
Estes foram os caminhos que permitiram delimitar meu objeto de pesquisa e
encontrar a problemática que me move. A questão desta pesquisa está centrada no
diálogo entre a cultura popular e a educação. O que me instiga é: Como os
processos de tradução cultural presentes na dança do Fandango Paranaense da
Ilha dos Valadares possibilitam aberturas para processos de aprendizagem
inventiva? O objetivo desta pesquisa é compreender de que forma a educação não
formal (GOHN, 2011) e a cultura popular dialogam e como os processos de tradução
cultural possibilitam aberturas para a aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2007) no
contexto da dança do Fandango Paranaense. A aprendizagem inventiva proporciona
pensar na experimentação como criação de novas soluções, através da invenção de
problemas e das experiências de problematização, enfim, a inventividade é um
processo de criação.
Esta dissertação foi estruturada em cinco capítulos, sendo desenhada através
de pistas cartográficas que foram conectando a teoria com a vivência do campo. No
primeiro capítulo, “Amanheceee! O Fandango Paranaense em Valadares – uma
manifestação caiçara sob pistas cartográficas”, apresentarei a cartografia como
15
percurso metodológico para entender a relação entre cultura e educação a partir de
pistas que foram criadas no processo de pesquisa, tendo esta cunho qualitativo
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). As pistas que se compuseram para a
pesquisa de campo foram corpo-dança, corpo-texto e corpo-dança-caiçara e, para
constituí-las, criaram-se micro pistas, que são: parar para olhar, ouvir e sentir;
pousar e desfocar a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios;
acompanhar processos; e descrever ações. As pistas não estavam prontas, mas se
constituíram na processualidade da pesquisa (KASTRUP, 2009). Os caminhos
metodológicos transpareceram a partir do primeiro contato com o campo, em agosto
de 2014, no qual o próprio universo do Fandango deu aberturas para delinear a
pesquisa e, a partir daí, foram se desvelando redes de informações que levaram a
participar, em agosto de 2015, da 6º Festa do Fandango Caiçara em Paranaguá e,
por fim a residência na Ilha dos Valadares, de outubro a dezembro de 2015. As
experiências na trajetória da pesquisa proporcionaram revelar e compor as pistas
cartográficas e encontrar nelas a direção.
No segundo capítulo, “Tradução – O espaço fronteiriço da Cultura Popular”,
apresento o conceito de tradição e tradução cultural sob a perspectiva dos autores
Homi Bhabha (2013), Stuart Hall (2013) e Boaventura de Souza Santos (2010) e o
aporte teórico para pensar a cultura popular. Os conceitos abordados neste capítulo
são tecidos conjuntamente com a história e memória do Fandango Paranaense.
No terceiro capítulo apresento as diferentes configurações das danças
populares brasileiras sob a perspectiva do Mestre do fandango Aorélio Domingues,
que possibilita na sua abordagem revisitar o folclore e as tradições ao diferenciar
danças folclóricas de danças populares, e das autoras Daniela Amoroso (2009),
Maria Acselrad (2013), Marianna Monteiro (2011) e Renata de Lima Silva (2012) a
partir de distintos processos de investigação do corpo nas Danças Populares.
No quarto capítulo, “Caminhos e Encontros – Educação, Cultura e Processos
de Aprendizagem na Dança Popular”, é apresentada uma discussão a respeito da
educação não formal, com base na autora Maria da Glória Ghon (2011), sobre a
relação da cultura e a educação baseada nos autores Teixeira Coelho (2011) e
Boaventura de Souza Santos (2010), com o conceito de Ecologia de Saberes, e
ainda será explorado nesse contexto o conceito de aprendizagem inventiva proposto
por Virginia Kastrup (2007), que parte dos princípios da inventividade, criação e
problematização na educação, aqui deslocados para a dança popular. São tecidas
16
no percurso da escrita as vozes dos mestres e aprendizes sobre a aprendizagem da
dança no Fandango, criando uma trama entre os conceitos dos autores e o campo.
O quinto e último capítulo, “Oh de casa! Entre Tamancos, Rabecas, Caiçaras
e Barreados – Olhares e Saberes da Cultura Popular”, traz as impressões e
observações de campo, relatando os encontros com o Fandango em 2014 e 2015.
Neste capítulo apresenta-se um „passeado8 ou „sarandeio‟ a partir da discussão dos
conceitos abordados na pesquisa com o material coletado no campo, observação e
entrevista com os mestres e batedores do Fandango. Nele apresentam-se as
peculiaridades do campo e as problemáticas surgidas neste território. Por considerar
o fandango como uma manifestação popular vinculada às tradições, são
apresentados, a partir do entendimento dos mestres e aprendizes, os processos de
tradução cultural e aprendizagem inventiva, por meio dos quais a dança vem se
problematizando, ressignificando e reinscrevendo na atualidade.
O “Arremate” são as considerações finais deste processo de pesquisa, que
não termina aqui, mas possibilita refletir outros caminhos para dar continuidade ao
processo de tradução do Fandango Paranaense.
8 Passeado ou sarandeio é o movimento das mulheres na dança do fandango. A palavra passeado
deriva de passear, caminhar.
17
Figura 1 - Foto tirada na Associação de Cultura Popular Mandicuera - Ilha dos Valadares Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
18
1 AMANHECEEE!!!! O FANDANGO DA ILHA DOS VALADARES – UMA
MANIFESTAÇÃO CAIÇARA SOB PISTAS CARTOGRÁFICAS
Caminhante não há caminho, o caminho se faz ao andar
Antonio Machado, Caminhante
Amanheceee é a chamada dos caiçaras para o baile de Fandango, a intenção
dos fandangueiros antes de a festa iniciar é amanhecer tocando, cantando e
dançando. Não há como prever quantas músicas serão tocadas, quantas marcas
serão batidas, quantas valsadas e bailadas serão dançadas, porque ao iniciar o baile
muitas interferências podem acontecer e não é possível assim sistematizar e prever
seu andamento, mas é possível saber que o desígnio dos fandangueiros é
amanhecer.
Assim, o Fandango como uma manifestação que faz parte de uma cultura
movente dá pistas para um procedimento metodológico, porém não se permite
fechar em um caminho, pois ele se faz no processo. A pesquisa se dá no sentido de
conhecer e fazer, pesquisar e intervir, através do mergulho na experiência, a qual
agencia teoria e prática, sujeito e objeto, sendo a trajetória do sujeito determinante
na produção do conhecimento.
Neste sentido, essa pesquisa apresenta uma abordagem qualitativa
(KASTRUP; PASSOS; ESCOSSIA, 2009) que envolve pesquisa exploratória,
observação e análise das práticas artístico-culturais do Fandango, além de
entrevistas e consulta a documentos. A partir das observações e vivências de
campo, foram identificados sujeitos imbricados no campo de investigação, no caso
os mestres e alguns aprendizes do fandango dos quatro grupos9 da Ilha dos
Valadares, que foram imprescindíveis na compreensão e análise dos processos de
tradução cultural e aprendizagem inventiva10 na dança do Fandango. A pesquisa de
campo se deu em três fases, e em cada momento foram construídas pistas para
pensar o contexto da pesquisa. E essas pistas não se fixaram, foram móveis e
9 Grupo Folclórico Mestre Romão, Grupo Pés de Ouro (Mestre Nemésio), Grupo Mandicuera (Mestre
Aorélio) e Grupo da Ilha dos Valadares (Mestre Brasilio). 10
Para Kastrup (2007), aprendizagem não é entendida como passagem do não-saber ao saber, não fornece apenas as condições empíricas do saber, nem é uma transição ou uma preparação que desaparece com a solução ou resultado. A aprendizagem é, sobretudo, invenção de problemas, é experiência de problematização. A experiência de problematização distingue-se da experiência de recognição.
19
deram aberturas para outros caminhos que se fizeram necessários no processo.
Além das pistas do campo, a organização das leituras e produções teóricas também
foram delineadas sob pistas cartográficas.
Face ao exposto, a pista inicial consistiu na leitura de teorias relevantes
ligadas à cultura, tradição e traduções culturais, com base nos autores Stuart Hall
(2013), Homi Bhabha (2013) e Boaventura de Souza Santos (2010). Para esta etapa
foi importante considerar os deslocamentos teórico-práticos da pesquisa e
pesquisador, ao mesmo tempo em que os choques culturais vivenciados neste
processo.
A segunda pista se deu a partir da investigação acerca da noção de danças
populares brasileiras e a influência do movimento folclórico nas configurações de
dança, e apresentou destaque aos relatos do mestre do Fandango acerca dos
saberes populares relacionados à dança, que envolvem o objeto desta pesquisa, ou
seja, dar voz aos fandangueiros foi imprescindível para melhor compreender a
literatura. Esta etapa teve como base autores do folclore paranaense, Inami
Custódio Pinto (1980) e Fernando Correa Azevedo (1973), e pesquisadores do
folclore brasileiro, Câmara Cascudo (1972), Mário de Andrade (1986), além das
pesquisadoras de danças populares Mariana Monteiro (2011), Daniela Amoroso
(2009), Maria Acselrad (2012) e Renata Lima Silva (2012). A multirreferencialidade
utilizada nos capítulos foi essencial para a compreensão da processualidade da
cultura popular e da manifestação do Fandango Paranaense.
A pista seguinte, que se dedicou a relacionar cultura e educação, lançou mão
de autores que tratam de teorias ligadas à educação não formal, Maria da Glória
Ghon (2011) e Teixeira Coelho (2011), à noção de ecologia de saberes apresentada
pelo autor Boaventura de Souza Santos (2010) e, por fim, para compreender os
processos de aprendizagem inventiva na dança do Fandango, utilizou-se como
referência a autora Virginia Kastrup (2007).
Esta pesquisa está inserida no campo das pesquisas qualitativas e se
configura como uma pesquisa cartográfica que se apropria de aspectos etnográficos,
pois a cartografia, segundo Kastrup (2009), é traçar um plano comum. Para ela,
A pesquisa de campo sobre produção da subjetividade enfrenta o problema de construir conhecimento envolvendo pesquisadores e pesquisados, com territórios e semióticas singulares. Surgem questões relativas ao protagonismo dos participantes e a como traçar com eles um plano comum, garantindo o caráter participativo da pesquisa. [...] Na cartografia o traçado
20
do comum tem como diretriz metodológica a transversalidade e examina os procedimentos de participação, inclusão e tradução (KASTRUP; PASSOS, 2013, p. 263).
Nesse sentido, é pelo trabalho de campo que apresentamos as pistas que
permitem observar e analisar as ações dos caiçaras que residem no litoral sul do
Paraná. A proposta é encontrar relações entre as teorias e os resultados empíricos
que se manifestam e compõem esse objeto, que mostram afinidades com a prática
artística e de ensino aprendizagem da dança do Fandango, pela perspectiva de um
diálogo intercultural (SANTOS, 2010).
Concomitante aos primeiros estudos teóricos, na pesquisa exploratória de
campo foi realizada a primeira visita, efetivada com o viés da observação
participativa de algumas atividades artístico-culturais do Fandango em Valadares.
Foi uma etapa decisiva na definição da problemática que move esta pesquisa, além
de proporcionar o conhecimento dos sujeitos e de diminuir distâncias entre
pesquisador e objeto. Nesta etapa foi possível identificar alguns dos possíveis
protagonistas da experiência em campo que foi realizada posteriormente.
A pista corpo-dança se refere ao primeiro contato com o campo no mês de
agosto de 2014, entre os dias 15 e 17, período de realização da 5ª Festa do
Fandango Caiçara de Paranaguá. O evento foi uma realização da Fundação
Municipal de Cultura de Paranaguá (FUMCUL) e do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN), e na mesma data o Fandango recebeu o certificado de
Patrimônio Cultural pelo IPHAN.
Dentre as atividades do evento ressalta-se a entrega, no dia 15 de agosto, do
certificado de Registro de Bem de Natureza Imaterial do Fandango Caiçara aos
Mestres Fandangueiros. Também foi possível acompanhar o ensaio dos netos do
Mestre Romão e participar dos debates gerados pelos participantes da mesa
redonda para discutir “Desafios e Perspectivas para a Salvaguarda do Fandango”,
com Antonio Carlos Diegues e os mestres do Fandango. À noite aconteceu o Baile
de Fandango no Mercado do Café com todos os grupos da Ilha dos Valadares
(Fandango da Ilha dos Valadares, Folclórico do Mestre Romão, Mandicuera e Pés
de Ouro). No dia 17 de agosto ocorreram distintos momentos de confraternização:
almoço (barreado) na Associação Mandicuera; à tarde “café com banana” e roda de
viola com os Mestres no Mercado do Café.
21
Durante esse evento foi possível entrevistar os mestres Aorélio e Brasílio
sobre questões referentes à contextualização do Fandango e ao entendimento dos
mestres acerca das Danças Folclóricas e Danças Populares, que permeavam as
discussões da dissertação naquele momento. O modo utilizado para aproximar a
pesquisadora do campo foi a dança, e, neste movimento da cultura, as fronteiras
entrecruzaram pesquisadora e pesquisados. A dança como modo de ocorrência, de
aproximação, se deu tanto no momento em que o som do tamanco foi o condutor
para conseguir encontrar a casa do Mestre Romão, acessando o ensaio dos seus
netos, quanto nas vinculações alcançadas com mestres, aprendizes e caiçaras
residentes da Ilha durante o baile de Fandango no Mercado do Café.
A amplitude da problemática e sua característica eminentemente tradutória
demandaram uma segunda incursão no campo, que ocorreu em agosto de 2015.
Além de articular teorias e abordagens disciplinares, buscou-se relacioná-las de
modo que se pudesse construir uma análise da problemática simultaneamente ao
processo de observação participativa do campo. A segunda pista oriunda do campo
corpo-texto possibilitou adentrar no campo com outra intensidade, de fazer leituras
corpo-textuais dos sujeitos da pesquisa no sentido de tentar traduzir algumas
questões que o próprio campo sugeriu, como compreender as diferenças
apresentadas desde a primeira observação, seja pelo movimento percebido mais
enfraquecido de mestres e dançadores no baile ou pelos questionamentos surgidos
a partir de falas dos mestres ou aprendizes referentes ao cachê recebido para fazer
fandango.
Essa segunda imersão no campo se deu entre 14 e 21 de agosto de 2015,
nos primeiros dias aconteceu a 6ª Festa de Fandango Caiçara, na Casa Dacheux,
no Centro Histórico de Paranaguá. A programação do evento incluiu a abertura da
Exposição Fotográfica “As Marcas de Valadares”, lançamento de livros e de CD de
fandango com os grupos da Ilha dos Valadares. Ocorreram também: rodas de
conversa com mestres do fandango; apresentação do CMEI (Centro Municipal de
Educação Infantil) da Ilha dos Valadares; uma conferência sobre a experiência
pernambucana de valorização dos mestres da tradição oral, com a pesquisadora
Maria Acselrad; mesas de debates sobre planos de manejo e a sustentabilidade
caiçara. Também aconteceu o lançamento do projeto ”Artesanias Caiçaras: a
Sustentabilidade do Fandango Através da Construção de Instrumentos Musicais”,
financiado pelo Edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), do
22
Iphan. À noite, no mercado do café, a programação seguiu com o Baile do
Fandango, no qual tocaram os grupos ”Mestre Romão”, “Ilha dos Valadares (Mestre
Brasílio)”, “Mandicuera” (Mestre Aorélio), “Pés de Ouro” (Mestre Nemésio) e
“Manema”, de Iguape, São Paulo.
No dia 16 houve almoço com barreado na Associação Mandicuera e um
“Trajeto Afetivo”, na Ilha dos Valadares, com Poro11, da Associação de Cultura
Popular Mandicuera.
Os dias seguintes foram usados para a coleta de material bibliográfico e
documental, bem como foi possível compreender diversos aspectos da
contextualização histórica da Ilha dos Valadares através de duas tardes de café e
prosa com o Sr. Zé Maria12 no Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá –
verdadeiro guardador de memórias da cidade de Paranaguá –, além de ter acesso
aos arquivos audiovisuais de Siqueira – cinegrafista amador do Fandango que há
doze anos registra a manifestação e que também compartilhou os cafés no Instituto
Histórico. Ambos disponibilizaram todo arquivo pessoal sobre o Fandango, gravando
e cedendo diversos CDs e DVDs, desde livros históricos digitalizados a arquivos de
áudio e vídeo para colaborar com a pesquisa, pois acreditam que essa produção
precisa ser “multiplicada para se conhecer e não arquivada para se guardar”. O
corpo-texto foi o instrumento base desta segunda pista cartográfica, que permitiu
leituras do campo em relação à dança e aos distintos discursos dos mestres, além
de aproximar pesquisadora e contexto através dos materiais teóricos e dos diálogos
estabelecidos com os pesquisadores de Paranaguá.
As duas pistas delineadas nas incursões ao campo deram origem a um
terceiro momento da pesquisa: a pista corpo-dança-caiçara. Essa etapa se deu em
uma imersão no campo de três meses, de outubro a dezembro de 2015,
configurando a residência na Ilha dos Valadares, que possibilitou experienciar o
universo caiçara não apenas como observadora, mas como participante, não com o
olhar estrangeiro, mas fazendo parte do coletivo e por momentos se confundindo
com o próprio objeto estando imbricada na pesquisa. Foi um momento de
rompimento de fronteiras que incluiu uma dimensão simbólica traduzida num
11
Eloir Paulo, mais conhecido como Poro, artesão do fandango e membro da Associação Mandicuera. É ele quem faz a bebida típica do fandango “mãe-cá-filha”. 12
José Maria Faria de Freitas, tesoureiro e estudioso do Instituto Histórico Geográfico de Paranaguá. Trabalha no Instituto desde os 40 anos e desde lá dedica-se a guardar memórias de Paranaguá. Hoje com 76 anos de idade, possui amplo acervo impresso e digital de livros e documentos reunidos da história de Paranaguá.
23
conjunto de relações culturais e afetivas entre minha pessoa e os caiçaras da Ilha
dos Valadares. Os signos criados foram um elemento constitutivo do objeto, e, ao
constituí-lo, constituiu-se pesquisadora/folgadora.
A pesquisa empírica não teve a intenção de fazer apenas descrição e reflexão
de uma experiência localizada de um determinado movimento cultural, mas deu
aberturas para os atravessamentos e desestabilidades que o campo proporcionou. A
metodologia/pistas da pesquisa foi construída no dia a dia da Ilha, nos encontros
com os fandangueiros ao transitar suas ruelas, nas rodas de conversa e viola com
os mestres, nos ensaios dos grupos de fandango, nas trocas de informações com os
aprendizes e na inserção de meu filho nesse universo como pequeno folgador; nos
momentos dos bailes no mercado do café, no bate-papo com a balconista da
padaria ou da mercearia da Ilha, nas idas e vindas pela ponte e seus encontros – no
mercado do peixe ao lado da ponte na Ilha e no mercado do caranguejo, do outro
lado da ponte, em Paranaguá, mas principalmente a construção da trajetória da
pesquisa se deu nas danças do fandango bailado, em que era oportunizada uma
proximidade sem igual dos caiçaras – jovens e velhos, que renderam de pedidos de
casamento a ofertas de três barcos e um sítio, mas, muito além disso, renderam
histórias de vida de fandangueiros, memórias de um povo pescador, sofrido e
trabalhador, que transforma o suor em divertimento e que dança fandango desde
que “se conhece por gente”.
A terceira pista corpo-dança-caiçara sugere que não há neutralidade no
conhecimento (KASTRUP; PASSOS, 2009), pois a imersão no movimento cultural e
artístico do campo ressignificam a trajetória do pesquisador e o trajeto da pesquisa,
devido aos atravessamentos que o compõem. Desta forma, a pesquisa acaba por
intervir na realidade, mais do que apenas a representar, sendo assim, todo
conhecimento é tido como transformação da realidade e de si mesmo. O caminho se
dá no processo, o qual vai sendo traçado sem determinações ou prescrições dadas,
possibilitando desvios e novos arranjos.
Sendo assim, micro pistas foram adotadas para dar conta desta terceira etapa
da pesquisa de campo, que foram: parar para olhar, ouvir e sentir; pousar e desfocar
a atenção; intervir sem inferir; registrar sensações e anseios; acompanhar
processos; e descrever ações. As pistas se constituíram na processualidade da
pesquisa e a ordem de apresentação é apenas uma organização para expor os
caminhos trilhados, mas elas se deram simultaneamente em todo o processo.
24
O processo de construção do caminho da pesquisa nos faz caminhar lado a
lado com o objeto, e ao constituir esse caminho o pesquisador acaba por constituir-
se nele (KASTRUP; PASSOS, 2013), resultado da imersão no plano da experiência
na qual sujeito, trajeto e objeto se hibridizam. A primeira micro pista adotada na
pesquisa, parar para olhar, ouvir e sentir, permite ao pesquisador tornar-se aberto ao
encontro, acolher o inesperado, explorar o que lhe afeta e permitir que a atenção
seja movente, que ela tateie e rastreie o inesperado, possibilita explorar as
sensações até ser tocado por algo. O gesto de pouso permite a percepção e faz com
que um novo território se forme, reconfigurando o campo. Ao pesquisar o Fandango,
sujeito e objeto estabelecem uma relação imbricada de saberes e fazeres. Este é o
movimento que sustenta a construção na dimensão processual da pesquisa.
A micro pista pousar e desfocar a atenção sugere a concentração da atenção
em momentos da pesquisa, em estar atento aos movimentos coreográficos ou às
falas dos mestres e, ao mesmo tempo, desfocar a atenção quando o contexto
sugere esse desvio, no sentido de olhar além dos movimentos coreográficos ou
ouvir os suspiros e silêncios dos mestres.
A atenção sem focalização acolhe o inesperado e sua suspensão permite
acessar dados subjetivos, interesses prévios e saberes acumulados que entram em
sintonia com o problema de pesquisa. Desta forma desfocada, as experiências vão
ocorrendo sem sentido imediato, são os signos que indicam quando algo acontece,
e isso se dá de forma processual. Os signos somente são compreendidos porque
são acolhidos pela atenção. Por exemplo, durante a observação de um dos ensaios
do Fandango desfoquei a atenção da dança e pude assistir a distância o Mestre
Romão, que, enfermo, debruçava-se na janela de sua casa observando a distância
seus netos batendo tamanco. Desfocar a atenção permitiu encontrar outros
caminhos para entender aquele contexto do ensaio, o silêncio do mestre significou
muito para que eu pudesse entender o processo.
25
Figura 2 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão – Mestre na janela de sua casa. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Outra micro pista que delineou o campo foi intervir sem inferir, que possibilita
intervir na realidade e transformá-la, uma vez que o conhecimento resulta em
construção, pois, para os autores Kastrup e Passos, “há uma dimensão da
realidade em que ela se apresenta como processo de criação, [...], o que faz com
que em um mesmo movimento, conhecê-la seja participar do seu processo de
construção” (2013, p. 264). Neste sentido, é possível identificar pelas relações sócio-
histórico-culturais que ao pesquisar o fandango é inevitável acessar o plano comum
entre sujeito e objeto, entre pesquisador e fandangueiros, pois há uma relação de
saberes e fazeres. E é este movimento que sustenta a construção na dimensão
processual deste fenômeno – o Fandango Caiçara. Tenho entendido que fazer uso
da cartografia e traçar um plano comum, sem o qual a pesquisa não acontece, se
configura como um dispositivo potente para desvelar a expressão cultural típica dos
caiçaras.
A cartografia como método de pesquisa-intervenção consiste em uma ação
que traça no percurso as metas da pesquisa, as diretrizes se fazem por pistas e pelo
percurso da pesquisa, considerando todo o processo de investigação. Esta pista
considera que toda pesquisa é intervenção e que a intervenção se dá no mergulho
da experiência somado aos efeitos do percurso, e este percurso se faz na relação do
objeto com o sujeito e o conhecimento.
O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na
26
experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho metodológico” (BARROS; PASSOS, 2009, p. 18).
Estamos, enquanto pesquisadores, implicados no campo da experiência, e
isso indica que a pesquisa está mais entre forças do que entre formas, pois a
dinâmica não se faz por projeção, decisão ou propósito, mas por contágio ou
propagação (BARROS; PASSOS, 2009). Sendo assim, “intervir é mergulhar no
plano implicacional em que as posições de quem conhece e do que é conhecido, de
quem analisa e do que é analisado se dissolvem na dinâmica de propagação de
forças [...]” (BARROS; PASSOS, 2009, p. 25). No Fandango é possível entender que
os atravessamentos que compõe a dança interessam, incluindo os que estão aquém
e além dela, pois em forma de rede dão consistência a estes entre-lugares da
pesquisa.
Registrar sensações e anseios é a micro pista que tornou possível criar um
mapa cartográfico de pesquisa possibilitando a flexibilidade e multiplicidade de
entradas e sentidos para uma experimentação, sendo ele um mapa móvel, sem
centro. Esse processo apostou na experimentação, estando mais próximo do real,
como implicação e intervenção da realidade. Para Kastrup e Passos (2009), as
pistas que guiam um cartógrafo são como referências que apresentam uma atitude
de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no próprio
percurso da pesquisa.
Para a cartografia, em lugar de regras e protocolos, as pistas destacam a
importância da prática, de ir a campo, lançar-se na água, experimentar dispositivos,
habitar um território, afinar a atenção, deslocar pontos de vista e praticar a escrita
(KASTRUP; PASSOS, 2009). Para expressar, compreender e identificar a cultura
popular é preciso mergulhar no universo que a rege, é necessário conhecer o outro
e reconhecer-se nele, é imprescindível que sujeito, trajeto e objeto dialoguem, vai
muito além do olhar, é observar e participar, é encantar-se e permitir os
atravessamentos e transformações.
A micro pista acompanhar processos sugere que o verdadeiro sentido do
método da cartografia para investigar o fandango seja o acompanhamento de
percursos, a implicação em processos de produção e a conexão de redes ou
rizoma13. “A cartografia surge como um princípio do rizoma que atesta, no
13
Para maiores detalhes ver a obra Conversações (1992), de Gilles Deleuze.
27
pensamento, sua força performática, sua pragmática: princípio „inteiramente voltado
para uma experimentação ancorada no real‟” (KASTRUP; PASSOS, 2009, p. 10).
Sendo assim, a cartografia é acompanhar processos inventivos e de produção de
subjetividades, e não de representação de um objeto. A pesquisa de campo requer a
habitação de um território que, em principio, o cartógrafo não habita. O trabalho de
campo realizado para esta pesquisa teve a residência na Ilha dos Valadares como a
habitação de um território desconhecido, proporcionou o acompanhamento dos
processos e a produção de subjetividades no Fandango, a partir de uma experiência
de observação e participação.
A micro pista descrever ações sugere que mergulhar na experiência é uma
forma de implicação no real, na qual a análise se dá pela aproximação, sem
distanciamentos, assim o plano da experiência acontece enquanto intervenção. Ao
imergir na experiência da pesquisa de campo do Fandango Paranaense foi possível
compreender a importância da análise sem distanciamento. As aproximações
possibilitaram traduzir falas e silêncios, e ao se inserir no ambiente de pesquisa você
o transforma e é, ao mesmo tempo, transformado por ele, você ressignifica o objeto
e é reinscrito com ele.
O processo de pesquisa é composto por instabilidades e atravessamentos e,
sendo assim, há que se colocar em análise toda a produção de conhecimento que
compõe a vivência de campo. Nesse sentido, atribui-se relevância significativa a
tudo que rodeia o objeto/sujeitos da pesquisa, sejam as relações sociais, políticas ou
outras redes que estão além destes, mas os permeiam, ou seja, a dança e todo o
contexto que rege a manifestação popular atravessando-a atribuem significados.
Cada momento vivido no processo de pesquisa de campo do Fandango foi
registrado por um diário de bordo, que foi lido e relido, às vezes de forma
desinteressada, para apenas aprender com o próprio caminhar e rememorá-lo.
Alguns acontecimentos se destacavam e faziam conexões com outros saberes
vividos em distintos momentos, por vezes questionamentos que surgiam nos
ensaios encontravam respostas nos bailes e apresentações, ou em um diálogo
desinteressado eram encontrados caminhos e esclarecimentos para a pesquisa. A
figura abaixo faz parte do diário de bordo, é um símbolo que descreve o movimento
do Fandango no local em que ele acontece, registrado durante a pesquisa de
campo.
28
Figura 3 - Desenho do diário de bordo – Fandango e seus atravessamentos – com interferências do processo de análise dos dados.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
A imagem representa o Mercado do Café14, tem diversos acessos, ao centro
dele fica o tablado onde se dança fandango batido e bailado, a pista corpo-dança
surgiu e se retroalimentou neste espaço, foi nele e a partir dele que processos de
tradição foram ressignificados e as traduções foram desveladas.
No entorno do tablado há um fluxo de pessoas que entram e saem do
mercado e que por ele circulam, este fluxo pode ser considerado o contexto (com
texto) no qual se deu a segunda pista cartográfica corpo-texto. Neste espaço foram
acessadas informações importantes sobre o universo do fandango, nele se
estabeleceram relações e conexões importantes para os caminhos da pesquisa, e
14
Construído em meados do século XIX, no estilo neoclássico, foi reformado no início do século XX e adaptado com tendências do classicismo. Era um ponto de degustação do café, servido com quitutes da região. Atualmente abriga um centro gastronômico que oferece refeições à base de frutos do mar e comida típica do litoral, além dos tradicionais bolinhos de camarão, de banana e pastéis de vários sabores. A cada quinze dias são promovidos bailes de Fandango para a comunidade caiçara, especificamente os moradores da Ilha dos Valadares (Disponível em: <http://www.paranagua.pr.gov.br/conteudo/guia-turistico/pontos-turisticos/mercados>).
29
em um movimento de vaivém, de entradas e saídas, encontros e desencontros com
os caiçaras se fizeram os corpos-textuais da pesquisa.
A pista corpo-dança-caiçara reverberou no espaço de atravessamentos, no
entre-lugar do corpo-dança e corpo-texto, no qual foram possibilitadas aproximações
com os caiçaras que regularmente frequentam os bailes. Considera-se este lugar de
transição e – a partir da metáfora de “subir e descer do tablado” – há outras
dinâmicas sociais e culturais estabelecidas entre os grupos de fandango. Enquanto
um grupo dança o batido alguns batedores dos outros grupos ficam ao redor
batendo o tamanco e a cada fandango batido dançam-se dois bailados (Figura 4).
Figura 4 - Fandango Bailado. Fonte: Foto de Ivan Ivanovick
Assim, no fandango bailado todas as pessoas que em um momento eram
espectadoras sobem no tablado e se tornam protagonistas da dança. É interessante
observar que há dinamismo na estrutura do lugar, nas relações que se constituem
neste ambiente e no modo de fazer fandango, o que corrobora com o que se
entende pela cultura popular – movente e instável.
O diário de bordo como descrição de ação é o relato vivo de uma experiência
que foi tecida diariamente, sendo costurada por palavras, falas e ações
corporificadas que se sobressaíam pelos afetos e sensações da experiência do
campo. Mesmo que a produção da dissertação seja, em determinados momentos,
uma caminhada solitária, é a experiência de campo que a inspira, os afetos do
campo são transportados para a escrita que pode revelar sensações e expressões.
30
A composição da escrita se dá ancorada na experiência, na qual sujeito e objeto se
fazem juntos, compartilhados nos momentos autorreflexivos da pesquisadora e nos
compartilhamentos e reflexões com a orientadora.
O Fandango pede passagem e a pesquisa de campo significou a abertura de
um caminho, deu voz ao inaudível e abriu espaços para uma cultura invisibilizada. O
território do Fandango carrega uma história anterior, suas tradições e costumes,
então o cartógrafo começa sua pesquisa no meio de algo que já está em processo,
por isso a produção vai além das formas representadas e das informações
coletadas, e é preciso entender que o próprio território presente possui
processualidade. Assim, a pesquisa pode dizer muito, tanto sobre o presente quanto
sobre o passado em movimento, caminhar com ela nos transpõe e transforma o
futuro a cada instante. É preciso estar no campo, visitar e experienciar o objeto que
nos interessa, ser afetado por aquilo que nos afeta. No fandango, acessar a
experiência de cada sujeito da pesquisa, fazer conexões e descobertas, criar elos e
se permitir viver no cruzamento de territórios é necessário para aproximar o olhar
estrangeiro do território que passa a ser sua habitação, podendo explorá-lo com
olhares, escutas, pela sensibilidade, pelos ritmos musicais, pelos movimentos da
dança.
Ir a campo sugere uma cognição ampliada, aberta aos planos dos afetos, na
qual a sensibilidade do cartógrafo dá espaço para as intensidades buscarem
expressão. No caso do Fandango foi necessário pesquisar dançando e dançar
pesquisando, ao mesmo tempo que pesquisar cantando e cantar pesquisando, ou
ainda pesquisar tocando e tocar pesquisando, num constante estado de
aprendizagem. Desta forma, é possível dizer que da simplicidade e singeleza da
pesquisa um elo nasce do caminho que ao conhecer se constitui, e ao se constituir o
caminho pesquisador também é constituído.
Ao habitar um território existencial nos é possibilitada a experiência de
construir ali um novo território que consiste em construir um saber com o Fandango
e não sobre o Fandango. A experiência ao habitar e se reinscrever neste território é
singular e implicada, transformadora e reveladora. A experiência vivida na Ilha dos
Valadares foi um momento tanto de desterritorialização como de busca por
habitação, por afetividades, por encontros. Foi um encontrar-se comigo mesmo,
além do encontro com os sujeitos da pesquisa, foi a aproximação do pesquisador
com o objeto, e, na maioria das vezes, foi um sentir-se parte do objeto, parte do
31
processo de pesquisa não apenas como observadora, mas sim como agente
imbricada na processualidade do Fandango.
A pesquisa de campo do Fandango realizada na Ilha dos Valadares permitiu
reconhecer as pistas metodológicas apresentadas no próprio percurso, pois o
processo se fez no caminho e a experimentação tomou lugar do experimento,
fizeram sentido os versos de Fandango que dizem: “No Fandango nada se ensina,
tudo se aprende”, o aprender tomou a cena e se deu em cada olhar, suspiro,
presença ou ausência de fala, em cada toque de viola ou movimento da dança.
Surgiram perguntas de respostas inacabadas, fazendo-me recuar das deduções ou
soluções prévias, as conexões com mestres e aprendizes foram se expandindo em
todos os sentidos, compondo arranjos e desarranjos, foram criadas alianças entre
pesquisador e objeto, que, de tão forte o elo, deixaram de ter essa divisão “entre” e
simplesmente resultou num vínculo.
Conforme Fonseca (2009), pela cartografia foi possível dedicar-me ao que
excede, ao que enevoa e embaralha os retos caminhos da razão. Foi um estado de
perder a posição central em um processo a ser conduzido, e de me reconhecer
como corpo-de-passagem. Assim, a pesquisa foi a possibilidade de extrair do mundo
do Fandango os sentidos, de atuar pela afetividade, e através dela fazer
transparecer o invisível, o impensado, o indizível. A pesquisa de campo fez-me abrir
para o sensível, criar laços com o território existente, desfocar pontos de vista e me
constituir neste processo de construção do objeto. No pesquisar se fez pesquisa e
se fez pesquisadora.
32
2 TRADUÇÃO – O ESPAÇO FRONTEIRIÇO DA CULTURA
2.1 RESSIGNIFICAR E TRADUZIR – ENTRE-LUGARES DA CULTURA POPULAR
Primeiro eu peço licença
Que assim foi o meu ensino,
Depois da licença dada
Eu mesmo me determino.
Versos de fandango da Ilha dos Valadares
Os deslocamentos, tanto espaciais quanto conceituais, com os quais me
deparei ao iniciar esta pesquisa foram e são processos de tradução, de
ressignificações e de novos olhares. Na busca por compreender a cultura popular
pude fazer uma releitura do conhecimento que trazia em minha bagagem –
metaforicamente falando, e, articulando com as vozes dos autores, meu saber foi
sendo atravessado e contaminado por novos saberes, sendo reinscrito e relocado.
Foram momentos constantes de instabilidade e negociação que me fizeram
compreender o significado da palavra tradução e o entendimento alargado da cultura
popular.
Etimologicamente, a palavra cultura vem do latim “colere”, que significa o
cuidado dispensado ao campo, ao gado, ao cultivo agrícola. Até o século XIII o
termo designava um estado de terra cultivado (algo que está dado), aos poucos a
palavra passa a referir-se à ação de cultivar a terra (algo em processo) (EAGLETON,
2011, p. 9). Se cultura significa cultivo, um cuidar que é ativo, daquilo que cresce
naturalmente, o termo passa a sugerir uma dialética entre o natural e o artificial,
entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. Implica a existência de
uma natureza ou matéria-prima além de nós (realista), mas tem também uma
dimensão construtivista, já que esta matéria-prima é elaborada de forma
humanamente significativa (EAGLETON, 2011, p. 11).
“Tenho quase tanta dificuldade com „popular‟ quanto tenho com „cultura‟.
Quando colocamos os dois termos juntos, as dificuldades podem se tornar
tremendas” (HALL, 2010, p. 273). A declaração de Stuart Hall nos dá a ideia de que
entender a cultura popular é diferente de conseguir conceituá-la e que mesmo o
mais profundo entendimento possui lacunas. Sua compreensão pode ser reinscrita a
33
todo o momento, pois a cultura é hibrida e dinâmica e qualquer tentativa de
conceituação apresentará faltas e falhas. Porém algumas posturas, como a
percepção, o olhar e a sensibilidade do pesquisador, bem como sua disposição em
se realocar, se reposicionar e ressignificar frente às diferenças culturais, são
determinantes no entendimento do processo da tradução da cultura popular.
A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma arqueologia. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu trabalho produtivo. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. [...]. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2013, p. 49).
A cultura, e, assim como ela, o Fandango Paranaense, possui dinamismo e
transitoriedade, está sempre em processo, se reinventando e transformando, é
constantemente reinscrita e sua simbologia é mutável, negocia com o tempo e o
lugar e com todas as relações e saberes que a envolvem. Stuart Hall (2013)
complementa:
[...] em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a cultura popular em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma percepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes e subordinadas. Observa o processo pelo qual essas relações de domínio e subordinação são articuladas. Trata-as como um processo: o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. Em seu centro estão as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da cultura – isto é, a questão da luta cultural e suas muitas formas (HALL, 2013, p. 285).
A definição apresentada reconhece a cultura e todas as suas formas como
compostas de antagonismos e instabilidades. Não há fixidez na cultura popular,
assim não é possível garantir a estabilidade dos seus signos. A compreensão da
tradição apresentou, historicamente, um posicionamento fixo e radical, porém ela é
entendida como reinvenção, pois os signos e símbolos culturais ao serem
incorporados em determinado campo social são ressignificados, e não apenas
34
reproduzidos e apropriados, os símbolos são atribuídos pelas culturas locais em que
se inserem. A partir do exposto, apresentarei uma discussão acerca das tradições e
seus processos de tradução cultural, articulando os conceitos que permeiam este
entendimento.
O autor Homi Bhabha (2013) faz uma leitura sobre a articulação da diferença
cultural e a tradição:
A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais e étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O direito de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição e de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão na „minoria‟ (BHABHA, 2013, p. 21).
O Fandango Paranaense, assim como grande parte das manifestações
populares, passou por diversos processos, apresentando tentativas de permanência
e resistência, sendo esta última um esforço de redesenhar o passado, no qual criou
estratégias de reinscrição e condições de sobrevivência, por estarem condicionados
aos poderes políticos e sociais. Para o mestre Aorélio Domingues15, isso aconteceu
por que
[...] o Fandango teve vários processos de modificação, mesmo na época do Império ele era proibido porque ele era tido como muito lascivo, muito barulhento. Então tem muitos registros inclusive, até no livro do professor Magnus, que comenta sobre essas proibições, e que as pessoas que ditavam essas regras elas colocavam que o fandango tinha que ser arrumado, tinha que ser mais ponderado ou tinha que ser feito de outra forma, ou só feito por pessoas que conseguissem paga, ou seja, elitiza já naquela época (DOMINGUES, 2015).
O mestre acredita que, apesar do posicionamento do Estado em relação ao
fandango, houve a persistência da tradição, pois foram criadas estratégias de
negociação para dar continuidade à manifestação. Mestre Aorélio (2015) acredita
que o Brasil, no período de 1400 a 1500, era um território sem lei e por isso foram
tomadas provisões para “arrumar” o fandango. Para ele, “o fandango se fazia no
meio da caboclada, da jagunçada, pessoal bêbado dançando com índio, com índia,
15
Entrevista concedida por Aorélio Domingues. Entrevista (Dez. 2015). Entrevistadora: Thais Ferreira.
35
enfim, com quem tivesse por aqui [...]. Era uma brincadeira de um território onde não
tinha lei” (DOMINGUES, 2015), e possivelmente isso o tornou lascivo, bagunçado, e
resultou em proibições e leis de organização. A tentativa do Poder Público era que o
Fandango se espelhasse nas danças tradicionais da corte, mais ponderadas e
comportadas, e que fosse feito por pessoas que pudessem pagar, em casas de
pessoas da elite. Assim, por um tempo acabou aquela brincadeira popular
tradicional.
Para Bhabha (2013), o passado é reencenado e as diferenças culturais são
responsáveis por essa articulação da tradição, introduzindo outras temporalidades
incomensuráveis na sua invenção. É importante reconhecer que nem todas as
experiências históricas são visíveis e neste entre-tempo e entre-lugar da cultura
ficaram tradições esquecidas. Para Santos (2010), as tradições são imposições do
Ocidente ao mundo e os interesses do Ocidente invisibilizaram muitos fatos e
acontecimentos históricos. E, ao propor uma visão mais ampliada das experiências
históricas, ele sugere:
Dar voz a tradições do Ocidente que foram esquecidas ou marginalizadas porque não se adequavam aos objetivos imperialistas e ocidentalistas que vieram a dominar a partir da fusão entre modernidade ocidental e capitalismo. Trago à colocação estas experiências e tradições sem qualquer intenção de recuperação histórica. O objetivo é intervir no presente como se ele tivesse outros passados para além daquele que fez dele o que ele é hoje. Se podia ter sido diferente, poderá ser diferente. O meu interesse é mostrar que muitos dos problemas com que hoje se debate o mundo decorrem não só do desperdício da experiência que o Ocidente impôs ao mundo pela força, mas também do desperdício da experiência que impôs a si para sustentar a imposição aos outros (SANTOS, 2010, p. 522).
No caso do Fandango, os processos históricos que o negaram e proibiram
foram responsáveis por invisibilidades, pois as imposições delinearam suas
traduções e obscureceram fatos e acontecimentos importantes. Para o mestre
Eugênio16 (em memória), no Fandango isso se resume a mais ou menos vinte anos
de invisibilidade:
A polícia interveio no Fandango. Ele chegava, se não tirava licença, ele mandava fechar a noite. O inspetor ia lá e parava o fandango. [...] E então, se é o fandango e não tirava licença do fandango: “Não tem licença, pode parar!”. [...]. Então, por esse motivo, foi acabando, foi diminuindo. “Ah, não
16
Mestre Eugênio dos Santos foi um grande representante do fandango, exímio tocador de viola, entusiasta da cultura popular. Faleceu no ano de 2011, deixando um legado para os caiçaras residentes da Ilha dos Valadares.
36
vou fazer mais” e foi e acabou. Acabou e levou mais ou menos uns 20 anos sem fandango (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 69).
Essas ausências balizaram o Fandango limitando os saberes e fazeres
acerca da manifestação. Ao ser entrevistado pelo Museu Vivo do Fandango, mestre
Eugênio disse: “Hoje até está sendo bom a gente fazer uma afirmação dessas aqui.
Muita coisa (da história do nosso Brasil) ficou pra depois, depois e depois, e não
puseram, não é verdade? Esqueceram ou não tinha valor...” (PIMENTEL; GRAMANI;
CORRÊA, 2006, p. 68). E o mestre complementa: “Ah, fandango não tem valor! Tem
sim, tem bastante valor” (p. 68). A reflexão do mestre acerca do esquecimento do
fandango reforça a afirmação anterior de Santos, o qual diz que “se poderia ter sido
diferente, poderá ser diferente” (SANTOS, 2010, p. 522), quando o autor propõe
uma distância em relação às tradições teóricas e culturais, é para poder enxergar as
tradições até então invisibilizadas pela história, por um novo viés, menos alienante e
mais emancipatório (SANTOS, 2010). É possível que alguns resquícios históricos
estejam sendo salvaguardados e renegociados, como é o caso do Fandango
Paranaense, e que as tradições não sejam mais compreendidas como a
cristalização, conservação ou manutenção da cultura. Hall (2013) nos apresenta
esse olhar diferenciado, sem ranços do passado no presente, ao conceito da
tradição. Ele diz:
A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas. Está muito mais relacionada às formas de associação e articulação dos elementos. Esses arranjos em uma cultura nacional-popular não possuem uma posição fixa ou determinada, e certamente nenhum significado que possa ser arrastado, por assim dizer, no fluxo da tradição histórica, de forma inalterável. Os elementos da tradição não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância (HALL, 2013, p. 287).
As tradições do Fandango foram compostas por processos de reorganização
e articulação das diferenças. Os caiçaras constantemente criaram estratégias de
sobrevivência frente às instabilidades culturais. Mestre Romão conta que após a
primeira revolução do Paraná-Santa Catarina, o Fandango foi acabando. “Por quê?
Porque o camarada se alistava para servir o Exército. Quando veio a convocação
dele pra servir o governo, pra defender a fronteira, ele corria pro mato. Aí o governo
mandava buscar ele de qualquer jeito pra ir defender” (PIMENTEL; GRAMANI;
CORRÊA, 2006, p. 52). O mestre conta que neste período a família de quem servia
37
ficava sozinha no sitio, e ao terminar a revolução o camarada voltava, mas ficava no
quartel. “Aí depois veio outra, de 42 a 45, essa Guerra Mundial. Aí acabou tudo
(Fandango)”. Além do afastamento dos caiçaras da sua terra e sua família, que os
distanciou das práticas sociais e culturais, vieram os evangelistas atribuindo valor
pecaminoso ao Fandango. “Depois da guerra foi uns evangelistas com a Bíblia lá,
perguntava ao camarada: „O que é?‟, „Vou dançar fandango‟, „Ah, o senhor trabalhou
tanto tempo, vai morrer e não vão se salvar?‟ [...]. Aí acabou-se de uma vez”
(PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 53). Os caiçaras, ao invés de dançar
fandango, iam para a cidade, seguiam a religião e deixavam pra trás sua vida no
sítio e práticas culturais.
Neste sentido, os significados do Fandango para os caiçaras foram sendo
modificados e seu modo de vida se ressignificou frente aos cruzamentos de valores
sociais. Para Santos (2010), as lutas culturais são mais intensas no ponto em que as
tradições se encontram ou se cruzam, conferindo a elas novas ressonâncias e novas
valências. Ou seja, as tradições não se fixam para sempre, pois as culturas,
concebidas como formas de luta, constantemente se entrecruzam. Hall
complementa:
Isso nos alerta contra as abordagens autossuficientes da cultura popular que, valorizando a “tradição” pela tradição, e tratando-a de uma maneira não histórica, analisam as formas culturais populares como se estas contivessem, desde o momento da sua origem, um significado e valor fixo e inalterável (HALL, 2013, p. 288).
Neste sentido, a limitação e fixidez da tradição não está no conceito, mas sim
na interpretação e compreensão que se tem dele. Bhabha (2013) afirma que os
embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem
consensuais quanto conflituosos, podendo confundir as definições de tradição. Os
entraves encontrados na tentativa de compreender as tradições e a busca por
ressignificá-las são formas de luta e sobrevivência cultural, os quais encontram na
cultura popular a possibilidade de serem reinscritos.
Boaventura de Souza Santos (2010) compreende as tradições culturais como
uma imposição do Ocidente ao mundo e acredita que para reinventar a
emancipação social é necessário criar uma distância em relação a essas tradições
teóricas que nos conduziram ao beco sem saída em que nos encontramos. Os
38
sujeitos culturais que não faziam parte do processo de mudança cultural poderiam, a
partir daí, assumir outro posicionamento na história. O autor afirma:
[...] devolver alguns dos objetos furtados intramuros é fundamental para criar um novo padrão de interculturalidade, não só no mundo, como também no interior do Ocidente. Não há muito a esperar da interculturalidade que é hoje defendida por muita gente no Ocidente se ela não partir da recuperação de uma experiência originária de interculturalidade. [...] só um Ocidente intercultural poderá querer e entender a interculturalidade do mundo e contribuir ativamente para ela. E o mesmo se aplica a outras culturas do mundo passado e presente (SANTOS, 2010, p. 522).
Os furtos intramuros no fandango resultaram em lacunas históricas que
atenuaram por determinado tempo sua continuidade, tamanho foi e continua a ser o
dano causado pelo Ocidente imperialista e a colonização na busca por hegemonia.
É preciso dar voz às tradições, ouvi-las e percebê-las como necessárias no
processo de tradução, aquelas tradições esquecidas e marginalizadas pela história
imposta pelo Ocidente, precisam ressignificar as experiências do presente, não no
sentido de resgate ou recuperação, mas como forma de intervenção no presente,
considerando os passados invisibillizados pela história. Para o autor, é preciso se
desvincular do pensamento abissal17, que consiste em um sistema de distinções
visíveis e invisíveis, que separa “este lado da linha” do “outro lado da linha”,
tornando o „outro lado da linha‟ inexistente. Para isso, Santos (2010) propõe um
diálogo intercultural18 e a revisão das tradições teóricas, carregadas do pensamento
etnocêntrico19. Somente ela permitirá que o mundo se reconheça na sua infinita
diversidade, a qual inclui também a infinita diversidade das influências cruzadas, das
semelhanças e continuidades.
17
Conceito adotado por Boaventura de Souza Santos (2010). Para o autor, as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria, portanto, estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por uma justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”. 18
Santos (1997) propõe um diálogo intercultural contra o universalismo, que se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referências normativas capacitantes. Na interculturalidade, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes, e, em grande medida, incomensuráveis. O reconhecimento de incompletudes mútuas é a condição de um diálogo intercultural. 19
Conceito apresentado por Jean-Marie Pradier (1995). O pensamento etnocêntrico se constitui em reconhecer a diversidade cultural desde que hierarquizada, seja logicamente, ontologicamente, seja, ainda, historicamente ou retoricamente. A difusão etnocentrista como gênero universal e critério de civilização provocou prejuízos à cultura, traduzindo-a através de fórmulas europeias.
39
Para falar sobre tradição, como já foi abordado nas páginas anteriores,
Santos (2010) a apresenta como a imposição do Ocidente ao mundo. Nesse mesmo
sentido, Bhabha (2013) apresenta a existência de um discurso naturalizado,
unificador, da “nação”, dos “povos” ou da tradição popular, o qual está incrustrado da
particularidade da cultura, e, sendo assim, não pode ter referências imediatas. Para
Bhabha (2013), a grande, embora desestabilizadora, vantagem dessa posição é que
ela nos torna progressivamente conscientes da construção da cultura e da invenção
da tradição.
As culturas tradicionais se tornaram de algum modo recrutas da modernidade,
pois, por serem normalmente representadas como “fixadas em pedra”, apresentam
uma forte delimitação histórica e social. Porém, em seu sentido histórico mais amplo,
muitas culturas tradicionais se tornaram formações híbridas, como é o caso do
Fandango Paranaense, o qual está sempre em processo, sendo reinventado e
ressignificado, apesar de ter marcante delimitação histórica e social. A partir do
hibridismo20, enquanto valor cultural e tradutório que considera as tradições, se faz
necessário repensar a história e a cultura.
Para o autor Stuart Hall:
A tradição funciona, em geral, menos como doutrina do que como repertórios de significados. Cada vez mais, os indivíduos recorrem a esses vínculos e estruturas nas quais se inscrevem para dar sentido ao mundo sem serem rigorosamente atados a ele em cada detalhe da sua existência. Eles fazem parte de uma relação dialógica mais ampla com “o outro” (HALL, 2013, p. 81).
20
O conceito de hibridismo será adotado para pensar os processos de tradução cultural nesta pesquisa. Tendo como base os autores Bhabha (2010), Hall (2013) e Canclini (2015). Para Bhabha (2010), o hibridismo parece implicar uma condição e um processo. É uma condição do discurso colonial na sua enunciação, dentro da qual a autoridade colonial/cultural é construída em situações de confronto político entre posições de poderes desiguais. É também um processo de negociação cultural, ou, no que poderia ser entendido como “um modo de apropriação e de resistência, do pré-determinado ao desejado”. Para Stuart Hall (2013), a hibridização acontece no contexto da diáspora e no processo de tradução cultural que os indivíduos vivenciam para se adaptarem às matrizes culturais diferentes da sua de origem. Para o autor, o hibridismo trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico, uma vez que nunca se completa, não se refere a indivíduos híbridos. Assim, o hibridismo não é um processo que traz ao sujeito a sensação de completude ao dialogar com outras culturas, pelo contrário, é o momento onde o sujeito percebe que sua identidade está sempre sendo reformulada, ressignificada e reconstruída, num jogo constante de assimilação e diferenciação para com o “outro”. Para Canclini (2015), que analisa o hibridismo por movimentos sociais, políticos e artísticos na América Latina, o processo de hibridação garantiria a sobrevivência da cultura popular e levaria a um processo de modernização da cultura de elite. O hibridismo cultural traz consigo a ruptura da ideia de pureza. É uma prática multicultural, possibilitada pelo encontro de diferentes culturas.
40
O dialogismo que se estabelece entre os indivíduos e os saberes tradicionais
vê nas experiências da tradição cultural lugares de entrecruzamento de signos e
valores. As trocas e a negociação cultural que ocupam o entre-lugar possibilitam as
ressignificações, apropriações e reinscrições do tradicional no presente, de uma
cultura na outra.
Conforme Hall, “a cultura popular não é, num sentido „puro‟, nem as tradições
populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o
terreno sobre o qual as transformações são operadas” (2013, p. 275). A construção
e reconstrução constante que acontece na cultura, não apenas de forma individual,
mas também na coletividade, é um modo de vinculação das inúmeras tradições e
práticas ao mesmo tempo que é um deslocamento em busca de novas
compreensões e percepções da sociedade, visto que isso acontece por
necessidades de sobrevivência cultural. Como afirma o autor: “não existe uma
cultura popular íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das
relações de poder e de dominação culturais” (HALL, 2013, p. 281). Não é possível
ignorar relações absolutamente essenciais de poder, pois são aspectos intrínsecos
das relações culturais e interferem diretamente em seus processos.
A autora Jane Desmond, em seu artigo “Corporalizando a Diferença: questões
entre Dança e Estudos Culturais” (2013), exemplifica essa necessidade de
adaptação das culturas para a aceitação em “outra” cultura. Como exemplificação
desse processo, a autora apresenta o conceito de bilinguismo corporal através da
observação em campo de uma dança africana-senegalesa, que, para ser aceita
entre os brancos, precisa ser verticalizada, modificada e alterada. Desmond (2013)
comenta que o estilo corporal europeu no corpo africano ia deslizando conforme a
noite ia avançando. Ou seja, os africanos iniciavam a noite com uma dança mais
vertical, seguindo modelos colonizadores, mas no avançar das horas os joelhos iam
flexionando e o corpo todo se entregava a uma dança de raiz, com traços de história
e identidade. São essas as relações a que estamos subordinados, a cultura popular
se constitui dentro do lugar de readequação e reapropriação, local onde práticas
tradicionais são transformadas e traduzidas para serem reinseridas. Este é apenas
um exemplo das relações de poder a que estamos submetidos dentro da sociedade,
mas outras formas de poder podem ser percebidas, como as práticas de resistência
da cultura indígena, negra e da própria concepção do popular como algo “menor”,
41
“para baixo”, “inferior”, e a cultura dominante como algo “maior”, “para cima” e
“superior”, metaforicamente explicando.
No Fandango Paranaense o bilinguismo corporal apontado por Desmond
(2013) pode ser observado nas diferenças de posturas corporais dos dançarinos nos
palcos em apresentações ou nos bailes promovidos quinzenalmente no Mercado do
Café, em Paranaguá. Ao deslocar a dança do seu ambiente, assumem-se pelos
caiçaras modos mais refinados da dança, como a postura corporal verticalizada, a
cabeça erguida, o movimento intenso das saias das mulheres e o batido mais
enérgico dos tamancos dos homens. Em relação a essa perspectiva, o autor Stuart
Hall acredita que:
[...] há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural (HALL, 2013, p. 282).
Esta é uma luta contínua de aceitação e resistência, que apresenta a cultura
popular como um campo de constante negociação, tal qual um campo de batalha,
que está sempre em processo de adaptação e mutação, sem perdas ou vitórias,
mas imerso em um dinamismo de transmissão e ressignificação. Nesse sentido,
podemos dizer que o Fandango Paranaense pode ser entendido como incompleto e
em constante processo, com signos e valores atravessando-o, no qual o encontro
com as negociações é a possibilidade de lutar pela sua sobrevivência e
continuidade. Conforme Bhabha, é preciso:
[...] encarar o conceito de cultura para além da canonização da ideia da estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato de sobrevivência cultural (BHABHA, 2013, p. 276).
Bhabha (2013) apresenta a cultura como estratégia de sobrevivência por meio
de dois aspectos: transnacional e tradutória. Transnacional porque há o trânsito
cultural nos deslocamentos culturais. E tradutória porque essas mesmas histórias de
deslocamento trazem a questão do que a cultura significa, ou o que é significado por
42
cultura. A dimensão transnacional se refere à diáspora21, migração, deslocamento,
relocação, e a transformação cultural resultante destes processos torna a tradução
uma forma de significação complexa.
Para Bhabha (2013), há um lugar híbrido desse valor cultural e considera que
não pode ser recusada nem negada a alteridade, por constituir valor simbólico de
significação cultural e social. A reinterpretação e reinscrição da história através dos
deslocamentos culturais, considerando as relações de distinção e diferença,
permitem a tradução cultural e expansão dos lugares, territórios e olhares que a
história significou. Assim, descontruir os signos é um acerto com o presente para
transformar a noção restrita do sujeito cultural como um agente de mudança
histórico e social.
Para alguns autores, o hibridismo tem sido a palavra chave para pensar a
cultura, pois cada vez ela se apresenta mais mista e diaspórica. Porém é necessário
destacar que os hibridismos não são resultantes de negociação em que há mútua
influência e reciprocidade; tanto ele quanto as traduções acontecem no interior de
relações de poder políticos e sociais, os quais influenciam diretamente nas trocas
culturais e na leitura que delas fazemos. No Fandango Paranaense isso não só
aconteceu como é uma constante na sua trajetória histórica e social. É possível
identificar inúmeros momentos em que esta manifestação popular foi atravessada
por diferenças culturais e relações de poder, resultando em processos híbridos, isso
porque todas as culturas são atravessadas umas pelas outras, não podendo ser
puras ou isoladas, mas sim heterogêneas, diferenciadas e não monolíticas.
Na cultura popular, como na cultura em geral, não é possível descrever
valores e comportamentos fixos, mas é necessário ressaltar que existem tendências
e práticas mais tradicionais, como é o caso de alguns aspectos da música e da
dança do Fandango Paranaense. Por exemplo, na dança o tamanqueado foi tendo
seu significado alterado, iniciou com o batido para descascar o arroz, conforme o
batedor Seme (2006): “Antigamente fazia o gambá, sabe? Numa sala, fazia em volta
do arroz, tudo amontoadinho... no meio ficava só os batedor... eles iam batendo pro
arroz sair fora do cacho. [...] Aí começou a evoluir o fandango e começou a batida”
21
A diáspora, segundo Paul Gilroy (2001), significa a captura, a travessia, a chegada a um novo ambiente e consequente adaptação. Para Gilroy, “parece imperativo impedir que a diáspora se torne apenas um sinônimo de movimento”. Segundo Stuart Hall, o conceito de diáspora está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um “outro” e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora.
43
(PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 71). A batida com a intenção de
descascar o arroz foi possivelmente sendo transformada em marcas de Fandango,
sua simbologia é mutável e a relação do batido com o trabalho foi transposta para a
relação do batido com a dança. Há dinamismo nos signos do Fandango, os quais
vão se readaptando e transmutando constantemente. Para Hall,
Hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução. Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas multiculturais e em outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. [...] Ela define a lógica cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental tem afetado o resto do mundo desde o início do projeto globalizante da Europa. [...] O hibridismo não se refere a indivíduos híbridos, que podem ser contrastados com os “tradicionais” e “modernos” como sujeitos plenamente formados. Trata-se de um processo de tradução cultural, agonístico, uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indecibilidade (HALL, 2013, p. 82).
Disso decorre a formação dialógica da relação entre coletivos e indivíduos,
como integração de uma cultura mista, traduzida, híbrida, que pode ser percebida e
evidenciada nas diásporas multiculturais, e em outras culturas e comunidades do
mundo pós-colonial. A definição de Bhabha sobre a importância do hibridismo na
tradução cultural faz refletir sobre esses conceitos de um modo expandido:
Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a diferença do outro revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e significação (BHABHA, 2013, p. 83).
As negociações culturais, a partir das diferenças, são resultantes de
identidades deslocadas e múltiplas que, ao mudar de lugar, produzem um novo
localismo, o qual não é apenas resíduo do passado, mas sim algo novo que se
reposiciona para transformar e modificar a cultura. A tradução se dá no contato com
as diferenças, com os estranhamentos e com a busca do entendimento, ou seja, só
é possível traduzir aquilo que é preciso interpretar, revisar, exprimir ou manifestar. A
tradição pode ser um caminho através do qual percorrem as traduções. Não se pode
negar a tradição para que aconteça a tradução, pois são as rupturas nas tradições
que geram, consequentemente, novas traduções. Conforme Bhabha:
44
As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de uma tradição cultural já autenticada; elas são os signos da emergência da comunidade concedida como projeto – ao mesmo tempo uma visão e uma construção – que leva alguém para “além” de si para poder retornar, com um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente (BHABHA, 2013, p. 22).
Para o autor, o ato de ir “além” não se refere a condições espaciais ou
temporais, como progresso ou futuro, mas sim como algo irrepresentável, no qual o
presente não é mais encarado como uma ruptura entre passado e futuro, não mais
uma presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata vem a ser revelada por
suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias.
A tradução cultural considera o entre-lugar, os deslocamentos e a fronteira
como o entrecruzamento, no qual algo começa a se fazer presente e não onde algo
termina. Não é nem um novo horizonte e nem um abandono do passado, é uma
negociação entre sujeitos e a articulação de diferenças culturais. Stuart Hall, em A
Diáspora, afirma:
A diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura. [...] Sempre há o deslize inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado. A fantasia de um significado final continua assombrada pela “falta” ou “excesso”, mas nunca é apreensível na plenitude de sua presença a si mesma (HALL, 2013, p. 36).
O pluralismo dos significados culturais é o entrecruzamento de valores e
saberes, móveis e dinâmicos, o qual possibilita o espaço aberto e fluido de fazerem
sentido as traduções, porém estas nunca são completas, fixas e rígidas, e sim
constantemente transformadas. Para além da incompletude, as traduções também
podem ser enviesadas, não libertas de processos políticos e de imposições sociais,
e, por vezes, as traduções são vigiadas e inseridas em uma lógica local, que não
permite um processo espontâneo de ressignificação das tradições.
As transformações e os entrecruzamentos dão sentido ao entre-lugar, que
representa, para Homi Bhabha, o lugar de negociação, da articulação das
diversidades sociais e culturais onde acontece o hibridismo cultural. O entre-lugar é
um espaço de briga, luta e negociações, no qual residem as traduções. A busca por
compreender esse espaço e articular com as vigilâncias políticas e sociais faz da
tradução uma possibilidade de tornar visível o que as tradições, ou até mesmo
outras traduções, não deram conta de explorar. O entre-lugar não se refere ao
45
passado nem ao futuro, mas é o retorno ao passado para compreender o olhar
presente; é habitar um espaço intermediário de retorno ao presente que reinscreve a
contemporaneidade cultural, e entendê-lo como parte de um processo. Assim,
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte de continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retorna ao passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2013, p. 29).
Para tocar o fundo em seu lado de cá (BHABHA, 2013) é preciso ocupar o
espaço intermediário e intervir no aqui e agora, é necessário o reconhecimento de
outro lugar e outra coisa, que considera a experiência como fator determinante,
capaz de fazer surgir a invenção criativa dentro da existência. Invenção que pode
assumir o caráter de sobrevivência cultural, pois as práticas de transmissões
culturais passam pelo processo de reapropriação, assim a cultura se torna uma
prática desconfortável, de sobrevivência, e perturbadora “entre arte e política, o
passado e o presente, o público e o privado – na mesma medida em que seu ser
resplandecente é um momento de prazer, esclarecimento e libertação” (BHABHA,
2013, p. 281).
O Fandango Paranaense é um exemplo de prática desconfortável,
perturbadora, de sobrevivência e suplementaridade, entre arte e política, entre o
passado e o presente, o qual está sempre em negociação, seja nas práticas dentro
da comunidade ou fora dela, seja na forma de fazer ou de pensar a manifestação.
Pode-se dizer que no Fandango há desconforto e ao mesmo tempo prazer; há
perturbação, mas também esclarecimento e libertação.
No Fandango, um dos lugares da sobrevivência cultural, os signos são
recodificados e as relações sociais são produzidas com/no corpo e não meramente
inscritas sobre ele, pois há um papel importante do discurso corporal na
continuidade da construção social e nas negociações culturais. Ao comunicar um
saber, ele é ressignificado em outro tempo e lugar, em outro contexto social, e esta
mudança resulta na alteração da sua significação, estabelecendo dialéticas
interculturais de conhecimentos que possibilitam as traduções culturais. Nas trocas
culturais há a complexidade das transmissões, quando as formas culturais migram
de um grupo a outro os significados são adotados, remodelados e/ou
46
ressignificados, e ao traduzi-los é possível observar que vínculos históricos e sociais
entre os grupos são mantidos, bem como as diferenças entre eles são perceptíveis.
O exercício reiterado da tradução vai revelando que os procedimentos desenvolvidos para conhecer outros saberes são os mesmos com que cada saber conhece a experiência do mundo em geral e não apenas a experiência epistemológica do mundo. Os processos de tradução, ainda que basicamente os mesmos, variam consoante os diferentes saberes pertencem à mesma cultura ou a culturas diferentes. Neste último caso, a tradução assume a forma de tradução intercultural e o seu exercício é particularmente complexo (SANTOS, 2010, p. 545).
A diversidade inesgotável de saberes e de experiências no mundo leva a
refletir sobre a possibilidade do desperdício de conhecimento e vivências, que
podem ficar invisibilizados pelas traduções. Ao observar o Fandango e perceber seu
potencial de pesquisa, pouco abordado e pouco visível, entendemos ser
fundamental deslocar o saber popular da Ilha dos Valadares para dialogar com o
saber científico na Universidade, à busca de articular dois universos distantes, mas
complementares.
Para Santos (2010), há uma divisão de realidades e de universos. O “outro
lado da linha” torna-se inexistente e é produzido como tal, visto que o pensamento
ocidental apresenta a divisão das linhas abissais e impossibilita a copresença dos
dois lados da linha. Isso resulta de uma tensão, de um lado por regulação social e,
de outro lado, pela emancipação social, algo é invisibilizado para que outro seja
visível, e possivelmente seja esta distinção que caracteriza os conflitos atuais.
Considerar a existência das invisibilidades e da diferença possibilita que seja feito o
reconhecimento dos saberes próprios e do outro, que encaminha para uma busca de
proporção e correspondência, podendo assim constituir a forma de tradução
intercultural proposta por Boaventura de Souza Santos. A cultura popular é um local
de transformação e de processo que considera as diferenças, inserindo-as de uma
nova forma e apresentando novos signos em outro contexto.
Santos (2010) apresenta o conceito da tradução pautado pela douta
ignorância, na qual cada saber conhece melhor os seus limites e possibilidades,
comparando-se com e percebendo outros saberes. Para ele, “a douta ignorância
consiste precisamente em levar ao máximo a consciência dessa incompletude. O
aumento da incompletude resulta da astúcia da douta ignorância” (2010, p. 545). A
douta ignorância, que advém da consciência da limitação dos saberes, tida como
47
essencial no processo de tradução intercultural, pode encontrar na ecologia de
saberes22 um caminho, pois a diversidade de experiência no mundo e de saberes
epistemológicos pode ter nela respostas às suas aspirações e interesses.
Para compreender essa invisibilidade de saberes e os “furtos” históricos
cometidos durante gerações, os quais causaram o empobrecimento da cultura e
desconsideraram as experiências do mundo, é necessário fazer uma releitura da
interculturalidade. A tradução intercultural apresentada por Santos (2010) é
revisionária, pois, para que ela aconteça, é preciso revisitar o passado com o olhar
do presente, para ter consciência dos fatos ignorados e, a partir daí, criar um novo
olhar para o momento atual, que consegue desvelar os “objetos furtados intramuros”
e fazer deles experiências significativas no agora, de forma a contribuir e possibilitar
o processo tradutório da cultura.
As abordagens apresentadas pelos autores acerca das tradições, traduções e
cultura popular para pensar o Fandango Paranaense apresentam consonâncias e
dissonâncias. É possível observar nas concepções diversas similaridades, como a
necessidade de expandir o entendimento da “tradição” além das fronteiras e das
teorias para abarcar outros espaços da cultura, reconhecendo as ausências e
invisibilidades históricas e epistemológicas. Tanto Homi Bhabha (2013) quanto
Stuart Hall (2013) dão maior ênfase à questão da sobrevivência cultural, enquanto
Boaventura de Souza Santos (2010) apresenta a preocupação em olhar para as
tradições esquecidas e negadas pelo ocidentalismo, para pensar a cultura presente.
As abordagens de Hall e Bhabha se preocupam com a ressignificação e reinscrição
da cultura, como formas de luta e resistência, refinam o olhar ao perceber o
hibridismo presente na sua compreensão e possibilitam a percepção ampliada da
cultura popular através dos processos de tradução. Santos se preocupa com as
questões epistemológicas, com a negação radical da copresença, as quais são
geradoras de conflitos modernos, e que precisam ser revistas e revisitadas no
22
O conceito de ecologia de saberes adotado por Boaventura de Souza Santos (2010) é demarcado pelas linhas cartográficas "abissais" que separavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial, e que subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo. A injustiça social global estaria portanto estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento "pós-abissal". A ecologia de saberes é uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A ecologia de saberes se baseia na ideia de que o conhecimento é interconhecimento.
48
sentido de que este lado da linha – entendido como regulador de relações sociais –
não torne invisível o outro lado da linha, onde ocorre a apropriação/violência,
marginalizando os saberes e fazeres culturais. Ele apresenta o pensamento
ecológico como uma possibilidade de pensamento pós-abissal.
Dentre as concepções de tradução cultural é possível identificar entre Hall e
Bhabha um diálogo que percebe este processo como resultante das articulações e
negociações das diferenças culturais, assumindo a cultura um dinamismo e
hibridismo latentes, proporcionando sua constante transformação, mutação e
ressignificação. Santos (2010) apresenta a importância do reconhecimento da douta
ignorância nos processos de tradução, da diversidade de conhecimentos e,
consequentemente, das diferenças epistemológicas, da transposição de linhas não
apenas abissais e geográficas, do olhar pós-abissal para o pensamento ocidental e
aposta na interculturalidade como a possibilidade de ser, fazer e traduzir.
Ao compreender as diferentes abordagens foi possível perceber a limitação
dos conceitos e a necessidade de que eles não sejam fixados e rígidos, mas
ressignificados e traduzidos constantemente. O diálogo entre os autores foi uma
possibilidade de interpretar a cultura, e em especial o Fandango Paranaense, por
outro viés, com a percepção alargada e posicionada no “entre lugar”, buscando os
“objetos furtados intramuros” e procurando constantemente “tocar o fundo do lado de
cá”. É importante ressaltar que todos os processos acima descritos – cultura
popular, tradição, tradução – estão submetidos a relações de poder políticas e
sociais que geram um campo de choque, conflito e luta, resultando em diversas
formas de resistência, sendo, então, necessárias constantes negociações para se
significarem.
As tradições residem em um terreno movente que é a cultura popular, a este
campo movente dá-se o nome de entre-lugar, e nele acontecem negociações
constantes de diferenças, resultando em rompimento de fronteiras e busca por
ressignificações. Ao considerar que ressignificar é traduzir, adota-se o hibridismo
como conceito chave para pensar as traduções culturais, compreendendo-o pela sua
incompletude e caráter de indecibilidade, sendo, desta forma, os processos híbridos
isentos de mútua reciprocidade e apresentando trocas imparciais. Assim, o que
podemos afirmar sobre as traduções culturais é que elas não se acabam, estão
sempre em processo, sendo reinscritas e ressignificadas.
49
É possível exemplificar essa processualidade em diferentes definições de
Fandango e suas traduções, apresentando-o em momentos históricos próximos, em
2006 e 2011. O fandango, em uma definição, é apresentado como “uma
manifestação cultural popular que reúne dança e música e possui regras estéticas
definidas. Em cada localidade, entretanto, existem características específicas,
criando assim uma realidade artística, rica e variada” (PIMENTEL; GRAMANI;
CORRÊA, 2006, p. 38). E sua definição, por outra via, afirma que “O fandango não é
encontrado em uma única configuração. Por suas complexidades estético-artísticas
visualizamos este fandango caiçara em múltiplos formatos [...]” (IPHAN, 2011, p. 10).
As definições acima apresentam linhas de convergência e divergência por
serem distintos processos de tradução da manifestação popular. Na primeira
definição o fandango é apresentado com regras estéticas definidas, assim, sua
compreensão é da permanência destas regras, sendo elas estáveis e inalteráveis,
porém na definição do Fandango como “complexidades estético-artísticas”, sua
compreensão é da multiplicidade e pluralidade dos seus formatos, que condiz com a
noção de cultura popular aqui apresentada. A tradução do Fandango Paranaense é
um permanente processo e compreende um diálogo vivo, inacabado e interminável.
Assim, cada tradutor, ao tentar apresentar definições, apresenta incompletude e
constante possibilidade de ressignificar suas traduções, aspectos estes que estarão
presentes ao longo da dissertação.
50
3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – REMINISCÊNCIAS
As danças populares brasileiras fazem parte de uma cultura híbrida e
dinâmica e estão locadas no entre-lugar de luta, resistência e negociações. Tidas
como marginais e invisibilizadas nos processos históricos e sociais, essas danças
apresentam uma busca por se fazer potência frente às imposições históricas,
políticas e sociais.
As pistas cartográficas que configuraram este capítulo se deram a partir da
discussão sobre as diferenças entre danças folclóricas e danças populares, bem
como no processo resultante dessa investigação que consistiu na busca por
compreender a noção de dança popular brasileira.
Este capítulo discorre sobre distintas noções de danças populares brasileiras,
partindo do contexto do Fandango e da influência do movimento folclórico brasileiro
na formação da concepção de dança popular no estado do Paraná, sendo
comunicado pelo Mestre Aorélio Domingues. Na sequência são apresentadas
distintas configurações de Danças Populares Brasileiras por diferentes
pesquisadoras, com objetos de estudo específicos. Apesar de apresentar a
perspectiva do mestre do Fandango acerca das danças folclóricas, para tecer esta
pesquisa adotarei o conceito de danças populares brasileiras.
3.1 DOS BATIDOS AOS BAILADOS – CONTEXTUALIZAÇÃO DO FANDANGO
O fandango Deus deixou
Pro regalo da pobreza
Quem se mete com fandango
Não se lembra da riqueza
Versos de Fandango da Ilha dos Valadares
O Fandango Paranaense ou Fandango Caiçara23 é uma manifestação popular
do sul do Brasil que reúne dança e música, com complexidade estético-artística,
assim, não possui uma única configuração, mas compreende múltiplos formatos
23
O caiçara é fruto do aporte cultural dos europeus, negros e índios, que viviam da pesca e da agricultura. Tendo vasto conhecimento do mar e da mata, sobretudo o que diz respeito à previsão do tempo, fundamental para a pesca e plantio, através de sinais como o tipo do vento, de nuvem, de maré, de corrente marítima, de fases e posições da lua (DIEGUES, 2004).
51
(IPHAN, 2011). Em cada localidade existem características específicas, criando uma
realidade artística rica e variada.
É possível dizer que ele possui múltiplas matrizes, pois é rico em detalhes e
técnicas, derivadas de diversas influências. Fandango reúne a ideia de festa,
realizado sempre sob a forma de divertimento coletivo. Não é possível dançar nem
tocar fandango sozinho. Ainda hoje são os mestres que constroem seus
instrumentos e tamancos para a dança. É uma manifestação popular, como tantas
outras, que envolve grande parcela da comunidade (DIEGUES, 2004).
Para Azevedo (1973, p. 32), “o Fandango, no Paraná, é uma festa típica dos
caboclos e dos pescadores habitantes da faixa litorânea do estado, na qual se
dançam várias danças regionais, denominadas marcas de Fandango”. O Caderno
sobre o Fandango “Mestre Eugênio e os tocadores de Paranaguá” descreve o
fandango como “uma dança de origem híbrida, dançada no seu início no litoral do
Paraná por negros e índios, com aspectos resultados da fusão das culturas
portuguesa, espanhola, africana e indígena” (SONORA BRASIL, 2002, p. 4).
O Fandango Paranaense acontece em diversas ilhas das cidades de
Paranaguá e Guaraqueçaba e na cidade de Morretes. O locus desta pesquisa é a
Ilha dos Valadares, pertencente ao município de Paranaguá, no Paraná. Conforme
Diegues (2004), essa região está entre as primeiras colonizadas pelos ibéricos, tanto
espanhóis quanto portugueses, que em inícios do século XVI disputaram a posse
dessa terra de fronteira. Esses colonizadores encontraram aí povos nativos de
origem Tupi que tinham sido precedidos por outros que deixaram um grande número
de sítios arqueológicos. A contribuição dos povos indígenas foi essencial para a
constituição dos instrumentos usados para a pesca, a caça e a produção de farinha
de mandioca, dos falares locais, dos nomes de acidentes geográficos, da fauna e da
flora.
O processo de colonização desta região foi de apogeus e decadências, e
assim surgiram os caiçaras, resultado da miscigenação entre os colonizadores
ibéricos, os índios e, posteriormente, os negros africanos.
Na segunda metade do século XVI, a busca pelo ouro deslocou os primeiros migrantes em direção à baía de Paranaguá. A exploração do ouro, intensificada nas primeiras décadas do século XVII, foi de fundamental importância para a ocupação do território de Paranaguá. [...] Em 1660, Paranaguá tornou-se Capitania, passando à condição de cidade em 1842. A baixa produtividade das minas da baía de Paranaguá, associada à
52
descoberta do ouro em Minas Gerais – em fins do século XVII –, levou a região a uma grave crise. O grande fluxo migratório em direção a Minas provocou o esvaziamento populacional e econômico de grandes áreas produtoras [...] (PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 50).
Embora o esvaziamento da região tenha resultado em estagnação
econômica, foi o movimento da mineração que povoou Paranaguá e suas pequenas
ilhas. Através do porto de Paranaguá e da navegação costeira o Paraná estabeleceu
relações econômicas com todo o país, sendo seu principal meio de transporte. Além
da estagnação econômica derivada da exploração de minérios em Minas,
Paranaguá passou por outros processos de decadências, tais como a especulação
imobiliária e as leis ambientais, que foram determinantes para o êxodo de caiçaras.
“Boa parte dos moradores da Ilha dos Valadares, onde reside a maioria dos
fandangueiros de Paranaguá, veio justamente de Guaraqueçaba” (PIMENTEL;
GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 50).
O folclorista Inami Custódio Pinto apresenta, em uma entrevista, outra
justificativa além do êxodo resultante das leis ambientais para o povoamento da Ilha
dos Valadares:
A Ilha de Valadares estava mais perto de Paranaguá, ela se tornou uma ilha de grileiros [...]. Tinha gente que vinha da IIha do Teixeira, Ilha do Mel, de Guaraqueçaba, de todos os cantos, atrás de assistência na “capital do litoral”, que seria Paranaguá. E não encontrando, pra não ter que voltar e morrer tão longe, eles faziam suas casinhas na Ilha de Valadares (SOUZA NETO, 2004, p. 227).
Muitas famílias vindas de Guaraqueçaba e região povoaram Valadares e
compuseram sua população. Fortes (2004) descreve que os caiçaras tinham a
família como unidade social de produção na roça, onde havia divisão de trabalho
entre homens, mulheres e crianças. Nos trabalhos mais pesados, como um plantio
de roça grande ou na colheita de arroz, usava-se o mutirão24 ou puxirão, que
consiste em uma forma de ajuda mútua entre os caiçaras. Normalmente o mutirão
ocorria nos fins de semana, quando os vizinhos cooperavam com um sitiante. Essa
forma de colaboração coletiva não tinha somente função produtiva, era também o
estreitamento de laços sociais.
24
Mutirão: também conhecido como pixirão ou puxirão, ocasião em que os vizinhos auxiliavam o dono da casa nos trabalhos da roçada ou plantação, após a plantação ou colheita o dono da casa oferecia um Fandango de agradecimento, o que era muito apreciado pelos trabalhadores.
53
Ao final de um dia de mutirão acontecia o Fandango, que era paga de
trabalho, a festa envolvia muita música, dança, comidas e bebidas típicas. Desta
forma, o Fandango possui caráter tanto de festa como de trabalho, estando atrelado
a estes dois universos, sendo impossível dissociar essas práticas para fazer
Fandango.
Se, por um lado, o fandango feito na ilha pode ser considerado um divertimento trabalhado, por outro, o fandango pode ser também apreendido enquanto obrigação. Para os moradores da ilha, o fandango é acima de tudo uma “função”. Há que se trabalhar muito para se fazer um fandango, seja para preparar o espaço da festa, seja para construir seus instrumentos. Fandango e trabalho são atividades que não se desvinculam (MARTINS, 2006, p. 3).
O Fandango ainda possui este caráter de “função”, mas os mutirões foram
ressignificados. Outras formas de ajuda mútua acontecem nas Ilhas atualmente, seja
um mutirão para preparar um baile, para fazer uma peixada, ou ainda para apanhar
caranguejo no mangue. O trabalho coletivo acontece, e ao fim do dia é possível se
divertir cantando e dançando Fandango. A manifestação só pode ser apreciada
dentro do universo da cultura popular, de trabalho e festa, da construção de
instrumentos e da culinária caiçara.
Para a festa do Fandango acontecer, a comunidade, ainda hoje, mesmo com todas as mudanças nesse processo, precisa se mobilizar. Há a necessidade de se conseguir um local para a realização do baile, alguém tem de chamar os músicos, há que convidar a todos que queiram comparecer. [...]. Providencia-se a comida, o tradicional barreado e a bebida, a mãe c‟á filha (mistura de aguardente com melado) e o fuscão preto (feito com vinho, aguardente, cravo e canela). Todo esse movimento vai abastecendo as pessoas de novas histórias, fortalecendo e recriando as relações entre elas, além de servir de ponto de encontro, de despertar lideranças, namoros, disputas, piadas e diversão para a semana, ou até que o próximo fandango se realize (MARCHI, 2004, p. 488).
A configuração histórica do fandango me instigou a pesquisá-lo, pois as
poucas referências que encontrava traziam um pessimismo em relação ao futuro do
Fandango, dando a ele uma vida de no máximo algumas décadas. Segundo
Azevedo (1973, p. 33), “O Fandango tem, no Paraná, uma vitalidade e uma pureza
raras, embora a tendência, em nossos dias, seja para o seu total desaparecimento,
dentro de mais duas ou três gerações”. A preocupação maior era que os mestres do
Fandango estavam envelhecendo e os jovens já não eram mais atraídos por esta
prática, havia um desinteresse e a perda de valores culturais. Azevedo
54
complementa, “os que mantêm a tradição do Fandango vívida e pura são os velhos
e os homens feitos. Os jovens da nova geração já não querem dançar o Fandango,
sentem-se envergonhados e preferem danças modernas” (1973, p. 34). Neste
sentido, pode-se afirmar que houve um enfraquecimento do Fandango durante
algumas décadas, no sentido de os mais jovens não compreenderem a cultura
caiçara como deles, porém, conforme Martins (2006):
Podemos afirmar que nunca ouviu se falar tanto em Fandango como na última década. Parte deste contexto se deve ao renovado interesse urbano por temas que envolvem a cultura popular. Este é um movimento de revalorização da “cultura que vem do povo” (MARTINS, 2006, p. 6).
Mesmo que exista este movimento mais intenso de pesquisadores
interessados no fandango, ainda assim há campo para ser explorado e investigado
dentro do universo desta manifestação.
Para dar seguimento a esta contextualização se faz necessário apresentar
uma breve descrição sobre a música do Fandango para, posteriormente, investigar a
dança.
Segundo Martins (2006), o Fandango tem para seu acompanhamento um
pequeno conjunto musical, composto por uma ou duas violas caipiras, uma rabeca25
e um adufo (ou pandeiro). O tamanco de madeira também é utilizado como
instrumento vital para produzir som nos fandangos batidos. Os cantos são tirados
pelos dois violeiros, em vozes paralelas, e podem ser tradicionais ou improvisados.
Grande parte dos músicos, residentes das Ilhas, trabalha em suas oficinas na
fabricação dos instrumentos do Fandango.
A viola e a rabeca são construídas pelos próprios pescadores, de uma madeira denominada cacheta. A cacheta é uma árvore grande e grossa, útil para construção, e que não é afetada pelo cupim. No corpo da viola fazem incrustações de canela ou imbuia, representando pombinhas ou desenhos geométricos (AZEVEDO, 1973, p. 34).
Com as leis ambientais o manejo da cacheta foi proibido e os pescadores não
puderam mais utilizá-la na construção dos instrumentos, e hoje outras madeiras são
utilizadas, porém o som dos instrumentos não é o mesmo que o das violas e
25
A rabeca é um instrumento musical de cordas friccionadas, aparentado ao violino, tido como sua versão mais rústica ou primitiva. É provável que tenha chegado ao Brasil nos primórdios da colonização portuguesa.
55
rabecas construídas com a cacheta. Os músicos reclamam que diminuiu a qualidade
do som dos instrumentos. Também “existem combinações diferentes dos
instrumentos, como a inclusão de alguma percussão fazendo um papel próximo da
caixa, ou duas colheres tocadas pelo avesso e até chocalho” (MARCHI, 2004, p.
486).
No caso do Fandango Paranaense há um diálogo entre os músicos e
batedores26, em alguns momentos não é possível ao olhar estranho, distante e
alheio, compreender os acontecimentos. Por exemplo, ao assistir a uma
apresentação não conseguimos perceber que existe uma inversão de regência entre
um dos violeiros e um dos batedores de tamanco. Assim, ora o mestre é o violeiro,
ora é o batedor. Essa dinâmica, que pode ser, inclusive, sem marcações prévias, ou
seja, improvisada, consiste numa troca sutil, é um movimento corporal, um olhar e
uma expressão que determinam se o comando é da música ou se é da dança. O
universo do Fandango está rodeado de brincadeira e improvisação, na tentativa de
desestabilizar o outro, em um constante desafio, diálogo e provocação.
É difícil dissociar música e dança do Fandango, pois, além do tamanco ser
uma percussão para a música, há uma dialogia constante entre batedores de
tamanco e tocadores de viola e rabeca, que, por vezes, soa como desafio e outras
como uma conversa de compadres. Apesar deste processo imanente,
apresentaremos em separado a dança, que, apesar de eleita como objeto desta
pesquisa, se compõe pelos elementos da música, sendo complementares no
Fandango.
Fandango é um conjunto de danças e marcas que são divididas em valsadas
e batidas. Segundo Azevedo (1973), a marca batida é realizada pelo sapateado dos
homens, que consiste no batido do tamanco forte e barulhento, que abafa quase
completamente a música do conjunto, e esse bater do tamanco chama-se, em
alguns lugares, rufar, em roda acontece a evolução da coreografia, aos pares, com
as mulheres. As valsadas ou bailadas acontecem no intervalo das batidas. O
Fandango valsado é considerado um bailado e a cada batido são dançados dois
bailados, é o momento no qual os batedores descansam para os próximos batidos.
As marcas e modas são denominações que os fandangueiros utilizam para definir os diferentes momentos do fandango. As chamadas marcas são
26
Batedor no fandango é o dançarino que utiliza o tamanco para fazer os batidos/marcas.
56
aquelas onde acontece o batido de tamancos acompanhados por evoluções em roda, sempre em sentido anti-horário, para isso é necessário um conhecimento prévio das marcas por parte dos dançadores a fim de executarem as complexas coreografias. [...] quem bate tamanco são somente os homens, acompanham os tocadores através de diferentes frases rítmicas. As mulheres conduzem a roda com alguns movimentos que podem ser chamados de passeado. Cada marca exige um tipo de performance dos fandangueiros, sendo várias as coreografias executadas por pares em meio ao salão (MARTINS, 2006, p. 4).
Segundo os mestres de Fandango da Ilha dos Valadares, existiam mais de
trinta marcas batidas, porém na pesquisa de campo pude constatar que atualmente
aproximadamente dez marcas são praticadas, entre elas estão: Anú, Xará,
Queromana, Feliz, Marinheiro, Xarazinho e Tonta. Outras marcas batidas como
Sapo, Caranguejo e Vilão de Lenço foram citadas pelos mestres como fazendo parte
do repertório coreográfico, porém não vi os grupos dançando-as em ensaios ou
apresentação27. As demais foram esquecidas ou deixaram de ser executadas pelos
fandangueiros. O mestre Romão28 atribui o esquecimento das marcas à falta de
músicos que tenham o repertório musical ampliado para acompanhar o Fandango
batido. As marcas batidas que não se praticam mais não possuem registros além da
memória dos mestres. Azevedo (1973, p. 33) afirma: “temos registrado perto de
trinta marcas diferentes e muitas outras existem ainda, próprias de cada região em
que se dança o fandango”. Apesar desta afirmação de Azevedo, alguns registros
estão presentes apenas na recordação dos mestres e outros já foram esquecidos, a
documentação registrada pelo autor é de grande importância para o Fandango, mas
ela constitui-se de apenas algumas marcas, que já passaram por transformações e
foram ressignificadas, ao passo que outras marcas e coreografias são
desconhecidas pelas novas gerações. A documentação não foi atualizada e
apresenta lacunas, precisando passar por novas traduções.
O ambiente para essa dança precisa ter o assoalho com tábuas de madeira
largas e flexíveis, atualmente um tablado de madeira substitui as tábuas largas.
Antigamente os salões de Fandango possuíam um buraco abaixo do assoalho, com
alguns metros de diâmetro e profundidade, para que tivesse a função um tambor
27
Essas marcas não serão descritas por não ser este o foco desta investigação. 28
Entrevista concedida por Romão Costa. Entrevista I [dezembro. 2015]. Entrevistadora: Thais Ferreira. Paranaguá, 2015. 1 arquivo .mp3 (53‟27‟‟). Romão Costa, dança fandango desde os 12 anos de idade, aprendeu muito sobre o fandango com seus pais. Foi este conhecimento que lhe rendeu o título de “Mestre”, pois “Mestre”, em fandango, é aquele que domina todas as marcas (NOVAK, 2005, p. 56).
57
gigante, desta forma o som da Ilha de Valadares podia ser ouvido em Paranaguá e
outras localidades. Segundo o folclorista Inami Custodio Pinto,
Para a tamancada ressoar a quilômetros de distância, eles faziam uma cava embaixo do salão de quatro a cinco metros de diâmetro e um e meio de fundura. Enchiam de água e tinham um condutor. Então, eu tenho registro de que quando batiam aqui na Ilha de Valadares, lá em São Francisco do Sul (SC), Guaratuba, escutavam o bater dos tamancos. Isso porque a água é um condutor de som por excelência (NETO, 2004, p. 227).
Muitas características históricas do fandango se perderam, por exemplo, os
dançadores batem tamanco na maioria das vezes sobre o tablado, mas já pude
acompanhá-los em palco sem essa estrutura adequada. As ausências da dança do
Fandango se justificam pela sua configuração histórica, e, ao observar a dança, é
possível compreender as relações culturais, sociais e políticas a que os caiçaras
foram submetidos durante um longo período da história.
Na sociedade paranaense do século XIX as classes dominantes viveram um processo de diferenciação cultural do restante da população. Essa cisão se manifestava exemplarmente no ato de dançar. As famílias morigeradas promoviam bailes e funções por motivo de “regozijo particular”, ao mesmo tempo em que acusavam os bailes populares de ajuntamentos para “dar pasto à devassidão” (PEREIRA, 2004, p. 64).
O professor e pesquisador Magnus Pereira (2004) apresenta a dança em dois
espaços distintos, realizada ora pela burguesia, ora pela classe popular no mesmo
momento da história. No começo do século o Sargento-mor organizou uma
demonstração de danças como a chula e o anu, que correspondem hoje a
fandangos regionais, a descrição apresentada foi a seguinte:
O Sargento-mor não se limitou a fornecer a música; cuidou também para que houvesse dança. [...]. Os convidados dançaram aos pares uma dança muito semelhante às antigas alemanas, e outras danças a quatro e denominadas, na região, de anu e chula, em que os dançarinos fazem uma espécie de sapateado, dobrando os joelhos, e que não deixam de ter seu encanto (PEREIRA, 2004, p. 66).
Os processos de ressignificação das tradições possibilitaram negociação das
diferenças no Fandango, que ora assumia uma dança organizada e sistematizada
em função de uma elite, ora apresentava a dança como expressão da cultura de
origem, em que movimentos corporais refletiam sentimentos, desejos e anseios. De
um lado, o encanto da dança da classe morigerada e do outro a intensidade da
58
maneira de dançar das classes populares, descrita pelo engenheiro inglês Thomas
Biggwither, que teve a oportunidade de vivenciar um fandango:
Em passo batido e lento, mas rítmico, acompanhando as violas, os homens começaram primeiro a dança, adiantando-se e retirando-se para o centro do círculo alternadamente, e as mulheres também, batiam os pés, mas não avançavam. Ao fim de doze compassos musicais, todos em conjunto, homens e mulheres, batiam palmas três vezes, o que servia de sinal para que todos dessem maior intensidade aos movimentos de corpo e batessem com mais força no chão. Durante aqueles minutos que pareciam intermináveis, tivemos então de bater os pés também sobre o soalho pesado, sacudir os braços e o corpo e bater palmas. À proporção que a dança continuava a agitação ficava mais forte, a voz se transformava em grito, o menear do corpo, antes gracioso, tendia a contorções violentas (PEREIRA, 2004, p. 64).
Essas contorções violentas se referiam a movimentações sensuais, que
ofendiam as classes dominantes, e, a partir de leituras eurocêntricas de danças
populares, o Fandango ficou à margem da sociedade no Brasil Império, no qual
chegou a ser proibido por ser considerado lascivo. Anos depois, no período do Brasil
República, surgiu uma tentativa de resgatar o fandango, nesta época ele recebeu
uma permissão para que pudesse ser realizado, porém as prefeituras cobravam uma
taxa exorbitante para a casa que tivesse a intenção de realizar o Fandango, de
forma que os caiçaras não puderam mais praticá-lo como atividade social dos
grupos.
Para Magnus Pereira (2004), é provável que as danças populares daquela
época pouco se parecessem com os seus resquícios pasteurizados hoje
reconhecidos como manifestações folclóricas. Para ele,
Muitas das danças latino-americanas, quer as dos brancos, quer as dos negros, eram pantomimas sexuais. A insistência no aspecto da lascívia das danças paranaenses mais antigas deve-se principalmente a um motivo: deixar claro que o principal móvel das proibições aos fandangos foi a nova moral burguesa adotada pelas classes dominantes locais. Em alguns momentos, transparece na legislação pertinente um certo cálculo econômico, ou seja, que ao proibirem as danças, os senhores procuravam impedir que seus escravos e empregados gastassem energia em atividades não produtivas. Embora não se possa desconsiderar completamente este aspecto, ele decerto não foi decisivo (PEREIRA, 2004, p. 65-66).
A burguesia, como cultura elitizada, submeteu os modos de vida da classe
popular aos seus interesses, criando estratégias de negação da cultura popular, que
foi negligenciada neste processo. Em relação aos fandangos, essa postura
59
influenciou a limitação da sua prática e descontinuidade em todo o litoral
paranaense, e, apesar das proibições às classes populares, eram dadas permissões
através de licença de autoridade policial para a elite local realizar os bailes públicos.
Num espaço de tempo, as classes baixas urbanas começaram a adotar as maneiras
de dançar da elite, e apenas nos sítios ainda se reconhecia o Fandango.
A partir deste momento a cultura popular precisou negociar as diferenças com
a cultura de elite, no sentido de sobrevivência de suas crenças e costumes, mas
para isso foi necessário modificar seus modos de viver em comunidade. As
transformações das tradições resultaram em traduções culturais com outros
significados e sentidos. Os costumes, os modos de dançar e fazer fandango foram
refinados para serem aceitos pela classe dominante. Esse processo híbrido
ressignificou o fandango, transmutou seu percurso histórico, social e cultural e quase
que suprimiu sua existência.
Porém toda essa proibição resultou, anos mais tarde, em preocupação. Antes
de o século XIX terminar a questão do Fandango entrou em uma nova fase, na qual
os mesmos intelectuais que exaltaram, naquele período, a modernidade e o
progresso do Paraná, lançariam olhares lacrimosos para a singeleza e a pureza dos
costumes tradicionais (PEREIRA, 2004).
“A transfiguração do fandango, que, setenta anos antes, era considerado um
ajuntamento para „dar pasto à devassidão e à desordem da crápula‟, seria encarada
como perda” (PEREIRA, 2004, p. 69). O fandango estava desfigurado e tinha
perdido a graça e singeleza devido à expansão da influência da cultura europeia nas
elites sociais. Vítima de repressão social, cultural e política, as classes populares
aproximaram suas maneiras de dançar aos modos da burguesia.
Mesmo com a tentativa de valorização e recuperação das raízes, através da
noção de “nação paranaense”, de Rocha Pombo (PEREIRA, 2004), e com um
esforço dos intelectuais da virada do século, nenhuma tradição se afirmou no
Paraná. “Disso resultou uma espécie de sensação de desconforto. Os paranaenses
não possuiriam tradições próprias por faltar-lhes raízes e manifestações culturais
características” (PEREIRA, 2004, p. 70).
O que faltaram não foram raízes, mas talvez forças políticas suficientes para
articular os elementos da cultura popular presentes. A descontinuidade e
descomprometimento dos grupos que dominaram politicamente a região podem ser
60
responsabilizados por isso, mas não há como afirmar, apenas criar novas
estratégias de seguimento do fandango.
Muitos dos fandangueiros reconhecem que algumas das marcas e músicas já
foram esquecidas, e outras poucos mestres lembram. Fato que, para eles, levaria a
uma dificuldade de dar continuidade aos fandangos. Apesar do espírito brincante,
colaborativo e socializador do Fandango, mestres, músicos e dançarinos
apresentam uma preocupação com a realidade do Fandango Paranaense: eles
temem que os mestres não possam dar continuidade aos fandangos devido à idade
avançada e à falta de interesse dos jovens em praticá-los. O medo e preocupação
revelam que o fandango enfrenta um processo de invisibilidade em relação ao
estado do Paraná, apesar de ser uma prática dinâmica e renovadora no contexto
local em que acontece. Nesse sentido, existe uma expectativa de que o tombamento
como Patrimônio Imaterial da Cultura brasileira pelo IPHAN29 favoreça seu
reconhecimento.
3.2 DANÇAS FOLCLÓRICAS OU DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS?
REVISITANDO O FOLCLORE, AS TRADIÇÕES E A CULTURA POPULAR
As experiências vivenciadas nas escolas públicas do Paraná instigaram a
pensar nas manifestações populares, mais especificamente nas danças folclóricas,
como o foco da pesquisa de mestrado. Entretanto, ao adentrar no universo da dança
em Salvador, verificaram-se diferenças de concepções entre as danças folclóricas30
e tradicionais abordadas no contexto do Paraná e as danças populares em Salvador.
Isso gerou, além de deslocamentos conceituais e do objeto de pesquisa, uma
problematização para o termo folclore e suas limitações, bem como a busca pela
compreensão do alcance da cultura popular. As diferenças na tradução e
compreensão do termo folclore implicaram um choque cultural nessa trajetória, a
29
A assinatura do registro deu-se pela Presidenta do IPHAN, Jurema Machado, em 19 de fevereiro de 2013. E, no mês de agosto de 2014, foi formalizada a entrega do título ao Fandango como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2011). 30
Nas Diretrizes Curriculares de Educação Física do Paraná os conteúdos específicos apresentam como proposição Dança Folclórica. Nas escolas estaduais ainda comemora-se no mês de agosto o Folclore, com uma semana de atividades. Muitos grupos de dança no Paraná se autodenominam folclóricos, assim como a perspectiva tradicionalista da cultura local atribui ao folclore valor real e atual.
61
partir das diversidades conceituais e do rompimento de fronteiras conectaram-se as
noções de dança aos contextos.
Em distintos contextos são apresentadas diferentes compreensões de dança,
seja no Paraná ou em Salvador. Apesar de as ciências sociais apresentarem que o
termo folclore31 está em desuso, dada toda a problematização32 que esse termo
trouxe com uma noção estereotipada e fechada sobre as manifestações culturais, é
possível, a partir da ecologia de saberes (SANTOS, 2010), reconhecer que as
distintas experiências e saberes são presenças e, deste modo, apresentamos a
perspectiva da dança folclórica por quem a faz e nela se perfilha.
Nessa perspectiva, apresentaremos o conceito de danças folclóricas sob a
perspectiva do Mestre de Fandango Aorélio Domingues, porém como já foi
salientado no início deste capítulo, adota-se nesta pesquisa a noção de danças
populares brasileiras a fim de traduzir o Fandango Paranaense.
A discussão que segue é baseada em deslocamentos teórico-práticos, em
choques culturais e desterritorializações que criaram, a partir de processos híbridos,
novas construções. Assim, problematiza-se: Como compreender formas de
manifestações que são parte de um mesmo processo com significados díspares e
alcances singulares?
As diferentes configurações de danças folclóricas e as danças populares
apresentadas a seguir têm como base dados de uma entrevista realizada no mês de
agosto de 2014 com um dos mestres do Fandango Paranaense – Aorélio
Domingues, através da qual se podem observar os modos como essas diferentes
configurações de dança estão sendo abordadas na cultura popular. Será necessário
31
Conforme Luque Baena para o folclore, os fenômenos culturais são produtos acabados, “coisas”, o que implica uma reificação e uma museística das pedras. Esses fenômenos são, muitas vezes, impessoais (Ex.: dança-se, come-se...), distanciando-se do individuo criador, pessoal e fisicamente. O folclorismo é portanto, uma torpe e errada objetivação da Cultura; trata-se de ingenuidade e falsidade (BAENA, 1989, p. 53). Segundo Luque Baena (1989, p.55-56) são três críticas que podem ser apontadas ao folclore: a sua simplificação, os reducionismos meio-ambientalistas e a ausência de interpretação da expressividade social. 32
O historiador da cultura Peter Burke (1996) acredita que os folcloristas utilizaram erroneamente três conceitos: primitivismo, comunitarismo e purismo. Os folcloristas tenderam a localizar historicamente a cultura popular num período primitivo pré-cristão e a defender a idéia de que não tinham sofrido mudanças, algo falso. Os folcloristas pensavam que as criações da cultura popular eram comunitárias, obviando que existiram criadores individuais reproduzidos posteriormente por outros, também com estilos individuais. Os folcloristas acabaram por definir o povo e a nação por uma das suas partes, os camponeses, mais próximos da natureza e menos influenciados pelos modos estrangeiros. Este foi um exercício social metonímico que utilizou grupos subalternos como os camponeses para representar toda a nação. Foi assim como se ignorou a relação entre o urbano e rural, letrados e iletrados. Excluíram-se os habitantes das cidades dos estudos sobre a cultura popular.
62
compreender as danças, popular e folclórica, como parte de um processo de
transformação, representado ora pelo olhar da tradição, ora pelo olhar da tradução
da cultura.
Desde as suas matrizes o Fandango sofreu transformações, adaptações e foi
sendo reconfigurado de alguma forma. Porém na Ilha dos Valadares-Paraná
coexistem as compreensões do Fandango como Dança Folclórica e como Dança
Popular, em específico um grupo que se denomina folclórico – Grupo Folclórico
Mestre Romão – e outros três que não se denominam nem folclórico nem popular.
Considerando que as danças folclóricas podem refletir a compreensão da tradição,
como entender quando um grupo de dança é folclórico ou popular, considerando que
ambos são manifestações da cultura popular?
A ideia do folclore por vezes vincula-se a compreensão das tradições como
fixas e cristalizadas e o conceito de cultura popular leva em conta a dinâmica das
transformações por que passam as sociedades, então a perda, recuperação e
negociação constante de valores sócio-histórico-culturais podem ser entendidas
como a tradução da cultura. O risco do folclore é manter vínculos com algo que já
não tem sentido para quem o faz dentro da comunidade como manifestação popular,
por apresentar um processo de repetição do mesmo, é o que pode acontecer em
determinados momentos com grupos de danças populares brasileiras33 quando
deixa de ser cultura popular e passa a ser show, espetáculo.
O mestre do Fandango Aorélio Domingues, durante entrevista34 realizada em
17 de agosto de 2014, apresentou uma reflexão sobre o fandango paranaense,
considerando-o como não apenas dança, mas sim um universo:
Fandango é uma dança, ela tá inserida num contexto onde ela acontece por causa daquele contexto social, fandango ele começa como paga de mutirão em outrora, se fazia mutirão pra roçada, pra tiragem da mandioca, roçada de palha de samambaia... daí a paga deste trabalho era um baile de fandango, quem não participasse do trabalho não podia dançar. E mesmo sendo paga de trabalho, dentro deste contexto que acontecia o fandango, existiam também bebidas próprias do fandango, comidas próprias do fandango e todo um vocabulário que rege este fandango, expressões, nome de peça de viola, nome dos instrumentos propriamente dito, por isso que eu falo que é um universo de coisas, fandango se estiver fora deste contexto caiçara, ele passa a ser folclórico (DOMINGUES, 2014).
33
Apesar de utilizar o termo “Danças Populares Brasileiras”, existem diversas linhas que se autodefinem como danças folclóricas, para-folclóricas, étnicas, tradicionais, de raízes, entre outras. 34
Entrevista concedida por Aorélio Domingues. Entrevista I. [agosto. 2014]. Entrevistadora: Thais Ferreira. Paranaguá, 2014. 1 arquivo .mp3 (1:06:38).
63
O universo que rege o fandango é que dá sentido à sua prática, que o
identifica como manifestação, assim, deslocar o fandango da comunidade é como
deixar de lado o que o caracteriza. Marianna Monteiro, ao discorrer sobre danças
folclóricas, considera que “nessa configuração escapa ao olhar o sentido que lhe dá
o popular, pois desconhecer alguns códigos internos que regem cada manifestação
impede a apreciação da expressão peculiar das comunidades” (MONTEIRO, 2011,
p. 44).
Então, na perspectiva do mestre, deslocar a dança da sua comunidade pode
ser uma forma de folclorizá-la, pois isto demonstra que a preocupação é a
representação de uma tradição, a cristalização da cultura, a qual desconsidera o
universo, a comunidade na qual ela é tida como tradutora desta mesma cultura.
Aorélio ainda complementa:
[...] Para se ter um exemplo, quando a gente faz espontaneamente esta manifestação ela tá ali acontecendo por causa da amizade, da camaradagem, da troca de favores entre compadres ou entre violeiros, então existe esta troca. E quando a gente faz isso fora do contexto a gente tá fazendo ou por um cachê ou pra representar a dança como a gente faz na comunidade, né. Então a gente faz uma dança, por exemplo, Curitiba a gente tem uma série de marcas que a gente já faz organizadamente, os dançarinos entram e saem no momento que foi determinado e a gente realiza aquilo num espaço de tempo determinado também, então isso é folclórico, é uma sistematização. A dança não é folclórica porque ela não é morta, ela é viva espontaneamente, mas o ato de se fazer é folclórico, então é uma representação, então o grupo comunitário ele se organiza como grupo, tem um representante, um mestre, ele sai do contexto pra fazer uma representação daquilo que é na verdade, sai do universo do fandango, então a gente considera isso folclórico (DOMINGUES, 2014).
O mestre de fandango acredita que a “dança não é folclórica, ela é viva
espontaneamente, mas o ato de se fazer é folclórico, é uma representação”, neste
sentido pode-se compreender que a dança representa algo, é uma ação sobre ação,
sendo a dança, neste sentido, culturalmente modelada e representada. Para Aorélio,
quando o Fandango está inserido dentro da comunidade, quando as pessoas tocam
viola e trocam versos, quando um sorri para o outro porque sabe que errou, ele se
torna parte do universo de vida daquelas pessoas, que cantam, comem, dançam,
falam e vivem o Fandango. Ele não é apenas algo isolado que é feito para manter
uma tradição, vai muito além disso, fandango é um modo de vida do povo caiçara.
64
Assim, quando se trata de dança popular brasileira não há como separar o
homem do seu contexto, ou a dança dos acontecimentos que a envolvem. Marianna
Monteiro afirma que:
A dança não pode ser apreciada separada da música, do poema, da linguagem cênica, do conjunto de aspectos espetaculares da festa, na qual se insere [...] não podemos compreender desvinculada do contexto das festas em que ocorrem, com seus múltiplos significados religiosos, sociais, artísticos, afetivos e simbólicos entrelaçados (MONTEIRO, 2011, p. 45).
Este é o reconhecimento de grande abrangência do fenômeno da dança
popular, pois as relações entre cultura popular e vida social são parâmetros da
própria dança, que de alguma forma identifica uma comunidade, na forma de
compreender os espaços que ela ocupa e as pessoas que estão inseridas naquele
contexto. Para Monteiro (2001, p. 45), “a vida cultural é sempre uma forma poderosa
de manipulação do real por meio do símbolo, cuja eficácia reforça um campo
relativamente autônomo de significados”. Como entender as danças folclóricas sem
considerar estes significados do presente, como algo isolado, cristalizado, que
reproduz a tradição de um povo?
É possível que existam nas danças folclóricas formas expressivas vindas do
passado, porém estas são atualizadas a partir de novas compreensões e dinâmicas
sociais, e mesmo que com base nas ciências sociais o termo folclore não tenha
sentido do ponto de vista acadêmico científico, ele ainda se faz presente nos modos
em que algumas comunidades e grupos se autodenominam. O Mestre Aorélio
Domingues, representante do Fandango Paranaense, traz uma reflexão sobre os
grupos de fandango do litoral paranaense, dentro dos quais consegue identificar um
grupo como folclórico. O Grupo Folclórico de Mestre Romão35 recebeu a influência
de um professor e folclorista paranaense, Inami Custódio Pinto, que fez parte do
grupo em um momento no qual o fandango estava sendo revitalizado:
Na linhagem do mestre Romão, que era apresentação, os melhores violeiros eram dele, os melhores batedores de tamanco eram dele, então se via o grupo, era realmente perfeito, mas também era perfeito de figurino, também era perfeito de maquiagem, também era perfeito de marcação de palco, era perfeito de mapa de palco, de som, de luz, o grupo era perfeito, então ele tinha essa função de apresentação. Quando começou a se fazer os bailes de fandango aqui no mercado
36, que começou a envolver o órgão
35
Romão Costa, mestre do fandango. 36
Mercado do Café em Paranaguá – local onde os grupos de fandango se reúnem para os bailes.
65
público, quem estava no órgão público até então era só o grupo de mestre Romão, que era um grupo folclórico porque também ele se intitulava folclórico, é que o grupo vinha desta escola de folclore brasileira. Então ele era mestre, ele é mestre, os violeiros são mestres, cantadores, tocadores. Eles repassaram o fandango perfeitamente para os jovens, formaram dezenas, centenas de fandangueiros, com uma função folclórica, então você nunca via esses dançarinos num baile, por exemplo, se via muitos e muitos dançarinos em palco, mas nenhum em baile, eles não participavam do universo do fandango (DOMINGUES, 2014).
A percepção dessas cristalizações parece essencial à compreensão dos
sentidos das danças folclóricas, pois a partir da perspectiva do mestre Aorélio existe
um formato no qual ela se insere, a dança é sistematizada e organizada para
reproduzir uma manifestação folclórica. Não envolve batedores de tamanco,
tocadores e mestres em uma experiência além do palco, apenas apresenta um
repertório coreográfico previamente ensaiado, sem que o fandango seja vivenciado
na sua totalidade e além deste espaço, ficando limitado a apenas algumas
expressões da cultura popular, deixando de habitar o universo que Aorélio nos
apresentou. Em contrapartida ao grupo de Mestre Romão, existia também em
Paranaguá, mais especificamente na Ilha dos Valadares, o grupo de mestre
Eugênio37 que compreendia o fandango de outra forma:
Muito pelo contrário, você via raramente o Mestre Eugênio em palco, mas o via em todos os fandangos (bailes) e os dançarinos dele em todos os fandangos. Então são duas linhagens assim, que nasceram com propósitos bem marcados, um folclórico mesmo e o Sr. Eugênio com um grupo de fandango, grupo ainda falando em grupo só pela questão de se organizar, mas era fandango da Ilha dos Valadares. O grupo do Mestre Romão era Grupo Folclórico Mestre Romão, tinha ele como mestre – figura central – e a função dele era representar a cidade em festivais e também fazer apresentações em festas da cidade, a função deles era essa. Depois que o Sr. Eugênio começou a se estruturar e começou a fazer os bailes na própria Ilha dos Valadares, ainda assim não houve um movimento do Grupo do Mestre Romão pra olhar pra esta questão (DOMINGUES, 2014).
Após o falecimento do Mestre Eugênio, em setembro de 2011, seu grupo se
desmembrou e, apesar da ausência da continuidade daquele núcleo, diversas
ramificações do seu modo de compreender a dança se fazem presentes até hoje na
Ilha dos Valadares. Conta Aorélio que com o tempo os grupos38 foram se
modificando, os discursos foram mudando e as diferenças começaram a diminuir,
37
Eugênio dos Santos - mestre do fandango que faleceu em 2011, grande representante do fandango enquanto dança e manifestação popular, entusiasta da cultura de Paranaguá. 38
O fandango paranaense está se firmando a partir destes grupos que incansavelmente mantiveram as festas, bailes e pessoas reunidas, seja para bater tamanco, comer barreado ou tocar viola caipira e rabeca, fazendo com que hoje ele seja considerado patrimônio cultural imaterial brasileiro.
66
apesar de existirem até hoje. Na atualidade é possível ver os integrantes do Grupo
Folclórico do Mestre Romão frequentando bailes e também, quando convidados, os
outros grupos se organizam e fazem apresentações em palco. Este olhar múltiplo,
que dá visibilidade à sabedoria popular, propõe uma ligação com a história que
acredita no deslocamento no espaço-tempo e nas transformações que acontecem
neste percurso. O fandango e suas pluralidades fazem parte da construção da
história que o tempo todo se desvelam e revelam, indicando um olhar mais
contemporâneo e menos folclórico para a dança.
Para Daniela Amoroso, “a poética da dança popular brasileira mostra um
corpo que tem uma maneira de viver, uma técnica de corpo, um movimento que nos
traz a tradição do passado para o dinamismo do presente” (AMOROSO, 2013, p.
60).
Desta forma, podemos compreender que, apesar da diferenciação
apresentada com base na declaração do mestre de Fandango Aorélio Domingues,
as danças folclóricas e populares acontecem concomitantemente no entre-lugar da
cultura popular. São manifestações culturais inseridas em contextos diferentes e as
divergências apresentadas resultam das diferentes percepções dos mestres, porém
tanto uma quanto a outra revelam o passado e suas tradições e desvelam a cultura
viva que se transforma e modifica. A partir da perspectiva do mestre Aorélio pode-se
compreender que há limites em uma e possibilidades na outra, no sentido de que
uma acontece de forma organizada e sistemática em palcos e apresentações e a
outra no contexto caiçara. Apesar destes deslocamentos, elas comunicam e
movimentam a cultura popular, apenas de diferentes modos e, por isso, podem
compartilhar de pensamentos e crenças ao mesmo tempo em que podem
apresentar discrepâncias, mas são enredadas pelos saberes do povo e buscam
expressar as manifestações populares.
Entendemos que apesar de todos os problemas epistemológicos que estão
agregados ao termo danças folclóricas, esta ainda é uma expressão muito utilizada,
por exemplo, no sul do Brasil. As danças folclóricas e populares ocupam espaços
distintos na cultura popular, mas se articulam, se comunicam e são transformadas
com outros signos. A distinção está nas noções, conceitos e entendimentos que se
têm. Ou seja, elas conectam passado e presente, história, memória e atualizações,
estando ligadas e inter-relacionadas no que diz respeito à cultura popular e suas
manifestações.
67
Estas distintas maneiras de conceituar a dança representam diferentes
espaços de luta, resistência e afirmação do Fandango, dentro dos quais os
interesses se entrecruzam e atravessam, considerando as dinâmicas políticas e
sociais. Porém, de acordo com a perspectiva do mestre Aorélio Domingues,
enquanto a dança folclórica estabelece negociações de diferenças com outras
culturas, modificando-se e adaptando-se para se inserir em múltiplos espaços no
sentido de espetacularização da cultura popular, a dança popular negocia com o
próprio meio, como sobrevivência da cultura caiçara na Ilha dos Valadares, com
interesse de continuidade da manifestação local.
Ressaltamos que apesar de neste subcapítulo apresentarmos a concepção
de dança folclórica na perspectiva de um mestre do Fandango, que reflete um dos
modos de compreensão sobre essas danças, esta pesquisa é tecida a partir da
compreensão de danças populares brasileiras.
Ao revisitar o folclore e as tradições observaram-se na história do Fandango
diversas influências do movimento folclórico que justificam a concepção de dança e
da manifestação popular como um todo. Assim, apresentamos um retorno às teorias
para poder avançar nas configurações de dança.
O termo folklore – folk (povo), lore (saber) – foi criado pelo arqueólogo inglês
Willian John Thoms em 22 de agosto de 1846 e adotado com poucas adaptações
por grande parte das línguas europeias, chegando ao Brasil com a grafia pouco
alterada: folclore. O termo identificava o saber tradicional preservado pela
transmissão oral entre os camponeses e substituía outros que eram utilizados com o
mesmo objetivo – “antiguidades populares”, “literatura popular” (VILHENA, 1997, p.
24).
Nesse sentido tradicional de “saber do povo”, o folclore designa diferentes
formas de conhecimento e manifestações culturais de diversos grupos de uma
sociedade. É a partir do conjunto das tradições culturais transmitidas que o folclore é
pensado, tais como as danças, festas tradicionais, brincadeiras infantis, lendas,
superstições, músicas, manifestações religiosas, mitos, entre outras. Há aqui um
contraponto entre a cultura popular e erudita, mas não parece claro delimitar o
alcance do folclore. Considera-se, por exemplo, a dança do Frevo ou Maracatu uma
manifestação do folclore ou cultura popular? Ou ainda o Fandango Paranaense é
uma dança folclórica ou dança popular? Foram estes questionamentos que
serviram de pistas para encaminhar esta discussão.
68
Os primeiros estudos do folclore e cultura popular se deram entre as décadas
de 1930 e 1940, no sentido de fazer um mapeamento do folclore brasileiro.
[...] É possível apontarmos como pioneira a tentativa de uma definição para o termo fandango a partir da obra de Mário de Andrade. Em sua obra publicada em 1928, “Ensaio sobre a música popular”, em uma análise breve destaca a importância das manifestações populares presentes no sudeste brasileiro e apresenta letras e melodias de alguns fandangos da região de Cananeia (SP). Estes seriam os primeiros registros do fandango em forma [de] partituras, tornando-se um material de grande importância para futuros estudos (IPHAN, 2011, p. 27).
Assim como Mário de Andrade em 1928 aponta uma definição de Fandango,
Câmara Cascudo também apresenta uma definição de fandango no Dicionário do
Folclore Brasileiro, estando ele em diferentes contextos e abarcando diversos
sentidos:
No Brasil, fandango é o folguedo dos marujos ou marujada ou barca, em alguns estados do Norte e Nordeste. É sempre um auto popular, já tradicional na primeira década do século XIX, convergência de cantigas brasileiras e de xácaras portuguesas. A brasilidade do fandango, auto popular, é indiscutível... é um mosaico de temas organizado anonimamente no Brasil (CASCUDO, 1972, p. 320).
Essa múltipla definição do Fandango revela que apesar do esforço em
registrar a tradição fica evidenciada a amplitude do termo e seu alcance plural, este
foi um movimento de mapear e registrar as tradições e não de compreender e
descrever em específico a manifestação do Fandango. A Carta do Folclore Brasileiro
de 199539, a qual é uma releitura da Carta de 1951, aprovada no I Congresso
Brasileiro de Folclore, traz no Capítulo I o seu conceito:
1. Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade.
39
O VIII Congresso Brasileiro de Folclore, reunido em Salvador, Bahia, de 12 a 16 de dezembro de 1995, procedeu à releitura da Carta do Folclore Brasileiro, aprovada no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 31 de agosto de 1951. Esta releitura, ditada pelas transformações da sociedade brasileira e pelo progresso das Ciências Humanas e Sociais, teve a participação ampla de estudiosos de folclore dos diversos pontos do país e também teve presente as Recomendações da UNESCO sobre Salvaguarda do Folclore por ocasião da 25ª Reunião da Conferência Geral realizada em Paris em 1989 e publicada no Boletim nº13 da Comissão Nacional de Folclore, janeiro/abril de 1993.
69
Nessa Carta, folclore e cultura popular são entendidos como equivalentes,
como se fossem análogos, pois dialogam sobre as mesmas questões e ocupam o
mesmo espaço na pesquisa. Para Cascudo (1972), o folclore é considerado como
cultura, nele ocorrem mudanças, por isto é dinâmico, enquanto funcional. Estas
mudanças operam-se através da invenção de novos instrumentos e técnicas em prol
da melhoria da qualidade de vida do povo.
Tanto a Carta do Folclore quanto Cascudo trazem o conceito de folclore como
algo dinâmico, estático em relação à conservação da cultura e ao mesmo tempo
vivo. Mesmo que o conceito de tradicional seja entendido como o que se funda na
tradição, que incorpora hábitos e costumes, ao incorporar novos hábitos e costumes
as próprias tradições se modificam e traduzem, assumindo, a partir disso, novo
formato.
Para melhor compreensão, a tradição, que vem do latim – traditio, tradere – e
significa entregar ou "passar adiante", é a continuidade ou permanência de uma
doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social. Com isso,
tradição é a tentativa de permanência, é uma postura rígida frente à cultura
(BHABHA, 2013; HALL, 2012), a qual não corresponde ao dinamismo que é
apresentado na Carta do Folclore ou por Cascudo.
A tradição, se vinculada a esta concepção, pode ser interpretada como
herança cultural, sendo possível transferir ou transpor conhecimentos e costumes de
uma época para a outra. Assim, dar-se-á continuidade a determinada manifestação,
considerando que elas sofrem transformações e adaptações, de forma que a cultura
seja transmitida de uma geração a outra e, de alguma forma, reproduzida,
acreditando na possibilidade de manter viva a tradição. Há uma impossibilidade na
compreensão rígida da tradição, pois, conforme Bhabha (2013) e Hall (2012),
citados no capítulo anterior, a tradição também passa pelo processo de
ressignificação.
As tradições têm vínculo com os estudos do folclore, que permearam décadas
de estudo e influenciaram pesquisadores que optaram por investigar o Fandango,
porém a postura assumida era de uma vivência de campo para dar base às
produções teóricas. Assim, no Paraná, destacaram-se os autores Fernando Correa
de Azevedo (1973, 1978) e Inami Custódio Pinto (1980), com discursos que
buscavam afirmar a identidade paranaense através do Fandango.
70
Azevedo (1973) apresenta, em sua pesquisa “Fandango do Paraná”, diversas
características da manifestação, especialmente a descrição de marcas batidas e
desenhos coreográficos, bem como a narração dos comportamentos e atitudes de
folgadores e folgadeiras40 ao dançar Fandango. O folclorista Inami Custódio Pinto
(1980) concentrou sua pesquisa no fandango da Ilha dos Valadares, analisando o
conjunto coreográfico-musical da manifestação, e foi o incentivador do primeiro
grupo de fandango da Ilha na década de 1960. Conforme o mestre Aorélio41, este
movimento de folclorização do fandango apresenta afirmação de um lado e perdas
de características de outro lado. Para ele,
Em 1960 e pouco, 1970, essa escola de folclore brasileiro começa a buscar uma identidade brasileira, e começa a buscar o que era característico de cada local. O fandango também entra nessa panela do que é regional, do que é característica local, mas só que também ele é registrado, ele é visto como tradição popular. [...] Já começam se fazer os processos de querer promover a dança, é... revela a dança. Aí já começa um processo de folclorização, que é dessa escola de folclore, do conselho nacional do folclore, essa coisa que institui esse folclore brasileiro [...]. (DOMINGUES, 2015).
Quando se institui o movimento folclórico no fandango apresentam-se ideias
de fazer figurinos para caracterizar a época e os locais, mas, conforme o Mestre
Aorélio, “muitas das vezes nem representa tanto o local, porque você pega um
figurino desses primeiros que foram feitos pro fandango, ele é o mesmo figurino do
carimbó [...]” (DOMINGUES, 2015). Para o Mestre, “assim se estabeleceu essa ideia
de folclore brasileiro e generalizo em todo país” e “não se levo em consideração
muitos aspectos... Ah, a roupa das meninas, saião de chita, porque os pescadores
eram pobres. Pô! Eles não usavam chita, usavam viscose, usavam saco de açúcar,
arroz, essas coisas [...]”. Para ele, além de os tecidos não serem considerados,
também os cortes e modelos das roupas não eram típicos dos caiçaras, “na época
em que se fez isso as saias eram abaixo do joelho, mas as caiçaras iam até a beira
d‟água buscar peixes com os maridos, não podiam ter saia comprida, ia molhar a
barra da saia” (DOMINGUES, 2015).
40
Para Azevedo (1973, p. 34), “É usual o emprego da expressão folgadeira para designar as mulheres que participam do fandango. Os homens são folgadores”. Acredita-se que a denominação derive da palavra folga, pois os fandangos aconteciam apenas nas folgas do trabalho. 41
Entrevista concedida por Aorélio Domingues. Entrevista I (dez. 2015). Entrevistadora: Thais Ferreira.
71
Neste sentido, Severino (2012) apresenta uma reflexão sobre os hibridismos
como componentes da espetacularização da cultura a partir de uma afirmação de
Michel de Certeau (1967). Para ele:
Uma vez que a capacidade de produzir é na realidade organizada segundo racionalidades ou poderes econômicos, as representações coletivas se folclorizam. As instâncias ideológicas metamorfoseiam-se em espetáculos. Excluem-se das festas tanto o risco quanto a criação (a aposta pelo menos mantém o risco). (SEVERINO, 2012, p.177)
No Fandango é possível desvelar a folclorização apontada por esse autor,
pois da mesma forma que a indumentária das mulheres perdeu características, a
dos homens também foi estilizada pela moda da época, dos anos 70, para a dança
os homens usavam ternos de três peças e chapéu de época. Era uma tendência
nacional tomando alcance das manifestações populares, descaracterizando os
modos de se vestir dos caiçaras. Para o Mestre Aorélio, “procurar uma identidade
brasileira do folclore começa a influencia também o modo de se fazer cultura
popular, de se organizar a cultura popular [...]. Então aí o fandango deixa um pouco
de ser camaradagem pra se tornar grupo” (DOMINGUES, 2015).
Neste mesmo sentido, o pesquisador em cultura Terry Eagleton afirma que
“para os românticos radicais, a arte, a imaginação, a cultura folclórica ou de
comunidades „primitivas‟ são sinais de uma energia criativa que deve ser estendida
à sociedade política como um todo” (EAGLETON, 2011, p. 38). Essa concepção
romântica do folclore e a tentativa de extensão das práticas de uma comunidade
específica para a sociedade como um todo resultou em danos para a cultura
popular.
No Fandango Paranaense isso aconteceu quando as danças foram
deslocadas do seu ambiente para assumir o formato de apresentação em palcos, e
esses deslocamentos resultaram em transformações no modo de fazer Fandango,
pois, para isso, a postura da dança foi verticalizada, os figurinos perderam as
características caiçaras e ganharam volume no palco, o movimento das saias das
mulheres foi atenuado e os batidos dos tamancos foram energizados. Foi um
processo de “limpar” o fandango para que ele fosse aceito por “outras” culturas. Esta
tradução do fandango repaginado, como uma espetacularização, não expressa
apenas a influência do movimento folclórico na dança, mas todas as negociações
culturais que envolvem a manifestação.
72
Atualmente é possível observar que quando os fandangueiros fazem
apresentações em palcos sua postura é refinada, perdendo algumas características
que são possíveis vislumbrar apenas nos bailes que acontecem no Mercado do
Café42, como a descontração, a suavidade dos movimentos, o espírito brincante de
músicos e batedores e a energia que permeia a roda de fandango.
Pode-se dizer que o fandango não perdeu totalmente a identidade, mas
precisou negociar com a cultura de elite e assimilar alguns padrões de
comportamentos que não pertenciam aos caiçaras. Para esta discussão, revisamos
e apresentamos a afirmação de Hall (1998), existe outra possibilidade para a
tradição: a tradução. Ela descreve aquelas formações de identidade que atravessam
e cruzam as fronteiras [...], ao negociar com as diferenças culturais obrigatoriamente
chega-se em um acordo com as novas culturas, sem que essas sejam
completamente assimiladas, ou que se perca completamente a identidade. O acordo
estabelecido por diferentes culturas se dá a partir de relações de poder
estabelecidas na lógica do sistema capitalista, sendo as trocas normalmente,
desiguais.
A tradução descrita por Hall corresponde ao que é possível compreender
como cultura, e isso pode ser melhor entendido através da diáspora africana
(GILROY, 2001). Por exemplo, os índios carijós que viviam na Ilha dos Valadares
foram colonizados pelos portugueses e espanhóis que, insatisfeitos com a
exploração indígena, transformaram a ilha em depósito de escravos vindos da
África. Esse processo originou múltiplos rompimentos de fronteiras e negociações
com as diferenças culturais, sendo o caiçara da Ilha dos Valadares essa fusão entre
índios, negros, portugueses e espanhóis. Ao atravessar as fronteiras da tradição se
dissolvem as consolidações do passado no presente, repensando, reconfigurando e
realizando uma releitura da cultura. Este acordo entre o que passou e o presente é
uma postura que possibilita ir além, revisitar o passado com o olhar do aqui e agora.
Conforme já foi abordado por Homi Bhabha:
Estar no “além”, portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas residir “no além” é ainda, como demonstrei, ser
42
Construído em meados do século XIX, no estilo neoclássico, foi reformado no início do século XX e adaptado com tendências do classicismo. Era um ponto de degustação do café, servido com quitutes da região. Atualmente abriga um centro gastronômico que oferece refeições à base de frutos do mar e comida típica do litoral, além dos tradicionais bolinhos de camarão, de banana e pastéis de vários sabores. A cada quinze dias, no mercado, são realizados bailes de fandango para a população, especialmente para os moradores da Ilha dos Valadares.
73
parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o fundo em seu lado de cá. Neste sentido, então, o espaço intermédio “além” torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora (BHABHA, 2013, p. 28).
Deste modo, Bhabha explana um conceito de cultura dinâmico, tradutório e
híbrido que gera o trânsito de experiências e cria significados novos para símbolos
culturais. Para ele, o conceito está relacionado aos deslocamentos que colocam em
choque diferenças culturais, como uma ação da sobrevivência, pois para ir além é
necessário o retorno ao passado e uma reinscrição histórica no presente. Para o
autor, o conceito de hibridismo ressalva que “culturas são construções e as
tradições, invenções” (BHABHA, 2013, p. 126), e que, quando em contato, criam
novas construções desterritorializadas, ou seja, para além das fronteiras,
atravessando-as e cruzando-as, “tocando o fundo em seu lado de cá”.
A partir do entendimento de que a cultura possui transitoriedade, abarcando
uma gama de formas de se fazer/pensar dança, possibilitando a pluralidade e
diversidade de saberes e experiências é que buscamos compreender que cada
grupo pode se autodenominar e que as escolhas que os denominam tem sentido
para aqueles que o fazem. Assim, quando um grupo se autodenomina folclórico,
acredita-se que não o faz ao acaso, mas sim por identificar-se com questões que
representam a sua dança, suas crenças e seu discurso.
Ferreira (2015) apresenta uma reflexão sobre o Carimbó e observa os grupos
que se autodenominam folclóricos situados em Belém do Pará, revelando que essas
organizações defendem o Carimbó “tradicional”, inclusive em suas formas
coreográficas. Ferreira (2015) entende que os grupos que assim se autodenominam
“defendem o „resgate‟ e a „preservação‟ da cultura amazônica. Sendo assim, suas
coreografias tenderiam a representar aspectos mais „tradicionais‟ das danças”
(Ferreira, 2015, p. 281). Para ele, alguns grupos acreditam que a cultura está em
constante transformação e por essa razão devem produzir coreografias mais
verossímeis e semelhantes às „originais‟. E, esses mesmos grupos criticam outras
organizações que se autodenominam folclóricas porque elas apresentam processos
coreográficos transformados, perdendo a „essência da tradição‟ e desfavorecendo a
„manutenção da cultura‟ (Ferreira, 2015).
A partir desta reflexão e articulando com a perspectiva do mestre do
Fandango pode-se concluir que apesar dos grupos de dança se autodenominarem
74
folclóricos eles apresentam concepções estéticas distintas, muitas vezes estilizadas,
visando representar a manifestação popular. No Brasil, diversos grupos de dança se
autodenominam folclóricos e para-folclóricos, e as concepções adotadas por cada
um é condizente com os discursos dos mestres que refletem nos discursos do corpo.
Acreditando na relevância da ecologia de saberes (SANTOS, 2010) e dos
diálogos interculturais que possibilitam a pluralidade e multiplicidade de
conhecimentos e experiências é que a reflexão acerca da concepção de dança
folclórica se faz visível nesta pesquisa, por afirmar um processo de deslocamento e
desterritorialização, ao mesmo tempo em que desvela saberes invisibilizados, mas
presentes. Neste mesmo sentido, diversas autoras já se aproximaram da questão de
pensar a dança enquanto manifestação popular, cada qual utilizando abordagens
diferentes e através de um objeto específico. Dentre elas estão Daniela Amoroso
(2009), Maria Acselrad (2013), Marianna Monteiro (2011) e Renata Lima da Silva
(2012), estudiosas acerca das Danças Populares, e cada qual abordando
peculiaridades e características singulares da cultura popular.
Daniela Amoroso apresentou como objeto de pesquisa da sua tese de
doutorado o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, a autora Maria Acselrad
publicou seu estudo de mestrado sobre o Cavalo-Marinho de Pernambuco, Marianna
Monteiro focou sua pesquisa de campo nos Congos e nos Boi-bumbás – através de
uma abordagem histórica e antropológica, e Renata Lima da Silva escreveu sobre a
Capoeira de Angola e alguns sambas de umbigada. Todas as autoras colaboraram
para pensar tanto os processos de tradições e traduções apresentados como para
pensar as diferentes configurações de danças populares, e, no caso desta pesquisa,
para compreender a manifestação popular eleita – a dança do Fandango
Paranaense.
Por acreditar que estudar a cultura popular nos leva a pensar em diferentes
entendimentos de dança, pretende-se problematizar as configurações de dança
popular brasileira propostas pelas autoras e relacioná-las com os conceitos de
tradição e traduções culturais. Tanto a compreensão das autoras acerca das Danças
Populares, com trajetórias específicas, quanto o olhar do mestre de fandango – que
vive esta manifestação popular – serão caminhos para compreender o Fandango
Paranaense, que envolve um universo de possibilidades e faz parte de uma
expressão cultural não restrita a uma prática da dança isolada, mas reminiscente ao
modo de ser, pensar, falar e viver de uma comunidade.
75
3.3 DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS – DISTINTAS CONFIGURAÇÕES
Ao imergir nas leituras sobre as danças populares específicas foi possível
vislumbrar olhares diferenciados para a dança, que iam em direções desiguais, mas
mantinham elos encruzilhados, pois dialogavam a partir de um mesmo espaço, de
um mesmo interior: a cultura popular. E, apesar de apresentarem entendimentos
distintos do corpo na dança, possibilitaram criar conexões e articular os
conhecimentos acerca das diferentes configurações de danças populares brasileiras.
A dança popular brasileira – adota-se aqui esta nomenclatura – apresenta
díspares definições, que vão desde a dança afro, passando por dança brasileira
contemporânea, dança popular, dança folclórica, dança tradicional, dança brasileira,
dramática ou teatral, entre outras. Esses entrelaçamentos de configurações das
danças populares permitem observar o dinamismo da cultura popular e abrem um
leque de possibilidades de como identificar a dança neste contexto. Isso
complexifica a compreensão, porém enriquece e potencializa o alcance das danças
populares brasileiras, abarcando suas multiplicidades.
No seu livro Dança Popular: espetáculo e devoção, Marianna Monteiro (2011)
apresenta as concepções de popular presentes em alguns autores românticos e de
outros folcloristas e, por essa via, observa-se uma crítica ao romantismo, pois muitos
saberes e fazeres populares ficaram invisibilizados. Na análise a autora situa a
falsificação e obscurecimento do estudo das nossas origens, acumulando ausências
de saberes na nossa existência. Conforme o início deste capítulo, o movimento dos
folcloristas pela busca de afirmação de uma identidade nacional procurava utilizar-se
de um viés da etnografia, apresentando-a como mais rica e precisa nas
observações, com mais rigor e investigação das fontes. Porém, para Monteiro
(2011), ainda assim românticos e folcloristas alimentavam uma visão negativa da
cultura dos dominados que, consequentemente, refletia nas manifestações
populares. De um lado, o olhar que distinguia a “ralé” da elite e, do outro lado, o
enfoque evolucionista que considerava a cultura do selvagem e do primitivo.
A autora Marianna Monteiro (2011) revisita o passado para compreender as
danças populares, como as Danças Dramáticas, de Mário de Andrade, e as Danças
Teatrais, e apresenta um olhar político, filosófico, histórico e antropológico da dança
popular. Com seu retorno ao passado, ela revela que modelos europeus subjazem
os atuais e que a dança traz em seu interior processos ideológicos europeus. Neste
76
sentido, no caso do Fandango Paranaense fica perceptível a influência dos padrões
europeus nos modos de dançar, na tentativa de refinar e verticalizar os movimentos
corporais.
Para a autora, ainda há a visão excludente da dança popular, do ponto de
vista da cultura elitizada, e para modificar esse entendimento faz-se necessário
ampliar a discussão sobre cultura popular e cultura erudita. Monteiro considera que
cultura popular e cultura erudita se retroalimentam e que há um intenso tráfego nas
duas direções. Porém as apropriações das danças populares feitas pela cultura
erudita ou de massa não dão conta de fazer uma tradução aceitável, e muitas vezes
esses são processos de “vampirização”, que, segundo a autora, é “uma antropofagia
predatória, por parte da cultura elitizada, incapaz de operar uma síntese fecunda e
honesta entre os dois universos” (MONTEIRO, 2011, p. 19).
Neste mesmo sentido, como já foi citado, Desmond (2013) apresenta as
danças sociais populares que passam por um processo de embranquecimento,
sendo a prática da dança domesticada, atenuada, verticalizada – alinhamento para a
dança ficar mais ereta, para que ela seja aceita pelas elites da sociedade, nas quais
se pagam professores brancos para aprender versões brancas de danças negras.
Essas apropriações nem sempre tomam a forma de empréstimos dos grupos
subordinados pelo grupo hegemônico, pois os significados dos movimentos mudam
quando transportados para o grupo de adoção, e essas transferências não levam em
conta mudanças do significado ideológico que as acompanham. Para Monteiro
(2011), este processo é de vampirização, e para Desmond (2013) este processo é
de apropriação e remodelamento.
Monteiro (2011) não acredita na dança popular fora do seu contexto, pois ela
se enfraquece e dificilmente contamina com sua vitalidade a dança nos palcos ou
outros espaços. A dança perde a identidade e autonomia e acaba operando
ancorada por meros clichês. Ou seja, a dança popular desvinculada do seu contexto
perde o sentido e os signos, pois os significados da sua prática são múltiplos e
entrelaçados, qualquer tentativa de deslocamento pode modificar sua tradução e
fazer com que a manifestação popular altere sua verdadeira simbologia. No
Fandango o deslocamento para fora do contexto é considerado como folclorização
da dança, que se descaracteriza para assumir a função de representação de uma
determinada realidade.
77
A autora reconhece a importância da tradição e a impossibilidade de se
pensar a dança popular fora dos seus mecanismos, pois existem nela formas
expressivas vindas do passado, porém atualizadas a partir de novas dinâmicas.
Para Monteiro, “a percepção dessas cristalizações parece essencial à compreensão
dos sentidos das danças populares na sua existência atual” (2011, p. 44). Neste
mesmo sentido, Acselrad afirma que:
Estudar esse caráter efêmero e variável dos processos culturais leva-nos a um questionamento acerca do que permanece, mesmo que através de constantes revisões, e do que existe em toda produção simbólica e diz respeito à invenção de novas realidades, do jogo com o dito real, numa sucessão de tempos, espaços e sujeitos (ACSELRAD, 2013, p. 121).
Assim, mesmo que as danças populares apresentem características das
tradições elas também passam por processos de invenção da realidade, na qual se
atualizam criando novos significados e construções na cultura popular.
Considerando os conceitos apresentados no segundo capítulo sobre as tradições e
traduções, podemos perceber que para entender as configurações de danças
populares brasileiras é preciso compreender esses processos vinculados a essas
manifestações, pois dança popular e cultura estão atreladas e são indissociáveis.
Assim, os processos tradutórios da cultura popular acontecem sincronicamente com
as danças populares brasileiras.
A autora Renata Lima Silva (2012) compreende a dança brasileira
contemporânea como uma linguagem híbrida, fruto de um diálogo criador entre a
cultura popular e a dança contemporânea, um vínculo entre tradição e
contemporaneidade. Ela considera a contemporaneidade como o encontro de
diversas formas de pensar e fazer dança na atualidade. Apresenta a necessidade de
especificá-la não por uma questão formal, mas por uma questão ideológica de
afirmação de identidade cultural. Para ela, há “uma necessidade de divulgar a
cultura popular como fonte de saber para além de si mesma e de abordar a dança
brasileira contemporânea como uma linguagem que também escreve a história da
dança no Brasil” (2012, p. 24). Silva (2012) questiona os saberes marginalizados
num país onde ainda são visíveis os conflitos de cor e de classe, e no qual a história
da arte apenas referencia teorias ocidentais.
Silva (2012) aborda uma dança brasileira contemporânea, que investiga as
danças brasileiras e busca uma linguagem estética para esta expressão, a qual
78
contempla a história pessoal, busca de identidade, afirmação de cidadania e respeito
à diversidade. Através da sua trajetória pessoal, Silva (2012) reflete sobre o modo
de fazer dança contemporânea a partir das matrizes de manifestações da cultura
popular brasileira. A autora adota o termo dança brasileira contemporânea na
medida em que se interessa pela discussão em torno do diálogo existente e possível
da dança contemporânea com a cultura popular brasileira (2012, p. 17). Ainda
considera a dança brasileira contemporânea atrelada às matrizes africanas plurais e
alicerçada em questões histórico-sociais sobre o negro no cenário nacional.
A dança brasileira contemporânea que aqui defendo é aquela pautada em expressões populares brasileiras. Isto é, aquela que tem a poética corporal elaborada em motivos da corporeidade presente em manifestações dançadas da cultura popular brasileira fundida a parâmetros estéticos fornecidos pela dança contemporânea (SILVA, 2012, p. 19).
Silva (2012) apresenta a seguinte questão: “Que dança é essa?”, e ao longo
de suas discussões é possível encontrar algumas pistas, bem como entender a
dificuldade de obter uma única resposta que contemple sua compreensão de Dança
Popular. Neste mesmo movimento de Silva (2012), não pretendemos aqui responder
a esta questão e conseguir conceituar danças populares brasileiras, mas sim
discorrer acerca das diferentes configurações de danças populares e apresentar a
concepção de corpo adotada pelas autoras. Ao abordar as percepções corporais em
danças brasileiras contemporâneas, a autora comenta:
No cerne de mestres e brincantes populares que existem de fato, Seu Firmino impressiona, “com o jeito que seu corpo dá”, “suas pernas fazem miserê, dá rasteira em cobra e nó em corda seca”. No momento da roda da capoeira, de samba, de jongo e tantas outras manifestações populares brasileiras em que se pode encontrar a firmeza de Firmino, vemos o jogo do corpo, movimento no qual a cultura se movimenta no corpo e corpo movimenta a cultura (SILVA, 2012, p. 46).
Partindo da reflexão de que “a cultura se movimenta no corpo e o corpo
movimenta a cultura” é que podemos considerar a pertinência das danças populares
brasileiras, bem como a complexidade deste mover-se no corpo-cultura como algo
de um alcance imensurável, no qual nem sempre as palavras não dão conta de
descrever, seja pela impossibilidade de relatar as percepções corporais ou pela
abrangência simbólica das manifestações populares. Como afirma Silva (2012, p.
46), “na roda, movimento é o próprio pensamento do corpo” e assim, como
79
pensamento, movimento e corpo são constantemente ressignificados. Se
conseguirmos compreender as entrelinhas invisibilizadas pela história teremos
certamente um campo potencial de pesquisa e articulação de diversas formas de
manifestações não apenas artísticas, mas sociais e políticas, pois há nas Danças
Populares a pluralidade cultural brasileira e a ampla possibilidade do hibridismo.
No caso do Cavalo-Marinho, investigado por Maria Acselrad, foi a dança no
interior da brincadeira que chamou atenção da autora e representou o principal canal
de comunicação entre a pesquisadora e seu objeto de estudo. Para Acselrad (2013,
p. 22), “a dança possibilitou a compreensão daquilo que significa ser brincador, ao
considerarmos dança não apenas um conjunto de padrões de movimento e
deslocamentos espaciais no tempo [...], mas possibilitando a compreensão de
valores éticos e estéticos ali em jogo”. Para a autora:
As danças populares e tradicionais possuem como elemento principal o fato de que precisam do corpo para acontecer. “Cavalo Marinho é brincadeira de presença”, dizia Bio Roque (dono do grupo Cavalo Marinho Boi Brasileiro). Com o corpo, no corpo e através do corpo se faz dança, música e poesia. Lugar atravessado por desejos e em constante formação e transformação, o corpo aqui desencadeia processos que caracterizam a brincadeira como experiência de multiplicidade subjetiva. Esse corpo extrapola a si mesmo, se expande, se contrai, torce e distorce, se multiplica e, assim como invade, é invadido. Ao nos apresentar formas diferentes de se mover, nos revela formas diferentes de ver e ser (ACSELRAD, 2013, p. 23).
O corpo, nas Danças Populares Brasileiras, é este misto de brincadeira e vida
real, de trabalho e lazer, de encontro e presença, de memória e história. O corpo,
seja no samba de roda, cavalo-marinho ou em outras danças populares, apresenta
uma identidade singular, que se expressa e movimenta de acordo com as vivências
e experiências que permeiam seu dia a dia e que contextualizam sua história. É um
corpo que exprime memória, ancestralidade e contemporaneidade ao mesmo tempo.
Corpo que, ao sambar ou ao bater tamanco – como no fandango –, expressa o que
vive das suas tradições e atualizações, no sentido de traduzir sentimentos, desejos e
anseios.
O corpo é, dessa maneira, a identidade de cada integrante do samba de roda, não no sentido da escultura físico-corporal, linhas ou curvas que deram muitas vezes o tom de “exótico” ao corpo negro, mas o corpo enquanto lugar da memória e da criatividade (AMOROSO, 2009, p. 91).
80
O corpo é lugar da memória e criatividade e por isso ele está atrelado às
tradições e aos conhecimentos vindos do passado, bem como conectado ao
presente de um modo dinâmico, que permite transformações e ressignificações
constantes. Ao olhar para a formação cultural brasileira e para as teias de
manifestações e interseções que as relacionam, é possível perceber entrecruzares.
Neste sentido, Oliveira (2007 apud SILVA, 2012) apresenta o conceito de
encruzilhada, que pode ser considerada como um “entrelugar”: “Partimos do lugar
africano que é um lugar desterritorializado. Pela diáspora negra e pela própria
aventura humana, o lugar cultural africano tornou-se o entrelugar” (p. 62). A
encruzilhada representa para a autora um lugar comum das manifestações, da
cultura afrodescendente, do trânsito de identidades. A encruzilhada é apresentada
não como um lugar concreto, mas como uma metáfora de tempo-espaço.
A encruzilhada43 ou entrelugar está submetida a diversos tipos de relações de
poder, tanto se pensarmos nas tradições como nas tentativas de traduções pelo viés
etnocêntrico. As danças populares brasileiras são um modo de resistência e
sobrevivência social, e podemos observar isso, por exemplo, nos congos, nos boi-
bumbás, na capoeira ou nos sambas de umbigada. No decorrer da história foi
possível minimizar o poder que tudo determinava através destas manifestações,
algumas vezes com confrontos diretos como as proibições da capoeira e rodas de
batuque e outros momentos sem confrontos e através de um espírito brincante,
participativo, colaborativo, no qual as relações de poder eram “mascaradas” e
transformadas em motivações das festas populares, através das quais os grupos
foram se fortalecendo e transformados em potência crítica e criativa.
A encruzilhada se constitui justamente nesse processo de encontro, tensão, paixão, conflito, incorporação, assimilação, sincretismo, que tecem identificações afro-brasileiras, aparentes em costumes, na culinária, na religião, na língua e, sobretudo, no corpo (SILVA, 2012, p. 65).
As encruzilhadas, nessa perspectiva, são vias que tecem as identidades,
móveis e transitórias, e que justificam e dão sentido às linguagens, elas são
transformadas e reatualizadas constantemente e neste dinamismo dão lugar às
singularidades e às alteridades imbricadas no corpo. Enfim, para a autora,
43
A autora Oliveira (apud SILVA, 2012) adota o conceito de encruzilhada entendendo-o como um entrelugar.
81
encruzilhada é a construção social e histórica da corporeidade na dança popular
brasileira. Neste sentido, Oliveira afirma:
Um corpo é uma construção cultural, por isso ele é território dos sentidos. Sente na sua pele os apelos do mundo e sofre em sua extensão o amálgama da cultura. O corpo nunca pode ser reduzido a um conceito, posto que é território da cultura, portanto, lócus da experimentação. O corpo, ao mesmo tempo, significa e é significado, interpreta e é interpretado, representa e é representado. O corpo é, ao mesmo tempo, índice, ícone e símbolo. Daí que o corpo não é apenas um organismo biológico, mas um tecido cultural (OLIVEIRA, 2007 apud SILVA, 2012, p. 66).
O corpo, como tecido cultural, está conectado às dinâmicas sociais e, a partir
de territórios distintos, como é o caso dos espaços que ocupam os mestres,
brincantes, dançarinos ou tocadores, são construídos corpopulares44, que
apresentam fronteiras entrelaçadas, teias culturais inscritas e ressignificadas no
corpo através de experiências, fazendo das danças populares brasileiras a tradução
da nossa história, memória e ancestralidade.
Entrecortando relações marcadas por identidades específicas, que se fazem
múltiplas e em constante construção, as danças populares com suas características
transitam pela festa, brincadeira, trabalho, religião e pelo fazer cotidiano. Neste
sentido, observamos a especificidade das brincadeiras no fazer popular e a
percebemos como parte de um universo transformativo, de fatalidade móvel, sendo
as manifestações capazes de conviver com a alteridade, fazendo de cada momento
da brincadeira único e singular (ACSELRAD, 2013).
Para Acselrad (2013), é preciso entender que nas danças e manifestações
populares a brincadeira é indissociável e dá sentido às práticas; o popular congrega
com o universo brincante, repleto de símbolos e signos que produzem a cultura
popular e são produzidos por ela. As brincadeiras têm, por um lado, um teor irônico
e grotesco das piadas e, por outro, torna a brincadeira algo divino. Para
compreender melhor o significado das brincadeiras na cultura popular, Maria
Acselrad explica:
Na brincadeira, a beleza é o resultado de uma relação criativa que se expressa através do cuidado com a brincadeira. E a brincadeira, o resultado de uma relação de cuidado que se expressa de maneira criativa com a vida.
44
Corpopular, o corpo que quer pular, o corpo popular. Corpopular é o nome criado pelo artista Leandro Medina, que assina o poema que faz abertura do livro Corpopular – Interseções Culturais, organizado por Renata de Lima Silva e José Luiz Cirqueira Falcão.
82
Ter uma brincadeira, como afirma Bio Roque, significa “ter uma alegria na vida” (ACSELRAD, 2013, p. 50).
Ao passo que Bio Roque45 afirma que “ter uma brincadeira é ter uma alegria
na vida”, a qual envolve uma relação de cuidado, no samba de roda o estado de
alegria parte de um estado individual de festa, misto de alegria e prazer, motivado
pela música e significado, e inscrito no corpo. “A alegria do samba de roda provoca
esse sentimento de êxtase no qual o corpo físico, que pode ser velho ou novo, dá
lugar ao corpo-dança, sem idade e fica pleno” (AMOROSO, 2009, p. 95). É possível
perceber que tanto o cavalo-marinho quanto o samba de roda são brinquedos de
gente grande, os quais não determinam idade, apenas agregam pessoas com
disposição em comum, porém o sentimento de alegria possui signos diferentes em
cada uma das manifestações – de um lado a relação de cuidado e do outro o estado
individual de festa.
Quando uma baiana entra para sambar, faz o seu pinicado e escolhe outra, ela já vem brincando com a outra, jogando com ela como que dizendo com o corpo: “agora é sua vez”. Quando a menina sai para a roda no “sai ô piaba”, no qual ela realiza a mímese do que a letra da música fala, ela brinca, envergonha-se, exprime-se e se revela através do jogo do “agora é sua vez” (AMOROSO, 2009, p. 95).
O jogo em forma de desafio no samba de roda indica ações corporais e
exprime a brincadeira, mas os significados destes símbolos podem ir além das
brincadeiras e revelar outros sentimentos. No cavalo-marinho, ao mesmo tempo em
que Bio Roque afirma que “brincar é ter uma alegria na vida”, a brincadeira também
é considerada coisa séria, pois normalmente está atrelada ao trabalho e obrigações,
ao ofício, aos saberes e heranças.
O brincador é aquele que gosta de festa, de farra, de samba. Não pode viver sem isso. Precisa da ordem e da desordem que a brincadeira coloca a sua disposição. A vadiação, o namoro, a cachaça, a amizade, o fumo, a alegria são elementos recorrentes nas toadas da brincadeira (ACSELRAD, 2013, p. 48).
E, para dar conta destes dois universos, do trabalho e da festa, a autora
sugere que a relação com o improviso na brincadeira seja responsável por esse
diálogo, que é uma metáfora da vida do brincador com a relação com a terra,
45
Brincante da cultura popular, dono do Cavalo-Marinho Boi Brasileiro. Faleceu em abril de 2010 (ACSELRAD, 2013).
83
passando ambas pelo cuidado. As danças populares brasileiras são pautadas
nessas dinâmicas da brincadeira, da festa, da coletividade, da
multidimensionalidade, bem como da improvisação. No caso do samba de roda,
O improviso acontece também dentro da roda, quando uma sambadeira entra pra sambar e revela a sua individualidade, o seu “jeito” de sambar. [...] Além disso, o improviso salta aos olhos quando a sambadeira entra em diálogo com a viola ou com o timbau, onde é imprevisível a movimentação do corpo e é o instantâneo se revelando naquele momento e espaço que não se repetirá mais daquela mesma maneira (AMOROSO, 2009, p. 91).
A dinamicidade possibilitada pelas danças populares, utilizando o “jogo de
cintura” para improvisar, da entrega para dançar, da busca por entender o contexto
para poder interagir, do diálogo do dançarino com a música, permite revelar a
complexidade e completude possíveis em cada manifestação popular. Isso não
responde a modelos predeterminados, mas se transforma e ajusta constantemente,
de acordo com as relações, necessidades e particularidades, tanto do local na qual
está inserida quanto aos dançarinos, brincadores e público.
Amoroso revela a participação e interação do público no samba de roda, o
qual ora é participante sambando junto na roda, ora é plateia, especialmente nas
apresentações em palco. Para ela, “o samba de roda revela-se, dessa maneira,
como um elemento aglutinador das pessoas em torno da festa” (AMOROSO, 2009,
p. 83). Tanto no samba de roda como em outras danças populares é possível
perceber este caráter da coletividade, da proximidade e da interação entre
dançarinos e público, ambos relacionados por interesses em comum.
“O samba de roda é coletivo, é alegre, é festivo” (AMOROSO, 2009, p. 94).
Essas características do samba também podem ser identificadas no boi-bumbá, nos
sambas de umbigada, no cavalo-marinho e também no Fandango Paranaense.
Diferentes manifestações populares, com características díspares, mas com desejos
e alcances similares, como o sentido de festa.
O estado de festividade do coletivo no samba de roda cria o que posso chamar de uma atmosfera de festa. Essa atmosfera festiva é determinada especialmente pela roda, musicalmente pelo som e cenicamente pelo corpo. O imaginário desse coletivo é povoado de memória ancestral e incentivado a transformar o presente através das mudanças incorporadas na própria expressão (AMOROSO, 2009, p. 94-95).
84
Assim como no samba de roda a coletividade se reflete na festividade, e vice-
versa, no cavalo-marinho isso se dá no encontro com o outro, no cuidado com o
outro, na relação estabelecida com o meio que o cerca, e assim o conhecimento se
constrói.
Cuidar da terra e da brincadeira envolve uma capacidade e habilidade estéticas. A poesia vem do gosto pela vida, da possibilidade que o sujeito tem, ao perceber a fertilidade ou potencialidade do meio que o cerca, de ser o instrumento do samba (samba é sinônimo de brincadeira, festa, farra, noitada). É uma questão de saber olhar, tratar, cuidar, lidar. É dessa forma que o conhecimento se constrói. O prazer de brincar vem muito do prazer de brincar com o outro (ACSELRAD, 2013, p. 50).
“O prazer de brincar vem muito do prazer de brincar com o outro”, revela a
importância do coletivo nas brincadeiras das danças populares, que partem de um
estado individual e tomam uma dimensão grupal. “Cada brincador e,
consequentemente, cada figura tem a sua própria maneira de dançar” (ACSELRAD,
2013, p. 135). Esta é uma das características que movem o saber popular e as
danças neste universo, tanto no samba e na capoeira quanto no boi-bumbá, no
cavalo-marinho e no fandango há o espaço para a aprendizagem e invenção. Os
atravessamentos ocorrem no corpo e, a partir deles, as desconstruções podem
resultar em ressignificações, capazes de traduzir instantaneamente a cultura popular
neste entre-lugar. Acselrad (2013, p. 138) afirma que “o dançarino, quando se
movimenta, transporta um mundo consigo [...] muito da vida de um brincador, entra
junto com ele na roda [...]”.
Devido à dinamicidade da estrutura das brincadeiras da cultura popular não
há rigidez na aquisição de saberes, há trânsito e inconstância de brincadores, e isto
contribui para a constante reestruturação das brincadeiras, na qual surgem
combinações inovadoras e, através das improvisações no universo da cultura
popular, existe lugar para o inesperado. As brincadeiras são coletivas, acontecem no
grupo e interagem com o público. Há constantemente o diálogo corporal, o qual
denuncia contornos característicos das brincadeiras. Acselrad afirma: “Esses
personagens cujos corpos não são individuais, mas coletivos – porque, assim como
invadem, são invadidos –, vivem, morrem, renascem e mostram-se em toda
intimidade da sua existência” (ACSELRAD, 2013, p. 129).
Neste mesmo sentido, no samba de roda, Daniela Amoroso apresenta em seu
discurso a totalidade de ser um dançarino nas danças populares brasileiras: “O
85
samba ultrapassa a noção de dança – ele é o cotidiano, a vida e a tradução em
alegria das experiências vividas” (AMOROSO, 2009, p. 92). Enquanto pesquisadora,
Amoroso (2009) apresenta a preocupação de que compreender uma expressão
cultural implica que ela seja entendida no cotidiano da vida, ou seja, é preciso estar
sensível à memória coletiva e ao imaginário coletivo que ambienta tal expressão.
Neste sentido, a autora se refere à multidimensionalidade do samba de roda, não
limitado apenas na dança ou na roda, mas sim em um universo mais abrangente:
[...] as sambadeiras, os tocadores, a roda, o miudinho, as palmas da mão, os pandeiros, a viola, a indumentária, as canções, as letras, o lugar onde ele se dá, a comida preparada para cada ocasião, são elementos indissociáveis para a compreensão daquilo que o samba de roda é (AMOROSO, 2009, p. 82).
Assim como o samba de roda ou o fandango, as danças populares brasileiras
estão inseridas em universos criativos de invenção e construção de saberes, em que
as experiências são norteadoras dos caminhos de se reconhecer e ressignificar os
fazeres populares. As múltiplas configurações de dança apresentadas mostram a
pluralidade da cultura popular, que é atravessada por diversas relações e interesses,
mas ainda assim consegue manter o espírito brincante e festivo, abarcando um
território dos sentidos como alegria e prazer, ironia e sarcasmo. Essa dinamicidade
da cultura popular, das danças e suas brincadeiras possibilita constante
reestruturação, inovação de combinações, improvisações e inventividade.
Revisitar a perspectiva das autoras acerca das diferentes configurações das
Danças Populares Brasileiras e a concepção de corpo possibilitou reconhecer na
dança do fandango algumas características abordadas e, com isso, encontrar pistas
para articular os dados da pesquisa de campo, considerando as convergências e
divergências reconhecidas entre o objeto de estudo dessa dissertação e as noções
apresentadas. Em relação às distintas configurações de dança é possível relacionar
ao fandango o sentido da festa e da multidimensionalidade apresentada por
Amoroso (2009), das brincadeiras abordadas por Acselrad (2013), das encruzilhadas
que resultam em construções culturais (Silva, 2012) e dos sentidos que as tradições
dão às configurações atuais das Danças Populares, conforme observa Monteiro
(2011).
As percepções de corpo apontadas pelas autoras possibilitaram compreender
que o conhecimento no Fandango se dá no corpo, na experiência, no movimentar-
86
se, no rufar dos tamancos ou no balançar as saias, enfim em todas as falas do corpo
e silêncios no corpo que permeiam o universo do fandango. Assim, os saberes se
constituem no processo, e é a processualidade que determina os caminhos de
aprender a dançar. Com base nas autoras Silva (2012), Acselrad (2013), Monteiro
(2011) e Amoroso (2009) o que tocou, afetou, ressignificou e ficou imbricado no
corpo foi: a cultura se movimenta no corpo e o corpo movimenta a cultura;
movimento é o pensamento do corpo; corpo desencadeia processos de experiência
de multiplicidade subjetiva; ao nos apresentar formas diferentes de se mover, nos
revela formas diferentes de ver e ser; corpo enquanto lugar da memória e
criatividade; corpo que é construção cultural, território dos sentidos; corpo que é um
tecido cultural.
A partir dessas configurações e percepções de dança popular e corpo é
possível pensar uma tradução para o Fandango que minimize os efeitos traidores
tanto das teorias quanto da vivência em campo, pois, conforme Bião (1996), o
tradutor é inevitavelmente um “traidor”, e, a fim de adotar uma configuração de
dança distinta – porém entrelaçada com aquelas apresentadas até este momento –,
apresento os caminhos e encontros da cultura popular e a educação para investigar
os processos de aprendizagem na dança do fandango paranaense.
87
4 CAMINHOS E ENCONTROS – EDUCAÇÃO, CULTURA E PROCESSOS DE
APRENDIZAGEM NAS DANÇAS POPULARES BRASILEIRAS
Existem diversos espaços de produção de conhecimento, tanto formais
quanto informais e não formais, nos quais se configuram distintos conhecimentos e
experiências. Segundo Ghon (2011), a educação não formal possibilita múltiplas
aprendizagens, que vão desde o desenvolvimento de habilidades e potencialidades
até a compreensão de mundo e vida. Alguns autores abordam a educação não
formal e educação informal como sinônimos, porém, para Gohn, existem diferenças
na compreensão desses conceitos. Para esta apreensão, é preciso diferenciar cada
um dos conceitos e, a partir deles, pensar na relação da cultura com a educação não
formal.
A educação formal é aquela desenvolvida nas escolas, com conteúdos previamente demarcados; a informal como aquela que os indivíduos aprendem durante seu processo de socialização – na família, bairro, clube, amigos etc., carregada de valores e culturas próprias, de pertencimento e sentimentos herdados; e a educação não-formal é aquela que se aprende “no mundo da vida”, via os processos de compartilhamento de experiências, principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas (GOHN, 2006, p. 28).
Considerando que os procedimentos metodológicos utilizados nos processos
de educação não formal nem sempre estão sistematizados, principalmente em
algumas experiências de cultura popular, o objetivo deste capítulo é estabelecer
uma discussão sobre a relação da educação não formal com a cultura popular,
levando em consideração as noções de dança popular brasileira, buscando desvelar
como se dão os processos de aprendizagem da dança no Fandango a partir da
abordagem de aprendizagem inventiva (KASTRUP, 2007).
Quando consideramos que as relações educacionais são sociais e também
culturais, e acreditamos que o sentido dos conhecimentos em dança popular,
abordados em diferentes espaços, pode divergir, é que percebemos que eles
precisam ser investigados. Para Ghon (2011), um dos pressupostos básicos da
educação não formal é de que a aprendizagem se dá por meio da prática social. É a
experiência das pessoas em trabalhos coletivos que pode possibilitar o aprendizado,
sendo assim, o conhecimento pode se dar por meio da vivência de certas situações-
problemas e essa interatividade é fundamental para a aquisição de novos saberes.
88
Diante dessas perspectivas, buscaremos entender os processos educacionais
intrínsecos à cultura popular. Para isso, será necessário compreender a educação
pela via da cultura e a cultura pela via da educação, sendo que tais entendimentos
possivelmente permearão as compreensões da dança popular brasileira, em
especial no Fandango, como uma ecologia de saberes que atravessa os campos da
cultura e educação constituindo um entre-lugar – ultrapassando as fronteiras e
criando novas conexões e caminhos.
Boaventura de Souza Santos (2010) apresenta o conceito de ecologia de
saberes como uma forma de reconhecimento da pluralidade de saberes
heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e
dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes se
baseia na ideia de que o conhecimento é interconhecimento. O autor aposta na
pluralidade de epistemologias e de conhecimentos, neste sentido há a busca de
credibilidade para os conhecimentos não científicos.
Para a ecologia de saberes o conhecimento é a medida do realismo, ele é
compreendido como intervenção no real e não como representação do real. Ainda
para Santos (2010), existem muitas formas de intervenção no real que nos são
valiosas e para a qual a ciência moderna pouco contribui.
Pensar as Danças Populares Brasileiras, em especial a manifestação do
Fandango, sob a ótica da educação não formal (GHON, 2011) articulada com a
perspectiva da ecologia de saberes (SANTOS, 2010) torna-se uma possibilidade de
alcançar o conhecimento prudente, ter uma visão mais abrangente daquilo que
conhecemos e desconhecemos, bem como compreender a aprendizagem nas
danças populares como possibilidade de invenção de problemas, sendo uma
experiência da problematização. Enfim, para compreender a complexidade das
danças de manifestações populares é muito importante que saibamos escutar não
apenas as falas, mas também os silêncios que acompanham ou interrompem
aquelas falas (GOHN, 2011) e, no caso da dança, as discursividades instauradas
nos corpos que dançam.
89
4.1 CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO – RELIGAÇÃO E ECOLOGIA DE
SABERES NO FANDANGO PARANAENSE
Colocar em diálogo a cultura popular e a educação não se trata de propor um
receituário de métodos frente a um objeto inerte, mas é uma viagem sem porto
definido, é alçar voo alto com pouso incerto, é movimentar nichos de poder e
certezas estabilizadas. Nesse sentido, o conhecimento do pesquisador é
atravessado pelo contexto, com suas problemáticas sócio-históricas e seu caminho
de investigação é processual, exigindo uma postura de coragem para “ir além” e
dissolver as estabilidades inerentes ao objeto estabelecendo um diálogo intercultural
(SANTOS, 2010) e plural de saberes. “O caminho se faz ao andar” possibilita
ultrapassar fronteiras, nas buscas por compreender as incertezas do mundo, criando
um diálogo constante de saberes. Essa perspectiva se coaduna com a abordagem
da religação dos saberes (COELHO, 2011).
[...] serve de ponto de partida para a realização desses metapontos de vista, não se situa no plano das ideias e das utopias não realizáveis. É teoria e prática, ação política, prática ética, reflexão criativa, negação da certeza, reconhecimento do erro. A palavra “religação” define a intenção de superação das dicotomias cartesianas (COELHO, 2011, p. 35).
Para o autor, a religação requer um choque cultural que invista contra as
estruturas da repetição e aposte nas estruturas da criatividade, nos desregramentos
das artes e nas incertezas das teorias e modelos, a qual agencia a explicitação da
dialogia vida-ideias. Para Coelho (2011, p. 36), “é preciso ir além das leis de
equilíbrio e da fábrica da ordem da cultura, assim como das regulações que os
paradigmas do mercado e da informação tentam impor a todos”.
A religação propõe pensar os processos de aprendizagem, como no caso do
Fandango, como algo aberto, plural, que se faz ao caminhar. A manifestação
popular do Fandango se constitui desta forma, pois os mestres não apresentam
didática estruturada para ensinar a dançar, tocar e cantar Fandango; o aprendizado
se dá pela observação, pela experiência e vivência práticas. Apesar de haver uma
estrutura no Fandango, ela é móvel, pois não existem modelos, métodos e
procedimentos únicos e absolutos de ensinar e aprender Fandango. Os mestres não
se utilizam de padrões de desenhos coreográficos dos batidos ou de técnicas
específicas de bater o tamanco ou segurar a saia, e não é possível ver os tocadores
90
lendo cifras de músicas. Em contrapartida existe uma disponibilidade para que a
aprendizagem se efetive a partir dos ensinamentos dos mestres que demonstram os
saberes, contam histórias e revelam segredos do fazer Fandango, ou seja, são
potenciais processos abertos de produção e invenção.
A cultura é um fenômeno instável, que se dá nas interações individuais, no
caso do Fandango, na relação permanente entre mestres e aprendizes, como
compartilhamento de saberes, o que envolve empatia. Não é possível reduzir a
educação a um só caminho, pois, além de perigoso, isso pode ser perverso, é
preciso contornar obstáculos e criar maleabilidade para tecer os processos de
aprendizagem. Para Coelho (2011, p. 30), “em tempos líquidos de hoje, precisamos
de um novo sujeito do conhecimento que reconheça o papel das tecnologias do
infinitesimal, mas admita a força propulsora e antecipatória das múltiplas criações do
imaginário”.
Isso requer como ponto de partida a religação e circulação dos saberes, que
possibilita um posicionamento crítico do sujeito acerca do conhecimento proposto, o
qual contextualiza e constrói saberes, que não nega a diversidade, cria novas
formas de entendimento do mundo e enfrenta constantemente desafios do
conhecimento, sendo consciente das incertezas que o cercam.
A consciência das incertezas pode ser relacionada e compreendida pela ideia
da douta ignorância proposta por Santos (2010, p. 543), na qual “ser um douto
ignorante no nosso tempo é saber que a diversidade epistemológica do mundo é
potencialmente infinita e que cada saber só muito limitadamente tem conhecimento
dela”. Para o autor, o saber que ignora é o saber que ignora os outros saberes que
com ele partilham a tarefa infinita de dar conta das experiências do mundo.
Se deslocarmos o conceito de Santos para compreender o que se ignora
sobre o Fandango Paranaense, podemos compreender que muitos saberes que o
constituem foram invisibilizados, e romper com essa distinção entre “um lado e outro
lado da linha” é uma alternativa para tornar visível o que se ignora sobre essa
manifestação. Assim, o desconhecimento acerca do Fandango no estado do Paraná
justifica a relevância de trazer à luz este conhecimento, pois, apesar de ser uma
manifestação reconhecida pelo IPHAN como patrimônio cultural, sua importância se
dá apenas de forma localizada.
Isso também acontece com o processo de aprendizagem do Fandango, pois a
manifestação envolve um universo de saberes que englobam a dança, a música,
91
modos de ser, falar e viver, que foram atualizados a partir de novas dinâmicas
culturais, ignorando alguns saberes e atribuindo valores a outros, que configuram o
que o Fandango é hoje. Deste modo, todos os saberes são atravessados por outras
formas de conhecimento, impossibilitando o saber completo, pois, além de
complexo, ele se ressignifica constantemente.
Neste sentido, os saberes são tecidos criando novas teias de informação e
conhecimento, que se reinscrevem e reinventam a todo momento. É importante
privilegiar as experiências da criatividade e inventividade, as quais são abertas e
polifônicas e podem nos defender das barbáries do pensamento conciso e prolixo.
Teixeira Coelho (2011) acredita que a missão da educação seja desfazer fronteiras,
entrelaçar pensamentos, religar razão e emoção, racionalismo e sensibilidade,
sabedoria e loucura, consciente e inconsciente, arte e ciência. São circuitos auto-
organizados que se retroalimentam mutuamente e traduzem esperanças, desvarios,
reorganizações.
Esses cruzamentos de saberes resultam em diálogos interculturais,
instaurando uma ecologia de saberes (SANTOS, 2010) que parte do princípio da
incerteza, ignorância e da multiplicidade de epistemologias. Trata-se de explorar a
pluralidade interna da ciência, ao mesmo tempo em que promove a interação e a
interdependência entre os saberes científicos e os outros saberes, não científicos.
“Essa razão aberta pode ser retroalimentada por dialogias, a qual não denega a
força da razão, mas introjeta que a via racional não é a única forma de acessar o
real por meio de teorias, conceitos, proposições” (COELHO, 2011, p. 35). Para o
autor, é preciso aprender a religar parte e todo, texto e contexto, local e planetário,
para que os paradoxos gerados pelo globalismo não sejam assumidos como redutos
unidimensionais de certeza.
Isso permite entender os processos de aprendizagem do Fandango como
incompletos e inconstantes, mas ao demonstrar essa incompletude possibilitam
pensar que eles se renovam constantemente, que se refazem, reinscrevem e
ressignificam. Estão em constante processo, compostos por fluxos, brechas e
desordens, mas ao se apresentar nesse estado indeterminado possibilitam outros
processos abertos de produções e invenções. Sendo assim, não há palavras de
ordem para a aprendizagem, apenas caminhos, proposições, horizontes.
Esses caminhos que se fazem por saberes complexos e transversais levam a
um horizonte inacabado, que está sempre em processo religando saberes,
92
acessando informações e articulando distintos conhecimentos. A construção de
conhecimento precisa levar em consideração esse caráter transitório dos saberes,
que se reinventam a partir de novas linguagens, proposições, políticas, que
sustentam e modificam o diálogo intercultural.
Santos (2010) propõe exercícios que visam ampliar a visão histórica do
Ocidente, no sentido intercultural, dando voz aos saberes invisibilizados que foram
esquecidos e marginalizados por interesses imperialistas e ocidentalistas. Esse
exercício não tem como objetivo a recuperação histórica, mas sim o reconhecimento
de saberes que poderiam dar outro encaminhamento para a história. As
experiências e tradições impostas pelo Ocidente fazem uma tradução que
desconsidera saberes que deveriam ser religados e visibilizados.
No Fandango Paranaense as políticas de proibição da prática social no Brasil
Império, como forma de regulação, bem como em outros momentos no qual a
manifestação era considerada lasciva, de menor valor, foram responsáveis por omitir
e invisibilizar saberes que até hoje são pouco conhecidos e considerados como
conhecimento. A proposta de criar um diálogo intercultural sugere uma nova
compreensão das epistemologias, a partir da consciência do não saber e da busca
por tecer novas redes de conhecimento na qual possam ser apresentadas ausências
de saberes, para além do pensamento abissal.
Como pensamento pós-abissal, a ecologia de saberes procura dar
consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositivo. Na ecologia de
saberes cruzam-se conhecimentos e, portanto, também ignorâncias (SANTOS,
2010). Essa proposição se apresenta como uma contra epistemologia, que resulta
de dois fatores, de um lado, do novo surgimento político de povos e visões de
mundo do “outro lado da linha” como parceiros de resistência ao capitalismo global,
onde outros conhecimentos não científicos e não ocidentais prevalecem nas práticas
cotidianas das populações, como é o caso do Fandango Paranaense, e, do outro
lado, há uma proliferação sem precedentes de alternativas que não podem ser
alçadas sob uma única alternativa global (SANTOS, 2010).
Para o autor, todas as formas de ignorâncias são tão heterogêneas e
interdependentes quanto as formas de conhecimento, visto que a aprendizagem de
certos conhecimentos pode gerar o esquecimento de outros, e, sendo assim, a
ignorância deles.
93
Num processo de aprendizagem conduzido por uma ecologia de saberes, é crucial a comparação entre o conhecimento que está a ser aprendido e o conhecimento que nesse processo é esquecido e desaprendido. A ignorância é só uma forma desqualificada de ser e fazer quando o que se aprende vale mais do que o que se esquece (SANTOS, 2010, p. 56).
Desta forma, na ecologia de saberes a ignorância não é um ponto de partida
ou estado original, mas pode ser o estado de desaprendizagem e esquecimento,
ficando assim em espaços do entre. O processo de aprendizagem contempla
saberes e esquecimentos, dando maior valia àquilo que se sabe do que ao que se
desaprende, e, sendo assim, permite reconhecer outras intervenções no real,
possíveis por novas formas de conhecimento.
Há no Fandango Paranaense intencionalidade nas ações, no ato de
participar, de aprender e de compartilhar saberes, assim a manifestação popular
torna-se um modo de intervenção no real por formas de conhecimento
invisibilizadas, seja pela riqueza dos saberes ou modos de vida do povo caiçara,
pelo conhecimento do mar – para a pesca – e da lua – para o plantio –, pela
fabricação de instrumentos e tamancos, ou pelo modo de fazer música e dança.
Essas contribuições não são saberes científicos, mas saberes que conseguiram
preservar modos de vida, universo simbólico e informações vitais para a
sobrevivência dessa manifestação.
Muitas das experiências subalternas de resistência são locais ou foram localizadas e assim tornadas irrelevantes ou inexistentes pelo conhecimento abissal moderno, o único capaz de gerar experiências globais. Contudo, uma vez que a resistência contra as linhas abissais tem de ter lugar a uma escala global, é imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre as experiências subalternas através de ligações locais-globais. Para ser bem sucedida, a ecologia de saberes tem de ser trans-escalar (SANTOS, 2010, p. 59).
Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujeitos, pois o que
se sabe sobre o real é refletido no que se conhece sobre o sujeito do conhecimento.
É assim com os mestres e aprendizes do Fandango, o conhecimento que os cerca
reflete em quem eles são e o que conhecem, de formas singulares e subjetivas, e
suas experiências alargam o entendimento e expandem o caráter do conhecimento.
Para Santos (2010, p. 60), “a ecologia de saberes não concebe os
conhecimentos em abstrato, mas antes como práticas de conhecimento que
possibilitam ou impedem certas intervenções no mundo real”. As experiências de
94
vida dos caiçaras lhes eram inteligíveis pelo saber da experiência, por exemplo, no
tempo do plantio e da colheita do arroz, ou na retirada da caxeta – árvore que tinha
a madeira utilizada para a fabricação de instrumentos do Fandango, a qual era
retirada em uma época determinada pelos caiçaras. Porém, com as leis ambientais,
o conhecimento dos caiçaras foi substituído por outro com base em hierarquia e
poder, e a proibição do manejo da caxeta quase resultou em sua extinção46,
impossibilitando sua utilização para construção dos instrumentos. Neste sentido,
pode-se considerar que vem sendo desperdiçada uma riqueza imensa de
experiências e saberes. É imprescindível que sejam reconstruídas e ressignificadas
algumas experiências no sentido de traduzir a manifestação popular de um modo
que considere as tradições no campo movente da cultura. Assim, a interculturalidade
apresenta-se como possibilidade da ecologia de saberes. Conforme Santos:
Para recuperar algumas destas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu atributo pós-abissal mais característico, a tradução intercultural. Embebidas em diferentes culturas ocidentais e não-ocidentais, estas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também distintas categorias, diferentes universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor (SANTOS, 2010, p. 61).
A complexidade e diversidade de saberes mostra que é impossível mensurar
o conhecimento por uma única via, mesmo se utilizando da ecologia dos saberes,
pois diferentes conhecimentos podem ser incompatíveis, incomensuráveis e
ininteligíveis. Porém através da tradução intercultural se torna possível identificar
preocupações comuns, aproximações complementares e, claro, também
contradições inultrapassáveis (SANTOS, 2010).
A busca pela tradução intercultural possibilita o reconhecimento da
diversidade de conhecimentos, assim a aprendizagem torna-se um processo
contínuo que contem oceanos de incertezas e dissipações, com diálogos
interculturais, baseada em um pensamento pós-abissal, que possibilita um fluente de
rio tornar-se mar.
A religação e a ecologia de saberes, como vias para pensar a educação e
processos de aprendizagem no fandango paranaense, dão possibilidades abertas de
reconhecer e ressignificar os saberes populares, e, além disso, possibilitam pensar
em uma aprendizagem criativa, inventiva e problematizadora que não absorve
46
Este assunto foi debatido em uma roda de conversa dos Mestres Zeca, Nemésio, Anoldo e Aorélio durante a pesquisa de campo.
95
crenças e ideias como absolutas, mas que reside na dúvida e na exploração das
pluralidades do conhecimento, e, sendo assim, busca livrar-se da própria traição de
tornar-se mais uma epistemologia fechada e abissal.
4.2 DANÇAR FANDANGO? PROCESSOS DE APRENDIZAGEM INVENTIVA
No fandango nada se ensina, tudo se aprende.
Versos de Fandango
Abrir espaço para as experiências da vida nos proporciona aprendizado e não
há construção de saber desvinculado da noção de experiência em constante
processo. Estar em contato com os outros, reconhecer os não saberes e permitir ser
atravessado por outros saberes, sendo estes atravessamentos invenções de
problemas, possibilita uma aprendizagem inventiva, mas realocar e reproduzir
saberes no sentido de repeti-los47 e representá-los pode obliterar o processo de
inventividade. Na dança do fandango paranaense, manifestação popular que possui
dinamismo, os dançarinos, folgadores48 e batedores estão constantemente em
contato com instabilidades, seja pelo fato de que cada grupo musical tem um ritmo
próprio, fazendo com que a dança precise se adaptar à singularidade dos violeiros
ou rabequista, seja pelo puxador49 da dança, batedor mestre responsável, que pode
modificar o batido, decidir o tempo de entradas e saídas dos batidos, ou ainda pelo
espaço da dança, apropriado ou não para bater fandango. Sendo assim, na dança
do fandango há momentos de adequação no sentido de repetição e reprodução de
padrões de movimentos pré-estabelecidos na busca pela estabilidade ao mesmo
tempo em que há problematização e invenção, bem como invenção e solução de
problemas, que Kastrup (2007) esclarece:
O problema não é uma forma percebida, não é uma imagem, é, antes, uma potência de chegar a imagens, mas sem ter, em princípio, sua forma exterior e aparente. [...]. Problema aqui não tem o sentido negativo de lacuna ou falta, mas o sentido positivo de exigência de criação. Problema que não é objetivo, que não é da ordem do percebido, mas que consiste numa problematização da subjetividade, numa exigência da criação. A
47
Repetição – não é cópia idêntica, mas o sentido do mesmo. 48
Os termos “folgadores e folgadeiras” derivam da palavra folga, é como eram chamados os fandangueiros, os quais faziam Fandango nas folgas do trabalho. 49
Puxador é o mestre da dança, responsável por puxar os batidos, é ele quem dá o sinal de início e o arremate final da dança.
96
invenção começa como invenção de um problema, problema esse que exige uma solução. Só assim, precedida de problematização, a invenção pode, do ponto de vista de seus resultados, ser entendida como solução de problemas (KASTRUP, 2007, p. 117).
Para a autora, o trabalho da invenção consiste, assim, num movimento de
vaivém, indo do esquema às imagens e vice-versa. A invenção implica tateamentos,
experimentação e imprevisibilidade. E transformar uma ideia implica em gestar algo
novo, que vai além da recognição. No fandango, compor uma moda é transformar
uma ideia em som, pois o invento toma forma e corpo através dos saberes e dos
arranjos que se fazem deles.
Em determinados momentos, ao deslocar o eixo de análise da estrutura da
coreografia para o corpo dos dançarinos do Fandango é possível reconhecer
processos inventivos, a partir da observação de dinâmicas corporais, e não do passo
sistematizado e organizado, vislumbram-se, assim, problematizações. É o estado
corporificado que ao ser problematizado pode resultar em invenção e solução de
problemas. Porém, o conjunto coreográfico, os passos e evoluções da dança
sugerem a repetição, pois estão submetidos a algumas regras e desenhos
coreográficos preestabelecidos que são copiados e reproduzidos a cada dança dos
grupos. Porém essa compreensão da dança não se fecha, pois é na coletividade do
fandango bailado que podem ser reconhecidos processos de aprendizagem
inventiva.
Ao observar o conjunto coreográfico solidificado e estruturado dificilmente é
possível identificar processos de aprendizagem inventiva –, porém, ao analisar o
estado de corpo de cada dançarino e batedor, reconhecemos que há
problematização e invenção de soluções, mas não é possível afirmar que isso se dá
constantemente na dança. O que é considerado invenção em um momento pode
tornar-se repetição e reprodução no momento que segue, dependendo das
dinâmicas corporais dos dançarinos. Ressalta-se que a repetição não se dá como
cópia original do movimento e nem está subordinada ao idêntico “fazendo com que
cada retorno do movimento tenha seu próprio significado” (MATOS, 2012, p. 31).
Assim como o estado corporal pode assumir um padrão mecânico de
movimento, também é possível observar, em passos organizados e coreografias,
problematizações. Por exemplo, ao observar a coreografia de um batido do
fandango é possível perceber que alguns dos batedores da roda alteram os batidos
97
da sola com o bico do tamanco (Figura 5), tendo um estilo próprio e subjetivado de
dançar, enquanto os demais seguem o padrão do passo, rufando com a sola do
tamanco.
Figura 5 - Fandango batido - diferença nos modos de bater o tamanco.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Na imagem acima alguns batedores estão executando a coreografia, porém
criam formas diferentes dos outros batedores de emitir o mesmo som e cumprir com
a função de percussão do tamanco, mas de uma maneira singular, que os próprios
caiçaras chamam de “enfeite”. E para “enfeitar” no fandango é necessário se despir
das conservações e permanências que o permeiam, criando e inventando novas
soluções.
Assim, é difícil identificar o processo inventivo na coletividade de um grupo
específico do Fandango batido, mas ele se dá de forma aparente nas sutilezas dos
movimentos de cada dançarino. Porém, ao observar os distintos grupos é possível
perceber que é do coletivo que emergem as diferenças, por exemplo o Grupo
Folclórico do Mestre Romão tem o batido acelerado e enérgico se comparado ao
Grupo Pés de Ouro, cujo ritmo é espaçado e o batido do tamanco é mais suave, e
foi com base nas diferenciações que se apresentou a pista corpo-dança.
Durante a terceira etapa da pesquisa de campo, ao questionar o mestre
Brasílio50 sobre as transformações na dança do Fandango, ele afirma que “a
diferença no modo de dança é do jeito de bate” e cada grupo da Ilha “tem um estilo
de dança, tem um modo de dança, tem um modo da marca também”, e, mesmo
50
Entrevista concedida por Brasilio Ferres. Entrevista (dez. 2015). Entrevistadora: Thais Ferreira.
98
acreditando que antigamente “a dança era a mesma e a música era a mesma
também” (FERRES, 2015), ele reconhece que diferenças se fazem presentes.
Para o Mestre Brasílio, “naquele tempo tinha quem dançava mesmo, que
dançava pesado, que tem que ter força na perna, né? A dança era a mesma coisa
que antes, mas eu era novo [...]” (FERRES, 2015). Essa percepção da diferença na
dança é uma tradução que o Mestre faz do Fandango hoje, atualizado a partir de
algumas variáveis, podendo ser o contexto onde se fazia Fandango, a idade
avançada dos batedores atualmente, as influências sociais e culturais que
atravessaram a trajetória da manifestação ou ainda outras possibilidades que
interferiram e ressignificaram os processos de fazer Fandango.
Identificar a inventividade na dança, nos modos de problematizar e inventar
solução é uma forma de compreender o Fandango como intervenção no real, como
presença, que reflete formas de luta e resistência. Somente a recognição não daria
conta de fazer resistir a manifestação popular, a criação também delineou a figura
atual do Fandango e ele continua a se redesenhar e reinventar.
Segundo Varela,
As unidades apropriadas de conhecimento são, antes de mais nada, concretas, corporificadas, vividas. O conhecimento é contextualizado, e sua unicidade, sua historicidade e seu contexto, não são “ruídos” que impedem a compreensão do fenômeno cognitivo em sua verdadeira essência, a de uma configuração abstrata. O concreto não é um degrau para algo de diverso: é como chegamos onde estamos (apud KASTRUP, 2007, p. 153).
Essa afirmação de Varela nos aproxima da noção apresentada pelo autor de
enação. Esta remete a uma cognição corporificada, encarnada, distinta da cognição
entendida como processo mental. Sendo assim, é resultante das ações e das
experiências, não se inscreve apenas mentalmente, mas no corpo. Este processo de
enação envolve acoplamentos sociais e linguísticos, e desta forma o corpo está em
constante troca com o ambiente.
No Fandango é possível identificar a noção de enação apresentada, pois a
aprendizagem da dança se dá pela observação dos movimentos, sejam os batidos,
os bailados ou as evoluções coreográficas, e na observação se dão a corporificação
e a inscrição do conhecimento no corpo, pois observar é criar imagem, é corporificar.
A dança não funciona como representação da manifestação, pois seu valor é real e
vai além do simbólico.
99
Ao considerar o fandango e seus dois diferentes modos de dançar – batido e
bailado, é possível maximizar o campo de observação e perceber diferenças nos
processos de aprendizagem de cada um deles. Para o Mestre Nemésio51, “na dança
os batido continua a mesma coisa, os bailado pode muda, batido não, bailado tem
tipo de „don don‟, tem um tipo de „chamarrita‟, toca de um jeito, toca de outro, dança
de um jeito, dança de outro [...]” (COSTA, 2015). Ao tocar um tipo de chamarrita ou
dondon se estabelece também um jeito de dançar, pelo toque da viola e rabeca e
pelo ritmo mais acelerado ou não, cada tocador tem um estilo, fazendo da dança
uma dinâmica.
Além da música, no bailado não se tem par fixo, a todo momento
fandangueiros tiram as damas para dançar e a cada novo encontro na dança
surgem processos de adaptação e modificações do estado de corpo. As
problematizações são constantes e a busca por soluções reflete a aprendizagem
inventiva no fandango bailado. Assim, a dança é uma inscrição no real e não apenas
representa algo.
Representar, para Kastrup (2007), seria destituir referências biológicas,
históricas e fenomenológicas, perdendo toda dimensão experiencial, como algo
mecânico passível de repetição e previsão em seus resultados. A autora dá como
exemplo a máquina, dizendo que “Nada resta de virtual, inventivo ou problemático
na máquina. Não há conhecimento que se atualize por diferenciação e divergência,
pois não há abertura para o sistema de experiência” (KASTRUP, 2007, p. 158).
Logo, a noção de enação é uma superação do modelo de representação, que se
relaciona com a regularidade e previsibilidade.
Para a autora, a enação envolve um campo aberto e movente, no qual a
problematização é incessante, que depende de acoplamentos flexíveis, e, assim, o
cognitivismo se mostra insuficiente, logo não se trata de representação, mas de
enação com o sentido de invenção do mundo. Na música e dança do Fandango os
dançarinos e tocadores se colocam em um campo instável e flexível, pois se fazem
necessárias as improvisações. Conforme o mestre Nemésio, “os batido... tem batido
que você sobe lá em cima a voz, tem que ir lá, senão não dá certo [...]” (COSTA,
2015). Para ele, é necessário modificar o jeito de cantar para dar conta de
51
Entrevista concedida por a Nemésio Costa. Entrevista (dez. 2015). Entrevistadora: Thais Ferreira.
100
acompanhar a percussão dos tamancos que ora pode soar baixa, ora pode soar
muito alto ofuscando o som da viola, rabeca, adufo e canto.
Essa expansão do domínio de interações são redes de conexões ricas e
densas que circundam o processo de aprendizagem como invenção de problemas.
As sinapses, as ligações neurais não possuem linearidade e estão
permanentemente sujeitas à diferenciação e ao crescimento. Kastrup entende este
processo como rizoma52:
O sistema nervoso expande o domínio de interações de um organismo, que passa a acoplar as superfícies sensoriais e motoras mediante uma rede cuja configuração pode ser muito variada. O próprio cérebro, como estrutura central, tem uma dinâmica extremamente cambiante. Possui uma arquitetura indefinida e sempre plástica, na qual as relações não são localizáveis, mas distribuídas pela rede (KASTRUP, 2007, p. 170).
O sistema nervoso constitui uma imensa rede que não distingue
perturbações, não representa, mas é interface entre fora e dentro, desta mesma
forma a aprendizagem é potencializada pela possibilidade da contínua mudança e, a
partir da noção de rede, a aprendizagem pode ser inteiramente ressignificada,
criando constantemente novas conexões. Para Varela,
Tudo o que temos dito aponta para entender a aprendizagem como uma expressão do acoplamento estrutural, que sempre caminha para manter uma compatibilidade entre o operador do organismo e o meio em que ele se dá (VARELA, 1986, apud KASTRUP, 2007, p. 171).
“Aprender é coordenar mente e corpo, fazer com que organismo e meio
entrem em sintonia. Isso significa encarnar ou inscrever a cognição no corpo”
(KASTRUP, 2007, p. 172). No entendimento de Kastrup (2007), trata-se de uma
aprendizagem que começa com representação e instruções simbólicas. Aprender a
dançar o Fandango batido é seguir regras, mas a aprendizagem também pode dar
abertura para que esse processo tome outra proporção de acoplamento, e aprender,
neste caso, não é adequar-se à dança, mas agenciar-se com ela.
52
Para Deleuze e Guattari (GALLO, 2013), rizoma é um sistema aberto. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos estão relacionados a circunstâncias e não mais a essências. Mas os conceitos não são dados prontos, eles preexistem, é preciso inventar, criar. No rizoma são múltiplas as linhas de fuga e portanto múltiplas as possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções etc.
101
O acoplamento como agenciamento é comunicação direta, sem mediação da representação. Comunicação sem subordinação, hierarquia ou determinismo. Não opera por causalidade, mas por implicação recíproca entre movimentos, processos, ou fluxos heterogêneos, por dupla captura. [...] trata-se da produção de uma unidade complexa aprendiz-instrumento, capaz de produzir um processo de diferenciação recíproca (KASTRUP, 2007, p. 172).
Se entendermos que a aprendizagem da dança, e neste caso do Fandango, é
um potencial agenciamento53, então aprender é eliminar distâncias, da observação à
concretização do aprendizado da dança. Aprende-se a observar os dançarinos e
batedores, atenta-se à movimentação das mulheres dialogando com o movimento
coreográfico dos homens, aprende-se no contato com o meio.
Pensando o acoplamento maquínico, fica evidenciado que o produto da aprendizagem não é uma repetição mecânica, repetição do mesmo, mas uma atividade criadora, que elimina o suposto determinismo do objeto ou do ambiente, atividade sempre em devir. Aprende verdadeiramente aquele que cria permanentemente na relação com o instrumento, reinventando-se também de maneira constante (KASTRUP, 2007, p. 173).
Aqui podemos conectar essa articulação do pensamento deleuziano sobre a
repetição com a própria dança. Nele pode-se perceber que a repetição, como
deslocamento do mesmo, também pode ser um modo de emersão para processos
inventivos de aprendizagem na dança. Virginia Kastrup (2007) encontra em Deleuze
alguns caminhos para pensar a aprendizagem, seja através da ideia de que
aprender é decifrar signos, como a percepção de que aprendizagem é um
movimento de vaivém, como uma série de saltos do objetivo para o subjetivo e vice-
versa, e essa é a única possibilidade a se chegar ao que ela chama, nesse
momento, a essência do signo ou sua diferença.
Se aprender é decifrar signos, esse aprendizado se dá por investigação e
percepção de mundo. No Fandango há coisas que acontecem que são alheias a
quem assiste, nem todo diálogo estabelecido entre tocadores e batedores fica
evidenciado para a observação estrangeira àquele universo. E a relação
53
Para Deleuze (1992), segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.
102
estabelecida neste momento entre tocadores e batedores é de inventividade e
solução de problemas. Para o Mestre Aorélio Domingues:
Tem coisas que ninguém percebe, só os violeiros percebem, então violeiro é quem? Quem é o mestre do grupo? Mestre do grupo é aquele que canta em primeira voz com a primeira viola, não é o que canta em segunda, o repique da viola é diferente e a voz é diferente, mas ele tem total dominação sobre o ato fandanguesco. Na dança, a partir do momento em que ele toca um batido, e que esse tamanqueado é iniciado, ele perde totalmente o poder como mestre daquela situação. Ele fica, no caso, esperando o sinal ou o repique de um puxador, e aquele puxador às vezes é determinado ou não. O próprio puxador se mostra na roda dando um passinho pra frente, um volteio pro lado, pra dentro da roda. Então, todo mundo sabe que ele vai repicar... ou pelo salto que ele vai dar ou a posição do corpo, isso são coisas que a gente percebe, mas que as pessoas não percebem. Agora, quando a gente vai fazer folcloricamente, isso não precisa, a gente já sabe quem é o menino que vai bater, a gente sabe quantos versos a gente vai cantar e que verso a gente vai cantar. E na hora do baile não, a gente canta qualquer verso, por isso que às vezes nem as pessoas entendem o que a gente fala na música, porque às vezes eu começo a cantar... o compadre ali, pensa que eu vou cantar uma coisa eu canto outra. Então isso tudo é um universo, faz parte da brincadeira (DOMINGUES, 2014).
A ação corporificada de dançadores e tocadores é dinâmica, exige
improvisação e criação, e ao considerar a flexibilidade de hierarquização no
Fandango, que desliza a maestria entre mestre da música e mestre da dança, é
possível entender o processo de aprendizagem em constante construção,
configurado na improvisação e criação de soluções, e esse diálogo provocativo no
Fandango remete ao caráter brincante das danças populares. Ainda neste sentido,
ao analisar o tamanqueado é possível perceber que ele acontece na brincadeira, em
forma de desafio. E que cada batedor apresenta idiossincrasias a partir de um estilo
próprio de dançar, caracterizando e identificando seu batido.
O tamanqueado, ele rola na brincadeira, do bate mais forte ou bate mais fraco, bate conjuntamente igual. Numa roda de fandango tradicional, na comunidade, às vezes ninguém bate, tem uma célula principal, mas a forma de rufar no caso, né, ou o repicar é diferente. Então, a gente que conhece, a gente percebe isso. Se eu fechar meu olho, por exemplo, e tá os batedores passando, eu sei quem está passando pelo tipo de bater o tamanco. Eu sei quem é o Seme, eu sei quem é Agripino, o Zequinha sei que dá uma puxadinha, o Paulinho ele faz assim. Então eu sei, na maioria deles eu sei quem é, conheço o som que eles emitem, e tudo isso faz parte da brincadeira, da vivência. Então é um universo de coisas, né. É uma dança? É uma dança, mas o que torna ele espontâneo e vivo é essa brincadeira. As brincadeiras nas culturas populares, elas não podem se perder, nem os signos e as funções (DOMINGUES, 2014).
103
Se o som emitido por Seme, Agripino ou Zequinha, aprendizes54 da dança no
Fandango, podem ser identificados pela sensibilidade dos músicos e pela repetição
dos modos de bater o tamanco, então o fandango batido não pode se considerar
invenção, mas a repetição nos modos de bater dos dançarinos é singular e
apresenta modos de subjetivação que permitem identificá-los. Para Lúcia Matos
(2012),
Ao explorar a complexidade do movimento, o transmutar do que se repete no corpo em seus diferentes estados, provoca deslocamentos, retroações, simulacros, pelos quais a diferença transita na organização que ocorre em cada repetição, transbordando séries heterogêneas de movimento que possuem sentidos e metáforas próprias, fazendo com que a repetição seja a diferença em si mesma (MATOS, 2012, p. 31).
Assim, mesmo que as repetições se façam presentes na dança do Fandango
elas são singulares, quando não são a repetição do mesmo, conforme já foi
explicitado, proporcionando que cada retorno ao movimento tenha seu próprio
significado e desta forma as repetições também são afetadas por diferenças, tendo
signos transitórios. Assim, no caso da dança – e, neste caso específico, do
Fandango:
Uma mudança de percepção só poderá ser configurada, após o contato e a efetivação nas interações estabelecidas, com a nova informação incorporada se, e apenas se, essa informação propiciar um outro entendimento de dança (MATOS, 2014, p. 38).
Ao observar os grupos de dança no Fandango e a relação estabelecida com
os músicos é possível reconhecer que suas necessidades de adaptação passam a
assumir o caráter de invenção, baseado em diferenciações que se fazem constantes
nas ações que emergem do ato de fazer Fandango. Nesse sentido, a aprendizagem
passa a ser uma desestabilização e atravessamento, uma rede de conhecimento
hibridizado, que transita no fluxo do movimento, permite a interpretação singular e a
percepção diferenciada do objeto. No Fandango a aprendizagem está em processo,
bem como o aprendiz se faz no processo, não há receituário ou modelo de aprender
e experienciar, e, a cada bailado e a cada batido, novas formas de fazer fandango
54
Os batedores citados são veteranos na dança, mas será adotado o conceito de aprendiz para todo aquele que não está na condição de mestre do grupo.
104
podem se apresentar. Em algumas experiências do fandango há produção de
novidades e de surpresas potenciais, mas não é possível generalizar.
Para Deleuze, a arte é o destino inconsciente do aprendiz. Não dispõe da melhor aprendizagem aquele que toca repetindo a música sempre da mesma forma, mas aquele que é capaz de interpretá-la, ou seja, aquele que, em suas repetições, é capaz do maior número de variações. O melhor aprendiz não é aquele que aborda o mundo por meio de hábitos cristalizados, mas o que consegue permanecer sempre em processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem permanente pode, então, igualmente, ser dito de desaprendizagem permanente. Em sentido último, aprender é experimentar incessantemente, é fugir ao controle da representação (KASTRUP, 2007, p. 174).
Para aprender é necessário estar atento às variações e diferenciações ao
mesmo tempo em que estar desatento a esquemas práticos da recognição; é
eliminar resultados previsíveis, é estar aberto às inovações. Estar atento ao presente
é uma forma de ressignificar a aprendizagem. Isso se dá na dança do Fandango a
partir do momento em que mestre e aprendiz estão sensíveis à dança, conectados
pelo e com o corpo, e que o seu domínio dá espaço aos devires. Para Kastrup
(2007, p. 175), “aprender é, antes de tudo, ser capaz de problematizar, ser sensível
às variações materiais que têm lugar em nossa cognição presente”.
Neste sentido, apresenta-se uma imagem (Figura 4) que representa
diferenciações na dinâmica corporal dos dançadores. Na foto do ensaio do Grupo
Folclórico do Mestre Romão está Joãozinho – neto do mestre Romão –, que dança
fandango desde os três anos de idade e tem o hábito de bater tamanco com as
mãos no ouvido, abafando o som dos outros tamancos e concentrando na sua
batida individualmente. Para ele, essa ação corporal permite minimizar erros e ouvir
o próprio batido isoladamente.
105
Figura 6 - Ensaio Grupo Folclórico Mestre Romão
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Essa dinâmica corporal do batedor Joãozinho, de doze anos, só pode ser
vista nos ensaios, pois nos bailes seu estado de corpo é diferenciado. Assim, é
possível compreender as diferenças na coletividade do Fandango, assumindo cada
batedor modos de subjetivação das ações corporificadas.
A cognição sempre apresenta regularidade e mutabilidade ao mesmo tempo,
essas combinações sólidas e instáveis são típicas das nossas vivências e
experiências. Para Varela e Maturana, todo mundo trazido à mão oculta
necessariamente suas origens, porque uma estabilização operacional na dinâmica
do organismo não incorpora a maneira como se originou (KASTRUP, 2007, p. 176).
A dança do Fandango incorpora na atualidade sua forma de origem ressignificada,
as tradições foram sendo transformadas e o que podemos reconhecer em alguns
movimentos culturais hoje é o dinamismo da dança, que se reinscreve para dar
conta das questões sociais e políticas que a envolvem. A aprendizagem da dança no
Fandango se concretiza neste solo de areias movediças combinado com a
consistência das tradições.
A cognição põe em relação a trajetória do sujeito e seu objeto, do mesmo
modo que tanto sujeito quanto objeto surgem da cognição. “O sujeito é inventivo
porque inventado, e vice-versa” (KASTRUP, 2007, p. 180). No Fandango o processo
de aprendizagem localiza-se em territórios que acompanham as trajetórias de vida
dos mestres, aprendizes e de seus contextos; há processos interativos intencionais
e essa intencionalidade é elemento importante para pensar a diferenciação. Toda
invenção está sujeita a valores, posturas, crenças e ideias, assim, existem limites
concretos na invenção.
106
[...] estamos distantes do concreto se não abordarmos o fato de que invenção nem sempre se dá efetivamente, ou seja, que a inventividade do sistema cognitivo é muitas vezes obstaculizada por um certo tipo de relação com o senso comum, que impede o fluir da cognição e a criação de novas formas de conhecer. Que nem sempre se cumpre a fórmula do aprender a aprender, que assegura a continuidade da invenção contra a rigidez dos hábitos (KASTRUP, 2007, p. 180).
A estagnação no modo de pensar e fazer a dança folclórica pode ser um
entrave que impossibilita fluir a cognição e criação, pois sua dimensão de
representar uma tradição, assegurando a rigidez dos hábitos, limita a inventividade e
impede que se cumpra a fórmula do aprender a aprender. É possível perceber nesta
configuração de dança que os limites também se fazem visíveis, e isso resulta de
uma construção histórica e cultural, na qual os ensaios têm como foco espetáculo,
estabelecendo uma diferença da configuração do fandango como dança popular.
O ato de fazer dança folcloricamente passou por processos de recolonização
em determinado momento histórico. Conforme afirma Luiz Carlos Aguiar Junior, neto
do Mestre Romão: “Sempre houve o batido, né, mas nesse período de 92 a 98 ele
se aprimorou [...]” (AGUIAR JR., 2015). A ocorrência da diferenciação no modo de
fazer o fandango batido se deu pela influência de um bailarino do Teatro Guaíra no
Grupo Folclórico do Mestre Romão, que foi convidado a ir até a Ilha dos Valadares e
repaginar o fandango. Suas criações se deram no sentido de organizar marcação de
palco, de sistematizar o “passeado” das mulheres – que até então arrastavam os
pés como na dança de São Gonçalo55 –, de fazê-las erguer a cabeça e sorrir durante
a execução das coreografias, colocar a mão na cintura e balançar a saia –
movimento que passou a ser chamado de sarandeio. E, apesar de o fandango
acontecer em situações interativas construídas coletivamente, ele também pode
ocorrer por forças de certas circunstâncias da vivência histórica de cada dançador
ou grupo, como neste caso.
Assim, a partir do momento em que o estrangeiro determina como deve ser a
manifestação e apresenta ao Fandango um modelo de estilização, inscrevendo de
outro modo as linhas abissais (SANTOS, 2010), ele oblitera a problematização e
55
Dança religiosa de origem e aculturação portuguesa, inicialmente apresentada nos templos religiosos católicos, com o objetivo de catequizar os pecadores. Foi considerada de caráter mundano, sendo proibida pelas autoridades, passando a ser cantada e dançada nas zonas rurais, onde ainda hoje é aceita e praticada. Na dança de São Gonçalo, durante a evolução coreográfica os homens batem forte os pé enquanto as mulheres os arrastam. Fonte: http://www.cultura.al.gov.br/politicas-e-acoes/mapeamento-cultural/cultura-popular/folguedos-dancas-e-tores/dancas/grupos-de-danca-de-sao-goncalo/danca-de-sao-goncalo
107
gera a solução do corpo colonizado56 (LEPECKI, 2002). Este mesmo autor (2002)
discute a colonização do corpo e questiona se o mundo da dança, que apresenta
pensar a política e suas problematizações, naturaliza a dependência política e
cultural de ex-colonizadores – como um pseudo pós-colonialismo, ou critica este
espaço, se libertando do corpo colonizado – “sem vísceras nem desejo, sem
excesso nem sombra” (LEPECKI, 2002). Assim, para Lepecki (2002), é preciso
produzir a reinvenção da dança como uma poderosa máquina de produção de ações
de resistência, deflagrando novos mapeamentos do corpo como ser social.
Kastrup (2007) afirma que existe outra manifestação no entrave da criação
como invenção, que é a obliteração do processo de problematização, e não do
processo de solução, que ocasiona um fechamento mais rígido da estrutura
cognitiva, neste processo a autonomia é marcada pelo automatismo e aceitação de
regras contingentes por coercitivas, o que tenta estabilizar o processo. “Mesmo
assim, o fechamento é somente tendencial, guardando sempre a possibilidade de
ser abalado por algum tipo de desestabilização” (KASTRUP, 2007, p. 182).
O fandango passou por processos de obliteração que não resultaram no seu
fechamento total, e as estabilidades puderam ser rompidas, mas isso foi um
obstáculo para a continuidade da processualidade e das forças de criação. O mestre
Aorélio apresenta essa perspectiva imposta sobre o fandango que resultou neste
processo:
O fandango, tava virando produto turístico, então quanto mais rústico melhor, quanto mais mal acabado melhor, quanto mais desdentado melhor, né! Aí veio a questão antropológica também, pesquisas que se estabeleceu o coitadismo. Teve um período que não se mostra o fandango em nenhum momento assim... com vida... mostrava sempre o fandango morrendo! Sabe... sempre o mestre mais velho, nunca mostrava criança tocando ou tentando, era sempre o velho, quanto mais sem dente melhor, quanto mais velho melhor, quanto mais sujo melhor, quanto mais esfarrapado melhor, quanto mais numa casa velha melhor. [...] Essa coisa de quere vê o fandango dessa forma assim, prejudico um pouco porque pra comunidade as pessoas não gostavam de ser vistas assim, e daí fotos preto e branco [...] sempre mostrando um fandango do passado... marginalizado, e nunca vinha essa imagem do fandango vivo, do fandango bonito, do fandango colorido, o fandango bem feito [...] sempre as imagens que se pegavam era a imagem do fandango decadente [...] e não chamava a atenção dos mais jovens (DOMINGUES, 2015).
56
Para André Lepecki, a “condição pós-colonial” determina a “entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e gostos, onde o ocidental se redime do seu passado via uma “celebração” da “cultura” do até ontem “colonizado” (LEPECKI, 2002, p. 11).
108
Foi neste contexto que Mestre Aorélio conta que começou no Fandango, e
desde o princípio ele percebeu essa perspectiva imposta à manifestação, que por
um momento obliterou a trajetória do fandango tornando-o mercadoria do turismo,
marginalizando-o e, assim, afastando os jovens da sua prática. Porém, como este
processo não se fecha e permite desestabilização de sistematizações e
organizações, o fandango se ressignificou e atualizou encontrando nas dinâmicas
culturais e sociais lugar de se afirmar a partir de outros valores, que não o
coitadismo apresentado.
Mesmo que o Fandango tenha passado por tantos processos de tradução,
ainda é possível reconhecer na dança, transmitida informalmente de geração a
geração, poucas transformações dos padrões do batido e bailado, que em alguns
momentos resultam em replicação com significativa taxa de conservação. Então,
problematizo: Como a dança do fandango bailado, não estando fundamentada em
modelos e cópias, é capaz de produzir temporalmente padrões de movimento
aparentemente estáveis? Ao mesmo tempo em que como pode o aprendizado da
dança do batido no Fandango, que possui sistematização nas execuções
coreográficas, produzir a criação de uma participação singular, que carrega a
pessoalidade dos dançadores, fazendo da sua dança única?
Esses diferentes processos simbolizam categorias complexas de se
pensar/fazer dança, e para eles não há respostas absolutas, mas sim circuitos
abertos de estados corporais em forma de dança. Eloisa Domenici (2010, p. 12)
afirma: “A dança não quer dizer, ela diz, na medida em que é significado
corporificado”. As questões apontadas tornam-se pistas para estudar essas
mudanças de estados do corpo, e nesse sentido a dança do Fandango não existe
sem todas as relações de significados criados pelo grupo, pois a existência do
movimento ou do passo se dá em conexão com a rede de movimentos e
coreografias. Assim, as experiências na coletividade, ao ampliarem o movimento de
um indivíduo para o grupo, podem “ser o mecanismo coletivo de isolar um traço e
ampliar o seu sinal, possibilitando um salto para o nível abstrato” de significados, e
“este salto só é possível no dançar coletivo” (DOMENICI, 2010, p. 13).
A base do conhecimento é sua experimentação com o meio, não se faz
Fandango sozinho, não se dança nem canta Fandango individualmente, mas
coletivamente. Para Kastrup (2007, p. 200), “organismo cognoscente e o meio que
se dá o conhecer não são dois polos independentes, dados previamente ao
109
processo cognitivo. Ao contrário, estruturam-se mutuamente ao longo da história”.
As informações organizadas na memória coletiva do Fandango reconhecem e
reafirmam as relações que se dão por meio das experiências que se multiplicam nos
corpos, “ecoando, reverberando e amplificando o sinal de um traço” (DOMENICI,
2010, p. 14).
Assim, os processos de aprendizagem no fandango podem se apresentar de
formas distintas, através de uma rede de movimentos construídos no coletivo como
replicação de padrões, a partir da corporificação de traços que extrapolam o tempo e
a dimensão corporal dos indivíduos e dos estados e dinâmicas corporais de cada
dançador que possibilitam a inventividade, investigando não as configurações em si,
mas os processos nos quais elas se articulam e dos quais emergem, preocupando-
se em observar não apenas os passos e coreografias, mas as corporificações que
se constituem neste processo.
A aprendizagem do Fandango se dá pelas experiências, que ora é repetição,
ora invenção, não acontece de forma individual, mas sim coletiva, na relação com o
outro, no saber ouvir, saber falar, nas sutilezas dos movimentos e expressões dos
mestres. Aprender Fandango pelo viés da inventividade é estar sempre atento e ser
conduzido pela processualidade, em que nem problemas nem soluções são
esgotadas, mas sim constantemente inventadas. A aprendizagem da dança no
Fandango constitui um mosaico com múltiplas cenografias – da invenção à
repetição, abrindo possibilidade de continuidade, de multiplicidade e agenciamentos
no sentido rizomático.
110
5 Ô DE CASA! ENTRE TAMANCOS, RABECAS, CAIÇARAS E BARREADOS –
OLHARES E SABERES DA CULTURA
Quero dar a despedida
Despedida quero dar
Não tem navalha que corte
A raiz de um pensar
Versos de Fandango da Ilha dos Valadares
No fandango, para o violeiro mestre “dar a despedida” ele grita: “Ô de casa”, o
que significa que a marca/música vai terminar e o arremate precisa ser feito pelos
batedores. Neste momento da escrita, não em tom de despedida, mas no sentido de
que ecoe o som dos tamancos nos leitores, adotarei primeira pessoa.
Este capítulo pretende apresentar algumas experiências do campo e
problematizações decorrentes deste processo de pesquisa, as quais são
complementares aos capítulos anteriores, pois desvelam peculiaridades da vida na
Ilha e expressam quanto o Fandango reverbera nas histórias de vida dos caiçaras.
5.1 DESVELANDO A ILHA E O FANDANGO – A TRADUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO
Durante a pesquisa de campo de 2014 senti que fui conduzida pelo som dos
batidos dos tamancos. Atravessei a ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares e,
entre ruelas – que mais pareciam um labirinto –, fui percorrendo o caminho até a
casa do Mestre Romão, sendo que desconhecia o endereço. Porém, no caminhar,
ouviam-se batidos de tamanco e, ao seguir o som e perceber que ele se
intensificava, cheguei à casa do mestre. Romão me recebeu com muito carinho –
mesmo sem eu comunicar minha visita, e permitiu que eu assistisse ao ensaio dos
seus netos.
Ao fim do ensaio, enquanto ouvia histórias do mestre, seus netos, de um a
um, se aproximaram para pedir a bênção ao avô. Essa demonstração de afeto e
respeito reverberou em mim um sentimento de habitar um território que desde o
primeiro contato apresentou a multiplicidade e potencialidade da cultura popular.
À noite, após o ensaio, fui ao mercado do café e pesquisandançando pude
criar conexões com o universo do Fandango, as trocas de informações e as redes
111
de relações criadas permitiram conhecer um pouco da vida na Ilha dos Valadares, e
este saber me instigou a descobrir outros caminhos da pesquisa, a pista corpo-
dança estava instaurada. Ao assistir aos quatro grupos de fandango da Ilha, percebi
neles distintos modos de configuração da dança, pois apresentavam diferenças no
modo de bater o tamanco, na organização de espaço e nos figurinos.
O primeiro contato com os grupos foi determinante para entender os
processos de tradução cultural do Fandango, pois a partir dele foram tecidas
informações que se entrelaçaram às experiências posteriores do campo.
Na sequência do trabalho de campo, em agosto de 2015, percebi outras
informações além daquelas acessadas no primeiro contato, pude estabelecer um
diálogo mais próximo com pesquisadores do Fandango e o reencontro com mestres
e aprendizes foi contíguo, possibilitando estreitar relações, permitindo outra
dimensão nas trocas. Senti que a disposição dos caiçaras em participar e colaborar
com a pesquisa era ainda maior. Assim, foi instaurada a pista corpo-texto. Nesta
etapa da pesquisa o Mestre Brasílio já não estava mais acompanhando o seu grupo,
e essa ausência do Fandango causou em mim desconforto e problematizações que
serão apresentadas a seguir.
Quando iniciei a terceira etapa do processo, em outubro de 2015, mais uma
vez fui surpreendida pela generosidade dos residentes da Ilha, muitos fandangueiros
se dispuseram a me ajudar a encontrar uma residência e, entre tantos, a família
Pontes apoiou minha aventura de pesquisadora e nos acolheu em sua casa (eu e
meu filho Nicolas). Neste processo o Nicolas já estava matriculado no CMEI da Ilha
dos Valadares e inserido no seu projeto de Fandango para crianças.
112
Figura 7 - Nicolas e coleguinhas do CMEI Arcelina Ana de Pina em apresentação de Fandango
na Praça Ciro Abalém - Ilha dos Valadares – Nov. 2015. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
No período de residência na Ilha dos Valadares o Nicolas participou de dois
eventos do Projeto de Fandango do CMEI, sendo a apresentação de dança na
Praça Ciro Abalém, na imagem acima (Figura 7), e a missa da Festa do Rocio, na
figura abaixo, na qual representou a Fundação de Cultura de Paranaguá (FUMCUL)
ao lado de sua coleguinha Heloísa Costa, neta do mestre Nemésio Costa.
Figura 8 - Nicolas e Heloisa representando o Fandango (FUMCUL) na Festa do Rocio - Nov. 2015.
Fonte:Arquivo pessoal da pesquisadora
113
Nossa rotina resultante do deslocamento – de Salvador para a Ilha dos
Valadares – sofreu transformações, mas rapidamente nos adaptamos e passamos a
desvendar a vida na ilha. O meio de transporte dentro da ilha é basicamente
bicicleta e cavalo, normalmente, enquanto eu transitava a pé, encontrava os mestres
de bicicleta com a viola ou rabeca nas costas e algum compadre na garupeira. A
utilização das bicicletas como meio de transporte se dá porque pela ponte só podem
passar pedestres, ciclistas ou motociclistas (tanto bicicleta quanto motocicleta
precisam ser empurradas durante a travessia). Ao lado da ponte tem uma balsa para
a travessia de carros e caminhões.
Figura 9 - Ponte que dá acesso à Ilha dos Valadares. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Na escola do Nicolas o transporte escolar era uma carroça, o que dava a
sensação de morar num sítio. E essa sensação era ampliada quando passávamos
as tardes no quintal da casa onde moramos desfrutando de jabuticabeira, mamoeiro,
mangueira e laranjeira, além do brinquedo preferido do Nicolas ser um balanço (de
corda e madeira) na árvore. Apesar de a Ilha dos Valadares estar se urbanizando,
ainda é possível ver nas garagens das casas mais barcos do que carros e os
caminhos que levavam aos ensaios ou à Associação Mandicuera permitiam
observar artesãos e marceneiros trabalhando em seus ofícios de construção de
canoas, bem como pescadores com suas varas e redes de pesca.
Ao fim de todos os bailes de Fandango no Mercado do Café – que fica do
outro lado da ponte, em Paranaguá –, mestres e fandangueiros voltavam a pé para
casa contando causos e histórias de pescador, e eu os acompanhava. A maioria dos
frequentadores dos bailes são os caiçaras da Ilha, os demais são curiosos, turistas e
114
pesquisadores. A ponte representa uma ligação entre o sítio e a cidade, um elo que
facilita o acesso dos caiçaras a Paranaguá. Os bailes acontecem a cada quinze
dias, e um grupo de cada vez é responsável pelas apresentações da dança e pela
música do baile, com exceção das Festas do Fandango, realizadas todo mês de
agosto, que possibilita o diálogo dos quatro grupos.
Durante o período da pesquisa de campo pude acompanhar ensaios dos
grupos, e umas das primeiras impressões ao acompanhar os ensaios foi registrada
no meu diário de bordo.
Numa noite chuvosa do dia 13 de outubro, às 20h, me dirigi à casa do Mestre Romão na companhia do pequeno Nicolas. Chegando a sua casa, mais uma vez encontrei no portão sua esposa, sempre doce e simpática ao me receber, me convidando para entrar e participar do ensaio. Neste momento já podia ouvir batidas de tamanco dos netos do mestre. No caminho ao galpão de ensaio veio ao meu encontro seu neto, Luiz Carlos, que, conforme o combinado, já estava me esperando. Na varanda da casa estava o mestre Romão observando com atenção os seus netos e sobrinhos que iniciavam o ensaio. Cumprimentei-o e me dirigi ao galpão. Fui recebida por olhos brilhantes e curiosos de jovens sedentos por saber quem eu era. Assim, Luiz me apresentou e pude conversar um pouco com eles, falando sobre minha pesquisa e que estava ali para aprender mais sobre o fandango. Ao fim da minha fala fui aplaudida e todos sorriram – foi um lindo gesto de agradecimento por pesquisá-los e de boas-vindas à Ilha dos Valadares (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).
Figura 10 - Ensaio do Grupo Folclórico Mestre Romão - Outubro 2015.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Várias sensações e impressões foram registradas no diário, e reler é
rememorar cada momento vivido na Ilha. São registros subjetivos de uma pesquisa
que se fez no processo, coletivamente. Os ensaios significavam o lugar dos
encontros, para os jovens do grupo do mestre Romão era um momento de
115
descontração e diversão, mas ao mesmo tempo era encarado com seriedade o
legado do avô.
Outro grupo em que pude acompanhar os ensaios foi o Pés de Ouro, do
Mestre Nemésio, apesar de apresentar dinâmicas de organização muito diferentes
do grupo já citado também acontece em forma de encontro, no qual se ri, conversa
e, por fim, compartilha um lanche com os amigos. Os ensaios aconteceram na Casa
Dacheux, no Centro Histórico de Paranaguá. A maioria dos integrantes do grupo de
Nemésio é veterana no Fandango e o mais jovem é o mestre, com 67 anos, isso faz
com que os ensaios sejam um encontro de compadres e comadres. Em um dos
seus ensaios pude observar que
Há muita experiência na roda de batedores, cada qual tem um modo singular de bater e mesmo em sincronia é possível perceber um batido mais arrastado, outro mais enérgico, um mais tímido e outro ousado, entre as dançarinas há uma líder, que corrige as demais e organiza o grupo, entre os homens esta liderança só pode ser percebida na hora do arremate. (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).
Figura 11 - Ensaio do grupo Pés de Ouro. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
A seriedade e a concentração com que acontecem os ensaios são
perceptíveis, assim como o desconforto quando alguém erra. Errar no fandango é
fazer “balaio”, e quando um batedor erra o batido não tem como disfarçar, todos
ouvem. Não sei se foi minha presença neste primeiro ensaio ou o fato de os netos
do mestre terem participado que causou certa irritabilidade nos batedores veteranos,
que resultou em sequências de erros. Havia uma diferença grande na marcação,
quando os mais jovens entravam na roda os batidos soavam mais alto e o tablado
116
de madeira vibrava com intensidade, e era feito um revezamento entre os jovens e
os veteranos, com isso os senhores começaram a “se perder” nos batidos e
iniciaram pequenas discussões: “Você bateu errado”, “trocou o batido”, “não era
assim”. Mas rapidamente Mestre Nemésio justificou: “Sabe por que eles tão errando
os batidos? Porque não tomaram nenhuma cervejinha! Acredita que o pessoal da
fundação não deixa a gente beber aqui? Se eles tivessem bebido, soltavam os
tamancos!” (risos) (COSTA, 2015). A declaração do mestre nos fez rir e ela se
confirmou ao observá-los em bailes, onde não era possível ver fandangueiro do seu
grupo fazendo balaio.
No final de semana que seguiu acompanhei os grupos Folclórico do Mestre
Romão e Pés de Ouro em uma apresentação em Curitiba, na Boca Maldita57. Ao
acompanhar o deslocamento de Paranaguá a Curitiba e a apresentação, percebi
que o descaso com as culturas populares ainda é muito significativo. O primeiro
problema apresentado foi em relação ao transporte para Curitiba – um ônibus com
óleo vazando que só conseguiu chegar até uma garagem para ser trocado. Assim,
chegamos ao destino apenas duas horas depois do previsto. Isso era
aproximadamente 14h de um domingo, e todos estavam sem almoço, os veteranos
do grupo Pés de Ouro e os jovens do Grupo do Mestre Romão.
Ao chegar ao local do evento percebemos desorganização, pois ninguém
sabia comunicar aonde ir e com quem falar. E quando percebemos alguém disse:
“Vocês vão apresentar agora, rápido!”. Fui ao camarim e ajudei as senhoras e as
moças a colocar figurino e em minutos o grupo do Mestre Nemésio já estava no
palco. Corri para fazer o registro fotográfico tentando com dificuldade acessar a
frente do palco entre a multidão de pessoas. Assim,
Observei um grupo de pessoas rindo e zombando (alcoolizadas), gritando “Ih, fora!”, a tremenda falta de respeito com os artistas populares me desconcertou. Porém percebi que por ser um espaço público comportava distintas opiniões. Minutos depois de os músicos testarem os instrumentos iniciaram os fandangos batidos, as mulheres/senhoras do grupo Pés de Ouro dançaram o tempo todo para o público, com sorriso no rosto e acenando. Via nelas uma alegria ímpar e orgulho de estar representando a cultura popular. Assim, as vozes que pediam para eles saírem do palco foram abafadas pelos aplausos daqueles que souberam prestigiar o encanto do Fandango. E, de um modo muito simples, entre uma batida e outra, o
57
Boca Maldita é a denominação de um espaço, sem área determinada, mas ao redor dos cafés, bancas de revista e bancos do calçadão na Avenida Luiz Xavier (Rua das Flores), onde se reúnem os "Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba", confraria esta que disseca todos os assuntos presentes nas manchetes dos jornais do momento em uma tribuna livre de palavras e pensamentos.
117
Mestre Nemésio fazia correções aos integrantes do grupo e os reorganizava para o próximo batido, ele falava de um modo peculiar ao microfone e soava com graça a quem ouvia, era a voz do caiçara soando alto na boca maldita, e o silêncio se dava para que as pessoas entendessem o vocabulário da Ilha (Depoimento da pesquisadora no diário de bordo, 2015).
Figura 12 - Apresentação do Grupo Pés de Ouro - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Figura 13 - Apresentação do Grupo Folclórico Mestre Romão - Boca Maldita - Curitiba - Out. 2015.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Dar espaço para uma expressão popular não é o suficiente, é necessário que
isso se faça com o devido compromisso de assegurar condições para as
apresentações. Assim, o descaso e falta de respeito com os mestres e aprendizes
do fandango geraram algumas posturas nos mestres que pude acompanhar neste
percurso da pesquisa. Outros convites para eventos foram feitos posteriormente e
eles se posicionaram fazendo algumas exigências, por exemplo, o tablado para o
batido – que não teve em Curitiba, entre outras coisas. Como as exigências não
foram atendidas pelos organizadores dos eventos, eles recusaram a apresentação
118
dos grupos. Foi uma postura que partiu da indignação dos mestres, dos aprendizes
e minha, enquanto pesquisadora.
Eles me contaram, a partir dessa problemática, que a própria Fundação
Cultural de Paranaguá já os convidou para apresentar e eles tiveram que bater
tamanco nas pedras, conforme Anoldo Costa (2015), violeiro do grupo Pés de Ouro,
“eles faziam assim ó... marcavam apresentação no Rocio, mas não levavam tablado,
não levavam nada, aí nós tinha que bate na pedra [...]. Cancelemo esse ano a do
Rocio, dança na pedra... já penso dança na pedra?”. Assim, ao compartilhar destes
momentos com mestres e aprendizes do fandango, foi possível constatar que
Quando a cultura popular é convertida em espetáculo desterritorializado (isto é, deslocado de sua comunidade ou circuito de origem), ela passa a ganhar valor diante de consumidores de classe média urbana que podem transitar também por outras atividades culturais [...]. Deve-se então indagar quanto vale a cultura popular na visão do Estado brasileiro. Quem definiu, e com que critérios, que a cultura popular recebe sempre um apoio tão menor que o oferecido até hoje à arte erudita ou à arte popular comercial? E, quanto rende a cultura popular como produto ou serviço oferecido pela indústria do entretenimento? (CARVALHO, 2012, p. 42).
Se a prefeitura de Paranaguá não consegue perceber as necessidades do
Fandango, como podem outras entidades fazê-lo? O fato é que o Fandango não
pode ser transformado em bem simbólico e estético comercializável, a manifestação
não está a serviço da mobilização cultural, não rende dividendos e não é apenas um
clichê. Mas retrata um modo de vida dos caiçaras, envolve saberes e fazeres
populares que vão além do valor mercadológico e precisam ser tratados com
respeito. Sendo assim, “não faz sentido falar em culturas híbridas ou em trocas
culturais sem tomarmos em conta as gritantes assimetrias de poder no campo da
cultura” (CARVALHO, 2012, p. 46).
Não foi possível acompanhar durante a pesquisa de campo os ensaios dos
grupos Ilha dos Valadares e Mandicuera. Os grupos não tiveram ensaios neste
período de residência na Ilha, sendo os motivos: o afastamento do Mestre Brasílio
do Fandango e o envolvimento do Mestre Aorélio com outras atividades em Curitiba.
Porém pude participar dos bailes dos dois grupos e colaborar com um mutirão58 na
Associação Mandicuera para organização do evento realizado nos dias 14 e 15 de
novembro. Durante o mutirão trabalhávamos de dia e à noite os mestres tocavam e
58
O mutirão consistiu na limpeza e organização do local para o evento, além das práticas da culinária caiçara – barreado, peixada e a mãe-cá-filha, comidas e bebida típica do fandango, respectivamente.
119
cantavam fandango. As fotos abaixo são do grupo Mandicuera nas apresentações
em agosto de 2014 e novembro de 2015, respectivamente.
Figura 14 - Grupo Mandicuera na Festa do Fandango Caiçara - Ago 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Figura 15 - Grupo Mandicuera - Baile do Fandango no Mercado do Café – Nov. de 2015.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora
Os entre-lugares que o campo me proporcionou foram atravessados por
situações desestabilizadoras e hibridismos. E, nesta dinâmica da cultura popular
entre aulas de rabeca e viola caipira com o Mestre Zeca59, entre bailes e ensaios,
peixada e barreado, caranguejo e camarão, danças e (an)danças, foram
possibilitadas traduções do Fandango por distintos aspectos.
Toda tradução é feita pelo viés da pesquisa e ao considerar que não há
neutralidade no conhecimento (KASTRUP; PASSOS, 2009) ela apresenta a
59
Mestre Zeca (José Martins Filho), tocador e construtor de viola e rabeca, é referência do Fandango no litoral do Paraná, toca rabeca nos quatro grupos da Ilha dos Valadares e também viaja para outras ilhas a fazer Fandango. Participou ativamente da pesquisa, estando presente em quase todos os momentos da experiência do campo (dados da pesquisa de campo).
120
subjetividade do pesquisador e do momento em que ele está inserido no campo.
Assim, as problemáticas e reflexões apresentadas podem ser consideradas arranjos
e desarranjos da cultura popular que se compõe por incertezas e devaneios do
pesquisador.
5.2 FANDANGO - ENTRE A CRENÇA RELIGIOSA E A CULTURA POPULAR
O Grupo de Fandango Ilha dos Valadares é representado pelo Mestre
Brasílio60, tocador de viola e batedor de tamanco, sua maestria é na dança e era o
único mestre com esta função no fandango. Na imagem abaixo o grupo Ilha dos
Valadares apresentando o fandango batido na 5ª Festa do Fandango Caiçara, em
agosto de 2014, no centro da roda o puxador das marcas - Mestre Brasílio.
Figura 16 – Grupo Ilha dos Valadares - Mercado do Café - Ago 2014.
Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora.
Atualmente o mestre está afastado do Fandango por questões de saúde e
religiosas, mas participou ativa e prontamente da pesquisa. O grupo continua se
apresentando nos bailes do mercado do café, mas sem o seu acompanhamento.
Durante a entrevista61 com o mestre Brasílio surgiram algumas
problematizações que valem ser ressaltadas. Ao indagar sobre como eram os
fandangos antigamente o mestre conta: “Antes eu morava no Maciel, aprendi
60 Brasílio Santos Ferres é violeiro e batedor de tamanco, nascido em 1937, no Maciel, em Paranaguá. Já participou de outros grupos de Fandango da Ilha como tocador, fez parte da primeira formação do grupo do Mestre Romão, em 1951, mas hoje tem o seu próprio grupo, e sua maestria é na dança (dados da pesquisa de campo). 61
Entrevista realizada em dezembro de 2015.
121
fandango lá – desde pequeno, primeiro eu olhava o fandango, em quem dançava,
depois fui pegando – mas agora ninguém dança fandango lá... é tudo crente [...]”
(FERRES, 2015). Essa declaração do mestre suscitou outra questão ao fim da
entrevista que questionava seu afastamento do fandango, então ele relatou: “Eu fui
no médico e o médico proibiu, não posso fazer força porque o fandango precisa de
força também... ia me dando um treco no coração [...]”, e complementou: “Eu sou
crente agora, faz uns quatro mês que sô crente, então falei pro pastor pra mim
ensina, ensina eu posso, toca e dança em baile e saí assim pra fora não [...]”, mas
ao fim da entrevista ele justifica: “O pastor não falo nada pra não toca... dança... foi
uma decisão minha” (FERRES, 2015).
No início da entrevista o mestre Brasílio comenta que não fazem mais
Fandangos no Maciel, lugar onde nasceu, porque “lá... é tudo crente”. E, ao ser
questionado sobre seu afastamento do Fandango, ele explica que o pastor disse que
“ensinar pode, mas tocar e dançar em baile não”, isso reflete a possível influência
das organizações religiosas nas culturas populares, que não se limitam aos
fandangueiros, mas se revelam em distintas manifestações62.
Não cabe aqui apenas debater o afastamento do mestre da manifestação
discutindo a questão da influência das religiões evangélicas nas culturas populares,
mas apresentar mais uma obliteração do processo de aprendizagem no fandango
paranaense.
Brasílio conta que o grupo não tem mestre, mas que “continua a mesma
coisa”. Para ele, “eles têm dançado benzinho, eles falam pra mim que tem dado bom
[...]” (FERRES, 2015). O mestre complementa: “Eu danço bastante marca63... o anu,
o feliz, o xará grande, xarazinho, queromana, tonta, vilão de lenço, marinheiro,
caranguejo... e meu grupo já não dança, farta de mim eles já não dançam”. Ele
reconhece sua importância de mestre como puxador do grupo no fandango batido:
“Com a minha presença eles dançavam tudo, eu puxava a roda e eles dançavam
junto comigo, agora não sei se eles dançam porque não tenho ido vê... mas acho
que não dançam” (FERRES, 2015). Essa declaração do mestre expressa um
62
José Carlos Netto (2012) comenta que sambistas do Rio de Janeiro têm se afastado do samba por motivos religiosos. Ele comenta “a bancada evangélica do samba aumenta a cada dia”, e nomes importantes no mundo do samba têm deixado de fazer história. Fonte: http://www.sidneyrezende.com/noticia/187767. 63
Cada uma das marcas citadas pelo mestre são diferentes sequências coreográficas, referindo-se a distintas danças do fandango (anu, feliz, xará grande, xarazinho, queromana, tonta, vilão de lenço, marinheiro).
122
entrave na continuidade do fandango, pois a figura do mestre se torna indispensável
na organização dos grupos. Neste sentido, o pesquisador de cultura popular Pedro
Abib afirma:
Na cultura popular, em geral, há sempre uma figura fundamental, responsável pelos processos envolvendo a memória coletiva: a figura do mestre. Os mestres exercem um papel central na preservação e transmissão dos saberes que organizam a vida social no âmbito da cultura popular [...] (ABIB, 2006, p. 91).
Para Abib (2006), o mestre corporifica a ancestralidade e a história de seu
povo e assume, por essa razão, a restituição do passado como força instauradora e
conduz a ação construtiva do futuro. Neste sentido, é possível compreender a
importância do papel do mestre na cultura popular, tendo ele um compromisso com
a história do seu povo e com a construção do futuro da manifestação. Mas quando a
manifestação é atravessada por imposições religiosas com cunho de proibição, toda
a complexidade de ser mestre e a relevância da representação que ele assume
perante a comunidade passa a ser negligenciada, como neste caso.
O responsável pelo grupo, hoje, é o Sr. Waldemar, cunhado do mestre e
tocador de viola. “Ele que tá organizando... e as duas também que dançam, né,
minhas prima”, mas “quando meu grupo se apresentá por aí eu vô dá uma olhada,
né, que minha presença já é uma grande coisa” (FERRES, 2015).
É perceptível na fala do mestre o sentimento de preocupação e
responsabilidade com o grupo, mesmo não podendo acompanhá-lo. É válido
ressaltar que o afastamento do mestre Brasílio não foi capaz de ofuscar o brilho nos
seus olhos quando fala sobre sua paixão pelo Fandango. Não dançar fandango é
apenas a negação de uma ação isolada porque o fandango está imbricado na
história de vida do Mestre Brasílio. Isso porque “o mestre tem profunda ligação com
a própria palavra tradição [...]. E, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue
de geração a geração” (ABIB, 2006, p. 93). Neste sentido, mesmo o não dito é
entregue às novas gerações, mesmo os silêncios e ausências do mestre após seu
afastamento carregam seus saberes que são indissociáveis da memória coletiva do
Fandango.
Ao fim da entrevista, o Mestre Brasílio comentou ter interesse em ensinar
Fandango, disse que se a FUMCUL disponibilizasse um espaço e ele tivesse
remuneração poderia ensinar fandango aos mais jovens. Este desejo do mestre está
123
presente desde 200664, quando ele apresenta uma preocupação com a continuidade
do Fandango: “De agora pra frente, não sei não. Porque nós se acabando não tem
violeiro que vai se interessando pra transmitir pra gurizada. A gurizada não quer
aprender. [...]. O quê que tem que fazer? Tem que fazer uma escola pra continuar”
(PIMENTEL; GRAMANI; CORRÊA, 2006, p. 57).
Atualmente o mestre trabalha no mercado do Caranguejo, ao lado da ponte
que dá acesso à Ilha dos Valadares, e foi ali no pé da ponte e na beira do Itiberê65
que a entrevista foi realizada.
5.3 FANDANGO É DIVERTIMENTO TRABALHADO? CARA-CACHÊ!
Esse conceito de que fandango é divertimento trabalhado é apresentado pela
antropóloga Patrícia Martins (2006), porém a intenção aqui é apresentar um diálogo
a partir das vozes dos mestres e aprendizes acerca da relação estabelecida por eles
com o Fandango, que partiu da simples questão: Fandango é trabalho?
Esse questionamento se deu a partir de observações no campo e da pista
corpo-texto quando os discursos apresentaram simultaneamente satisfação e
incômodo relacionado aos pagamentos dos cachês.
Inicialmente apresento a declaração do Mestre Brasílio sobre a relação de
fandango e trabalho. “Fandango é trabalho, porque se não tivé uma pessoa que se
interesse por aquilo ali, sem trabalho não vai. É como eu, né, eu tava no grupo... eu
interessava pelo grupo, corria pra lá e corria pra cá [...]”, e complementa: “Se o cara
ficá parado, não funciona” (FERRES, 2015). Para Brasílio, fandango exige tempo e
dedicação, se não houver um esforço do mestre o grupo não se mantém. Para o
Mestre Nemésio, “Fandango é um trabalho... justamente. Mas você não vai vive só
dele” (COSTA, 2015). Esta afirmação está explícita nas vozes de todos os mestres,
que têm consciência que o Fandango não pode ser a única fonte de renda. Nesse
sentido, Mestre Aorélio acredita que Fandango é trabalho porque,
Existe a instituição convencional, uma universidade, por exemplo, dentro da universidade tem os mestres... os mestres ganham por aquilo que eles fazem, eles estudaram pra aquilo, pra repassa um conhecimento e forma cidadãos, né? Através daquele conhecimento dele, ele tem todo um
64
Entrevista concedida no ano de 2006 ao Museu Vivo do Fandango. 65
A baía de Paranaguá é banhada pelo Rio Itiberê, assim a Ilha dos Valadares situa-se à margem esquerda do Itiberê.
124
mecanismo e um aparato e um ambiente criado pra que ele possa realiza a atividade dele como um mestre. O mestre da cultura popular é muito mais que isso, porque ele vive a vida inteira estudando isso [...], ele repassa o conhecimento dele, ele forma cidadão... só que ele não tem nenhum aparato. Ele não recebe por isso, ele não tem apoio, ele não tem equipamento, ele não tem um espaço criado pra ele, adequado pra aquilo. Então o mestre, ele é um lutador que o sistema não inclui [...] (DOMINGUES, 2015).
Tanto os mestres Brasílio e Nemésio quanto o Mestre Aorélio acreditam que
fandango é trabalho, porém para eles não é possível viver de Fandango, conforme
relata Mestre Brasílio: “Não daria pra vive do fandango não, eu perdia tempo porque
eu gosto, por amor... no fandango é amor” (FERRES, 2015). A partir deste
depoimento do mestre é possível considerar uma relação com o fandango que é
afetiva e envolve sensibilidades. Neste sentido, para a aprendiz da dança e esposa
do Mestre Nemésio, Sra. Ivonete66, “Fandango é trabalho e ao mesmo tempo
divertimento, danço porque eu gosto... fandango faz bem pra mente, pra alma, pro
coração [...]” (COSTA, 2015). Assim como Ivonete, Dona Elza67, aprendiz que dança
fandango batido há três anos, afirma: “Fandango é um trabalho porque eu ganho
minha graninha, mas é um trabalho em que você se diverte... trabalho e diversão ao
mesmo tempo” (REIS, 2015). Assim, entende-se que para as aprendizes a relação é
mais voltada ao prazer em dançar do que a remuneração recebida em cada
apresentação, porém o cachê é um fator motivante para os fandangueiros
O neto do Mestre Romão, Luiz Carlos Aguiar Junior, acredita que “Fandango
não é trabalho, ser mestre é um dom [...], acredito que seja mais por vocação, por
amor do que propriamente por remuneração [...]” (AGUIAR JR., 2015). Para ele, a
preocupação dos mestres está mais vinculada à continuidade do fandango do que a
cachês e o mais importante para os mestres é poder ensinar os jovens, e afirma:
“Não deixando morrer é o pagamento deles, entendeu?” (AGUIAR JR., 2015). É
relevante o posicionamento de Luiz Carlos e, no discurso dos outros mestres, é
possível compreender essa preocupação. Porém para manter o grupo há despesas,
pois instrumentos e figurinos têm custos, sendo assim os valores pagos com os
66
Ivonete do Rosário Costa, integrante do grupo Pés de Ouro, no qual dança fandango batido há oito anos. Desde criança acompanha mutirões com sua família e dança os bailados/valsados em bailes de Fandango. 67
Elza Costa dos Reis, integrante do grupo Pés de Ouro. Ela conta que começou a dançar o fandango bailado desde criança lá no sítio onde seus pais faziam mutirão. Apenas o batido ela aprendeu posteriormente, quando a família se mudou para a Ilha dos Valadares.
125
cachês são apenas simbólicos, pois é através deles que são comprados tamancos,
cordas de violas, couro do adufo e figurinos para a dança.
Mestre Nemésio acredita que “o cachê estragou o fandango, teve um lado
que estragou muito, porque o pessoal da dança eles tão focado mais no cachê. Meu
grupo nem tanto!” (COSTA, 2015). Mestre Nemésio acredita que em seu grupo este
não é um problema tão preocupante porque, mesmo sem receber cachês, eles se
apresentam e, quando não é o baile do grupo Pés de Ouro, todos os integrantes vão
para o Mercado do Café e dançam bailado a noite toda. Já os outros grupos
apresentam maior dificuldade – principalmente os grupos de Mestre Aorélio e Mestre
Romão (compostos por jovens), se não tem cachê não tem dançadores. Ele lamenta
ao dizer que antigamente era melhor porque não tinha cachê e as pessoas “faziam
fandango com vontade e com gosto”, mas agora os aprendizes vão dançar
pensando no cachê.
Neste mesmo sentido, mestre Aorélio Domingues (2015) conta que a relação
com os aprendizes piorou muito a partir do momento em que o cachê virou “moeda
de troca” para dançar fandango, outras questões importantes, como compartilhar
das atividades que envolvem o fandango, deixaram de ser priorizadas caso não
fossem remuneradas, e assim perdeu-se o respeito pelos mestres que tomaram a
posição de empregadores de dançarinos e o fandango assumiu um caráter mais
comercial do que cultural.
Apesar destas declarações dos mestres, foi possível, em suas entrevistas,
compreender que há outra perspectiva relacionada aos cachês. Mestre Aorélio
comenta que fandango é um trabalho e que algumas práticas da cultura popular que
ele realiza são profissionais.
Hoje em dia eu construo rabeca e vendo, eu aceito encomenda. Eu toco a minha música e essa música é paga. Eu dou minha oficina e isso é pago. Ou apresento... formato um projeto pra realiza uma oficina pra uma comunidade e isso é pago, então assim... eu trabalho muito com o fandango, porém as minhas atividades são amarradas com a questão financeira [...]. Eu sô novo, eu não sou aposentado [...], então eu tenho que torna essa atividade uma atividade profissional (DOMINGUES, 2015).
Esta declaração de Aorélio encontra justificativa na experiência do rabequista
da Ilha dos Valadares – Mestre Zeca –, já citado, ao dizer que é necessário
reconhecer a atividade cultural como atividade profissional.
126
O Zeca hoje em dia é tão procurado pra fazer as atividades do fandango que ele não consegue fazer a atividade profissional dele, que é a carpintaria e alvenaria. Ele não consegue fazer isso porque faz muitas coisas com relação ao fandango, mas nem tudo que ele faz com o Fandango dá dinheiro, então como é que ele sobrevive? (DOMINGUES, 2015).
Neste sentido, pode-se perceber que não há problema especificamente no
cachê dos mestres e aprendizes e em profissionalizar o fandango, a questão é mais
complexa, resultado de uma estrutura política e do sistema de valores culturais e
sociais atribuídos às expressões populares. Para Carvalho (2012):
A dimensão estética não pode ser reduzida à dimensão econômica, mas também não pode ser analisada sem tomar a economia em conta. Sabemos que existe uma hierarquia no valor alocado às diferentes formas de expressão cultural – e um dos modos de medir essa diferença de prestígio é o preço que se paga pela performance dos diferentes grupos culturais. Por exemplo, uma sinfonia de Beethoven não é melhor nem pior que um auto completo de Cavalo-Marinho [...] (CARVALHO, 2012, p. 43).
Ao contrastar este posicionamento democrático cria-se um relativismo de
distintas formas culturais, e sabe-se que isso acontece apenas na teoria, pois é um
problema que acompanha o país, e, neste caso, o Fandango, anterior ao Brasil
Colônia. Mestre Nemésio conta que a Prefeitura de Paranaguá contratou “aquela
Paula.... aquela que canta melhor que nós! Como é que é o nome mesmo? Ah, a
Paula Fernandes... (risos) e pagaram um dinheirão pra ela. A gente toca uma noite
inteira e ganha cem, cento e cinquenta reais” (COSTA, 2015). Apesar do tom de
brincadeira do exemplo citado pelo mestre, há uma verdade expressada, pois este é
um problema que toca diretamente os artistas populares, pois em alguns momentos
é difícil para eles recusarem ofertas para apresentações, por mais que sejam
simbólicas, mesmo que para isso tenham que descaracterizar aspectos importantes
da tradição.
Assim, mestres não são apenas vítimas desse sistema, mas também são eles
que alimentam esse processo de expropriação, e, apesar de os valores pagos pelas
apresentações terem melhorado as condições de mestres e brincantes, as
comunidades, no caso a Ilha dos Valadares, que abrigam essas manifestações
ainda sobrevivem com pouca renda e não têm como viver da cultura popular.
Há que se refletir sobre a relação das manifestações populares com as
instituições públicas que financiam as festas e bailes, como no Fandango, pois
colocar a cultura popular a serviço de interesses políticos é um risco de
127
descaracterização e perda de autonomia simbólica e estética. O fandango não pode
estar apenas condicionado às políticas locais e regionais, os mestres não podem ser
apenas cooptados pelo sistema, é necessário uma reflexão acerca do financiamento
destinado às culturas populares e de como isso reflete e traduz a continuidade da
manifestação.
5.4 FANDANGO – REGISTRO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
BRASILEIRO (IPHAN)
A partir da discussão anteriormente apresentada relacionada às políticas
públicas para o Fandango, enfatizando a relação do trabalho com a festa/baile,
apresenta-se este subcapítulo que aponta para a compreensão da importância do
registro do Fandango como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro (IPHAN) e,
assim, discorrer como os mestres do Fandango percebem as transformações neste
percurso. Para este entendimento, é importante ressaltar que, segundo o IPHAN,
[...] os bens culturais de natureza imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial (IPHAN, Instrumentos de Salvaguarda).
Assim, o IPHAN apresenta um plano de salvaguarda68 das manifestações
registradas, neste caso o Fandango Caiçara, que considera os modos de vida e
representações de coletividades humanas e o princípio do relativismo cultural de
respeito às diferentes configurações culturais e aos valores e referências,
compreendidos a partir dos contextos em que se inserem. Por outro lado, também
reconhece a diversidade cultural como definidora da identidade cultural brasileira,
incluindo referências significativas dessa diversidade.
68
Salvaguardar um bem cultural de natureza imaterial é apoiar sua continuidade de modo sustentável, atuar para melhoria das condições sociais e materiais de transmissão e reprodução que possibilitam sua existência. O conhecimento gerado durante os processos de inventário e registro é o que permite identificar de modo bastante preciso as formas mais adequadas de salvaguarda. Essas formas podem variar da ajuda financeira a detentores de saberes específicos com vistas à sua transmissão, até, por exemplo, a organização comunitária ou a facilitação de acesso a matérias-primas. Para a implantação do Plano o requisito básico é a inscrição de um bem cultural em um dos Livros de Registro do Iphan (IPHAN - http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/684/.).
128
Neste sentido, “os anos 1980 marcam a crescente organização e articulação
dos caiçaras, que contaram com o apoio de organizações não-governamentais, de
centros de pesquisa de diversas universidades [...] que os auxiliaram na
reconstrução de sua identidade” (DIEGUES; COELHO, 2013, p. 93).
Porém acredita-se que o movimento de salvaguarda antecede este período,
sendo desenvolvido pelos próprios caiçaras no interior das comunidades. Os
mestres das comunidades caiçaras assumiram papel relevante neste sentido, pois
podem ser considerados a memória viva da cultura popular, e “sabemos que é
exatamente por meio da memória que se constrói a noção de patrimônio cultural”
(DIEGUES; COELHO, 2013, p. 94). Neste sentido, Leite (2011) afirma que o
patrimônio cultural está ligado ao território e à memória, ambos operando como
vetores de identidade. Nos autos do processo de registro do Fandango Caiçara
consta:
Sendo o fandango uma prática já enraizada e repleta de significados torna-se uma manifestação de referência cultural para as comunidades que os executam. Através do fandango se revelam e se atualizam formas, valores, ritos e crenças, tornando-se o registro um importante instrumento de reconhecimento e sustentabilidade para essa prática. Com a instituição do fandango enquanto um bem de caráter imaterial almeja-se o fortalecimento de condições para a sua reprodução resguardando toda sua complexidade e dinâmica própria. [...] O reconhecimento do fandango caiçara como patrimônio cultural é também elemento fundamental para a conformação [das] leis [ambientais] ao abrigo e à permanência das populações tradicionais que habitam a região, de modo a facilitar a continuidade dos ofícios e práticas culturais (Documento constante dos autos do processo de registro nº 01450.014268/2008-59 do DPI a respeito do Fandango Caiçara, fls. 22, apud DIEGUES; COELHO, 2013, p. 95).
Assim, “a forma de expressão denominada Fandango Caiçara ressurge como
fruto desse movimento pela retomada da identidade, na tentativa de a comunidade
tradicional caiçara se autorreconhecer” (DIEGUES; COELHO, 2013). Para o IPHAN
(2011), já é percebida
[...] em ação toda uma rede ativada de trocas e também de sociabilidade, que conecta e mobiliza os participantes, colocando-os em relação, sejam eles tocadores, dançadores, construtores de instrumentos, jovens e velhos, turistas, pesquisadores, gestores culturais e agentes governamentais (IPHAN, 2011, p. 42).
A partir dessas ações se estabelece um momento de diálogos e trocas entre
todas as esferas sociais, afirmando assim o dinamismo das culturas populares.
129
“Neste circuito entre fandangos, criam-se redes onde as trocas ocorrem em nível
material e simbólico, trocam-se: versos, cd‟s, fotografias, instrumentos, afinações,
saberes de uma identidade em constante construção” (IPHAN, 2011, p. 45-46).
Durante a pesquisa de campo pude compartilhar dois momentos distintos
relacionados à salvaguarda do fandango, a data em que o Fandango recebeu o
título do registro, em agosto de 2014, e um ano depois. Percebi uma vivacidade e
uma mobilização muito significativa dos caiçaras em 2014, mas em 2015 senti que
aquela sensação tinha um tom mais realista e menos sonhador. Assim, acrescentei
na entrevista a questão acerca das mudanças políticas a partir do registro do
Fandango como Patrimônio Cultural Imaterial.
Dentre as respostas, três mestres, Nemésio, Brasílio e Luiz Carlos
(representando o Mestre Romão) concordaram em dizer que desde a data não
houve mudanças políticas. Para o mestre Nemésio, “não teve nada, nenhuma
mudança, não teve política nenhuma, nosso fandango continua porque nóis tamo
vivo, e se nóis fosse depende do fandango morria de fome” (COSTA, 2015). Neste
mesmo sentido, o mestre Brasílio afirma: “Não mudo nada, fico a mesma coisa, já
passo quase dois ano e tá tudo igual... até agora nada!” (FERRES, 2015). E Luiz
Carlos complementou: “Sinceramente, não vi mudança, existe muita boa vontade,
mas pouca praticidade, existem boas intenções, mas nada de ações [...]” (AGUIAR
JR., 2015).
Apesar de entender que a salvaguarda é uma ação do governo federal,
reconhecemos que há uma parceria com estados e municípios. Conforme o IPHAN,
reconhece-se a inclusão, no patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria
com a sociedade, dos bens culturais que sejam referências dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. Neste sentido, IPHAN e sociedade precisam
estabelecer parcerias para salvaguardar a manifestação. Assim, os mestres
questionam alguns posicionamentos, em especial da Prefeitura de Paranaguá, por
exemplo, a Casa do Fandango, que foi anunciada aos caiçaras durante o evento da
entrega do registro, mas que não se transformou em ação. Também apresentaram
insatisfação com questões relacionadas aos cachês e à lei dos mestres,
reinvindicações que contribuiriam para a salvaguarda do fandango, mas, como disse
Luiz Carlos, “não passaram de boas intenções”.
Mestre Aorélio comenta que o processo ainda está em discussão: “Não se fez
acontecer, mas a discussão existe, foram oportunizados vários momentos de
130
conversa entre as comunidades e governo federal” (DOMINGUES, 2015). Para ele,
hoje em dia “o Fandango chega em qualquer ambiente de encontros de culturas
populares brasileiras marcando território... marcando o território caiçara como uma
das questões da diversidade cultural brasileira” (DOMINGUES, 2015).
O registro tem sua importância, pois, a partir dele, o governo tem
compromisso com a salvaguarda dessa manifestação. Aorélio Domingues (2015)
conta que existem editais do governo federal voltados só para manifestações
registradas, assim o título do registro dá mais crédito ao Fandango, mas reconhece
que muitas coisas que ainda estão sendo discutidas não foram implementadas.
Frente às divergências entre os relatos dos mestres acerca das mudanças
após o registro do fandango, principalmente do Mestre Aorélio com os demais, é
possível perceber que há falhas na comunicação e, ao mesmo tempo,
desconhecimento. Assim, questiono: Por que os outros mestres não comentam, não
sabem ou não participam dessas discussões? Foi realizado um mapeamento de
quatro grupos, mas nas discussões é centralizada a voz de apenas um mestre? Ou,
se os outros grupos participam, por que os mestres não apresentaram este
conhecimento nas entrevistas? Ou, ainda, por que para os mestres não fica evidente
que as discussões de que participam são decorrentes do registro e do plano de
salvaguarda do Fandango?
Essas questões apontadas não apresentam respostas, mas sim uma
problemática criada a partir do registro do Fandango pelo IPHAN relacionada aos
fluxos de informações e debates, pois, se as discussões estão em processo e
existem algumas políticas públicas para garantir a salvaguarda, como é o caso dos
editais, então isso deveria ser comunicado em linguagem acessível e de forma
descentralizada e, assim, alcançar os interessados no sentido de possibilitar a
participação de todos e garantir os mesmos direitos.
Acredita-se que devem ser criadas estratégias para comunicar a todos e
esclarecer os encaminhamentos decorrentes do registro do Fandango como
Patrimônio Cultural Imaterial, pois assim não serão apresentadas divergências nas
opiniões dos mestres que não conseguem identificar que o plano de salvaguarda
vem sendo realizado, mesmo que, de maneira sutil, baseado em discussões, isso
venha acontecendo.
Os mestres da cultura popular precisam se articular com as políticas públicas,
e as instituições – como o IPHAN e a FUMCUL – precisam facilitar esse acesso e
131
diálogo. Pude, durante um breve retorno à Ilha dos Valadares em janeiro de 2016,
conversar com Mestre Zeca, que, em 2015, prestava serviço para Fundação
Municipal de Cultura de Paranaguá como professor de viola caipira e rabeca, porém
ele relatou que em 2016 não poderia dar sequência às aulas porque a FUMCUL
abriu edital para inscrição de oficinas que seriam realizadas em 2016 e ele, além de
não ser informado, declarou que não saberia escrever um projeto – “[...] alguém
tinha que me ajudar. Aí, eu perdi! Vô trabalha com a carpintaria”.
Apesar de o Mestre Zeca comentar que não teria problema em não dar as
aulas, ele disse que era um dinheiro bom que o ajudava, mas o que o deixava mais
triste é que os alunos que tinham aulas gratuitas na FUMCUL agora ficariam sem
aula ou precisariam pagar por elas. E, assim, teriam menos aprendizes interessados
na cultura popular da Ilha dos Valadares. Isso expressa a realidade das ações
políticas perante a comunidade caiçara, que muitas vezes obliteram a continuidade
da manifestação quando o interesse e proposição deveria ser salvaguardar.
Assim, neste capitulo foi possível discorrer sobre algumas problemáticas que
surgiram durante as vivências do campo, bem como apresentar peculiaridades da
Ilha. Esses apontamentos são complementares aos capítulos anteriores e
apresentam uma proximidade da pesquisadora com relações pertinentes do campo.
E abrem espaços para novas discussões a partir das questões levantadas. Essa
tradução é contextualizada ao período do campo e reflete a experiência da
pesquisadora em contato com a coletividade do fandango, sendo assim, a leitura
das entrevistas e das vivências é por um olhar subjetivo, sendo esta tradução uma
versão dos processos de tradução do fandango, que podem ser ressignificados por
um novo olhar em outro processo de imersão.
Ao considerar que o Fandango está sempre em processo apresento algumas
informações obtidas após a pesquisa de campo, que dão novos sentidos a algumas
descrições acima.
A primeira informação refere-se às oficinas de rabeca e viola caipira
ministradas pelo mestre Zeca, o qual no período da pesquisa de campo comentou
que estaria afastado deste ofício no ano de 2016 por não ter inscrito projeto para o
edital da Fundação Municipal de Cultura de Paranaguá. Houve uma mudança, visto
132
que em março de 2016, um email informativo da FUMCUL apresenta a divulgação
das oficinas do mestre.
A segunda informação refere-se ao mestre Brasilio Ferres, afastado do
fandango por questões de saúde e religiosas. No dia 23 de abril de 2016 recebi por
meio de mensagem instantânea do Sr. Siqueira (cinegrafista do Fandango), a notícia
do retorno do mestre ao Mercado do Café. Nessa data recebi fotos do mestre
Brasilio tocando viola caipira e dançando Fandango batido, o que ocorreu em
decorrência da sua possível desfiliação à religião evangélica.
A terceira informação refere-se à construção da Casa do Fandango em
Paranaguá, obra tão esperada pelos mestres. No dia 26 de abril de 2016 reuniram-
se mestres do Fandango na FUMCUL para conhecerem o desenho na planta do
novo espaço.
133
ARREMATE – ao som e na reverberação dos batidos do tamanco
Lá vai outra despedida
Agora sim é verdade
Vou cantar no Valadares
Pra escutar em outras cidades
Versos de Fandango da Ilha dos Valadares
Agora sim é verdade... o arremate, a despedida do que se fez no Valadares
pra ecoar em outras cidades. No momento do arremate os batedores de tamanco se
concentram no batido forte e percussivo com a intenção de finalizar a dança fazendo
a poeira do tablado subir e as tábuas vibrarem. O batido é intenso, enérgico,
demanda força e concentração, ritmo e sincronia. Assim como o batido do arremate,
se fez esta pesquisa – intensa na relação com o campo, enérgica na
processualidade da escrita, demandou força e concentração na busca por pistas e
no desvelar caminhos, e apresentou ritmo e sincronia na construção do
conhecimento relacionando teoria e prática.
O fandango pediu passagem e a pesquisa se fez no processo, articulada a
três questões que nortearam a problemática apresentada. Para as considerações
finais faço uso de cada uma delas delineando o caminho percorrido e expressando
as distintas possibilidades no caminhar, que não levam a um fim, mas são meios de
encontrar novos caminhos e novos significados.
A primeira questão, “Em que medida a abordagem da tradição contribui para
distintos processos de tradução cultural?”, possibilitou pensar a contextualização
histórica do fandango e o que reverberou dos processos de tradição nas traduções
apresentadas. Antes de tudo é preciso deixar claro que as traduções são
constantemente ressignificadas, tanto pela ótica do pesquisador quanto pela cultura
dinâmica e movente. E este processo de tradução cultural do fandango foi permeado
por vivências e experiências subjetivas compostas por hibridismos, mas construída
na coletividade da manifestação.
As questões emergentes do campo, como os processos de colonização que
acompanharam o fandango caracterizando e estilizando-o, foram imprescindíveis
para compreender as ausências de saberes e as linhas abissais da manifestação
caiçara. Questões políticas, sociais e ambientais foram determinantes na trajetória
134
do fandango, que, a partir das obliterações apresentadas nesses âmbitos, deixou de
ter o caráter de mutirão nos sítios e passou a não ter ocorrência registrada.
O viés da tradição permitiu adentrar em questões que remeteram ao folclore e
sua influência no Fandango Paranaense, que foi um divisor de águas – tornando
aparente uma tradição invisibilizada. Os folcloristas Inami Custódio Pinto e Fernando
Correa de Azevedo foram influências significativas no sentido de romper entraves
que localizavam o fandango do “outro lado da linha” e que o deslocaram para “este
lado da linha” (SANTOS, 2010), porém nesta transição de ocupação a manifestação
foi ressignificada e romanticizada, descaracterizando e desterritorializando o
fandango.
O folclorista Inami Pinto, na preocupação de apresentar o fandango como a
dança popular do Paraná, no sentido de afirmar a identidade do estado, acabou por
transformá-lo, em diversos momentos, em espetáculo. E, assim, o fandango assumiu
outra configuração na Ilha dos Valadares, passando a se organizar em grupos. Essa
divisão gerou divergências entre mestres e aprendizes que se identificavam com
formas diferentes de fazer fandango. Neste sentido, o Grupo Folclórico do Mestre
Romão se manteve com a função de apresentação e espetáculo e o outro grupo
(Mestre Eugênio) que existia na Ilha tinha função local, promovendo bailes e festas
na comunidade. Após o falecimento do Mestre Eugênio seu grupo se desmembrou,
e hoje temos quatro grupos pertencentes à Ilha dos Valadares.
Mais tarde, na década de 1990, convidaram um coreógrafo do Teatro Guaíra
para reorganizar o Fandango, foi um processo de recolonização, pois, mais uma
vez, as experiências dos caiçaras foram ressignificadas por um olhar estrangeiro,
modificando o modo de fazer e dançar fandango.
Assim, a partir destas dinâmicas e instabilidades, o fandango foi se traduzindo
e apresentando pistas do que ele é hoje. Nesta pesquisa foram tecidos aspectos das
tradições e observadas as configurações atuais de dança e compreensão de corpo
no Fandango, que resultaram em processos contínuos de ressignificação e
reinscrição de uma tradição.
O fandango é composto por atravessamentos, residindo no entre-lugar da
cultura popular, no espaço que permite transições e entrecruzamentos,
possibilitando sua constante reinscrição. A dança do fandango pode ser traduzida de
modos distintos, cada grupo tem suas especificidades e permitem traduções
díspares, abertas e complexas. Os quatro grupos observados em bailes, ensaios e
135
mutirão possuem singularidades e os respectivos mestres apresentam em suas
compreensões do Fandango consonâncias e dissonâncias, o que reflete nos modos
de dançar de cada grupo. Além das diferentes perspectivas apresentadas pelos
mestres, a formação dos grupos também determina suas traduções, no caso os
grupos compostos por jovens apresentam problemas similares em relação a cachês,
ao passo que os grupos de veteranos possuem outra dinâmica de dança e ensaio,
que reverberam em outras questões.
Assim, a existência das tradições não fechou as possibilidades de traduções,
mas abriu espaço para outra questão norteadora desta pesquisa: “De que forma os
sujeitos criam/apresentam discursos sobre a prática/aprendizagem na dança do
Fandango?”
Os sujeitos da pesquisa, mestres e aprendizes, apresentaram discursos a
partir de suas experiências com/no fandango. As traduções culturais são alicerces
que consolidam os discursos sobre a prática e aprendizagem da dança do
Fandango. Os aprendizes refletem discursos dos mestres, pois ao comporem os
grupos criam-se relações por afinidade e afetividade. Os mestres Brasílio e
Nemésio, os quais vivem o fandango desde pequenos, participando de mutirões e
envolvidos nas atividades do sítio que permeiam os fazeres caiçaras apresentam
discursos similares em relação à dança do fandango. Para eles, a dança não sofreu
transformações, mas reconhecem que algumas diferenças se fazem presentes hoje,
pois o Fandango está inserido em outro contexto e foi atualizado. Seus discursos
têm vínculos com as tradições e seus modos de fazer fandango também apresentam
essa característica.
Luiz Carlos, representante do grupo do Mestre Romão, apresenta um
discurso que foi enredado pelas experiências decorrentes da influência do folclorista
Inami Custódio Pinto em seu grupo, o discurso apresentado tem base a partir da sua
vivência na década de 1990, quando dançava no grupo, bem como se fundamenta
pelos saberes apreendidos e repassados pelo seu avô. Mestre Romão, assim como
Brasílio e Nemésio, foi filho de agricultor e participava dos mutirões. Na pesquisa de
campo de 2014, o mestre contou que seus pais pagavam o trabalho na roça com
aulas de fandango. Assim, se constitui em seu grupo o discurso sobre a
aprendizagem na dança, baseada nas tradições e na influência do movimento
folclórico, configurando a prática em apresentações e espetáculo.
136
Mestre Aorélio Domingues apresenta um discurso político e articulado,
refletindo suas experiências no campo da cultura popular. O mestre possui a
Associação de Cultura Popular Mandicuera, que é ponto de cultura caiçara na Ilha,
ele atualmente é representante do Paraná no Fórum Nacional de Culturas Populares
e faz parte do Colegiado Nacional de Culturas Populares. Assim, Aorélio possui uma
perspectiva diferente dos outros mestres em relação aos modos de fazer fandango,
estando sua prática implicada em questões políticas e sociais, o que reflete
diretamente na configuração do seu grupo.
Em relação à aprendizagem da dança o mestre apresenta uma nova tentativa
de ensino, que será baseada no conhecimento acerca dos saberes caiçaras e do
universo que rege o fandango, para, a partir deles, os aprendizes estarem aptos a
construir conhecimento, seja ao tocar instrumentos ou dançar bailados e batidos.
Não foram realizadas entrevistas com seu grupo, que foi destituído após conflitos
relacionados a cachês e desrespeito com os mestres. E foi a partir dos conflitos que
se deu a nova formatação aos processos de ensino.
Sendo assim, podemos compreender que os diferentes discursos decorrem
de diferentes experiências, que traduzem a configuração singular dos grupos de
Fandango. Os processos de aprendizagem da dança nos grupos se dão na forma de
refletir as posturas dos mestres e suas articulações no campo da cultura popular. Os
aprendizes entrevistados apresentaram discursos consensuais com os mestres, pois
compartilham de espaços próximos de experiência. E, em relação à percepção das
dinâmicas do corpo no Fandango, acredita-se que se apresentaram modos de
subjetivação na dança, emergindo singularidades e idiossincrasias. Assim, a ação
corporificada se dá a partir das experiências coletivas somadas às dinâmicas de
corpo individualizadas.
A terceira questão complementar para pensar e solucionar provisoriamente a
problemática desta pesquisa sugere: “Como se dão as transformações no fandango
e como isso reflete processos de tradução cultural na dança?”.
A composição das vivências do campo agenciadas com as teorias
multirreferenciais que embasaram essa dissertação possibilitou compreender as
transformações como processos tradutórios da dança no Fandango. Entende-se que
o Fandango é uma manifestação que possui complexidade cultural-estética, assim é
possível compreendê-lo como uma manifestação múltipla e plural. Neste sentido,
137
traduzir o Fandango é permanecer no processo, estabelecendo diálogo interminável
e incompleto.
No entre-lugar da cultura popular está o fandango, que é ressignificado
constantemente em meio a negociações das diferenças, nas quais se rompem as
fronteiras da tradição, possibilitando, pelos diálogos interculturais, novas traduções.
Ao adotar o hibridismo como conceito chave para pensar as traduções no Fandango
foi possível compreender que brotaram, dos cruzamentos históricos e sociais e das
suas margens, possibilidades híbridas na dança, sendo esses processos isentos de
reciprocidade e apresentando trocas imparciais. Neste sentido, é possível afirmar
que as transformações na dança do fandango se deram a partir da influência da
colonização, do movimento folclórico e das novas formas de organização por
estilização, ou seja, a recolonização. Sendo assim, só foram possibilitadas as
traduções ao considerar esses processos.
Na dança do Fandango o movimento da cultura é ação corporificada, e este
mesmo movimento é pensamento do corpo, desencadeando processos de múltiplas
experiências subjetivas. Assim, o corpo, enquanto lugar da memória e criatividade
(AMOROSO, 2009), é construção cultural que revela formas diferentes de mover e,
simultaneamente, de ser.
As traduções culturais na dança do Fandango não se acabam, o que
permanece é o processo, que as reinscreve e ressignifica. Ao considerar o corpo
como território dos sentidos, que tece a cultura e é tecido por ela, a aprendizagem
na dança se apresentou de formas distintas, sendo, por uma rede de movimentos,
construídos coletivamente baseados em repetições e replicações e por ações
corporificadas de cada dançador, possibilitando processos de criatividade e
inventividade. As diferenciações apresentadas nas aprendizagens se dão pelas
experiências, que são replicações ou invenções, o que constitui um mosaico com
múltiplas combinações.
Os processos de tradução cultural e aprendizagem inventiva na dança do
Fandango permitiram habitar um território desconhecido que passou a ser o próprio
campo movente do pesquisador no espaço fronteiriço da cultura. Ao finalizar este
percurso, constituído de pistas cartográficas, espera-se que o som dos batidos dos
tamancos dos folgadores reverbere nas compreensões de tradição e danças
populares brasileiras, nas investigações acerca dos processos de aprendizagem na
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