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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
NECYLIA MARIA DA SILVA MONTEIRO
ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo
sobre Dramaturgia para infância.
RIO DE JANEIRO
2020
3
Necylia Maria da Silva Monteiro
ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo
sobre Dramaturgia para infância.
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Artes da Cena.
Orientador: Profº Dr. Fernando de Souza
Gerheim.
Rio de Janeiro
2020
4
5
Necylia Maria da Silva Monteiro
ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo
sobre Dramaturgia para infância.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Artes da Cena.
Aprovada em:
____________________________________
Prof. Dr. Fernando de Souza Gerheim, UFRJ (Orientador).
____________________________________
Prof.ª Dra. Luiza Ferreira de Souza Leite, UFRJ.
____________________________________
Prof.ª Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra, UERJ.
6
À minha Avó Maria Necy Ferreira da Silva
(in memoriam) que me contava histórias.
À minha Mãe Necilma Ferreira da Silva,
minha heroína inspiradora.
7
AGRADECIMENTOS
À minha mãe Necilma Ferreira por acreditar e dar todo suporte para a minha
formação, às minhas tias Necilene Ferreira e Necinilde Ferreira por me darem apoio sempre
que preciso e serem também minhas mães, à toda minha família pelo apoio e compreensão da
minha ausência por conta dos sonhos que me fazem migrar. Agradeço aos meus professores
da Universidade Federal do Maranhão por toda contribuição mesmo após a graduação, em
especial Dra. Michelle Cabral, Mestre Luís Roberto de Souza e Dra. Fernanda Areias de
Oliveira, meus mestres e mestras.
Agradeço ao Grupo Cena Aberta/MA por terem se aventurado nos cadernos e na
escrita comigo, em especial os que participaram dos laboratórios: Tiago Andrade, Jaqueline
Lince, Larissa Ferreira, Jairiane Muniz, Fernanda Marques, Thamyres Nascimento, Victor
Silper e a dramaturga argentina Nádia Ethel, pela amizade e contribuições. Agradeço ao
Centro de Artes Cênicas do Estado do Maranhão e ao Casarão Ângelus Novus pela abertura
de espaço para as atividades da pesquisa.
Aos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro que contribuíram direta ou
indiretamente para esta pesquisa, cito a Dra. Luiza Leite, Dra. Adriana Schneider Alcure,
Dra. Maria Teresa Bastos, Dra. Carmem Gadelha, Dr. André Marques e ao meu orientador
Dr. Fernando Gerheim pela parceria nesses dois anos. Agradeço à Dra. Jacyan Castilho pela
abertura de sua sala de aula no curso de direção Teatral na disciplina Dramaturgia VII em que
pude ministrar oficina da pesquisa no estágio docência, esta experiência foi de enorme
aprendizado, agradeço igualmente aos alunos (turma 2019.2) da disciplina, por suas mentes
criativas e prontidão nas proposições.
Agradeço à minha turma de mestrado, pela troca de afetos que me fizeram estar entre
amiges desde minha chegada ao Rio de Janeiro. Obrigada, “mestrandinhxs”: Angélica
Menezes, Daniel Cintra, Dieymes Pechincha, Erika Neves, Gabriel Moraes, Poliana Paiva,
Ricardo Cabral, Ian Calvet, Ludmila Rosa, Pedro Emanuel e Vinicius Reis.
À Ana Paula Martins, Ana Clara Martins, Heitor Muniz e Lígia da Cruz por serem
minha família no Rio de janeiro. À Thaynara Cardoso, minha companheira de vida, por todo
apoio amoroso e paciente de sempre, e também pela ajuda com a edição de imagens deste
trabalho. Agradeço à FAPEMA pelo incentivo e financiamento desta pesquisa, sem a qual
não seria possível minha permanência no Rio de Janeiro, em meio aos ataques à educação,
esta instituição vem corajosamente sendo um respiro na inovação e pesquisa no Brasil.
8
“Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido
único, de certo modo teológico (que seria a «mensagem» do Autor-Deus), mas um espaço de
dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é
original: o texto é um tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura”.
Roland Barthes
“ Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando”
Gonzaguinha
9
RESUMO
MONTEIRO. Necylia Maria da Silva. Entre o chão e a página: Procedimentos de Escrita,
Dramaturgismo e um Lampejo sobre Dramaturgia para infância. Rio de Janeiro, 2020.
Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
Nesta pesquisa em artes é apresentada a reflexão teórica de procedimentos de escrita para
criação dramatúrgica, realizada em vivências com atores e atrizes do Grupo de Pesquisa
Teatral Cena Aberta/MA e um grupo de discentes em Direção Teatral da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, numa criação inserida no segmento da Dramaturgia para infância.
A trajetória da pesquisa é exposta através de recursos da Genética Teatral e sob a luz da
prática do dramaturgista, em que os processos são evidenciados na exposição das
materialidades, isto é, cadernos, diários, cartas e manuscritos. A pesquisa resulta numa
reflexão através da prática sobre modos de fazer na escrita para a cena.
.
Palavras Chave: Dramaturgista; Procedimentos de escrita; Dramaturgia para infância.
10
ABSTRACT
MONTEIRO. Necylia Maria da Silva. Entre o chão e a página: Procedimentos de Escrita,
Dramaturgismo e um Lampejo sobre Dramaturgia para infância. Rio de Janeiro, 2020.
Dissertação (Mestrado em Artes da Cena)- Escola de Comunicação, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
This research in arts presents the theoretical reflection of writing procedures for
dramaturgical creation, carried out in experiences with actors and actresses from the Cena
Aberta Theater Research Group / MA and a group of students in Theater Direction from the
Federal University of Rio de Janeiro, in a creation inserted in the segment of drama for
children. A research trajectory is exposed through the resources of Theater Genetics and in
the light of dramaturgist practice, in which the processes are evidenced in the exhibition of
material, that is, notebooks, notes, letters and manuscripts. The research results in a reflection
on the practice on the ways of writing in the scene.
.
Keywords: Dramaturg; Writing procedures; Children's dramaturgy
11
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Capa Caderno de pesquisa 1
Figura 2 – Personagem Coelho, ator Alysson Ericeira 23
Figura 3 – Pedro quando criança 33
Figura 4 – Necylia quando criança 33
Figura 5 – Envelope de Carta de Tiago digitalizada 38
Figura 6 – Carta de Tiago página 1 39
Figura 7 – Carta de Tiago página 2 40
Figura 8 – Foto reprodução do caderno de pesquisa, pontos sobre o manuscrito 42
Figura 9 – Manuscrito A cor de Deus página 1 43
Figura 10 – Manuscrito A cor de Deus página 2 44
Figura 11 – Manuscrito A cor de Deus página 3 45
Figura 12 – Manuscrito A cor de Deus página 4 46
Figura 13 – Manuscrito A cor de Deus página 5 47
Figura 14 – Manuscrito A cor de Deus página 6 48
Figura 15 – Quadro de itinerário da pesquisa 49
Figura 16 – Foto de quadro fixado à parede 50
Figura 17 – fac-símile caminhos a seguir na sala de ensaio 52
Figura 18 – Capa e contracapa 1 56
Figura 19 – Capa e Contracapa 2 56
Figura 20 – Caderno 1, exercício escrita com objetos 59
Figura 21 – Caderno 2, exercício escrita com objetos 59
Figura 22. – Exercício 3 60
Figura 23 – Exercício 3 60
Figura 24 – Cadernos 1 e 2 com exercício 6 62
Figura 25 – Cadernos com exercício 7 63
Figura 26 – Cadernos com exercício 8 65
Figura 27 – Caderno com exercício 9 66
Figura 28 – Caderno com exercício 10 68
Figura 29 – Caderno com planta baixa e descrição da cidade da bobeira 70
Figura 30 – Caderno com cidade da bobeira 71
Figura 31. Encontro na Praça dos Catraieiros - São Luís/MA 73
12
Figura 32 – Cadernos com idas à praia 74
Figura 33 – Persona-Cidade 76
Figura 34 – Carta da Dramaturga Nádia Ethel 77
Figura 35 – Carta da Dramaturga Nádia Ethel, página 2 78
Figura 36 – Exercício com cartões postais 80
Figura 37 – Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos 82
Figura 38 – Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos 82
Figura 39 – Cena de debate para prefeito da cidade da bobeira 83
Figura 40 – À esquerda rascunho da cidade da bobeira, à direita planta baixa definitiva 84
Figura 41 – Quadro de palavras chave sobre teatro para crianças 88
13
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 14
2. MOVIMENTOS ANTES DA SALA DE ENSAIO 19
2.1 Primeiro movimento: O dramaturgismo 20
2.2 Segundo movimento: O grupo Cena Aberta 28
2.3 Terceiro movimento: Escrita em performação 31
2.4 Quarto movimento: Os caminhos a partir do conto 40
3. ENTRE O CHÃO E A PÁGINA 54
3.1 Na ilha 55
3.2 No continente. 79
4. UM LAMPEJO SOBRE DRAMATURGIA PARA INFÂNCIA 87
4.1 Educação | Escola | Arte Educação 99
4.2 Ludicidade | Lúdico | Diversão | Alegria | Música 93
4.3 Representatividade 96
4.4 Disney | Frozen | Contos | Fadas 97
4.5 Por uma redescoberta da dramaturgia para infância 99
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 103
REFERÊNCIAS 106
14
1. INTRODUÇÃO
Um mapa de migração movida pela escrita.
Em 2013, na Universidade Federal do Maranhão, meus primeiros textos para o teatro,
começam a ser encenados, a exemplo de Cecília e os 40 fantasmas (2013), A Grande Batalha
dos Livros (2014) e Cartas à minha Filha (2015). Nestas experiências, já era evidente meu
máximo interesse na escrita para o teatro e as relações de quem escreve inserido no grupo
teatral.
Em 2015, estreia Aventura do Lobo1, espetáculo que teve cerca de dez apresentações
para crianças e jovens de escolas públicas e particulares em São Luís do Maranhão. Foi a
experiência em que mais me desbravei na escrita dramatúrgica e no pensamento do teatro
para crianças que fosse a contra maré das produções locais.
Me transporto a lembranças daquelas apresentações no Teatro Arthur Azevedo2, em
que, da cabine de iluminação, eu assistia atenciosa as reações das crianças. Nesse universo
que brincava com cidade e campo, animais urbanos e antropomórficos, uma banda de rock e
composições autorais, eu me questionava sobre os limites entre personagem e ator, quando
percebia que em Aventura do Lobo a composição dos personagens era guiada pelas
personalidades de cada ator ou atriz.
Foi nesse sentido, que tracei minha pesquisa monográfica, em Teatro Licenciatura, na
Universidade Federal do Maranhão. Reconstruí a trajetória do processo criativo dramatúrgico
desse espetáculo, em que o texto estava tanto imbricado na encenação quanto inserido na
experiência em grupo e lapidado para os corpos dos sujeitos.
Ao traçar identidades, identificar recursos dramáticos e eixos de análise no processo
criativo do texto no espetáculo Aventura do Lobo, pude perceber os indícios de um escrito
performativo, sua composição dava-se quando o ator se mostrava com sua subjetividade,
narrativas e características físicas. Todo esse material se alinhavava na sala de ensaio. Escrita
e reescrita se atualizavam e se moldavam ao jogo dos atores, sobressaindo um texto aberto e
1 Aventura do Lobo é uma produção da Cia Artífice-mor em parceria com o Grupo Cena Aberta, com texto e
direção Necylia Monteiro; elenco: Tiago Andrade, Victor Silper, Fernanda Marques, Alysson Ericeira, Arison
Robert e Carla Purcina; Iluminação: Arlinda Cruz; Músicos: Lauan Pinheiro e Manoel Plácido; O espetáculo
esteve em festivais locais como a Semana do Teatro no Maranhão (Teatro Arthur Azevedo), Semana da Criança
(SESC/MA) e produções independentes como o Projeto A Escola Vai ao Teatro que contou com crianças e
jovens de escolas públicas e privadas da cidade. 2 Localizado no Centro histórico de São Luís do Maranhão, é o segundo teatro mais antigo do Brasil,
inaugurado em 1817.
15
dinâmico, enquanto eu, como agente da escrita, me colocava como criadora de possibilidades
e observadora atenta ao imprevisto, ao orgânico.
Seria possível um texto teatral ser escrito sob medida para seus atores? Essa pergunta
foi meu impulso por um tempo, sua resposta já estava contida em minhas experiências com a
escrita, tanto em Aventura do Lobo, quanto nos roteiros de circo que escrevo. Os atores,
atrizes e palhaços, como sujeitos do processo, sempre estiveram no pontapé crucial das
minhas criações textuais.
Dito isso, a pergunta estruturante contida nesta pesquisa não está sob a possibilidade
de o texto ser guiado pelos sujeitos, mas como se dão essas criações, quais procedimentos são
usados para que esses sujeitos escrevam sobre si, operem criação, se mostrem e assumem-se
ante ao processo criativo.
Nesta pesquisa, a questão central se debruça sobre modos de fazer, criar e operar em
acordo com o campo das pesquisas em artes, que não vê o conhecimento separado do
pesquisador e que objetiva a compreensão da prática artística, possibilitando autonomia na
formulação das próprias perguntas e a busca por respostas “através de um processo interativo
entre exploração prática de sua artform, seu fazer artístico, e compreensão teórica do que está
em questão” (FORTIN; GOSSELIN, p.7, 2014).
Trata-se de processos e procedimentos em dramaturgia, isto é, almejo expor
experimentações criativas vivenciadas entre São Luís e Rio de Janeiro, são elas: laboratórios
de criação com o Grupo Cena Aberta/MA e oficina no estágio docência com discentes em
Direção Teatral da UFRJ na disciplina de Dramaturgia VII.
Expor procedimentos de criação demanda evidenciar as etapas e privilegiar as
materialidades geradas, como registros, diários de bordo, cadernos dos atores, filmagens e
fotografias, levando-me a crer que as ferramentas da Genética Teatral, a partir do pensamento
de Josette Féral (2015) e Almuth Grésillon (1994), é a metodologia mais apropriada por
estabelecer uma relação de exposição desses materiais. Sobre a genética se esclarece:
Seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que comportam o vestígio de
uma dinâmica, a do texto em devir. Seu método: o desvelamento do corpo e do
curso da escrita acompanhada da construção de uma série de hipóteses sobre as
operações escriturais. Seu objetivo: a literatura como um fazer, como atividade,
como movimento (GRÉSILLON; BUDOR apud GRÉSILLON, 2013. p. 7).
O método da crítica genética, surgido na França, década de 1960, expandido do
domínio da literatura, leva em consideração todos os materiais do processo, sobretudo os
textuais, identificando as operações sistemáticas da escritura, apoiando a composição da
16
narrativa da experiência para essa dissertação. Sobre a relação da genética com o processo
criativo a autora Marie-Hélène Paret (2011) Passos afirma:
A abordagem genética implica a análise da escritura em processo e não do escrito,
da textualização e não do texto, da multiplicidade das escolhas possíveis e não da
última escolha feita. Ela se detém no movimento que cria e não no que já foi criado
e editado. Ela tem um papel epifânico quando o objetivo de sua abordagem é tentar
penetrar no laboratório do escritor [...]. Espaço mítico por excelência onde a
alquimia da criação acontece, onde os estados inacessíveis do texto sucedem-se.
(PASSOS, 2011, p.26).
Em congruência a essa ideia, através das ferramentas da Genética Teatral, reúno
materialidades como cadernos, desenhos, cartas e diários, além de registros audiovisuais.
Percebo a partir deles, o devir criativo e os passos da escrita quando exponho esboços e
escolhas. Por fim, sistematizo procedimentos seja através de descrição, elaboração de
reflexão ou confecção de tabelas e outros esquemas na tentativa de comunicar o processo.
Toda essa prática metodológica suscitando as questões sobre arquivos e modos de criação em
grupo, dialogam com as ideias da autora Cecília Salles em Redes de Criação (2006),
Processo de Criação em Grupo (2017) e Gesto Inacabado (2013).
Assumo também como metodologia neste processo, minha identidade na escrita como
dramaturgista, aquela que vê a escrita em movimento e diálogo com o coletivo, alguém que
pode assumir múltiplas funções no grupo além da escrita de peças. Como dramaturgista, me
coloco nas vivências como propositora, alguém que percebe e propõe com os sujeitos; é
também como dramaturgista que estendo meu olhar para os registros, organizando,
sistematizando e relacionando-os com teorias. Cabe ao dramaturgismo essa relação de crítica
ao processo.
Nessa jornada de experimentações, proponho o Teatro para Infância como farol, posto
que, em minha caminhada artística, aproximações com este segmento do teatro estão sempre
reverberando em minhas buscas escriturísticas. Mais que uma temática, esta exposição de
procedimentos em dramaturgia firma sua identidade na criação de textos para a infância, algo
tão pouco discutido no contexto brasileiro.
Assim, esta pesquisa visa contribuir de maneira dialógica, tanto nas discussões sobre
criação em dramaturgia, no Brasil, onde são pouquíssimas as ações formativas no campo,
como também, na questão do teatro para infância, como segmento que merece atenção no
teatro, escolas e universidades.
O título Entre o Chão e a Página é um chamamento. Perceber Chão além de
superfície do solo que pisamos, como lugar de onde se é. Obviamente no sentido de lugar
17
palpável e físico, mas especialmente convido ao sentido metafórico sobre identidade, de onde
somos e onde fincamos nossas histórias, saberes situados e o aqui e agora da criação.
Página, substantivo feminino, lugar onde se registra (registro de si, da vida, de
histórias) lugar não-físico e metáfora para prática de ideias, campo do impossível. Sinônimo
para cadernos, cartas, diários e planejamentos. Entre esses dois, está o miolo da história, o
intermediário, o movimento, os meios de fazer, as formas operantes, tidas nessa pesquisa
como ponto nevrálgico.
No Corpo da dissertação, a primeira parte estabelece conexões. Refere-se à etapa
antes dos encontros com os grupos de vivências, onde partes soltas ambientam o pensar sobre
o pré-processo, a preparação. Aqui está uma dramaturgista em pensamento, em criação e
planejamento. Este prelúdio é um mergulho sobre a descoberta de caminhos para
experimentação. Chamo de Movimentos antes da sala de ensaio. Movimentos, pois não estão
fixados nem enrijecidos e sim em trânsito, em fluidez, prontos para toda alteridade que
permite a experimentação em grupo.
Na segunda parte, que leva o nome do título deste trabalho, encontra-se a narrativa das
experimentações, divididas conforme os espaços de vivência, já mencionados. Em evidência
o material levantado, mas também um olhar que organiza, sistematiza e comunica o processo,
organismo vivo.
Em Um lampejo sobre dramaturgia para infância, terceiro momento desta
caminhada, traço considerações sobre dramaturgia para infância. Estabeleço um diálogo entre
estudos como os da Prof.ª Maria Lúcia de Souza Pupo (1991), em uma importante análise de
textos teatrais na cena paulista na década de 1970, como também Carlos Augusto Nazareth
(2012) em Trama: um olhar sobre o teatro infantil ontem e hoje, além da publicação recente
da Revista acadêmica Leia Escola (2019) da UFCG, com edição exclusiva sobre Dramaturgia
para infância, reunindo as recentes experiências no Brasil e outros estudos.
É a partir da experiência, como propositora de processos criativos no Teatro para
Infância, que traço reflexões, a fim de reivindicar o lugar da dramaturgia contemporânea para
crianças, no contexto brasileiro e sua importância nos espaços de discussão e produção de
conhecimento em teatro.
Esta pesquisa também é retrato de uma migração regional. Ela me trouxe para quase
três mil quilômetros longe de casa, saída da ilha para o continente, me tornando forasteira
nesse país grande em pluralidade cultural, entre São Luís e Rio de Janeiro, com cartas,
escritas, diários e trocas criativas. As migrações nos transformam numa velocidade
assustadora e silenciosa.
18
É justamente por pensar em um trabalho repleto de narrativas e experimentações
situadas, que busco a transmissão dessa experiência de pesquisa através de escrita própria que
não caia em imparcialidades. Aqui está uma escritora se colocando em primeira pessoa. Me
firmo nesta decisão como posicionamento político em que defendo a urgência da escrita
feminina em terras dramatúrgicas dominadas pelos homens e também a voz do meu fazer
artístico, avultando discussões sobre escritos de artista, como área de conhecimento e
pesquisa acadêmica.
Devo prevenir da possibilidade de minhas palavras porventura convidarem você,
leitor ou leitora, a ler em voz alta, para que talvez a oralidade nos aproxime e entoe o contar
de uma história, ação de minha identidade maranhense, que conta causos, rimas, lendas,
tradições e memórias.
Se, como afirma o filósofo Walter Benjamin, “A experiência que passa de boca em
boca é a fonte a que recorreram todos os narradores” (2012 p. 214), me faço narradora,
contando minha experiência e relatando a de outros. Acredito que ao fazer a escrita sair pela
boca, entoa-se narrativa, como neste momento em que leio em voz alta à medida que escrevo.
Sua figura, o narrador, traz consigo essa forma artesanal de comunicação.
Abertas as portas da sala de criação, acredito neste escrito certamente não como um
resultado acabado. Portanto, me resta esperar que em confrontamento com as possibilidades
de criação aqui apresentadas, seja possível que outros possam alinhavar seus próprios
pensamentos, construir seus próprios textos, quiçá trace seus próprios procedimentos, que se
façam do olhar de si, do seu chão ao se confrontar com o outro.
19
2. MOVIMENTOS ANTES DA SALA DE CRIAÇÃO
Urge sobre mim, artista que se reconhece pela escrita, um pensamento em
movimento sobre processo criativo. Etapas de trabalho, estágios, trajeto, percurso, dentre
muitos nomes, em todos se perseguem rastros, esboços, indícios, rascunhos, cadernos,
escritos, lapsos de ideias em guardanapos, arquivos. Nesses lugares moram meu olhar de
pesquisadora e artista.
Ao propor a questão do conceito de criação como rede em processo, Cecília
Salles (2006) define a criação artística como marcada de uma dinamicidade que traz um
estado de inacabamento em que toda obra é suscetível a afetações do contexto, ambiente e
sujeitos, assim ela nos diz:
Uma teoria científica tem sempre incerteza de seus resultados [...] o artista também
enfrenta um processo que não permite previsão e predição, em outras palavras,
opera no universo da incerteza, da mutabilidade, da imprecisão e do inacabamento
(SALLES, 2006. p.21).
Se a obra é atestada em seu caráter de mutabilidade, o conceito de rede, que diz
sobre as relações na criação, nos propõe a exposição das mudanças ocorridas para refletir a
dialética existente entre artistas, obra e processo de criação, “entre rumo e incerteza” na
“busca de algo que está por ser descoberto” (SALLES, 2006. p.22).
No decorrer da criação onde as “tendências se cruzam com o acidental” me
interessa também, como a Cecília Salles, conhecer e refletir modos de desenvolvimento de
pensamento, para mim em especial na escrita dramatúrgica no contexto brasileiro, onde são
raros os cursos de formação em Dramaturgia3.
É perseguindo modos de feitura que “coloca-se assim em crise o conhecimento do
objeto fechado, estático e isolado” suscitando uma “dessacralização dessa (a obra) como final
e única forma possível” e por isso a importância de registros de criação, cadernos de artistas.
Ainda segundo Salles (2006):
Sob esta perspectiva, todos os registros deixados pelo artista são importantes, na
medida em que podem oferecer informações significativas sobre o ato criador. A
obra não é fruto de uma grande ideia localizada em momentos iniciais do processo,
mas está espalhada pelo percurso. Há criação em diários, anotações e rascunhos
(SALLES, 2006. p. 36).
A autora, ao falar de processos artísticos em geral, aponta para o conceito de
Criação em rede na busca de um olhar interpretativo e relacional sobre as materialidades
3 Em 2019, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS abre curso de Bacharelado em escrita
Dramatúrgica, a primeira do tipo nas universidades pública brasileiras.
20
deixadas pelo artista. Ela leva em conta a condição de inacabamento, a multiplicidade de
interações, à tensão entre tendências e acasos além da lida com arquivos. Questiono os
caminhos dessa relação quando o próprio artista está criando e simultaneamente refletindo
seu processo.
Tal como a pesquisadora de criação, não me interessa neste escrito somente contar a
trajetória dessa pesquisa de mestrado, “narrar o que acontece de um gesto para outro não leva
também à compreensão do movimento” (2006. p.37), quero entender e refletir a construção
dramatúrgica, conectar experiências, formar interação de referências no campo teórico
construindo um olhar crítico que perscruta procedimentos de um pensamento em criação e
suas implicações.
Não é intenção deste escrito oferecer caminhos ou trajetos prontos. Mas, quem sabe
falar de procedimentos que reverbere em outros processos e criem essa rede de caminhos e
experiências que alimentem práticas diversas. Nesses movimentos, ainda difusos e em
tempestade de ideias, muito provavelmente se encontre mais perguntas do que respostas, mais
rotas a seguir do que trajetos traçados. Por isso optei por sistematizar o mínimo, para que em
fluência com uma obra que está prestes a ser criada se estabeleça uma relação aberta com o
desconhecido.
2.1 Primeiro Movimento: O Dramaturgismo
A escrita para o teatro, tida num conceito amplo de Dramaturgia, é como ação que
contém as principais discussões estéticas e políticas sobre o que dizer, quem dizer e como
dizer, diz Marcio de Abreu (2010, p.24) em artigo para a revista Subtexto. Frente a um
terreno estriado de procedimentos de criação que respondem às urgências do nosso tempo,
nesta pesquisa essa escrita é ponto crucial, acompanhada dos seus modos de feitura, sua
tecelagem.
Carlos Augusto Nazareth (2012. p.26), em seu olhar do espetáculo teatral como
uma tessitura, afirma que podemos tomar um texto como expressão do universo, sendo o
macrotexto, o universo composto de milhões de microtextos que interligados o estruturam e
onde os textos de arte refletiriam por mimetismo os textos da vida.
Tecido, urdidura, trama: o espetáculo é um tecido composto da urdidura e da trama
de diversas linguagens: o texto, o ator – seu corpo, sua voz, sua interpretação – a
música, a luz. Ele traz ideias e emoções tem música, plasticidade, movimento,
corporalidade (NAZARETH, 2012, p.26).
21
Nesse aspecto, tratando da função do autor de peças de teatro levanto a percepção
do dramaturgo como um fiandeiro, aquele que organiza os fios no tear. Esses fios, pode-se
dizer, são as materialidades escritas, as ideias, os argumentos, as colagens e o tecido feito é o
texto final, não excluindo essa relação de alteridade frente aos outros profissionais do
processo. Pelo contrário, esse jogo é matéria importante.
Nessa perspectiva, pensar em dramaturgia contemporânea é atestar sua
pluralidade em formas híbridas, metodologias e longe de pureza de gêneros. Em Notas sobre
a Dramaturgia contemporânea, Fernandes afirma:
A diversidade da produção chega a ponto de levar um pesquisador da envergadura
de Patrice Pavis a definir o texto teatral pelo critério elocutório. Segundo o teórico
francês atualmente texto de teatro é tudo aquilo que se fala em cena. O que parece
um exagero de simplificação encontra eco no encenador americano Richard
Schechner para quem drama é tudo o que o escritor escreve para a cena e se opõe a
script, o roteiro que serve como mapa de uma determinada produção
(FERNANDES 2010, p.153).
A autora nos alerta sobre a observação de que “uma das principais tarefas do
estudioso do texto teatral contemporâneo seja distinguir seu objeto”. É neste cenário, onde o
texto desafia qualquer padronização ou corrente, que busco uma identidade na escrita para o
teatro em sentido dialógico com a sua prática. Como pensar num agente da escrita em
movimento constante com o coletivo teatral na criação?
Atenho-me aos estudos de Fátima Saadi4 que tratam da função de dramaturg ou
dramaturgista, termo que etimologicamente significa poeta da cena. Sua função varia
conforme as demandas da criação e relação com a equipe, suas atividades em longo prazo
mostram possibilidades de aspecto multidisciplinar e transitório uma vez que “afirma-se que
um dramaturg acaba sempre por encontrar seu próprio destino vindo a realizar-se como
diretor, autor dramático ou crítico teatral”. Sobre suas diversas funções, a dramaturgista diz:
As tarefas do dramaturgista são múltiplas. Entre elas, eu listaria: colaborar no
delineamento do projeto artístico do grupo e na sua difusão; participar da escolha do
repertório; ler e comentar peças que sejam enviadas para apreciação; traduzir, criar
ou adaptar textos ou materiais que sirvam de base para o espetáculo; trabalhar,
juntamente com o encenador, na criação do conceito dos espetáculos, oferecer o
material de pesquisa necessário à montagem; acompanhar os ensaios para comentar
o desdobramento cênico da proposta durante sua concretização; elaborar o
programa do espetáculo e demais publicações do grupo; organizar debates com o
público; realizar o registro das atividades da trupe. (SAADI, 2013)
Os estudos da dramaturgista Fátima Saadi e seu compartilhar de experiências me
leva a ver a posição de um(a) autor(a) em movimento, não obrigando mais a dramaturgia ao
4Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista da companhia carioca Teatro do Pequeno Gesto, no âmbito da qual
edita a revista Folhetim e a coleção Folhetim/Ensaios.(fonte Revista online Questão de crítica disponível em <
http://www.questaodecritica.com.br/author/ftima-saadi/>.
22
ideário do romantismo, sob a escrita de gabinete. Certamente esta operação não é recente nem
novidade no campo da dramaturgia, pois sabemos de dramaturgos como Shakespeare, que
escreveu para atores específicos, e Bertold Brecht, que atualizava seus textos a partir da
prática dos atores, porém aqui se fala de uma criação que surge conjuntamente com os
sujeitos do processo. O dramaturgista atua em contato estreito e contínuo com demais
profissionais e com a construção da cena. Ele está nessa articulação dos elementos que
compõem o espetáculo teatral, na polifonia de significantes, na tensão entre o pensamento e a
forma.
Do mesmo modo, Adélia Nicolle5 (2005) se debruçou a entender tal função inserida
no grupo interessando-se por particularidades do dramaturgismo. Ela elenca: “confeccionar,
organizar, estruturar o roteiro ou texto, além de amparar os estudos teóricos necessários à
montagem – sempre vinculada ao trabalho do encenador” (2005. p.27). A autora traz para
avultar seu pensamento as experiências de Cacá Brandão6 com o Grupo Galpão/MG no início
da década de noventa, na montagem de Romeu e Julieta (1992).
Neste espetáculo, o dramaturgista atuou inicialmente conduzindo a equipe em
estudos específicos para encenação e acompanhando os ensaios fazendo diários da
montagem. Depois foi solicitado a reduzir o texto em 50%, criar prólogos, cenas e poemas
para o novo personagem surgido ao longo do processo, também escrever textos do programa
da peça, até que chegou a “intervir no sentido de apurar o texto dito pelos atores e indicar os
trechos que melhor funcionam junto ao público durante os ensaios abertos, reformulando toda
a dramaturgia” (2005. p. 28). O trabalho foi crescendo e tomando espaço, à medida que, o
processo exigia demandas na escrita e “Brandão se via o tempo todo como alguém a
viabilizar as ideias do diretor”, afirma a pesquisadora.
Em Aventura do Lobo (2015), processo que impulsionou esta pesquisa, meu
trabalho de dramaturgismo caminhou também como encenadora. A dramaturgia era guiada e
inscrita na atuação, evocando um texto feito a partir de quem estivesse em cena, seja suas
habilidades artísticas, gestos, características, histórias ou lembranças dos atores e atrizes.
Por exemplo, o personagem Coelho, interpretado por Alysson Ericeira, era
malabarista e contador de histórias, essas eram habilidades artísticas do ator. Alysson também
5 Doutora em Pedagogia do Teatro pela ECA/USP (2013). Como dramaturga, escreveu, encenou e publicou
diversos textos, além de prestar consultoria a autores e grupos. Como pesquisadora e escritora, publicou artigos,
biografias e uma coletânea de dramaturgia. No magistério há mais de três décadas, já lecionou para todos os
níveis. 6 Carlos Antônio Leite Brandão arquiteto e professor, dramaturgista nas encenações Romeu e Julieta (1992) em
seguida Um Moliére Imaginário, Partido e Inspetor I do Grupo Galpão/MG.
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gostava de rock, seus vícios, gestos e especificidades como modo de andar, abrir bem os
olhos e falar, suas gírias e expressões, ou seja, características pessoais do ator que foram
incluídas ao material de elaboração do personagem.
Somado às características pessoais e habilidades artísticas, em todo processo de sala
de ensaio trabalhávamos as memórias dos integrantes de suas idas à zona rural ou mesmo de
suas cidades natais no interior do Maranhão. Essa relação ajudava a pensar o jogo cidade e
floresta, contido na narrativa da peça.
Figura 2 Personagem Coelho, ator Alysson Ericeira
FONTE: Breno Galdino, 2016, acervo pessoal.
Dessa forma, a construção do personagem se distancia do ator, de sua pessoa
cotidiana, somente pelo exagero e comicidade inseridos numa ideia de performatividade de
si. O andar do ator, seus gestos, suas expressões, tudo era aumentado ou diminuído à escolha
do processo pensando na inserção desse material no contexto fabular.
Percebo nesse processo de construção dos personagens, em que os atores emprestam
sua personalidade sugerindo tipos e formas, semelhante à busca do palhaço em que a
construção do personagem por assim dizer “obedece a um determinado perfil individual, que
se apoia nas características corporais do ator e em sua própria subjetividade” (BOLOGNESI,
2003. p.198).
Nesses tipos cômicos há uma experimentação da liberdade, longe das formas rígidas
do cotidiano, onde o risível nos aproxima de sensações da infância, o palhaço quando cômico
se apoia no exagero de seus vícios e em suas possibilidades artísticas. É nessa relação que o
exercício de criatividade em Aventura do Lobo se apoia.
24
A função do dramaturgismo na sala de ensaio nesta experiência era coletar materiais
desse grupo, observar e listar suas habilidades e características, perceber o que cada corpo
oferecia à construção do personagem em cena e somá-lo ao texto e à encenação por sua vez.
Editando, criando e recortando à medida da sala de ensaio e a serviço de um trabalho de
direção que pensava movimentação dos atores e todas as especificidades da encenação7.
Pensando nessa interseção entre encenador e dramaturgista, o pesquisador José
Fausto Soares Rocha Moreira (2016), em entrevista a alguns dramaturgistas encenadores, cita
Carla Romero, para quem o trabalho de dramaturgismo “enxerga a possibilidade de criar
obras em que se pode pensar, conceber e construir um mundo imaginário completo a partir do
seu olhar” (MOREIRA, 2016. p.92).
A dramaturgista constrói uma metáfora sobre o papel do encenador dramaturgista
como função das mitocôndrias, o primeiro é uma espécie de líder que “participa de todo o
processo como transmissores de energia”. Analogamente, as mitocôndrias têm por função a
crucial tarefa de “realizar o importante processo de respiração celular” (MOREIRA, 2016.
p.92). Assim:
[...] o condutor de um processo teatral, ao assumir os dois papéis, precisa aproveitar
cada componente, pois, através de profissionais envolvidos e aplicados ao máximo
para a construção do espetáculo, é possível criar uma obra conjunta a partir da
orientação de um líder. Portanto, Carla Romero, desde o momento em que passou a
trabalhar como encenadora dramaturgista, viu a possibilidade de articular de
maneira mais eficiente as dinâmicas entre os atores, técnicos, espectadores e demais
envolvidos. Por isso, para ela, a palavra que melhor define esse profissional é:
articulador. (MOREIRA, 2016, p.92-93).
Ainda em suas entrevistas, Moreira (2016) cita o dramaturgista João Falcão, cujo
pensamento incide na possibilidade de “realizar a principal função do encenador
dramaturgista: captar o máximo de cada envolvido no espetáculo, em especial, do elenco”,
principalmente quando o texto é de sua autoria. Caso similar ao de Aventura do Lobo, que
privilegia os sujeitos envolvidos, sobretudo a atuação também com texto autoral. Ainda
segundo Moreira em entrevista ao dramaturgista Falcão:
Ao dominar as etapas do processo, pode tirar de cada membro o que deseja para a
obra. Assim, como um “fazedor de espetáculo”, não há nada sem a sua participação,
ele constrói tijolo por tijolo. Acumular os dois cargos traz a possibilidade de
experimentar a cada dia, a cada etapa do trabalho e se os papéis fossem divididos
como nas cartilhas, suas funções seriam limitadas, pois “não poderia ser tão mutante
e isso não seria completo” (p. 148). (MOREIRA, 2016, p.93).
7 Descrevo em detalhes toda essa experiência no trabalho monográfico Aventura do Lobo: Uma narrativa de
Criação em Dramaturgia. Nele listo e sistematizo todos os exercícios e procedimentos de sala de ensaio que
evocavam os materiais dos atores. A pesquisa teve orientação da Prof.ª Dra. Fernanda Areias de Oliveira,
departamento de Teatro da Universidade Federal do Maranhão e foi defendida em 2017.
25
Levanto essa relação de mutabilidade e completude proporcionada pelo acúmulo de
funções, citada por Falcão em entrevista, para relacionar o Aventura do Lobo com situações
adversas do processo, que exigem um trabalho ágil sobre a obra. Se esse texto é construído
nos moldes de seus atores e conectado à encenação, o que acontece quando há substituição de
atores?
Na experiência de escrita em Aventura do Lobo, o texto transforma-se a partir da
subjetividade dos novos atores, comprovando a abertura do texto perante a encenação. Os
novos atores foram inseridos no processo, para inscreverem no texto sua subjetividade sem
imposição do texto já existente.
Dessa maneira, o trabalho de dramaturgismo aliado ao da encenação potencializou a
fluência dessa operação, onde foram tomadas estratégias e ações de modo a contornar os
percalços. Os atores para substituição, por exemplo, já eram conhecidos pelo grupo, escolha
feita para acelerar interação entre atores e reconhecimento de habilidades artísticas. Os motes
da narrativa e do personagem foram seguidos enquanto que falas, composição e até cenas do
roteiro tiveram que se modificar à medida que os novos atores sugerem novas matérias.
Em Aventura do Lobo a relação com o trabalho de dramaturgismo se deu também na
feitura de diários de escrita do texto, elaboração de projeto cultural do espetáculo, escrita de
texto do programa da peça, comunicação com equipe de comunicação na elaboração de ideias
para divulgação, roteiro de vídeos teaser, identidade visual da peça para projeto gráfico e até
pensamento teórico sobre a mesma.
As atividades podem ser múltiplas. Pensando na multiplicidade de lugares que o
dramaturgista pode ocupar, essa pesquisa insere sua prática. Há a percepção de que sua
prática circula, sobretudo, sobre pensamento, discurso e escrita, não necessariamente ligada
ao texto dramático nem à sua autoria, mas vinculada a este. Sua função está em movimentar
pensamento na obra, servindo às necessidades de escrita que o processo requer.
Diante disso, qual seria o papel do dramaturgismo nessa experiência? O Dramaturg,
como poeta da cena pode ter inúmeras funções no grupo teatral, desde organizar documentos,
catalogar a memória do grupo, propor estudos, temas e até processos criativos, como é o caso
desta experimentação. De maneira explícita, o dramaturgismo acontece quando elaboro
proposições do que ocorrerá em sala de ensaio para que os sujeitos forneçam materiais que
possibilitem criação.
É de interesse nessa experimentação que o grupo se aproxime da escrita, seja das de
narrativas ou através dos registros em cadernos e cartas. São materiais impulsionadores da
dramaturgia. Do mesmo modo, ela deve também partir dos corpos, e por isso pretende-se
26
também que esses corpos tornem-se escrita. Nesse processo escrita e corpo não devem estar
numa relação dicotômica, pelo contrário, tenho objetivo de promover uma relação justaposta
para que um movimente o outro.
Nesse hiato, a operação em dramaturgismo também trabalha na elaboração
dissertativa dessa caminhada em processo. Ser dramaturgista me faz pensar na tessitura
dissertativa concomitante à experimentação artística. A genética teatral autoriza a saltar e
perseguir o registro do processo tanto em materialidades como em elaboração de sistemas e
reflexão para reconhecer e refletir modos de desenvolvimento de pensamento em criação
atrelando a função do dramaturg à pesquisa em artes.
A prática do dramaturgista nessas duas camadas levanta a ideia do artista não
distanciado de suas investigações, ao qual se propõe a pesquisa em artes. Neste processo está
em experimentação refletir e dialogar teoria e prática na sala de criação está num trabalho
único.
Essa autoria em fluxo com o grupo de trabalho a qual se propõe o dramaturgismo
evoca um alinhamento com a ideia de coletivos de criação ou processo colaborativo, que
segundo Adélia Nicolete (2010) tem ganhado força desde os anos 1990 no Brasil, e tem dado
garantias que os modos tradicionais de produção não mais atendiam às necessidades criativas.
Ela cita, por exemplo, a autonomia na criação, equivalências de funções, independência de
mercado, gestão própria de recursos dentre outros. Ainda segundo a dramaturga:
No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa
formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo, nos
anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes
imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo [...] Da
criação coletiva o processo colaborativo parece ter herdado, em muitos casos, a
concretização de um desejo grupal, que leva à pesquisa conjunta e à execução de
múltiplas funções com interferências mútuas, de modo a que as linhas autorais
esmaeçam em nome da assinatura coletiva. (NICOLETE. 2010. p. 33-34).
É por pensar no esmaecimento dessas linhas autorais em detrimento de uma autoria
em rede, que prevejo desafios numa pesquisa que visa privilegiar seus sujeitos e que diferente
de muitos exemplos de processo colaborativos que almejam uma encenação, propõe espaços
de criação dramatúrgica. Como propor um ambiente de criação com autonomia para os
sujeitos? Como fazer com que os envolvidos se mostrem ante ao processo que é pensado sob
o viés de suas subjetividades?
2.2 Segundo Movimento: O Grupo Cena Aberta.
27
A escolha pelo Grupo Cena Aberta como uma das vivências propostas para esta
pesquisa é motivada pelo interesse em observar o dramaturgismo inserido em grupo, isto é, o
trabalho do autor no grupo teatral. Sou integrante do grupo desde 2013, e pressuponho que a
observação e experiência do grupo no trato com o texto em sua trajetória, seriam válidas para
construir terreno para experimentar procedimentos de criação de si. Além disso, firmar
parceria com o mesmo viabiliza apoio prático para a pesquisa, como espaço para trabalho,
materiais como câmera fotográfica e filmadora, acesso ao acervo de livros do grupo,
mobilização dos integrantes dentre outros8.
O Grupo de Pesquisa Teatral Cena Aberta possui cerca de vinte anos de atuação no
cenário artístico do Maranhão, coordenado pelo Prof. Me. Luís Pazzini9, tendo ações em
treinamento e formação de atores/pesquisadores, montagem de espetáculos e oficinas
interdisciplinares para a comunidade, uma vez que, além de grupo,, é também projeto de
extensão da UFMA. Sobre a origem do grupo, o Professor Abimaelson dos Santos Pereira
nos diz (2013):
O Cena Aberta nasceu da efervescência dos processos teatrais experimentais na
Universidade Federal do Maranhão, no final da década de 1990 [...] O grupo foi
criado para dar suporte ao processo de formação dos estudantes de graduação,
futuros professores de teatro, tendo como metodologia de trabalho a investigação do
teatro experimental, a discussão política da obra e a ética do artista de teatro.
(PEREIRA, 2013. p.98)
Tais características contribuem para que grupo composto majoritariamente por
discentes da graduação seja um grupo de passagem, em que à medida que os alunos vão se
formando ou realizando outras atividades vão deixando as do grupo, mesmo que este tenha
pleno funcionamento como grupo teatral autônomo em relação a universidade,
principalmente na montagem de espetáculos.
O Grupo Cena Aberta, tem uma especificidade em sua relação com texto. É a
intertextualidade uma das molas da encenação para o grupo, guiados pela ideia de
movimento10
os fragmentos cênicos se dão de maneira gradativa e processual, trazem novos
8 O Grupo Cena Aberta por ser um também um projeto de extensão do curso de Teatro da UFMA possui sede no
Casarão Ângelus Novus, prédio localizado no centro de São Luís, utilizado como anexo para atividades do curso
de Teatro como ensaios, eventos, aulas etc. 9 Prof. Me. Luiz Roberto de Souza (Pazzini) é mestre em Artes pelo CAC/ECA/USP. Atualmente é professor
aposentado da UFMA, lotado no Departamento de Artes, curso de Licenciatura em Teatro. Desenvolve pesquisa
e possui vasta experiência na área de Teatro, com ênfase em Interpretação, Improvisação e Encenação, nas
esferas acadêmica e artística. Coordena o grupo de pesquisa teatral Cena Aberta e participa do grupo de
pesquisa Pedagogias do Teatro e Ação Cultural - Universidade Federal do Maranhão UFMA, sob Coordenação
do Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana. (fonte: site do curso de teatro/UFMA. Disponível em:
< http://www.teatro.ufma.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13&Itemid=143>. 10
A ideia de movimento no Grupo Cena aberta está relacionada a uma prática heterogênea e processual fazendo
com que o artista aprenda com suas experiências. Em entrevista a Abimaelson Santos, Pazzini afirma que
28
personagens e consequentemente novas cenas à medida que os artistas se inserem no
processo seja nas leituras, nos estudos, experimentações dos espaços ou por meio dos
laboratórios, gerando uma dramaturgia aberta, complexa e inacabada conforme destaca o
argumento seguinte do coordenador Luíz Pazzini:
O fragmento tem por função estimular à abertura da subjetividade do
leitor/espectador. Ele torna-se produtor de conteúdos, e corresponde ao que Müller
chama de espaços livres para a fantasia, estando imbuído em primeiro lugar de uma
tarefa política, pois age contra clichês pré-fabricados e os padrões produzidos pela
mídia (SOUZA, 2003, p.149)
Nesse sentido, a intertextualidade possibilita a construção de uma dramaturgia
heterogênea, multifacetada, que é modificada à medida em que surgem novas demandas na
encenação, sejam elas estéticas políticas ou éticas. Através das experiências individuais e
coletivas, constrói-se um processo dramatúrgico dialógico sobre o fenômeno estético
estudado (RÖHL, 1997 apud PEREIRA, 2013).
A exemplo do espetáculo Negro Cosme em movimento11
(2012), sua construção é
costurada tanto na dramaturgia quanto a documentos históricos e cenas sugeridas pelos atores
à medida que assumem seu lugar na encenação. Em outras palavras, Negro Cosme em
movimento tem sua encenação fundada na Revolta da Balaiada no Maranhão, se dispõe a
dramaturgia Caras Pretas (2015) de Igor Nascimento, documentos históricos como o decreto
de prisão de Cosme Bento das Chagas, enforcado ao final da revolta popular, e também
textos interligados a ideia como O Anjo Infeliz de Heiner Müller e o Trecho 9 do ensaio
Sobre o conceito de história de Walter Benjamin12
. É através da memória que o grupo atua
em proposição urgindo contra os apagamentos de identidades e coletando fragmentos a
encenação.
A escolha por esses fragmentos, antes feita somente pelo encenador, agora depende
igualmente tanto dos materiais dramatúrgicos já existentes como da inserção dos graduandos/
durante o processo de criação acontece a apresentação de diversos fragmentos e estes provocam um movimento
interno na encenação, nada é definitivo, e permite-se experimentar principalmente a recepção do público, sem
preocupações de uma encenação acabada, enfatizando a ideia de in process, que segundo Cohen (2006)
relaciona-se com a superação das estruturas, hibridização de conteúdos em que o processo, o risco, a
interatividade e possibilidade de incorporação de acontecimentos de percurso são ontologias da linguagem, este
feito potencializa novas descobertas e novos processos metodológicos uma vez que os atores também são
professores em formação (PEREIRA, 2013) 11
O espetáculo já contou com elencos diversos a medida de entrada e saída de discentes, fazendo parte do
circuito profissional da cidade com montagens e manutenção por editais do Ministério da Educação e da
Cultura, além de ser também mantido pelo departamento de extensão da UFMA, concedendo bolsas a alguns
atores graduandos que realizam pesquisa no grupo. 12
O Trecho 9 do ensaio Sobre o Conceito de História está contido em Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura – obras escolhidas, volume I. A escolha do uso deste fragmento para
compor a encenação se dá pelo diálogo com a ideia de apagamentos e escrita histórica, suscitada pela Revolta da
Balaiada no Maranhão, nesta operação podemos visualizar a estética do fragmento, observamos um texto de um
filósofo ir à cena, assim como o texto de documento histórico, vemos uma encenação de dramaturgia aberta.
29
atores na pesquisa. Dessa forma se uma cena possui dança e presença de instrumentos,
capacidades trazidas pelos atores, na saída dos mesmos não há procura por novos atores com
essas habilidades para substituição. Os novos atuadores trazem proposições a partir de suas
potencialidades criativas.
Tal procedimento leva a observar um espetáculo que está sempre em processo e se
atualizando, “trata-se da experimentação do experimentável e da busca por maneiras
processuais de aprimorar a criação” (PEREIRA, 2013. P. 96-97). É nessa escrita e reescrita
por seus sujeitos que está toda a ideia de movimento.
O termo movimento remete a duas importantes questões – ação e criação – com
ramificações no caráter estético e ético da obra. A ação individual, pois sem um
mínimo de autonomia e perspicácia não se consegue colocar em prática os conceitos
trabalhados no grupo, como, por exemplo, o ator-compositor e o artista-decente
(docente?), que são caros para a proposta metodológica desenvolvida. (FRANÇA,
2010 apud PEREIRA 2013, p 99).
Dessa maneira, o movimento como metodologia do grupo aponta para um processo
que se dá em interação. Este trabalho colaborativo democratiza o pensamento e a feitura da
encenação, atualiza e nutre os sujeitos e o coletivo mutuamente, numa movimentação interna
que “permite ao pesquisador, estudante em formação maior apropriação do fazer teatral,
considerando teoria e prática” (PEREIRA, 2013. P. 100).
Em reflexão pela minha trajetória no grupo, me percebo pensando nas práticas do
Cena Aberta como alimentadoras desta pesquisa, que pistas são oferecidas pelo modo como o
Cena Aberta lida com o texto? No grupo, o texto com caráter de intertexto mostra uma
encenação que segue fragmentos compondo uma cena que abarca imagens, espaços, sujeitos,
memória coletiva e individual, além de múltiplas estéticas, são as materialidades
dramatúrgicas se justapondo sem hierarquias.
O texto é visto como aberto, transformável e o in process dar-se com o alinhamento
do trabalho aos seus atores, na busca de uma cena que nunca tem fim em si mesma, está
sempre inacabada. As materialidades agem em fluência de uma narrativa pré-estabelecida,
que em Negro Cosme em movimento é a Revolta da Balaiada.
Outro ponto diz respeito ao lugar dos atores na criação, no Grupo Cena Aberta a
experimentação estava ligada à autonomia criativa e envolvimento dos sujeitos no processo,
nesta pesquisa os corpos e narrativas dos atores devem influenciar diretamente na criação
dramatúrgica. Cecília Salles (2017), em seus estudos sobre processo de criação em grupo,
ressalta o potencial de interações do sujeito com o grupo, em que os “diálogos com a cultura,
as trocas entre sujeitos e os intercâmbios de ideias nos colocam diante do mais amplo campo
30
de interações”, tal sujeito não é tido como esfera privada e sim como agente comunicativo e
“[...] sua identidade é construída pelas relações com outros; não é só um possível membro de
uma comunidade, mas a pessoa como sujeito tem a própria forma de uma comunidade”
(SALLES, 2017. p 38). Como operar criação a partir desses sujeitos em rede de interações?
Embora tudo apontado até aqui leve a crer que a pesquisa está em fluência com o
grupo, o cenário em que se encontra o Cena Aberta aponta para caminhos turvos e bastante
imprecisos. Em meio a contínuas e crescentes crises de produção, dificuldades de
manutenção dos espetáculos e do próprio projeto de extensão por corte de gastos da
universidade, somados à falta de materiais e saída de integrantes, o grupo encontra-se em
risco iminente.
A crise no Cena Aberta aflorou-se ainda mais com a aposentadoria e afastamento
temporário do coordenador e principal encenador do grupo. Nesses dois últimos anos
conturbados houve muitas tentativas de remontagens, formação de novo elenco, volta do
coordenador, mudança de formato de trabalho... Tais esforços até resultaram em participação
em eventos significativos, como a homenagem ao Pazzini na XII Semana do Teatro no
Maranhão13
, porém, nenhumas dessas ações foram suficientes para conter a crise que nos
assolava.
Eu me encontrava diante de um grupo quase inexistente, cuja sobrevivência só
existia em pesquisa acadêmica, em elaboração de artigos, trabalhos monográficos ou estudos
investigativos de espetáculos e metodologias do grupo. Nas últimas montagens em que estive
presente, os atores não mais respondiam com proposições para a cena, dependiam da criação
do encenador, sintoma também de um grupo com risco de sobrevivência. Rafael Martins
(2010), em sua experiência como ator, observa tal comportamento em grupo:
Ficamos à espera de um líder ou mentor criativo (o diretor ou seja lá quem), que
trará as ideias para a discussão, seus interesses para a próxima montagem etc. [...] é
como se houvesse uma hierarquia sigilosa da criatividade [...] Nessa hierarquia, o
ator muitas vezes se contenta em executar as ideias artísticas que lhe chegam. Criar,
muitas vezes se reduz ao ato mecânico de montar o próximo espetáculo
(MARTINS, 2010. p. 15).
Ao observar a função e importância do autor no grupo teatral e lida com atores
inertes e cansados, Martins (2010) me fez refletir sobre o Cena Aberta, para ele nesses
contextos, o “ator insatisfeito reduz todas as suas expectativas pelo grupo e o abandona, ou
simplesmente vai levando, trabalhando de forma apática até o dia de um conflito maior”
(2010. p.16).
13
Nesta edição de festival promovida pelo Teatro Arthur Azevedo, o coordenador é homenageado através da
mostra Luíz Pazzini que contou com cinco espetáculos do grupo na programação.
31
Ao pensar na inserção desta pesquisa de mestrado no Grupo Cena Aberta, na
tentativa de observar um trabalho de autoria no grupo, relembro a afirmação de Martins de
que cabe ao autor “como um coletor de material humano, a função de questionar, sacudir o
pensamento do coletivo, colocar as convicções artísticas de todos à prova”, inclusive as suas.
Seria essa uma experiência de autoria que sacudiria e levaria este grupo a uma mudança?
Na consciência dessa crise, me pergunto da possibilidade deste projeto no Cena
Aberta, temo esse lugar de liderança na criação ao qual os atores estavam recentemente
inseridos. Me questiono se será possível a participação desses atores numa pesquisa que
depende de sua tomada de atitude, em que devem assumir seu papel ativo na criação, na
relação horizontal e colaborativa em rede, sem hierarquias.
Os caminhos a partir da decisão de assumir esta pesquisa com o Grupo Cena Aberta
seriam totalmente imprecisos, mas toda experiência criativa é de certa forma imprecisa,
incerta, sabemos que é uma caminhada em direção ao desconhecido. Porém, neste momento,
criar com o Cena Aberta é assumir perigos e, ao mesmo tempo, mostrar resiliência à crise.
2.3 Terceiro Movimento: Escrita em Performação.
O que fazer para estimular e promover as subjetividades dos atores na sala de
criação? Essa era minha principal inquietação, quais caminhos práticos traçar. Mesmo com o
interesse de que as proposições não partissem somente de mim, eu tinha necessidade de
estabelecer parâmetros e algumas estruturas mínimas para a experimentação.
Até o momento, havia estabelecido pensamentos a respeito da relação de
intertextualidade, fragmento e dramaturgia aberta, em confluência com a escolha do Grupo
Cena Aberta para o trabalho. Somada a prática do dramaturgismo permeando tanto a
experimentação e a autoria em rede como possibilidade de trabalho. Porém, quando pensava
na concretude da sala de ensaio, em possíveis proposições e exercícios, havia uma neblina à
minha frente.
O que aconteceria em sala de trabalho? A experiência que abordo a seguir
proporcionou um pouco de nitidez ao cenário turvo que se encontrava o processo. O escrito a
seguir surge na articulação entre uma experiência de escrita dramatúrgica, o curso de
Procedimentos de Escrita Situada14
e esta pesquisa.
14
Ministrada pela Dra. Luiza Leite (ECO/UFRJ) em 2018.2, o curso Procedimentos de Escrita Situada:
deslocamentos entre o espaço e a página promoveu investigações da intersecção entre escrita, cidade,
publicações de artista, por meio de estratégias heterogêneas de criação textual.
32
Optei por deixá-lo como fragmento solto neste terceiro movimento, para que
percebamos a atualização do pensamento do processo. Neste escrito, ainda não havia
articulação com a pesquisa propriamente dita, ou pelo menos isso ainda não era evidente, o
objetivo era simplesmente estabelecer uma relação entre a dramaturgia e o comparecimento
dos procedimentos de escrita situada em seu processo.
*
A escrita do texto A gente não se conhece (2018), com o dramaturgo Pedro
Emmanuel15
, foi construída visando uma pequena Performação para uma disciplina16
, a partir
de materialidades pessoais e escrita situada, ela aconteceu em cerca de três semanas, e
deveria ter dez minutos de duração em sua leitura dramática. O próprio texto expõe suas
etapas de criação, com elementos de metalinguagem que sempre atualiza o espectador de
como aquele procedimento está se dando, e põe em prova o caráter ficcional ou factual da
trama.
pedro sentamos, eu com meu café, necylia com seu bandejão
necylia não sabíamos por onde começar
pedro necylia sugeriu que fizéssemos perguntas um para o outro
necylia É uma coisa singela e ao mesmo tempo um princípio base, se você quer
conhecer alguém, então pergunte
pedro cada um teria direito a seis perguntas
necylia estamos às vésperas da eleição
pedro dia 25 de outubro trocamos os papéis com as perguntas os primeiros e-mails
são trocados no dia 29/10/2018
necylia (um dia após as eleições)
pedro escrevo, ainda atormentado, para necylia via whatsapp aviso que já respondi
às perguntas dela.17
Em linhas gerais, o processo se deu em quatro etapas, na primeira fizemos exercícios
de fazer perguntas um para o outro, motivados por nos conhecermos por uma perspectiva
diferente da que tínhamos como colegas de turma. Na segunda mostramos objetos
significativos um para o outro como fotografias (figura 2 e 3), mas também algo que
transmitisse nossas especificidades, um mapa do Maranhão, uma faixa de luta, uma carta
antiga, entre outros. Já na terceira, nos propomos a escrever textos descritivos que contassem
aquela trajetória até ali, sem formatos estabelecidos nem compromisso com os fatos. Na
quarta e última parte, juntamos os textos com as materialidades, fizemos escolhas e
produzimos a cena escrita.
15
Dramaturgo carioca, pesquisador no Programa de Pós Graduação Artes da Cena ECO/UFRJ. 16
A performação, nome da atividade, deu-se em novembro de 2018 na ocasião do curso de Performance
ministrado pela prof. Eleonora Fabião (ECO/UFRJ) no Centro Cultural Hélio Oiticica. 17
Trecho de A gente não se conhece, acervo pessoal. 2018.
33
Operamos a partir de nossas memórias, aquelas ativadas pela percepção que “como
atividade criadora da mente humana, já é uma ação transformadora” afirma Cecília Salles
(2017. p.42), esta vai processando o mundo em nome da criação. Nessa acepção, se as
sensações funcionam como ampliadoras dessa percepção que é ação da memória, os
exercícios situados de escrita neste processo como as perguntas um para o outro, a colagem
de materialidades, e os textos produzidos individualmente antes da montagem da cena
funcionam igualmente como promotores dessa percepção.
Em seus estudos, Cecília Sales (2017. p.42) recorre a autores como Jean-Jaques e
Yves Tadiés que atestam a interação das percepções com a experiência passada, ela diz: “não
há percepção que não seja impregnada de lembranças”. Assim a memória é ação,
essencialmente plástica, diz Salles, em que não se fixam nem acumulam lembranças, mas
onde as redes de associações podem sofrer modificações, e até resultar em atividade criadora.
Memória, como espaço de liberdade, é seletiva. São feitas escolhas livres, porém
não arbitrárias. Não há lembrança sem imaginação e a lembrança, a serviço da
criação, pode ser explicada como uma espécie de memória especializada. (SALLES,
2017, p. 43).
Ainda pensando a partir de Cecília Salles (2017), é interessante observar como as
materialidades dessa memória atuam sobre a criação. Nesse processo, os sujeitos são a
principal matéria criativa, quando um autor e uma autora se propõem um jogo de
aproximações de suas narrativas pessoais, narrativa estas repletas de passado e significados
sugerindo uma criação em rede, principalmente referente à lida com as materialidades
geradas.
Figura 3 Pedro quando criança Figura 4 Necylia quando criança
FONTE: Acervo pessoal, 2018 FONTE: acervo pessoal 2018.
34
Para Salles (2017), toda relação do artista com a matéria-prima gera seleções e
tomada de decisões, e isso ocorre quando os indivíduos envolvidos se apropriam das
materialidades geradas e da interação em rede. A opção neste caso foi operar pela ficção ou
pelo equilíbrio dela com o factual.
necylia recebemos algumas coordenadas e não deveríamos comentar com ninguém
pedro desci e acendi mais um cigarro necylia me acompanhou precisamos de mais
um encontro
necylia eu sei ele apagou o cigarro e caminhou em direção ao metrô sem sequer me
dar adeus
pedro quando chego, minha porta estava arrombada tudo havia sido revirado e eu
não tive coragem de entrar liguei para necylia
necylia você esqueceu suas coisas comigo
pedro pedi abrigo18
.
Os procedimentos de escrita situada alavancaram toda a relação com as memórias e
com o uso dela na escrita, não só no início com as seis perguntas um pro outro, respondidas
por e-mail com prazo definido, como no final em que dispostos todos aqueles materiais, foi
necessário fazer escolhas e atender urgências. Em exercícios de escrita situada, a operação da
urgência é fundamental, ela envolve a despretensão, o exercitar, o impulso de escrever o que
vem a mente, como um caminho curto ao imaginário, à percepção, as lembranças...
Nesse processo de montagem, mesclar, intercalar e montar pedaços e partes de tudo
que geramos a partir de nós foi um procedimento que veio justamente dessa escrita que está
em situação, aqui e agora. O texto resulta da montagem de nós e de um mundo ficcional
proposto pelas nossas sensações.
Didi-Huberman (2016) aponta a montagem como exposição de anacronismos,
naquilo mesmo que ela procede como uma explosão da cronologia, ela talha as coisas
habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas, criando um abalo e um
movimento. Justamente nesse sentido, aqui sublinhado, que se tem uma escrita em fluência e
completamente urdida e imbricada na experiência. Ainda citando Didi-Huberman, ele nos
diz:
Psicologicamente falando, isso significa que não há desejo sem trabalho da
memória, não há futuro sem reconfiguração do passado. Politicamente falando, isso
significa que não há força revolucionária sem remontagens dos lugares
genealógicos, sem rupturas e reurdidura dos laços de filiação, sem reexposições de
toda a história anterior (DIDI-HUBERMAN, 2016. p. 4).
Se meu olhar como autora inclina-se a pesquisa da possibilidade de uma escrita que
privilegie os sujeitos e se constitua sob medida para estes, pensando corpo e
18 Trecho de A gente não se conhece, acervo pessoal. 2018.
35
performatividade, havia muito para pensar sobre essa escrita com o Pedro. A memória até
então, é um caminho a ser perseguido e a percepção desta pode amplificar-se pela escrita e
pela intimidade que esta pode transpor, somos sujeitos que escrevem e registram nos
questionando diante do mundo e propondo novas respostas.
Escrito em dezembro de 2018
O que essa experiência de escrita poderia reverberar na construção da experimentação
dramatúrgica que eu estava prestes a propor? Quero criar texto com atores, a partir dos atores,
não só suas narrativas, mas seus corpos, esses corpos que possuem memória e subjetividade.
Como lidar com as subjetividades inerentes a processos que envolvam memórias? Nessa
lógica, o processo de A gente não se conhece diz muito sobre meu pensar criação com
sujeitos.
Estava claro que a memória deveria ter lugar de importância, ela é ação de
criação e já vinha comparecendo na reflexão sobre as práticas do Cena Aberta e também em
recapitulação à Aventura do Lobo. Quando Cecília Salles (2017) diz que a percepção é
atividade criadora da mente humana ela está associando percepção e memória quase sem
distinção, pois se parte da premissa proposta por Jean-Jacques e Yves Tadié (1999) de que as
percepções interagem com a experiência passada, com lembranças.
Essa memória, sendo criação, só é possível por não ser fixa, nem mero lugar de
acumular de lembranças. Redes de associações operam modificações o tempo todo
transformando as percepções e atuando sobre as lembranças que instauram possibilidades de
criação. Dessa forma, as sensações funcionam como amplificadores que permitem que
“certas percepções fiquem na memória”.
Quando operamos criação com a memória na escrita de A gente não se conhece,
essas sensações que amplificam percepções se deram nos exercícios de escrita, com as
perguntas um para o outro e através dos objetos pessoais suscitando histórias de infância e
narrativas do passado. Tal processo me levou a pensar em Exercícios de escrita como
amplificadores, disparadores de sensações através da memória.
36
Impregnada de Memória
Amplificam a percepção
Nesse processo dramatúrgico, em que os exercícios de escrita geram
materialidades que iriam para o texto, percebi escrevendo com Pedro, a maneira como o ato
da escrita opera sobre as memórias quando há direcionamento para isto, e como
contar/escrever essas memórias suscita uma operação de criatividade, uma reescritura, revela
subjetividade.
Mara Lúcia Leal (2012), em seu trabalho de tese, reflete sobre a frequência com
que vem a tona memórias relacionadas às construções de identidades, quando o material
autobiográfico está em jogo na relação experiência-memória-cena. Ao citar Larossa (2008),
quando afirma que “a experiência não é outra coisa se não a nossa relação com o mundo, com
os outros e com nós mesmos” a autora nos tráz esse sentido da experiência também como
expressão artística como forma de revisão, ressignificação da memória.
Em acordo com as ideias de autores citados por Cecília Salles, Leal (2012. p.67)
nos apresenta a Victor Turner (1982), para quem uma abertura ao “fluxo contínuo entre
experiências e memória” é ocorrido na percepção, em que há o acionamento de imagens de
lembranças que, por sua vez, provocam associações e emoções.
A partir daí, a autora explica que desse processo “o passado articula-se ao
presente, tornando possível a descoberta e construção de significados”. Turner (1982) aponta
para a completude da experiência apenas quando atingida uma forma de expressão, o que não
ATIVIDADE
CRIADORA PERCEPÇÃO
Ativadores de Sensações:
- Exercícios de Escrita
- Exercícios de gatilho da
memória (objetos, corpo,
imagens).
SENSAÇÕES
37
significa “fechamento ou acabamento, mas estar aberto aos ciclos” (TURNER apud. LEAL,
2010. P. 67).
Pensar memória e produção artística evoca muitas relações de seu
comparecimento na cena contemporânea. Introduzo Janaina Leite (2017) que refletindo suas
experiências com autoescrituras performativas estabelece as múltiplas formas de Teatro
Documentário e as implicações e debates do mesmo na criação. A pesquisadora percebe e
teoriza o potencial criativo da memória, afirmando: “Narramos nossas vidas e ideias de nós
como atos de fala que tem por função performar uma imagem de nós mesmos e daquilo que
chamamos de nosso passado” (LEITE, 2017, p. 9) 19
.
Se eu estava convencida de que a memória seria uma das camadas no processo de
pesquisa para acessar a narrativa dos atores envolvidos, agora estava apostando que esta
camada deveria ser agenciada pela escrita, pelo exercício contínuo dela. Nomeio exercícios
de escrita, pequenas proposições para escrever, gatilhos que envolvem objetivo simples, em
situação e que provocam estalos de criatividade, relação com o aqui e agora entre a caneta e o
caderno.
Tenho a lembrança do primeiro dia de aula do curso de Procedimentos de escrita.
Em parte de um exercício, nos foi proposto que descrevêssemos em poucas linhas nossa sala
de aula, sem dúvida essas descrições tiveram pontos em comum, mas resultaram maneiras de
descrever diferentes entre si, algumas até nos fazendo pensar que se tratava de outras salas. E
isso diz muito sobre cada uma dessas pessoas, a escrita opera escolhas e escolher é
posicionar-se, mostrar-se. Há um espaço entre a caneta e a folha onde habita uma
subjetividade que é denunciada na intimidade com uma página em branco.
Até então, a ideia de Escrita Situada, implícita em A gente não se conhece
comparece, se estabelecia como ponto de partida para pensar narrativas de si. Se esse
processo pretende perseguir narrativas pessoais, ele precisaria seguir a escrita também na sala
de ensaio, esta se apresentaria como um caminho prático a seguir.
Conhecer e reconhecer atores e atrizes não é tarefa fácil, como se conhece
alguém? Se nos moldamos, nos apresentamos, representamos, fazemos invenções de nós
mesmos e somos afetados pelo meio que vivemos. A essa altura, no trânsito entre ilha e
continente, na tentativa de ter comunicação escrita e performativa com os atores, mesmo
19
Os estudos de Leite (2017) terão muitos comparecimentos na trajetória desta pesquisa, não só sobre a
memória, mencionado brevemente, como os embates e reflexão em torno da autobiografia, autoficção, produção
de diários etc. por ora atenho-me somente a citá-la brevemente no intuito de conectar melhor suas ideias com as
práticas que se darão em sala de trabalho.
38
estando longe, comecei a me corresponder por cartas tanto com os artistas do grupo quanto
comigo mesma, a fim de deixar rastros de pensamento sobre o processo.
Enviei uma carta para o Tiago Andrade, único ator que até então tinha certeza de
sua participação no processo. Toda carta é urgente, assim também toda criação também tem
sua urgência.
- Quem é você? - Era minha pergunta urgente, para pensar os atores e as narrativas que
construiriam de si.
Figura 5 Envelope de Carta de Tiago digitalizada
39
Figura 6 Carta de Tiago página 1, Acervo Pessoal, 2018
.
40
Figura 7 Carta de Tiago página 2, Acervo Pessoal, 2018.
41
2.4 Quarto Movimento: Os caminhos a partir do Conto.
Movimento significa ação ou efeito de deslocar ou deslocar-se, fazer-se uma
pergunta é movimentar-se, movimento é pôr-se em trânsito, deslocamento é migração. O
início deste movimento é um convite a observar um manuscrito, chegado às minhas mãos em
2014, escrito por Tiago Andrade, mesmo autor da carta já mostrada. O conto A cor de Deus
fora reescrito por mim somente em 2015, na ocasião da inscrição no 36º concurso literário
“Cidade de São Luís”, promovido pela prefeitura, o qual venceu o segundo lugar como
Melhor Literatura Infanto-Juvenil.
Se como vimos, a revolta da balaiada funcionava como narrativa pré-estabelecida na
montagem em fragmento de Negro Cosme em movimento, estabeleci que o mesmo
acontecesse nos laboratórios de criação com o grupo Cena Aberta. Foi quando escolhi o
conto A cor de Deus20
como ponto de partida a ser seguido. Essa escolha do conto compactua
com as ideias do grupo sobre memória e identidade cultural, além de estar no universo
literário infanto juvenil e ser uma obra criada por integrantes do grupo. O conto narra a
história de um menino curioso por cores que sai de sua cidade em busca da cor de deus. A
cada cidade que visita ele é surpreendido por um líder que dá uma cor diferente para deus.
No manuscrito do conto a seguir, não interessa ver sua reescritura para o concurso,
análise de mudanças ou observação das formas e sim absorver sua narrativa para o processo,
por isso a escolha dessa primeira versão. Afinal, não se trata de uma adaptação do conto para
dramaturgia, mas do que o conto impulsiona, não necessariamente com obrigação de seguir
seu roteiro. Nessa experimentação em dramaturgia, o conto é um dos fios do tecido, não a
costura a ser seguida, não o bordado completo, mas um fio já conhecido, material para o que
estamos prestes a tecer.
Há uma intimidade denunciada na letra, no rabisco, penso que ao exibir esse conto
em manuscrito, mais do que levantar sua narrativa macro, quero ambientar a percepção do ato
de criação. Toda criação tem sua urgência, ela se instaura, você se questiona e começar a
seguir um caminho na maioria das vezes desconhecido. Quero instaurar um convite à
sensibilidade, ao caminho da ideia.
20
O conto foi escrito por Tiago Andrade, ator e músico também integrante do Grupo Cena Aberta e tem minha
coautoria, vencemos segundo lugar na categoria melhor literatura infanto-juvenil no 36º Concurso Literário
Cidade de São Luís promovido pela prefeitura da capital ludovicense no ano de 2015.
42
Figura 8 Foto reprodução do caderno de pesquisa, pontos sobre o manuscrito.
FONTE: Acervo Pessoal, 2019.
43
44
45
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47
48
49
Assim como o menino do conto, eu estava em jornada na busca de cores que eu
ainda não sabia bem do quê, eu havia estabelecido uma ponte entre o Rio de Janeiro, local de
vínculo institucional da pesquisa, e São Luís, minha cidade natal e onde se concentram os
artistas do Grupo Cena Aberta. Esse vínculo real, entre cidades e migrações, me fez
visualizar através dessa metáfora com o conto, a pesquisa como uma rota de viajante, que
precisava de um mapa, de um possível caminho a seguir.
O quadro a seguir (Figura 6) foi elaborado em resposta às reflexões da disciplina
Seminário de Pesquisa21
. Nele vemos mapas das cidades São Luís e Rio de Janeiro, o título
da pesquisa, as questões teóricas que almejava diálogo e os planos. A imagem deste quadro
fixado em meu quarto é um convite a visualizar a pesquisa como eu a via nesse momento, em
seus caminhos e possibilidades.
Figura 15 Quadro de itinerário da pesquisa
FONTE: Acervo pessoal, 2018.
O que a narrativa me sugere para o processo? Semanas antes da temporada de
encontros com o Cena Aberta, ainda estava em busca de caminhos práticos para a sala de
21
Seminário de Pesquisa é uma disciplina obrigatória do Programa de Pós Graduação Artes da Cena da UFRJ,
na ocasião foi ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Marques e pela Prof.ª Dra. Maria Teresa Bastos, no semestre
letivo 2018.2.
50
ensaio, voltei à narrativa de A Cor de Deus inúmeras vezes, a fim de visualizar
procedimentos e proposições. Iniciei elencando personagens, em seguida, listei os
movimentos da narrativa, seus estágios importantes.
Figura 16 Foto de quadro fixado à parede
FONTE: Acervo Pessoal, 2019.
Não é a primeira vez que o Cena Aberta percebe a narrativa desse conto como
possibilidade de contar muitas outras histórias, de falar de muitas coisas22
. Em nossos
encontros de preparação para Cofo de Estórias (2017), em que A Cor de Deus era uma das
narrativas, um dos exercícios que fazíamos era rememorar os estágios da narrativa, contar o
que lembrávamos com nossas palavras, e assim nos apropriando do conto podíamos narrá-lo
com mais naturalidade. Foi através desse exercício que tracei as seguintes percepções sobre o
conto:
a. Há um universo fabular na narrativa que inclui animais e jornada de
aventura. O menino parte de sua cidade e conhece outras cidades – migração;
22
Estivemos sob direção de Tiago Andrade com Cofo de Estórias apresentado na XI Semana do Teatro no
Maranhão (Mostra Luiz Pazzini, que homenageou o coordenador do grupo) e no Festival de Teatro de Rua de
Aracati-CE em 2017, a cor de deus era uma das narrativas que foi apresentada no formato contação de história.
51
b. Africanalinda e Indiabela são possíveis metáforas da cultura que
compõe São Luís, cultura africana e indígena. Percebemos essa cultura nos ritmos,
instrumentos, culinária, costumes, manifestações culturais e artísticas (Dança. Música,
rituais, tradições), religiões...
c. Relação com as cartas – o menino manda cartas para as cidades (eu
mandando cartas para os atores);
d. Chefes da cidade – Figuras de poder;
Uma constante que saltou dessas percepções foi a palavra Cidade, o conto me
sugeria que se eu quisesse suscitar narrativas dos atores, seus territórios deveriam fazer parte
desta experiência, o meio em que vivemos diz muito sobre nós, evoca nossa identidade. Tive
essa percepção também ao me perceber em migração regional, o quanto cada cidade tem sua
dinâmica e cultura que modificam os corpos.
O filósofo Michel de Certeau (2014) em Caminhadas pela cidade reflete sobre a
cidade, os conceitos implícitos e práticas impostas ou assumidas por quem a habita, para ele
“o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial” (p.165) caminhar é uma
maneira de se apropriar dos lugares ao mesmo tempo em que “caminhar é ter falta de lugar”
(p.170).
Nas especificidades políticas que constituem as cidades, quem a habita é parte
errante nas práticas de espaço, na atualização de lugares, na construção simbólica do tecido
cidade, esta “serve de baliza ou macro totalizador e quase mítico para as estratégias
socioeconômicas e políticas” (CERTEAU, 2014. P 161). Pensar São Luís do Maranhão em
seus epítetos Atenas Brasileira, ilha magnética, Jamaica Brasileira, ilha do amor entre outros,
carrega consigo traços de nossas identidades. O quê de nós está nas cidades? O quê da cidade
se inscreve em nós?
Seguindo o fluxo de preparação de proposições para sala de trabalho, tracei eixos
para possíveis exercícios de criação sobre a cidade:
● Fórum sobre a nossa cidade, imaginário sobre São Luís – listar a São Luís
conhecida e a São Luís conhecida por nós, moradores.
● Escolher um problema da nossa cidade e propor resoluções
● Se São Luís fosse um personagem como seria?
● Escolher um lugar da cidade que você tenha uma memória de infância,
descrever/narrar a memória.
52
Escrita e Cidade são os caminhos estabelecidos, são possibilidades de criação e de
jogo, cada um a seu modo pode ressaltar a subjetividade contida dos atores e das atrizes,
porém faltava o Corpo, não que este não estivesse presente na escrita ou no pensamento em
relação à cidade, mas sentia necessidade de privilegiar o corpo, os gestos que inscrevem
imagem e corporeidade.
Optei por um caminho já conhecido em meus processos, não só em Aventura do
Lobo, mas também nas minhas experiências com escrita de roteiros para o circo. Tenho a
premissa de que se quero conhecer alguém, preciso ver o seu ridículo. E a Comicidade, nesse
sentido, é ferramenta de muitas possibilidades. Em Aventura do Lobo, jogos de palhaçaria
suscitaram tipos cômicos a partir de gestos e movimentos pessoais do cotidiano dos atores.
Esse mecanismo era importante para a criação dos personagens e também para traçar a
performatividade a partir de si. A seguir fac-símile de esquema do caderno de pesquisa
ilustrando os caminhos práticos definidos antes do encontro com o Cena Aberta.
À palavra comicidade delega-se a significação da qualidade ou caráter daquilo que é
cômico, engraçado, por sua vez quando falamos em cena cômica segundo Lira (2013, p. 15)
“queremos dizer que naquele espaço e naquele tempo bem definido acontecerá algo risível,
para a plateia e não para os personagens”.
Sob a luz da teoria do cômico do francês Henri Bergson (1859 – 1941), em O riso:
ensaio sobre a significação do cômico, Fernando Lira (2013) identifica elementos da
categorização da comicidade, divididas em comicidade verbal, comicidade de gestos ou
53
movimentos e comicidade da situação, independentes entre si, porém podendo acontecer
concomitantemente.
Nesse processo as ferramentas da comicidade oferecem pistas, sobretudo sobre os
corpos dos atores. Nas três categorizações citadas, o corpo é parte fundamental para o
acontecimento, estar em exercício de comicidade revela gestos, movimentação, vícios... E
coletar essas materialidades é prioridade. Esse desvelamento do corpo, quando posto no jogo
cômico, expõe perfis individuais, em que a criação é impulsionada por características
corporais e subjetivas intrinsecamente.
A partir de jogos de cenas cômicas ou mesmo da palhaçaria, o corpo se põe em
experimentação de liberdade. Nesses exercícios em sala de criação é possível a descoberta de
jeitos de andar, vícios morais, gestos com o corpo ao falar, expressões do rosto e muitas
outras características potentes para esta criação dramatúrgica, além da possibilidade de
trabalho com figuras de poder, como os chefes da cidade observados na narrativa do conto.
Com esses caminhos práticos estabelecidos, como dramaturgista só cabia o ato de
propor, não a imposição nem o direcionamento dos caminhos que almejo traçar, mas dar
indícios, ter repertório e permitir-me jogar com a alteridade na criação, principalmente
quando se pretende que esta criação se dê pelos corpos e pela experiência que só acontece em
sala de trabalho. É preciso colocar-se em movimento!
54
3. ENTRE O CHÃO E A PÁGINA
“Entre” é tudo aquilo que indica o intermediário, espaço que habita uma transição.
Supomos que no caminho comum de uma obra artística dramática tenhamos ideia, escrita,
reescrita, edição e criação do texto comunicável, em que, da ideia até o texto, existam
caminhos diversos a serem tomados, escolhas para serem feitas, formatos a serem escolhidos.
Na experiência que se segue, me debruço sobre a criação de procedimentos em escrita. Não
há uma ideia, nem um texto final e o miolo que habita essas duas forças é aqui a parte mais
importante.
O conto de literatura infanto juvenil A cor de Deus serviu como disparador para
muitos dos procedimentos de criação aqui apresentados, principalmente com os atores do
Grupo Cena Aberta. Porém, esta experimentação deu-se em duas abordagens distintas e
complementares, a primeira, como sabemos, ocorreu com os atores do Grupo Cena Aberta
entre janeiro e fevereiro de 2019 em São Luís do Maranhão e a segunda com alunos de
Direção Teatral da UFRJ na disciplina de Dramaturgia VII23
, entre setembro e novembro de
2019, divididos neste escrito entre ilha e continente.
O primeiro grupo de atores experimentou procedimentos de criação de si, operando
subjetividade e gerando materialidades. Já o segundo grupo, pôs em prática procedimentos
para diretores/dramaturgos acessando os materiais produzidos pelo primeiro grupo. A partir
deles, experimentou-se criações dramatúrgicas possíveis. Como foi dito, os exercícios se
concentram nos eixos Escrita, Comicidade e Cidade, e dessa forma será organizado aqui para
melhor entendimento do processo, embora muitos exercícios não sejam somente da ordem de
um dos eixos, e sim mais de um, ou mesmo todos simultaneamente.
As experimentações expostas que se seguem são fruto de um olhar sobre a memória
do processo, certamente incapturável, embora aqui estejam escritos, e materiais audiovisuais
que dizem sobre a experiência, sabemos que nada dá conta da sala de criação. Neste processo,
rumo à experimentação de procedimentos, estou no jogo entre ora propor e conduzir, ora me
deixar ser conduzida.
Estas experimentações surgem sobretudo em exercício de escuta, me exigindo atenção
aos grupos e contextos em que estão inseridos, os percalços, limitações, certezas e incertezas.
Proponho os espaços de criação como liberdade de si, sejam eles salas de ensaio ou de aula.
Esta proposição está contida nos exercícios, na voz dos sujeitos, na experimentação, na escuta
do funcionamento do grupo e na potência das operações em coletivo.
23
O Estágio docência foi supervisionado pela Prof.ª Dra. Jacyan Castilho.
55
3.1 Na ilha
Os encontros com o grupo Cena Aberta envolveram sete atores, uma dramaturga
convidada e três convidados em encontros esporádicos. A largada destes encontros com o
grupo começa com a distribuição de cadernos/diários para cada ator ou atriz, cadernos iguais
de 32 folhas com linhas, pequeno o bastante para ser levado para todo canto. Estes cadernos
foram usados logo no primeiro dia para estabelecer o território dos encontros na escrita.
Ao longo das minhas experiências com oficinas de escrita, percebi ser o caderno uma
prática de treinamento para a criação. Como suporte de treino para a escrita, os cadernos
estão no campo do erro, do experimentável, onde absolutamente qualquer coisa é passível de
ser escrita. Se compararmos, por exemplo, à atividade de alongar o corpo, sabemos que sua
continuidade e frequência gera flexibilidade, resistência, avanços e conhecimento dos limites,
e do corpo em si, o mesmo está para o uso dos cadernos como prática de experimentação em
escrita. Entende-se que quanto mais se escreve, mais a familiaridade com a escrita possibilita
o entendimento dos seus mecanismos e facilita a comunicação de ideias.
Instaurar uma proximidade com o caderno/diário era extremamente essencial, ele
precisava ser apreendido como organismo vivo do processo, mas também espaço de liberdade
para que escrevessem outras coisas fora dos encontros, aceitas como objetos pessoais. Para
isso, não houveram regras a respeito do seu uso. Os modos de registrar o treino de escrita em
suas páginas foram livres de formato, categoria, divisão e outras normas.
Para iniciar, sugeri que na primeira página houvesse uma identificação e na última
dados de segurança. Caso algum caderno fosse perdido, haveria mais chances de voltar às
mãos de seu escritor. Como ritual, essas sugestões foram o primeiro passo para atribuir
sentido e criar vínculos com este objeto-caderno, que os acompanharia durante o processo.
56
Figura 18. Capa e contracapa 1 Acervo pessoal, 2019.
Figura 19. Capa e Contracapa 2, Acervo pessoal, 2019.
57
Sabemos que o diário é uma prática social usada em muitas áreas além da criação
literária. Janaina Leite (2017) compreende que o diário tem “caráter altamente performativo”
uma vez que, em suas características seu uso é descontínuo, lacunar, alusivo, redundante,
repetitivo, é escrito sob o signo do presente, na ignorância do seu fim e “deve ser tomado
mais como uma prática do que como um produto” (2017. p. 20-21).
Nesta experiência, temos não só os cadernos dos atores como suporte que registra os
procedimentos experimentados como o diário de pesquisa que mantive nesses dois anos de
mestrado e também o caderno da dramaturga argentina Nádia Ethel, que esteve em todo
processo tanto registrando encontros como conduzindo exercícios e dialogando comigo nas
avaliações de cada encontro. Dos exercícios que se seguem separados nas três categorias já
mencionadas, tentarei equilibrar a exposição das materialidades dos diários de todos os
integrantes com as reflexões dos procedimentos e registros audiovisuais.
Exercícios de Escrita
Os primeiros exercícios que se seguem, têm objetivo de criar proximidade do grupo
de atores com a escrita e com os cadernos. Nesses encontros, houvere conversas sobre a
relação de cada um com a escrita nos seus trabalhos diários e a maioria afirmou que não tinha
hábito de escrita, a não ser em processos específicos que necessitasse. Não mantinham um
caderno/diário pessoal nem praticavam registros de ideias. Porém, todos os atores e atrizes
manifestaram intenção de aprimorar sua prática de escrita, motivo também pelo qual estavam
interessados em participar dos encontros da pesquisa.
Neste cenário, optei por iniciar com proposições simples, de maneira que o contato
com a escrita fosse gradual e crescente, assim como a proximidade com o caderno. O
exercício 1, por exemplo, funciona como gatilho de lembrança, a escrita dos nomes e
sobrenomes é um chamamento a memória, reconhecimento de si, compartilhamento de
histórias24
.
O exercício 2, seguindo este sentido introdutório, é bastante funcional para o grupo
perceber como as práticas de escritas podem ser simples. Neste exercício, são possíveis
muitas variantes em que temas e regras podem ser inseridos e ao final, quando cada um
compartilha suas palavras com o grupo, é possível instigar a percepção de sentidos e
sonoridades da palavra, bem como questionar as escolhas uns dos outros. Algumas variações
24
Este exercício retirado da aula de performance da Prof.ª Dra. Eleonora Fabião - ECO/UFRJ.
58
que experimentamos: Verbos sobre o dia; Palavras com som de A no final que dizem sobre a
ida de um lugar a outro; Palavras compostas sobre objetos no caminho.
Tabela 1. Exercício Nomes
Exercício 1 Nomes
Descrição Escrita de nossos nomes com sobrenomes
Procedimento
Em um papel avulso se escreve seu nome completo acrescentando
sobrenomes que não estão no registros, dos antepassados, dos bisavós,
tataravós, os que nos criaram e também não estão no registro oficial,
como tios, tias, familiares, vizinhos, amigos...
Tabela 2. Exercício Palavras soltas
Exercício 2 Palavras soltas
Descrição Escrita de palavras soltas sobre um tema.
Procedimento Escrever uma lista de palavras soltas sobre o percurso do dia até o
encontro
Tabela 3. Exercício Escrita com objetos
Exercício 3 Escrita com objetos
Descrição Escrita a partir de objetos deixados em lugares diferentes da sala
Procedimento
Cada objeto possui uma instrução estimuladora para a escrita: chaves – o
que abrir?; bolinha de gude - o que te lembra ?; concha do mar - o que tu
imaginas?; Fita de rádio – o que te vem à mente?; redinha de fruta –
experimente e escreva
O exercício 3 inicia a proposição de dimensões diferentes na escrita. São elas
imaginar, lembrar e criar. Embora separadas tenuamente, através dos estímulos dos objetos o
grupo experimenta essa escrita mais direcionada, nos exemplos temos a evocação de
lembranças, com os objetos bolinha de gude e fita de rádio; Imaginação com a concha do
mar, sendo esse sentido de imaginação o de visualização de imagens; e por último a criação,
59
com o pote de chaves e uma redinha de fruta, neste último objeto há a proposição sensorial
com a textura da redinha.
Figura 20. Caderno 1, exercício escrita com objetos,
Acervo pessoal, 2019.
Figura 21. Caderno 2, exercício escrita com
objetos, Acervo pessoal, 2019.
60
Figura 22 e 23. Exercício 3, Acervo pessoal, 2019.
Tabela 4. Exercício Carta
Exercício 4 Carta
Descrição Escrita de uma carta para o “eu” do futuro.
Procedimento Com tempo estimado, escrever uma carta para si, no futuro ou passado.
Especificações são possíveis, exemplo: Uma carta que alerta sobre algo,
que fale de um tema, que relembre coisas, que tenha desenhos ou alguma
história que precisa ser contada. Na variação do exercício poderá ter a
opção da carta ser endereçada à alguém e ser postada via correio.
A escrita de cartas é uma operação com muitas possibilidades. Elas podem ser
endereçadas a alguém, a si mesmo no passado ou no futuro. Podem enviar uma mensagem
para um povo distante, podem conter um segredo sobre o mundo. Há na escrita de cartas uma
intimidade revelada, característica de seu formato confessionário e cuidadoso nas escolhas de
palavras. As cartas foram amplamente utilizadas nesta pesquisa, como procedimento de
escrita, modo de comunicação com os atores quando estava no Rio de Janeiro, mas também
como produção de rastros do processo, enviadas para um eu do futuro.
No exercício 5 vemos a expressão “dizer sem dizer”, esta é uma proposição para
abertura de criação de simbologias, atribuição de significados e metáforas para o cotidiano,
onde a prática de criar imagens poéticas sobre o real pode ser instaurada. O módulo de Frases
e Listas são procedimentos aplicáveis em qualquer tema, podem ser introdutórios para grupos
que não são familiarizados com escrita criativa ou ser voltados para o objetivo pretendido,
61
como nesse caso, em que o exercício 6 iniciou as modalidades de exercícios mais
direcionados à escrita de si.
Tabela 5. Exercício Frases
Exercício 5 Frases “dizer sem dizer”
Descrição Escrita de frases sobre o dia
Procedimento Com um número de frases definido, escrever sobre um acontecimento do
dia estabelecendo uma imagem poética para o ocorrido. Ao explicar o
exercício, fazer aproximações com o conceito de metáforas.
Tabela 6. Exercício Listas
Exercício 6 Listas
Descrição Listar cinco coisas urgentes sobre si
Procedimento O número de coisas na lista pode variar, assim como o tema. As
urgências sobre si, suscitam o carácter confessionário e pessoal da escrita.
Exemplos de variações possíveis: x tarefas para fazer antes de 2050, x
objetos essenciais para levar para outro planeta, x características que
dizem sobre a personalidade.
62
Figura 24. Cadernos 1 e 2 com exercício 6, Acervo pessoal, 2019.
Tabela 7. Exercício Colagens
Exercício 7 Colagens
Descrição Colagens no caderno, lembrança de acontecimentos
Procedimento Colar no caderno a lembrança de um dia. Propor a Ideia de
materialidades como registros significativos., A instrução pode variar
inserindo temas: lembranças de uma tarefa, recolher algo na rua, buscar
coisas em casa.
A modalidade dos exercícios que se propõe colagens, como o exercício 7 e uma das
etapas do exercício 8, têm o objetivo de estimular outros meios de registro e escrita, no campo
63
da imagem principalmente, permitindo visualizar outras materialidades que podem estar nos
cadernos. Neste exercício saltaram dos cadernos marcas de café, uma planilha de escritório,
brincos de pena e um pedaço de caixa de pizza.
Figura 25. Cadernos com exercício 7, Acervo pessoal, 2019.
É também no exercício 8 que se interpenetram escrita de si e descrição que possibilite
imagem, nele proponho uma possível autodescrição física e depois uma autodescrição não
física, isto é, gostos, características, histórias... Já o exercício 9, propõe coletar histórias.
Inicialmente elas foram faladas e só depois foram para o caderno, numa experimentação da
transposição da oralidade para a escrita.
64
Tabela 8. Exercício Narrativa de si
Exercício 8 Narrativas de si
Procedimento A partir das provocações dos tópicos, escrever em linhas estabelecidas.
Em “Se me ver na rua eu sou assim…” está proposto uma ideia de visão
de si a partir do outro, isto é, descrição de aspectos físicos, já em “se só
me ver não vai saber que sou assim…” envolve uma ideia de
características menos superficiais como gostos, preferências e fatos
pessoais.
65
Figura 26. Cadernos com exercício 8, Acervo pessoal, 2019.
66
Tabela 9. Exercício Coletar histórias
Exercício 9 Coleta de histórias
Procedimento Instrução para coletar histórias engraçadas sobre de onde viemos, nosso
lugar, nossas cidade e bairros de origem. as variações podem conter a
coleta de histórias de um familiar mais velho.
Figura 27. Caderno com exercício 9, Acervo pessoal, 2019.
A figura anterior conta uma história de infância de uma das atrizes, que sempre que
andava de bicicleta pelo bairro achava que a caixa d'água estava perseguindo-a.
Exercícios de comicidade
A escolha da comicidade como geradora de procedimentos, dar-se pela minha
proximidade com o circo como palhaça e malabarista, sendo frequente em minhas oficinas de
escrita anteriores a esta pesquisa, o uso de ferramentas do circo, sobretudo na dimensão
corporal. Nesta experimentação, comicidade é o modo de operar e evidenciar os corpos dos
67
sujeitos, através de jogos para cenas cômicas e recursos próprios do treinamento em
palhaçaria.
Na palhaçaria há procedimentos em que é possível observar os corpos justamente no
movimento entre a técnica e o que há de pessoal no emprego dela. O palhaço é um corpo que
brinca em sua lógica puramente física, como afirma Puccetti (2008) “ele pensa e sente com o
corpo”. Ainda segundo o autor:
Na tradição, o palhaço adquire uma estrutura, com maior ou menor grau de
codificação, para que, num segundo momento, coloque nela o seu caráter, sua
pessoa, o seu ritmo pessoal [...] A comicidade pessoal é a resultante da tensão entre
o que é pessoal, o caráter individual, o que é único e aquilo que o palhaço vai fazer
em cena, que pode ser aprendido ou inventado (PUCCETTI, 2008. p.109-110).
As palavras de Puccetti (2008) nos dá indícios do quanto tais procedimentos
denunciam uma dimensão corporal pessoal. Obviamente não se pretende que os atores
tornem-se palhaços e palhaças, mas seus exercícios revelam andar, movimentos, vícios
corporais, ou seja, características em que também está a dimensão da criação de si.
É válido ressaltar que os exercícios descritos são adaptados para esta experimentação e
de autoria desconhecida, pois são repetidos como método em muitos grupos e oficinas. Nestes
exercícios embora seja um objetivo evidenciar o corpo, também opera-se a criação em escrita
a partir disso, a escrita é também movimento e experiência corporal.
Tabela 10. Exercício Comicidade 1
Exercício 10 Rir de si e do outro
Procedimento
Entrada, encarar a todos da plateia, triangulação com o banco ao centro
da cena, subir no banco, limpar algo no teto, comunicar o medo e a
indecisão de como descer do banco, resolver como descer, ao descer
comunicar alívio com o corpo, sair.
-Escrita: O que me faz rir nessa pessoa? (cada caderno passa por todos do
grupo, ao final cada pessoa tem as impressões de todos sobre seu
exercício cômico)
68
Figura 28. Caderno com exercício 10, Acervo Pessoal 2019.
No exercício 10 vemos uma abordagem de exercício localizada na comicidade de
gesto ou movimento, em que o corpo está evidente. Esse exercício, como outros nesta
modalidade, foram precedidos de alongamento e aquecimento que instaurou o corpo para
movimentação, em que malabares foram usados, jogos de imitação, caminhas como animais e
outros já conhecidos que introduziram para experimentação final. Já o exercício 11 atua na
dimensão da comicidade verbal, em que o excesso de verbalização é estimulado como
procedimento para a chegada da fala de coisas banais e tidas no sense, como: falar com um
objeto, elogiar um canto da sala e reclamar de sua vida com a parede.
69
Tabela 11.Exercício de Comicidade 2
Exercício 11 O Corpo fala
Procedimento
Andar em velocidades conforme comando, ver o espaço como se tudo
fosse interessante, experimentar andar comandado pelo nariz, falar sem
parar com um objeto, depois sobre o objeto. Andar observando uns aos
outros e quando esbarrar cumprimentar com uma palavra inusitada,
depois cumprimentar com um movimento seguido de.... Em seguida ao se
encontrar falar sem parar ao mesmo tempo sobre os objetos do espaço.
O exercício 12 é simultaneamente de escrita e comicidade, gerado a partir dos
exercícios de cenas cômicas experimentados e das discussões sobre a cidade. Constitui-se
como uma proposição de criação de universo que inverte a lógica cotidiana. Este exercício
pode ser a gênese de criações de cenários e situações para uma cena. É possível combinar
cidades criadas, recriar essas cidades após debates sobre o primeiro escrito, além de ser um
exercício que possibilita outras maneiras de registrar uma ideia, através de desenhos, imagens
e outros formatos.
Tabela 12. Exercício criar Cidade
Exercício 12 Criando uma cidade engraçada
Procedimento Criar, descrevendo e/ou desenhando (todas as formas são bem vindas)
uma cidade da bobeira. Pensar nas engrenagens de uma cidade e desafiar
a lógica e a funcionalidade.
70
Figura 29 Caderno com planta baixa e descrição da cidade da bobeira, Acervo pessoal, 2019.
71
Figura 30. Caderno com cidade da bobeira, Acervo Pessoal
Tabela 13. Exercício de Comicidade 3
Exercício 13 Vícios e Figura opressora
Procedimento
Criar vícios com o corpo através do andar, depois com o rosto, depois
incluir braços e coluna com base numa figura opressora, experimentar
vícios nessa figura de autoridade e/ou opressora.
O mediador entrevista a figura opressora sobre algum assunto aleatório e
distinto do que seja sua natureza, exemplo: entrevistar um homem rico
sobre tipos de balde para carregar água, entrevistar uma mulher no padrão
de beleza sobre biscoitos de chocolate.
72
Este último exercício deste módulo, possibilitou diversas relações corporais do grupo
uns com os outros. Ele está situado tanto na experimentação da comicidade de gestos e
movimentos como comicidade de situação com a etapa final de entrevistas. As construções
foram exaustivamente exploradas e permitiram observações tanto sobre características físicas
dos atores e atrizes como a escolha das figuras opressoras deram indícios sobre narrativas
pessoais de cada participante.
Exercícios sobre a cidade
A maioria dos exercícios deste módulo não foram proposições minhas e surgiram
através de questões disparadoras sobre a cidade em rodas de conversa do grupo. Desses
encontros imprecisos, foram extraídos estes cinco exercícios que podem ser empregados em
qualquer cidade conforme suas características. Dentre as questões disparadoras:
● Memória da cidade
● Problemáticas mais evidentes
● Observações sobre as mini cidades dentro da cidade
● Nossa cidade como nossa identidade individual.
Estes encontros foram feitos em muitos espaços, onde a ideia era firmar um estado de
deriva na escrita. Estivemos em praças, ruas, becos, e outros lugares fora da sede do Grupo,
como a casa do coordenador Luíz Pazzini e a sala de aula no Centro de Artes Cênicas do
Maranhão. Essas andanças foram importantes por estabelecer novas situações como escrever
no chão ou nos bancos das praças, permitiu uma mudança de percepção, e pensar na escrita
possível fora da mesa e da sala. Neste módulo, também foram os de menos registros
audiovisuais, pois com o envolvimento nos debates, a câmera fotográfica foi esquecida.
A questão da cidade, como dito anteriormente, emergiu mediante o conto, mas
também na percepção de que está relacionada à identidade. Somos também uma cidade, uma
comunidade, sócio e culturalmente. Este eixo foi o que mais suscitou narrativas pessoais dos
atores e permitiu proximidade entre os integrantes, indicando a existência de um sentimento
comum quando habitamos e pertencemos ao mesmo espaço.
73
Figura 31. Encontro na Praça dos Catraieiros - São Luís/MA, Acervo pessoal, 2019.
Tabela 14. Exercício trilha sonora
Exercício 14 Sons da cidade
Descrição Flutuações sobre uma trilha sonora para a cidade
Procedimento Em roda, elencar sons característicos da cidade, reunir especificidades
desses sons e elaborar/imaginar uma trilha única que fale sobre o lugar.
O exercício 14 foi elaborado a partir de conversas sobre a cultura musical de São Luís,
influenciada por muitas matrizes, sobretudo africana. Chamada de Jamaica Brasileira, ilha do
Reggae e capital do bumba-meu-boi, muitas são as sonoridades que fazem parte da identidade
ludoviscense. Esta última, por exemplo, é a manifestação popular que possui cerca de quatro
ritmos musicais, entre eles, sotaque de orquestra, da baixada, costa de mão e de matraca.
74
Desta forma, este exercício e outros foram elaborados a partir da identificação de
especificidades sobre a cidade. No exercício 15, falamos sobre a relação particular que temos
com as praias da ilha, com a variação da maré, uma das maiores do mundo, onde percebemos
as idas à praia são memórias comuns de infância. Já outros exercícios surgiram na urgência
em falar sobre pontos negativos, e elencar proposições, imaginar uma cidade ideal, pensar
nossas contribuições para a mudança. Assim também, falar de cidades invisíveis dentro da
ilha, lugares esquecidos e relacionar com os imaginários de São Luís construídos para os
visitantes.
Tabela 15. Exercício Histórias Comuns
Exercício 15 Histórias em comum
Descrição Eleger um tema comum ao grupo e contar histórias pessoais
Procedimento Após conversas para a escolha do tema comum, escrever uma ou mais
histórias. Na escolha do tema idas à praia, estabeleceu-se até uma página
com histórias situadas na infância. A história não precisa ter início meio e
fim, podendo ser uma sucessão de lembranças.
Figura 32. Cadernos com idas à praia, Acervo pessoal, 2019.
75
Tabela 16. Exercício Cidade 1
Exercício 16 Se pudesse resolver um problema de São Luís
Procedimento Após debates sobre problemas da cidade, cada um escreverá uma solução
(real ou fantástica) para um único problema escolhido.
Tabela 17. Exercício Cidade 2
Exercício 17 Imagens de São Luís
Procedimento Descrever e conversar sobre imagens de São Luís, aquelas que não estão
nos cartões postais. Este exercício é uma prática de registro sobre o
encontro, como um diário de bordo.
Tabela 18. Exercício Persona-cidade
Exercício 18 Criação de personagem
Descrição Criar uma persona-cidade
Procedimento Criação que vê a cidade como personagem, sua forma física. Exemplo de
variações: persona-praça, persona-bairro.
Este último é um procedimento que propõe a criação de um personagem. Nas rodas de
conversa sobre a cidade, várias vezes nos referimos à cidade como uma pessoa, uma persona,
um organismo em movimento que tem textura, cheiro, sabores e sonoridades. Como seria se
nossa cidade fosse um indivíduo? Um personagem fantástico? Foi nesse encontro também que
conversamos sobre lendas e histórias da nossa cidade, como a serpente encantada, Ana
Jansen que passeia de carroça levada por um cavalo sem cabeça, as carrancas da fonte do
ribeirão, os cazumbás, caboclos de pena e de fita. De alguma maneira São Luís passeia entre
seres fantásticos, e este exercício pretendeu evidenciar isso.
76
Figura 33. Persona-Cidade, Acervo pessoal, 2019.
Percebo nesses procedimentos de criação em escrita, princípios próprios do Teatro
Documental ou também chamado de Autobiográfico, uma vez que as narrativas pessoais dos
atores e atrizes eram suscitadas pelos exercícios sob o suporte dos diários/cadernos. Também
como princípio desta modalidade teatral e em fluência com as propostas apresentadas, Leite
(2017) afirma:
Os atores são convocados, através de proposições gerais do processo como temas,
questões, procedimentos, a trazerem seus materiais, sendo assim responsáveis pelas
escolhas no que refere à encenação (escolha de espacialização, luz, som) e à
dramaturgia (não só os textos proferidos em cena, mas também as situações, as
relações, as personagens)(LEITE, 2017. p.33).
Os cadernos repletos de escrita, ao final estavam completamente diferentes entre si,
em cheiro, peso, rascunhos, borrões, cada caderno traduz uma personalidade própria. Ele
revela os sujeitos por trás dos traços de suas características plásticas, o estado do caderno, a
caligrafia, as rasuras… Assim também, seus vazios oferecem indícios, nos dão pistas sobre
quem pouco escreve ou quem apaga o que escreveu. O diário/caderno tanto diz das
experiências quanto não diz, ele é rastro fragmentado que apenas abre uma fresta para o
vivido.
77
a 34. Carta da Dramaturga Nádia Ethel, Acervo pessoal, 2019.
78
Figura 35. Carta da Dramaturga Nádia Ethel, página 2, Acervo pessoal, 2019.
79
3.2 No continente
Os encontros com a turma de alunos/diretores da UFRJ se constituíram como oficinas
de escritas dramatúrgicas mais direcionadas. Não era um objetivo que os alunos participassem
como atores e atrizes como com o Grupo Cena Aberta e sim como diretores/dramaturgos.
Logo, os procedimentos se distinguem embora tenham aspectos semelhantes quanto a voz dos
sujeitos do processo e o poder de decisão do grupo.
Nesta experimentação, cadernos, conto, manuscritos, cartas, relatos e outras
materialidades geradas cruzam 3.146 quilômetros, rumo à mãos desconhecidas. E justamente
por isso, esta sala de aula precisaria se sobressair como sala de criação, pois a lida com esses
materiais demandava escuta, flutuação e outras características inerentes ao estado de criação
conjunta. E logo meu primeiro desafio foi a aproximação com os alunos, que diferente do
Grupo Cena Aberta, eram completamente desconhecidos. Esta sondagem e primeiro contato
aconteceram nos primeiros encontros em que observei as aulas da Prof.ª Dra. Jacyan, cujas
abordagens são bastante dialógicas e práticas.
Através de observações dessas aulas iniciais, constatei a proximidade dos alunos com
a escrita e com os conceitos básicos dramatúrgicos além de envolvimento de alguns em
montagens que estavam em processo. Logo na primeira aula que assumi, fiz um exercício de
escrita para aproximar os alunos e a pesquisa, nele cartões postais são deixados em pontos
diferentes da sala e os alunos são instruídos a escrever algumas linhas sobre o que cada cartão
os provoca imaginar.
Este exercício segue o mesmo princípio
do proposto com o Cena Aberta, feito com
objetos. Aqui ele serviu para aproximar o grupo
da proposta da oficina e verificar a adesão dos
alunos a atividades como esta, além de perceber o
envolvimento de cada um com a escrita em
situação, isto é, que se dar a partir das
circunstâncias, em movimento pela sala, com
tempo estipulado. É válido ressaltar que a
proposta da oficina foi adaptada para atender aos
requisitos da ementa do curso, que tinha foco de
discutir o teatro moderno brasileiro e
Figura 36. Exercício com cartões postais
80
contemporâneo. Logo haveria encontros para discussão teórica além da experimentação,
assim também propus que a cada encontro falássemos de algum dramaturgo ou dramaturga do
norte ou nordeste do Brasil, para ampliar nosso repertório de peças, geralmente concentrados
nos epicentros Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
Dessa forma, todos os encontros foram precedidos de alguma discussão teórica
concentradas sobretudo no dramaturgismo, nas operações dramatúrgicas ditas
contemporâneas e suas questões, tais como formas, recursos, noção de personagem e natureza
dos textos além da Dramaturgia no Teatro para crianças e suas questões. Os passos da
experimentação que sucedem não correspondem a um encontro cada, pois algumas etapas
levaram mais encontros que outras para serem cumpridas. Aqui estão organizadas para uma
melhor compreensão das etapas de trabalho e seus objetivos.
Passo 1 - Contato com materiais
Todos os materiais foram dispostos na sala para o primeiro contato com as
materialidades, inicialmente sem indicação. Em seguida, cada um escolhe um caderno
manuscrito do conto ou carta para, em seguida, compartilhar suas impressões a respeito do
material com a turma. Perguntas norteadoras nesta etapa foram: que características são
atribuídas a este material? O que você especula sobre quem o produziu? O que mais chama
atenção?
Passo 2 - Inventário sobre os materiais
Familiarizados com os cadernos e outros materiais, voltamos a eles com um olhar mais
direcionado. A tarefa é fazer um inventário que nos dê ideia do que há naquele material, ou
seja, uma contagem descritiva que nos faça visualizar o material de partida e assim ter mais
propriedade sobre ele.
Passo 3 - Criação de personagens
Com o inventário em vista e sempre recorrendo aos materiais, escrever possíveis
personagens criando uma tempestade de ideias. A intenção não é criar personagem em seu
sentido profundo, sabemos que estes mostram-se no decorrer da ação, a proposição aqui são
flutuações sobre os materiais, elaborando arquétipos, estabelecendo vínculos criativos com o
material de origem.
81
Figura 37 e 38. Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos, Acervo pessoal, 2019.
Passo 4 - Escrita de Micro Cena
Escolher um personagem da lista criada no passo anterior e escrever uma primeira
aparição desse personagem em uma cena. Este exercício surgiu de uma conversa/debate sobre
a construção de personagens no teatro para crianças, onde é comum que os personagens se
apresentem ao público verbalmente e não se mostrem ao longo do enredo através de suas
ações e relações com demais personagens, dessa maneira, este exercício foi um desafio a
romper com esta convenção.
82
Figura 39. Cena de debate para prefeito da cidade da bobeira, Acervo pessoal, 2019.
83
Passo 5 - Eleição de um cenário/universo a partir do último exercício
Com base nos exercícios anteriores a turma optou por trabalhar em cima de um
universo ficcional que servisse de ambiente às criações que viriam. Através dos escritos
anteriores sobre os personagens. Assim, a turma optou por eleger A Cidade da Bobeira como
seu cenário, a fim de aproveitar melhor os personagens criados e ampliar as possibilidades de
escrita.
Passo 6 - Escritas em Grupo
A turma dividida em dois grandes grupos, um deverá escolher três personagens da lista
já criada e escrever uma cena em que estes discursam como candidatos para uma eleição à
prefeitura da cidade da bobeira. O outro grupo deveria elaborar um projeto da cidade da
bobeira, isto é, descrições ou desenhos que comuniquem as características. Esta proposição
dá-se com base nos elementos do conto A cor de Deus, em que percebe-se a presença de
prefeitos e líderes das cidades que o menino visita bem como a descrição dessas cidades,
também as criações no exercício dos atores do Grupo Cena aberta são ponto de partida.
Figura 40. À esquerda rascunho da cidade da bobeira, à direita planta baixa definitiva
84
Características da Cidade da bobeira: A cidade é um labirinto em que as placas mudam
de lugar, chove casca de banana, o guarda de trânsito tem uma língua de sogra, e os meios de
transporte são velotrols e monociclos, os bombeiros são palhaços, os bancos só servem para
brincar nas portas giratórias, os policiais estão sempre correndo e os funcionários da
prefeitura são mímicos e os bancos das praças fogem sempre que alguém se aproxima para
sentar.
Passo 7 - Escrita de uma cena
Com base na produção escrita do passo anterior, todo o grupo deverá criar a primeira
cena de uma dramaturgia. Nesta criação, deverá estar claro a ambientação/contexto da trama
além de ser obrigatório estabelecer indícios de um conflito futuro. Aqui a turma fará escolhas
cruciais para o cumprimento da tarefa, como personagens, o que dizem e como falam. O
principal desafio é fazer com que as ideias saiam do campo imaginativo e comuniquem-se
com a escrita, assim também acertar as vontades individuais com as do coletivo.
Nesta etapa feita nos últimos encontros, fiquei como escrivã do grupo, ao passo que as
decisões foram sendo tomadas e as falas delineadas, eu registrava digitando no celular com
um aplicativo do word. Criado o universo ficcional, os personagens, pequenas cenas e outros
materiais, o principal desafio era materializar as muitas ideias vindas de um universo amplo e
rico em possibilidade. A cidade da bobeira, seus mapas e suas características permitem que
muitas histórias caibam em suas ruas engraçadas e praças malucas, assim como nossas
cidades, seja São Luís ou Rio de Janeiro, guardam nossas histórias, dizem sobre nós e até
produzem outras cidades dentro da cidade.
Os Fóruns como espaço para decisões e horizontalidade foi a principal estratégia para
instaurar um ambiente de criação democrática e dialógica. Primeiro, por facilitar o andamento
das experimentações, uma vez que havia faltas de alunos, evasões e outros empecilhos que
impediam do mesmo grupo seguir participante em todos os encontros, logo o grupo presente
tinha total liberdade sobre as construções já feitas e toda a matéria criativa pertencia ao grupo.
Segundo, os fóruns foram decisivos para construção de debates sobre os
conteúdos/temas e diálogos destes com as experimentações escritas, tal estratégia situa-se no
“campo de incertezas advindo de um vivaz e plural ambiente de troca de propostas, assim
como de discordância de opiniões, entre os integrantes do processo. Ainda segundo
Gonçalves Júnior (2017) estes procedimentos são distintos daqueles cronologicamente mais
pragmáticos e com tempo exíguo para a encenação de um conceito ou da visão de um diretor,
encenador ou coreógrafo (GONÇALVES JÚNIOR, 2017. p.125).
85
As criações geradas pelos alunos/diretores da UFRJ, embora não tenham alcançado a
forma de um texto dramatúrgico estruturado com início, meio e fim, somente por falta de
tempo hábil, revelam caminhos e procedimentos eficazes de criação, sobretudo fazendo uma
criação em rede e ambientes de interação, em que as linhas de autoria e acabamento da obra
são preteridas em relação à experimentação. Nesta pesquisa, o principal feito não está nos
textos estruturados mas na sistematização dos procedimentos de construção, na evidência dos
modos de fazer.
Cena Produzida coletivamente com os alunos da UFRJ através dos cadernos dos atores e
atrizes do Grupo Cena Aberta
CENA UM
ciclista chega na cidade
Ciclista viajante-
Parafusos pra que te quero Aro, roda, freio já no fim a estrada é longa feito chiclete esticado o que vai ser de mim? Pedalo e nunca chego na cestinha acabaram os quindins vou bater de porta em porta e alguém há de abrir pra mim Dona boba do museu )na janela muito atenta à bicicleta) - Quem é esse viajante que chega
na.cidade? Trazendo essa dupla bobeira rolante desconhecida?
Ciclista viajante bate a porta
Dona boba do Museu- sim?
Ciclista viajante – boa tarde! Você teria parafusos?
Dona boba do Museu - Não
Ciclista viajante - Graxa para corrente?
Dona boba do Museu - Não
Ciclista viajante - Bomba de ar?
Dona boba do Museu - Não
Ciclista viajante - Batata doce? Travesseiro? Pedra de faisão? Pena de urubu? Um quindim ou dois e
uma caixa de giz de cera?
86
Dona Boba do Museu- Quindim!
O ciclista segue Dona Boba Museu que Pára e olha para bicicleta com interesse e pergunta
- isso é uma bobeira também?
Ciclista viajante - Vanuza? Está comigo toda viagem, me leva para todos as viagens
Dona boba do Museu (se dirigindo à bicicleta Vanuza)– Vanuza...não descansar neste cantinho do
museu?
Cai uma peça da bicicleta
Dona boba do Museu – claro, sim.
Seguem andando
Dona Boba do Museu - Vanuza é uma ótima bobagem para estar no meu museu!
Dona boba do Museu mostra um mapa da cidade na parede
Dona Boba do Museu – Você desce da rua dando três pulinhos e vai chegar direto na rua dos gatos, é
bem fácil de achar pq tem os bombeiros colocando eles nas árvores, quando passar por lá, nada de
miados nem ronronados senão os bombeiros te colocam numa árvore. Atravessando essa rua chega
no banco.
Ciclista viajante – estou precisando sacar um dinheiro
Dona Boba do Museu (gargalhando) – tirar dinheiro do banco? Aí você é tão bobo...
Ciclista viajante – o que mais se faz num banco?
Dona boba do Museu – a única coisa que se faz num banco, girar nas portas giratórias. Depois de
girar virar à esquerda na praça dos bancos.
Ciclista viajante – mais bancos com portas giratórias?
Dona boba do Museu – aquele outro tipo de banco
Ciclista viajante – pra sentar?
Dona boba do Museu – você faz umas perguntas... Continuando a nordeste você passa na delegacia
pegue emprestado um velotrol oficial e seguindo a sudoeste passa pela prefeitura caso tiver alguma
dúvida pode perguntar, os funcionários são super eficientes, já o prefeito estamos em vias de eleger
um bobeirense, bobalhão, uma boberopolitana a altura para tal.
- Girando oito pedaladas a noroeste você chega na padaria, aí é só bater a cabeça no vidro pra abrir,
o vidro dessa padaria é ótimo pra bater a cabeça. Tenho certeza que o quindim vai estar lá.
87
4. UM LAMPEJO SOBRE DRAMATURGIA PARA INFÂNCIA.
Setembro de 2019, sobre a mesa de professor que está no espaço onde seriam apenas
mesas de alunos, está uma folha de papel servindo de quadro para discentes de Direção
Teatral da UFRJ escreverem palavras-chave sobre o tema Teatro para infância.
Figura 41. Quadro de palavras chave sobre teatro para crianças
88
Pouco sabemos sobre o que move as crianças à determinada peça, texto literário ou
filme. No campo de discussões em torno do teatro para infância, suas temáticas, encenações e
recursos devem ser pautados diante do fazer teatral ligado à contemporaneidade, pois quando
analisamos o percurso do teatro até hoje, olhamos o teatro para infância pouco participante
dessa história. Nas palavras de Nazareth (2012, p. 73) “É como se o teatro infantil não tivesse
conseguido acompanhar a dinâmica do mundo, o mudar dos conceitos e – sobretudo – a
transformação da criança”.
Antes, na perspectiva “adultocêntrica” de organização social25
, a criança era vista
apenas como um ser passível e improdutivo, agora, ela consome cultura e até produz. Porém,
a mercê das escolhas feitas por adultos, pais e professores que a fazem, na maioria das vezes,
sem critérios estéticos e considerando apenas preços, aspectos mais visíveis (superficiais até)
ou mesmo guiados pela memória emotiva de suas próprias infâncias que anulam qualquer
senso crítico. (LEÃO, 2001. p.86).
Embora esse conceito de infância tal como o conhecemos hoje, tenha surgido na
idade moderna e influenciado uma série de produções (pode-se também incluir produtos)
voltadas para a infância, sabemos que há registros antigos referindo-se à “China, no século III
a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavam espetáculos domiciliares para crianças e
mulheres de classe social elevada” assim também, “entre os séculos XV e XVII da era cristã”
com a commedia dell`arte em que os roteiros cômicos interessavam ao público infantil
(LOMARDO, 1994. P.11-12).
Até meados do percurso desta pesquisa, não era um objetivo levantar com ênfase a
temática do teatro para infância, a necessidade de pontuar a identidade desta experimentação
aconteceu pela vontade de melhor contribuir com as discussões recentes. Reconheço que tão
importante quanto expor o processo criativo é discuti-lo e situá-lo nesse campo ainda com
estudos pontuais, principalmente na dramaturgia em criação.
A maneira que cada criança se relaciona e constrói sentido sobre suas experiências
artísticas é um território ainda pouco explorado, por isso deve-se apostar na diversidade de
obras de arte para as crianças e jovens e na importância de se debater o assunto em
universidades e espaços a que compete debater sobre expressões artísticas.
A sopa de palavras escritas no quadro pelos discentes e futuros fazedores de teatro da
cidade são constantes observadas no circuito atual que denunciam relações históricas do teatro 25
Nos estudos de Edmir Perrotti (1984) sobre a criança e a produção cultural, é abordada a categorização rígida
do adulto como um ser ativo e da criança como um ser passivo, sob a ótica do sistema de produção capitalista
que determina e reconhece um segmento no todo social pela sua atividade ou ausência dela. Perrotti afirma que
essa oposição ativo/passivo, referindo-se à criança e ao adulto é histórica e não natural, interferindo no fato de
que pouco se pensa na criança produzindo cultura ou recebendo e produzindo cultura ao mesmo tempo.
89
para infância e a herança a qual está submetido. Usarei, portanto, algumas palavras sugeridas
no quadro para refletir sobre aspectos teatrais deste segmento, e principalmente friccioná-los
com a dramaturgia, isto é, relacionando temáticas, personagens, recursos dramáticos e
questões a respeito da produção de narrativas.
Para isso, No Reino da Desigualdade (1991) da Prof.ª Maria Lúcia de Souza B. Pupo é
um estudo guia. Seu trabalho minucioso sobre uma amostra de peças paulistas da década de
1970 é um dos poucos que trata especificamente sobre dramaturgias autorais, isto é, que não
são adaptações de clássicos de literatura brasileira nem estrangeira. Além disso, a amostra
referência um período de alta produção no teatro para crianças do circuito brasileiro, marcada
por peças que começam a instaurar um caráter mais artístico que educativo, a exemplo de
Pluft, o fantasminha (1970) e Histórias de Lenços e Ventos (1974).
Este escrito, nomeado lampejo, diz respeito a considerações sobre dramaturgia para
infâncias percebidas ao longo desses anos em que me intriga a produção de texto para
crianças e jovens. Lampejo, pois, o tema certamente mereceria uma atenção aprofundada,
principalmente nas peças mais recentes, o que não é minha intenção neste momento. Por ora,
este escrito é uma centelha de pensamentos a partir de quem experimenta.
4.1 Educação | Escola | Arte Educação
Compatíveis entre si, as três palavras apontadas pelos alunos de graduação da UFRJ,
podem nos dar pistas sobre como falar de características permanentes nas dramaturgias para a
infância, o moralismo e caráter professoral. Segundo Lomardo (1994, p.17), historicamente
até o século XX as manifestações teatrais para a infância se concentravam no teatro de formas
animadas, sendo exceções as poucas experiências com o “teatro educativo (mais exatamente,
teatro de cunho moral), geralmente a cargo dos jesuítas ou irmandades religiosas”.
Foi nesse sentido moral e até doutrinário que o italiano Giovanni Bosco (1815-1888),
a fim de normalizar seu teatro, desenvolveu As Dezenove Regras de Dom Bosco, regulamento
em que o frade ditava rigorosamente como prosseguir nas encenações. Entre as regras,
aspectos técnicos, de conteúdo, temática e a extensão dos textos (LOMARDO, 1994, p.17).
Na virada do século XIX para o XX Maria Montessori e John Dewey formulam
propostas educacionais específicas para infância, reconhecendo-a como período importante na
formação humana. Mudanças como a redução do tamanho do mobiliário faziam parte do
pacote de reformulações a partir da identificação das necessidades inerentes à infância. Ainda
90
segundo Lomardo (1994. p.18), tais propostas fizeram com que a função pedagógica do teatro
passasse a ser vista com outros olhos. Segundo o autor:
O teatro educativo (frequentemente confundido com teatro moral ou religioso), sob
total supervisão e direção das pessoas adultas, permanecerá como a mais difundida
forma de teatro infantil durante quase metade do século XX, exatamente até o fim da
Segunda Guerra Mundial (LOMARDO, 1994. p. 19.).
Não obstante, no Brasil do século XX, o teatro infantil, já visto como produção
específica predomina uma demanda mais pedagógica do que estética. Inaugurando o teatro
escolar, temos Teatrinho (1905) de Coelho Neto e Olavo Bilac, volumes que incutiam valores
morais e ensinamentos contra os “desvios” na educação que as crianças recebiam na escola.
Em 1915, outro volume com autoria de Carlos Góis, impõe “à criança normas de
comportamento que por um lado correspondem a um modelo adulto e, por outro, a um modelo
de passividade e ausência de iniciativa” (LOMARDO, 1994. p.34).
O teatro para crianças de cunho artístico desenvolve-se somente a partir de O casaco
Encantado (1948) de autoria de Lúcia Benedetti. Da década de 1950 em diante, acrescentam
ao movimento, figuras como Maria Clara Machado, Tatiana Belinky, Sylvia Orthof, Olga
Reverbel e outros. Diretoras, encenadoras e educadoras cujas obras permanecem sendo
encenadas na atualidade.
É notável que o teatro para infância funda-se no didatismo e moralismo deixando
rastros disso, infelizmente, até os dias atuais. Esta raiz no teatro educativo, talvez seja a
principal causa do tratamento da arte para crianças como um subgênero e subproduto. Seu
sintoma é quando vemos no lugar da qualidade estética, a vontade desenfreada de ensinar.
Nos palcos, a displiscência com os parâmetros artísticos, na plateia, crianças subestimadas
reduzidas intelectualmente.
O papel educativo do teatro é, antes de tudo, o da aprendizagem da vida, das
relações sociais e políticas, das relações com a natureza e com os outros seres
humanos, conhecimentos esses que devem ser apresentados às crianças a partir do
ângulo da arte, do pacto com o lúdico e com a fantasia, em um processo de
decodificação da realidade a partir do texto e da cena dramática, excluindo desse
processo qualquer atitude que delegue ao adulto superioridade e função didática
(GRAZIOLI; FLORES, 2019. p.11).
A herança moralista se alastra e reduz a produção cultural para crianças. Deduzir o que
se acredita como limite da compreensão infantil, infecta praticamente todos os aspectos de
uma obra, da temática à forma da escrita, a exemplo disso, Maria da Glória Bordini em Poesia
infantil (1986). Embora sua fala se concentre em uma vertente da literatura, ela é facilmente
aplicável em outras esferas que envolvam a escrita e as crianças como leitores ou público.
O que impera, na média da produção ficcional para crianças, é o despautério.
Campeiam a imbecilização das fórmulas verbais com diminutivos e adjetivações
profusas e construções frasais canhestras; a apresentação desavergonhada de
91
absolutos duvidosos e irretorquíveis sobre o real, desestimulando a reflexão e a
crítica; a censura aos aspectos menos edificantes da conduta humana e, em especial,
a vontade desbragada de ensinar, sejam atitudes morais ou informações tidas por
úteis [...] (BORDINI, 1986, p.7)
Na Dramaturgia, dentre muitos exemplos que explicitam o moralismo, Pupo (1991)
cita a explicitação da convenção teatral, a autora acredita ser mais uma “tentativa de
escamotear o autoritarismo do elemento adulto” (p 100-101) onde as explicitações do
fenômeno teatral traduzem uma postura professoral, Assim ela afirma:
[...] em última análise, é uma tentativa de esvaziamento da própria função simbólica,
intrínseca a toda e qualquer linguagem artística. O didatismo simplista acaba
triunfando sobre uma visão da arte teatral enquanto possibilidade específica de
conhecimento. (PUPO, 1991 p.101).
No que tange às temáticas, a adaptação de temas e ilusionismo sobre o real são os
sintomas mais evidentes. O moralismo limita conteúdos às crianças, quando por exemplo, não
se aprofunda em temas sobre perdas, violência, pobreza ou assuntos sociais como questões de
gênero, sexismo e injustiças.
Em outubro de 2019, a Banda Mirim/SP, comemorando 15 anos de grupo, faz uma
curta passagem pelo Rio de Janeiro com programação aberta contendo oficina, apresentação e
encontro artístico26
. Neste último, atores-músicos faziam desmontagens de seus espetáculos
enquanto respondiam perguntas e ouviam experiências de outros artistas que tinham em
comum a produção teatral e musical para infância.
Na ocasião, o grupo falou sobre Menino Teresa27
(2007), espetáculo que sofreu
represálias por quem achou que seu título sugere se tratar de uma criança trans. O espetáculo
musical, de forma muito sensível, trata de uma expedição da personagem Teresa (atriz
Claudia Missura) por um quarto de menino entre cuecas, sapatos e bola, nada além de
perguntas sobre os gêneros masculino e feminino.
A Banda Mirim, grupo premiado e notável em suas produções para infância, possui
repertório de musicais com temas que comprovam a potência e a sofisticação de um público-
criança. Festa28
(2014) trata da passagem do tempo em que acompanhamos a personagem em
aniversários até a velhice. Quase sem diálogos, a peça propõe espaços para que o público
construa narrativas, identifiquem personagens e percebam seus significados.
26
Realizado em três de outubro de 2019 no Circo Crescer e Viver, o encontro artístico aconteceu com grupos de
teatro, músicos e artistas locais para troca de experiências e diálogo sobre artes cênicas para crianças e jovens no
Brasil. A Programação que contou com apresentações do espetáculo Festa no Teatro Sesc Ginástico e oficina de
Práticas Criativas teve patrocínio da Petrobrás e ocorreu em comemoração dos quinze anos do grupo. 27
Texto e Direção: Marcelo Romagnoli; Elenco: Claudia Missura e Tata Fernandes; Músicas: Tata Fernandes; 28
Texto e Direção: Marcelo Romagnoli; Direção Musical: Tata Fernandes.
92
Em sua mais recente produção Buda29
(2017), resultado de pesquisas do grupo, parte
da história do príncipe Siddhartha Gautama. Confinado e protegido do mundo até a idade
adulta, quando decide sair em jornada fora do palácio, se depara com visões nunca antes
conhecidas nem imaginadas: o envelhecimento, a doença, a morte e a perda da dignidade.
É justamente com este enredo corajoso que desperto para a problemática em diluir as
temáticas e conteúdos que devem ser apresentados nas peças para as crianças, com pretexto
conservador de proteção à infância. Fica evidente uma falsa moral, quando percebemos que
esta proteção só diz respeito a determinadas infâncias, àquelas dos lares da classe privilegiada,
enquanto sabemos que os dados de crianças expostas à violência e ao abandono são
assustadores e que o acesso das crianças às casas de espetáculos ou atividades artísticas está
longe do satisfatório.
Os espetáculos da Banda Mirim, através da abordagem de temáticas complexas em
enredos sofisticados e aprofundados, tornam-se um exercício de rompimento de mitos do
teatro para crianças, principalmente dos que tem origem no moralismo, cito alguns: as peças
precisam de explicações do enredo e apresentação dos personagens, excesso de verbalização
que subestimam sua capacidade inteligível, duração curta e dinâmica acelerada julgando o não
interesse e a falta de concentração.
Suponho que outra, e talvez a mais grave consequência da negligência artística na
dramaturgia para crianças, seja o Conflito, ou a ausência dele. Sabemos que Conflito é um
elemento fundamental no gênero dramático, porém se a temática está esvaziada de sentido e
conteúdo, o conflito não existe. Tatiana Belinky, importante roteirista e dramaturga da história
do teatro brasileiro e fundadora do TESP30
junto com Júlio Gouveia, afirma:
Toda peça para crianças e adolescentes deve apresentar conflito perfeitamente
delineado, com personagens bem caracterizados e uma situação absolutamente clara,
para que o jovem espectador, através da identificação com um dos personagens (ou
com uma situação) sofra uma experiência, uma vivência pessoal verdadeira, com a
correspondente participação emocional. (BELINKY; GOUVEIA. 1984. p.34.)
Todavia, a amostra de peças analisadas por Pupo (1991) revela que é comum a
ausência de conflito principal claramente estabelecido, sendo maioria, os conflitos entre
29
Texto de Marcelo Romagnoli; Direção Musical: Tata Fernandes. Seu processo de construção nasceu do
Projeto BUDA – cadernos de pesquisa, contemplado para receber recurso da 26ª edição do programa Municipal
de fomento ao Teatro para cidade de São Paulo, no processo o grupo esteve com crianças, jovens, idosos,
imigrantes à margem da esfera social, realizando visitas artísticas em doze abrigos ou casas de acolhimento na
cidade de São Paulo, essas vivências e outros estudos alimentaram a criação do espetáculo que já ganhou
importantes prêmios como o APCA melhor direção e dramaturgia e Melhor Espetáculo Infantil Guia da Folha,
ambos do ano 2017. Fonte: Revista Banda Mirim #2 Notas de uma pesquisa, coord. Marcelo Romagnoli (2016).
30
Teatro-Escola de São Paulo – foi um grupo de teatro semi amador especializado em espetáculos para crianças
e adolescentes, que funcionou na cidade de São Paulo, de 1949 a 1964. (BELINKY; GOUVEIA p.30. 1984).
93
personagens (75,5%). Segundo a autora, a inexistência de um eixo preciso “em torno do qual
possa crescer o confronto entre os personagens, acarreta um sensível empobrecimento da ação
dramática e, consequentemente, da totalidade do texto” (PUPO, 1991. p.60).
A dicotomia entre o bem o mal caracterizam 50,8% das peças que apresentam
conflito claramente definido, apontados por Pupo como pólos antagônicos e irredutíveis, onde
a bondade está para a beleza e a maldade para feiura. Ela afirma:
Na medida em que o conflito maniqueísta implica ausência absoluta de contradição
interna, as personagens que nele estão envolvidas ou se acham enquadradas dentro
do polo da ordem (bem) ou do polo da desordem (mal). Como tais, desconhecem
qualquer modalidade de ambivalência de sentimentos e funcionam exclusivamente
como tipos a serviço da trama, não chegando a ter uma dinâmica própria de ação.
(PUPO, 1991. p.62).
O excesso de verbalização em que a fala substitui a ação é observado na distinção
entre o vivido e o mencionado. Essa abordagem descaracteriza a definição de conflito e por
consequência sua solução, que em geral, apresentam-se a favor do protagonista, por uma ideia
repentina ou por mágica, onde o público emana energias positivas com as mãos pra cima, fala
uma palavra emblemática, imita um movimento para ajudar os personagens, ou ocorre o
chamado deus ex-machina, que consiste na aparição repentina de um dado ou personagem
inesperado trazendo o equilíbrio inicial.
Como disse anteriormente, percebo a relação de conflito nas dramaturgias como a
mais grave, justamente pelo conflito dramático ser uma forma (não a única certamente) de
veicular os conteúdos e produzir discurso. Uma vez que o conflito está ausente ou esvaziado,
pouco se pode esperar da trama, seu desenvolvimento, solução e personagens. Compactuo das
palavras de Nazareth (2016) que ao se confrontar com pouca mudança na dramaturgia para
criança hoje, questiona-se: “será que o texto no qual o conflito se dilui, no qual a relação de
causalidade é negada, deve ser analisado como um texto dramatúrgico de excelência?”
(NAZARETH, 2016. p.42.).
4.2 Ludicidade | Lúdico | Diversão | Alegria | Música
Através dessas palavras, levanto Comicidade e Música, máximas das dramaturgias
para infância, tema caro a esta pesquisa que tem nos procedimentos cômicos, um dos fios de
sua metodologia. Esses recursos dramáticos tidos como essenciais nas tramas e por isso
convencionalizados às encenações para crianças e jovens, representam “elementos
incorporados ao conceito daquilo que o adulto entende como sendo o gosto infantil, que
parece inconcebível a criação de um texto teatral desprovido do seu emprego” (PUPO, 1991.
94
p. 100). Tatianna Belinky, dramaturga e roteirista, sobre ao que chama de comicidade infantil,
afirma:
Toda peça para crianças deve conter uma grande dose de humor e comicidade, pois a
criança precisa de alegria e de risos para descarregar os excedentes de energia
nervosa, e, no teatro, para avaliar a tensão das situações dramáticas. [...] a
comicidade depende do grau de inteligência, de sensibilidade, de cultura e de
educação do indivíduo que ri (BELINKY; GOUVEIA. 1984. p.39).
Na amostra erguida por Pupo (1991) na década de 1970, é unânime a presença do
cômico como recurso dramático. Em maioria, a comicidade verbalizada se caracterizando por
“incidente que pretende provocar riso através de recursos da própria linguagem” (1991, p.86).
Em seguida, a comicidade de gestos ou movimentos “motivada por circunstância exterior à
personagem”, e a comicidade de situação através de variantes como repetição e quiproquó31
.
As observações de Pupo, elencando as modalidades de comicidade empregadas nas
peças realçam a precariedade das construções dos personagens, pois os procedimentos
cômicos são apresentados exteriormente a eles, como mero convite à diversão. Isso significa,
segundo a autora, que “no teatro infantil o cômico não se faz presente nos elementos
individualizadores e identificadores da personagem, mas naquilo que ocorre com ela” (1991,
p.90).
Em outras palavras, a problemática não está na utilização desse recurso dramático e
sim, em sua má utilização. Em consequência do moralismo que subestima as crianças, o riso
também é subestimado como fenômeno social, subtrair-se da comédia sua possibilidade de
construção crítica, de ressignificação de experiências e estimuladora criativa, minimizando-a
a verbalização, tombos inesperados, trocadilhos simples e até depreciação e reafirmações de
preconceitos.
A Comicidade é uma potência! O humor é íntimo ao humano, ele é produtor de
sensações, opera com o conhecido e o desconhecido, é capaz de nos transportar a universos
fantásticos ou mesmo nos perder no tempo e espaço na velocidade de uma gargalhada. Dib
Carneiro Neto (2014), crítico de teatro, especialista e jurado em prêmios do segmento, fala
que um jeito eficaz de fazer a criança rir é acreditando na sua capacidade de pensar as ações
apresentadas e se relacionar com elas, no seu maravilhoso mundo mágico, lugar do impossível
e apostando em sua sensibilidade para reconhecer gestos e sentimentos além da sua habilidade
para traduzi-los para seu mundo (p.44). O autor comenta ainda:
31
Pupo classifica as formas de comicidade encontrada nas peças, de acordo com as ideias de Henri Bergson
(1953) em O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Comicidade verbal, de gesto e de situação, nesta
última ela destaca as variantes repetição e quiproquó, a primeira sugerindo automatismo, mecanização em
circunstâncias que se repetem e a segunda quando o personagem conhece apenas uma versão de uma situação
ambígua, equivocando-se sobre os fatos ao redor.
95
Às vezes a criança ri nos momentos mais inesperados de um espetáculo.
Espontaneamente. Uma história deve ser bem contada. Pode ter humor, sim. Pode
ser uma peça até bem engraçada. Se for boa a peça, tudo bem, ótimo. Mas que não é
fundamental que ela ria, ah, não é mesmo! Brilho nos olhos também conta. Silêncio,
medo, interação, lágrimas, tudo isso conta. Criança é um ser humano como nós. Ou
não? Além do mais, é a coisa mais fácil fazer uma criança rir no teatro. Receita
prontíssima. Todo mundo sabe. Até a criança sabe, porque está acostumada, já
entendeu o mundo adulto melhor do que supomos e compreende que aquilo foi feito
para ela rir. E ela ri porque quer ser aprovada. Então é só botar o ator caindo toda
hora e pronto! Falar bobagem, ser bem idiota, bancar o palhaço e todos os outros
estereótipos. E se alguém, quando montou um espetáculo, antes pensa em qual jeito
é mais eficaz para a criança rir, pode mudar de profissão. (CARNEIRO NETO,
2014, p. 37-38).
A escuta da infância é o caminho a que devem seguir os dramaturgos para perceber
as especificidades e universos que provocam riso sincero e espontâneo nas crianças. Em
Dicionário do Humor infantil (1997) de Pedro Bloch, há uma catalogação de significados
ditos por crianças, nas expressões de cada palavra é possível perceber esse sentido de potência
do cômico, quando as ouvimos para traçar indícios de uma comicidade propriamente da
infância. Criança é uma pessoa que estuda para crescer, Coruja é um bicho que toma conta da
noite, Alegria é uma gargalhada pendurada na gente, Tristeza é uma coisa que dá na gente,
quando a gente não sabe onde perdeu a vontade de ri.
Já o recurso dramático Música, identificado em 95,7% das peças da amostra de Pupo
é tido como “elemento praticamente obrigatório nos textos infantis” (1991. p. 78). Em sua
emissão mais frequente estão as “letras compostas em função do texto, sem qualquer
indicação de partitura”, sendo raras (0,2%), as melodias compostas em função do texto, onde
letras e melodias já consagradas são empregadas com frequência.
Dentre as funções da música nos textos teatrais, Pupo destaca como mais frequente
aquela em que é parte da ação, caracterizando os espetáculos musicais, servindo para
apresentar personagens, por exemplo. Outras funções são: servir de plano de fundo para ação
dramática ou dança, contribuindo para formação de clima; Consagração de final feliz da
trama; Funcionar como portador de magia; Relatar ou rememorar para o público algum fato
ou acontecimento (1991. p.78-83).
A composição musical em função do texto aqui nos interessa pelo contato estreito
com a dramaturgia. Cláudia Missura, atriz da Banda Mirim/SP em Um diálogo entre texto e
música (2014) defende como identidade de criação do grupo essa simbiose entre os dois
elementos. Ela cita o caso do espetáculo Menino Teresa (2007), em que o autor Marcelo
Romagnoli e a diretora musical Tata Fernandes começam seu trabalho juntos:
O texto chegou primeiro, ainda em construção, e havia uma indicação de onde
haveria música [...] A composição musical surgiu pela sugestão do autor, em temas
de cenas como: cueca, boné, sapato etc. E Tata inspirou-se nesses temas colaborando
com a dramaturgia, ou seja, a história é contada tanto pelo texto que vem do autor
96
quanto pelo texto da canção [...] onde música é texto e texto é música, e tudo é
dramaturgia. (MISSURA 2014. p.24-25).
Há nesta simbiose entre texto e música, atores e músicos em cena, um procedimento
próprio que opera sobre o sensível e o sublime. Através da música como texto, a Banda Mirim
propõe construções simbólicas que permitem a criação de sentidos e comunicação com
público-criança sobre qualquer tema. “O próprio som gera movimento, é parte da
comunicação emocional” CABRAL. 2016. p. 79). É desse contato estreito através do som,
que as crianças deixam-se absorver pela música, como verdadeiras experimentadoras-
cientistas do mundo que são.
4.3 Representatividade
Esta palavra, aqui incluída para refletir sobre dramaturgia, foi motivo de muitos
apontamentos e questões levantadas pela turma em que todos concordaram sobre a ausência
de representatividade no teatro para crianças, sendo pouquíssimas as iniciativas de
representação de grupos sócio e historicamente marginalizados.
Vimos anteriormente que as dramaturgias carecem de conflito principal delineado,
menos ainda são as que apresentam conflito interno nos personagens. Segundo Pupo (1991)
isso denota “o quanto a dinâmica da vida psíquica das personagens é pouco considerada, em
proveito de um relevo maior atribuído à ação exterior” (PUPO, 1991. p.60).
Não só a representatividade está ausente em personagens vazios, como também
qualquer informação que torne o personagem profundo em sua identidade, especificidade e
questões inerentes às suas características. Pupo tem uma vasta observação sobre a
representação dos personagens em sua mostra de dramaturgias, nos servindo para entender
historicamente porque ainda hoje não há espetáculos representativos de certos setores sociais.
Na maioria das peças, o modelo feminino está sempre associado à vida doméstica, do
contrário, estão em ocupações de pouco prestígio. As personagens femininas analisadas são
numericamente inferiores aos masculinos (50,5% das personagens são masculinos e 32,9%
feminino), assim também no protagonismo (41,5% masculinos, 31,4% feminino), onde a
imagem feminina é veiculada à dependência e improdutividade (PUPO, 1991. p.113-114).
Sendo a brancura considerada como tácita, personagens de cor negra (0,7%) na
amostra são quase sempre representados como oriundos de natureza diferente da natureza
humana, frequentemente nomeados através da cor-etnia relacionados a personalidades
negativas, “associando a cor negra ao mal na dramaturgia infantil”. Já os indígenas, quase
97
ausentes de representação (0,5%), quando aparecem são identificados “através dos
estereótipos culturais mundialmente disseminados pelo cinema americano” (PUPO, 1991.
p.118-119). Segundo a pesquisadora:
Ao não enfocar as condições de existência que diferenciam a infância em nossa
sociedade e ao discriminar a mulher e o indivíduo não branco, a dramaturgia infantil
acaba servindo à manutenção de privilégios de ordem social, transmitindo assim
uma visão de mundo basicamente conformista (PUPO, 1991. p.129).
Em outras palavras, as precárias construções de personagens não só negligencia os
parâmetros dramáticos básicos como reforça estereótipos, padrões impostos e preconceitos,
proporcionando um desserviço cultural às crianças. Por outro lado, atualmente no teatro para
crianças temos algumas notáveis produções (longe do ideal) que vem corajosamente
proporcionando diversidade nas representações.
Para citar algumas, Ombela – a origem das chuvas (2019) do livro de Ondjaki,
adaptado por Mariana Jaspe e Ricardo Gomes para o teatro, trás uma menina africana, deusa
das chuvas como protagonista, em uma jornada sobre entender suas emoções. Em Nanã
(2019), peça com autoria de Gabriela Reis e Paulo Rhasta, a protagonista cuja peça leva seu
nome, conduz seu irmão e tia ao mundo dos Orixás, levantando questões sobre ancestralidade
e respeito às religiosidades.
4.4 Disney | Frozen | Contos | Fadas
Dentre as problemáticas que enfrenta a dramaturgia para crianças, certamente a
apropriação de roteiros e personagens clássicos da literatura torna-se um dos mais visíveis.
Entre captações de modismos e desenhos animados, apresentados como um pseudo teatro às
crianças impera a adaptação dos clássicos, seja da literatura brasileira ou internacional, onde é
comum nas tramas brotarem Chapeuzinhos Vermelhos, Sininhos ou Emílias.
Nazareth (2012, p.79) afirma que essas adaptações dos clássicos acabam deixando de
lado a essência da história que as fez atravessar anos como “narrativas fundantes, mitos que se
tornam contos populares transmitidos por meio da tradição oral”. Ainda segundo o autor:
E o que acontece é que os adaptadores normalmente pegam a tênue trama desses
contos e se importam apenas com ela, modificando-a, “atualizando-a” de modo
absurdo, onde celulares, shoppings, Hebes Camargos e Xuxas geralmente estão
presentes. O sumo, o suco, a essência, o mítico é deixado de lado, talvez porque nem
saibam da existência desse lado, talvez porque não estudam, não pesquisem aquilo
que vão adaptar (NAZARETH, 2012 p. 79).
98
Para ilustrar tal questão, trago o espetáculo Pãozinho com Ovo - o sequestro do riso
(2017) da Santa Ignorância Cia de Artes/MA32
. Com texto de Bruno Magno, a comédia se
propõe uma adaptação da comédia adulta Pão com Ovo (2011) em cartaz há quase dez anos,
com sucesso de público no Maranhão e também nas cidades dos outros mais de cinco estados
que passou, como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.
No roteiro da peça, a personagem da comédia adulta Clarisse aparece fantasiada de
Xuxa e é logo descoberta pelos outros, que neste momento recebem uma visita que os castiga
a ficar sem rir a menos que cumpram uma missão. Na jornada dos três protagonistas (Mesmos
personagens da comédia adulta: Clarisse, Dijé e Zé Maria) para restaurar o riso, aparições de
personagens conhecidos compilados em números musicais, dentre eles: Mestre dos Magos, da
série de animação Caverna do Dragão; Visconde de Sabugosa, do Sítio do Pica-pau Amarelo
e Elsa, da animação Frozen.
Em texto de sinopse33
divulgado para veículos de comunicação, expressões como
“aventura hilária e didática” e “painel de grandes sucessos infantis de várias gerações”
demonstra o quanto o uso desses personagens consagrados e das animações recentes tem sido
capturados para atrair público.
No geral, essas adaptações dos clássicos ou o mero uso de seus personagens
comprova o descompromisso dos fazedores de teatro com a produção para infância,
recorrendo a alternativas fáceis de roteiros que servem justamente para seus fins
mercadológicos, uma vez que, crianças são atraídas pelos seus personagens preferidos do
cinema e adultos pelos personagens de suas infâncias.
4.5 Por uma redescoberta da Dramaturgia para infância.
Os pontos discutidos até aqui, motivados pelos questionamentos dos alunos da UFRJ,
são uma tentativa de refletir a Dramaturgia para crianças. Algumas palavras não estão
explicitamente no texto, embora estejam nas entrelinhas dos temas. Foram deixadas para
outro momento, palavras cujas (?) questões se aproximam mais da encenação do que da
dramaturgia, assim também, outras que demandam mais tempo para aprofundamento, pois
32
A cia fundada em 1997 atua sobretudo sob direção colaborativa, tendo conquistado ao longo desses anos,
prêmios importantes como o Prêmio Microprojetos Amazônia Legal, Prêmio Klauss Vianna de Dança, Prêmio
Festivais da Caixa e Prêmio Myriam Muniz. No repertório do grupo destaca-se O Miolo da Estória (2010) de
texto e encenação de Lauande Aires. 33
A sinopse do espetáculo Pãozinho com Ovo pode ser encontrada em vários veículos de comunicação em que a
peça esteve em cartaz, o trecho aqui usado foi retirado do portal do imirante.com que pode ser acessado em:
https://imirante.com/namira/sao-luis/noticias/2018/08/13/paozinho-com-ovo-o-sequestro-do-riso-tem-nova-
temporada.shtml (acesso em janeiro de 2020).
99
como disse, este é apenas um lampejo sobre este tema que como percebemos é um campo
minado de problemáticas.
Muito do que abordamos até aqui foi observado por Carlos Augusto Nazareth,
fundador do Centro de Pesquisa e Estudo do Teatro Infantil (CEPETIN), citado várias vezes
neste escrito. O dramaturgo em suas pesquisas mostra pouca mudança comparado ao cenário
exposto por pela Profª Maria Lúcia de S. B. Pupo (1991) sobre a década de 1970. Ele revela, o
estabelecimento de um conjunto de procedimentos próprios de um “teatrinho infantil”
chamado por ele “Estética perversa do teatro infantil”. segundo ele:
Essa estética perversa, a inércia do público, a visão apenas mercantilista de alguns a
ausência e negação da crítica especializada a falta de espaço de discussão, de
patrocínios públicos e privados, vão aos poucos transformando o teatro infantil num
dragão de sete cabeças, tornando-o um fenômeno, por vezes, incompreensível
(NAZARETH, 2012, p. 75).
Os procedimentos da estética perversa são justamente os discutidos aqui, o
moralismo professoral, a falta de parâmetro dramatúrgico mínimo, a limitação de temáticas, a
comicidade mal empregada, os personagens esvaziados, a adaptação superficial… Nazareth
(2012) afirma ainda:
Os melhores teatros acolhem em sua programação muitos espetáculos construídos
dentro da estética perversa. Os shoppings são mestres em exibir espetáculos feitos
sob a égide da estética Disney, piorada. O que importa é receber o mínimo e não
deixar furo em sua pauta, pois os próprios programadores pouco estão interessados
em avaliar o que está em cartaz. Um projeto é um enigma difícil de ser decifrado
mesmo para os profissionais mais experientes O que norteia essa decisão
normalmente é a qualidade gráfica do projeto. É a estética do projeto que é avaliada,
não a estética do espetáculo (NAZARETH, 2012. p. 77).
Na amplitude de problemáticas enfrentadas pelo teatro para crianças, o autor sugere
que a saída desta estética seja possível somente através da participação de muitos setores
envolvidos nessas questões, tais como responsáveis, escola, casas de espetáculos,
patrocinadores e mídia. Do contrário, estaremos perpetuando o distanciamento das crianças
das experiências artísticas verdadeiras.
Aos dramaturgos e dramaturgas, deve haver o abandono do moralismo e do teatro
educativo em sobreposição ao artístico, através da abertura de espaços para pesquisa e
reflexão. Na escrita está a produção de discurso e conteúdo, como afirma o dramaturgo “Essa
falta do que dizer estabelece o primeiro e mais grave preceito dessa estética perversa - o vazio
sobre o que dizer”(2012, p.79). Nazareth afirma ainda:
Assim, surge o espaço de se questionar, discutir, e rediscutir a questão do teatro, da
arte e sua relação com o mundo hoje, com a criança, com a escola Discutir,
questionar e conseguir dentro dessa democrática pluralidade valorizar o que há de
melhor e tentar oferecer isso a esse público que precisa ser tão bem cuidado. Esses
100
seres em formação que necessitam da arte cotidianamente em suas vidas – e não só
do teatro – mas de toda forma de expressão artística (NAZARETH, 2012, p.115).
Desses espaços de questionar, a abertura de processos de criação é fundamental. O
teatro para crianças carece de diários de pesquisas de suas montagens, conversas, encontros,
publicações acadêmicas, pesquisas e espaços de discussão nas universidades e outras
instituições que produzem e refletem sobre arte.
Não podemos deixar de falar, mesmo que superficialmente, já que estamos falando
de Dramaturgia para infância, sobre publicação editorial pois, sabemos que a história do teatro
para infância acompanha a história de suas publicações. Há uma não visualização da
dramaturgia para crianças como entidade autônoma literária que pode ser criada como objeto
de arte independente de uma mediação pelo adulto, afinal, “ler o texto de teatro é uma
operação que se basta a si mesma” (RYNGAERT, 1996, p. 25), tem sua concretude também
no leitor e não só na cena.
O Profº Flúvio Flores e Profº Fabiano Grazioli, docentes da Universidade Federal do
Vale do São Francisco (UNIVASF) e da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões (URI), respectivamente, trazem o caso do romancista Figueiredo Pimentel, nos
lembrando da publicação de Teatrinho Infantil (1897) um compilado de dramaturgias, os
professores afirmam:
Saber que o Teatrinho infantil de Pimentel atingiu no mínimo a sexta edição em
plena década de 1890 numa cidade com apenas 50% de pessoas alfabetizadas e que
na época contava com uma classe média de número reduzido é algo que nos
impulsiona a acreditar que o mercado editorial pode e deve investir na publicação de
dramaturgia para a infância. (GRAZIOLI; FLORES, 2019. p.11).
Tão importante quanto publicações de dramaturgias para infância, são as publicações
que propiciem reflexão e difusão das pesquisas no campo, e por isso a recente publicação da
Revista Leia Escola (UFCG) se torna tão oportuna, sob organização dos Prof Flúvio Flores e
Fabiano Grazioli citados anteriormente. Com edição especificamente sobre Dramaturgia para
Infância, a revista lança a público novas pesquisas e práticas brasileiras, um verdadeiro espaço
de diálogo sobre o tema.
Além da pesquisa dos professores citados, a partir da publicação do primeiro livro de
teatro infantil no Brasil, refletindo o lugar da dramaturgia para crianças na literatura brasileira,
temos dossiês de experiências abordando Dramaturgia Coletiva para Infância, Questões de
Gênero e Juventude, Performatividade e leitura dramática de textos infantis para sala de aula,
para citar alguns.
Ainda na Revista, o Profº Lucas de C. Larcher Pinto da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES) compartilha os andamentos de sua pesquisa em montagens de peças
101
para crianças em que os livros de literatura infanto-juvenil atuam como estímulos e/ou
disparadores na criação dramatúrgica, segundo o autor:
Trata-se de compreender os livros não como suportes em que estão contidas
histórias, expressas por meio do texto verbal, a serem transformadas em texto –
épico ou dramático – teatral escrito e oralizado; mas sim, como elemento capaz de
estimular, disparar e direcionar a criação de uma obra teatral a partir de diferentes
linguagens, por vezes, indissociáveis: verbal e/ou não-verbal... ou (palavras,)
imagens e design (PINTO, 2019. p.84).
A pesquisa em andamento no doutorado do Prof. Lucas Larcher nos oferece pistas
tanto no pensar a literatura infanto juvenil nos palcos, numa perspectiva diferente da que
abordei anteriormente sobre as adaptações de clássicos, como me leva a crer numa abordagem
diferente sobre as publicações de dramaturgia, assunto que falávamos carecer de atenção e
visualização de potencialidade.
Lucas Larcher (2019), ao mencionar livros ilustrados e livros-imagens34
como
disparadores e estimuladores de possibilidades dramatúrgicas, ecoa sobre a materialidade das
dramaturgias publicadas para infância, a ausência de visualização dessas publicações como
livros-objeto de arte, que tanto explorem formatos quanto se endereçam, não a atores adultos,
mas às crianças.
É possível perceber, através de reflexões como essa, que a dramaturgia para infância
está para ser redescoberta. Pensar nesta redescoberta é projetar um futuro em que sejam
promovidos espaços de discussão e crítica, e com a mesma prioridade, espaços para pensar
publicações, afinal elas possibilitam a difusão de enredos novos, e o acesso dos mesmos às
crianças, professores (as), responsáveis e fazedores de teatro. Contudo, nesta redescoberta da
dramaturgia para infância, o que acontece quando nos desprendemos das barreiras do teatro
educativo simplista às crianças? Precisar essa resposta é tão imprevisto quanto se perguntar se
no futuro mais crianças terão acesso à cultura.
Porém, os primeiros passos para se pensar no teatro que fuja do moralismo
professoral em detrimento da experiência estética seja, em primeiro lugar estar sob a luz dos
fundamentos do próprio teatro, no seu rigor de construção e pesquisa, deve-se eliminar a ideia
de que fazer teatro para crianças seja mais fácil. Contribuindo para este pensamento, o
dramaturgo Marcelo Romagnoli (2014) afirma:
A linguagem do teatro infantil é a mesma do teatro adulto? Os temas que interessam
à criança são os mesmos que interessam ao adulto? Claro que não. Entretanto, o
teatro para crianças é composto pelos mesmos elementos do que aquele feito para
34
A partir da autora Sophia Van der Linden, em Para ler o livro ilustrado (2006), o autor conceitua livros
ilustrados como obras em que a imagem é especialmente preponderante em relação ao texto e narrativa se faz de
maneira articulada entre texto e imagens. Já os livros-imagem são uma subcategoria dos livros ilustrados, em
que não há a presença de palavras, sendo a história contada exclusivamente por meio da linguagem visual
(PINTO, 2019. p.83).
102
adultos. Sua estrutura narrativa, as técnicas dramatúrgicas, a representação, enfim,
tudo o que caracteriza um bom espetáculo deve estar lá, em cena. (ROMAGNOLI,
2014. p.28).
Em segundo lugar, deve-se apostar numa efetiva aproximação da infância, como
categoria social e por consequência aproximar-se da criança como “alguém profundamente
enraizada em um tempo e um espaço, alguém que interage com estas categorias, que
influencia o meio onde vive e é influenciado por ele (PERROTTI, 1984. p.12).
Nazareth (2012, p.85) afirma que há “uma visão múltipla e difusa e por vezes
paradoxal de „infância‟ e de „criança‟” justamente por essas visões partirem de diversas
raízes, tais sejam estágios de desenvolvimento biológico ou por aspectos sociais, econômicos,
culturais, conceitos cristalizados ou internalizados, e ainda sim, não se pode definir fixamente
o que seja a infância ou a criança.
Justamente por isso, definir uma linguagem da criança é desumaniza-la, como faz-se
no teatro que obedecem à estética perversa. Se no teatro para adultos existem incontáveis
formas e vertentes é porque reconhece-se suas individualidades, personalidades, aspectos e
gosto próprios. Já as crianças reduzidas à generalidades, onde todas gostam de doces, risadas,
heróis e princesas, destitui-se assim a criança de personalidade e individualidade, reduzidas a
gostarem da mesma coisa toda uma categoria de indivíduos.
Muitos autores ao falar de infância e linguagem teatral, levantam a etimologia desta
palavra para relacionar com histórico displicente visto no segmento, já que a origem no latim
infantia do verbo fari que significa falar, onde fan significa falante e in constitui a negação do
verbo, sendo infante aquele que não fala. E realmente não ter voz e vez, diz muito sobre as
escolhas das crianças no teatro.
Capturamos a questão da linguagem como aquilo que nos separa, infância e idade
adulta. No entanto, criança, do latim creantia, relaciona-se à criação, creare, produzir, erguer
nos levando à criatividade. Ao pensar linguagem e infância diz Giorgio Agamben (2015,
p.63) “o inefável é, na realidade, infância”, pois segundo o autor o que faz de nós sujeitos da
linguagem é a existência da experiência, é termos infância.
Desta forma, aproximar-se da infância que falo aqui, como passo na redescoberta de
um teatro para crianças e jovens, é despir-se da infância como aquela sem fala e de
importância menor, para entender um movimento-infância, em que criança é aquela que ao
nascer está para seu tempo presente ao mesmo tempo que não está. Não é somente projeto de
vida mas um ser em si mesmo, e por isso criadora, construtora e principalmente, dotada da
capacidade de experiência, é justamente a criança aquela que vê o mundo inaugurado aos seus
olhos.
103
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este escrito que chega até sua leitura é a paragem de um pensamento que permanece
em fluxo, em movimento. Dessa forma, assumo a probabilidade das questões levantadas até
aqui serem inesgotáveis, assim como as criações que aqui se iniciaram. Esta pesquisa partiu
da investigação sobre procedimentos de escrita a partir dos sujeitos e nela modos de fazer e
pensar foram expostos. Percebemos que há uma crescente busca por entender a obra em
processo de construção, certamente esta questão não está ligada ao período histórico
contemporâneo, mas, sem dúvida, as mídias digitais possibilitaram uma aceleração das
conexões.
Assim, tem sido cada vez mais comum que obras tenham sido criadas, compartilhando
simultaneamente o processo de sua feitura em blogs, como é o caso da atriz Janaina Leite “em
que ela reflete sobre sua relação com material bruto coletado nas conversas com seu pai;
discute procedimentos de criação para fazer do processo o próprio exercício cênico; fala da
insatisfação diante de suas próprias avaliações [...]; da angústia" (SALLES, 2017. P74). E
também compartilhamento de cadernos de pesquisa, como o da Banda Mirim, com revista
inteira dedicada a expor as materialidades e percursos para construção do espetáculo Buda
(2017).
Contudo, a maneira de comunicação desses processos ainda é território pouco
explorado. As ferramentas da Genética teatral permitiram nesta pesquisa uma tentativa de
elaboração de meios para entender a construção de procedimentos de escrita, que acontece
sobretudo no campo relacional e situado.
Pensar na opacidade dos processos diante da criação, propõe distanciamentos entre a
obra e a genialidade de seus criadores e aproxima da construção, da pesquisa, expondo assim
a imprevisibilidade, a interação entre sujeitos, o inacabamento e, como afirma Salles, a
“dessacralização dessa [a obra] como final e única forma possível”(2006, p.21).
Retorno ao conceito de criação em rede de interações, dialogado nesta pesquisa
principalmente com a autora Cecília Salles. É percebido nos procedimentos aqui expostos,
uma experiência situada nos sujeitos envolvidos, sendo observado desde as influências de
aspectos do Grupo Cena aberta, até o exemplo da escolha do conto em acordo com as
temáticas que o grupo já trabalha, a trajetória de lida com o texto nas montagens e
metodologia de relação com os atores nas criações.
Assim também, minha participação como dramaturgista, em que aproveito minhas
práticas artísticas como disparadoras de procedimentos, como foi o caso do uso de elementos
104
do circo como malabares e jogos de palhaçaria. Para Cecília Salles (2017) os processos de
criação também são percursos de constituição da subjetividade, “esses sujeitos em criação
agem em meio à multiplicidade de interações, inseridos em suas redes culturais, encontrando
modos de manifestações de sua singularidade em sensações: suas dores, seus amores…”
(p.45-46).
Nesta prática situada também em um tempo e espaço, o fato dos procedimentos terem
foco na criação de si, evidenciam uma articulação dos processos de subjetivação. Traçar
intersubjetividades concentradas em operações de um teatro autobiográfico aponta para uma
prática decolonial contida na ideia do indivíduo em prol de um corpo comum, feito de
territórios em disputa e de sua singularidade.
Diante destes argumentos, como pensar autoria nos agenciamentos que se dão em
coletivo? Segundo Salles, “a multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento
do sujeito; ao mesmo tempo, o próprio sujeito é múltiplo”, logo há uma falta de sentido em
“localizar a criatividade no sujeito, que é, na realidade, constituído e situado” (2006, p.151).
Ainda segundo a autora:
Surge, assim, um conceito de autoria, exatamente nessa interação entre o artista e os
outros. É uma autoria distinguível, porém, não separável dos diálogos com o outro;
não se trata de uma autoria fechada em um sujeito, mas não deixa de haver espaço
de distinção. Sob esse ponto de vista, a autoria se estabelece nas relações, ou seja,
nas interações que sustentam a rede, que vai se construindo ao longo do processo de
criação (SALLES, 2006, p. 152).
O conceito de autoria em rede, proposto por Salles evoca um descentramento do
sujeito nas criações e encontra eco nas palavras do filósofo e teórico da arte Boris Groys
(2015) sobre "Autoria Múltipla": "Hoje em dia, um autor é alguém, que seleciona, que
autoriza. Desde Duchamp, o autor tornou-se um curador. O artista é, antes de tudo, curador de
si mesmo, porque seleciona sua própria arte. E também seleciona outros: outros objetos,
outros artistas" (p. 120).
A partir do pensamento de Groys sobre a seleção e autorização como tarefas do autor-
curador localizo, como já foi explicitado em muitos momentos nesta pesquisa, a prática do
dramaturgista como metodologia de operação da autoria em rede. Nela,
o dramaturg não o faz a partir da posição de um autor ou criador da obra, dirigindo o
desenvolvimento da criação (em diálogo com os outros) de acordo com a sua
escolha. Em vez disso, o dramaturg relaciona-se com todos esses aspectos e as
relações entre eles, como aspectos da criação de outra pessoa. (BLEEKER apud
GONÇALVEZ JUNIOR, 2017. p.135).
Neste sentido, a prática da dramaturgista está presente desde os estudos iniciais da
pesquisa, perpassando tanto a experiência com os atores como com os alunos diretores até a
105
crítica do processo que se deu nesta dissertação. Ela faz com que a “dimensão crítica do papel
do dramaturgista tenha de fundo esse préstimo como enfoque central de sua atividade ao
provocar e questionar a pesquisa artística, expondo assim sua face criativa”(GONÇALVES
JUNIOR, 2017 . p.138).
Não menos importante, percebemos de maneira prática que os procedimentos de
escrita resultantes desta pesquisa estão localizados na criação dramatúrgica para infância, que,
como vimos, em nada se difere de outras criações para adultos. Este processo enfatiza meu
pensamento já aqui refletido na aposta por uma redescoberta da dramaturgia para infância,
cada vez mais longe do didatismo e mais próxima da arte e de suas verdadeiras questões.
Encerro apontando a importância do compartilhamento de experiências artísticas, não
como métodos a serem seguidos, mas como pistas de modos de escuta sobre outros contextos.
Ao desvelar nossas criações e pensamentos, estamos propondo um movimento dialógico entre
artistas e público, entre artistas e outros artistas, cujas maneiras de registros são como obras
por si mesmas. Assim também, estabelecemos novas perspectivas sobre o campo do que seja
escrevível, registrável, pois sabemos que todas as criações possuem certamente experiências
significativas que deveriam ser impedidas de caírem no esquecimento.
106
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