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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 2021. 3. 8. · Universidade Federal do Maranhão. Reconstruí a trajetória do processo criativo dramatúrgico desse espetáculo, em que

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

NECYLIA MARIA DA SILVA MONTEIRO

ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo

sobre Dramaturgia para infância.

RIO DE JANEIRO

2020

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Necylia Maria da Silva Monteiro

ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo

sobre Dramaturgia para infância.

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Artes da

Cena, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Artes da Cena.

Orientador: Profº Dr. Fernando de Souza

Gerheim.

Rio de Janeiro

2020

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Necylia Maria da Silva Monteiro

ENTRE O CHÃO E A PÁGINA: Procedimentos de Escrita, Dramaturgismo e um Lampejo

sobre Dramaturgia para infância.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Artes da Cena.

Aprovada em:

____________________________________

Prof. Dr. Fernando de Souza Gerheim, UFRJ (Orientador).

____________________________________

Prof.ª Dra. Luiza Ferreira de Souza Leite, UFRJ.

____________________________________

Prof.ª Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra, UERJ.

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À minha Avó Maria Necy Ferreira da Silva

(in memoriam) que me contava histórias.

À minha Mãe Necilma Ferreira da Silva,

minha heroína inspiradora.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Necilma Ferreira por acreditar e dar todo suporte para a minha

formação, às minhas tias Necilene Ferreira e Necinilde Ferreira por me darem apoio sempre

que preciso e serem também minhas mães, à toda minha família pelo apoio e compreensão da

minha ausência por conta dos sonhos que me fazem migrar. Agradeço aos meus professores

da Universidade Federal do Maranhão por toda contribuição mesmo após a graduação, em

especial Dra. Michelle Cabral, Mestre Luís Roberto de Souza e Dra. Fernanda Areias de

Oliveira, meus mestres e mestras.

Agradeço ao Grupo Cena Aberta/MA por terem se aventurado nos cadernos e na

escrita comigo, em especial os que participaram dos laboratórios: Tiago Andrade, Jaqueline

Lince, Larissa Ferreira, Jairiane Muniz, Fernanda Marques, Thamyres Nascimento, Victor

Silper e a dramaturga argentina Nádia Ethel, pela amizade e contribuições. Agradeço ao

Centro de Artes Cênicas do Estado do Maranhão e ao Casarão Ângelus Novus pela abertura

de espaço para as atividades da pesquisa.

Aos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro que contribuíram direta ou

indiretamente para esta pesquisa, cito a Dra. Luiza Leite, Dra. Adriana Schneider Alcure,

Dra. Maria Teresa Bastos, Dra. Carmem Gadelha, Dr. André Marques e ao meu orientador

Dr. Fernando Gerheim pela parceria nesses dois anos. Agradeço à Dra. Jacyan Castilho pela

abertura de sua sala de aula no curso de direção Teatral na disciplina Dramaturgia VII em que

pude ministrar oficina da pesquisa no estágio docência, esta experiência foi de enorme

aprendizado, agradeço igualmente aos alunos (turma 2019.2) da disciplina, por suas mentes

criativas e prontidão nas proposições.

Agradeço à minha turma de mestrado, pela troca de afetos que me fizeram estar entre

amiges desde minha chegada ao Rio de Janeiro. Obrigada, “mestrandinhxs”: Angélica

Menezes, Daniel Cintra, Dieymes Pechincha, Erika Neves, Gabriel Moraes, Poliana Paiva,

Ricardo Cabral, Ian Calvet, Ludmila Rosa, Pedro Emanuel e Vinicius Reis.

À Ana Paula Martins, Ana Clara Martins, Heitor Muniz e Lígia da Cruz por serem

minha família no Rio de janeiro. À Thaynara Cardoso, minha companheira de vida, por todo

apoio amoroso e paciente de sempre, e também pela ajuda com a edição de imagens deste

trabalho. Agradeço à FAPEMA pelo incentivo e financiamento desta pesquisa, sem a qual

não seria possível minha permanência no Rio de Janeiro, em meio aos ataques à educação,

esta instituição vem corajosamente sendo um respiro na inovação e pesquisa no Brasil.

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“Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido

único, de certo modo teológico (que seria a «mensagem» do Autor-Deus), mas um espaço de

dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é

original: o texto é um tecido de citações, saldas dos mil focos da cultura”.

Roland Barthes

“ Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando”

Gonzaguinha

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RESUMO

MONTEIRO. Necylia Maria da Silva. Entre o chão e a página: Procedimentos de Escrita,

Dramaturgismo e um Lampejo sobre Dramaturgia para infância. Rio de Janeiro, 2020.

Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

Nesta pesquisa em artes é apresentada a reflexão teórica de procedimentos de escrita para

criação dramatúrgica, realizada em vivências com atores e atrizes do Grupo de Pesquisa

Teatral Cena Aberta/MA e um grupo de discentes em Direção Teatral da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, numa criação inserida no segmento da Dramaturgia para infância.

A trajetória da pesquisa é exposta através de recursos da Genética Teatral e sob a luz da

prática do dramaturgista, em que os processos são evidenciados na exposição das

materialidades, isto é, cadernos, diários, cartas e manuscritos. A pesquisa resulta numa

reflexão através da prática sobre modos de fazer na escrita para a cena.

.

Palavras Chave: Dramaturgista; Procedimentos de escrita; Dramaturgia para infância.

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ABSTRACT

MONTEIRO. Necylia Maria da Silva. Entre o chão e a página: Procedimentos de Escrita,

Dramaturgismo e um Lampejo sobre Dramaturgia para infância. Rio de Janeiro, 2020.

Dissertação (Mestrado em Artes da Cena)- Escola de Comunicação, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.

This research in arts presents the theoretical reflection of writing procedures for

dramaturgical creation, carried out in experiences with actors and actresses from the Cena

Aberta Theater Research Group / MA and a group of students in Theater Direction from the

Federal University of Rio de Janeiro, in a creation inserted in the segment of drama for

children. A research trajectory is exposed through the resources of Theater Genetics and in

the light of dramaturgist practice, in which the processes are evidenced in the exhibition of

material, that is, notebooks, notes, letters and manuscripts. The research results in a reflection

on the practice on the ways of writing in the scene.

.

Keywords: Dramaturg; Writing procedures; Children's dramaturgy

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa Caderno de pesquisa 1

Figura 2 – Personagem Coelho, ator Alysson Ericeira 23

Figura 3 – Pedro quando criança 33

Figura 4 – Necylia quando criança 33

Figura 5 – Envelope de Carta de Tiago digitalizada 38

Figura 6 – Carta de Tiago página 1 39

Figura 7 – Carta de Tiago página 2 40

Figura 8 – Foto reprodução do caderno de pesquisa, pontos sobre o manuscrito 42

Figura 9 – Manuscrito A cor de Deus página 1 43

Figura 10 – Manuscrito A cor de Deus página 2 44

Figura 11 – Manuscrito A cor de Deus página 3 45

Figura 12 – Manuscrito A cor de Deus página 4 46

Figura 13 – Manuscrito A cor de Deus página 5 47

Figura 14 – Manuscrito A cor de Deus página 6 48

Figura 15 – Quadro de itinerário da pesquisa 49

Figura 16 – Foto de quadro fixado à parede 50

Figura 17 – fac-símile caminhos a seguir na sala de ensaio 52

Figura 18 – Capa e contracapa 1 56

Figura 19 – Capa e Contracapa 2 56

Figura 20 – Caderno 1, exercício escrita com objetos 59

Figura 21 – Caderno 2, exercício escrita com objetos 59

Figura 22. – Exercício 3 60

Figura 23 – Exercício 3 60

Figura 24 – Cadernos 1 e 2 com exercício 6 62

Figura 25 – Cadernos com exercício 7 63

Figura 26 – Cadernos com exercício 8 65

Figura 27 – Caderno com exercício 9 66

Figura 28 – Caderno com exercício 10 68

Figura 29 – Caderno com planta baixa e descrição da cidade da bobeira 70

Figura 30 – Caderno com cidade da bobeira 71

Figura 31. Encontro na Praça dos Catraieiros - São Luís/MA 73

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Figura 32 – Cadernos com idas à praia 74

Figura 33 – Persona-Cidade 76

Figura 34 – Carta da Dramaturga Nádia Ethel 77

Figura 35 – Carta da Dramaturga Nádia Ethel, página 2 78

Figura 36 – Exercício com cartões postais 80

Figura 37 – Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos 82

Figura 38 – Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos 82

Figura 39 – Cena de debate para prefeito da cidade da bobeira 83

Figura 40 – À esquerda rascunho da cidade da bobeira, à direita planta baixa definitiva 84

Figura 41 – Quadro de palavras chave sobre teatro para crianças 88

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 14

2. MOVIMENTOS ANTES DA SALA DE ENSAIO 19

2.1 Primeiro movimento: O dramaturgismo 20

2.2 Segundo movimento: O grupo Cena Aberta 28

2.3 Terceiro movimento: Escrita em performação 31

2.4 Quarto movimento: Os caminhos a partir do conto 40

3. ENTRE O CHÃO E A PÁGINA 54

3.1 Na ilha 55

3.2 No continente. 79

4. UM LAMPEJO SOBRE DRAMATURGIA PARA INFÂNCIA 87

4.1 Educação | Escola | Arte Educação 99

4.2 Ludicidade | Lúdico | Diversão | Alegria | Música 93

4.3 Representatividade 96

4.4 Disney | Frozen | Contos | Fadas 97

4.5 Por uma redescoberta da dramaturgia para infância 99

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 103

REFERÊNCIAS 106

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1. INTRODUÇÃO

Um mapa de migração movida pela escrita.

Em 2013, na Universidade Federal do Maranhão, meus primeiros textos para o teatro,

começam a ser encenados, a exemplo de Cecília e os 40 fantasmas (2013), A Grande Batalha

dos Livros (2014) e Cartas à minha Filha (2015). Nestas experiências, já era evidente meu

máximo interesse na escrita para o teatro e as relações de quem escreve inserido no grupo

teatral.

Em 2015, estreia Aventura do Lobo1, espetáculo que teve cerca de dez apresentações

para crianças e jovens de escolas públicas e particulares em São Luís do Maranhão. Foi a

experiência em que mais me desbravei na escrita dramatúrgica e no pensamento do teatro

para crianças que fosse a contra maré das produções locais.

Me transporto a lembranças daquelas apresentações no Teatro Arthur Azevedo2, em

que, da cabine de iluminação, eu assistia atenciosa as reações das crianças. Nesse universo

que brincava com cidade e campo, animais urbanos e antropomórficos, uma banda de rock e

composições autorais, eu me questionava sobre os limites entre personagem e ator, quando

percebia que em Aventura do Lobo a composição dos personagens era guiada pelas

personalidades de cada ator ou atriz.

Foi nesse sentido, que tracei minha pesquisa monográfica, em Teatro Licenciatura, na

Universidade Federal do Maranhão. Reconstruí a trajetória do processo criativo dramatúrgico

desse espetáculo, em que o texto estava tanto imbricado na encenação quanto inserido na

experiência em grupo e lapidado para os corpos dos sujeitos.

Ao traçar identidades, identificar recursos dramáticos e eixos de análise no processo

criativo do texto no espetáculo Aventura do Lobo, pude perceber os indícios de um escrito

performativo, sua composição dava-se quando o ator se mostrava com sua subjetividade,

narrativas e características físicas. Todo esse material se alinhavava na sala de ensaio. Escrita

e reescrita se atualizavam e se moldavam ao jogo dos atores, sobressaindo um texto aberto e

1 Aventura do Lobo é uma produção da Cia Artífice-mor em parceria com o Grupo Cena Aberta, com texto e

direção Necylia Monteiro; elenco: Tiago Andrade, Victor Silper, Fernanda Marques, Alysson Ericeira, Arison

Robert e Carla Purcina; Iluminação: Arlinda Cruz; Músicos: Lauan Pinheiro e Manoel Plácido; O espetáculo

esteve em festivais locais como a Semana do Teatro no Maranhão (Teatro Arthur Azevedo), Semana da Criança

(SESC/MA) e produções independentes como o Projeto A Escola Vai ao Teatro que contou com crianças e

jovens de escolas públicas e privadas da cidade. 2 Localizado no Centro histórico de São Luís do Maranhão, é o segundo teatro mais antigo do Brasil,

inaugurado em 1817.

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dinâmico, enquanto eu, como agente da escrita, me colocava como criadora de possibilidades

e observadora atenta ao imprevisto, ao orgânico.

Seria possível um texto teatral ser escrito sob medida para seus atores? Essa pergunta

foi meu impulso por um tempo, sua resposta já estava contida em minhas experiências com a

escrita, tanto em Aventura do Lobo, quanto nos roteiros de circo que escrevo. Os atores,

atrizes e palhaços, como sujeitos do processo, sempre estiveram no pontapé crucial das

minhas criações textuais.

Dito isso, a pergunta estruturante contida nesta pesquisa não está sob a possibilidade

de o texto ser guiado pelos sujeitos, mas como se dão essas criações, quais procedimentos são

usados para que esses sujeitos escrevam sobre si, operem criação, se mostrem e assumem-se

ante ao processo criativo.

Nesta pesquisa, a questão central se debruça sobre modos de fazer, criar e operar em

acordo com o campo das pesquisas em artes, que não vê o conhecimento separado do

pesquisador e que objetiva a compreensão da prática artística, possibilitando autonomia na

formulação das próprias perguntas e a busca por respostas “através de um processo interativo

entre exploração prática de sua artform, seu fazer artístico, e compreensão teórica do que está

em questão” (FORTIN; GOSSELIN, p.7, 2014).

Trata-se de processos e procedimentos em dramaturgia, isto é, almejo expor

experimentações criativas vivenciadas entre São Luís e Rio de Janeiro, são elas: laboratórios

de criação com o Grupo Cena Aberta/MA e oficina no estágio docência com discentes em

Direção Teatral da UFRJ na disciplina de Dramaturgia VII.

Expor procedimentos de criação demanda evidenciar as etapas e privilegiar as

materialidades geradas, como registros, diários de bordo, cadernos dos atores, filmagens e

fotografias, levando-me a crer que as ferramentas da Genética Teatral, a partir do pensamento

de Josette Féral (2015) e Almuth Grésillon (1994), é a metodologia mais apropriada por

estabelecer uma relação de exposição desses materiais. Sobre a genética se esclarece:

Seu objeto: os manuscritos literários, na medida em que comportam o vestígio de

uma dinâmica, a do texto em devir. Seu método: o desvelamento do corpo e do

curso da escrita acompanhada da construção de uma série de hipóteses sobre as

operações escriturais. Seu objetivo: a literatura como um fazer, como atividade,

como movimento (GRÉSILLON; BUDOR apud GRÉSILLON, 2013. p. 7).

O método da crítica genética, surgido na França, década de 1960, expandido do

domínio da literatura, leva em consideração todos os materiais do processo, sobretudo os

textuais, identificando as operações sistemáticas da escritura, apoiando a composição da

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narrativa da experiência para essa dissertação. Sobre a relação da genética com o processo

criativo a autora Marie-Hélène Paret (2011) Passos afirma:

A abordagem genética implica a análise da escritura em processo e não do escrito,

da textualização e não do texto, da multiplicidade das escolhas possíveis e não da

última escolha feita. Ela se detém no movimento que cria e não no que já foi criado

e editado. Ela tem um papel epifânico quando o objetivo de sua abordagem é tentar

penetrar no laboratório do escritor [...]. Espaço mítico por excelência onde a

alquimia da criação acontece, onde os estados inacessíveis do texto sucedem-se.

(PASSOS, 2011, p.26).

Em congruência a essa ideia, através das ferramentas da Genética Teatral, reúno

materialidades como cadernos, desenhos, cartas e diários, além de registros audiovisuais.

Percebo a partir deles, o devir criativo e os passos da escrita quando exponho esboços e

escolhas. Por fim, sistematizo procedimentos seja através de descrição, elaboração de

reflexão ou confecção de tabelas e outros esquemas na tentativa de comunicar o processo.

Toda essa prática metodológica suscitando as questões sobre arquivos e modos de criação em

grupo, dialogam com as ideias da autora Cecília Salles em Redes de Criação (2006),

Processo de Criação em Grupo (2017) e Gesto Inacabado (2013).

Assumo também como metodologia neste processo, minha identidade na escrita como

dramaturgista, aquela que vê a escrita em movimento e diálogo com o coletivo, alguém que

pode assumir múltiplas funções no grupo além da escrita de peças. Como dramaturgista, me

coloco nas vivências como propositora, alguém que percebe e propõe com os sujeitos; é

também como dramaturgista que estendo meu olhar para os registros, organizando,

sistematizando e relacionando-os com teorias. Cabe ao dramaturgismo essa relação de crítica

ao processo.

Nessa jornada de experimentações, proponho o Teatro para Infância como farol, posto

que, em minha caminhada artística, aproximações com este segmento do teatro estão sempre

reverberando em minhas buscas escriturísticas. Mais que uma temática, esta exposição de

procedimentos em dramaturgia firma sua identidade na criação de textos para a infância, algo

tão pouco discutido no contexto brasileiro.

Assim, esta pesquisa visa contribuir de maneira dialógica, tanto nas discussões sobre

criação em dramaturgia, no Brasil, onde são pouquíssimas as ações formativas no campo,

como também, na questão do teatro para infância, como segmento que merece atenção no

teatro, escolas e universidades.

O título Entre o Chão e a Página é um chamamento. Perceber Chão além de

superfície do solo que pisamos, como lugar de onde se é. Obviamente no sentido de lugar

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palpável e físico, mas especialmente convido ao sentido metafórico sobre identidade, de onde

somos e onde fincamos nossas histórias, saberes situados e o aqui e agora da criação.

Página, substantivo feminino, lugar onde se registra (registro de si, da vida, de

histórias) lugar não-físico e metáfora para prática de ideias, campo do impossível. Sinônimo

para cadernos, cartas, diários e planejamentos. Entre esses dois, está o miolo da história, o

intermediário, o movimento, os meios de fazer, as formas operantes, tidas nessa pesquisa

como ponto nevrálgico.

No Corpo da dissertação, a primeira parte estabelece conexões. Refere-se à etapa

antes dos encontros com os grupos de vivências, onde partes soltas ambientam o pensar sobre

o pré-processo, a preparação. Aqui está uma dramaturgista em pensamento, em criação e

planejamento. Este prelúdio é um mergulho sobre a descoberta de caminhos para

experimentação. Chamo de Movimentos antes da sala de ensaio. Movimentos, pois não estão

fixados nem enrijecidos e sim em trânsito, em fluidez, prontos para toda alteridade que

permite a experimentação em grupo.

Na segunda parte, que leva o nome do título deste trabalho, encontra-se a narrativa das

experimentações, divididas conforme os espaços de vivência, já mencionados. Em evidência

o material levantado, mas também um olhar que organiza, sistematiza e comunica o processo,

organismo vivo.

Em Um lampejo sobre dramaturgia para infância, terceiro momento desta

caminhada, traço considerações sobre dramaturgia para infância. Estabeleço um diálogo entre

estudos como os da Prof.ª Maria Lúcia de Souza Pupo (1991), em uma importante análise de

textos teatrais na cena paulista na década de 1970, como também Carlos Augusto Nazareth

(2012) em Trama: um olhar sobre o teatro infantil ontem e hoje, além da publicação recente

da Revista acadêmica Leia Escola (2019) da UFCG, com edição exclusiva sobre Dramaturgia

para infância, reunindo as recentes experiências no Brasil e outros estudos.

É a partir da experiência, como propositora de processos criativos no Teatro para

Infância, que traço reflexões, a fim de reivindicar o lugar da dramaturgia contemporânea para

crianças, no contexto brasileiro e sua importância nos espaços de discussão e produção de

conhecimento em teatro.

Esta pesquisa também é retrato de uma migração regional. Ela me trouxe para quase

três mil quilômetros longe de casa, saída da ilha para o continente, me tornando forasteira

nesse país grande em pluralidade cultural, entre São Luís e Rio de Janeiro, com cartas,

escritas, diários e trocas criativas. As migrações nos transformam numa velocidade

assustadora e silenciosa.

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É justamente por pensar em um trabalho repleto de narrativas e experimentações

situadas, que busco a transmissão dessa experiência de pesquisa através de escrita própria que

não caia em imparcialidades. Aqui está uma escritora se colocando em primeira pessoa. Me

firmo nesta decisão como posicionamento político em que defendo a urgência da escrita

feminina em terras dramatúrgicas dominadas pelos homens e também a voz do meu fazer

artístico, avultando discussões sobre escritos de artista, como área de conhecimento e

pesquisa acadêmica.

Devo prevenir da possibilidade de minhas palavras porventura convidarem você,

leitor ou leitora, a ler em voz alta, para que talvez a oralidade nos aproxime e entoe o contar

de uma história, ação de minha identidade maranhense, que conta causos, rimas, lendas,

tradições e memórias.

Se, como afirma o filósofo Walter Benjamin, “A experiência que passa de boca em

boca é a fonte a que recorreram todos os narradores” (2012 p. 214), me faço narradora,

contando minha experiência e relatando a de outros. Acredito que ao fazer a escrita sair pela

boca, entoa-se narrativa, como neste momento em que leio em voz alta à medida que escrevo.

Sua figura, o narrador, traz consigo essa forma artesanal de comunicação.

Abertas as portas da sala de criação, acredito neste escrito certamente não como um

resultado acabado. Portanto, me resta esperar que em confrontamento com as possibilidades

de criação aqui apresentadas, seja possível que outros possam alinhavar seus próprios

pensamentos, construir seus próprios textos, quiçá trace seus próprios procedimentos, que se

façam do olhar de si, do seu chão ao se confrontar com o outro.

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2. MOVIMENTOS ANTES DA SALA DE CRIAÇÃO

Urge sobre mim, artista que se reconhece pela escrita, um pensamento em

movimento sobre processo criativo. Etapas de trabalho, estágios, trajeto, percurso, dentre

muitos nomes, em todos se perseguem rastros, esboços, indícios, rascunhos, cadernos,

escritos, lapsos de ideias em guardanapos, arquivos. Nesses lugares moram meu olhar de

pesquisadora e artista.

Ao propor a questão do conceito de criação como rede em processo, Cecília

Salles (2006) define a criação artística como marcada de uma dinamicidade que traz um

estado de inacabamento em que toda obra é suscetível a afetações do contexto, ambiente e

sujeitos, assim ela nos diz:

Uma teoria científica tem sempre incerteza de seus resultados [...] o artista também

enfrenta um processo que não permite previsão e predição, em outras palavras,

opera no universo da incerteza, da mutabilidade, da imprecisão e do inacabamento

(SALLES, 2006. p.21).

Se a obra é atestada em seu caráter de mutabilidade, o conceito de rede, que diz

sobre as relações na criação, nos propõe a exposição das mudanças ocorridas para refletir a

dialética existente entre artistas, obra e processo de criação, “entre rumo e incerteza” na

“busca de algo que está por ser descoberto” (SALLES, 2006. p.22).

No decorrer da criação onde as “tendências se cruzam com o acidental” me

interessa também, como a Cecília Salles, conhecer e refletir modos de desenvolvimento de

pensamento, para mim em especial na escrita dramatúrgica no contexto brasileiro, onde são

raros os cursos de formação em Dramaturgia3.

É perseguindo modos de feitura que “coloca-se assim em crise o conhecimento do

objeto fechado, estático e isolado” suscitando uma “dessacralização dessa (a obra) como final

e única forma possível” e por isso a importância de registros de criação, cadernos de artistas.

Ainda segundo Salles (2006):

Sob esta perspectiva, todos os registros deixados pelo artista são importantes, na

medida em que podem oferecer informações significativas sobre o ato criador. A

obra não é fruto de uma grande ideia localizada em momentos iniciais do processo,

mas está espalhada pelo percurso. Há criação em diários, anotações e rascunhos

(SALLES, 2006. p. 36).

A autora, ao falar de processos artísticos em geral, aponta para o conceito de

Criação em rede na busca de um olhar interpretativo e relacional sobre as materialidades

3 Em 2019, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS abre curso de Bacharelado em escrita

Dramatúrgica, a primeira do tipo nas universidades pública brasileiras.

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deixadas pelo artista. Ela leva em conta a condição de inacabamento, a multiplicidade de

interações, à tensão entre tendências e acasos além da lida com arquivos. Questiono os

caminhos dessa relação quando o próprio artista está criando e simultaneamente refletindo

seu processo.

Tal como a pesquisadora de criação, não me interessa neste escrito somente contar a

trajetória dessa pesquisa de mestrado, “narrar o que acontece de um gesto para outro não leva

também à compreensão do movimento” (2006. p.37), quero entender e refletir a construção

dramatúrgica, conectar experiências, formar interação de referências no campo teórico

construindo um olhar crítico que perscruta procedimentos de um pensamento em criação e

suas implicações.

Não é intenção deste escrito oferecer caminhos ou trajetos prontos. Mas, quem sabe

falar de procedimentos que reverbere em outros processos e criem essa rede de caminhos e

experiências que alimentem práticas diversas. Nesses movimentos, ainda difusos e em

tempestade de ideias, muito provavelmente se encontre mais perguntas do que respostas, mais

rotas a seguir do que trajetos traçados. Por isso optei por sistematizar o mínimo, para que em

fluência com uma obra que está prestes a ser criada se estabeleça uma relação aberta com o

desconhecido.

2.1 Primeiro Movimento: O Dramaturgismo

A escrita para o teatro, tida num conceito amplo de Dramaturgia, é como ação que

contém as principais discussões estéticas e políticas sobre o que dizer, quem dizer e como

dizer, diz Marcio de Abreu (2010, p.24) em artigo para a revista Subtexto. Frente a um

terreno estriado de procedimentos de criação que respondem às urgências do nosso tempo,

nesta pesquisa essa escrita é ponto crucial, acompanhada dos seus modos de feitura, sua

tecelagem.

Carlos Augusto Nazareth (2012. p.26), em seu olhar do espetáculo teatral como

uma tessitura, afirma que podemos tomar um texto como expressão do universo, sendo o

macrotexto, o universo composto de milhões de microtextos que interligados o estruturam e

onde os textos de arte refletiriam por mimetismo os textos da vida.

Tecido, urdidura, trama: o espetáculo é um tecido composto da urdidura e da trama

de diversas linguagens: o texto, o ator – seu corpo, sua voz, sua interpretação – a

música, a luz. Ele traz ideias e emoções tem música, plasticidade, movimento,

corporalidade (NAZARETH, 2012, p.26).

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Nesse aspecto, tratando da função do autor de peças de teatro levanto a percepção

do dramaturgo como um fiandeiro, aquele que organiza os fios no tear. Esses fios, pode-se

dizer, são as materialidades escritas, as ideias, os argumentos, as colagens e o tecido feito é o

texto final, não excluindo essa relação de alteridade frente aos outros profissionais do

processo. Pelo contrário, esse jogo é matéria importante.

Nessa perspectiva, pensar em dramaturgia contemporânea é atestar sua

pluralidade em formas híbridas, metodologias e longe de pureza de gêneros. Em Notas sobre

a Dramaturgia contemporânea, Fernandes afirma:

A diversidade da produção chega a ponto de levar um pesquisador da envergadura

de Patrice Pavis a definir o texto teatral pelo critério elocutório. Segundo o teórico

francês atualmente texto de teatro é tudo aquilo que se fala em cena. O que parece

um exagero de simplificação encontra eco no encenador americano Richard

Schechner para quem drama é tudo o que o escritor escreve para a cena e se opõe a

script, o roteiro que serve como mapa de uma determinada produção

(FERNANDES 2010, p.153).

A autora nos alerta sobre a observação de que “uma das principais tarefas do

estudioso do texto teatral contemporâneo seja distinguir seu objeto”. É neste cenário, onde o

texto desafia qualquer padronização ou corrente, que busco uma identidade na escrita para o

teatro em sentido dialógico com a sua prática. Como pensar num agente da escrita em

movimento constante com o coletivo teatral na criação?

Atenho-me aos estudos de Fátima Saadi4 que tratam da função de dramaturg ou

dramaturgista, termo que etimologicamente significa poeta da cena. Sua função varia

conforme as demandas da criação e relação com a equipe, suas atividades em longo prazo

mostram possibilidades de aspecto multidisciplinar e transitório uma vez que “afirma-se que

um dramaturg acaba sempre por encontrar seu próprio destino vindo a realizar-se como

diretor, autor dramático ou crítico teatral”. Sobre suas diversas funções, a dramaturgista diz:

As tarefas do dramaturgista são múltiplas. Entre elas, eu listaria: colaborar no

delineamento do projeto artístico do grupo e na sua difusão; participar da escolha do

repertório; ler e comentar peças que sejam enviadas para apreciação; traduzir, criar

ou adaptar textos ou materiais que sirvam de base para o espetáculo; trabalhar,

juntamente com o encenador, na criação do conceito dos espetáculos, oferecer o

material de pesquisa necessário à montagem; acompanhar os ensaios para comentar

o desdobramento cênico da proposta durante sua concretização; elaborar o

programa do espetáculo e demais publicações do grupo; organizar debates com o

público; realizar o registro das atividades da trupe. (SAADI, 2013)

Os estudos da dramaturgista Fátima Saadi e seu compartilhar de experiências me

leva a ver a posição de um(a) autor(a) em movimento, não obrigando mais a dramaturgia ao

4Fátima Saadi é tradutora e dramaturgista da companhia carioca Teatro do Pequeno Gesto, no âmbito da qual

edita a revista Folhetim e a coleção Folhetim/Ensaios.(fonte Revista online Questão de crítica disponível em <

http://www.questaodecritica.com.br/author/ftima-saadi/>.

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ideário do romantismo, sob a escrita de gabinete. Certamente esta operação não é recente nem

novidade no campo da dramaturgia, pois sabemos de dramaturgos como Shakespeare, que

escreveu para atores específicos, e Bertold Brecht, que atualizava seus textos a partir da

prática dos atores, porém aqui se fala de uma criação que surge conjuntamente com os

sujeitos do processo. O dramaturgista atua em contato estreito e contínuo com demais

profissionais e com a construção da cena. Ele está nessa articulação dos elementos que

compõem o espetáculo teatral, na polifonia de significantes, na tensão entre o pensamento e a

forma.

Do mesmo modo, Adélia Nicolle5 (2005) se debruçou a entender tal função inserida

no grupo interessando-se por particularidades do dramaturgismo. Ela elenca: “confeccionar,

organizar, estruturar o roteiro ou texto, além de amparar os estudos teóricos necessários à

montagem – sempre vinculada ao trabalho do encenador” (2005. p.27). A autora traz para

avultar seu pensamento as experiências de Cacá Brandão6 com o Grupo Galpão/MG no início

da década de noventa, na montagem de Romeu e Julieta (1992).

Neste espetáculo, o dramaturgista atuou inicialmente conduzindo a equipe em

estudos específicos para encenação e acompanhando os ensaios fazendo diários da

montagem. Depois foi solicitado a reduzir o texto em 50%, criar prólogos, cenas e poemas

para o novo personagem surgido ao longo do processo, também escrever textos do programa

da peça, até que chegou a “intervir no sentido de apurar o texto dito pelos atores e indicar os

trechos que melhor funcionam junto ao público durante os ensaios abertos, reformulando toda

a dramaturgia” (2005. p. 28). O trabalho foi crescendo e tomando espaço, à medida que, o

processo exigia demandas na escrita e “Brandão se via o tempo todo como alguém a

viabilizar as ideias do diretor”, afirma a pesquisadora.

Em Aventura do Lobo (2015), processo que impulsionou esta pesquisa, meu

trabalho de dramaturgismo caminhou também como encenadora. A dramaturgia era guiada e

inscrita na atuação, evocando um texto feito a partir de quem estivesse em cena, seja suas

habilidades artísticas, gestos, características, histórias ou lembranças dos atores e atrizes.

Por exemplo, o personagem Coelho, interpretado por Alysson Ericeira, era

malabarista e contador de histórias, essas eram habilidades artísticas do ator. Alysson também

5 Doutora em Pedagogia do Teatro pela ECA/USP (2013). Como dramaturga, escreveu, encenou e publicou

diversos textos, além de prestar consultoria a autores e grupos. Como pesquisadora e escritora, publicou artigos,

biografias e uma coletânea de dramaturgia. No magistério há mais de três décadas, já lecionou para todos os

níveis. 6 Carlos Antônio Leite Brandão arquiteto e professor, dramaturgista nas encenações Romeu e Julieta (1992) em

seguida Um Moliére Imaginário, Partido e Inspetor I do Grupo Galpão/MG.

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gostava de rock, seus vícios, gestos e especificidades como modo de andar, abrir bem os

olhos e falar, suas gírias e expressões, ou seja, características pessoais do ator que foram

incluídas ao material de elaboração do personagem.

Somado às características pessoais e habilidades artísticas, em todo processo de sala

de ensaio trabalhávamos as memórias dos integrantes de suas idas à zona rural ou mesmo de

suas cidades natais no interior do Maranhão. Essa relação ajudava a pensar o jogo cidade e

floresta, contido na narrativa da peça.

Figura 2 Personagem Coelho, ator Alysson Ericeira

FONTE: Breno Galdino, 2016, acervo pessoal.

Dessa forma, a construção do personagem se distancia do ator, de sua pessoa

cotidiana, somente pelo exagero e comicidade inseridos numa ideia de performatividade de

si. O andar do ator, seus gestos, suas expressões, tudo era aumentado ou diminuído à escolha

do processo pensando na inserção desse material no contexto fabular.

Percebo nesse processo de construção dos personagens, em que os atores emprestam

sua personalidade sugerindo tipos e formas, semelhante à busca do palhaço em que a

construção do personagem por assim dizer “obedece a um determinado perfil individual, que

se apoia nas características corporais do ator e em sua própria subjetividade” (BOLOGNESI,

2003. p.198).

Nesses tipos cômicos há uma experimentação da liberdade, longe das formas rígidas

do cotidiano, onde o risível nos aproxima de sensações da infância, o palhaço quando cômico

se apoia no exagero de seus vícios e em suas possibilidades artísticas. É nessa relação que o

exercício de criatividade em Aventura do Lobo se apoia.

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A função do dramaturgismo na sala de ensaio nesta experiência era coletar materiais

desse grupo, observar e listar suas habilidades e características, perceber o que cada corpo

oferecia à construção do personagem em cena e somá-lo ao texto e à encenação por sua vez.

Editando, criando e recortando à medida da sala de ensaio e a serviço de um trabalho de

direção que pensava movimentação dos atores e todas as especificidades da encenação7.

Pensando nessa interseção entre encenador e dramaturgista, o pesquisador José

Fausto Soares Rocha Moreira (2016), em entrevista a alguns dramaturgistas encenadores, cita

Carla Romero, para quem o trabalho de dramaturgismo “enxerga a possibilidade de criar

obras em que se pode pensar, conceber e construir um mundo imaginário completo a partir do

seu olhar” (MOREIRA, 2016. p.92).

A dramaturgista constrói uma metáfora sobre o papel do encenador dramaturgista

como função das mitocôndrias, o primeiro é uma espécie de líder que “participa de todo o

processo como transmissores de energia”. Analogamente, as mitocôndrias têm por função a

crucial tarefa de “realizar o importante processo de respiração celular” (MOREIRA, 2016.

p.92). Assim:

[...] o condutor de um processo teatral, ao assumir os dois papéis, precisa aproveitar

cada componente, pois, através de profissionais envolvidos e aplicados ao máximo

para a construção do espetáculo, é possível criar uma obra conjunta a partir da

orientação de um líder. Portanto, Carla Romero, desde o momento em que passou a

trabalhar como encenadora dramaturgista, viu a possibilidade de articular de

maneira mais eficiente as dinâmicas entre os atores, técnicos, espectadores e demais

envolvidos. Por isso, para ela, a palavra que melhor define esse profissional é:

articulador. (MOREIRA, 2016, p.92-93).

Ainda em suas entrevistas, Moreira (2016) cita o dramaturgista João Falcão, cujo

pensamento incide na possibilidade de “realizar a principal função do encenador

dramaturgista: captar o máximo de cada envolvido no espetáculo, em especial, do elenco”,

principalmente quando o texto é de sua autoria. Caso similar ao de Aventura do Lobo, que

privilegia os sujeitos envolvidos, sobretudo a atuação também com texto autoral. Ainda

segundo Moreira em entrevista ao dramaturgista Falcão:

Ao dominar as etapas do processo, pode tirar de cada membro o que deseja para a

obra. Assim, como um “fazedor de espetáculo”, não há nada sem a sua participação,

ele constrói tijolo por tijolo. Acumular os dois cargos traz a possibilidade de

experimentar a cada dia, a cada etapa do trabalho e se os papéis fossem divididos

como nas cartilhas, suas funções seriam limitadas, pois “não poderia ser tão mutante

e isso não seria completo” (p. 148). (MOREIRA, 2016, p.93).

7 Descrevo em detalhes toda essa experiência no trabalho monográfico Aventura do Lobo: Uma narrativa de

Criação em Dramaturgia. Nele listo e sistematizo todos os exercícios e procedimentos de sala de ensaio que

evocavam os materiais dos atores. A pesquisa teve orientação da Prof.ª Dra. Fernanda Areias de Oliveira,

departamento de Teatro da Universidade Federal do Maranhão e foi defendida em 2017.

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Levanto essa relação de mutabilidade e completude proporcionada pelo acúmulo de

funções, citada por Falcão em entrevista, para relacionar o Aventura do Lobo com situações

adversas do processo, que exigem um trabalho ágil sobre a obra. Se esse texto é construído

nos moldes de seus atores e conectado à encenação, o que acontece quando há substituição de

atores?

Na experiência de escrita em Aventura do Lobo, o texto transforma-se a partir da

subjetividade dos novos atores, comprovando a abertura do texto perante a encenação. Os

novos atores foram inseridos no processo, para inscreverem no texto sua subjetividade sem

imposição do texto já existente.

Dessa maneira, o trabalho de dramaturgismo aliado ao da encenação potencializou a

fluência dessa operação, onde foram tomadas estratégias e ações de modo a contornar os

percalços. Os atores para substituição, por exemplo, já eram conhecidos pelo grupo, escolha

feita para acelerar interação entre atores e reconhecimento de habilidades artísticas. Os motes

da narrativa e do personagem foram seguidos enquanto que falas, composição e até cenas do

roteiro tiveram que se modificar à medida que os novos atores sugerem novas matérias.

Em Aventura do Lobo a relação com o trabalho de dramaturgismo se deu também na

feitura de diários de escrita do texto, elaboração de projeto cultural do espetáculo, escrita de

texto do programa da peça, comunicação com equipe de comunicação na elaboração de ideias

para divulgação, roteiro de vídeos teaser, identidade visual da peça para projeto gráfico e até

pensamento teórico sobre a mesma.

As atividades podem ser múltiplas. Pensando na multiplicidade de lugares que o

dramaturgista pode ocupar, essa pesquisa insere sua prática. Há a percepção de que sua

prática circula, sobretudo, sobre pensamento, discurso e escrita, não necessariamente ligada

ao texto dramático nem à sua autoria, mas vinculada a este. Sua função está em movimentar

pensamento na obra, servindo às necessidades de escrita que o processo requer.

Diante disso, qual seria o papel do dramaturgismo nessa experiência? O Dramaturg,

como poeta da cena pode ter inúmeras funções no grupo teatral, desde organizar documentos,

catalogar a memória do grupo, propor estudos, temas e até processos criativos, como é o caso

desta experimentação. De maneira explícita, o dramaturgismo acontece quando elaboro

proposições do que ocorrerá em sala de ensaio para que os sujeitos forneçam materiais que

possibilitem criação.

É de interesse nessa experimentação que o grupo se aproxime da escrita, seja das de

narrativas ou através dos registros em cadernos e cartas. São materiais impulsionadores da

dramaturgia. Do mesmo modo, ela deve também partir dos corpos, e por isso pretende-se

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também que esses corpos tornem-se escrita. Nesse processo escrita e corpo não devem estar

numa relação dicotômica, pelo contrário, tenho objetivo de promover uma relação justaposta

para que um movimente o outro.

Nesse hiato, a operação em dramaturgismo também trabalha na elaboração

dissertativa dessa caminhada em processo. Ser dramaturgista me faz pensar na tessitura

dissertativa concomitante à experimentação artística. A genética teatral autoriza a saltar e

perseguir o registro do processo tanto em materialidades como em elaboração de sistemas e

reflexão para reconhecer e refletir modos de desenvolvimento de pensamento em criação

atrelando a função do dramaturg à pesquisa em artes.

A prática do dramaturgista nessas duas camadas levanta a ideia do artista não

distanciado de suas investigações, ao qual se propõe a pesquisa em artes. Neste processo está

em experimentação refletir e dialogar teoria e prática na sala de criação está num trabalho

único.

Essa autoria em fluxo com o grupo de trabalho a qual se propõe o dramaturgismo

evoca um alinhamento com a ideia de coletivos de criação ou processo colaborativo, que

segundo Adélia Nicolete (2010) tem ganhado força desde os anos 1990 no Brasil, e tem dado

garantias que os modos tradicionais de produção não mais atendiam às necessidades criativas.

Ela cita, por exemplo, a autonomia na criação, equivalências de funções, independência de

mercado, gestão própria de recursos dentre outros. Ainda segundo a dramaturga:

No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa

formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo, nos

anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes

imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo [...] Da

criação coletiva o processo colaborativo parece ter herdado, em muitos casos, a

concretização de um desejo grupal, que leva à pesquisa conjunta e à execução de

múltiplas funções com interferências mútuas, de modo a que as linhas autorais

esmaeçam em nome da assinatura coletiva. (NICOLETE. 2010. p. 33-34).

É por pensar no esmaecimento dessas linhas autorais em detrimento de uma autoria

em rede, que prevejo desafios numa pesquisa que visa privilegiar seus sujeitos e que diferente

de muitos exemplos de processo colaborativos que almejam uma encenação, propõe espaços

de criação dramatúrgica. Como propor um ambiente de criação com autonomia para os

sujeitos? Como fazer com que os envolvidos se mostrem ante ao processo que é pensado sob

o viés de suas subjetividades?

2.2 Segundo Movimento: O Grupo Cena Aberta.

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A escolha pelo Grupo Cena Aberta como uma das vivências propostas para esta

pesquisa é motivada pelo interesse em observar o dramaturgismo inserido em grupo, isto é, o

trabalho do autor no grupo teatral. Sou integrante do grupo desde 2013, e pressuponho que a

observação e experiência do grupo no trato com o texto em sua trajetória, seriam válidas para

construir terreno para experimentar procedimentos de criação de si. Além disso, firmar

parceria com o mesmo viabiliza apoio prático para a pesquisa, como espaço para trabalho,

materiais como câmera fotográfica e filmadora, acesso ao acervo de livros do grupo,

mobilização dos integrantes dentre outros8.

O Grupo de Pesquisa Teatral Cena Aberta possui cerca de vinte anos de atuação no

cenário artístico do Maranhão, coordenado pelo Prof. Me. Luís Pazzini9, tendo ações em

treinamento e formação de atores/pesquisadores, montagem de espetáculos e oficinas

interdisciplinares para a comunidade, uma vez que, além de grupo,, é também projeto de

extensão da UFMA. Sobre a origem do grupo, o Professor Abimaelson dos Santos Pereira

nos diz (2013):

O Cena Aberta nasceu da efervescência dos processos teatrais experimentais na

Universidade Federal do Maranhão, no final da década de 1990 [...] O grupo foi

criado para dar suporte ao processo de formação dos estudantes de graduação,

futuros professores de teatro, tendo como metodologia de trabalho a investigação do

teatro experimental, a discussão política da obra e a ética do artista de teatro.

(PEREIRA, 2013. p.98)

Tais características contribuem para que grupo composto majoritariamente por

discentes da graduação seja um grupo de passagem, em que à medida que os alunos vão se

formando ou realizando outras atividades vão deixando as do grupo, mesmo que este tenha

pleno funcionamento como grupo teatral autônomo em relação a universidade,

principalmente na montagem de espetáculos.

O Grupo Cena Aberta, tem uma especificidade em sua relação com texto. É a

intertextualidade uma das molas da encenação para o grupo, guiados pela ideia de

movimento10

os fragmentos cênicos se dão de maneira gradativa e processual, trazem novos

8 O Grupo Cena Aberta por ser um também um projeto de extensão do curso de Teatro da UFMA possui sede no

Casarão Ângelus Novus, prédio localizado no centro de São Luís, utilizado como anexo para atividades do curso

de Teatro como ensaios, eventos, aulas etc. 9 Prof. Me. Luiz Roberto de Souza (Pazzini) é mestre em Artes pelo CAC/ECA/USP. Atualmente é professor

aposentado da UFMA, lotado no Departamento de Artes, curso de Licenciatura em Teatro. Desenvolve pesquisa

e possui vasta experiência na área de Teatro, com ênfase em Interpretação, Improvisação e Encenação, nas

esferas acadêmica e artística. Coordena o grupo de pesquisa teatral Cena Aberta e participa do grupo de

pesquisa Pedagogias do Teatro e Ação Cultural - Universidade Federal do Maranhão UFMA, sob Coordenação

do Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana. (fonte: site do curso de teatro/UFMA. Disponível em:

< http://www.teatro.ufma.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13&Itemid=143>. 10

A ideia de movimento no Grupo Cena aberta está relacionada a uma prática heterogênea e processual fazendo

com que o artista aprenda com suas experiências. Em entrevista a Abimaelson Santos, Pazzini afirma que

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personagens e consequentemente novas cenas à medida que os artistas se inserem no

processo seja nas leituras, nos estudos, experimentações dos espaços ou por meio dos

laboratórios, gerando uma dramaturgia aberta, complexa e inacabada conforme destaca o

argumento seguinte do coordenador Luíz Pazzini:

O fragmento tem por função estimular à abertura da subjetividade do

leitor/espectador. Ele torna-se produtor de conteúdos, e corresponde ao que Müller

chama de espaços livres para a fantasia, estando imbuído em primeiro lugar de uma

tarefa política, pois age contra clichês pré-fabricados e os padrões produzidos pela

mídia (SOUZA, 2003, p.149)

Nesse sentido, a intertextualidade possibilita a construção de uma dramaturgia

heterogênea, multifacetada, que é modificada à medida em que surgem novas demandas na

encenação, sejam elas estéticas políticas ou éticas. Através das experiências individuais e

coletivas, constrói-se um processo dramatúrgico dialógico sobre o fenômeno estético

estudado (RÖHL, 1997 apud PEREIRA, 2013).

A exemplo do espetáculo Negro Cosme em movimento11

(2012), sua construção é

costurada tanto na dramaturgia quanto a documentos históricos e cenas sugeridas pelos atores

à medida que assumem seu lugar na encenação. Em outras palavras, Negro Cosme em

movimento tem sua encenação fundada na Revolta da Balaiada no Maranhão, se dispõe a

dramaturgia Caras Pretas (2015) de Igor Nascimento, documentos históricos como o decreto

de prisão de Cosme Bento das Chagas, enforcado ao final da revolta popular, e também

textos interligados a ideia como O Anjo Infeliz de Heiner Müller e o Trecho 9 do ensaio

Sobre o conceito de história de Walter Benjamin12

. É através da memória que o grupo atua

em proposição urgindo contra os apagamentos de identidades e coletando fragmentos a

encenação.

A escolha por esses fragmentos, antes feita somente pelo encenador, agora depende

igualmente tanto dos materiais dramatúrgicos já existentes como da inserção dos graduandos/

durante o processo de criação acontece a apresentação de diversos fragmentos e estes provocam um movimento

interno na encenação, nada é definitivo, e permite-se experimentar principalmente a recepção do público, sem

preocupações de uma encenação acabada, enfatizando a ideia de in process, que segundo Cohen (2006)

relaciona-se com a superação das estruturas, hibridização de conteúdos em que o processo, o risco, a

interatividade e possibilidade de incorporação de acontecimentos de percurso são ontologias da linguagem, este

feito potencializa novas descobertas e novos processos metodológicos uma vez que os atores também são

professores em formação (PEREIRA, 2013) 11

O espetáculo já contou com elencos diversos a medida de entrada e saída de discentes, fazendo parte do

circuito profissional da cidade com montagens e manutenção por editais do Ministério da Educação e da

Cultura, além de ser também mantido pelo departamento de extensão da UFMA, concedendo bolsas a alguns

atores graduandos que realizam pesquisa no grupo. 12

O Trecho 9 do ensaio Sobre o Conceito de História está contido em Magia e técnica, arte e política: ensaios

sobre literatura e história da cultura – obras escolhidas, volume I. A escolha do uso deste fragmento para

compor a encenação se dá pelo diálogo com a ideia de apagamentos e escrita histórica, suscitada pela Revolta da

Balaiada no Maranhão, nesta operação podemos visualizar a estética do fragmento, observamos um texto de um

filósofo ir à cena, assim como o texto de documento histórico, vemos uma encenação de dramaturgia aberta.

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atores na pesquisa. Dessa forma se uma cena possui dança e presença de instrumentos,

capacidades trazidas pelos atores, na saída dos mesmos não há procura por novos atores com

essas habilidades para substituição. Os novos atuadores trazem proposições a partir de suas

potencialidades criativas.

Tal procedimento leva a observar um espetáculo que está sempre em processo e se

atualizando, “trata-se da experimentação do experimentável e da busca por maneiras

processuais de aprimorar a criação” (PEREIRA, 2013. P. 96-97). É nessa escrita e reescrita

por seus sujeitos que está toda a ideia de movimento.

O termo movimento remete a duas importantes questões – ação e criação – com

ramificações no caráter estético e ético da obra. A ação individual, pois sem um

mínimo de autonomia e perspicácia não se consegue colocar em prática os conceitos

trabalhados no grupo, como, por exemplo, o ator-compositor e o artista-decente

(docente?), que são caros para a proposta metodológica desenvolvida. (FRANÇA,

2010 apud PEREIRA 2013, p 99).

Dessa maneira, o movimento como metodologia do grupo aponta para um processo

que se dá em interação. Este trabalho colaborativo democratiza o pensamento e a feitura da

encenação, atualiza e nutre os sujeitos e o coletivo mutuamente, numa movimentação interna

que “permite ao pesquisador, estudante em formação maior apropriação do fazer teatral,

considerando teoria e prática” (PEREIRA, 2013. P. 100).

Em reflexão pela minha trajetória no grupo, me percebo pensando nas práticas do

Cena Aberta como alimentadoras desta pesquisa, que pistas são oferecidas pelo modo como o

Cena Aberta lida com o texto? No grupo, o texto com caráter de intertexto mostra uma

encenação que segue fragmentos compondo uma cena que abarca imagens, espaços, sujeitos,

memória coletiva e individual, além de múltiplas estéticas, são as materialidades

dramatúrgicas se justapondo sem hierarquias.

O texto é visto como aberto, transformável e o in process dar-se com o alinhamento

do trabalho aos seus atores, na busca de uma cena que nunca tem fim em si mesma, está

sempre inacabada. As materialidades agem em fluência de uma narrativa pré-estabelecida,

que em Negro Cosme em movimento é a Revolta da Balaiada.

Outro ponto diz respeito ao lugar dos atores na criação, no Grupo Cena Aberta a

experimentação estava ligada à autonomia criativa e envolvimento dos sujeitos no processo,

nesta pesquisa os corpos e narrativas dos atores devem influenciar diretamente na criação

dramatúrgica. Cecília Salles (2017), em seus estudos sobre processo de criação em grupo,

ressalta o potencial de interações do sujeito com o grupo, em que os “diálogos com a cultura,

as trocas entre sujeitos e os intercâmbios de ideias nos colocam diante do mais amplo campo

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de interações”, tal sujeito não é tido como esfera privada e sim como agente comunicativo e

“[...] sua identidade é construída pelas relações com outros; não é só um possível membro de

uma comunidade, mas a pessoa como sujeito tem a própria forma de uma comunidade”

(SALLES, 2017. p 38). Como operar criação a partir desses sujeitos em rede de interações?

Embora tudo apontado até aqui leve a crer que a pesquisa está em fluência com o

grupo, o cenário em que se encontra o Cena Aberta aponta para caminhos turvos e bastante

imprecisos. Em meio a contínuas e crescentes crises de produção, dificuldades de

manutenção dos espetáculos e do próprio projeto de extensão por corte de gastos da

universidade, somados à falta de materiais e saída de integrantes, o grupo encontra-se em

risco iminente.

A crise no Cena Aberta aflorou-se ainda mais com a aposentadoria e afastamento

temporário do coordenador e principal encenador do grupo. Nesses dois últimos anos

conturbados houve muitas tentativas de remontagens, formação de novo elenco, volta do

coordenador, mudança de formato de trabalho... Tais esforços até resultaram em participação

em eventos significativos, como a homenagem ao Pazzini na XII Semana do Teatro no

Maranhão13

, porém, nenhumas dessas ações foram suficientes para conter a crise que nos

assolava.

Eu me encontrava diante de um grupo quase inexistente, cuja sobrevivência só

existia em pesquisa acadêmica, em elaboração de artigos, trabalhos monográficos ou estudos

investigativos de espetáculos e metodologias do grupo. Nas últimas montagens em que estive

presente, os atores não mais respondiam com proposições para a cena, dependiam da criação

do encenador, sintoma também de um grupo com risco de sobrevivência. Rafael Martins

(2010), em sua experiência como ator, observa tal comportamento em grupo:

Ficamos à espera de um líder ou mentor criativo (o diretor ou seja lá quem), que

trará as ideias para a discussão, seus interesses para a próxima montagem etc. [...] é

como se houvesse uma hierarquia sigilosa da criatividade [...] Nessa hierarquia, o

ator muitas vezes se contenta em executar as ideias artísticas que lhe chegam. Criar,

muitas vezes se reduz ao ato mecânico de montar o próximo espetáculo

(MARTINS, 2010. p. 15).

Ao observar a função e importância do autor no grupo teatral e lida com atores

inertes e cansados, Martins (2010) me fez refletir sobre o Cena Aberta, para ele nesses

contextos, o “ator insatisfeito reduz todas as suas expectativas pelo grupo e o abandona, ou

simplesmente vai levando, trabalhando de forma apática até o dia de um conflito maior”

(2010. p.16).

13

Nesta edição de festival promovida pelo Teatro Arthur Azevedo, o coordenador é homenageado através da

mostra Luíz Pazzini que contou com cinco espetáculos do grupo na programação.

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Ao pensar na inserção desta pesquisa de mestrado no Grupo Cena Aberta, na

tentativa de observar um trabalho de autoria no grupo, relembro a afirmação de Martins de

que cabe ao autor “como um coletor de material humano, a função de questionar, sacudir o

pensamento do coletivo, colocar as convicções artísticas de todos à prova”, inclusive as suas.

Seria essa uma experiência de autoria que sacudiria e levaria este grupo a uma mudança?

Na consciência dessa crise, me pergunto da possibilidade deste projeto no Cena

Aberta, temo esse lugar de liderança na criação ao qual os atores estavam recentemente

inseridos. Me questiono se será possível a participação desses atores numa pesquisa que

depende de sua tomada de atitude, em que devem assumir seu papel ativo na criação, na

relação horizontal e colaborativa em rede, sem hierarquias.

Os caminhos a partir da decisão de assumir esta pesquisa com o Grupo Cena Aberta

seriam totalmente imprecisos, mas toda experiência criativa é de certa forma imprecisa,

incerta, sabemos que é uma caminhada em direção ao desconhecido. Porém, neste momento,

criar com o Cena Aberta é assumir perigos e, ao mesmo tempo, mostrar resiliência à crise.

2.3 Terceiro Movimento: Escrita em Performação.

O que fazer para estimular e promover as subjetividades dos atores na sala de

criação? Essa era minha principal inquietação, quais caminhos práticos traçar. Mesmo com o

interesse de que as proposições não partissem somente de mim, eu tinha necessidade de

estabelecer parâmetros e algumas estruturas mínimas para a experimentação.

Até o momento, havia estabelecido pensamentos a respeito da relação de

intertextualidade, fragmento e dramaturgia aberta, em confluência com a escolha do Grupo

Cena Aberta para o trabalho. Somada a prática do dramaturgismo permeando tanto a

experimentação e a autoria em rede como possibilidade de trabalho. Porém, quando pensava

na concretude da sala de ensaio, em possíveis proposições e exercícios, havia uma neblina à

minha frente.

O que aconteceria em sala de trabalho? A experiência que abordo a seguir

proporcionou um pouco de nitidez ao cenário turvo que se encontrava o processo. O escrito a

seguir surge na articulação entre uma experiência de escrita dramatúrgica, o curso de

Procedimentos de Escrita Situada14

e esta pesquisa.

14

Ministrada pela Dra. Luiza Leite (ECO/UFRJ) em 2018.2, o curso Procedimentos de Escrita Situada:

deslocamentos entre o espaço e a página promoveu investigações da intersecção entre escrita, cidade,

publicações de artista, por meio de estratégias heterogêneas de criação textual.

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Optei por deixá-lo como fragmento solto neste terceiro movimento, para que

percebamos a atualização do pensamento do processo. Neste escrito, ainda não havia

articulação com a pesquisa propriamente dita, ou pelo menos isso ainda não era evidente, o

objetivo era simplesmente estabelecer uma relação entre a dramaturgia e o comparecimento

dos procedimentos de escrita situada em seu processo.

*

A escrita do texto A gente não se conhece (2018), com o dramaturgo Pedro

Emmanuel15

, foi construída visando uma pequena Performação para uma disciplina16

, a partir

de materialidades pessoais e escrita situada, ela aconteceu em cerca de três semanas, e

deveria ter dez minutos de duração em sua leitura dramática. O próprio texto expõe suas

etapas de criação, com elementos de metalinguagem que sempre atualiza o espectador de

como aquele procedimento está se dando, e põe em prova o caráter ficcional ou factual da

trama.

pedro sentamos, eu com meu café, necylia com seu bandejão

necylia não sabíamos por onde começar

pedro necylia sugeriu que fizéssemos perguntas um para o outro

necylia É uma coisa singela e ao mesmo tempo um princípio base, se você quer

conhecer alguém, então pergunte

pedro cada um teria direito a seis perguntas

necylia estamos às vésperas da eleição

pedro dia 25 de outubro trocamos os papéis com as perguntas os primeiros e-mails

são trocados no dia 29/10/2018

necylia (um dia após as eleições)

pedro escrevo, ainda atormentado, para necylia via whatsapp aviso que já respondi

às perguntas dela.17

Em linhas gerais, o processo se deu em quatro etapas, na primeira fizemos exercícios

de fazer perguntas um para o outro, motivados por nos conhecermos por uma perspectiva

diferente da que tínhamos como colegas de turma. Na segunda mostramos objetos

significativos um para o outro como fotografias (figura 2 e 3), mas também algo que

transmitisse nossas especificidades, um mapa do Maranhão, uma faixa de luta, uma carta

antiga, entre outros. Já na terceira, nos propomos a escrever textos descritivos que contassem

aquela trajetória até ali, sem formatos estabelecidos nem compromisso com os fatos. Na

quarta e última parte, juntamos os textos com as materialidades, fizemos escolhas e

produzimos a cena escrita.

15

Dramaturgo carioca, pesquisador no Programa de Pós Graduação Artes da Cena ECO/UFRJ. 16

A performação, nome da atividade, deu-se em novembro de 2018 na ocasião do curso de Performance

ministrado pela prof. Eleonora Fabião (ECO/UFRJ) no Centro Cultural Hélio Oiticica. 17

Trecho de A gente não se conhece, acervo pessoal. 2018.

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Operamos a partir de nossas memórias, aquelas ativadas pela percepção que “como

atividade criadora da mente humana, já é uma ação transformadora” afirma Cecília Salles

(2017. p.42), esta vai processando o mundo em nome da criação. Nessa acepção, se as

sensações funcionam como ampliadoras dessa percepção que é ação da memória, os

exercícios situados de escrita neste processo como as perguntas um para o outro, a colagem

de materialidades, e os textos produzidos individualmente antes da montagem da cena

funcionam igualmente como promotores dessa percepção.

Em seus estudos, Cecília Sales (2017. p.42) recorre a autores como Jean-Jaques e

Yves Tadiés que atestam a interação das percepções com a experiência passada, ela diz: “não

há percepção que não seja impregnada de lembranças”. Assim a memória é ação,

essencialmente plástica, diz Salles, em que não se fixam nem acumulam lembranças, mas

onde as redes de associações podem sofrer modificações, e até resultar em atividade criadora.

Memória, como espaço de liberdade, é seletiva. São feitas escolhas livres, porém

não arbitrárias. Não há lembrança sem imaginação e a lembrança, a serviço da

criação, pode ser explicada como uma espécie de memória especializada. (SALLES,

2017, p. 43).

Ainda pensando a partir de Cecília Salles (2017), é interessante observar como as

materialidades dessa memória atuam sobre a criação. Nesse processo, os sujeitos são a

principal matéria criativa, quando um autor e uma autora se propõem um jogo de

aproximações de suas narrativas pessoais, narrativa estas repletas de passado e significados

sugerindo uma criação em rede, principalmente referente à lida com as materialidades

geradas.

Figura 3 Pedro quando criança Figura 4 Necylia quando criança

FONTE: Acervo pessoal, 2018 FONTE: acervo pessoal 2018.

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Para Salles (2017), toda relação do artista com a matéria-prima gera seleções e

tomada de decisões, e isso ocorre quando os indivíduos envolvidos se apropriam das

materialidades geradas e da interação em rede. A opção neste caso foi operar pela ficção ou

pelo equilíbrio dela com o factual.

necylia recebemos algumas coordenadas e não deveríamos comentar com ninguém

pedro desci e acendi mais um cigarro necylia me acompanhou precisamos de mais

um encontro

necylia eu sei ele apagou o cigarro e caminhou em direção ao metrô sem sequer me

dar adeus

pedro quando chego, minha porta estava arrombada tudo havia sido revirado e eu

não tive coragem de entrar liguei para necylia

necylia você esqueceu suas coisas comigo

pedro pedi abrigo18

.

Os procedimentos de escrita situada alavancaram toda a relação com as memórias e

com o uso dela na escrita, não só no início com as seis perguntas um pro outro, respondidas

por e-mail com prazo definido, como no final em que dispostos todos aqueles materiais, foi

necessário fazer escolhas e atender urgências. Em exercícios de escrita situada, a operação da

urgência é fundamental, ela envolve a despretensão, o exercitar, o impulso de escrever o que

vem a mente, como um caminho curto ao imaginário, à percepção, as lembranças...

Nesse processo de montagem, mesclar, intercalar e montar pedaços e partes de tudo

que geramos a partir de nós foi um procedimento que veio justamente dessa escrita que está

em situação, aqui e agora. O texto resulta da montagem de nós e de um mundo ficcional

proposto pelas nossas sensações.

Didi-Huberman (2016) aponta a montagem como exposição de anacronismos,

naquilo mesmo que ela procede como uma explosão da cronologia, ela talha as coisas

habitualmente reunidas e conecta as coisas habitualmente separadas, criando um abalo e um

movimento. Justamente nesse sentido, aqui sublinhado, que se tem uma escrita em fluência e

completamente urdida e imbricada na experiência. Ainda citando Didi-Huberman, ele nos

diz:

Psicologicamente falando, isso significa que não há desejo sem trabalho da

memória, não há futuro sem reconfiguração do passado. Politicamente falando, isso

significa que não há força revolucionária sem remontagens dos lugares

genealógicos, sem rupturas e reurdidura dos laços de filiação, sem reexposições de

toda a história anterior (DIDI-HUBERMAN, 2016. p. 4).

Se meu olhar como autora inclina-se a pesquisa da possibilidade de uma escrita que

privilegie os sujeitos e se constitua sob medida para estes, pensando corpo e

18 Trecho de A gente não se conhece, acervo pessoal. 2018.

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performatividade, havia muito para pensar sobre essa escrita com o Pedro. A memória até

então, é um caminho a ser perseguido e a percepção desta pode amplificar-se pela escrita e

pela intimidade que esta pode transpor, somos sujeitos que escrevem e registram nos

questionando diante do mundo e propondo novas respostas.

Escrito em dezembro de 2018

O que essa experiência de escrita poderia reverberar na construção da experimentação

dramatúrgica que eu estava prestes a propor? Quero criar texto com atores, a partir dos atores,

não só suas narrativas, mas seus corpos, esses corpos que possuem memória e subjetividade.

Como lidar com as subjetividades inerentes a processos que envolvam memórias? Nessa

lógica, o processo de A gente não se conhece diz muito sobre meu pensar criação com

sujeitos.

Estava claro que a memória deveria ter lugar de importância, ela é ação de

criação e já vinha comparecendo na reflexão sobre as práticas do Cena Aberta e também em

recapitulação à Aventura do Lobo. Quando Cecília Salles (2017) diz que a percepção é

atividade criadora da mente humana ela está associando percepção e memória quase sem

distinção, pois se parte da premissa proposta por Jean-Jacques e Yves Tadié (1999) de que as

percepções interagem com a experiência passada, com lembranças.

Essa memória, sendo criação, só é possível por não ser fixa, nem mero lugar de

acumular de lembranças. Redes de associações operam modificações o tempo todo

transformando as percepções e atuando sobre as lembranças que instauram possibilidades de

criação. Dessa forma, as sensações funcionam como amplificadores que permitem que

“certas percepções fiquem na memória”.

Quando operamos criação com a memória na escrita de A gente não se conhece,

essas sensações que amplificam percepções se deram nos exercícios de escrita, com as

perguntas um para o outro e através dos objetos pessoais suscitando histórias de infância e

narrativas do passado. Tal processo me levou a pensar em Exercícios de escrita como

amplificadores, disparadores de sensações através da memória.

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Impregnada de Memória

Amplificam a percepção

Nesse processo dramatúrgico, em que os exercícios de escrita geram

materialidades que iriam para o texto, percebi escrevendo com Pedro, a maneira como o ato

da escrita opera sobre as memórias quando há direcionamento para isto, e como

contar/escrever essas memórias suscita uma operação de criatividade, uma reescritura, revela

subjetividade.

Mara Lúcia Leal (2012), em seu trabalho de tese, reflete sobre a frequência com

que vem a tona memórias relacionadas às construções de identidades, quando o material

autobiográfico está em jogo na relação experiência-memória-cena. Ao citar Larossa (2008),

quando afirma que “a experiência não é outra coisa se não a nossa relação com o mundo, com

os outros e com nós mesmos” a autora nos tráz esse sentido da experiência também como

expressão artística como forma de revisão, ressignificação da memória.

Em acordo com as ideias de autores citados por Cecília Salles, Leal (2012. p.67)

nos apresenta a Victor Turner (1982), para quem uma abertura ao “fluxo contínuo entre

experiências e memória” é ocorrido na percepção, em que há o acionamento de imagens de

lembranças que, por sua vez, provocam associações e emoções.

A partir daí, a autora explica que desse processo “o passado articula-se ao

presente, tornando possível a descoberta e construção de significados”. Turner (1982) aponta

para a completude da experiência apenas quando atingida uma forma de expressão, o que não

ATIVIDADE

CRIADORA PERCEPÇÃO

Ativadores de Sensações:

- Exercícios de Escrita

- Exercícios de gatilho da

memória (objetos, corpo,

imagens).

SENSAÇÕES

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significa “fechamento ou acabamento, mas estar aberto aos ciclos” (TURNER apud. LEAL,

2010. P. 67).

Pensar memória e produção artística evoca muitas relações de seu

comparecimento na cena contemporânea. Introduzo Janaina Leite (2017) que refletindo suas

experiências com autoescrituras performativas estabelece as múltiplas formas de Teatro

Documentário e as implicações e debates do mesmo na criação. A pesquisadora percebe e

teoriza o potencial criativo da memória, afirmando: “Narramos nossas vidas e ideias de nós

como atos de fala que tem por função performar uma imagem de nós mesmos e daquilo que

chamamos de nosso passado” (LEITE, 2017, p. 9) 19

.

Se eu estava convencida de que a memória seria uma das camadas no processo de

pesquisa para acessar a narrativa dos atores envolvidos, agora estava apostando que esta

camada deveria ser agenciada pela escrita, pelo exercício contínuo dela. Nomeio exercícios

de escrita, pequenas proposições para escrever, gatilhos que envolvem objetivo simples, em

situação e que provocam estalos de criatividade, relação com o aqui e agora entre a caneta e o

caderno.

Tenho a lembrança do primeiro dia de aula do curso de Procedimentos de escrita.

Em parte de um exercício, nos foi proposto que descrevêssemos em poucas linhas nossa sala

de aula, sem dúvida essas descrições tiveram pontos em comum, mas resultaram maneiras de

descrever diferentes entre si, algumas até nos fazendo pensar que se tratava de outras salas. E

isso diz muito sobre cada uma dessas pessoas, a escrita opera escolhas e escolher é

posicionar-se, mostrar-se. Há um espaço entre a caneta e a folha onde habita uma

subjetividade que é denunciada na intimidade com uma página em branco.

Até então, a ideia de Escrita Situada, implícita em A gente não se conhece

comparece, se estabelecia como ponto de partida para pensar narrativas de si. Se esse

processo pretende perseguir narrativas pessoais, ele precisaria seguir a escrita também na sala

de ensaio, esta se apresentaria como um caminho prático a seguir.

Conhecer e reconhecer atores e atrizes não é tarefa fácil, como se conhece

alguém? Se nos moldamos, nos apresentamos, representamos, fazemos invenções de nós

mesmos e somos afetados pelo meio que vivemos. A essa altura, no trânsito entre ilha e

continente, na tentativa de ter comunicação escrita e performativa com os atores, mesmo

19

Os estudos de Leite (2017) terão muitos comparecimentos na trajetória desta pesquisa, não só sobre a

memória, mencionado brevemente, como os embates e reflexão em torno da autobiografia, autoficção, produção

de diários etc. por ora atenho-me somente a citá-la brevemente no intuito de conectar melhor suas ideias com as

práticas que se darão em sala de trabalho.

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estando longe, comecei a me corresponder por cartas tanto com os artistas do grupo quanto

comigo mesma, a fim de deixar rastros de pensamento sobre o processo.

Enviei uma carta para o Tiago Andrade, único ator que até então tinha certeza de

sua participação no processo. Toda carta é urgente, assim também toda criação também tem

sua urgência.

- Quem é você? - Era minha pergunta urgente, para pensar os atores e as narrativas que

construiriam de si.

Figura 5 Envelope de Carta de Tiago digitalizada

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Figura 6 Carta de Tiago página 1, Acervo Pessoal, 2018

.

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Figura 7 Carta de Tiago página 2, Acervo Pessoal, 2018.

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2.4 Quarto Movimento: Os caminhos a partir do Conto.

Movimento significa ação ou efeito de deslocar ou deslocar-se, fazer-se uma

pergunta é movimentar-se, movimento é pôr-se em trânsito, deslocamento é migração. O

início deste movimento é um convite a observar um manuscrito, chegado às minhas mãos em

2014, escrito por Tiago Andrade, mesmo autor da carta já mostrada. O conto A cor de Deus

fora reescrito por mim somente em 2015, na ocasião da inscrição no 36º concurso literário

“Cidade de São Luís”, promovido pela prefeitura, o qual venceu o segundo lugar como

Melhor Literatura Infanto-Juvenil.

Se como vimos, a revolta da balaiada funcionava como narrativa pré-estabelecida na

montagem em fragmento de Negro Cosme em movimento, estabeleci que o mesmo

acontecesse nos laboratórios de criação com o grupo Cena Aberta. Foi quando escolhi o

conto A cor de Deus20

como ponto de partida a ser seguido. Essa escolha do conto compactua

com as ideias do grupo sobre memória e identidade cultural, além de estar no universo

literário infanto juvenil e ser uma obra criada por integrantes do grupo. O conto narra a

história de um menino curioso por cores que sai de sua cidade em busca da cor de deus. A

cada cidade que visita ele é surpreendido por um líder que dá uma cor diferente para deus.

No manuscrito do conto a seguir, não interessa ver sua reescritura para o concurso,

análise de mudanças ou observação das formas e sim absorver sua narrativa para o processo,

por isso a escolha dessa primeira versão. Afinal, não se trata de uma adaptação do conto para

dramaturgia, mas do que o conto impulsiona, não necessariamente com obrigação de seguir

seu roteiro. Nessa experimentação em dramaturgia, o conto é um dos fios do tecido, não a

costura a ser seguida, não o bordado completo, mas um fio já conhecido, material para o que

estamos prestes a tecer.

Há uma intimidade denunciada na letra, no rabisco, penso que ao exibir esse conto

em manuscrito, mais do que levantar sua narrativa macro, quero ambientar a percepção do ato

de criação. Toda criação tem sua urgência, ela se instaura, você se questiona e começar a

seguir um caminho na maioria das vezes desconhecido. Quero instaurar um convite à

sensibilidade, ao caminho da ideia.

20

O conto foi escrito por Tiago Andrade, ator e músico também integrante do Grupo Cena Aberta e tem minha

coautoria, vencemos segundo lugar na categoria melhor literatura infanto-juvenil no 36º Concurso Literário

Cidade de São Luís promovido pela prefeitura da capital ludovicense no ano de 2015.

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Figura 8 Foto reprodução do caderno de pesquisa, pontos sobre o manuscrito.

FONTE: Acervo Pessoal, 2019.

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Assim como o menino do conto, eu estava em jornada na busca de cores que eu

ainda não sabia bem do quê, eu havia estabelecido uma ponte entre o Rio de Janeiro, local de

vínculo institucional da pesquisa, e São Luís, minha cidade natal e onde se concentram os

artistas do Grupo Cena Aberta. Esse vínculo real, entre cidades e migrações, me fez

visualizar através dessa metáfora com o conto, a pesquisa como uma rota de viajante, que

precisava de um mapa, de um possível caminho a seguir.

O quadro a seguir (Figura 6) foi elaborado em resposta às reflexões da disciplina

Seminário de Pesquisa21

. Nele vemos mapas das cidades São Luís e Rio de Janeiro, o título

da pesquisa, as questões teóricas que almejava diálogo e os planos. A imagem deste quadro

fixado em meu quarto é um convite a visualizar a pesquisa como eu a via nesse momento, em

seus caminhos e possibilidades.

Figura 15 Quadro de itinerário da pesquisa

FONTE: Acervo pessoal, 2018.

O que a narrativa me sugere para o processo? Semanas antes da temporada de

encontros com o Cena Aberta, ainda estava em busca de caminhos práticos para a sala de

21

Seminário de Pesquisa é uma disciplina obrigatória do Programa de Pós Graduação Artes da Cena da UFRJ,

na ocasião foi ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Marques e pela Prof.ª Dra. Maria Teresa Bastos, no semestre

letivo 2018.2.

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ensaio, voltei à narrativa de A Cor de Deus inúmeras vezes, a fim de visualizar

procedimentos e proposições. Iniciei elencando personagens, em seguida, listei os

movimentos da narrativa, seus estágios importantes.

Figura 16 Foto de quadro fixado à parede

FONTE: Acervo Pessoal, 2019.

Não é a primeira vez que o Cena Aberta percebe a narrativa desse conto como

possibilidade de contar muitas outras histórias, de falar de muitas coisas22

. Em nossos

encontros de preparação para Cofo de Estórias (2017), em que A Cor de Deus era uma das

narrativas, um dos exercícios que fazíamos era rememorar os estágios da narrativa, contar o

que lembrávamos com nossas palavras, e assim nos apropriando do conto podíamos narrá-lo

com mais naturalidade. Foi através desse exercício que tracei as seguintes percepções sobre o

conto:

a. Há um universo fabular na narrativa que inclui animais e jornada de

aventura. O menino parte de sua cidade e conhece outras cidades – migração;

22

Estivemos sob direção de Tiago Andrade com Cofo de Estórias apresentado na XI Semana do Teatro no

Maranhão (Mostra Luiz Pazzini, que homenageou o coordenador do grupo) e no Festival de Teatro de Rua de

Aracati-CE em 2017, a cor de deus era uma das narrativas que foi apresentada no formato contação de história.

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b. Africanalinda e Indiabela são possíveis metáforas da cultura que

compõe São Luís, cultura africana e indígena. Percebemos essa cultura nos ritmos,

instrumentos, culinária, costumes, manifestações culturais e artísticas (Dança. Música,

rituais, tradições), religiões...

c. Relação com as cartas – o menino manda cartas para as cidades (eu

mandando cartas para os atores);

d. Chefes da cidade – Figuras de poder;

Uma constante que saltou dessas percepções foi a palavra Cidade, o conto me

sugeria que se eu quisesse suscitar narrativas dos atores, seus territórios deveriam fazer parte

desta experiência, o meio em que vivemos diz muito sobre nós, evoca nossa identidade. Tive

essa percepção também ao me perceber em migração regional, o quanto cada cidade tem sua

dinâmica e cultura que modificam os corpos.

O filósofo Michel de Certeau (2014) em Caminhadas pela cidade reflete sobre a

cidade, os conceitos implícitos e práticas impostas ou assumidas por quem a habita, para ele

“o caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial” (p.165) caminhar é uma

maneira de se apropriar dos lugares ao mesmo tempo em que “caminhar é ter falta de lugar”

(p.170).

Nas especificidades políticas que constituem as cidades, quem a habita é parte

errante nas práticas de espaço, na atualização de lugares, na construção simbólica do tecido

cidade, esta “serve de baliza ou macro totalizador e quase mítico para as estratégias

socioeconômicas e políticas” (CERTEAU, 2014. P 161). Pensar São Luís do Maranhão em

seus epítetos Atenas Brasileira, ilha magnética, Jamaica Brasileira, ilha do amor entre outros,

carrega consigo traços de nossas identidades. O quê de nós está nas cidades? O quê da cidade

se inscreve em nós?

Seguindo o fluxo de preparação de proposições para sala de trabalho, tracei eixos

para possíveis exercícios de criação sobre a cidade:

● Fórum sobre a nossa cidade, imaginário sobre São Luís – listar a São Luís

conhecida e a São Luís conhecida por nós, moradores.

● Escolher um problema da nossa cidade e propor resoluções

● Se São Luís fosse um personagem como seria?

● Escolher um lugar da cidade que você tenha uma memória de infância,

descrever/narrar a memória.

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Escrita e Cidade são os caminhos estabelecidos, são possibilidades de criação e de

jogo, cada um a seu modo pode ressaltar a subjetividade contida dos atores e das atrizes,

porém faltava o Corpo, não que este não estivesse presente na escrita ou no pensamento em

relação à cidade, mas sentia necessidade de privilegiar o corpo, os gestos que inscrevem

imagem e corporeidade.

Optei por um caminho já conhecido em meus processos, não só em Aventura do

Lobo, mas também nas minhas experiências com escrita de roteiros para o circo. Tenho a

premissa de que se quero conhecer alguém, preciso ver o seu ridículo. E a Comicidade, nesse

sentido, é ferramenta de muitas possibilidades. Em Aventura do Lobo, jogos de palhaçaria

suscitaram tipos cômicos a partir de gestos e movimentos pessoais do cotidiano dos atores.

Esse mecanismo era importante para a criação dos personagens e também para traçar a

performatividade a partir de si. A seguir fac-símile de esquema do caderno de pesquisa

ilustrando os caminhos práticos definidos antes do encontro com o Cena Aberta.

À palavra comicidade delega-se a significação da qualidade ou caráter daquilo que é

cômico, engraçado, por sua vez quando falamos em cena cômica segundo Lira (2013, p. 15)

“queremos dizer que naquele espaço e naquele tempo bem definido acontecerá algo risível,

para a plateia e não para os personagens”.

Sob a luz da teoria do cômico do francês Henri Bergson (1859 – 1941), em O riso:

ensaio sobre a significação do cômico, Fernando Lira (2013) identifica elementos da

categorização da comicidade, divididas em comicidade verbal, comicidade de gestos ou

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movimentos e comicidade da situação, independentes entre si, porém podendo acontecer

concomitantemente.

Nesse processo as ferramentas da comicidade oferecem pistas, sobretudo sobre os

corpos dos atores. Nas três categorizações citadas, o corpo é parte fundamental para o

acontecimento, estar em exercício de comicidade revela gestos, movimentação, vícios... E

coletar essas materialidades é prioridade. Esse desvelamento do corpo, quando posto no jogo

cômico, expõe perfis individuais, em que a criação é impulsionada por características

corporais e subjetivas intrinsecamente.

A partir de jogos de cenas cômicas ou mesmo da palhaçaria, o corpo se põe em

experimentação de liberdade. Nesses exercícios em sala de criação é possível a descoberta de

jeitos de andar, vícios morais, gestos com o corpo ao falar, expressões do rosto e muitas

outras características potentes para esta criação dramatúrgica, além da possibilidade de

trabalho com figuras de poder, como os chefes da cidade observados na narrativa do conto.

Com esses caminhos práticos estabelecidos, como dramaturgista só cabia o ato de

propor, não a imposição nem o direcionamento dos caminhos que almejo traçar, mas dar

indícios, ter repertório e permitir-me jogar com a alteridade na criação, principalmente

quando se pretende que esta criação se dê pelos corpos e pela experiência que só acontece em

sala de trabalho. É preciso colocar-se em movimento!

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3. ENTRE O CHÃO E A PÁGINA

“Entre” é tudo aquilo que indica o intermediário, espaço que habita uma transição.

Supomos que no caminho comum de uma obra artística dramática tenhamos ideia, escrita,

reescrita, edição e criação do texto comunicável, em que, da ideia até o texto, existam

caminhos diversos a serem tomados, escolhas para serem feitas, formatos a serem escolhidos.

Na experiência que se segue, me debruço sobre a criação de procedimentos em escrita. Não

há uma ideia, nem um texto final e o miolo que habita essas duas forças é aqui a parte mais

importante.

O conto de literatura infanto juvenil A cor de Deus serviu como disparador para

muitos dos procedimentos de criação aqui apresentados, principalmente com os atores do

Grupo Cena Aberta. Porém, esta experimentação deu-se em duas abordagens distintas e

complementares, a primeira, como sabemos, ocorreu com os atores do Grupo Cena Aberta

entre janeiro e fevereiro de 2019 em São Luís do Maranhão e a segunda com alunos de

Direção Teatral da UFRJ na disciplina de Dramaturgia VII23

, entre setembro e novembro de

2019, divididos neste escrito entre ilha e continente.

O primeiro grupo de atores experimentou procedimentos de criação de si, operando

subjetividade e gerando materialidades. Já o segundo grupo, pôs em prática procedimentos

para diretores/dramaturgos acessando os materiais produzidos pelo primeiro grupo. A partir

deles, experimentou-se criações dramatúrgicas possíveis. Como foi dito, os exercícios se

concentram nos eixos Escrita, Comicidade e Cidade, e dessa forma será organizado aqui para

melhor entendimento do processo, embora muitos exercícios não sejam somente da ordem de

um dos eixos, e sim mais de um, ou mesmo todos simultaneamente.

As experimentações expostas que se seguem são fruto de um olhar sobre a memória

do processo, certamente incapturável, embora aqui estejam escritos, e materiais audiovisuais

que dizem sobre a experiência, sabemos que nada dá conta da sala de criação. Neste processo,

rumo à experimentação de procedimentos, estou no jogo entre ora propor e conduzir, ora me

deixar ser conduzida.

Estas experimentações surgem sobretudo em exercício de escuta, me exigindo atenção

aos grupos e contextos em que estão inseridos, os percalços, limitações, certezas e incertezas.

Proponho os espaços de criação como liberdade de si, sejam eles salas de ensaio ou de aula.

Esta proposição está contida nos exercícios, na voz dos sujeitos, na experimentação, na escuta

do funcionamento do grupo e na potência das operações em coletivo.

23

O Estágio docência foi supervisionado pela Prof.ª Dra. Jacyan Castilho.

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3.1 Na ilha

Os encontros com o grupo Cena Aberta envolveram sete atores, uma dramaturga

convidada e três convidados em encontros esporádicos. A largada destes encontros com o

grupo começa com a distribuição de cadernos/diários para cada ator ou atriz, cadernos iguais

de 32 folhas com linhas, pequeno o bastante para ser levado para todo canto. Estes cadernos

foram usados logo no primeiro dia para estabelecer o território dos encontros na escrita.

Ao longo das minhas experiências com oficinas de escrita, percebi ser o caderno uma

prática de treinamento para a criação. Como suporte de treino para a escrita, os cadernos

estão no campo do erro, do experimentável, onde absolutamente qualquer coisa é passível de

ser escrita. Se compararmos, por exemplo, à atividade de alongar o corpo, sabemos que sua

continuidade e frequência gera flexibilidade, resistência, avanços e conhecimento dos limites,

e do corpo em si, o mesmo está para o uso dos cadernos como prática de experimentação em

escrita. Entende-se que quanto mais se escreve, mais a familiaridade com a escrita possibilita

o entendimento dos seus mecanismos e facilita a comunicação de ideias.

Instaurar uma proximidade com o caderno/diário era extremamente essencial, ele

precisava ser apreendido como organismo vivo do processo, mas também espaço de liberdade

para que escrevessem outras coisas fora dos encontros, aceitas como objetos pessoais. Para

isso, não houveram regras a respeito do seu uso. Os modos de registrar o treino de escrita em

suas páginas foram livres de formato, categoria, divisão e outras normas.

Para iniciar, sugeri que na primeira página houvesse uma identificação e na última

dados de segurança. Caso algum caderno fosse perdido, haveria mais chances de voltar às

mãos de seu escritor. Como ritual, essas sugestões foram o primeiro passo para atribuir

sentido e criar vínculos com este objeto-caderno, que os acompanharia durante o processo.

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Figura 18. Capa e contracapa 1 Acervo pessoal, 2019.

Figura 19. Capa e Contracapa 2, Acervo pessoal, 2019.

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Sabemos que o diário é uma prática social usada em muitas áreas além da criação

literária. Janaina Leite (2017) compreende que o diário tem “caráter altamente performativo”

uma vez que, em suas características seu uso é descontínuo, lacunar, alusivo, redundante,

repetitivo, é escrito sob o signo do presente, na ignorância do seu fim e “deve ser tomado

mais como uma prática do que como um produto” (2017. p. 20-21).

Nesta experiência, temos não só os cadernos dos atores como suporte que registra os

procedimentos experimentados como o diário de pesquisa que mantive nesses dois anos de

mestrado e também o caderno da dramaturga argentina Nádia Ethel, que esteve em todo

processo tanto registrando encontros como conduzindo exercícios e dialogando comigo nas

avaliações de cada encontro. Dos exercícios que se seguem separados nas três categorias já

mencionadas, tentarei equilibrar a exposição das materialidades dos diários de todos os

integrantes com as reflexões dos procedimentos e registros audiovisuais.

Exercícios de Escrita

Os primeiros exercícios que se seguem, têm objetivo de criar proximidade do grupo

de atores com a escrita e com os cadernos. Nesses encontros, houvere conversas sobre a

relação de cada um com a escrita nos seus trabalhos diários e a maioria afirmou que não tinha

hábito de escrita, a não ser em processos específicos que necessitasse. Não mantinham um

caderno/diário pessoal nem praticavam registros de ideias. Porém, todos os atores e atrizes

manifestaram intenção de aprimorar sua prática de escrita, motivo também pelo qual estavam

interessados em participar dos encontros da pesquisa.

Neste cenário, optei por iniciar com proposições simples, de maneira que o contato

com a escrita fosse gradual e crescente, assim como a proximidade com o caderno. O

exercício 1, por exemplo, funciona como gatilho de lembrança, a escrita dos nomes e

sobrenomes é um chamamento a memória, reconhecimento de si, compartilhamento de

histórias24

.

O exercício 2, seguindo este sentido introdutório, é bastante funcional para o grupo

perceber como as práticas de escritas podem ser simples. Neste exercício, são possíveis

muitas variantes em que temas e regras podem ser inseridos e ao final, quando cada um

compartilha suas palavras com o grupo, é possível instigar a percepção de sentidos e

sonoridades da palavra, bem como questionar as escolhas uns dos outros. Algumas variações

24

Este exercício retirado da aula de performance da Prof.ª Dra. Eleonora Fabião - ECO/UFRJ.

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que experimentamos: Verbos sobre o dia; Palavras com som de A no final que dizem sobre a

ida de um lugar a outro; Palavras compostas sobre objetos no caminho.

Tabela 1. Exercício Nomes

Exercício 1 Nomes

Descrição Escrita de nossos nomes com sobrenomes

Procedimento

Em um papel avulso se escreve seu nome completo acrescentando

sobrenomes que não estão no registros, dos antepassados, dos bisavós,

tataravós, os que nos criaram e também não estão no registro oficial,

como tios, tias, familiares, vizinhos, amigos...

Tabela 2. Exercício Palavras soltas

Exercício 2 Palavras soltas

Descrição Escrita de palavras soltas sobre um tema.

Procedimento Escrever uma lista de palavras soltas sobre o percurso do dia até o

encontro

Tabela 3. Exercício Escrita com objetos

Exercício 3 Escrita com objetos

Descrição Escrita a partir de objetos deixados em lugares diferentes da sala

Procedimento

Cada objeto possui uma instrução estimuladora para a escrita: chaves – o

que abrir?; bolinha de gude - o que te lembra ?; concha do mar - o que tu

imaginas?; Fita de rádio – o que te vem à mente?; redinha de fruta –

experimente e escreva

O exercício 3 inicia a proposição de dimensões diferentes na escrita. São elas

imaginar, lembrar e criar. Embora separadas tenuamente, através dos estímulos dos objetos o

grupo experimenta essa escrita mais direcionada, nos exemplos temos a evocação de

lembranças, com os objetos bolinha de gude e fita de rádio; Imaginação com a concha do

mar, sendo esse sentido de imaginação o de visualização de imagens; e por último a criação,

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com o pote de chaves e uma redinha de fruta, neste último objeto há a proposição sensorial

com a textura da redinha.

Figura 20. Caderno 1, exercício escrita com objetos,

Acervo pessoal, 2019.

Figura 21. Caderno 2, exercício escrita com

objetos, Acervo pessoal, 2019.

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Figura 22 e 23. Exercício 3, Acervo pessoal, 2019.

Tabela 4. Exercício Carta

Exercício 4 Carta

Descrição Escrita de uma carta para o “eu” do futuro.

Procedimento Com tempo estimado, escrever uma carta para si, no futuro ou passado.

Especificações são possíveis, exemplo: Uma carta que alerta sobre algo,

que fale de um tema, que relembre coisas, que tenha desenhos ou alguma

história que precisa ser contada. Na variação do exercício poderá ter a

opção da carta ser endereçada à alguém e ser postada via correio.

A escrita de cartas é uma operação com muitas possibilidades. Elas podem ser

endereçadas a alguém, a si mesmo no passado ou no futuro. Podem enviar uma mensagem

para um povo distante, podem conter um segredo sobre o mundo. Há na escrita de cartas uma

intimidade revelada, característica de seu formato confessionário e cuidadoso nas escolhas de

palavras. As cartas foram amplamente utilizadas nesta pesquisa, como procedimento de

escrita, modo de comunicação com os atores quando estava no Rio de Janeiro, mas também

como produção de rastros do processo, enviadas para um eu do futuro.

No exercício 5 vemos a expressão “dizer sem dizer”, esta é uma proposição para

abertura de criação de simbologias, atribuição de significados e metáforas para o cotidiano,

onde a prática de criar imagens poéticas sobre o real pode ser instaurada. O módulo de Frases

e Listas são procedimentos aplicáveis em qualquer tema, podem ser introdutórios para grupos

que não são familiarizados com escrita criativa ou ser voltados para o objetivo pretendido,

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como nesse caso, em que o exercício 6 iniciou as modalidades de exercícios mais

direcionados à escrita de si.

Tabela 5. Exercício Frases

Exercício 5 Frases “dizer sem dizer”

Descrição Escrita de frases sobre o dia

Procedimento Com um número de frases definido, escrever sobre um acontecimento do

dia estabelecendo uma imagem poética para o ocorrido. Ao explicar o

exercício, fazer aproximações com o conceito de metáforas.

Tabela 6. Exercício Listas

Exercício 6 Listas

Descrição Listar cinco coisas urgentes sobre si

Procedimento O número de coisas na lista pode variar, assim como o tema. As

urgências sobre si, suscitam o carácter confessionário e pessoal da escrita.

Exemplos de variações possíveis: x tarefas para fazer antes de 2050, x

objetos essenciais para levar para outro planeta, x características que

dizem sobre a personalidade.

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Figura 24. Cadernos 1 e 2 com exercício 6, Acervo pessoal, 2019.

Tabela 7. Exercício Colagens

Exercício 7 Colagens

Descrição Colagens no caderno, lembrança de acontecimentos

Procedimento Colar no caderno a lembrança de um dia. Propor a Ideia de

materialidades como registros significativos., A instrução pode variar

inserindo temas: lembranças de uma tarefa, recolher algo na rua, buscar

coisas em casa.

A modalidade dos exercícios que se propõe colagens, como o exercício 7 e uma das

etapas do exercício 8, têm o objetivo de estimular outros meios de registro e escrita, no campo

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da imagem principalmente, permitindo visualizar outras materialidades que podem estar nos

cadernos. Neste exercício saltaram dos cadernos marcas de café, uma planilha de escritório,

brincos de pena e um pedaço de caixa de pizza.

Figura 25. Cadernos com exercício 7, Acervo pessoal, 2019.

É também no exercício 8 que se interpenetram escrita de si e descrição que possibilite

imagem, nele proponho uma possível autodescrição física e depois uma autodescrição não

física, isto é, gostos, características, histórias... Já o exercício 9, propõe coletar histórias.

Inicialmente elas foram faladas e só depois foram para o caderno, numa experimentação da

transposição da oralidade para a escrita.

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Tabela 8. Exercício Narrativa de si

Exercício 8 Narrativas de si

Procedimento A partir das provocações dos tópicos, escrever em linhas estabelecidas.

Em “Se me ver na rua eu sou assim…” está proposto uma ideia de visão

de si a partir do outro, isto é, descrição de aspectos físicos, já em “se só

me ver não vai saber que sou assim…” envolve uma ideia de

características menos superficiais como gostos, preferências e fatos

pessoais.

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Figura 26. Cadernos com exercício 8, Acervo pessoal, 2019.

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Tabela 9. Exercício Coletar histórias

Exercício 9 Coleta de histórias

Procedimento Instrução para coletar histórias engraçadas sobre de onde viemos, nosso

lugar, nossas cidade e bairros de origem. as variações podem conter a

coleta de histórias de um familiar mais velho.

Figura 27. Caderno com exercício 9, Acervo pessoal, 2019.

A figura anterior conta uma história de infância de uma das atrizes, que sempre que

andava de bicicleta pelo bairro achava que a caixa d'água estava perseguindo-a.

Exercícios de comicidade

A escolha da comicidade como geradora de procedimentos, dar-se pela minha

proximidade com o circo como palhaça e malabarista, sendo frequente em minhas oficinas de

escrita anteriores a esta pesquisa, o uso de ferramentas do circo, sobretudo na dimensão

corporal. Nesta experimentação, comicidade é o modo de operar e evidenciar os corpos dos

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sujeitos, através de jogos para cenas cômicas e recursos próprios do treinamento em

palhaçaria.

Na palhaçaria há procedimentos em que é possível observar os corpos justamente no

movimento entre a técnica e o que há de pessoal no emprego dela. O palhaço é um corpo que

brinca em sua lógica puramente física, como afirma Puccetti (2008) “ele pensa e sente com o

corpo”. Ainda segundo o autor:

Na tradição, o palhaço adquire uma estrutura, com maior ou menor grau de

codificação, para que, num segundo momento, coloque nela o seu caráter, sua

pessoa, o seu ritmo pessoal [...] A comicidade pessoal é a resultante da tensão entre

o que é pessoal, o caráter individual, o que é único e aquilo que o palhaço vai fazer

em cena, que pode ser aprendido ou inventado (PUCCETTI, 2008. p.109-110).

As palavras de Puccetti (2008) nos dá indícios do quanto tais procedimentos

denunciam uma dimensão corporal pessoal. Obviamente não se pretende que os atores

tornem-se palhaços e palhaças, mas seus exercícios revelam andar, movimentos, vícios

corporais, ou seja, características em que também está a dimensão da criação de si.

É válido ressaltar que os exercícios descritos são adaptados para esta experimentação e

de autoria desconhecida, pois são repetidos como método em muitos grupos e oficinas. Nestes

exercícios embora seja um objetivo evidenciar o corpo, também opera-se a criação em escrita

a partir disso, a escrita é também movimento e experiência corporal.

Tabela 10. Exercício Comicidade 1

Exercício 10 Rir de si e do outro

Procedimento

Entrada, encarar a todos da plateia, triangulação com o banco ao centro

da cena, subir no banco, limpar algo no teto, comunicar o medo e a

indecisão de como descer do banco, resolver como descer, ao descer

comunicar alívio com o corpo, sair.

-Escrita: O que me faz rir nessa pessoa? (cada caderno passa por todos do

grupo, ao final cada pessoa tem as impressões de todos sobre seu

exercício cômico)

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Figura 28. Caderno com exercício 10, Acervo Pessoal 2019.

No exercício 10 vemos uma abordagem de exercício localizada na comicidade de

gesto ou movimento, em que o corpo está evidente. Esse exercício, como outros nesta

modalidade, foram precedidos de alongamento e aquecimento que instaurou o corpo para

movimentação, em que malabares foram usados, jogos de imitação, caminhas como animais e

outros já conhecidos que introduziram para experimentação final. Já o exercício 11 atua na

dimensão da comicidade verbal, em que o excesso de verbalização é estimulado como

procedimento para a chegada da fala de coisas banais e tidas no sense, como: falar com um

objeto, elogiar um canto da sala e reclamar de sua vida com a parede.

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Tabela 11.Exercício de Comicidade 2

Exercício 11 O Corpo fala

Procedimento

Andar em velocidades conforme comando, ver o espaço como se tudo

fosse interessante, experimentar andar comandado pelo nariz, falar sem

parar com um objeto, depois sobre o objeto. Andar observando uns aos

outros e quando esbarrar cumprimentar com uma palavra inusitada,

depois cumprimentar com um movimento seguido de.... Em seguida ao se

encontrar falar sem parar ao mesmo tempo sobre os objetos do espaço.

O exercício 12 é simultaneamente de escrita e comicidade, gerado a partir dos

exercícios de cenas cômicas experimentados e das discussões sobre a cidade. Constitui-se

como uma proposição de criação de universo que inverte a lógica cotidiana. Este exercício

pode ser a gênese de criações de cenários e situações para uma cena. É possível combinar

cidades criadas, recriar essas cidades após debates sobre o primeiro escrito, além de ser um

exercício que possibilita outras maneiras de registrar uma ideia, através de desenhos, imagens

e outros formatos.

Tabela 12. Exercício criar Cidade

Exercício 12 Criando uma cidade engraçada

Procedimento Criar, descrevendo e/ou desenhando (todas as formas são bem vindas)

uma cidade da bobeira. Pensar nas engrenagens de uma cidade e desafiar

a lógica e a funcionalidade.

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Figura 29 Caderno com planta baixa e descrição da cidade da bobeira, Acervo pessoal, 2019.

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Figura 30. Caderno com cidade da bobeira, Acervo Pessoal

Tabela 13. Exercício de Comicidade 3

Exercício 13 Vícios e Figura opressora

Procedimento

Criar vícios com o corpo através do andar, depois com o rosto, depois

incluir braços e coluna com base numa figura opressora, experimentar

vícios nessa figura de autoridade e/ou opressora.

O mediador entrevista a figura opressora sobre algum assunto aleatório e

distinto do que seja sua natureza, exemplo: entrevistar um homem rico

sobre tipos de balde para carregar água, entrevistar uma mulher no padrão

de beleza sobre biscoitos de chocolate.

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Este último exercício deste módulo, possibilitou diversas relações corporais do grupo

uns com os outros. Ele está situado tanto na experimentação da comicidade de gestos e

movimentos como comicidade de situação com a etapa final de entrevistas. As construções

foram exaustivamente exploradas e permitiram observações tanto sobre características físicas

dos atores e atrizes como a escolha das figuras opressoras deram indícios sobre narrativas

pessoais de cada participante.

Exercícios sobre a cidade

A maioria dos exercícios deste módulo não foram proposições minhas e surgiram

através de questões disparadoras sobre a cidade em rodas de conversa do grupo. Desses

encontros imprecisos, foram extraídos estes cinco exercícios que podem ser empregados em

qualquer cidade conforme suas características. Dentre as questões disparadoras:

● Memória da cidade

● Problemáticas mais evidentes

● Observações sobre as mini cidades dentro da cidade

● Nossa cidade como nossa identidade individual.

Estes encontros foram feitos em muitos espaços, onde a ideia era firmar um estado de

deriva na escrita. Estivemos em praças, ruas, becos, e outros lugares fora da sede do Grupo,

como a casa do coordenador Luíz Pazzini e a sala de aula no Centro de Artes Cênicas do

Maranhão. Essas andanças foram importantes por estabelecer novas situações como escrever

no chão ou nos bancos das praças, permitiu uma mudança de percepção, e pensar na escrita

possível fora da mesa e da sala. Neste módulo, também foram os de menos registros

audiovisuais, pois com o envolvimento nos debates, a câmera fotográfica foi esquecida.

A questão da cidade, como dito anteriormente, emergiu mediante o conto, mas

também na percepção de que está relacionada à identidade. Somos também uma cidade, uma

comunidade, sócio e culturalmente. Este eixo foi o que mais suscitou narrativas pessoais dos

atores e permitiu proximidade entre os integrantes, indicando a existência de um sentimento

comum quando habitamos e pertencemos ao mesmo espaço.

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Figura 31. Encontro na Praça dos Catraieiros - São Luís/MA, Acervo pessoal, 2019.

Tabela 14. Exercício trilha sonora

Exercício 14 Sons da cidade

Descrição Flutuações sobre uma trilha sonora para a cidade

Procedimento Em roda, elencar sons característicos da cidade, reunir especificidades

desses sons e elaborar/imaginar uma trilha única que fale sobre o lugar.

O exercício 14 foi elaborado a partir de conversas sobre a cultura musical de São Luís,

influenciada por muitas matrizes, sobretudo africana. Chamada de Jamaica Brasileira, ilha do

Reggae e capital do bumba-meu-boi, muitas são as sonoridades que fazem parte da identidade

ludoviscense. Esta última, por exemplo, é a manifestação popular que possui cerca de quatro

ritmos musicais, entre eles, sotaque de orquestra, da baixada, costa de mão e de matraca.

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Desta forma, este exercício e outros foram elaborados a partir da identificação de

especificidades sobre a cidade. No exercício 15, falamos sobre a relação particular que temos

com as praias da ilha, com a variação da maré, uma das maiores do mundo, onde percebemos

as idas à praia são memórias comuns de infância. Já outros exercícios surgiram na urgência

em falar sobre pontos negativos, e elencar proposições, imaginar uma cidade ideal, pensar

nossas contribuições para a mudança. Assim também, falar de cidades invisíveis dentro da

ilha, lugares esquecidos e relacionar com os imaginários de São Luís construídos para os

visitantes.

Tabela 15. Exercício Histórias Comuns

Exercício 15 Histórias em comum

Descrição Eleger um tema comum ao grupo e contar histórias pessoais

Procedimento Após conversas para a escolha do tema comum, escrever uma ou mais

histórias. Na escolha do tema idas à praia, estabeleceu-se até uma página

com histórias situadas na infância. A história não precisa ter início meio e

fim, podendo ser uma sucessão de lembranças.

Figura 32. Cadernos com idas à praia, Acervo pessoal, 2019.

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Tabela 16. Exercício Cidade 1

Exercício 16 Se pudesse resolver um problema de São Luís

Procedimento Após debates sobre problemas da cidade, cada um escreverá uma solução

(real ou fantástica) para um único problema escolhido.

Tabela 17. Exercício Cidade 2

Exercício 17 Imagens de São Luís

Procedimento Descrever e conversar sobre imagens de São Luís, aquelas que não estão

nos cartões postais. Este exercício é uma prática de registro sobre o

encontro, como um diário de bordo.

Tabela 18. Exercício Persona-cidade

Exercício 18 Criação de personagem

Descrição Criar uma persona-cidade

Procedimento Criação que vê a cidade como personagem, sua forma física. Exemplo de

variações: persona-praça, persona-bairro.

Este último é um procedimento que propõe a criação de um personagem. Nas rodas de

conversa sobre a cidade, várias vezes nos referimos à cidade como uma pessoa, uma persona,

um organismo em movimento que tem textura, cheiro, sabores e sonoridades. Como seria se

nossa cidade fosse um indivíduo? Um personagem fantástico? Foi nesse encontro também que

conversamos sobre lendas e histórias da nossa cidade, como a serpente encantada, Ana

Jansen que passeia de carroça levada por um cavalo sem cabeça, as carrancas da fonte do

ribeirão, os cazumbás, caboclos de pena e de fita. De alguma maneira São Luís passeia entre

seres fantásticos, e este exercício pretendeu evidenciar isso.

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Figura 33. Persona-Cidade, Acervo pessoal, 2019.

Percebo nesses procedimentos de criação em escrita, princípios próprios do Teatro

Documental ou também chamado de Autobiográfico, uma vez que as narrativas pessoais dos

atores e atrizes eram suscitadas pelos exercícios sob o suporte dos diários/cadernos. Também

como princípio desta modalidade teatral e em fluência com as propostas apresentadas, Leite

(2017) afirma:

Os atores são convocados, através de proposições gerais do processo como temas,

questões, procedimentos, a trazerem seus materiais, sendo assim responsáveis pelas

escolhas no que refere à encenação (escolha de espacialização, luz, som) e à

dramaturgia (não só os textos proferidos em cena, mas também as situações, as

relações, as personagens)(LEITE, 2017. p.33).

Os cadernos repletos de escrita, ao final estavam completamente diferentes entre si,

em cheiro, peso, rascunhos, borrões, cada caderno traduz uma personalidade própria. Ele

revela os sujeitos por trás dos traços de suas características plásticas, o estado do caderno, a

caligrafia, as rasuras… Assim também, seus vazios oferecem indícios, nos dão pistas sobre

quem pouco escreve ou quem apaga o que escreveu. O diário/caderno tanto diz das

experiências quanto não diz, ele é rastro fragmentado que apenas abre uma fresta para o

vivido.

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a 34. Carta da Dramaturga Nádia Ethel, Acervo pessoal, 2019.

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Figura 35. Carta da Dramaturga Nádia Ethel, página 2, Acervo pessoal, 2019.

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3.2 No continente

Os encontros com a turma de alunos/diretores da UFRJ se constituíram como oficinas

de escritas dramatúrgicas mais direcionadas. Não era um objetivo que os alunos participassem

como atores e atrizes como com o Grupo Cena Aberta e sim como diretores/dramaturgos.

Logo, os procedimentos se distinguem embora tenham aspectos semelhantes quanto a voz dos

sujeitos do processo e o poder de decisão do grupo.

Nesta experimentação, cadernos, conto, manuscritos, cartas, relatos e outras

materialidades geradas cruzam 3.146 quilômetros, rumo à mãos desconhecidas. E justamente

por isso, esta sala de aula precisaria se sobressair como sala de criação, pois a lida com esses

materiais demandava escuta, flutuação e outras características inerentes ao estado de criação

conjunta. E logo meu primeiro desafio foi a aproximação com os alunos, que diferente do

Grupo Cena Aberta, eram completamente desconhecidos. Esta sondagem e primeiro contato

aconteceram nos primeiros encontros em que observei as aulas da Prof.ª Dra. Jacyan, cujas

abordagens são bastante dialógicas e práticas.

Através de observações dessas aulas iniciais, constatei a proximidade dos alunos com

a escrita e com os conceitos básicos dramatúrgicos além de envolvimento de alguns em

montagens que estavam em processo. Logo na primeira aula que assumi, fiz um exercício de

escrita para aproximar os alunos e a pesquisa, nele cartões postais são deixados em pontos

diferentes da sala e os alunos são instruídos a escrever algumas linhas sobre o que cada cartão

os provoca imaginar.

Este exercício segue o mesmo princípio

do proposto com o Cena Aberta, feito com

objetos. Aqui ele serviu para aproximar o grupo

da proposta da oficina e verificar a adesão dos

alunos a atividades como esta, além de perceber o

envolvimento de cada um com a escrita em

situação, isto é, que se dar a partir das

circunstâncias, em movimento pela sala, com

tempo estipulado. É válido ressaltar que a

proposta da oficina foi adaptada para atender aos

requisitos da ementa do curso, que tinha foco de

discutir o teatro moderno brasileiro e

Figura 36. Exercício com cartões postais

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contemporâneo. Logo haveria encontros para discussão teórica além da experimentação,

assim também propus que a cada encontro falássemos de algum dramaturgo ou dramaturga do

norte ou nordeste do Brasil, para ampliar nosso repertório de peças, geralmente concentrados

nos epicentros Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Dessa forma, todos os encontros foram precedidos de alguma discussão teórica

concentradas sobretudo no dramaturgismo, nas operações dramatúrgicas ditas

contemporâneas e suas questões, tais como formas, recursos, noção de personagem e natureza

dos textos além da Dramaturgia no Teatro para crianças e suas questões. Os passos da

experimentação que sucedem não correspondem a um encontro cada, pois algumas etapas

levaram mais encontros que outras para serem cumpridas. Aqui estão organizadas para uma

melhor compreensão das etapas de trabalho e seus objetivos.

Passo 1 - Contato com materiais

Todos os materiais foram dispostos na sala para o primeiro contato com as

materialidades, inicialmente sem indicação. Em seguida, cada um escolhe um caderno

manuscrito do conto ou carta para, em seguida, compartilhar suas impressões a respeito do

material com a turma. Perguntas norteadoras nesta etapa foram: que características são

atribuídas a este material? O que você especula sobre quem o produziu? O que mais chama

atenção?

Passo 2 - Inventário sobre os materiais

Familiarizados com os cadernos e outros materiais, voltamos a eles com um olhar mais

direcionado. A tarefa é fazer um inventário que nos dê ideia do que há naquele material, ou

seja, uma contagem descritiva que nos faça visualizar o material de partida e assim ter mais

propriedade sobre ele.

Passo 3 - Criação de personagens

Com o inventário em vista e sempre recorrendo aos materiais, escrever possíveis

personagens criando uma tempestade de ideias. A intenção não é criar personagem em seu

sentido profundo, sabemos que estes mostram-se no decorrer da ação, a proposição aqui são

flutuações sobre os materiais, elaborando arquétipos, estabelecendo vínculos criativos com o

material de origem.

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Figura 37 e 38. Alunos da UFRJ produzindo Inventário a partir dos cadernos, Acervo pessoal, 2019.

Passo 4 - Escrita de Micro Cena

Escolher um personagem da lista criada no passo anterior e escrever uma primeira

aparição desse personagem em uma cena. Este exercício surgiu de uma conversa/debate sobre

a construção de personagens no teatro para crianças, onde é comum que os personagens se

apresentem ao público verbalmente e não se mostrem ao longo do enredo através de suas

ações e relações com demais personagens, dessa maneira, este exercício foi um desafio a

romper com esta convenção.

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Figura 39. Cena de debate para prefeito da cidade da bobeira, Acervo pessoal, 2019.

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Passo 5 - Eleição de um cenário/universo a partir do último exercício

Com base nos exercícios anteriores a turma optou por trabalhar em cima de um

universo ficcional que servisse de ambiente às criações que viriam. Através dos escritos

anteriores sobre os personagens. Assim, a turma optou por eleger A Cidade da Bobeira como

seu cenário, a fim de aproveitar melhor os personagens criados e ampliar as possibilidades de

escrita.

Passo 6 - Escritas em Grupo

A turma dividida em dois grandes grupos, um deverá escolher três personagens da lista

já criada e escrever uma cena em que estes discursam como candidatos para uma eleição à

prefeitura da cidade da bobeira. O outro grupo deveria elaborar um projeto da cidade da

bobeira, isto é, descrições ou desenhos que comuniquem as características. Esta proposição

dá-se com base nos elementos do conto A cor de Deus, em que percebe-se a presença de

prefeitos e líderes das cidades que o menino visita bem como a descrição dessas cidades,

também as criações no exercício dos atores do Grupo Cena aberta são ponto de partida.

Figura 40. À esquerda rascunho da cidade da bobeira, à direita planta baixa definitiva

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Características da Cidade da bobeira: A cidade é um labirinto em que as placas mudam

de lugar, chove casca de banana, o guarda de trânsito tem uma língua de sogra, e os meios de

transporte são velotrols e monociclos, os bombeiros são palhaços, os bancos só servem para

brincar nas portas giratórias, os policiais estão sempre correndo e os funcionários da

prefeitura são mímicos e os bancos das praças fogem sempre que alguém se aproxima para

sentar.

Passo 7 - Escrita de uma cena

Com base na produção escrita do passo anterior, todo o grupo deverá criar a primeira

cena de uma dramaturgia. Nesta criação, deverá estar claro a ambientação/contexto da trama

além de ser obrigatório estabelecer indícios de um conflito futuro. Aqui a turma fará escolhas

cruciais para o cumprimento da tarefa, como personagens, o que dizem e como falam. O

principal desafio é fazer com que as ideias saiam do campo imaginativo e comuniquem-se

com a escrita, assim também acertar as vontades individuais com as do coletivo.

Nesta etapa feita nos últimos encontros, fiquei como escrivã do grupo, ao passo que as

decisões foram sendo tomadas e as falas delineadas, eu registrava digitando no celular com

um aplicativo do word. Criado o universo ficcional, os personagens, pequenas cenas e outros

materiais, o principal desafio era materializar as muitas ideias vindas de um universo amplo e

rico em possibilidade. A cidade da bobeira, seus mapas e suas características permitem que

muitas histórias caibam em suas ruas engraçadas e praças malucas, assim como nossas

cidades, seja São Luís ou Rio de Janeiro, guardam nossas histórias, dizem sobre nós e até

produzem outras cidades dentro da cidade.

Os Fóruns como espaço para decisões e horizontalidade foi a principal estratégia para

instaurar um ambiente de criação democrática e dialógica. Primeiro, por facilitar o andamento

das experimentações, uma vez que havia faltas de alunos, evasões e outros empecilhos que

impediam do mesmo grupo seguir participante em todos os encontros, logo o grupo presente

tinha total liberdade sobre as construções já feitas e toda a matéria criativa pertencia ao grupo.

Segundo, os fóruns foram decisivos para construção de debates sobre os

conteúdos/temas e diálogos destes com as experimentações escritas, tal estratégia situa-se no

“campo de incertezas advindo de um vivaz e plural ambiente de troca de propostas, assim

como de discordância de opiniões, entre os integrantes do processo. Ainda segundo

Gonçalves Júnior (2017) estes procedimentos são distintos daqueles cronologicamente mais

pragmáticos e com tempo exíguo para a encenação de um conceito ou da visão de um diretor,

encenador ou coreógrafo (GONÇALVES JÚNIOR, 2017. p.125).

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As criações geradas pelos alunos/diretores da UFRJ, embora não tenham alcançado a

forma de um texto dramatúrgico estruturado com início, meio e fim, somente por falta de

tempo hábil, revelam caminhos e procedimentos eficazes de criação, sobretudo fazendo uma

criação em rede e ambientes de interação, em que as linhas de autoria e acabamento da obra

são preteridas em relação à experimentação. Nesta pesquisa, o principal feito não está nos

textos estruturados mas na sistematização dos procedimentos de construção, na evidência dos

modos de fazer.

Cena Produzida coletivamente com os alunos da UFRJ através dos cadernos dos atores e

atrizes do Grupo Cena Aberta

CENA UM

ciclista chega na cidade

Ciclista viajante-

Parafusos pra que te quero Aro, roda, freio já no fim a estrada é longa feito chiclete esticado o que vai ser de mim? Pedalo e nunca chego na cestinha acabaram os quindins vou bater de porta em porta e alguém há de abrir pra mim Dona boba do museu )na janela muito atenta à bicicleta) - Quem é esse viajante que chega

na.cidade? Trazendo essa dupla bobeira rolante desconhecida?

Ciclista viajante bate a porta

Dona boba do Museu- sim?

Ciclista viajante – boa tarde! Você teria parafusos?

Dona boba do Museu - Não

Ciclista viajante - Graxa para corrente?

Dona boba do Museu - Não

Ciclista viajante - Bomba de ar?

Dona boba do Museu - Não

Ciclista viajante - Batata doce? Travesseiro? Pedra de faisão? Pena de urubu? Um quindim ou dois e

uma caixa de giz de cera?

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Dona Boba do Museu- Quindim!

O ciclista segue Dona Boba Museu que Pára e olha para bicicleta com interesse e pergunta

- isso é uma bobeira também?

Ciclista viajante - Vanuza? Está comigo toda viagem, me leva para todos as viagens

Dona boba do Museu (se dirigindo à bicicleta Vanuza)– Vanuza...não descansar neste cantinho do

museu?

Cai uma peça da bicicleta

Dona boba do Museu – claro, sim.

Seguem andando

Dona Boba do Museu - Vanuza é uma ótima bobagem para estar no meu museu!

Dona boba do Museu mostra um mapa da cidade na parede

Dona Boba do Museu – Você desce da rua dando três pulinhos e vai chegar direto na rua dos gatos, é

bem fácil de achar pq tem os bombeiros colocando eles nas árvores, quando passar por lá, nada de

miados nem ronronados senão os bombeiros te colocam numa árvore. Atravessando essa rua chega

no banco.

Ciclista viajante – estou precisando sacar um dinheiro

Dona Boba do Museu (gargalhando) – tirar dinheiro do banco? Aí você é tão bobo...

Ciclista viajante – o que mais se faz num banco?

Dona boba do Museu – a única coisa que se faz num banco, girar nas portas giratórias. Depois de

girar virar à esquerda na praça dos bancos.

Ciclista viajante – mais bancos com portas giratórias?

Dona boba do Museu – aquele outro tipo de banco

Ciclista viajante – pra sentar?

Dona boba do Museu – você faz umas perguntas... Continuando a nordeste você passa na delegacia

pegue emprestado um velotrol oficial e seguindo a sudoeste passa pela prefeitura caso tiver alguma

dúvida pode perguntar, os funcionários são super eficientes, já o prefeito estamos em vias de eleger

um bobeirense, bobalhão, uma boberopolitana a altura para tal.

- Girando oito pedaladas a noroeste você chega na padaria, aí é só bater a cabeça no vidro pra abrir,

o vidro dessa padaria é ótimo pra bater a cabeça. Tenho certeza que o quindim vai estar lá.

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4. UM LAMPEJO SOBRE DRAMATURGIA PARA INFÂNCIA.

Setembro de 2019, sobre a mesa de professor que está no espaço onde seriam apenas

mesas de alunos, está uma folha de papel servindo de quadro para discentes de Direção

Teatral da UFRJ escreverem palavras-chave sobre o tema Teatro para infância.

Figura 41. Quadro de palavras chave sobre teatro para crianças

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Pouco sabemos sobre o que move as crianças à determinada peça, texto literário ou

filme. No campo de discussões em torno do teatro para infância, suas temáticas, encenações e

recursos devem ser pautados diante do fazer teatral ligado à contemporaneidade, pois quando

analisamos o percurso do teatro até hoje, olhamos o teatro para infância pouco participante

dessa história. Nas palavras de Nazareth (2012, p. 73) “É como se o teatro infantil não tivesse

conseguido acompanhar a dinâmica do mundo, o mudar dos conceitos e – sobretudo – a

transformação da criança”.

Antes, na perspectiva “adultocêntrica” de organização social25

, a criança era vista

apenas como um ser passível e improdutivo, agora, ela consome cultura e até produz. Porém,

a mercê das escolhas feitas por adultos, pais e professores que a fazem, na maioria das vezes,

sem critérios estéticos e considerando apenas preços, aspectos mais visíveis (superficiais até)

ou mesmo guiados pela memória emotiva de suas próprias infâncias que anulam qualquer

senso crítico. (LEÃO, 2001. p.86).

Embora esse conceito de infância tal como o conhecemos hoje, tenha surgido na

idade moderna e influenciado uma série de produções (pode-se também incluir produtos)

voltadas para a infância, sabemos que há registros antigos referindo-se à “China, no século III

a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavam espetáculos domiciliares para crianças e

mulheres de classe social elevada” assim também, “entre os séculos XV e XVII da era cristã”

com a commedia dell`arte em que os roteiros cômicos interessavam ao público infantil

(LOMARDO, 1994. P.11-12).

Até meados do percurso desta pesquisa, não era um objetivo levantar com ênfase a

temática do teatro para infância, a necessidade de pontuar a identidade desta experimentação

aconteceu pela vontade de melhor contribuir com as discussões recentes. Reconheço que tão

importante quanto expor o processo criativo é discuti-lo e situá-lo nesse campo ainda com

estudos pontuais, principalmente na dramaturgia em criação.

A maneira que cada criança se relaciona e constrói sentido sobre suas experiências

artísticas é um território ainda pouco explorado, por isso deve-se apostar na diversidade de

obras de arte para as crianças e jovens e na importância de se debater o assunto em

universidades e espaços a que compete debater sobre expressões artísticas.

A sopa de palavras escritas no quadro pelos discentes e futuros fazedores de teatro da

cidade são constantes observadas no circuito atual que denunciam relações históricas do teatro 25

Nos estudos de Edmir Perrotti (1984) sobre a criança e a produção cultural, é abordada a categorização rígida

do adulto como um ser ativo e da criança como um ser passivo, sob a ótica do sistema de produção capitalista

que determina e reconhece um segmento no todo social pela sua atividade ou ausência dela. Perrotti afirma que

essa oposição ativo/passivo, referindo-se à criança e ao adulto é histórica e não natural, interferindo no fato de

que pouco se pensa na criança produzindo cultura ou recebendo e produzindo cultura ao mesmo tempo.

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para infância e a herança a qual está submetido. Usarei, portanto, algumas palavras sugeridas

no quadro para refletir sobre aspectos teatrais deste segmento, e principalmente friccioná-los

com a dramaturgia, isto é, relacionando temáticas, personagens, recursos dramáticos e

questões a respeito da produção de narrativas.

Para isso, No Reino da Desigualdade (1991) da Prof.ª Maria Lúcia de Souza B. Pupo é

um estudo guia. Seu trabalho minucioso sobre uma amostra de peças paulistas da década de

1970 é um dos poucos que trata especificamente sobre dramaturgias autorais, isto é, que não

são adaptações de clássicos de literatura brasileira nem estrangeira. Além disso, a amostra

referência um período de alta produção no teatro para crianças do circuito brasileiro, marcada

por peças que começam a instaurar um caráter mais artístico que educativo, a exemplo de

Pluft, o fantasminha (1970) e Histórias de Lenços e Ventos (1974).

Este escrito, nomeado lampejo, diz respeito a considerações sobre dramaturgia para

infâncias percebidas ao longo desses anos em que me intriga a produção de texto para

crianças e jovens. Lampejo, pois, o tema certamente mereceria uma atenção aprofundada,

principalmente nas peças mais recentes, o que não é minha intenção neste momento. Por ora,

este escrito é uma centelha de pensamentos a partir de quem experimenta.

4.1 Educação | Escola | Arte Educação

Compatíveis entre si, as três palavras apontadas pelos alunos de graduação da UFRJ,

podem nos dar pistas sobre como falar de características permanentes nas dramaturgias para a

infância, o moralismo e caráter professoral. Segundo Lomardo (1994, p.17), historicamente

até o século XX as manifestações teatrais para a infância se concentravam no teatro de formas

animadas, sendo exceções as poucas experiências com o “teatro educativo (mais exatamente,

teatro de cunho moral), geralmente a cargo dos jesuítas ou irmandades religiosas”.

Foi nesse sentido moral e até doutrinário que o italiano Giovanni Bosco (1815-1888),

a fim de normalizar seu teatro, desenvolveu As Dezenove Regras de Dom Bosco, regulamento

em que o frade ditava rigorosamente como prosseguir nas encenações. Entre as regras,

aspectos técnicos, de conteúdo, temática e a extensão dos textos (LOMARDO, 1994, p.17).

Na virada do século XIX para o XX Maria Montessori e John Dewey formulam

propostas educacionais específicas para infância, reconhecendo-a como período importante na

formação humana. Mudanças como a redução do tamanho do mobiliário faziam parte do

pacote de reformulações a partir da identificação das necessidades inerentes à infância. Ainda

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segundo Lomardo (1994. p.18), tais propostas fizeram com que a função pedagógica do teatro

passasse a ser vista com outros olhos. Segundo o autor:

O teatro educativo (frequentemente confundido com teatro moral ou religioso), sob

total supervisão e direção das pessoas adultas, permanecerá como a mais difundida

forma de teatro infantil durante quase metade do século XX, exatamente até o fim da

Segunda Guerra Mundial (LOMARDO, 1994. p. 19.).

Não obstante, no Brasil do século XX, o teatro infantil, já visto como produção

específica predomina uma demanda mais pedagógica do que estética. Inaugurando o teatro

escolar, temos Teatrinho (1905) de Coelho Neto e Olavo Bilac, volumes que incutiam valores

morais e ensinamentos contra os “desvios” na educação que as crianças recebiam na escola.

Em 1915, outro volume com autoria de Carlos Góis, impõe “à criança normas de

comportamento que por um lado correspondem a um modelo adulto e, por outro, a um modelo

de passividade e ausência de iniciativa” (LOMARDO, 1994. p.34).

O teatro para crianças de cunho artístico desenvolve-se somente a partir de O casaco

Encantado (1948) de autoria de Lúcia Benedetti. Da década de 1950 em diante, acrescentam

ao movimento, figuras como Maria Clara Machado, Tatiana Belinky, Sylvia Orthof, Olga

Reverbel e outros. Diretoras, encenadoras e educadoras cujas obras permanecem sendo

encenadas na atualidade.

É notável que o teatro para infância funda-se no didatismo e moralismo deixando

rastros disso, infelizmente, até os dias atuais. Esta raiz no teatro educativo, talvez seja a

principal causa do tratamento da arte para crianças como um subgênero e subproduto. Seu

sintoma é quando vemos no lugar da qualidade estética, a vontade desenfreada de ensinar.

Nos palcos, a displiscência com os parâmetros artísticos, na plateia, crianças subestimadas

reduzidas intelectualmente.

O papel educativo do teatro é, antes de tudo, o da aprendizagem da vida, das

relações sociais e políticas, das relações com a natureza e com os outros seres

humanos, conhecimentos esses que devem ser apresentados às crianças a partir do

ângulo da arte, do pacto com o lúdico e com a fantasia, em um processo de

decodificação da realidade a partir do texto e da cena dramática, excluindo desse

processo qualquer atitude que delegue ao adulto superioridade e função didática

(GRAZIOLI; FLORES, 2019. p.11).

A herança moralista se alastra e reduz a produção cultural para crianças. Deduzir o que

se acredita como limite da compreensão infantil, infecta praticamente todos os aspectos de

uma obra, da temática à forma da escrita, a exemplo disso, Maria da Glória Bordini em Poesia

infantil (1986). Embora sua fala se concentre em uma vertente da literatura, ela é facilmente

aplicável em outras esferas que envolvam a escrita e as crianças como leitores ou público.

O que impera, na média da produção ficcional para crianças, é o despautério.

Campeiam a imbecilização das fórmulas verbais com diminutivos e adjetivações

profusas e construções frasais canhestras; a apresentação desavergonhada de

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absolutos duvidosos e irretorquíveis sobre o real, desestimulando a reflexão e a

crítica; a censura aos aspectos menos edificantes da conduta humana e, em especial,

a vontade desbragada de ensinar, sejam atitudes morais ou informações tidas por

úteis [...] (BORDINI, 1986, p.7)

Na Dramaturgia, dentre muitos exemplos que explicitam o moralismo, Pupo (1991)

cita a explicitação da convenção teatral, a autora acredita ser mais uma “tentativa de

escamotear o autoritarismo do elemento adulto” (p 100-101) onde as explicitações do

fenômeno teatral traduzem uma postura professoral, Assim ela afirma:

[...] em última análise, é uma tentativa de esvaziamento da própria função simbólica,

intrínseca a toda e qualquer linguagem artística. O didatismo simplista acaba

triunfando sobre uma visão da arte teatral enquanto possibilidade específica de

conhecimento. (PUPO, 1991 p.101).

No que tange às temáticas, a adaptação de temas e ilusionismo sobre o real são os

sintomas mais evidentes. O moralismo limita conteúdos às crianças, quando por exemplo, não

se aprofunda em temas sobre perdas, violência, pobreza ou assuntos sociais como questões de

gênero, sexismo e injustiças.

Em outubro de 2019, a Banda Mirim/SP, comemorando 15 anos de grupo, faz uma

curta passagem pelo Rio de Janeiro com programação aberta contendo oficina, apresentação e

encontro artístico26

. Neste último, atores-músicos faziam desmontagens de seus espetáculos

enquanto respondiam perguntas e ouviam experiências de outros artistas que tinham em

comum a produção teatral e musical para infância.

Na ocasião, o grupo falou sobre Menino Teresa27

(2007), espetáculo que sofreu

represálias por quem achou que seu título sugere se tratar de uma criança trans. O espetáculo

musical, de forma muito sensível, trata de uma expedição da personagem Teresa (atriz

Claudia Missura) por um quarto de menino entre cuecas, sapatos e bola, nada além de

perguntas sobre os gêneros masculino e feminino.

A Banda Mirim, grupo premiado e notável em suas produções para infância, possui

repertório de musicais com temas que comprovam a potência e a sofisticação de um público-

criança. Festa28

(2014) trata da passagem do tempo em que acompanhamos a personagem em

aniversários até a velhice. Quase sem diálogos, a peça propõe espaços para que o público

construa narrativas, identifiquem personagens e percebam seus significados.

26

Realizado em três de outubro de 2019 no Circo Crescer e Viver, o encontro artístico aconteceu com grupos de

teatro, músicos e artistas locais para troca de experiências e diálogo sobre artes cênicas para crianças e jovens no

Brasil. A Programação que contou com apresentações do espetáculo Festa no Teatro Sesc Ginástico e oficina de

Práticas Criativas teve patrocínio da Petrobrás e ocorreu em comemoração dos quinze anos do grupo. 27

Texto e Direção: Marcelo Romagnoli; Elenco: Claudia Missura e Tata Fernandes; Músicas: Tata Fernandes; 28

Texto e Direção: Marcelo Romagnoli; Direção Musical: Tata Fernandes.

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Em sua mais recente produção Buda29

(2017), resultado de pesquisas do grupo, parte

da história do príncipe Siddhartha Gautama. Confinado e protegido do mundo até a idade

adulta, quando decide sair em jornada fora do palácio, se depara com visões nunca antes

conhecidas nem imaginadas: o envelhecimento, a doença, a morte e a perda da dignidade.

É justamente com este enredo corajoso que desperto para a problemática em diluir as

temáticas e conteúdos que devem ser apresentados nas peças para as crianças, com pretexto

conservador de proteção à infância. Fica evidente uma falsa moral, quando percebemos que

esta proteção só diz respeito a determinadas infâncias, àquelas dos lares da classe privilegiada,

enquanto sabemos que os dados de crianças expostas à violência e ao abandono são

assustadores e que o acesso das crianças às casas de espetáculos ou atividades artísticas está

longe do satisfatório.

Os espetáculos da Banda Mirim, através da abordagem de temáticas complexas em

enredos sofisticados e aprofundados, tornam-se um exercício de rompimento de mitos do

teatro para crianças, principalmente dos que tem origem no moralismo, cito alguns: as peças

precisam de explicações do enredo e apresentação dos personagens, excesso de verbalização

que subestimam sua capacidade inteligível, duração curta e dinâmica acelerada julgando o não

interesse e a falta de concentração.

Suponho que outra, e talvez a mais grave consequência da negligência artística na

dramaturgia para crianças, seja o Conflito, ou a ausência dele. Sabemos que Conflito é um

elemento fundamental no gênero dramático, porém se a temática está esvaziada de sentido e

conteúdo, o conflito não existe. Tatiana Belinky, importante roteirista e dramaturga da história

do teatro brasileiro e fundadora do TESP30

junto com Júlio Gouveia, afirma:

Toda peça para crianças e adolescentes deve apresentar conflito perfeitamente

delineado, com personagens bem caracterizados e uma situação absolutamente clara,

para que o jovem espectador, através da identificação com um dos personagens (ou

com uma situação) sofra uma experiência, uma vivência pessoal verdadeira, com a

correspondente participação emocional. (BELINKY; GOUVEIA. 1984. p.34.)

Todavia, a amostra de peças analisadas por Pupo (1991) revela que é comum a

ausência de conflito principal claramente estabelecido, sendo maioria, os conflitos entre

29

Texto de Marcelo Romagnoli; Direção Musical: Tata Fernandes. Seu processo de construção nasceu do

Projeto BUDA – cadernos de pesquisa, contemplado para receber recurso da 26ª edição do programa Municipal

de fomento ao Teatro para cidade de São Paulo, no processo o grupo esteve com crianças, jovens, idosos,

imigrantes à margem da esfera social, realizando visitas artísticas em doze abrigos ou casas de acolhimento na

cidade de São Paulo, essas vivências e outros estudos alimentaram a criação do espetáculo que já ganhou

importantes prêmios como o APCA melhor direção e dramaturgia e Melhor Espetáculo Infantil Guia da Folha,

ambos do ano 2017. Fonte: Revista Banda Mirim #2 Notas de uma pesquisa, coord. Marcelo Romagnoli (2016).

30

Teatro-Escola de São Paulo – foi um grupo de teatro semi amador especializado em espetáculos para crianças

e adolescentes, que funcionou na cidade de São Paulo, de 1949 a 1964. (BELINKY; GOUVEIA p.30. 1984).

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personagens (75,5%). Segundo a autora, a inexistência de um eixo preciso “em torno do qual

possa crescer o confronto entre os personagens, acarreta um sensível empobrecimento da ação

dramática e, consequentemente, da totalidade do texto” (PUPO, 1991. p.60).

A dicotomia entre o bem o mal caracterizam 50,8% das peças que apresentam

conflito claramente definido, apontados por Pupo como pólos antagônicos e irredutíveis, onde

a bondade está para a beleza e a maldade para feiura. Ela afirma:

Na medida em que o conflito maniqueísta implica ausência absoluta de contradição

interna, as personagens que nele estão envolvidas ou se acham enquadradas dentro

do polo da ordem (bem) ou do polo da desordem (mal). Como tais, desconhecem

qualquer modalidade de ambivalência de sentimentos e funcionam exclusivamente

como tipos a serviço da trama, não chegando a ter uma dinâmica própria de ação.

(PUPO, 1991. p.62).

O excesso de verbalização em que a fala substitui a ação é observado na distinção

entre o vivido e o mencionado. Essa abordagem descaracteriza a definição de conflito e por

consequência sua solução, que em geral, apresentam-se a favor do protagonista, por uma ideia

repentina ou por mágica, onde o público emana energias positivas com as mãos pra cima, fala

uma palavra emblemática, imita um movimento para ajudar os personagens, ou ocorre o

chamado deus ex-machina, que consiste na aparição repentina de um dado ou personagem

inesperado trazendo o equilíbrio inicial.

Como disse anteriormente, percebo a relação de conflito nas dramaturgias como a

mais grave, justamente pelo conflito dramático ser uma forma (não a única certamente) de

veicular os conteúdos e produzir discurso. Uma vez que o conflito está ausente ou esvaziado,

pouco se pode esperar da trama, seu desenvolvimento, solução e personagens. Compactuo das

palavras de Nazareth (2016) que ao se confrontar com pouca mudança na dramaturgia para

criança hoje, questiona-se: “será que o texto no qual o conflito se dilui, no qual a relação de

causalidade é negada, deve ser analisado como um texto dramatúrgico de excelência?”

(NAZARETH, 2016. p.42.).

4.2 Ludicidade | Lúdico | Diversão | Alegria | Música

Através dessas palavras, levanto Comicidade e Música, máximas das dramaturgias

para infância, tema caro a esta pesquisa que tem nos procedimentos cômicos, um dos fios de

sua metodologia. Esses recursos dramáticos tidos como essenciais nas tramas e por isso

convencionalizados às encenações para crianças e jovens, representam “elementos

incorporados ao conceito daquilo que o adulto entende como sendo o gosto infantil, que

parece inconcebível a criação de um texto teatral desprovido do seu emprego” (PUPO, 1991.

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p. 100). Tatianna Belinky, dramaturga e roteirista, sobre ao que chama de comicidade infantil,

afirma:

Toda peça para crianças deve conter uma grande dose de humor e comicidade, pois a

criança precisa de alegria e de risos para descarregar os excedentes de energia

nervosa, e, no teatro, para avaliar a tensão das situações dramáticas. [...] a

comicidade depende do grau de inteligência, de sensibilidade, de cultura e de

educação do indivíduo que ri (BELINKY; GOUVEIA. 1984. p.39).

Na amostra erguida por Pupo (1991) na década de 1970, é unânime a presença do

cômico como recurso dramático. Em maioria, a comicidade verbalizada se caracterizando por

“incidente que pretende provocar riso através de recursos da própria linguagem” (1991, p.86).

Em seguida, a comicidade de gestos ou movimentos “motivada por circunstância exterior à

personagem”, e a comicidade de situação através de variantes como repetição e quiproquó31

.

As observações de Pupo, elencando as modalidades de comicidade empregadas nas

peças realçam a precariedade das construções dos personagens, pois os procedimentos

cômicos são apresentados exteriormente a eles, como mero convite à diversão. Isso significa,

segundo a autora, que “no teatro infantil o cômico não se faz presente nos elementos

individualizadores e identificadores da personagem, mas naquilo que ocorre com ela” (1991,

p.90).

Em outras palavras, a problemática não está na utilização desse recurso dramático e

sim, em sua má utilização. Em consequência do moralismo que subestima as crianças, o riso

também é subestimado como fenômeno social, subtrair-se da comédia sua possibilidade de

construção crítica, de ressignificação de experiências e estimuladora criativa, minimizando-a

a verbalização, tombos inesperados, trocadilhos simples e até depreciação e reafirmações de

preconceitos.

A Comicidade é uma potência! O humor é íntimo ao humano, ele é produtor de

sensações, opera com o conhecido e o desconhecido, é capaz de nos transportar a universos

fantásticos ou mesmo nos perder no tempo e espaço na velocidade de uma gargalhada. Dib

Carneiro Neto (2014), crítico de teatro, especialista e jurado em prêmios do segmento, fala

que um jeito eficaz de fazer a criança rir é acreditando na sua capacidade de pensar as ações

apresentadas e se relacionar com elas, no seu maravilhoso mundo mágico, lugar do impossível

e apostando em sua sensibilidade para reconhecer gestos e sentimentos além da sua habilidade

para traduzi-los para seu mundo (p.44). O autor comenta ainda:

31

Pupo classifica as formas de comicidade encontrada nas peças, de acordo com as ideias de Henri Bergson

(1953) em O Riso: ensaio sobre a significação do cômico. Comicidade verbal, de gesto e de situação, nesta

última ela destaca as variantes repetição e quiproquó, a primeira sugerindo automatismo, mecanização em

circunstâncias que se repetem e a segunda quando o personagem conhece apenas uma versão de uma situação

ambígua, equivocando-se sobre os fatos ao redor.

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Às vezes a criança ri nos momentos mais inesperados de um espetáculo.

Espontaneamente. Uma história deve ser bem contada. Pode ter humor, sim. Pode

ser uma peça até bem engraçada. Se for boa a peça, tudo bem, ótimo. Mas que não é

fundamental que ela ria, ah, não é mesmo! Brilho nos olhos também conta. Silêncio,

medo, interação, lágrimas, tudo isso conta. Criança é um ser humano como nós. Ou

não? Além do mais, é a coisa mais fácil fazer uma criança rir no teatro. Receita

prontíssima. Todo mundo sabe. Até a criança sabe, porque está acostumada, já

entendeu o mundo adulto melhor do que supomos e compreende que aquilo foi feito

para ela rir. E ela ri porque quer ser aprovada. Então é só botar o ator caindo toda

hora e pronto! Falar bobagem, ser bem idiota, bancar o palhaço e todos os outros

estereótipos. E se alguém, quando montou um espetáculo, antes pensa em qual jeito

é mais eficaz para a criança rir, pode mudar de profissão. (CARNEIRO NETO,

2014, p. 37-38).

A escuta da infância é o caminho a que devem seguir os dramaturgos para perceber

as especificidades e universos que provocam riso sincero e espontâneo nas crianças. Em

Dicionário do Humor infantil (1997) de Pedro Bloch, há uma catalogação de significados

ditos por crianças, nas expressões de cada palavra é possível perceber esse sentido de potência

do cômico, quando as ouvimos para traçar indícios de uma comicidade propriamente da

infância. Criança é uma pessoa que estuda para crescer, Coruja é um bicho que toma conta da

noite, Alegria é uma gargalhada pendurada na gente, Tristeza é uma coisa que dá na gente,

quando a gente não sabe onde perdeu a vontade de ri.

Já o recurso dramático Música, identificado em 95,7% das peças da amostra de Pupo

é tido como “elemento praticamente obrigatório nos textos infantis” (1991. p. 78). Em sua

emissão mais frequente estão as “letras compostas em função do texto, sem qualquer

indicação de partitura”, sendo raras (0,2%), as melodias compostas em função do texto, onde

letras e melodias já consagradas são empregadas com frequência.

Dentre as funções da música nos textos teatrais, Pupo destaca como mais frequente

aquela em que é parte da ação, caracterizando os espetáculos musicais, servindo para

apresentar personagens, por exemplo. Outras funções são: servir de plano de fundo para ação

dramática ou dança, contribuindo para formação de clima; Consagração de final feliz da

trama; Funcionar como portador de magia; Relatar ou rememorar para o público algum fato

ou acontecimento (1991. p.78-83).

A composição musical em função do texto aqui nos interessa pelo contato estreito

com a dramaturgia. Cláudia Missura, atriz da Banda Mirim/SP em Um diálogo entre texto e

música (2014) defende como identidade de criação do grupo essa simbiose entre os dois

elementos. Ela cita o caso do espetáculo Menino Teresa (2007), em que o autor Marcelo

Romagnoli e a diretora musical Tata Fernandes começam seu trabalho juntos:

O texto chegou primeiro, ainda em construção, e havia uma indicação de onde

haveria música [...] A composição musical surgiu pela sugestão do autor, em temas

de cenas como: cueca, boné, sapato etc. E Tata inspirou-se nesses temas colaborando

com a dramaturgia, ou seja, a história é contada tanto pelo texto que vem do autor

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quanto pelo texto da canção [...] onde música é texto e texto é música, e tudo é

dramaturgia. (MISSURA 2014. p.24-25).

Há nesta simbiose entre texto e música, atores e músicos em cena, um procedimento

próprio que opera sobre o sensível e o sublime. Através da música como texto, a Banda Mirim

propõe construções simbólicas que permitem a criação de sentidos e comunicação com

público-criança sobre qualquer tema. “O próprio som gera movimento, é parte da

comunicação emocional” CABRAL. 2016. p. 79). É desse contato estreito através do som,

que as crianças deixam-se absorver pela música, como verdadeiras experimentadoras-

cientistas do mundo que são.

4.3 Representatividade

Esta palavra, aqui incluída para refletir sobre dramaturgia, foi motivo de muitos

apontamentos e questões levantadas pela turma em que todos concordaram sobre a ausência

de representatividade no teatro para crianças, sendo pouquíssimas as iniciativas de

representação de grupos sócio e historicamente marginalizados.

Vimos anteriormente que as dramaturgias carecem de conflito principal delineado,

menos ainda são as que apresentam conflito interno nos personagens. Segundo Pupo (1991)

isso denota “o quanto a dinâmica da vida psíquica das personagens é pouco considerada, em

proveito de um relevo maior atribuído à ação exterior” (PUPO, 1991. p.60).

Não só a representatividade está ausente em personagens vazios, como também

qualquer informação que torne o personagem profundo em sua identidade, especificidade e

questões inerentes às suas características. Pupo tem uma vasta observação sobre a

representação dos personagens em sua mostra de dramaturgias, nos servindo para entender

historicamente porque ainda hoje não há espetáculos representativos de certos setores sociais.

Na maioria das peças, o modelo feminino está sempre associado à vida doméstica, do

contrário, estão em ocupações de pouco prestígio. As personagens femininas analisadas são

numericamente inferiores aos masculinos (50,5% das personagens são masculinos e 32,9%

feminino), assim também no protagonismo (41,5% masculinos, 31,4% feminino), onde a

imagem feminina é veiculada à dependência e improdutividade (PUPO, 1991. p.113-114).

Sendo a brancura considerada como tácita, personagens de cor negra (0,7%) na

amostra são quase sempre representados como oriundos de natureza diferente da natureza

humana, frequentemente nomeados através da cor-etnia relacionados a personalidades

negativas, “associando a cor negra ao mal na dramaturgia infantil”. Já os indígenas, quase

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ausentes de representação (0,5%), quando aparecem são identificados “através dos

estereótipos culturais mundialmente disseminados pelo cinema americano” (PUPO, 1991.

p.118-119). Segundo a pesquisadora:

Ao não enfocar as condições de existência que diferenciam a infância em nossa

sociedade e ao discriminar a mulher e o indivíduo não branco, a dramaturgia infantil

acaba servindo à manutenção de privilégios de ordem social, transmitindo assim

uma visão de mundo basicamente conformista (PUPO, 1991. p.129).

Em outras palavras, as precárias construções de personagens não só negligencia os

parâmetros dramáticos básicos como reforça estereótipos, padrões impostos e preconceitos,

proporcionando um desserviço cultural às crianças. Por outro lado, atualmente no teatro para

crianças temos algumas notáveis produções (longe do ideal) que vem corajosamente

proporcionando diversidade nas representações.

Para citar algumas, Ombela – a origem das chuvas (2019) do livro de Ondjaki,

adaptado por Mariana Jaspe e Ricardo Gomes para o teatro, trás uma menina africana, deusa

das chuvas como protagonista, em uma jornada sobre entender suas emoções. Em Nanã

(2019), peça com autoria de Gabriela Reis e Paulo Rhasta, a protagonista cuja peça leva seu

nome, conduz seu irmão e tia ao mundo dos Orixás, levantando questões sobre ancestralidade

e respeito às religiosidades.

4.4 Disney | Frozen | Contos | Fadas

Dentre as problemáticas que enfrenta a dramaturgia para crianças, certamente a

apropriação de roteiros e personagens clássicos da literatura torna-se um dos mais visíveis.

Entre captações de modismos e desenhos animados, apresentados como um pseudo teatro às

crianças impera a adaptação dos clássicos, seja da literatura brasileira ou internacional, onde é

comum nas tramas brotarem Chapeuzinhos Vermelhos, Sininhos ou Emílias.

Nazareth (2012, p.79) afirma que essas adaptações dos clássicos acabam deixando de

lado a essência da história que as fez atravessar anos como “narrativas fundantes, mitos que se

tornam contos populares transmitidos por meio da tradição oral”. Ainda segundo o autor:

E o que acontece é que os adaptadores normalmente pegam a tênue trama desses

contos e se importam apenas com ela, modificando-a, “atualizando-a” de modo

absurdo, onde celulares, shoppings, Hebes Camargos e Xuxas geralmente estão

presentes. O sumo, o suco, a essência, o mítico é deixado de lado, talvez porque nem

saibam da existência desse lado, talvez porque não estudam, não pesquisem aquilo

que vão adaptar (NAZARETH, 2012 p. 79).

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Para ilustrar tal questão, trago o espetáculo Pãozinho com Ovo - o sequestro do riso

(2017) da Santa Ignorância Cia de Artes/MA32

. Com texto de Bruno Magno, a comédia se

propõe uma adaptação da comédia adulta Pão com Ovo (2011) em cartaz há quase dez anos,

com sucesso de público no Maranhão e também nas cidades dos outros mais de cinco estados

que passou, como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

No roteiro da peça, a personagem da comédia adulta Clarisse aparece fantasiada de

Xuxa e é logo descoberta pelos outros, que neste momento recebem uma visita que os castiga

a ficar sem rir a menos que cumpram uma missão. Na jornada dos três protagonistas (Mesmos

personagens da comédia adulta: Clarisse, Dijé e Zé Maria) para restaurar o riso, aparições de

personagens conhecidos compilados em números musicais, dentre eles: Mestre dos Magos, da

série de animação Caverna do Dragão; Visconde de Sabugosa, do Sítio do Pica-pau Amarelo

e Elsa, da animação Frozen.

Em texto de sinopse33

divulgado para veículos de comunicação, expressões como

“aventura hilária e didática” e “painel de grandes sucessos infantis de várias gerações”

demonstra o quanto o uso desses personagens consagrados e das animações recentes tem sido

capturados para atrair público.

No geral, essas adaptações dos clássicos ou o mero uso de seus personagens

comprova o descompromisso dos fazedores de teatro com a produção para infância,

recorrendo a alternativas fáceis de roteiros que servem justamente para seus fins

mercadológicos, uma vez que, crianças são atraídas pelos seus personagens preferidos do

cinema e adultos pelos personagens de suas infâncias.

4.5 Por uma redescoberta da Dramaturgia para infância.

Os pontos discutidos até aqui, motivados pelos questionamentos dos alunos da UFRJ,

são uma tentativa de refletir a Dramaturgia para crianças. Algumas palavras não estão

explicitamente no texto, embora estejam nas entrelinhas dos temas. Foram deixadas para

outro momento, palavras cujas (?) questões se aproximam mais da encenação do que da

dramaturgia, assim também, outras que demandam mais tempo para aprofundamento, pois

32

A cia fundada em 1997 atua sobretudo sob direção colaborativa, tendo conquistado ao longo desses anos,

prêmios importantes como o Prêmio Microprojetos Amazônia Legal, Prêmio Klauss Vianna de Dança, Prêmio

Festivais da Caixa e Prêmio Myriam Muniz. No repertório do grupo destaca-se O Miolo da Estória (2010) de

texto e encenação de Lauande Aires. 33

A sinopse do espetáculo Pãozinho com Ovo pode ser encontrada em vários veículos de comunicação em que a

peça esteve em cartaz, o trecho aqui usado foi retirado do portal do imirante.com que pode ser acessado em:

https://imirante.com/namira/sao-luis/noticias/2018/08/13/paozinho-com-ovo-o-sequestro-do-riso-tem-nova-

temporada.shtml (acesso em janeiro de 2020).

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como disse, este é apenas um lampejo sobre este tema que como percebemos é um campo

minado de problemáticas.

Muito do que abordamos até aqui foi observado por Carlos Augusto Nazareth,

fundador do Centro de Pesquisa e Estudo do Teatro Infantil (CEPETIN), citado várias vezes

neste escrito. O dramaturgo em suas pesquisas mostra pouca mudança comparado ao cenário

exposto por pela Profª Maria Lúcia de S. B. Pupo (1991) sobre a década de 1970. Ele revela, o

estabelecimento de um conjunto de procedimentos próprios de um “teatrinho infantil”

chamado por ele “Estética perversa do teatro infantil”. segundo ele:

Essa estética perversa, a inércia do público, a visão apenas mercantilista de alguns a

ausência e negação da crítica especializada a falta de espaço de discussão, de

patrocínios públicos e privados, vão aos poucos transformando o teatro infantil num

dragão de sete cabeças, tornando-o um fenômeno, por vezes, incompreensível

(NAZARETH, 2012, p. 75).

Os procedimentos da estética perversa são justamente os discutidos aqui, o

moralismo professoral, a falta de parâmetro dramatúrgico mínimo, a limitação de temáticas, a

comicidade mal empregada, os personagens esvaziados, a adaptação superficial… Nazareth

(2012) afirma ainda:

Os melhores teatros acolhem em sua programação muitos espetáculos construídos

dentro da estética perversa. Os shoppings são mestres em exibir espetáculos feitos

sob a égide da estética Disney, piorada. O que importa é receber o mínimo e não

deixar furo em sua pauta, pois os próprios programadores pouco estão interessados

em avaliar o que está em cartaz. Um projeto é um enigma difícil de ser decifrado

mesmo para os profissionais mais experientes O que norteia essa decisão

normalmente é a qualidade gráfica do projeto. É a estética do projeto que é avaliada,

não a estética do espetáculo (NAZARETH, 2012. p. 77).

Na amplitude de problemáticas enfrentadas pelo teatro para crianças, o autor sugere

que a saída desta estética seja possível somente através da participação de muitos setores

envolvidos nessas questões, tais como responsáveis, escola, casas de espetáculos,

patrocinadores e mídia. Do contrário, estaremos perpetuando o distanciamento das crianças

das experiências artísticas verdadeiras.

Aos dramaturgos e dramaturgas, deve haver o abandono do moralismo e do teatro

educativo em sobreposição ao artístico, através da abertura de espaços para pesquisa e

reflexão. Na escrita está a produção de discurso e conteúdo, como afirma o dramaturgo “Essa

falta do que dizer estabelece o primeiro e mais grave preceito dessa estética perversa - o vazio

sobre o que dizer”(2012, p.79). Nazareth afirma ainda:

Assim, surge o espaço de se questionar, discutir, e rediscutir a questão do teatro, da

arte e sua relação com o mundo hoje, com a criança, com a escola Discutir,

questionar e conseguir dentro dessa democrática pluralidade valorizar o que há de

melhor e tentar oferecer isso a esse público que precisa ser tão bem cuidado. Esses

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seres em formação que necessitam da arte cotidianamente em suas vidas – e não só

do teatro – mas de toda forma de expressão artística (NAZARETH, 2012, p.115).

Desses espaços de questionar, a abertura de processos de criação é fundamental. O

teatro para crianças carece de diários de pesquisas de suas montagens, conversas, encontros,

publicações acadêmicas, pesquisas e espaços de discussão nas universidades e outras

instituições que produzem e refletem sobre arte.

Não podemos deixar de falar, mesmo que superficialmente, já que estamos falando

de Dramaturgia para infância, sobre publicação editorial pois, sabemos que a história do teatro

para infância acompanha a história de suas publicações. Há uma não visualização da

dramaturgia para crianças como entidade autônoma literária que pode ser criada como objeto

de arte independente de uma mediação pelo adulto, afinal, “ler o texto de teatro é uma

operação que se basta a si mesma” (RYNGAERT, 1996, p. 25), tem sua concretude também

no leitor e não só na cena.

O Profº Flúvio Flores e Profº Fabiano Grazioli, docentes da Universidade Federal do

Vale do São Francisco (UNIVASF) e da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e

das Missões (URI), respectivamente, trazem o caso do romancista Figueiredo Pimentel, nos

lembrando da publicação de Teatrinho Infantil (1897) um compilado de dramaturgias, os

professores afirmam:

Saber que o Teatrinho infantil de Pimentel atingiu no mínimo a sexta edição em

plena década de 1890 numa cidade com apenas 50% de pessoas alfabetizadas e que

na época contava com uma classe média de número reduzido é algo que nos

impulsiona a acreditar que o mercado editorial pode e deve investir na publicação de

dramaturgia para a infância. (GRAZIOLI; FLORES, 2019. p.11).

Tão importante quanto publicações de dramaturgias para infância, são as publicações

que propiciem reflexão e difusão das pesquisas no campo, e por isso a recente publicação da

Revista Leia Escola (UFCG) se torna tão oportuna, sob organização dos Prof Flúvio Flores e

Fabiano Grazioli citados anteriormente. Com edição especificamente sobre Dramaturgia para

Infância, a revista lança a público novas pesquisas e práticas brasileiras, um verdadeiro espaço

de diálogo sobre o tema.

Além da pesquisa dos professores citados, a partir da publicação do primeiro livro de

teatro infantil no Brasil, refletindo o lugar da dramaturgia para crianças na literatura brasileira,

temos dossiês de experiências abordando Dramaturgia Coletiva para Infância, Questões de

Gênero e Juventude, Performatividade e leitura dramática de textos infantis para sala de aula,

para citar alguns.

Ainda na Revista, o Profº Lucas de C. Larcher Pinto da Universidade Federal do

Espírito Santo (UFES) compartilha os andamentos de sua pesquisa em montagens de peças

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para crianças em que os livros de literatura infanto-juvenil atuam como estímulos e/ou

disparadores na criação dramatúrgica, segundo o autor:

Trata-se de compreender os livros não como suportes em que estão contidas

histórias, expressas por meio do texto verbal, a serem transformadas em texto –

épico ou dramático – teatral escrito e oralizado; mas sim, como elemento capaz de

estimular, disparar e direcionar a criação de uma obra teatral a partir de diferentes

linguagens, por vezes, indissociáveis: verbal e/ou não-verbal... ou (palavras,)

imagens e design (PINTO, 2019. p.84).

A pesquisa em andamento no doutorado do Prof. Lucas Larcher nos oferece pistas

tanto no pensar a literatura infanto juvenil nos palcos, numa perspectiva diferente da que

abordei anteriormente sobre as adaptações de clássicos, como me leva a crer numa abordagem

diferente sobre as publicações de dramaturgia, assunto que falávamos carecer de atenção e

visualização de potencialidade.

Lucas Larcher (2019), ao mencionar livros ilustrados e livros-imagens34

como

disparadores e estimuladores de possibilidades dramatúrgicas, ecoa sobre a materialidade das

dramaturgias publicadas para infância, a ausência de visualização dessas publicações como

livros-objeto de arte, que tanto explorem formatos quanto se endereçam, não a atores adultos,

mas às crianças.

É possível perceber, através de reflexões como essa, que a dramaturgia para infância

está para ser redescoberta. Pensar nesta redescoberta é projetar um futuro em que sejam

promovidos espaços de discussão e crítica, e com a mesma prioridade, espaços para pensar

publicações, afinal elas possibilitam a difusão de enredos novos, e o acesso dos mesmos às

crianças, professores (as), responsáveis e fazedores de teatro. Contudo, nesta redescoberta da

dramaturgia para infância, o que acontece quando nos desprendemos das barreiras do teatro

educativo simplista às crianças? Precisar essa resposta é tão imprevisto quanto se perguntar se

no futuro mais crianças terão acesso à cultura.

Porém, os primeiros passos para se pensar no teatro que fuja do moralismo

professoral em detrimento da experiência estética seja, em primeiro lugar estar sob a luz dos

fundamentos do próprio teatro, no seu rigor de construção e pesquisa, deve-se eliminar a ideia

de que fazer teatro para crianças seja mais fácil. Contribuindo para este pensamento, o

dramaturgo Marcelo Romagnoli (2014) afirma:

A linguagem do teatro infantil é a mesma do teatro adulto? Os temas que interessam

à criança são os mesmos que interessam ao adulto? Claro que não. Entretanto, o

teatro para crianças é composto pelos mesmos elementos do que aquele feito para

34

A partir da autora Sophia Van der Linden, em Para ler o livro ilustrado (2006), o autor conceitua livros

ilustrados como obras em que a imagem é especialmente preponderante em relação ao texto e narrativa se faz de

maneira articulada entre texto e imagens. Já os livros-imagem são uma subcategoria dos livros ilustrados, em

que não há a presença de palavras, sendo a história contada exclusivamente por meio da linguagem visual

(PINTO, 2019. p.83).

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adultos. Sua estrutura narrativa, as técnicas dramatúrgicas, a representação, enfim,

tudo o que caracteriza um bom espetáculo deve estar lá, em cena. (ROMAGNOLI,

2014. p.28).

Em segundo lugar, deve-se apostar numa efetiva aproximação da infância, como

categoria social e por consequência aproximar-se da criança como “alguém profundamente

enraizada em um tempo e um espaço, alguém que interage com estas categorias, que

influencia o meio onde vive e é influenciado por ele (PERROTTI, 1984. p.12).

Nazareth (2012, p.85) afirma que há “uma visão múltipla e difusa e por vezes

paradoxal de „infância‟ e de „criança‟” justamente por essas visões partirem de diversas

raízes, tais sejam estágios de desenvolvimento biológico ou por aspectos sociais, econômicos,

culturais, conceitos cristalizados ou internalizados, e ainda sim, não se pode definir fixamente

o que seja a infância ou a criança.

Justamente por isso, definir uma linguagem da criança é desumaniza-la, como faz-se

no teatro que obedecem à estética perversa. Se no teatro para adultos existem incontáveis

formas e vertentes é porque reconhece-se suas individualidades, personalidades, aspectos e

gosto próprios. Já as crianças reduzidas à generalidades, onde todas gostam de doces, risadas,

heróis e princesas, destitui-se assim a criança de personalidade e individualidade, reduzidas a

gostarem da mesma coisa toda uma categoria de indivíduos.

Muitos autores ao falar de infância e linguagem teatral, levantam a etimologia desta

palavra para relacionar com histórico displicente visto no segmento, já que a origem no latim

infantia do verbo fari que significa falar, onde fan significa falante e in constitui a negação do

verbo, sendo infante aquele que não fala. E realmente não ter voz e vez, diz muito sobre as

escolhas das crianças no teatro.

Capturamos a questão da linguagem como aquilo que nos separa, infância e idade

adulta. No entanto, criança, do latim creantia, relaciona-se à criação, creare, produzir, erguer

nos levando à criatividade. Ao pensar linguagem e infância diz Giorgio Agamben (2015,

p.63) “o inefável é, na realidade, infância”, pois segundo o autor o que faz de nós sujeitos da

linguagem é a existência da experiência, é termos infância.

Desta forma, aproximar-se da infância que falo aqui, como passo na redescoberta de

um teatro para crianças e jovens, é despir-se da infância como aquela sem fala e de

importância menor, para entender um movimento-infância, em que criança é aquela que ao

nascer está para seu tempo presente ao mesmo tempo que não está. Não é somente projeto de

vida mas um ser em si mesmo, e por isso criadora, construtora e principalmente, dotada da

capacidade de experiência, é justamente a criança aquela que vê o mundo inaugurado aos seus

olhos.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este escrito que chega até sua leitura é a paragem de um pensamento que permanece

em fluxo, em movimento. Dessa forma, assumo a probabilidade das questões levantadas até

aqui serem inesgotáveis, assim como as criações que aqui se iniciaram. Esta pesquisa partiu

da investigação sobre procedimentos de escrita a partir dos sujeitos e nela modos de fazer e

pensar foram expostos. Percebemos que há uma crescente busca por entender a obra em

processo de construção, certamente esta questão não está ligada ao período histórico

contemporâneo, mas, sem dúvida, as mídias digitais possibilitaram uma aceleração das

conexões.

Assim, tem sido cada vez mais comum que obras tenham sido criadas, compartilhando

simultaneamente o processo de sua feitura em blogs, como é o caso da atriz Janaina Leite “em

que ela reflete sobre sua relação com material bruto coletado nas conversas com seu pai;

discute procedimentos de criação para fazer do processo o próprio exercício cênico; fala da

insatisfação diante de suas próprias avaliações [...]; da angústia" (SALLES, 2017. P74). E

também compartilhamento de cadernos de pesquisa, como o da Banda Mirim, com revista

inteira dedicada a expor as materialidades e percursos para construção do espetáculo Buda

(2017).

Contudo, a maneira de comunicação desses processos ainda é território pouco

explorado. As ferramentas da Genética teatral permitiram nesta pesquisa uma tentativa de

elaboração de meios para entender a construção de procedimentos de escrita, que acontece

sobretudo no campo relacional e situado.

Pensar na opacidade dos processos diante da criação, propõe distanciamentos entre a

obra e a genialidade de seus criadores e aproxima da construção, da pesquisa, expondo assim

a imprevisibilidade, a interação entre sujeitos, o inacabamento e, como afirma Salles, a

“dessacralização dessa [a obra] como final e única forma possível”(2006, p.21).

Retorno ao conceito de criação em rede de interações, dialogado nesta pesquisa

principalmente com a autora Cecília Salles. É percebido nos procedimentos aqui expostos,

uma experiência situada nos sujeitos envolvidos, sendo observado desde as influências de

aspectos do Grupo Cena aberta, até o exemplo da escolha do conto em acordo com as

temáticas que o grupo já trabalha, a trajetória de lida com o texto nas montagens e

metodologia de relação com os atores nas criações.

Assim também, minha participação como dramaturgista, em que aproveito minhas

práticas artísticas como disparadoras de procedimentos, como foi o caso do uso de elementos

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do circo como malabares e jogos de palhaçaria. Para Cecília Salles (2017) os processos de

criação também são percursos de constituição da subjetividade, “esses sujeitos em criação

agem em meio à multiplicidade de interações, inseridos em suas redes culturais, encontrando

modos de manifestações de sua singularidade em sensações: suas dores, seus amores…”

(p.45-46).

Nesta prática situada também em um tempo e espaço, o fato dos procedimentos terem

foco na criação de si, evidenciam uma articulação dos processos de subjetivação. Traçar

intersubjetividades concentradas em operações de um teatro autobiográfico aponta para uma

prática decolonial contida na ideia do indivíduo em prol de um corpo comum, feito de

territórios em disputa e de sua singularidade.

Diante destes argumentos, como pensar autoria nos agenciamentos que se dão em

coletivo? Segundo Salles, “a multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento

do sujeito; ao mesmo tempo, o próprio sujeito é múltiplo”, logo há uma falta de sentido em

“localizar a criatividade no sujeito, que é, na realidade, constituído e situado” (2006, p.151).

Ainda segundo a autora:

Surge, assim, um conceito de autoria, exatamente nessa interação entre o artista e os

outros. É uma autoria distinguível, porém, não separável dos diálogos com o outro;

não se trata de uma autoria fechada em um sujeito, mas não deixa de haver espaço

de distinção. Sob esse ponto de vista, a autoria se estabelece nas relações, ou seja,

nas interações que sustentam a rede, que vai se construindo ao longo do processo de

criação (SALLES, 2006, p. 152).

O conceito de autoria em rede, proposto por Salles evoca um descentramento do

sujeito nas criações e encontra eco nas palavras do filósofo e teórico da arte Boris Groys

(2015) sobre "Autoria Múltipla": "Hoje em dia, um autor é alguém, que seleciona, que

autoriza. Desde Duchamp, o autor tornou-se um curador. O artista é, antes de tudo, curador de

si mesmo, porque seleciona sua própria arte. E também seleciona outros: outros objetos,

outros artistas" (p. 120).

A partir do pensamento de Groys sobre a seleção e autorização como tarefas do autor-

curador localizo, como já foi explicitado em muitos momentos nesta pesquisa, a prática do

dramaturgista como metodologia de operação da autoria em rede. Nela,

o dramaturg não o faz a partir da posição de um autor ou criador da obra, dirigindo o

desenvolvimento da criação (em diálogo com os outros) de acordo com a sua

escolha. Em vez disso, o dramaturg relaciona-se com todos esses aspectos e as

relações entre eles, como aspectos da criação de outra pessoa. (BLEEKER apud

GONÇALVEZ JUNIOR, 2017. p.135).

Neste sentido, a prática da dramaturgista está presente desde os estudos iniciais da

pesquisa, perpassando tanto a experiência com os atores como com os alunos diretores até a

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crítica do processo que se deu nesta dissertação. Ela faz com que a “dimensão crítica do papel

do dramaturgista tenha de fundo esse préstimo como enfoque central de sua atividade ao

provocar e questionar a pesquisa artística, expondo assim sua face criativa”(GONÇALVES

JUNIOR, 2017 . p.138).

Não menos importante, percebemos de maneira prática que os procedimentos de

escrita resultantes desta pesquisa estão localizados na criação dramatúrgica para infância, que,

como vimos, em nada se difere de outras criações para adultos. Este processo enfatiza meu

pensamento já aqui refletido na aposta por uma redescoberta da dramaturgia para infância,

cada vez mais longe do didatismo e mais próxima da arte e de suas verdadeiras questões.

Encerro apontando a importância do compartilhamento de experiências artísticas, não

como métodos a serem seguidos, mas como pistas de modos de escuta sobre outros contextos.

Ao desvelar nossas criações e pensamentos, estamos propondo um movimento dialógico entre

artistas e público, entre artistas e outros artistas, cujas maneiras de registros são como obras

por si mesmas. Assim também, estabelecemos novas perspectivas sobre o campo do que seja

escrevível, registrável, pois sabemos que todas as criações possuem certamente experiências

significativas que deveriam ser impedidas de caírem no esquecimento.

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