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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico frente ao discurso hegemônico NATAL-RN 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · nova perspectiva de compreensão do assunto, agora sob o enfoque de temáticas específicas, tais como a de gênero; a da produção

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR

O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico

frente ao discurso hegemônico

NATAL-RN

2017

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JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR

O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico

frente ao discurso hegemônico

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre, sob a orientação da Profª. Dra. Lore

Fortes.

NATAL-RN

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Santos Junior, Jairo José dos.

O conceito de bullying escolar: um contraponto sociológico

frente ao discurso hegemônico / Jairo José dos Santos Junior. - 2017.

97f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

Pós-graduação em Ciências Sociais, 2017.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lore Fortes.

1. Bullying. 2. Ideologia. 3. Gênero. 4. Discurso. 5.

Construcionismo Crítico. I. Fortes, Lore. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.62:343.434

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JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR

O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico frente ao

discurso hegemônico

Apresentada em: __ /__/ 2017

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________________________________

Prof.ª Dra. Lore Fortes - Orientadora

Presidente da banca

__________________________________________________________________________________________

André Augusto Diniz Lira - Universidade Federal de Campina Grande

Membro externo

__________________________________________________________________________________________

Irene Alves de Paiva - Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Membro interno

NATAL-RN

2017

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EPÍGRAFE

“Tão logo a falsidade seja desmascarada, a violência nua terá que aparecer em

toda sua hediondez – e a violência, derrotada, desaparecerá.”

Alexander Solzhenitsyn (1918-2008)

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DEDICATÓRIA

Ao professor Jairo Santos e à Dona Tereza Cristina, a quem devoto meu mais sincero apreço e

respeito.

A todas as vítimas que viveram ou ainda vivem o contexto de uma agressão bullying: esta

pesquisa reflete a eterna lembrança de que vocês nunca estarão a sós.

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AGRADECIMENTOS

À professora e amiga, Lore Fortes, a quem sempre serei agradecido pelo genuíno

reconhecimento, credibilidade e apreço intelectual por este trabalho desenvolvido ao longo do

meu percurso acadêmico.

Aos meus pais devoto a mais sincera gratidão pelo incansável reconhecimento que sempre

tiveram em relação a um potencial que em mim jamais ousei crer.

À Yoanna Monteiro, pelos préstimos emocionais e logísticos nos momentos de construção do

texto dissertativo, também agradeço imensamente.

À Verônica Leite sou grato pelos momentos de solicitude em momentos pessoais difíceis da

produção da pesquisa.

Aos professores, André Augusto e Irene Paiva, membros da banca de defesa, também destino

um solene agradecimento pelo comprometimento com a leitura crítica deste trabalho.

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RESUMO

O fenômeno bullying constitui-se como uma forma de agressão interpessoal que já há algum

tempo se tornou bastante reconhecida, debatida e problematizada por diversos estudiosos ou

pelos meios de comunicação, devido principalmente à explosão global de massacres

escolares, cuja autoria, na maioria das vezes, está atribuída a ex-alunos que outrora foram

vítimas desta forma de intimidação. Na tentativa de compreender e apontar soluções para esta

questão, diversos estudos e pesquisas acadêmicas emergiram primordialmente na década de

1980, tentando desde então estabelecer contornos precisos em torno da definição desta forma

de agressão. A maioria destas interpretações e estudos se filia ao paradigma interpretativo

proposto na década de 1980 pelo pesquisador sueco Dan Olweus (1978), pioneiro mundial e

principal referência nos estudos sobre o tema bullying. O presente trabalho de dissertação

problematiza este enfoque tradicional supracitado e debate sobre a necessidade de se romper

com este monopólio interpretativo produzido, permitindo assim que outros saberes científicos

possam adentrar na discussão deste tema e produzir novas maneiras de compreensão sobre o

assunto. Desta forma, constitui-se como objetivo geral desta pesquisa problematizar

criticamente o discurso hegemônico que celebra a questão do bullying e que anuncia suas

“verdades” como se fossem as únicas possíveis e necessárias a serem aceitas. Além disto, é

missão deste estudo apresentar um contraponto sociológico de intepretação que ofereça uma

nova perspectiva de compreensão do assunto, agora sob o enfoque de temáticas específicas,

tais como a de gênero; a da produção do discurso; e a da ideologia na cultura. Para tanto, esta

pesquisa recorre metodologicamente à teoria construcionista crítica e seu conjunto de

postulados que apontam a construção social da realidade humana a partir da ideologia e da

cultura, de modo que esta mesma realidade pode ser oportunamente desconstruída pela

mesma ação humana. Contando com entrevistas junto a vítimas de bullying e com uma

revisão de literatura comparativa entre as ideias de autores provenientes do enfoque

tradicional e aqueles que comungam do pensamento construcionista crítico, esta dissertação

almeja abrir espaço para que, na posteridade, áreas de conhecimento científico distintas do

paradigma tradicional de interpretação do fenômeno possam se inserir nos debates e

problematizações acerca da questão e consequentemente produzir novos olhares que

pluralizem o entendimento desta forma de intimidação.

Palavras-chave: Bullying. Ideologia. Gênero. Discurso. Construcionismo crítico.

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ABSTRACT

The bullying phenomenon constitutes a form of interpersonal aggression that for some time

has become well-known, debated and problematized by several scholars or the media, mainly

due to the global explosion of school massacres, whose authorship, for the most part, is

attributed to former students who were once victims of this form of intimidation. In an

attempt to understand and point solutions to this question, several studies and academic

research emerged primarily in the 1980s, trying to establish precise contours around the

definition of this form of aggression. Most of these interpretations and studies are based on

the interpretive paradigm proposed in the 1980s by the Swedish researcher Dan Olweus

(1978), a world pioneer and main reference in studies on the subject of bullying. This

dissertation deals with this traditional approach and discusses the need to break with this

interpretive monopoly produced, thus allowing other scientific knowledge to enter into the

discussion of this topic and to produce new ways of understanding about the subject. Thus, it

is a general objective of this research to critically problematize the hegemonic discourse that

celebrates the issue of bullying and that announces its "truths" as if they were the only ones

possible and necessary to be accepted. In addition, it is the mission of this research to present

a sociological counterpoint of interpretation that offers a new perspective of understanding the

subject, now under the focus of specific themes, such as gender, discourse and ideology

production in culture. To do so, this research methodologically refers to the critical

constructionist theory and its set of postulates that point to the social construction of human

reality from ideology and culture, so that this reality can be timely deconstructed by the same

human action. Counting on interviews with victims of bullying and a comparative literature

review between the ideas of authors coming from the traditional approach and from those who

share critical constructional thinking, this dissertation aims to open space so that, in posterity,

areas of scientific knowledge distinct from the paradigm Traditional interpretation of the

phenomenon can be inserted in the debates and problematizations about the issue and,

consequently, produce new looks that pluralize the understanding of this form of intimidation.

Keywords: Bullying. Ideology. Genre. Speech. Critical constructionism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 09

1 A ESCOLA COMO PALCO PARA A PRÁTICA DE BULLYING: UM ENFOQUE

CRÍTICO-CONSTRUCIONISTA ..................................................................................................... 16

1.1 A INQUIETAÇÃO PESSOAL EM RELAÇÃO AO BULLYING: UM BREVE RELATO AUTOBIOGRÁFICO ........................................... 16

1.2 A INQUIETAÇÃO ACADÊMICA EM RELAÇÃO AO BULLYING: O CONSTRUCIONISMO CRÍTICO COMO ESCOLHA METODOLÓGICA ... 20

1.3 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FABRICAÇÃO DAS DIFERENÇAS E DESIGUALDADES ENTRE OS INDIVÍDUOS ............................... 27

2 ENTRE AMEAÇAS, SOCOS E PONTAPÉS: NOTAS SOCIOLÓGICAS SOBRE O

BULLYING ESCOLAR PRATICADO ENTRE MENINOS ......................................................... 35

2.1 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO UNIVERSO MASCULINO: O DIÁLOGO COM O

ENFOQUE/PARADIGMA TRADICIONAL ......................................................................................................................... 35

2.2 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO UNIVERSO MASCULINO: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO

SOCIOLÓGICO ............................................................................................................................................. 44

2.3 A CATEGORIA DE GÊNERO NO ÂMBITO DA HETERONORMATIVIDADE: SOBRE COMO MENINOS SE TORNAM

AGRESSIVOS ............................................................................................................................................. 49

3 ÍNTIMAS, INIMIGAS E DISSIMULADAS: NOTAS SOCIOLÓGICAS SOBRE O

BULLYING ESCOLAR PRATICADO ENTRE MENINAS.......................................................... 53

3.1 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO CONVENCIONAIS: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA

TRADICIONAL ............................................................................................................................................. 53

3.2 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO CONVENCIONAIS: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO

SOCIOLÓGICO ............................................................................................................................................. 55

4 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: O BULLYING ANALISADO ATRAVÉS DA

MODALIDADE ENTREVISTA ........................................................................................................ 62

4.1 A FORMA DE COLETA DE DADOS: A ENTREVISTA SOB A MODALIDADE HISTÓRIA DE VIDA ....................................................... 62

4.2 ENTREVISTA COM SAFIRA AMMANN, CAICOENSE E PROFESSORA APOSENTADA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB. .......... 63

4.3 ENTREVISTA COM POLIANA ALEIXO, NATALENSE E FONOAUDIÓLOGA .......................................................................... 69

4.4 UM RAIO-X DAS ENTREVISTAS SOB A PERSPECTIVA DE DISCUSSÃO QUE SE FAZ EM TORNO DO FENÔMENO BULLYING .................. 72

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 77

ANEXOS ....................................................................................................................................... 80

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação de mestrado inicia proferindo algumas ressalvas importantes

sobre o tema da violência escolar, perspectiva geral de onde emergirá toda a discussão aqui

feita sobre o fenômeno de agressão bullying. A primeira delas refere-se à constatação da

existência de uma dificuldade comum entre estudiosos da temática da violência escolar em

definir contornos precisos sobre sua conceituação. Segundo o artigo de Stelko-Pereira e

Williams (2010), tal empecilho repousaria na falta de consenso entre os próprios estudiosos

do assunto, que expõem em seus estudos e pesquisas diferentes pontos de vista sobre o tema;

no considerável número de variáveis (sociais, culturais, geográficas, idade, sexo, status social

etc.) que atravessam a conceituação do fenômeno, conferindo-lhe dinamicidade e

mutabilidade no tempo e no espaço; nas nuances interpretativas verificadas em diferentes

países sobre o tema (as perspectivas inglesa, americana e espanhola são bem diversas sobre o

que seja a violência escolar, por exemplo); na falta de consenso interdisciplinar em sua

investigação (entre matérias como a psicologia, sociologia, antropologia e pedagogia, por

exemplo); e na suposição sobre quais determinantes estariam por trás do desencadeamento

deste ato agressivo (ou seja, se a gênese da violência estaria no indivíduo; no interior da

escola; no meio social; na comunidade ao redor do espaço estudantil etc.).

Na pesquisa dos autores supracitados, portanto, pode-se verificar que o fenômeno da

violência escolar, além de complexo, é organizado em múltiplas perspectivas e posturas

ideológicas que ora são concordantes ora divergentes. Some-se a isto, a polissemia habitual no

âmbito da definição (suscitada ou pelos estudiosos ou por disciplinas científicas) e suas

múltiplas variáveis de análise, o que leva a depreender que conceituar com precisão e

aceitação universal o fenômeno da violência escolar é uma tarefa complexa do ponto de vista

epistemológico. Portanto, deixa-se claro aqui que não é missão desta dissertação de mestrado

recorrer a um longo escrutínio sobre os diferentes conceitos que giram em torno desta

problemática. Busca-se, antes de qualquer coisa, situar a questão da violência escolar na

discussão corrente que envolve o tema principal deste trabalho: a questão do bullying e seu

conceito vigente.

Um segundo ponto é que a questão da diversidade das formas de expressão da

violência escolar faz com que vários autores (STELKO-PEREIRA; WILLIANS, 2010;

ABRAMOVAY; RUA, 2003; FANTE & PEDRA, 2008; CALHAU, 2010) procedam numa

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profusa elaboração de taxonomias (critérios de diferenciação, definições em função espaço

onde se manifesta a agressão; diferenciações de acordo com os grupos envolvidos ou com os

locais de ação etc.) que visam distinguir, selecionar e classificar os atos agressivos no entorno

escolar conforme o uso de metodologias específicas defendidas em suas análises/pesquisas. O

objetivo é mapear o fenômeno para promover uma definição abrangente e universal sobre o

mesmo. Para todos os efeitos, também não é tarefa desta dissertação detalhar as diversas

tipologias que tratam da violência escolar (ou seja, as suas múltiplas formas de classificação).

O enfoque desta pesquisa, portanto, reside especificamente na problemática do bullying entre

escolares, no qual a questão da violência escolar em si será examinada de forma corrente no

decorrer das reflexões deste trabalho.

Discorrido brevemente sobre as observações acima, a pesquisa prossegue apontando

como Abramovay e Rua (2003) destacam em sua obra o fato de que a percepção sobre o

fenômeno da violência escolar mudou bastante no decorrer da história social mais recente: se

no passado os estudos incidiam exclusivamente sobre agressões direcionadas por professores

aos seus alunos (na forma de punições ou castigos corporais, por exemplo); na

contemporaneidade, o enfoque (feito em sua maioria por antropólogos, sociólogos, psicólogos

e outros especialistas) tem privilegiado o exame da violência mútua praticada entre alunos, de

alunos contra a propriedade material ou ainda, em menor proporção, de alunos contra

professores e professores contra alunos. As autoras também deixam claro nesta obra que a

preocupação com o problema da violência escolar é bastante antiga. Nos Estados Unidos, por

exemplo, tornou-se tema relevante de estudos acadêmicos a partir da década de 1950; no

Brasil, porém, as primeiras investigações sobre a temática floresceram somente na década de

1970, quando pedagogos e pesquisadores procuravam explicações para o crescimento das

taxas de violência e de criminalidade no cenário social mais geral. Vale salientar que no

passado, o problema era visto apenas sob a perspectiva da indisciplina; na atualidade, passa a

ser encarado como uma questão de delinquência juvenil associada a outros comportamentos

destoantes, tais como uso de drogas, formação de grupos destinados ao assédio e porte ilegal

de armas – inclusive de fogo – nas dependências escolares.

Dentro desta perspectiva abrangente e complexa que abarca a questão da violência

escolar, um conjunto sistemático de pesquisas acadêmicas eclodiu no final da década de 1970

em alguns países do norte europeu (expandindo-se logo em seguida para o resto do

continente), na tentativa de compreender o significativo aumento de suicídios entre crianças e

adolescentes no final daquela década. Suas prováveis causas, de acordo com estes estudos,

estavam ligadas aos maus-tratos e a intimidação, praticadas entre companheiros escolares

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durante seu convívio interpessoal cotidiano. A denominação utilizada para definir esta forma

específica de agressão proveio da língua inglesa: bullying, que significa opressão,

intimidação, agressão, assédio. Cunhado pioneiramente pelo pesquisador sueco Dan Olweus

(1978), o termo reflete o abuso de poder praticado em ambientes escolares através da

utilização de um subconjunto de comportamentos intimidativos caracterizados pela sua

repetição incessante contra uma mesma vítima; pelo desequilíbrio de poder entre o agressor e

o agredido; pela ausência de motivos que justifiquem a realização dos ataques; e pelas

sequelas psicoemocionais que podem deixar em todos os envolvidos (FANTE; PEDRA, 2008,

pp. 33-41).

Ainda de acordo com os últimos autores, esta forma de intimidação é o reflexo de uma

dinâmica psicossocial expansiva que integra um número cada vez maior de crianças e

adolescentes ao redor do mundo, independente do gênero, etnia ou sexualidade, por exemplo.

Tal agressão manifesta-se através de comportamentos variados que vão desde a agressão

física, ameaças ou imputação de apelidos pejorativos, podendo também culminar na prática de

imposição de isolamento social ou de silêncio coletivo contra a vítima. Embora a escola tenha

sido identificada como o cenário mais propenso a manifestação de sua ocorrência, o bullying

também pode se desencadear em outros ambientes de convivência interpessoal, tais como no

trabalho (workplacebullying ou assédio moral); nas forças armadas; na vida familiar; nas

prisões; nos asilos etc. Pode igualmente se estender para o ambiente virtual, na forma de

intimidações e ameaças que se fortalecem com o auxílio de redes sociais, de celulares ou

chats virtuais (Ciberbullying).

A presente dissertação de mestrado, que representa uma continuidade investigativa da

minha monografia de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais no ano de 2010,

tem como objetivo geral problematizar sociologicamente a construção epistemológica do

conceito de bullying escolar feito por estudiosos e especialistas do assunto, buscando

estabelecer um diálogo entre a sociologia (novo lócus teórico) e a literatura científica

tradicional que há muito concebe o fenômeno bullying. O interesse pelo tema, por sua vez,

emergiu de uma motivação pessoal e de outra acadêmica: a primeira está ligada ao fato de que

a agressão bullying esteve presente em momentos distintos da minha vida escolar, ou seja,

durante o final da infância e, depois, na adolescência, na condição de vítima desta forma de

intimidação; e a segunda relaciona-se a incessante busca pessoal por respostas científicas para

compreender o porquê da minha vitimização no ambiente escolar, um espaço que outrora eu

supus seguro, pacífico e feliz.

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Do ponto de vista acadêmico, o ponto de partida para alcançar estes propósitos nasceu

da leitura pessoal que fiz durante a graduação sobre a dissertação de mestrado da

pesquisadora Deborah Christina Antunes (2008) intitulada Razão Instrumental e Preconceito:

Reflexões sobre o Bullying. Contando com uma abordagem inédita em que aponta o caráter

ideológico que subjaz toda discussão atual sobre o conceito de bullying, aquela autora

denuncia, fundamentando-se em determinados referenciais teóricos da sociologia (tais como

os conceitos de Razão Instrumental e de Preconceito oriundos da perspectiva teórica da

Escola de Frankfurt), como a definição deste fenômeno faz parte de uma ciência

instrumentalizada que serve para a readaptação das pessoas a mesma ordem social do qual

outrora emergiram, ordem esta que, em seus fundamentos, permanece irretocável, desigual e

opressora. Em outros termos, embora a maioria dos estudos e pesquisas tradicionais sobre a

temática bullying permita uma visualização quantitativa (estatística) sobre o problema graças

a grande quantidade de dados, de projeções numéricas e de perfis comparativos que oferta ao

leitor, estes não são suficientes, por si só, para fornecer uma percepção profunda e crítica das

realidades interpeladas. Conforme atesta Antunes (2008), falta a estas pesquisas, em meio a

sua enxurrada de dados numéricos devidamente articulados, uma reflexão com impulso

crítico, uma análise sociológica que lhes permita interpretar estes dados, estes números e suas

resoluções estatísticas, problematizando-as a partir de suas influências sociais, culturais,

políticas e históricas.

Do exposto acima, busco tecer algumas considerações que, doravante, se expressarão

nos objetivos específicos deste trabalho. Em primeiro lugar, aponto o caráter evidentemente

ideológico do conceito bullying, uma vez que o mesmo, em sua tentativa de corrigir os

prejuízos produzidos no contexto de relações sociais escolares, busca reinserir (mediante uma

série de intervenções morais, psicoterápicas e médicas sobre os protagonistas da agressão) os

envolvidos na intimidação à mesma ordem social que outrora serviu de base para a

emergência do conflito, permanecendo, assim, imanente, irretocável e inquestionada. Neste

caso, o conceito de ideologia surge como alento para nortear as reflexões sobre esta etapa da

discussão, em que se busca apontar o caráter ideológico por trás desta agressão.

Em segundo lugar, na maioria das pesquisas que buscam produzir explicações sobre a

questão do bullying, os estudiosos admitem ao longo de suas análises a incidência de fatores

sociais, culturais ou econômicos na irrupção do problema. Todavia, estes são tratados em suas

pesquisas como “fatos naturais”, ou seja, como elementos não passíveis de uma

problematização ou intervenção crítica, o que culmina no distanciamento desta forma de

violência das contradições sociais que indubitavelmente a produziram e desencadearam.

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Cabe, neste momento particular da discussão, desconstruir a ideia subjacente de que uma

suposta ação da natureza existiria anterior à atuação da cultura, debate profícuo no campo

sociológico, e apontar como alguns estudos sobre o bullying feitos ao redor do mundo –

especialmente aqueles provenientes das ciências médicas e naturais, saberes tradicionais que

correntemente consagram como “verdadeiro” o que afirmam sobre o fenômeno –, que

medicalizam e naturalizam os comportamentos socioculturais dos protagonistas, como se

estes fossem efeitos exclusivos de sua biologia, decorrentes de uma suposta herança genética,

de instintos ou de uma natureza outra.

Por último, intenta-se apontar nesta dissertação que, a despeito de uma suposta

natureza, instinto ou herança genética imaginada pelos estudiosos tradicionais do tema, os

sujeitos humanos são desde sempre seres culturais e que, como tal, constroem suas existências

de acordo com sua cultura e história. Trata-se, portanto, de afirmar a ideia da primazia

absoluta da cultura sobre a configuração do indivíduo humano. No âmbito deste enfoque,

recorro particularmente aos estudos sociológicos atuais em torno das questões de gênero,

ideologia e produção do discurso para vislumbrar a distinção entre a forma de agressão

bullying masculina e a sua correspondente feminina, destacando como a cultura é um fator

distintivo na construção histórica dos sujeitos e de suas sociabilidades.

A partir de tudo o que foi anteriormente delineado, o primeiro capítulo, intitulado “A

escola como palco para a prática de bullying: um enfoque crítico-construcionista” busca ao

longo de suas páginas desconstruir criticamente um dos principais pilares que sustentam a

ideologia inerente a fenomenologia bullying: a ideia de que uma natureza, de ordem

metafísica, religiosa, celestial, biológica etc., precede ou se antecipa a cultura na construção

dos sujeitos humanos. O argumento que utilizo para refutar esta hipótese, bastante defendida

pelos tradicionais estudiosos do tema central deste trabalho, provém majoritariamente das

ideias do sociólogo Alípio de Sousa Filho acerca daquilo que intitula como teoria

construcionista crítica da realidade social: trata-se de uma síntese de pressupostos, postulados,

ideias e conclusões provenientes do universo de estudos sobre indivíduo, cultura e sociedade

(realizados pela antropologia, sociologia e história principalmente) que convergem em direção

à premissa central de que toda realidade humano-social é produto de construção humana,

cultural e histórica. Em outras palavras, trata-se de uma concepção que vislumbra a realidade

social como resultado da ação dos próprios seres humanos de acordo com suas peculiaridades

histórico-culturais. Nesta perspectiva, portanto, não há um “antes” da cultura, uma

“substância” ou “natureza” do qual os homens seriam antecipadamente portadores e do qual

herdariam espontaneamente seus traços de personalidade, hábitos, idiossincrasias,

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temperamentos etc. A crítica sobre o papel da instituição escolar moderna neste processo de

segregação dos sujeitos e produção cultural de suas agressividades, tais como a intimidação

bullying, também será parte importante do debate deste capítulo.

Se o objetivo anterior é desconstruir o argumento biologizante e essencialista, que

credita às emoções, desejos e vontades humanas uma origem supostamente

biológica/natural/instintiva, a partir do argumento construcionista crítico; o segundo capítulo

parte para uma análise mais específica, agora em torno da forma de agressão praticada entre

meninos no ambiente escolar. Intitulado “Entre ameaças, socos e pontapés: notas sociológicas

sobre o bullying escolar praticado entre meninos”, esta parte do trabalho se debruça numa

reflexão sobre as agressões física, direta e com danos materiais praticados entre meninos no

espaço escolar. Ao contrário das garotas, que se utilizam da dissimulação e da manipulação

social em suas intimidações, os meninos geralmente partem de imediato para o confronto

físico no intuito de resolver instantaneamente suas demandas. Nesta parte da pesquisa,

objetiva-se destacar como a cultura gerencia e distingue a produção de modelos de ser e de

existir diametralmente opostos entre os gêneros humanos, culminando em representações de

agressividade igualmente diferentes. As noções sociológicas acerca de gênero e ideologia

sustentarão a discussão neste momento específico do trabalho.

No terceiro capítulo, intitulado “Íntimas, inimigas e dissimuladas: notas sociológicas

sobre o bullying escolar praticado entre meninas” percorre-se um caminho similar ao feito no

capítulo anterior, agora sob a perspectiva de análise em torno da agressão entre meninas. Em

outras palavras, busca-se compreender a intimidação feminina através de um processo

comparativo em relação à masculina, visto que enquanto os punhos e o corpo são as armas

preferidas para resolver os conflitos entre garotos, as meninas usam o silêncio, seus

relacionamentos e sua intimidade para destruir suas vítimas, mantendo uma fachada de doçura

perante os adultos que torna sobremaneira difícil a detecção desta forma de agressão mútua.

Os conceitos de gênero e ideologia mais uma vez fundamentarão esta etapa da dissertação,

bem como a questão da forma de produção do discurso que celebra esta imposição distintiva

entre a expressão da agressividade masculina e a feminina.

No quarto capítulo, denominado “Entre a teoria e a prática: o bullying analisado

através da modalidade entrevista”, procura-se analisar comparativamente duas entrevistas

estruturadas sob a modalidade história de vida, na qual uma professora universitária

aposentada e uma jovem profissional da área da saúde relatam em depoimentos distintos suas

experiências pessoais com o bullying e a forma como lidaram com a agressão no decorrer de

suas trajetórias biográficas. O interessante a se perceber é que, embora pertençam a gerações

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históricas distintas, as nuances da agressão bullying entre meninas relativamente se repetem

em ambas as histórias. A utilização da entrevista sob a perspectiva de história de vida focaliza

uma etapa ou um determinado setor da experiência pessoal colocada em questão. (MINAYO,

1996). Objetiva-se que as entrevistadas retratem o conjunto específico de suas experiências

intimidativas de forma retrospectiva. Portanto, a biografia de ambas será retomada a partir de

um recorte parcial, abordando apenas informações pertinentes ao contexto temático de

interesse do entrevistador. A postura metodológica no ato da entrevista, tal como

recomendada por Pierre Bourdieu (2008) em sua obra A Miséria do Mundo, serviu como

parâmetro para a forma de condução ou do rumo das intervenções.

Embora se trate de um trabalho de natureza predominantemente teórica, a presente

dissertação, além da realização das entrevistas anteriormente mencionadas, fará menções a

alguns episódios históricos de violência bullying que ganharam destaque midiático no Brasil e

no mundo. Tais menções ocorrerão de forma corrente ao longo da discussão, sem

necessariamente se ater em detalhes sobre um ou outro episódio. Antes de conscientizar em

prol da tolerância, este trabalho almeja resgatar o real sentido da palavra alteridade. Não se

objetiva, portanto, ensinar aqui sobre como os atores sociais devem suportar uns aos outros

em seu complexo contexto de diferenças e de pluralidades; nem de demonizar esta ou aquela

forma de intepretação científica que trate da questão do bullying por meio de diferentes

prismas metodológicos e teóricos. Trata-se, antes, de se destacar a importância da riqueza das

diferenças humanas enquanto fonte necessária ao seu próprio progresso existencial,

enfatizando como o bullying pode ser converter num obstáculo significativo nesta busca de

reconhecimento global e positivo da diversidade humana enquanto fonte inesgotável de

progresso existencial.

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1 A ESCOLA COMO PALCO PARA A PRÁTICA DE BULLYING:

UM ENFOQUE CRÍTICO-CONSTRUCIONISTA

1.1 A INQUIETAÇÃO PESSOAL EM RELAÇÃO AO BULLYING1: UM BREVE

RELATO AUTOBIOGRÁFICO

As experiências mencionadas nesta subseção, por questão metodológica, serão

subdividas em dois momentos distintos de análise: a primeira fase de agressão, que segue do

final da infância até a metade da adolescência; e a segunda fase de intimidação, vivida durante

todo o ano do pré-vestibular. Todas elas serão narradas na primeira pessoa do singular, não

obedecerão a uma sequência cronológica linear e não serão pontuadas em detalhes

específicos. O intuito é refletir, antes de tudo, sobre minhas vagas reminiscências em torno

daquilo que outrora interpretei como “experiências intimidativas pessoais”. Historicamente,

tais experiências tiveram início na minha pré-adolescência, estendendo-se até os quinze anos;

e após breve pausa, voltaram a se repetir no ano de pré-vestibular, cessando no início da

minha vida acadêmica. Trata-se de percepções que, embora subjetivas, serão analisadas de

maneira objetiva e sistemática, à luz das reflexões, análises e estudos científicos que

tradicionalmente concebem a violência bullying. Por questões de privacidade, não serão

mencionados nomes de personagens e nem detalhes de espaços ou ambientes que

comprometam a integridade do entorno escolar, palco das intimidações.

O período compreendido entre o final da minha infância e meados da adolescência,

entre os nove e quinze anos de idade e que foi vivido durante o início da década de 1990,

correspondeu à primeira fase da agressão. Nele, as relações interpessoais entre meus colegas

de classe paulatinamente adquiriam um caráter irascível e veemente, no que tange a expressão

de suas emoções e comportamentos através de demonstrações exacerbadas e frequentes de

virilidade, que finalmente se materializavam em brigas, ameaças e intimidações. Embora

encarasse este cenário como algo natural, diante do processo de desenvolvimento das

personalidades adolescentes, fui uma exceção clara a tal regra de convivência, já que demorei

a me afastar das práticas, brincadeiras e costumes típicos da infância. Alguns colegas, porém,

1 O bullying é uma forma de agressão desencadeada em diversos espaços de convivência interpessoal, tais como

ambiente de trabalho, igreja, forças armadas, prisões, etc. (FANTE 2005). Nesta dissertação, porém, o uso desta

palavra doravante se referirá exclusivamente a uma manifestação inerente apenas aos ambientes de natureza

educacional, tais como escolas, universidades e faculdades.

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não demonstraram concordância com minha personalidade infante em um período marcado

pela plena ascensão à juventude.

Apesar de a minha escola ser católica, a nossa vivência religiosa estava circunscrita a

momentos pontuais do cotidiano escolar, tais como a oração matinal diária e algumas

comemorações em alusão às festividades específicas. No tempo restante, nos dedicávamos às

atividades pedagógicas de praxe, de acordo com o itinerário formativo proposto pela

instituição. As meninas, por um lado, se organizavam em grupos específicos de amizade,

enquanto os meninos, por outro, eram mais genéricos em suas interações interpessoais, já que

os esportes coletivos, tais como o futebol, ensejavam uma integração geral do grupo. Embora

fizesse parte do conjunto universal de colegas da sala de aula e participasse de algumas

disputas e brincadeiras, me reunia com mais frequência com três amigos específicos por mera

questão de afinidade e gostos em comum. Neste círculo específico de amizade, ainda

estávamos particularmente encantados pela magia da infância, por seus temas e suas

brincadeiras. As “experiências intimidativas pessoais”, definição que utilizei para dar nome as

minhas vivências com o bullying, passaram a fazer parte do meu cotidiano escolar justamente

quando o grupo geral de garotos da turma passou a discordar da forma de convivência do

nosso círculo de amizade específico, momento em que nossos hábitos passaram a ser

comparados com as suas práticas “maduras e adolescentes”, o que os motivou a nos perseguir

por destoarmos do padrão estabelecido de convivência da sala.

As principais agressões que sofri foram verbais, especialmente na forma de apelidos e

constrangimentos coletivos, tendo como plateia os demais alunos da sala. Embora ainda

considerasse a todos como amigos, eu começava a partir de então a desconfiar de suas

verdadeiras atitudes e intenções, especialmente quando passei a ser o alvo central dos ataques.

Apesar de sofrer com tudo que acontecia, procurava interpretar aquele conjunto de

hostilidades como questões de temperamento oriundas a falta de amadurecimento pessoal

típica dos adolescentes. Pelo menos foi com este discurso que aliviei parte da angústia que

sentia, esperando um dia que aquilo finalmente se encerrasse. Porém, além de não cessarem,

as intimidações ainda perduraram até a segunda metade da minha adolescência, por volta dos

quinze anos, quando finalmente resolvi mudar de turma para encerrar a perseguição que sofria

através de apelidos, escárnios e constrangimentos públicos. É importante destacar aqui que os

intervalos para o lanche e os horários de entrada e saída em sala de aula eram os momentos

preferidos para se perpetrar as agressões, sempre feitas pelo grupo geral de colegas homens e

pautadas principalmente na atribuição de apelidos desqualificadores da minha imagem

estética, do meu vestuário e da minha sexualidade. Nunca compreendi o porquê de ser o alvo

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“preferido” da turma (até o momento em que finalmente me deparei com a literatura científica

pertinente ao tema, já no período da graduação). Quanto aos professores, resta salientar que

alguns deles se omitiam quando testemunhavam as agressões e outros eram coniventes com

os episódios, embora jamais fizessem algo para estimulá-los.

De acordo com Fante e Pedra (2008, p. 41), “o bullying nasce da recusa a uma

diferença, da intolerância e do desrespeito ao outro”. Trata-se, portanto, de uma forma de

assédio escolar que ocorre na perspectiva oculta, ou seja, de maneira velada, longe da

supervisão dos adultos. Consiste, portanto, no abuso de poder entre escolares que não se

evidencia como manifestação de violência explícita, sendo intrínseca às relações interpessoais

dos alunos. Embora seja encarado por muitos estudiosos como um fenômeno novo por se

constituir como objeto de investigação apenas nas últimas décadas do século 20 (FANTE,

2005b); também é interpretado como um fenômeno bastante antigo por sempre ter existido

nas relações escolares e por ter passado despercebido da maioria dos profissionais da

educação durante muito tempo.

Retomando a narrativa: de fato, foi nos momentos de maior ausência da supervisão

dos adultos que percebi que as agressões se manifestavam com maior intensidade. Também

em espaços pouco policiados da escola, tais como o ginásio e as áreas de lazer coletivo,

ocorria boa parte daquelas intimidações. Não à toa, segundo os autores citados no último

parágrafo, a maioria das escolas pesquisadas por muitos estudiosos ainda não estaria

preparada para lidar francamente com a questão em sua realidade interior, seja por puro

despreparo de seus profissionais, seja por descaso em relação ao problema ou ainda por medo

de admitir a existência do fenômeno em suas dependências e consequentemente perder

alunos. Ainda de acordo com Fante e Pedra (2008):

A intimidação bullying ocorre e sempre ocorreu em todas as escolas,

independente de sua localização, turno ou poder aquisitivo da comunidade

escolar [...] tem no pátio de recreio o seu lugar de maior incidência agressiva

[...] ocorre num duplo movimento – de dentro para fora da escola e vice-

versa, o que explica muitas agressões e tragédias nas imediações escolares,

praças públicas e ruas [...] e concentra nos maus-tratos verbais, mediante

apelidos depreciativos, sua maior incidência de ataques (FANTE; PEDRA,

2008, pp. 45-52-53-54).

Contudo, outro dado chocante mencionado pelos autores supracitados me chamou a

atenção: o fato de o bullying se propagar, cada vez mais, na educação infantil no ensino

fundamental e médio. Embora os papéis dos protagonistas da agressão se definam com maior

clareza entre o sexto e o nono ano do ensino fundamental, é no ensino médio que as agressões

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adquirem maior gravidade, intensidade e qualidade, tornando-se mais coletivas e genéricas. É

nesta etapa da vida escolar, portanto, que começo a narrar aqui a segunda fase da intimidação

– período correspondente ao meu último ano escolar, ou seja, o período de pré-vestibular.

Após mudar de sala na metade do ensino médio, vivi um período de relativa

tranquilidade quanto à imputação de apelidos e agressões verbais, conforme outrora sofri com

a minha turma anterior. No período de pré-vestibular, especificamente no ano de 1999, era

costume pedagógico da escola de promover um rearranjo ou redistribuição entre as turmas e

os alunos de acordo com o seguinte critério: cada sala de aula deveria comportar, a partir de

então, os discentes que fizessem parte da mesma área científica que almejavam ingressar na

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desta maneira, uma sala representaria, por

exemplo, os alunos que comungavam por interesses em cursos das Ciências Humanas; outra

turma, por sua vez, comportaria os alunos das Ciências Exatas; e assim sucessivamente. Com

esta forma específica de organização e distribuição, me vi novamente diante dos meus antigos

algozes, agora na sala de aula do pré-vestibular e eles não perderam tempo em retomar as

intimidações verbais do passado, mediante a imputação repetitiva e incansável de apelidos

depreciativos. O ano de 1999, portanto, seria mais difícil de suportar do que os anteriores.

Minha condição de vítima, a despeito das mudanças pelo qual passei com a progressão

da idade, ainda me tornava presa fácil para as novas agressões que surgiram. Desta forma,

ainda não encontrava, com 17 anos de idade, meios adequados para responder aos ataques,

somando-se a este fato o agravante de que estávamos em ano de preparação para o vestibular,

o que demandava maior primor pelos estudos. Aqui é oportuno destacar que, quando saí em

busca de explicações durante o período de graduação, verifiquei que uma das características

centrais de toda agressão bullying é o “desequilíbrio de poder, o que dificulta a defesa da

vítima.” (FANTE; PEDRA, 2008, p. 39). Mas, do que se trata afinal este desequilíbrio?

Segundo os autores:

O desequilíbrio de poder é caracterizado pelo fato de que a vítima não

consegue defender-se com facilidade independente da sua idade ou estatura

física, nem motivar outros para que a defendam. Geralmente, os ataques são

produzidos por um grupo de agressores, o que reduz as possibilidades de

defesa das vítimas. As estratégias de ataque normalmente são ardilosas e

sutis, expondo, as vítimas a vergonha e ao constrangimento público. Entre os

praticantes de bullying evidencia-se a insegurança pessoal, por isso a escolha

das vítimas é feita, preferencialmente, contra aqueles que não dispõem de

habilidades de defesa. Outro fator que se evidencia é a habilidade de

liderança, de influência e de persuasão. Normalmente, os bullies são muito

habilidosos em sair-se bem de situações difíceis, especialmente quando

indagados sobre seus atos agressivos. (FANTE; PEDRA, 2008, p. 40).

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A agressão bullying só se tornaria um tema razoavelmente inteligível para mim ao

longo dos anos de graduação em Ciências Sociais pela UFRN, todavia, este curso não se

constituiu como minha primeira opção de vestibular. Ao terminar o ensino médio e junto com

ele ter se encerrado o sofrimento decorrente de um ano tumultuado e marcado por

intimidações até o último dia, escolhi realizar o vestibular para o curso de Psicologia na

UFRN, que abandonei após um ano de estudos; ainda tentaria depois cursar outra carreira no

campo das Ciências Exatas antes de finalmente chegar onde queria. A busca de respostas no

campo da Psicologia foi em vão, seja pela não identificação pessoal com o curso, seja pelas

tintas com cores vívidas que ainda insistiam em pintar a minha mente com lembranças

negativas do sofrimento que vivi durante parte da vida escolar, deixando-me inseguro e

confuso sobre o que naquele momento aspirava para o meu futuro. Afinal de contas, conforme

Cury (2003) destaca em sua obra, a experiência bullying é traumática ao psiquismo de suas

vítimas não apenas pela forte carga emocional de constrangimento vivenciada, mas também

pelas cadeias de pensamentos destrutivos que se constroem e que aprisionam a mente da

vítima num circuito traumático de lembranças que deixam marcas biopsicossociais bastante

duradouras. E estas marcas, por mais que não quisesse, ainda duraram em mim por muito

tempo.

1.2 A INQUIETAÇÃO ACADÊMICA EM RELAÇÃO AO BULLYING: O

CONSTRUCIONISMO CRÍTICO COMO ESCOLHA METODOLÓGICA

Embora a vida escolar tivesse se encerrado no ano de 1999, as marcas do sofrimento

permaneceriam indeléveis no decorrer da minha vida universitária. No ano de 2004 prestei

meu último exame vestibular, desta vez para o curso de Ciências Sociais da UFRN, sendo

aprovado em segundo lugar geral. Sempre alimentei um espírito inquieto perante as

sistematizações sociais e políticas tradicionais ou modernas, tais como as formas de

organização pedagógica e institucional do espaço escolar; os modelos erigidos de ser e agir

reproduzidos em sociedade; as formas de sociabilidade humana delineadas pela cultura

predominante de uma dada realidade; o papel exercido pela religião na vida individual e

coletiva; as indagações populares sobre a democracia brasileira etc. Eram muitas as

inquietações e curiosidades que me atinavam, mas nenhuma delas era maior do que a sede em

compreender a problemática bullying. Durante o início da graduação, me lancei

primeiramente na leitura exploratória de uma série de autores que tratavam deste tema,

sempre apoiados por teorias, conceitos e métodos provenientes das Ciências médicas e

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Comportamentais. No âmbito nacional, por exemplo, recorri a autores como Cleodenice Fante

(2005a; 2005b; 2008), José Augusto Pedra (2008), José Augusto Cury (2003), Aramis Lopes

Neto (2003; 2005), Lélio Braga Calhau (2009), Ana Beatriz Barbosa Silva (2010), Gabriel

Chalita (2008), entre outros tantos. No campo internacional, por sua vez, mergulhei nas ideias

de Alessandro Costantini (2004); Dan Olweus (1978); Rachel Simmons (2004); Jane

Middlelton-moz e Mary Lee Zawadski (2007). Adicionem-se a este cabedal de leitura as

pesquisas feitas em cartilhas, reportagens jornalísticas, depoimentos de celebridades, artigos

de opinião etc. Começava, a partir daquele momento, a aplacar minhas desavenças com o

passado assombrado pelo fantasma do bullying.

Após três anos de ininterruptas leituras, agora articuladas com as reflexões

sociológicas que adquiri na vida acadêmica, comecei a refletir sobre como investigar esta

problemática no âmbito das Ciências Sociais. Foi neste momento que a questão bullying

passou a ser encarada por mim não mais apenas como uma simples fonte de respostas para os

dilemas do passado, mas como um possível objeto de estudo científico que a meu ver ainda

carecia de certa atenção por parte das Ciências Humanas, em geral, e pela Sociologia, em

particular. Mas, de que tipo de atenção se tratava?

A inquietação acadêmica (de caráter objetivo e científico) materializou-se

precisamente no período de conclusão da graduação no ano de 2009 através do trabalho de

monografia2. Embora já tivesse amplo domínio sobre o tema em geral, percebi que a

abordagem científica que o atravessava se fazia sempre à luz do discurso científico

proveniente das Ciências Médicas e Comportamentais (ou seja, da medicina pediátrica,

psicologia, psiquiatria e psicopedagogia)3. Isto significa afirmar que boa parte do que se

concebe e se produz no âmbito da ciência acerca do fenômeno bullying reverbera-se em

intepretações teóricas, conceitos e metodologias que vislumbram muito mais o impacto

patológico/psicológico direto que a agressão proporciona aos seus protagonistas do que o

ônus que a ordem social tem na reprodução da desigualdade, do preconceito e da ausência de

alteridade nas relações interpessoais humanas, inclusive, no interior da escola. Em outras

palavras: 1) há uma desatenção por parte da literatura tradicional que trata da agressão em

relação às mediações sociais que influenciam a irrupção dos comportamentos dos personagens

2 Monografia esta intitulada BULLYING ESCOLAR: Uma problematização crítico-construcionista do conceito

de bullying (UFRN, 2009). 3 É importante frisar que, nesta análise, não incluo a psicologia social no rol das disciplinas que adotam uma

concepção essencialista da realidade humano-social (tal qual fazem a psicologia evolucionista, a psicobiologia e

a sociobiologia, por exemplo). Ao contrário das outras, a psicologia social empreende a tarefa de conhecer o

indivíduo tanto no conjunto de suas relações sociais como naquilo que lhe é específico, sem desmerecer a cultura

como mola propulsora da construção humana. (MILITÃO 2005 p. 5).

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desta agressão. 2) também é prevalente o discurso patologizante ou medicalizante que

recorrentemente atribui a culpa pelo problema inteiramente aos protagonistas do assédio

escolar, deixando de lado a análise crítica sobre o papel da cultura e da ordem social na

produção de suas maneiras de ser, de agir e de se relacionar.

É importante frisar, no entanto, que neste paradigma tradicional que legitima o que se

compreende sobre o fenômeno bullying, nem todas as áreas da psicologia ou de outras

ciências, por exemplo, comungam unanimemente do discurso essencialista e patologizante

que aufere aos protagonistas da agressão uma suposta responsabilidade ontológica pelo que

fazem. O exemplo mais claro, conforme atesta FARR (2004), é a própria psicologia social e

seu viés dialético de análise do indivíduo em conjugação cultural com a sociedade: a

construção social do sujeito aliada as suas disposições psicoemocionais culminam na

produção de seres humanos.

Além destas constatações iniciais, uma nova verificação pessoal a partir das leituras

exploratórias chamou minha atenção: o fato de a maioria destes estudos científicos, que

tomam a temática bullying como objeto de estudo, utilizarem, predominantemente,

metodologias quantitativas para produzir suas interpretações. Ou seja, se utilizam de diversas

técnicas estatísticas para levantamento de dados sobre as realidades pesquisadas e procedem

no uso do método comparativo como forma de confrontar os diferentes estudos produzidos

para, posteriormente, construir um panorama ou mapa que permita uma interpretação objetiva

da realidade bullying. Acerca do que foi dito acima, é importante destacar que:

Os estudos com base apenas em dados estatísticos e no diagnóstico de sua

ocorrência, as intervenções baseadas em modelos de uma educação pré-

determinada, assim como sua fácil assimilação e ampla divulgação pelos

meios de comunicação de massa, o desolamento causado por suas

consequências e a inquestionável necessidade de intervenção via imperativos

morais, denunciam, ainda que apenas pelas lacunas, que tal conceito faz

parte de uma ciência instrumentalizada e a serviço da adaptação das pessoas

para a manutenção de uma ordem social desigual. É importante que se

questione a finalidade do conceito criado pelos pesquisadores da área e

adotado inteiramente por alguns colegas brasileiros. Pensar até que ponto a

classificação possibilitada pela adoção desta tipologia da violência não

mascara os processos sociais inerentes aos comportamentos classificados

como bullying, ou mesmo admitindo a existência de tais processos, ao tratá-

los como naturais, é o primeiro passo que uma ciência deve dar, se o seu

objetivo é, de fato, contribuir para o desenvolvimento da humanidade e não

para a mera adaptação dos indivíduos. (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 35).

Embora na monografia eu tenha tangenciado o caráter ideológico por trás do conceito

e do discurso que subjazem as verdades em torno do fenômeno bullying, aquele trabalho

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apenas representou um primeiro passo na tentativa de articulação entre a ciência sociológica e

a concepção tradicional que trata cientificamente da violência bullying. Esta dissertação de

mestrado, portanto, representa um aprofundamento da discussão iniciada outrora na

graduação, agora tomando como referência novas categorias de análise do campo sociológico,

dentro de uma perspectiva interdisciplinar. O objetivo agora é de proporcionar elucubrações

sociológicas acerca desta forma de agressão que aqui é estudada e abrir novas possibilidades

de intepretação que destaquem a importância dos fenômenos sociais no desencadeamento de

todas as engrenagens desta dinâmica agressiva, desde a formação dos personagens envolvidos

até a manifestação da intimidação em si.

Dessa forma, a primeira preocupação que surge é de natureza metodológica, ou seja:

como promover um diálogo interdisciplinar entre estudiosos que insistem em amalgamar os

campos da cultura e da natureza – tal qual fazem os especialistas que tradicionalmente

investigam o fenômeno bullying – e o grupo de autores provenientes do campo das Ciências

Humanas, especialmente aqueles que concebem o homem como o resultado de um constructo

cultural e histórico? Afinal de contas, conforme será argumentado neste trabalho, a cultura

contribui decisivamente para a configuração da maioria dos elementos característicos deste

contexto agressivo específico.

Para iniciar a discussão, tome-se como exemplo a fala de Cleo Fante (2005b), que em

uma de suas obras dedica um capítulo inteiro a explicar como alguns conceitos e teorias do

âmbito da medicina ou da psicologia, por exemplo, são proeminentes na explicação sobre o

desencadeamento da violência e da agressividade entre jovens. Embora admita em sua fala a

existência de uma suposta polissemia atrelada a alguns destes termos, o que suscita diferentes

interpretações, ela destaca que fatores biológicos ou cognitivos é que se tornam decisivos na

irrupção do fenômeno bullying. Sobre a agressividade, por exemplo, ela pontua:

Concluímos lembrando que o comportamento agressivo surge como

resultado de uma elaboração afetivo-cognitiva, fruto das experiências

vivenciadas pelo indivíduo, que se torna motivadora de processos

inconscientes capazes de atribuição de valores e ressignificação de

conteúdos à realidade, originando conduta e sentimentos de ira que, uma vez

estimulados, alimentam e sustentam a conduta agressiva, fugindo muitas

vezes ao controle voluntário do indivíduo, por ter sido condicionado a

utilizá-la como forma de resolução de conflitos e de satisfação dos desejos

de realização pessoal. (FANTE, 2005b, p. 167).

Por sua vez, Almeida e Medrado (2007) delineiam em seu artigo acadêmico o perfil de

um hipotético agressor de bullying, onde são enfáticos ao admitir a interferência de

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componentes biológicos na constituição do comportamento agressivo de um provável

agressor:

“Bully” que quer dizer brigão, valentão, tirano, exprime atitudes agressivas

intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, causando

dor e intimidação em suas “vítimas”. Pode-se aliar a isso a efervescência

hormonal e a necessidade de autoafirmação, fatos típicos da adolescência

podendo-se chegar a uma receita explosiva. (ALMEIDA e MEDRADO,

2007, p.1).

Por último, destaquem-se as palavras de Aramis Lopes Neto (2005), que deixam no ar

a seguinte dúvida: seria possível a existência de indivíduos naturalmente predispostos a sofrer

ou a praticar bullying em suas relações interpessoais futuras?

Existem dúvidas se os danos à saúde precedem o bullying ou se são esses

atos que afetam a saúde dos alvos. O estresse causado pela vitimização

poderia levar ao surgimento de patologias, mas as crianças e adolescentes

com problemas como depressão ou ansiedade podem se tornar alvos de

bullying. Poucos estudos investigaram essa relação, mas as duas hipóteses

contam com forte apoio. A intervenção precoce, tanto com relação aos alvos

quanto aos autores, pode reduzir os riscos de danos emocionais tardios.

(LOPES NETO, 2005, p. 168).

Este conjunto de citações evidencia uma postura bastante comum na literatura

científica produzida por aqueles que se propunham a estudar e conceber as verdades sobre a

fenomenologia bullying. Nesta forma de concepção, admite-se a presença palpável de uma

suposta metafísica da substância ou da essência anterior aos sujeitos humanos, que em algum

momento de suas vidas lhes desencadearia ou impulsionaria a se constituírem como reais

agressores, vítimas ou espectadores num hipotético contexto de intimidação.

Também é comum, na maioria dos escritos que advogam o ponto de vista supracitado,

a presença de uma taxonomia detalhada que perfila de maneira contundente o comportamento

ou a conduta de um potencial agressor, vítima ou espectador. Como exemplo disso, Aramis

Lopes Neto (2005) dedica uma parte de seu artigo científico a examinar precisamente as

específicas características dos personagens de uma intimidação bullying, destacando como

certos fatores naturais ou biológicos definiriam o modo de ser e agir de cada um dos

respectivos atores. Sobre os agressores, ele menciona que “fatores individuais também

influem na adoção de comportamentos agressivos: hiperatividade, impulsividade, distúrbios

comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar

deficiente.” (LOPES NETO, 2005, p. 169).

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Aqui surge o primeiro argumento que justifica a adoção, nesta dissertação, do

pressuposto construcionista crítico e, concomitantemente, a primeira crítica ao

discurso/literatura tradicional que concebe as verdades em torno da problemática bullying: “o

que funda o humano é o mundo dos objetos, signos, relações e instituições criados pelo

próprio humano. Fora deste entendimento estão os idealismos e substancialismos de todos os

matizes que propunham causas e efeitos fora da cultura e da história humana.” (SOUSA

FILHO, 2007, p. 8). Em outras palavras, a realidade social humana existente (incluindo as

dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) decorre das práticas culturais dos seres

humanos no decurso de suas histórias e nos diferentes espaços que se distribuem. “Línguas,

religiões, leis, normas sociais, valores, moral, sexualidade, ideias etc.” (SOUSA FILHO,

2007, p. 3) expressa em alguns exemplos este caráter de coisa construída da realidade social.

Segundo Sousa Filho (2007, p. 11), “uma teoria construcionista é um legado de muitos

autores e trabalhos nos diversos campos em ciências humanas e sociais, assim como de

filosofias.”. Seu fundamento central é o pressuposto da primazia da cultura sobre o indivíduo

humano, pelo qual não se admite a existência de nada lhes fundando que não provenha antes

da linguagem, da cultura e do social. Portanto, não existe um “antes” da cultura e da história

humana que porventura funde os sujeitos ou indivíduos, ou seja, supostos seres celestiais ou

divinos como elementos precursores do humano; heranças genéticas derivadas de uma

evolução ancestral que determinariam a existência individual e coletiva; características inatas

herdadas cromossomicamente de antepassados que explicariam o modo de ser de um

indivíduo etc. No entanto, o conceito de bullying tal qual concebido e enunciado pela

literatura científica hegemônica que se apropria de seu sentido, é categoricamente forjado

numa perspectiva essencialista, biologista e substancialista, deixando escapar os diversos

fundamentos sociais e culturais que lhe atravessam e definem.

É importante destacar que tal postulado construcionista não está isento de críticas por

parte de outros saberes científicos. Sousa Filho (2007, p.8-9), por ocasião do assunto, rebate

em seu texto a acusação feita por outras formas de conhecimento de que o pressuposto

construcionista crítico seria culturalista, reducionista e dogmático. Sobre o assunto, ele

argumenta que:

Aos que veem nisso uma ciência que apenas enxergaria “o que vem de fora”

(sic.) e não enxergaria “o que vem de dentro” (sic.), dicotomia curiosa e um

tanto cômica!, Aos que aderiram febrilmente à tese que imputa dogmatismo

e reducionismo às ciências humanas, por estas não praticarem a ciência-do-

meio-a-meio (metade cultura, metade natureza, entendimento que se vale da

epistemologia da “tolerância”, contra os “radicalismos”), o que se pode

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recomendar é que façam escolhas coerentes. O ecletismo aligeirado e

acrítico de certas tendências hoje, pretensamente renovadoras das ciências

humanas, confundindo cultura e natureza, apenas tem servido para reforçar

representações do senso comum social a propósito da existência humana. E

sobre a acusação de dogmatismo, é bom lembrar que nenhuma teoria pode

pensar seriamente em atribuir a outra a pecha de ser dogmática sem aplicar a

si a mesma fórmula. E que se acrescente: na produção do conhecimento

teórico, não se pode ir muito adiante se não se confia na teoria com a qual se

trabalha ou nela se investe. Não se trata, entretanto, da ideia de um “modelo

fechado”, mas, como assinalado antes, uma visão compósita, aberta, de

sínteses, mestiçagens teóricas com interação metodológica. (SOUSA

FILHO, 2007, p. 9).

Portanto, quando se fala em primazia cultural sobre a construção humana, não se

busca em nenhum momento estabelecer argumentações puramente abstratas e desprovidas de

comprovação empírica. Afinal de contas, tal primazia se confirma por si só a partir dos dados

antropológicos e sociológicos que a demonstram largamente. (SOUSA FILHO, 2007).

O segundo argumento que justifica a adoção por esta pesquisa do construcionismo

crítico como ferramenta metodológica se ancora naquilo que Sousa Filho (2007) aponta como

uma necessária vocação crítica do cientista humano. Em outros termos, ser construcionista é

algo inerente à própria formação epistemológica do cientista humano e social, devendo esta

vocação se expressar primeiramente na oposição frente à dicotomia entre natureza e cultura e

na sua forma de conceber a existência do homem no mundo como algo inteiramente

cultural/social. Assim, por esta dissertação se tratar de um estudo interdisciplinar entre a

literatura hegemônica que trata da questão do bullying e a Sociologia, que entra como um

saber crítico em relação a esta forma usual de se conceber tal violência, nada mais coerente do

que se filiar a esta perspectiva metodológica supracitada como ferramenta de ação para

desconstrução do que tradicionalmente se estabelece no meio científico sobre o bullying.

O último argumento que justifica o caráter construcionista da organização

metodológica desta dissertação tem a ver com o fato da teoria em questão se organizar através

de sínteses/composições/mestiçagens provenientes de elaborações teóricas diversas de autores

do campo das humanidades ou mesmo através de modificações em seus sentidos originais,

onde todas elas estão articuladas coerentemente através de uma sistematização metodológica.

(SOUSA FILHO, 2007). Esta combinação ampla de teorias, retiradas de seus domínios de

origem, conforme destaca o autor, pode suscitar críticas entre aqueles que identificam

“mistura”, “salada” ou “confusão” no trabalho dos que buscam reconhecer aspectos comuns

nas diversas interpretações da realidade existentes no interior das ciências humanas. Quanto a

este aspecto, Sousa Filho (2007) deixa claro que:

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De minha parte, não se trata de apagar a autonomia própria de cada

posicionamento teórico e suas particularidades, mas de apontar que posições

habitualmente vistas como “nada tendo a ver uma com a outra” (ideia

bastante reforçada nas mutilações praticadas no ensino universitário) estão

assentadas em fundamentos e conclusões comuns, que são possíveis

demonstrar, e entre elas tornando-se possível produzir interações

metodológicas importantes. (SOUSA FILHO, 2007, p. 5).

Portanto, o construcionismo crítico se consolida como a alternativa metodológica que

regerá a organização das ideias e argumentos desta dissertação, na medida em que permite

uma articulação metodológica coerente entre autores fundamentais das ciências humanas, que

em comum concebem a primazia da cultura e do social sobre a construção da realidade

histórica dos indivíduos em seus diferentes espaços de convivência. Trata-se, como já dito, de

uma vocação crítica que permite a qualquer cientista humano/social se opor a velha dicotomia

entre natureza e cultura, a partir do que alega o seu postulado central: o de que a realidade

social é resultado da ação de construção dos próprios seres humanos, de acordo com suas

diferenças culturais e etapas históricas. Entenda-se por realidade social todas as suas

dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas e por constructo as diversas estratégias,

ferramentas e artifícios culturais (língua, religião, moral, leis etc.) que servem como subsídio

aos indivíduos para nortear, compreender, aperfeiçoar e facilitar a sua existência no mundo.

1.3 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FABRICAÇÃO DAS DIFERENÇAS E

DESIGUALDADES ENTRE OS INDIVÍDUOS

Após justificar a escolha metodológica que rege a elaboração desta dissertação, a

próxima abordagem será debater sobre o papel que as instituições de ensino desempenham na

irrupção de atitudes agressivas tais como o bullying. Como o leitor poderá visualizar nos

parágrafos a seguir, escolhi enveredar pelo campo escolar e pelo emprego da categoria de

gênero como instrumento de análise crítica nesta dissertação, devido ao significado especial

que estes marcadores têm para mim, uma vez que foi na escola mediante agressões

homofóbicas (apelidos, ameaças e questionamentos quanto a minha sexualidade) que

experimentei as maiores dores decorrentes da intimidação bullying em minha infância e

adolescência.

Para entender como as escolas ou universidades, concebidas como instituições

promovedoras da emancipação social dos indivíduos através da formação educacional,

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reverberam em suas dependências atitudes de segregação, intolerância e exclusão, suscitadas

aparentemente por questões econômicas, étnicas, sexuais ou de gênero. (LOURO, 1997).

Sobre esta questão, uma indagação pode ser imediatamente levantada: qual a

relevância destes espaços pedagógicos no contexto das manifestações de atitudes agressivas

de intolerância e preconceito, tais como o bullying? Para responder a esta pergunta, tome-se

inicialmente como exemplos alguns dos principais massacres ou tiroteios com vítimas,

ocorridos em diversos países, que tiveram como motivação principal para sua irrupção o

sofrimento decorrente do bullying. A maioria deles foi realizado no interior de escolas ou

universidades que, no passado, serviram de palco para o sofrimento de seus autores através da

intimidação bullying. (FANTE, 2005a). Como os exemplos ocorridos nos Estados Unidos,

tais como o de Columbine, em Littleton, no Colorado (doze vítimas fatais) e o da escola

Virgínia Tech (trinta e duas vítimas fatais) ou tiroteios ocorridos no Brasil como o de

Taiúva/SP, em 2003; Remanso/BA, em 2004, e Realengo, em 2011, na cidade do Rio de

Janeiro. O que fortalece o argumento de que, além de se configurarem cada vez mais como

uma prática comum, estes massacres parecem representar uma forma de “devolução” da dor e

do flagelo, que outrora as vítimas sofreram no passado, à mesma realidade escolar ou

acadêmica que se mostrou naquela oportunidade incapaz de ajudá-los ou defendê-los das

agressões.

O espaço escolar ou universitário, conforme Louro (1997), exerce deliberadamente

uma ação distintiva sobre os sujeitos que acolhe em seu interior: isola adultos de crianças,

alunos ricos de alunos pobres, meninos de meninas e sujeitos “normais” dos “desviantes”.

Suas normas regimentais tem o propósito de delimitar sistematicamente as formas de

ocupação de seus espaços de acordo com os tipos (sexuais, etários etc.) de sujeitos, visam

orientar sistematicamente as suas condutas habituais e definir “lugares específicos” a serem

ocupados pelos meninos e meninas ou pelos pequenos e os maiores, por exemplo. Em outras

palavras, trata-se de uma instituição que segrega, normatiza e elabora as identidades sociais de

seus membros sob a perspectiva de controle sistemático do espaço, do tempo, do corpo e da

mente.

Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade,

a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma

ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos — tornando aqueles

que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela

dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos

mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização (LOURO, 1997,

p. 57).

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Outro aspecto crucial que explica como a cumplicidade escolar contribui para o

desencadeamento de agressões e intimidações como o bullying refere-se à busca de uma

suposta aparência de naturalidade que entremeia suas ações, cujo objetivo é o de fazer

conceber entre seus membros a percepção de que suas estruturas significadoras e fundadoras

são provenientes de uma ordem natural e não de uma dimensão cultural. A forma de

enraizamento da disciplina, do controle e dos padrões de ser e de agir nas individualidades,

por exemplo, além de sobremaneira intenso, também vem acompanhado por uma sutileza ou

fina nuance que faz com que estes sujeitos concebam tudo aquilo que foi apreendido e

interiorizado, através das práticas e dos ritos escolares, como derivados de uma suposta

“ordem natural das coisas”, escamoteando o papel que o sistema cultural desempenha neste

complexo processo de estruturação de sua realidade.

Ao longo da história, as diferentes comunidades (e no interior delas, os

diferentes grupos sociais) construíram modos também diversos de conceber

e lidar com o tempo e o espaço: valorizaram de diferentes formas o tempo do

trabalho e o tempo do ócio; o espaço da casa ou o da rua; delimitaram os

lugares permitidos e os proibidos (e determinaram os sujeitos que podiam ou

não transitar por eles); decidiram qual o tempo que importava (o da vida ou

o depois dela); apontaram as formas adequadas para cada pessoa ocupar (ou

gastar) o tempo... Através de muitas instituições e práticas, essas concepções

foram e são aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase “naturais” (ainda

que sejam "fatos culturais"). A escola é parte importante desse processo.

(LOURO, 1997, pp. 59-60).

Tome-se como exemplo do que foi dito anteriormente as identidades escolarizadas de

meninos e meninas, cujos gestos, movimentos e sentidos são incorporados e treinados

paulatina e recorrentemente em seus cotidianos, segundo o que as expectativas sociais de

gênero especificam para cada uma destas categorias. Qual seria, portanto, o provável

resultado deste processo supracitado? A produção de corpos escolarizados, que expressam

por si mesmos as marcas da distinção e da segregação, de acordo com os critérios

taxonômicos que a escola estabelece para diferenciar seus membros.

Todavia, aqui surge uma dúvida: seria possível impor um controle escolar absoluto de

maneira a produzir uma disciplina uniforme e irresistível entre todos os membros da

comunidade estudantil? Ainda que Louro (1997) ateste que a escola produz uma

aprendizagem social bem elaborada, eficaz, sutil e continuada que objetiva disciplinar o uso

do espaço, do corpo e das mentes estudantis, percebe-se que alguns sujeitos resistem,

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escapam ou violam este complexo processo disciplinador, reproduzindo em seus corpos e

suas mentes expressões dissonantes do itinerário preconizado pela ideologia escolar.

De modo que todos os alunos são incorporados indistintamente ao processo de

socialização imposto pela realidade escolar, são obrigados a se conduzirem conforme o que é

preconizado pelas normas de expressão corporal e de uso sistemático dos espaços de

acomodação e a educarem seus corpos e mentes conforme a ação pedagógica estipulada por

aquela instituição, sob o risco de sanções em caso de descompassos. Apesar deste intenso

escrutínio formativo de suas personalidades, alguns sujeitos resistem aos efeitos desta

complexa engenharia social e ainda expressam transgressões em seus corpos e pensamentos.

É importante frisar que esta resistência manifestada nos corpos e nas mentes de alguns destes

sujeitos nem sempre é um processo consciente. Todavia, quando o é, os dissidentes fazem

questão de reverberar em sua estética ou aparência seu desacordo com o que está instituído.

Muitos casos de intolerância e preconceito, portanto, representam reflexos da rejeição às

diferenças que o outro manifesta em sua essência e existência étnica, regional, estética etc.

Embora existam “punições” institucionais escolares previstas para coibir o

descumprimento individual perante o processo hegemônico de fabricação escolar –

continuado, sutil e quase imperceptível – dos sujeitos, estas penas possuem uma finalidade

bastante específica e somente coíbem aquilo que porventura possa ameaçar ou atentar contra a

ordem, o controle e a estabilidade da ideologia escolar. Questões relativas a supostas

“brincadeiras”, que no fundo se revestem de intolerância ou preconceito, quando não são

relativizadas pelos gestores/educadores, são vistas como algo próprio da idade ou tidas como

necessárias ao processo de amadurecimento dos jovens. (CALHAU, 2009).

O bullying escolar, costumeiramente classificado por seus especialistas como uma

forma de opressão subjacente a maioria destas “brincadeiras”, vem sendo paulatinamente

ignorado ou negado por muitas realidades escolares do mundo. Esta negação ou descaso

produz danos de maneira silenciosa entre a maioria dos sujeitos escolares envolvidos com a

questão. (FANTE; PEDRA, 2008). Trata-se, portanto, de uma prática violenta que obedece a

uma lógica de costumes que muitas escolas ainda se negam em reconhecer ou que, quando a

reconhecem, não se preocupam seriamente em erradicar. Conforme atesta Cleo Fante (2005b)

em sua obra:

Ficamos muito impressionados com a pouca conscientização da realidade do

fenômeno nos meios educacionais e com o despreparo dos profissionais

desse setor para lidarem com a violência, especialmente a velada. Algo que

chamou nossa atenção foi o fato de muitos diretores negarem o fenômeno da

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violência existente em suas escolas, pincipalmente os que administram

escolas particulares. (FANTE, 2005b, p. 51).

Em outros termos: a escola (e muitas universidades ao redor do mundo) reproduz a

incorporação de um habitus4 conivente com o capital cultural hegemônico sobre as

personalidades discentes, mas escamoteia, ou pelo menos se olvida, as atitudes de perseguição

contra o outro que porventura venha a destoar destes padrões culturais concebidos como

corretos, verdadeiros e únicos. O bullying, encarado pelos especialistas como uma agressão

interpessoal cujo fundamento é o não reconhecimento das diferenças, nasce neste contexto de

impunidade, descaso e omissão. Além disso, conforme Calhau (2009) destaca em sua obra, a

agressão bullying pode se iniciar no interior da escola, mas se desdobrar em seus efeitos para

além de seus muros e instalações físicas, explodindo em atos de violência nas ruas, praças,

shoppings etc. A intolerância e o preconceito, portanto, podem começar num lugar onde

jamais se supunha acontecer, como escolas ou universidades, e ter reflexos deletérios para

além dos espaços de onde emergiram.

Vale salientar que não é missão deste trabalho estigmatizar as escolas ou universidades

como únicas fontes institucionais de produção da intolerância e de segregação entre

indivíduos. Todavia, elas se constituem como terreno fértil e bastante favorável ao

florescimento destes tipos de condutas. De modo que fica no ar a dúvida de como as práticas

de agressão bullying se tornam tão profícuas no interior de espaços tão caracterizados por

controle e disciplina como estes? A premissa sociológica que surge como argumento repousa

na crítica à suposta neutralidade da instituição escolar feita pelo sociólogo Pierre Bourdieu

(1975) em parceria com Jean Claude Passeron (1975) no livro A Reprodução. Elementos para

uma teoria do sistema de ensino, no qual os autores evidenciaram a prática recorrente de uma

lógica reprodutivista dos valores hegemônicos das classes dominantes na formação cultural

dos sujeitos discentes que frequentavam as escolas francesas à época da pesquisa. Segundo a

obra, desde os seus primórdios, a escola funcionaria como um aparelho ideológico

determinado a reproduzir e a reforçar em seu interior a hegemonia cultural das classes

dominantes, assim como as desigualdades sociais e culturais mais amplas da realidade social,

deixando de lado seu princípio transformador/libertador das existências individuais através da

educação. Para lograr êxito em seu intento, segundo Bourdieu e Passeron (1975), seria

necessário à escola a execução de três mecanismos coordenados de ação: a imposição de um

4 Conceito desenvolvido/aperfeiçoado pelo sociólogo Pierre Bourdieu que se refere ao processo de inculcação de

disposições sociais estruturadas e estruturantes pelos indivíduos, sendo expressas nos seus modos de sentir,

pensar e agir, refletindo tais disposições incorporadas (BOURDIEU, 1975).

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habitus específico, a reprodução de um capital cultural como fonte de significação e a prática

da violência simbólica.

O primeiro consiste na incorporação de disposições sociais ou de uma estrutura social

pelo indivíduo, que se reverbera em sua subjetividade de modo a reproduzir em suas

expressões/comportamentos o cabedal cultural hegemônico. O objetivo, portanto, seria

preservar os mecanismos sociais dominantes e ratificar em suas individualidades a ordem

material e simbólica socialmente estabelecida de modo indireto, involuntário e escamoteando

os conflitos derivados da hierarquia de classes. A violência simbólica, por sua vez, seria o

mecanismo de ação que converte a prática pedagógica escolar (ensinamentos, ritos, posturas,

deveres cívicos etc.) na reprodução cultural hegemônica, ou seja, a cultura erudita em

detrimento da cultura popular. A sua expressão acontece nas performances intelectuais e

sociais dos sujeitos através da interiorização do habitus, que confirma sem resistências a

supremacia dos valores culturais dominantes. Se a violência simbólica corresponde à prática

ou o mecanismo direto de ação, o habitus adquirido passa a ser o efeito almejado por este

processo de reprodução dos valores culturais hegemônicos. (BOURDIEU, 1975).

Por último, o capital cultural – conjunto de significados ou sentidos produzidos a partir

das disputas de classes e que posteriormente são consagrados como “verdades” que definem o

que é ou não aceito culturalmente na realidade social – que é veiculado pela escola aos

sujeitos discentes, configura-se como o cabedal de conhecimento do qual a escola extrai sua

ação pedagógica. Tal capital corresponde à bagagem cultural proveniente das classes

dominantes, porém, é apreendida diferentemente por cada um dos indivíduos escolares,

conforme suas origens sociais, de modo que indivíduos mais pobres, neste contexto, tendem a

ter mais “dificuldades” no aprendizado escolar do que outros provenientes de camadas sociais

mais ricas que podem, devido a sua condição econômica, usufruir melhor dos elementos da

cultura hegemônica e elitista. Diante disso, a escola promove uma segregação pedagógica

travestida de uma “ideologia do mérito”, mas na verdade, os alunos que herdam competências

culturais mais refinadas de suas origens familiares, por exemplo, largam na frente dos mais

desfavorecidos, que têm seu progresso justificado através do epíteto do “esforço” ou do

“comprometimento” com os estudos e com a causa escolar. Desse modo, acaba alquebrando

todo aquele que não possui capital cultural suficiente para acompanhar o itinerário formativo

proposto pela escola, que privilegia os valores simbólicos provenientes das elites sociais em

detrimento do conhecimento popular e leigo. (BOURDIEU, 1975).

Em suma, a escola é um microcosmo que reproduz a perspectiva cultural dominante e

hegemônica da sociedade no interior de sua vida comunitária, na qual se apresenta como

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autoridade legítima capaz de assegurar a ordem e de fornecer sentidos sobre a existência para

os seus membros. Aqueles que não acompanham sua ação pedagógica se tornam culpados

devido a uma pretensa falta de esforço pessoal, de comprometimento ou por supostos

problemas de aprendizagem ou psicológicos. A prática de bullying escolar, além de se refletir

no descaso ou na negação de muitas escolas sobre sua incidência, também decorre deste

desequilíbrio pedagógico que afeta muitos alunos, especialmente, aqueles que provêm de

realidades sociais cuja bagagem cultural destoa do itinerário formativo tido como legítimo e

necessário pela escola – itinerário apoiado nos valores, sentidos e significados da cultura das

classes dominantes. Muitos casos de intolerância e perseguição não se dão apenas pela

dissonância estética, étnica, sexual ou regional entre um agressor e sua vítima, mas

manifestam-se também por causa do déficit cultural e pedagógico entre estas partes. Se o

mundo atual caracteriza-se por uma notória crise de alteridade e de reconhecimento do eu no

outro (VELHO, 2008) esta crise, que guarda na agressão bullying cores bem vívidas, também

expressa uma tentativa de manutenção e perpetuação do imperativo cultural dominante (seus

valores, suas verdades, suas formas de ser e de existir) e de supressão/coerção sobre as

manifestações de transgressão e de resistência daqueles que não concordam em viver sob os

desígnios da hegemonia cultural instituída.

A agressão bullying, assim, também se converte numa ferramenta bastante eficiente

em prol da erradicação das transgressões individuais sexuais, de gênero, de etnia, de origem

social ou econômica etc., que muitas escolas ainda insistem em não admitir, reconhecer ou

combater formalmente no âmbito de suas dependências. Se não fossem os massivos alertas

perpetrados em sua própria direção através de massacres, tiroteios e atentados, a maioria

deles, provavelmente, jamais insistiria em desenvolver programas públicos e pedagógicos de

prevenção, controle e erradicação do bullying escolar. Já que por se tratar de um problema

cada vez mais notório e danoso à sua imagem institucional, a maioria delas vem mudando de

ideia quanto a forma de encarar o fenômeno. A título de exemplo, fica registrado abaixo de

que forma um ataque escolar, tal qual o ocorrido na cidade de Taiúva, no interior paulista,

pode reverberar violência de volta à própria instituição de ensino, mesmo com o passar dos

anos. É comum que vítimas de bullying, após anos de sofrimento e descaso da instituição

escolar, retornem à mesma para a concretização de um ato final em busca de uma justiça que

jamais encontraram em seus anos de vida estudantil:

Em janeiro de 2003, na cidade de Taiúva, no interior paulista, um tímido

jovem de 18 anos, depois de concluir o ensino médio, atirou contra

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cinquenta pessoas durante o horário de recreio da escola onde estudara.

Atingiu oito pessoas e depois se matou com um tiro na cabeça. As vítimas

sobreviveram, porém uma delas ficou paraplégica. Este adolescente era

obeso desde a infância e foi motivo de piada para os colegas da escola.

Mesmo após emagrecer trinta quilos continuaram zoando dele (FANTE;

PEDRA, 2008, p. 56, grifo nosso).

No próximo capítulo, a dissertação empreenderá uma discussão sobre os efeitos

decorrentes deste complexo procedimento escolar de fabricação e distinção dos sujeitos de

acordo com a ideologia vigente. Tais efeitos, conforme já tangenciado nesta primeira parte do

trabalho, produzem distinções significativas entre os indivíduos de acordo com certas

categorias de classificação impostas pela ideologia cultural. Nesse sentido, esta pesquisa

busca apontar especificamente como a violência bullying também possui palpáveis diferenças

ou distinções em sua forma de manifestação, de acordo com as delimitações de gênero e

sexualidade estipuladas pelo sistema cultural hegemônico para os sujeitos. De forma que

intenta responder por que os ataques desferidos pelos meninos são tão diferentes dos

perpetrados pelas meninas? Qual destas formas anteriores de agressão seria mais destrutiva ou

danosa para seus protagonistas? Como o fenômeno da ideologia se manifesta neste processo

de elaboração das identidades humanas na escola e no contexto específico de irrupção da

agressão bullying de acordo com a tipologia humana de cada participante?

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2 ENTRE AMEAÇAS, SOCOS E PONTAPÉS: NOTAS

SOCIOLÓGICAS SOBRE O BULLYING5 ESCOLAR PRATICADO

ENTRE MENINOS

2.1 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO

UNIVERSO MASCULINO: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA

TRADICIONAL

A maioria dos ataques6 em massa desferidos contra escolas e Universidades ao redor

do mundo na forma de tiroteios, resultando em um número significativo de vítimas mortas ou

feridas, possui a marcante característica em comum de terem sido protagonizados por

indivíduos do sexo masculino. Geralmente, são adolescentes, jovens universitários ou ex-

alunos, que se dirigem à instituição do qual fizeram ou ainda fazem parte, em uma atitude de

retaliação, vingança ou desejo de reparação por causa da vitimização bullying que outrora

sofreram naquele espaço. Conforme descrevem Fante e Pedra (2008) são exemplos de

massacres que expressam o amplo protagonismo de jovens do sexo masculino no contexto das

catástrofes escolares: o de 1997, ocorrido na cidade de West Paducah, no Estado do

Kentucky, orquestrado por um garoto de 14 anos, resultando em cinco mortes e cinco feridos;

o de 1998, na cidade de Jonesboro, no Arkansas, em que dois estudantes de onze e treze anos

vitimaram fatalmente cinco pessoas; o de Springfield, no Oregon, onde dois adolescentes de

dezessete e dezoito anos mataram dois colegas e feriram outros vinte; o de 1999, na cidade de

Littleton, no estado do Colorado, no qual dois estudantes protagonizaram a célebre chacina de

Columbine, que resultou na morte de treze pessoas e em outras dezenas de feridos; e o de

abril de 2007, em Blacksburg, no Estado da Virgínia, considerado o maior atentado em um

espaço educacional do mundo, onde um aluno sul-coreano matou trinta e duas pessoas e feriu

5 A agressão bullying é tradicionalmente classificada, conforme se verifica na leitura de diversos estudiosos do

tema, como um fenômeno, ou seja, como algo passível de ser descrito mediante procedimentos científicos de

análise, observação e apreensão de sua ocorrência. Portanto, a dissertação se utilizará amplamente desta

designação para se referir a tal agressão aqui pesquisada.

6 É importante destacar que nem todos os ataques protagonizados por membros do sexo masculino contra

escolas/universidades ao redor do mundo foram motivados especificamente pelo bullying. Alguns exemplos: O

massacre de Beslan em 2004, na Rússia (terrorismo); o massacre de Maalot em 1974, no Estado de Israel

(terrorismo); o massacre de 1989 dirigido a uma renomada universidade do Canadá (misoginia e aversão ao

feminismo) entre outros tantos. Nesta pesquisa, serão considerados apenas para análise os casos impulsionados

pela fenomenologia bullying.

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outras vinte e nove. Todos estes ocorridos apenas nos Estados Unidos, o país com maior

incidência de ataques catalogados.

No entanto, para além do país norte-americano, diversos outros massacres em escolas

ocorreram ao redor do mundo e, coincidência ou não, tiveram como protagonistas membros

do sexo masculino que outrora foram alvos/vítimas de bullying, em suas respectivas

realidades escolares. Para citar alguns exemplos, o da cidade de Erfurt, na Alemanha, em abril

de 2002 (dezesseis mortos); em Carmen de Patagones, na Argentina, em 2004 (três mortos e

cinco feridos); na cidade de Tuusula, na Finlândia, em novembro de 2007 (oito mortos) ou no

Brasil, as tragédias no município de Taiúva, em São Paulo, em 2003; no de Remanso, no

interior baiano, em 2004; e no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, em 2011.

Diante deste cenário de explosão de violência, surgem de imediato algumas

indagações: Quais seriam as prováveis causas desencadeadoras destes massacres escolares?

Por que a autoria destas tragédias com armas de fogo em ambientes educacionais geralmente

está atribuída a membros do sexo masculino? E por que esta modalidade de expressão de

violência é a preferida entre adolescentes ou jovens garotos vítimas da agressão bullying?

Para tentar responder as perguntas enunciadas acima, a pesquisa passa a dialogar, ao

longo desta e da próxima seção, com duas fontes ou paradigmas de interpretação teórica que

tentam dar inteligibilidade a violência bullying: a primeira delas, doravante por mim

denominada de enfoque tradicional, é baseada no conjunto de constatações, estudos de caso e

pesquisas provenientes da literatura científica hegemônica que, desde meados da década de

1970, procura estabelecer contornos precisos e legítimos sobre as formas de manifestação da

violência bullying; e a segunda, denominada de enfoque sociológico, tem como ponto de

partida a análise geral da dissertação de mestrado de Deborah Christina Antunes (2008),

intitulada Razão Instrumental e Preconceito: Reflexões sobre o Bullying7 que se constitui

como um marco acadêmico na tentativa de romper com a lógica discursiva que predomina na

produção das verdades sobre a agressão bullying, através de uma reflexão crítica sobre suas

“verdades”. Além da dissertação mencionada, o presente trabalho também toma como

referência uma nova perspectiva de análise/reflexão, a abordagem/compreensão teórica

denominada de construcionista crítica.

Nesta primeira seção do capítulo, o alvo da discussão incidirá sobre o primeiro

enfoque, o discurso tradicional provém majoritariamente das ideias de autores do campo

Ciências Médicas e Comportamentais, tais como a medicina e a psicologia, legitima há

7 Defendida na Universidade Federal de São Carlos, estado de São Paulo.

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décadas as verdades em torno do que se concebe sobre o fenômeno bullying e se constitui

como o paradigma referencial quando se fala do assunto, atualmente. Por se tratar de uma

abordagem bastante ampla e diversa em termos de autores, estudos e pesquisas, não será

possível abarcar detalhadamente cada uma das perspectivas autorais específicas. O foco da

investigação, portanto, residirá no discurso ou no paradigma geral que se constituiu e que se

reproduz recorrentemente nas falas de diversos autores, em suas tentativas de compreender

este tipo de agressão.

Toda definição8 que é feita por algum autor sobre o fenômeno bullying, no âmbito do

discurso científico tradicional, leva em consideração, no momento de sua elaboração,

determinados critérios básicos, estabelecidos pelo primeiro acadêmico a investigar

sistematicamente a agressão, o pesquisador norueguês Dan Olweus9 (1978), esses critérios

foram elaborados para identificar e diferenciar prováveis condutas bullying de outras formas

de violência ou de brincadeiras próprias da idade. (FANTE; PEDRA, 2008). São eles: a)

ações repetitivas contra a mesma vítima num período prolongado de tempo; b) desequilíbrio

de poder, o que dificulta a defesa da vítima; c) ausência de motivos que justifiquem os

ataques. FANTE e PEDRA (2008) ainda acrescentam um quarto critério: os sentimentos

negativos mobilizados e as sequelas emocionais deixadas nas vítimas deste tipo de agressão.

Portanto, qualquer proposta de conceituação sobre a agressão bullying necessariamente leva

em conta os critérios acima destacados.

Embora o termo bullying seja semanticamente unívoco, isto é, possua sentido

uniforme em qualquer definição que o abarque, os diversos especialistas que o estudam

elaboraram, no decorrer de suas pesquisas, uma complexa e criteriosa taxonomia em torno

deste fenômeno, cujo objetivo seria o de mapear detalhada e sistematicamente as principais

variáveis inerentes ao contexto da agressão. São elas: a) as características dos personagens

envolvidos nesta forma de violência; b) as principais diferenças entre a agressão praticada por

meninos e meninas; c) as formas de maus-tratos (ataques) utilizadas no fenômeno; d) as

modalidades de manifestação da agressão bullying; e) o papel da faixa etária dos envolvidos

8 Albino e Terêncio (2012) reforçam em seu artigo que é muito comum o hábito de cunhar novos nomes para

fenômenos antigos. Com o bullying, portanto, não foi diferente: trata-se de um termo importado da língua inglesa

que adentrou prontamente na literatura estrangeira com o ar de novidade (dando evidência e destaque ao que se

buscava compreender), mas que dificultou sua visualização em um contexto mais amplo de análise através de

outras variáveis (sociais, culturais, econômicas etc.). Destaque-se também o fato de que muitos países criaram

termos próprios para se referir a este tipo de agressão, sem que se perca o seu significado: prepotenza ou

bullismo (Itália); yjime (Japão); agressionen unter shulern (Alemanha); acoso ou intimidación (Espanha) etc. Em

geral, o termo em inglês bullying é empregado na maioria dos países onde é estudado. 9 Para mais detalhes, recomendo a leitura integral da obra deste autor, que foi a primeira grande investigação

sistemática e acadêmica sobre o tema bullying: OLWEUS, D. Aggression in the Schools: Bullies and Whipping

Boys. Washington: Hemisphere Pub. Corp.; New York: Halsted Press, 1978.

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como critério decisivo na irrupção e caracterização da agressão; f) as causas e as

consequências desta forma de intimidação; a prevalência do bullying no mundo; g) as

medidas, procedimentos e encaminhamentos que devem ser tomados para solucionar este

problema.

Tal taxonomia e suas variáveis são sustentadas metodologicamente por pesquisas

empíricas – estudos de caso em torno do comportamento de personagens envolvidos, de

públicos-alvo previamente especificados para realização de diagnóstico ou análises objetivas

a partir das características fornecidas por um espaço amostral representativo da agressão;

descritivas de realidades escolares atingidas ou do perfil biopsicossocial de seus personagens;

quantitativas através de levantamentos estatísticos sobre a incidência de casos e o volume de

agressões em dada realidade; e comparativas – confronto ou cruzamento dos dados para

comparar as realidades pesquisadas. Acerca desta forma de proceder, tome-se como exemplo

o criterioso procedimento de classificação e de descrição da agressão bullying adotado por

Lopes Neto (2005), em seu artigo acadêmico que versa sobre o assunto:

O bullying é classificado como direto, quando as vítimas são atacadas

diretamente, ou indireto, quando estão ausentes. São considerados bullying

direto os apelidos, agressões físicas, ameaças, roubos, ofensas verbais ou

expressões e gestos que geram mal estar aos alvos. São atos utilizados com

uma frequência quatro vezes maior entre os meninos. O bullying indireto

compreende atitudes de indiferença, isolamento, difamação e negação aos

desejos, sendo mais adotados pelas meninas. (LOPES NETO, 2005, p. 166,

grifo nosso).

Em outra parte do mesmo artigo, em que busca dar detalhes sobre os protagonistas da

agressão, o autor prossegue no seu intento classificatório e descritivo:

As crianças e adolescentes podem ser identificados como vítimas, agressores

ou testemunhas de acordo com sua atitude diante de situações de bullying.

Não há evidências que permitam prever qual papel adotará cada aluno, uma

vez que pode ser alterado de acordo com as circunstâncias. A forma de

classificação utilizada pela ABRAPIA teve o cuidado de não rotular os

estudantes, evitando que estes fossem estigmatizados pela comunidade

escolar. Adotaram-se, então, os termos autor de bullying (agressor), alvo de

bullying (vítima), alvo/autor de bullying (agressor/ vítima) e testemunha de

bullying. (LOPES NETO, 2005, pp. 166-167).

Portanto, são diversos os autores que seguem esta linha metodológica, que vislumbra a

violência bullying mediante a análise articulada de dados estatísticos provenientes de

pesquisas empírico-descritivas e meramente diagnósticas do problema quando de sua

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ocorrência em uma determinada realidade. Em outras palavras, é notório o viés puramente

taxonômico, comparativo e descritivo que a maioria dos estudiosos do fenômeno adota em

suas interpretações, quando tenta conferir inteligibilidade a questão bullying; na predileção

pela adoção de métodos quantitativo-estatísticos na busca de traduzir as manifestações

agressivas; e, por último, no caráter objetivo e superficial de suas interpretações, quando o

que fazem na verdade é apenas mapear/cartografar através de dados numéricos

matematicamente equacionados as realidades pesquisadas. Fornecer uma visão objetiva,

precisa e pragmática sobre uma realidade acossada pela violência bullying parece, portanto,

ser a finalidade da maioria destes estudiosos. Todavia, conforme atesta Antunes (2008),

representa pouco para aqueles que defendem a ideia de uma contribuição crítica de outras

variáveis, principalmente socioculturais e humanas, que são decisivas na irrupção desta forma

de violência. Embora muitos autores dissertem em suas pesquisas sobre as supostas “causas”

sociais, políticas, econômicas, culturais etc. que contribuem para a irrupção do fenômeno

bullying, não as problematizam, tratando-as como coisas naturais e apartadas da realidade

social do qual o fenômeno eclodiu. É importante salientar, porém, que não se busca nesta

dissertação desprezar a relevância por trás do “fazer científico” tradicional e de sua forma de

investigação e intervenção sobre a problemática bullying. Porém, conforme atentam Antunes

e Zuin (2008) é importante sempre deixar claro que:

No entanto, entende-se que não são por si só suficientes. É necessária que se

some a eles a análise sociológica das formas de organização e das forças

objetivas da sociedade, de modo a, com impulso crítico, interpretar os dados,

mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido social dos fenômenos

singulares encontrados como um meio de desencantamento das construções

sociológicas que perderam sua relação com a realidade. (ANTUNES;

ZUIN, 2008, p. 35).

E, prosseguindo em sua reflexão sobre esta questão, os autores concluem:

Observa-se que os pesquisadores, de forma geral, ao dissertarem sobre as

supostas “causas” do que chamam bullying, dentre as quais se destacam os

fatores econômicos, sociais, culturais e particulares, não as problematizam.

Tal atitude desemboca na defesa da expressão genérica do “educar para a

paz” utilizada por Fante (2005). Desta forma, as influências familiares, de

colegas, da escola e da comunidade, as relações de desigualdade e de poder,

a relação negativa com os pais e o clima emocional frio em casa parecem

considerados naturais e apartados das contradições sociais que os

produziram. (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 36).

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Nesta primeira seção do capítulo, é importante frisar o fato de que a esta lógica

taxonômica e empírica de interpretação da violência bullying, filia-se uma corrente de autores

responsáveis pela produção de um discurso hegemônico que há muito tempo concebe as

formas desta agressão: Cleodenice Fante (2005a; 2005b; 2008), Aramis Lopes Neto (2003;

2012), José Augusto Pedra (2008), Lélio Braga Calhau (2009), Alessandro Costantini (2004),

entre muitos outros. Em suas falas, eles expressam ideias e argumentos acerca da agressão

bullying através de verdadeiros manuais de classificação e descrição das

condutas/comportamentos agressivos e da prescrição de medidas, procedimentos e

encaminhamentos terapêuticos ou médicos, voltados para se resgatar à civilidade e ao

convívio social adequado os sujeitos afetados/desviados/deslocados que protagonizaram a

intimidação bullying e que por ela foram “marginalizados”.

Assim, para começar a responder as perguntas elencadas no início desta seção, de

acordo com a interpretação tradicional supracitada, inicialmente considera-se necessário

proceder na descrição detalhada de cada um dos protagonistas que contextualizam o

fenômeno. Segundo Fante e Pedra (2008), os envolvidos numa agressão bullying representam

três tipos de personagens: as vítimas, que podem ser provocadoras (atraem impulsivamente

para si o agressor) ou agressoras (aquelas que reproduzem a vitimização que sofreram por

outros contra terceiros); os agressores ou bullies descritos como prepotentes, arrogantes e

transgressores das normas que lhe são impostas; e os espectadores, aqueles que nem

interferem na agressão por medo de se tornarem as próximas vítimas nem mobilizam ajuda

em prol dos agredidos. Trata-se de personagens bem definidos e caracterizados, que

supostamente agem conforme aspectos inerentes as suas especificidades individuais, as suas

capacidades de interação social e as suas habilidades psicoemocionais. Portanto, há a ideia de

lugares/perfis bem delimitados que são ocupados por qualquer sujeito, como na forma de um

enquadramento em perfis status quo.

É importante perceber que este mesmo procedimento de classificação descrito acima é

reproduzido por outros autores em suas pesquisas. Tome como exemplo, portanto, Lopes

Neto (2005) que classifica de maneira similar em seu artigo os personagens da agressão como

alvos de bullying, autores de bullying e testemunhas de bullying. Costantini (2004) define os

protagonistas do fenômeno como vítimas e intimidadores, Calhau (2010) reproduz a mesma

forma de classificação dos personagens utilizada por Cleodenice Fante e José Augusto Pedra

(2008) em sua obra. Adicione-se a isto o fato de que na fala de todos eles existe um

diagnóstico pré-concebido que supostamente justificaria nas próprias individualidades

daqueles personagens o porquê de eles virem a ser classificados como agressores, vítimas ou

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espectadores. De modo que se recorre a aspectos da personalidade e do comportamento

psicossocial dos envolvidos para justificar o porquê de um deles ser enquadrado numa ou

noutra categoria da agressão. Esta postura de “enquadramento prévio” dos personagens pode

ser atestada, por exemplo, na fala de Fante e Pedra (2008) no momento em que buscam

definir com precisão o “provável” perfil de uma vítima provocadora:

São aqueles alunos que agem impulsivamente, provocando os colegas e

atraindo contra si reações agressivas, contra as quais não conseguem lidar

com eficiência. Por isso acabam vitimizados. Geralmente são imaturos,

apresentam comportamento dispersivo e dificuldade de concentração.

Alguns podem ser hiperativos, possuem “gênio ruim”, agem de maneira

provocadora aos colegas e respondem de maneira ineficaz quando, em

contrapartida, são atacados ou insultados. (FANTE; PEDRA, 2008, pp. 59-

60).

Do mesmo modo, a fala de Lopes Neto (2005), quando busca perfilar os supostos

agressores ou bullies, se orienta nesta direção:

O autor de bullying é tipicamente popular; tende a envolver-se em uma

variedade de comportamentos antissociais; pode mostrar-se agressivo

inclusive com os adultos; é impulsivo; vê sua agressividade como qualidade;

tem opiniões positivas sobre si mesmo; é geralmente mais forte que seu alvo;

sente prazer e satisfação em dominar, controlar e causar danos e sofrimentos

a outros. Além disso, pode existir um “componente benefício” em sua

conduta, como ganhos sociais e materiais. São menos satisfeitos com a

escola e a família, mais propensos ao absenteísmo e à evasão escolar e têm

uma tendência maior para apresentarem comportamentos de risco (consumir

tabaco, álcool ou outras drogas, portar armas, brigar etc.). As possibilidades

são maiores em crianças ou adolescentes que adotam atitudes antissociais

antes da puberdade e por longo tempo. (LOPES NETO, 2005, p. 167).

Aqui já é possível esboçar uma provável resposta para a primeira pergunta feita no

início desta seção: Quais são as causas desencadeadoras destes massacres? O enfoque ou

discurso tradicional, pretensamente hegemônico em suas verdades, reporta-se através de seus

enunciados às inúmeras causas que levam a irrupção de uma agressão bullying ou de um

massacre escolar, mas todas estas causas estão de alguma forma circunscritas ao campo

biopsicossocial do sujeito, em detrimento da realidade sociocultural que o circunda. Em

outras palavras, seria nas individualidades, na personalidade, na forma de expressão das

emoções, no comportamento social, na percepção mental da realidade, na influência familiar,

na falta de empatia social, na timidez, no retraimento social etc. que se localizaria a fonte das

respostas para os massacres e tiroteios em escolas e universidades ao redor do mundo,

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motivadas de alguma forma pelo bullying. Bastaria ao pesquisador “enquadrar” o personagem

analisado em sua pesquisa a um daqueles “perfis” que melhor se adequa às características

subjetivas do sujeito analisado: o de agressor (quando ele aparenta ser prepotente e arrogante

em sua subjetividade); vítima (quando parece ser sensível ou retraído em seu

comportamento); ou espectador (quando é trepidante e confuso diante de conflitos e tensões

que testemunha).

Todavia, ainda resta responder duas últimas perguntas: Por que a autoria destas

tragédias com armas de fogo em ambientes educacionais geralmente está atribuída a membros

do sexo masculino? E por que esta modalidade de expressão de violência é a preferida entre

adolescentes ou jovens garotos vítimas da agressão bullying? Além das “características

individuais”, que supostamente lhes levam a se tornarem o que são, o paradigma tradicional

sugere que a agressão bullying funcionaria como um catalisador que recrudesceria o

sofrimento das vítimas até o limite do suportável, especialmente entre os meninos. Ou seja,

além do fator individual, que supostamente explica porque cada personagem desenvolve uma

propensão a agir de uma ou outra forma no contexto da agressão, um novo ingrediente pode

ser adicionado a esta complexa questão: a diferença de reação das vítimas em face da agressão

seria fruto também da simples diferença comportamental entre os sexos. Em outras palavras,

meninos vitimados tendem a explodir em violência explícita, pelo fato de serem homens em

busca de vingança e meninas agredidas velam seu sofrimento para sociedade para não

despertar dúvidas quanto a sua reputação de “boa menina”. No mais, todo o resto se

explicaria, aparentemente, com base nas comparações estatísticas e descritivas entre os casos

estudados. Pelo menos é o que sugerem muitas das pesquisas da corrente tradicional de

análise do fenômeno.

Assim, muitos autores recorrem a uma análise simplista, pragmática e pouco

aprofundada quando interpretam e comparam o bullying masculino e feminino, e suas

consequências para os envolvidos, pautando-se na tradicional lógica de interpretação de dados

estatísticos, de observação descritiva e comparativa entre casos e na aplicação de

metodologias empíricas para fornecer respostas razoáveis sobre o porquê das diferenças entre

as agressões. Apenas em alguns exemplos, quando buscam diferenciar a forma de intimidação

entre meninos e entre meninas, Fante e Pedra (2008) ponderam:

Nos países em que o bullying é pesquisado, os índices encontrados entre

alvos e autores revelam que a incidência entre meninos é maior. No passado,

acreditava-se que esse tipo de comportamento era próprio de meninos,

porém, com os avanços das pesquisas, constatou-se ser comum também

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entre as meninas. Enquanto que a maioria dos meninos utiliza, comumente,

os maus tratos físicos e verbais, as meninas se valem mais de maledicência,

fofoca, difamação, exclusão e manipulação para provocar sofrimento

psicológico nas vítimas. (FANTE; PEDRA, 2008, p. 64).

Lopes Neto (2005), representando outro exemplo, também vai de encontro a esta

tradicional metodologia utilizada pelo paradigma hegemônico, no intento de diferenciar em

seu artigo a agressão bullying entre garotos e garotas:

Entre os agressores, observa-se um predomínio do sexo masculino,

enquanto que, no papel de vítima, não há diferenças entre gêneros. O fato de

os meninos envolverem-se em atos de bullying mais comumente não indica

necessariamente que sejam mais agressivos, mas sim que têm maior

possibilidade de adotar esse tipo de comportamento. Já a dificuldade em

identificar-se o bullying entre as meninas pode estar relacionada ao uso de

formas mais sutis. (LOPES NETO, 2005, p. 166, grifo nosso).

A verdadeira guinada nesta forma de interpretação, porém, a despeito do pragmatismo

e da superficialidade das análises descritivas e comparativas feitas no paradigma tradicional,

ocorre decisivamente nas páginas da obra da Cientista Política norte-americana Rachel

Simmons(2004), que em Garota Fora do Jogo traça um paralelo bastante claro sobre o que

motivaria um garoto a explicitar sua raiva e agressividade abertamente para todos e o que

levaria uma menina a ocultar/retrair seu sofrimento diante de uma agressão tal como a do

bullying. A autora aponta na discussão de sua obra, como a questão de gênero é condição sine

qua non para entender tal diferença, inclusive na produção de expressões diferentes do

bullying.

De acordo com Simmons (2004), a expressão da agressividade do sujeito a partir de

sua raiva acumulada, seja qual for o motivo que a desencadeou, é diretamente proporcional à

expectativa de gênero que a sociedade lança sobre aquele indivíduo, caso seja um menino ou

uma menina. Segundo a autora:

A agressão é marca registrada da masculinidade; ela permite aos homens

controlar o ambiente em que vivem e a sua subsistência. Para o que der e

vier, os meninos gozam de total acesso às brigas. O vínculo começa desde

cedo: a popularidade dos meninos é em grande parte determinada por sua

disposição de jogar duro. Eles conseguem o respeito dos colegas pelas

proezas atléticas, pela resistência à autoridade e pelas atitudes firmes,

impertinentes, dominadoras, frias e confiantes. (SIMMONS, 2004, p. 27).

Portanto, aos meninos é dado o aval social para expressar sua agressividade e raiva de

maneira explícita, clara e pública, visto que a agressão é um poderoso termômetro dos valores

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sociais de uma dada comunidade, que ajudam a cristalizar os papéis sexuais de seus membros.

De acordo com a ideia de responsabilidade social atribuída a cada um segundo sua categoria

de gênero, caberia aos homens prover e proteger sua família, através da força, intrepidez e

virilidade e às mulheres, serem nutrizes e mães, através do cuidado, afeto e afeição.

(SIMMONS, 2004). Assim, os homens estão legitimados culturalmente a expressarem

publicamente suas emoções, sentimentos e insatisfações, especialmente através de projeções

marcadas por sua virilidade e força física. Às garotas, reserva-se o direito de restringirem sua

raiva e agressividade, já que “a cultura ridiculariza a agressão nas meninas como não

feminina.” (SIMMONS, 2004, p. 28).10

A explicação acima justifica, portanto, o porquê da maioria dos ataques serem

protagonizados por jovens rapazes e, preferencialmente, através de armas de fogo. Muitos

garotos, embora vitimados e traumatizados, numa tentativa de revide pela força, integram-se a

grupos (gangues destinadas ao assédio) para hostilizar seu agressor ou vitimar outros

indivíduos mais frágeis que eles. Todavia, os mais abalados pela agressão se munem de armas

e explosivos e vão até a escola em busca de justiça, massacram o maior número possível de

pessoas e, posteriormente, eles põem fim a própria existência (FANTE; PEDRA, 2008). A

mensagem que eles buscam deixar com esta última ação de afirmação é bastante clara: não se

trata apenas de se vingar ou buscar justiça pelo que ocorreu, é necessário deixar bastante

visível, explícito e marcante que a dor que outrora sofreram nas mãos de seus algozes deve ser

devolvida em proporções homéricas para o mesmo lugar onde tudo começou, porém recheada

de força, terror e violência.

2.2 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO

UNIVERSO MASCULINO: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO SOCIOLÓGICO

Na primeira seção deste capítulo discorreu-se com detalhes sobre o paradigma

tradicional que concebe as verdades sobre o bullying e sobre as particularidades da agressão

praticada entre membros do sexo masculino, através das lentes da perspectiva hegemônica.

Portanto, detalhou-se como um conjunto de autores ancorados em uma perspectiva analítico-

metodológica produziu um discurso unissonante, cujo principal efeito foi o de legitimar

academicamente as verdades em torno do que se concebe como bullying. É importante

relembrar que, do ponto de vista cronológico, esta corrente tradicional filia-se as intepretações

10

Mais detalhes da agressão feminina serão discutidos no capítulo três desta dissertação, voltado

especificamente para esta temática.

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feitas por Dan Olweus (1978), que no final da década de 1970, conceituou o fenômeno e

definiu critérios precisos para diferenciá-lo de outras formas de violência ou de brincadeiras

próprias da idade. Afinal de contas, conforme ele mesmo atesta, o fenômeno bullying foi e

ainda é costumeiramente interpretado e confundido como um conjunto de brincadeiras

próprias da idade, com rituais de amadurecimento necessários a crianças e adolescentes ou

ainda como um processo necessário de transição dos jovens para a fase da vida adulta,

concebida como mais dura e intolerante.

Nesta segunda seção, parte-se para uma nova proposta de percepção da fenomenologia

bullying, agora sob as lentes de uma postura epistemológica diferente, que supõe a influência

decisiva de fatores de ordem cultural e social na configuração do universo de ações que

caracterizam esta agressão. Embora esta perspectiva já tenha sido tangenciada, neste momento

será aprofundada a partir do debate em torno de duas categorias clássicas do conhecimento

sociológico, ideologia e gênero. Tais conceitos serão discutidos no âmbito semântico da

perspectiva construcionista crítica da realidade social, no âmago das ideias de sociólogos que

comungam entre si este paradigma. É importante salientar que não se trata de fazer aqui uma

análise atomizada, desconectada das ideias e percepções provenientes dos estudos filiados à

perspectiva tradicional de análise do fenômeno bullying. O objetivo central é dialogar

criticamente e de maneira interdisciplinar com “aquelas verdades” outrora instituídas,

oferecendo um contraponto interpretativo, o sociológico, que permita pavimentar novos

caminhos de discussão e de interpretação, inclusive entre outros campos do saber científico,

sobre a agressão denominada bullying.

Neste sentido, o primeiro argumento que utilizo para dialogar de maneira

interdisciplinar com a perspectiva tradicional é o da ideologia. Para tanto, relembro que a

primeira proposta acadêmica que se lançou a criticar o “fazer científico” que tradicionalmente

concebe as verdades sobre o bullying (o enfoque tradicional) foi a dissertação de mestrado de

Deborah Christina Antunes (2008). Posteriormente, o artigo Do Bullying ao Preconceito: os

desafios da barbárie à educação (ANTUNES; ZUIN, 2008), retoma o foco da discussão que

outrora desencadeou em seu trabalho stricto sensu: denunciar como o conceito de bullying, tal

como concebido por uma ciência pragmática e instrumental, atende a manutenção da ordem

vigente ao invés de colaborar para a emancipação dos indivíduos. Conforme referenda em seu

artigo:

O conceito bullying coloca tudo em seu lugar, tenta arrumar e justificar

aquilo que fere a ideologia democrática, e acaba por mascarar as tensões e

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contradições que estão na base da própria barbárie. Esse é o risco que se

corre ao se utilizar a mera classificação e quantificação. Ao contrário, as

práticas de violência nas escolas devem ser compreendidas por meio da

análise social, das formas de organização e das forças objetivas da

sociedade, e de como tais forças se materializam e se calcificam nos sujeitos

que se desenvolvem neste meio. Estudar a violência requer também este

impulso crítico, tanto nas análises teóricas quanto na interpretação dos

dados, de modo a mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido

social dos fenômenos singulares encontrados. (ANTUNES; ZUIN, 2008, pp.

39-40).

A despeito das diferenças entre os procedimentos de análise, da metodologia e da

revisão de literatura da dissertação supracitada e os que são utilizados neste trabalho de

mestrado11

, é importante destacar que as duas investigações debatem sobre o fenômeno da

ideologia inerente a agressão bullying. Ainda que cada uma destas pesquisas se filie a

correntes de análise distintas sobre este termo.

No trabalho de Antunes (2008), o conceito de bullying, concebido conforme dados

estatísticos e tão somente no diagnóstico de sua ocorrência, faz parte de uma ciência

instrumentalizada a serviço da adaptação das pessoas para a manutenção de uma ordem social

desigual. Ao mascarar os processos sociais responsáveis pela sua eclosão, constitui-se como

uma forma de alienação, o que impede que agressores, vítimas e espectadores percebam como

o conflito é escamoteado e concebido sob a aparência de um problema individual e pontual

entre delinquentes. De modo que a autora se vincula claramente a tradição marxista de

reflexão sobre a ideologia, no meu trabalho, porém, busco enxergar este fenômeno para além

do terreno de análise proposta pelo marxismo.

Para começar, destaco que Sousa Filho (2007, p. 23) aponta que a ideologia é “objeto

por excelência da crítica construcionista”. Segundo ele, em sua acepção clássica, ou marxista,

a finalidade da ideologia seria a de promover a inversão na imagem que a realidade social

oferece de si mesma quanto aos seus fundamentos, no intuito de perpetuar a sua dominação e

de impor os valores simbólicos da classe dominante sobre as demais classes, com o auxílio do

estado. O objetivo é a perpetuação da dominação desta classe e desta forma de realidade

instituída sobre todas as formas que porventura a desafiem ou a transgridam. (MARX;

ENGELS, 1986).

Todavia, é na perspectiva atual que o conceito de ideologia se amplia para além de um

ponto de vista de uma classe particular no interesse de sua dominação. Conforme pondera

11

O primeiro se ancora majoritariamente nos autores e estudos provenientes da Escola de Frankfurt ou Instituto

para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt – Alemanha - para argumentar suas ideias; a minha

dissertação, por sua vez, se filia a perspectiva construcionista crítica de análise da realidade social para refletir

sobre a questão do bullying.

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Sousa Filho (2007, p. 24), a ideologia é “um fenômeno que não é exclusivo da sociedade

fundada na divisão de classes e na separação entre sociedade e poder do Estado, sociedades

capitalistas ou outras. Nem fenômeno cuja natureza se restrinja à justificação das relações de

produção e para a reprodução do modo de produção.”. E complementa:

Anterior a toda outra coisa, a ideologia assegura, por meio de representações

imaginárias, crenças coletivas e certas ideias sociais, que todos os sistemas

de sociedade funcionem e durem como realidades que existiriam por si

próprias, sem o concurso da ação humana. Resultado que a ideologia procura

obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e

convencional de toda ordem social-cultural e suas instituições, e cujo efeito é

a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida

sem o recurso da força. Nesses termos, a ideologia constitui o modo de

operar de toda cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar

naturalizar-se, universalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos

sociais (variando do mito ao chamado discurso científico) que oferecem os

sentidos e as significações legitimadoras do que em cada cultura está

instituído e aceito. (SOUSA FILHO, 2007, pp. 24-25).

Em primeiro lugar deve-se salientar que o enfoque ou paradigma tradicional, a

literatura que produz as verdades sobre o que é bullying, isenta de responsabilidade pela

agressão a realidade social, que permanece, assim, imanente, intocável, eterna, estável e

inquestionável quanto as prováveis “causas” que levam alguém a ser intimidado, ou seja,

sobre quais seriam as fontes desencadeadoras desta desordem agressiva. Em segundo lugar,

prescreve-se encaminhamentos, procedimentos ou medidas que busquem solucionar o suposto

“problema”, localizado “apenas” na subjetividade dos indivíduos envolvidos na agressão,

isentando a análise de uma reflexão crítica quanto ao papel decisivo da cultura e da sociedade

na irrupção desta forma de violência. Por fim, uma vez “retificados” através de procedimentos

terapêuticos médicos ou psicológicos, os personagens da agressão estariam aptos a retornarem

a mesma realidade social desigual, realidade esta que, graças à ação da ideologia, foi isenta de

sua responsabilidade quanto à manifestação da intimidação.

Assim, uma vez vitimado por uma agressão bullying, um sujeito (dentro deste enfoque

analítico supracitado) só vai encontrar respostas para a opressão que sofreu fora do contexto

social de onde esta mesma intimidação eclodiu: a) fora da escola ou do preconceito que se

reproduz nela; da homofobia que se reifica nas atitudes de seus colegas de classe e

professores; no machismo que define espaços a serem ocupados e comportamentos a serem

praticados por homens e por mulheres; no conteúdismo exacerbado que privilegia a

competição intelectual travestida na ideia do mérito; na norma que suavemente violenta os

membros escolares de maneira simbólica. b) fora da comunidade, que legitima representações

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sociais que põem em degredo (seja pelas vozes individuais ou institucionais) o “diferente” sob

a pretensa insígnia de que são desviados, doentes, anormais e loucos e que, portanto, devem

ser retificados através da medicina ou da psicologia. c) fora da cultura ou dos inatismos,

substancialismos e essencialismos de toda ordem, que insistem em classificar e justificar a

origem e a ordem das coisas humanas, segundo uma suposta “metafísica da essência ou da

substância” (natureza, seres celestiais, deuses, entidades transcendentais etc.). Dessa forma,

cabe a esta hipotética vítima, portanto, tentar resgatar sua integridade perdida na agressão

recorrendo a discursos ideológicos consonantes com a manutenção da realidade social

instituída – o médico e o psicológico, por exemplo – que oferecem, através de seus

enunciados terapias, medicalizações, ajustes de condutas etc. Uma “retificação legítima” a sua

subjetividade, aos supostos “erros” que o levaram a fazer parte deste complexo contexto

agressivo.

Além de escamotear o conflito para preservar a realidade social que produz as

desigualdades tais como a do bullying, o próprio discurso ou paradigma tradicional se

apresenta por si só ideológico por excelência, visto que monopoliza através de suas

enunciações a produção de sentidos e verdades que justificam e concebem o que significa o

bullying. Afinal de contas, o paradigma tradicional, a imensa e variada literatura acadêmica e

profissional que desde meados da década de 1970 concebe os significados sobre o fenômeno,

hegemoniza o discurso sobre a agressão a partir da lente das ciências médicas e da psicologia,

deixando de lado outros saberes científicos que poderiam contribuir proficuamente com o

entendimento global desta complexa questão, tais como a sociologia ou a antropologia, por

exemplo. Suas verdades enunciadas hegemonicamente – perfil dos personagens; definição do

termo; formas de ataque etc. – são de uma aparência única, eterna e indiscutível. O problema

da ideologia, portanto, vai muito além do seu intento clássico de manutenção de uma dada

forma de realidade social e de sua dominação, pois constitui-se, também, como um problema

de natureza epistemológica.

A ideologia é um fenômeno que poderia explicar o porquê de muitos garotos vítimas

de bullying na escola retornarem para esta mesma instituição posteriormente, na busca de

reparação ou justiça pelos danos causados. Não bastam para eles as terapias psicológicas,

intervenções medicamentosas ou aconselhamentos familiares que lhes são oferecidos para

superarem definitivamente seus traumas escolares. Afinal de contas, após longos períodos de

abuso pessoal, eles percebem que a escola, seus membros e a comunidade ao redor

permanecem incólumes, intocáveis e imaculadas. Não à toa, muitos ataques e tragédias

ocorrem anos após as agressões sofridas por aquela vítima, que doravante se torna autor, na

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sua escola. Tome-se como exemplo o que foi debatido sobre o Massacre de Realengo

ocorrido, em 2011. Wellington Menezes de Oliveira, o autor da chacina, tinha à época vinte e

três anos de idade quando atacou a escola onde havia estudado há dez anos, depoimentos de

colegas dizem que foi no ano de 2001 que as agressões foram mais intensas e recorrentes.

(LOPES, 2012). Descrito como tímido, reservado e diferente dos colegas na sua vida escolar,

foi prontamente classificado como “doente” após o atentado que perpetrou. A despeito das

prováveis patologias que possivelmente lhe acometeram durante a vida, o que o motivaria a

atacar a sua escola dez anos após o sofrimento que ali outrora experimentou?

Em síntese, a ideologia é um fenômeno que age no universo simbólico, que, por sua

vez, é a matriz produtora de todos os significados/sentidos que conferem legitimidade as

estruturas da realidade sociocultural, invertendo/distorcendo os sentidos destas simbolizações

de forma a alcançar seu principal intento: naturalizar/divinizar/eternizar esta mesma realidade

social, e suas instituições, tornando-a imodificável, inevitável e eterna. Qualquer tentativa de

transgressão a sua ordem – e o bullying representa uma destas formas de ameaça ao que está

aí instituído – deve ser combatida através de eficazes procedimentos de erradicação, de

correção ou retificação. É papel da ideologia, portanto, homogeneizar a ordem social em todas

as suas dimensões, desde as condutas e idiossincrasias até as representações, crenças e mitos

individuais ou sociais, não admitindo práticas dissonantes que ameacem o que está instituído,

estabelecido e aceito como legítimo (SOUSA FILHO, 2007). Desta forma, os protagonistas

da agressão bullying, sejam agressores, vítimas ou espectadores, representam expressões de

transgressão a ordem e as normas institucionais (da escola, da família ou da cultura), ao irem

em direção contrária ao itinerário sociocultural legítimo, mediante a desordem que causam

graças aos seus comportamentos de agressão/vitimização. A sociedade e suas instituições, por

sua vez, continuam ali, imaculadas e intocadas, a despeito dos traumas e problemas que

recaem nos participantes da intimidação.

2.3 A CATEGORIA DE GÊNERO NO ÂMBITO DA HETERONORMATIVIDADE:

SOBRE COMO MENINOS SE TORNAM AGRESSIVOS

Para finalizar a discussão desta seção, considera-se necessário mencionar outro

exemplo de manifestação da ideologia na realidade social, agora através da concepção pública

moderna em torno do que se depreende sobre a prática da homossexualidade, ou seja, a crença

de que é um comportamento localizado na dimensão patológica/desviante, nas margens do

discurso/prática social que conferem legitimidade a realidade. Tal ideologia, manifestada sob

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a forma de crenças, enunciados ou produção de sentidos e saberes, produz uma série de

representações sociais de tácita rejeição/abjeção a esta prática sexual e aos seus praticantes.

Este sentido social, uma vez instituído hegemonicamente e consolidado, culmina na produção

de discursos morais provenientes de diversas instituições, tais como a igreja e a família

tradicional, que rejeitam e condenam a homossexualidade como forma abjeta de expressão do

desejo humano, relegando-a ao degredo. Aqui, me reporto finalmente ao segundo argumento

que explica a questão bullying sob o enfoque sociológico: a categoria de gênero no âmbito da

heteronormatividade.

Se a ideologia do conceito de bullying escamoteia o conflito e as tensões sociais

inerentes à manifestação do fenômeno, deslocando o foco do problema do social para o

individual e imputando aos sujeitos a culpa e as razões de suas dores, o que motiva, conforme

já debatido, o retorno de muitos deles para atacar aquela realidade que outrora foi palco de seu

sofrimento. A questão de gênero explica porque meninos são mais pungentes e explícitos em

suas agressões e meninas escamoteiam sua raiva e agressividade para não terem sua

feminilidade questionada.

A produção dos gêneros humanos ao longo da história, conforme atesta Bento (2006),

revela que as diferenças entre homem e mulher durante muito tempo foram, e ainda são,

concebidas numa perspectiva exclusivamente dicotômica e naturalizante: o binarismo de

gênero. Em linhas gerais, os sujeitos de qualquer sociedade são classificados existencialmente

a partir de duas categorias diametralmente distintas, porém complementares, a do homem e a

da mulher. Tal classificação é retilínea, ou seja, para que um sujeito seja classificado como

homem legítimo numa determinada sociedade, ele deve se enquadrar inexoravelmente no

seguinte axioma: pênis-homem-racionalidade-paternidade-procriação-heterossexualidade. A

mulher, por sua vez, enquadra-se na perspectiva axiomática: vagina-mulher-emoção-

maternidade-procriação-sexualidade. Este sistema dicotômico, fundamentado na diferença

sexual/genital, impõe a qualquer sujeito uma concordância em sua existência entre seu gênero

(papel social de atuação), corpo (dimensão estético-física) e sexualidade (dimensão

reprodutiva e hedônica). Tal sistema é legitimado pelo discurso ideológico heteronormativo,

o conjunto de critérios tradicionais que vincula diretamente o comportamento social e a

identidade sexual do sujeito à sua genitália. As instituições estão aí, normatizando, policiando

e vigiando os possíveis deslizes ou deslocamentos dos indivíduos. Caso o sujeito porventura

destoe dos axiomas que lhe são impostos exclusivamente a partir de sua genitália, passam a

ser estigmatizados, patologizados ou deslocados para as margens da convivência social.

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Conforme conceitua Richard Miskolci (2009), em seu Dossiê intitulado A Teoria

Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização:

A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as

obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como

natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais do que o aperçu de

que a heterossexualidade é compulsória, a heteronormatividade é um

conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e

controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo

oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e

normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo

histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem

heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente

coerente, superior e “natural” da heterossexualidade. (MISKOLCI, 2009,

pp.156-157).

Este emparelhamento heteronormativo, de acordo com o autor, representa um conjunto

de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle dos sujeitos para que

organizem suas vidas a partir do modelo heterossexual de convivência, tido como legítimo,

ideal e hegemônico. A ideologia referenda este dispositivo de controle através de um discurso

que lhe confere a aparência de superioridade, coerência e naturalidade e diz que ser

heterossexual é inerente à natureza humana e necessário à sua manutenção existencial através

da reprodução. Qualquer coisa fora deste paradigma está localizada na dimensão do abjeto, do

proibido, do errado, do doentio, do imoral e do anormal.

Portanto, ser “homem heterossexual” é o ideal de gênero a ser seguido e vivido pelos

sujeitos genitalmente concordantes com este axioma. E não basta ao indivíduo expressar tal

“verdade” apenas no âmbito da sua sexualidade em si, lugar em que os policiamentos

institucionais obtêm menor êxito em seu intento normatizador, visto que a prática sexual

reside no campo do privado, do íntimo ou do escondido. O seu comportamento público, sua

composição estética, suas preferências culturais, seus gostos musicais etc. também devem

deixar bastante claro para a sociedade sua filiação inexorável a esta insígnia heterossexual.

Caso contrário, será questionado, estigmatizado e defenestrado da convivência socialmente

legítima.

Desta forma, cabe ao sujeito homem e heterossexual expressar sua virilidade, força e

atitude, atributos exclusivamente masculinos, através de atividades e comportamentos físicos,

pungentes, racionais e até mesmo violentos. Na escola, a masculinidade é materializada em

seus corpos através das atitudes e preferências por espaços de desafio e competição física; por

esportes ou competições atléticas baseadas na demonstração de força e sagacidade; por

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atitudes culturais que valorizem a coragem, a bravura e a racionalidade e por resoluções dos

conflitos interpessoais com base na violência. O bullying masculino, muito além das

percepções discursivas que pululam o paradigma tradicional dos estudiosos do fenômeno,

representa uma expressão de assertividade masculina de um indivíduo sobre outro, no intuito

de se granjear prestígio e popularidade social através do conflito, da disputa e da competição.

E isto só pode ocorrer mediante atitudes explícitas, que reforcem a masculinidade de quem

agride sobre quem é agredido. Não à toa, muitos casos de brigas e ataques entre garotos são

filmados, celebrados e reverenciados por aqueles que assistem ao embate, legitimando a

atitude de violência que ali ocorre. Disputas masculinas, portanto, destoam sobremaneira das

disputas femininas. Afinal de contas, segundo atesta Simmons (2004), aos homens está

facultado o direito de expressar sua raiva e agressividade conforme a idealização de gênero

que lhe é imposta compulsoriamente, de maneira explícita, aberta, veemente, viril, física e

baseada no uso da força.

A ideologia e a heteronormatividade são noções que caminham lado a lado para

justificar em parte o que está por trás de muitas explosões de violência masculina no contexto

histórico das agressões bullying. Também são argumentos firmes para justificar a

manifestação de outras expressões de violência em ambientes diversos ao escolar, tais como a

homofobia, que muitos autores definem com bullying homofóbico (FANTE; PEDRA, 2008)

ou o assédio moral em ambientes de trabalho, denominado como mobbing (FANTE; PEDRA,

2008). Estes últimos traços de violência também são desdobramentos de condutas abusivas

cultivadas ao longo do tempo por muitos agressores ou bullies, que desde criança

demonstravam em suas atitudes a intolerância e o desrespeito com quem destoa dos padrões

de ser e de agir, sendo a maioria deles provenientes do sexo masculino.

Não se trata de divinizar ou demonizar os enfoques teóricos discutidos ao longo deste

capítulo, busca-se perceber criticamente que o foco do problema bullying, suas causas e

consequências, muito antes de residir apenas em seus protagonistas e suas subjetividades,

repousa numa constelação de variáveis sociais, culturais e individuais. Visto que essas

variações exigem por si mesmas uma interpretação crítica, se o objetivo de qualquer ciência é

o de fornecer inteligibilidade a uma questão tão complexa e multifacetada tal qual é o

bullying. Como a sociologia oferece diversas ferramentas em seu vasto cabedal de

conhecimento para ampliar este complexo e desafiador debate, no próximo capítulo, irei

enveredar a discussão para o sexo feminino. Com o intuito de entender “Por que as meninas

expressam sua raiva e agressividade de maneira distinta dos garotos? ” “Estariam também por

trás da produção desta diferença de atitudes as questões de gênero e ideologia? ”

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3 ÍNTIMAS, INIMIGAS E DISSIMULADAS: NOTAS

SOCIOLÓGICAS SOBRE O BULLYING ESCOLAR PRATICADO

ENTRE MENINAS

3.1 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO

CONVENCIONAIS: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA

TRADICIONAL

No capítulo anterior, discutiu-se sobre as particularidades inerentes ao universo de

agressões bullying praticados por membros do sexo masculino. Verificou-se que suas práticas

agressivas são mais diretas, físicas e explícitas, quando comparadas com o universo de

agressões feminino. Mas, por que existe tamanha discrepância entre os sexos quando o

assunto é a intimidação bullying?

O ponto de partida desta discussão é a obra da autora norte-americana Rachel

Simmons (2004) intitulada Garota fora do jogo. Neste livro, a autora destaca de maneira

abrangente a existência de uma “cultura oculta da agressividade nas meninas” que, ao

contrário dos meninos, é marcada pelo silêncio da sociedade que escamoteia o

reconhecimento do fenômeno e pela manipulação íntima e social da vítima. A autora revela

que muito mais do que dar voz a um problema tratado com marginalidade pela cultura e

sociedade, ela estava dando voz para si mesma (já que na infância havia sido vítima de

bullying) e para o público com o qual interagiu, rompendo de vez o silêncio que sempre

entremeou suas existências.

De acordo com a estudiosa, os ataques entre garotas, cuja denominação no livro é o de

“bullying das meninas”, geralmente acontecem dentro de um círculo restrito de amizades,

onde a agressividade e a raiva são expressas de forma indireta, dissimulada e não-física. As

meninas se utilizam da maledicência, da fofoca, de apelidos maldosos e manipulações para

infligir sofrimento psicológico às suas vítimas. (SIMMONS, 2004, p. 11). Por se tratar de

agressões restritas a círculos de amizades íntimos, se tornam mais difíceis de serem

identificadas por um observador, culminando em maior sofrimento às vítimas. É importante

destacar três aspectos: o primeiro refere-se ao fato de que pela sutileza com que a intimidação

ocorre, deduz-se que as agressoras agem com maior crueldade contra suas vítimas através de

conspirações, boatos, cochichos, isolamento social, difamações e injúrias; o segundo assevera

que a cultura nega às meninas o acesso ao conflito aberto, a expressões veementes de

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agressividade e de raiva em suas intimidações; por último, a autora deixa claro que não

pretende afirmar que o sentimento de raiva e de agressividade entre ambos os sexos é

diferente, mas as formas como cada um deles as expressam, sim. A agressão das meninas é

mais dissimulada e relacional, a dos meninos mais direta e física/material, o que não significa

que sejam diferentes quanto aos sentimentos e emoções mobilizados.

Ao longo da obra, Simmons (2004) faz importantes alertas: primeiramente, apesar das

diferenças claras de atitudes entre meninos e meninas, num contexto hipotético de agressão

bullying, ela não pretende sugerir a suposta existência de um cenário engessado/fixo dos

perfis dos seus protagonistas, como que se cada papel – de vítima, agressor ou espectador –

representasse um lugar estanque e estereotipado para acomodação dos sujeitos envolvidos na

dinâmica do problema. Nesse sentido, agredir uma vítima com o uso da força física, por

exemplo, embora seja mais recorrente entre meninos, também é uma atitude relativamente

verificada em conflitos agressivos entre meninas. Da mesma forma, meninos também se

utilizam da maledicência, da conspiração e da manipulação de suas vítimas para efetivar suas

intimidações. Conforme atestam Albino e Terêncio (2012), ainda que o enfoque/paradigma

tradicional que concebe a agressão bullying privilegie o fracionamento dos papéis dos

personagens de uma agressão como estratégia de análise, é mais viável a ideia de que estes

papéis são bastante voláteis e intercambiáveis, de forma que um mesmo indivíduo, no

decorrer de sua vida escolar, pode se tornar agressor, vítima e espectador em variados

contextos de agressão.

Outro destaque importante que Simmons (2004) faz, repousa no fato de que a

conscientização pública sobre a questão do bullying geralmente abrange as agressões

perpetradas entre garotos, especialmente por causa das diversas tragédias com armas de fogo

em ambientes escolares e acadêmicos que ocorreram ao redor do mundo. As discussões sobre

o tema ainda insistem em focalizar a questão da agressividade masculina em detrimento da

feminina, como se os danos causados pelos primeiros fossem muito mais brutais que o das

últimas. Em sua própria experiência pessoal de pesquisa sobre a questão, a autora demonstra

como se sentiu diante deste fato:

Num oceano de artigos sobre a agressão e bullying dos meninos, havia

apenas um punhado de artigos sobre meninas. Não havia livros disponíveis.

Nenhum guia para pais. Nenhum manual de sobrevivência engraçadinho

para crianças. Sentada ali, lendo os artigos, eu não conseguia me identificar,

nem a Abby (sua agressora na infância), naquilo que a maioria desses

pesquisadores chamavam de bullying. Primeiro, fiquei surpresa, depois,

frustrada. (SIMMONS, 2004, p. 10).

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Outro fato é o de que nem todas as garotas se esquivam do conflito, da agressão

oculta, alternativa ou convencional, o comportamento não é unânime entre as garotas.

Contudo, meninas brancas e provenientes da classe média, em função da maior rigidez com

que as regras de feminilidade lhes são impostas, são majoritariamente mais adeptas a

modalidade alternativa de intimidação do que outros grupos pesquisados por Simmons

(2004), como as negras, as latinas e as operárias, que se utilizam mais da franqueza, da

assertividade e do conflito direto para resolver os conflitos. Assim, Simmons (2004) destaca

que o bullying feminino se subdivide em três categorias distintas de comportamento

agressivo: a) a agressão relacional, em que atitudes de punição e isolamento sobre a vítima se

dão no âmbito do relacionamento de amizade, mascarado por um falso apego e por uma

cordial intimidade entre a agressora e o seu alvo; b) a agressão indireta, no qual a algoz evita

o contato direto com sua vítima e utiliza terceiros como veículo para agredi-la; c) as agressões

alternativas, em que o alvo é manipulado por um grupo específico do qual faz parte, sem

conseguir se desprender de suas agressoras por medo da solidão e do isolamento.

3.2 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO

CONVENCIONAIS: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO SOCIOLÓGICO

Rachel Simmons (2004) representa um duplo divisor de águas no universo das

discussões gerais sobre o fenômeno bullying, pois ao passo que ela rompe com a lógica

analítica inerente ao enfoque/paradigma tradicional que trata da agressão em questão, também

apresenta ao mundo acadêmico, de maneira mais descortinada e sistemática, o bullying

feminino como uma expressão de intimidação tão danosa quanto sua correspondente

masculina. Observa-se que a autora quer lançar luz para outra dimensão do problema bullying,

que a cultura hegemônica ainda insiste em relegar a escamoteação, já que ainda se privilegia o

discurso de solução das agressões baseando-se no modelo de bullying masculino. Mas, de que

maneira ocorre este processo de desprestígio da modalidade feminina do bullying?

A discussão se dará mediante o diálogo entre ideologia, o conceito de gênero sob a

perspectiva heteronormativa e a crítica a forma de produção do discurso hegemônico em torno

do bullying. A primeira definição está ligada à crítica ao saber hegemônico, denominada de

enfoque/paradigma tradicional. A questão do discurso, por sua vez, será analisada sob uma

perspectiva crítica em torno de seu processo de produção, controle e regulação. Já a noção de

gênero sob o enfoque heteronormativo é um desdobramento das discussões desencadeadas em

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torno da questão da ideologia. Afinal de contas, são noções intercambiáveis no amplo

universo de discussões da sociologia.

Inicialmente, relembro uma das principais preocupações registradas pela escritora

Rachel Simmons (2004), a constatação do privilégio social/público feito em torno da

discussão que se faz sobre o bullying masculino e o esquecimento público/social em torno da

agressão realizada entre garotas/meninas/mulheres. Nessa perspectiva, o problema reside na

concepção cultural que se faz em torno do “ser mulher, do que deve predominar, em nossa

sociedade, nas individualidades femininas. Por meio do amparo e anuência das instituições

sociais e do imaginário popular, concebe-se a expectativa social de gênero em torno dos

sujeitos femininos através do “mito da ‘boa menina’, desde pequenas, as garotas são criadas

para se cuidarem e se protegerem; para serem gentis boazinhas e meigas; para ter muitas

amizades, baseadas na cordialidade e no zelo ao próximo; e para nunca, jamais, demonstrarem

em suas manifestações pessoais e sociais raiva e agressividade. ” (SIMMONS, 2004, pp. 27-

29). Nesse sentido, ser uma “boa menina” expressa um papel que está em profundo desacordo

com a agressão e a raiva, em contraponto ao que é chancelado para os garotos, em suas

condutas interpessoais. “Boas meninas, portanto, não devem sentir raiva. A agressão ameaça

os relacionamentos, colocando em risco a capacidade da menina de ser cuidadosa e

‘boazinha’. A agressão destrói aos poucos aquela pessoa em que as meninas devem se

transformar quando adultas.” (SIMMONS, 2004, p. 28). A partir disso, como interpretar

sociologicamente o fenômeno de mitificação do feminino baseado numa opressão cultural que

se impõe sobre a forma de existir das mulheres?

Para lançar luz a esta questão, Michel Foucault (2011), em A Ordem do Discurso,

explica como “a produção do discurso12

é ao mesmo tempo controlada, selecionada,

organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar

seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível

materialidade.” (FOUCAULT, 2011, p. 9). De modo que qualquer discurso produzido na

realidade social é sempre alvo de regulação, normatização e controle em torno de sua

distribuição, especialmente feitos pelas instituições religiosa, jurídica, familiar etc., com a

finalidade principal de reproduzir e perpetuar os valores de dominação hegemônicos

estipulados como válidos por uma realidade social de maneira sutil, escamoteada e suave.

12

Sobre a definição deste termo, Foucault (2011, p. 49) explica que “o discurso nada mais é do que a

reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma

do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as

coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência em

si.”

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Dentre os mecanismos de controle e regulação que se impõem sobre a produção do

discurso, chamo atenção para aquilo que Foucault (2011) definiu como procedimentos de

exclusão, que são as limitações impostas sobre um discurso para definir o que se pode ou não

fazer através da expressão de seus enunciados e sentidos. De maneira sintética, os três

procedimentos em questão são a interdição da palavra; a questão da separação e da rejeição; e

a vontade de verdade a que se pretende um discurso. Na interdição da palavra, Foucault

(2011, p. 9) é bastante preciso ao afirmar que “o mais evidente, o mais familiar também, é a

interdição. Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em

qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. ” Já a

segunda forma de exclusão diz respeito à segregação, classificação e rejeição pelo qual um

sujeito passa através de seu discurso, caso ele não esteja submetido adequadamente às normas

sociais vigentes. Foucault (2011) cita um exemplo de como isto ocorre:

Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é

aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que

sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade

nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo

autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da

missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo. (FOUCAULT,

2011, pp. 10-11).

Por fim, há a questão da vontade de verdade inerente a qualquer discurso, o modo

como se dá historicamente a produção da verdade e como ela se localiza estrategicamente em

cada discurso ao longo da história de uma sociedade. O valor de verdade inerente a um

discurso é uma questão historicamente construída e estabelecida, portanto, variável conforme

os interesses sociais de um povo em dado momento de sua história. (FOUCAULT, 2011).

A partir dessa breve explanação feita sobre os procedimentos de exclusão que envolve

a produção do discurso, procedo na primeira interpretação crítica da questão do bullying

feminino, feita sob as lentes do universo analítico supracitado. Ao retomar a Simmons (2004),

percebi a denúncia em torno da recorrente tentativa da cultura e da sociedade de impor uma

exclusão/interdição sobre as falas das garotas, sobre suas necessidades de expressarem de

maneira declarada, aberta e pública o conflito bullying que vivenciam entre si. Conforme a

autora:

Algumas agressões alternativas são invisíveis aos olhos dos adultos. Para se

esquivarem da desaprovação social, as meninas se escondem sob uma

fachada de doçura para se magoarem mutuamente em segredo. Elas passam

olhares dissimulados e bilhetes, manipulam silenciosamente o tempo todo,

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encurralam-se nos corredores, dão as costas, cochicham e sorriem. Esses

atos, cuja intenção é evitar serem desmascaradas e punidas, são

epidêmicos em ambientes de classe média, em que as regras de feminilidade

são mais rígidas. (SIMMONS, 2004, p. 33, grifo nosso).

Fica claro, desta forma, que não é facultado às garotas o direito de enunciarem

agressivamente seus sentimentos através de uma linguagem aberta e compreensiva ao meio

social. Já que a produção de uma linguagem exclusiva de agressão feita pelas meninas,

caracterizada como relacional, íntima, indireta, não declarada, conspiradora e dissimulada,

reflete o degredo em que podem manifestar suas expressões de hostilidade. De forma que é

uma linguagem somente inteligível e decodificada por aquelas que participam do universo

exclusivo e fechado de relacionamento.

A segunda interdição diz respeito à postura social que obrigatoriamente devem manter

em seus comportamentos para que não sejam desmascaradas e punidas em público. O mito da

“boa garota” é a expressão de uma fachada que deve salvaguardar em seus comportamentos

públicos a imagem de bondade e gentileza, para que não sejam segregadas e rejeitadas

socialmente. Para tanto, a despeito do discurso agressivo que utilizam intimamente em suas

intimidações, há em seus comportamentos públicos o contraditório discurso de candura,

respeito, polidez, educação e cordialidade. Afinal de contas, de acordo com Simmons (2004,

p. 28), “a cultura ridiculariza a agressão nas meninas como não feminina”. Assim, qualquer

violação em torno do seu papel de gênero compulsoriamente determinado (como a de uma

pessoa que dá carinho e zela pelos relacionamentos e amizades) representa uma ameaça a sua

reputação e feminilidade, podendo lhes condenar a rejeição social e comunitária. De modo

que quando a personalidade de uma garota apresenta características tradicionalmente

atribuídas ao gênero masculino, como posturas de assertividade, veemência e determinação,

há questionamentos e dúvidas das mais diversas quanto ao seu papel de “boa menina”, em seu

convívio social.

A terceira interdição – a vontade de verdade – repousa na forma como a ciência e a

literatura acadêmica, juntas, situam a questão do bullying feminino em comparação ao seu

correspondente masculino. Visto que existe uma abundância de estudos e pesquisas sobre a

agressão masculina e uma rarefação sobre a questão feminina. Debatendo sobre este assunto,

Simmons (2004) pontua:

[...] as primeiras pesquisas sobre agressão transformaram o “mito” da “boa”

menina, não agressiva, em fato: as primeiras experiências de agressão foram

realizadas quase sem a presença de participantes do sexo feminino. Como os

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homens tendem a exibir diretamente a agressão, os pesquisadores

concluíram que ela se expressava somente desta maneira. Outras formas de

agressão, quando observadas, foram rotuladas como desvio ou ignoradas.

(SIMMONS, 2004, p. 31).

E tece as seguintes observações sobre as dificuldades que obstaculizam a realização de

pesquisas sobre o bullying entre meninas:

Os estudos sobre o bullying herdaram estas falhas das primeiras pesquisas. A

maioria dos psicólogos procurava agressões diretas, como socar, ameaçar e

implicar. Os cientistas também mediram a agressão em ambientes onde atos

indiretos seriam quase impossíveis de observar. Vista segundo a perspectiva

dos cientistas, a vida social das meninas parecia plácida e tranquila com as

águas de um lago. Foi somente em 1992 que alguém questionou o que havia

sob a superfície. (SIMMONS, 2004, p. 31).

A verdade a que se pretende filiar a discussão sobre bullying no âmbito do paradigma

tradicional13

configura-se apenas como uma “possibilidade de verdade”. Trata-se de

enunciados que não questionam a ordem instituída, que celebram a validade do discurso

hegemônico (que trata do bullying masculino como único problema real a ser solucionado);

que são mantidos pelas estruturas sociais que lhe validam/qualificam/legitimam14

; e põem nas

margens outras manifestações destoantes (como o bullying feminino, por exemplo). O que se

dá sob o epíteto justificativo de que se tratam de “brincadeiras”, “rituais de maturidade”, isso

quando as manifestações não são ignoradas em si mesmas.

Não é difícil perceber o caráter ideológico que envolve esta discussão, seja nas

individualidades das meninas, quando se expressam sob uma inerente duplicidade em torno de

sua imagem pessoal – no privado são agressivas, em público são doces e meigas – seja na

cultura, que sustenta uma elaboração imagética ilusória com a finalidade de preservar o que

está socialmente instituído. Afinal de contas, a eficácia da ideologia decorre “de sua

ancoragem invisível nas esferas psíquica, emocional e cognitiva do indivíduo. ” (SOUSA

FILHO, 2007, p. 26). Essa ancoragem submete compulsoriamente o sujeito à cultura

hegemônica da qual faz parte, que aliena a auto percepção enquanto elemento

construído/fabricado/elaborado pela cultura e que lhe legitima como membro da sociedade

apenas através desta destinação forçada, que impõe as convenções morais, sociais e culturais

como coisas verdadeiras, únicas, eternas e imutáveis. No caso das meninas, por exemplo, a

maioria acredita realmente que nasceu para ser boa, gentil, amável, nutriz e protetora, pois

13

Perspectiva que prioriza o enfoque sobre as agressões masculinas em detrimento das femininas. 14

A pedagogia médica e psicológica, por exemplo, são instituições que reforçam esta ideia de “verdade”.

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esta identificação decorre da crença em torno de uma suposta “natureza” feminina. Ideologia

e discurso, portanto, são expressões de poder, normatização e regulação das existências dos

sujeitos através dos processos de socialização efetivados pelo sistema cultural hegemônico e

as instituições que lhe sustentam.

Para finalizar, complemento a discussão destacando o enfoque de gênero que

tradicionalmente é imposto pela cultura hegemônica sobre as individualidades femininas: o

heteronormativo. Da mesma forma que ocorre entre os meninos, as meninas são

compulsoriamente orientadas a se constituírem segundo o axioma concebido como

“genuinamente feminino”, que é imposto sobre suas subjetividades muitas vezes desde antes

do nascimento: vagina-mulher-emoção-maternidade-procriação-sexualidade. Trata-se,

portanto, de tecnologias discursivas (BENTO, 2006) que constantemente aparam/retificam as

fissuras que porventura possam surgir ao longo de seus desenvolvimentos humanos, através

de ferramentas de interdição e proibição que calcinam os “erros” porventura cometidos:

fissuras/erros sociais (interdições sobre comportamentos públicos, posturas, vestuários e

espaços a serem ocupados); fissuras/erros subjetivos (proibições sobre emoções, sentimentos,

e sensações que não são inerentes à expectativa de gênero feminina); e fissuras/erros estéticos

(a necessidade que eternamente acompanha os sujeitos femininos mediante a apresentação de

corpos depilados, ornamentados e desenhados conforme o itinerário que lhes é imposto).

Não à toa, a obra de Rachel Simmons (2004), além de chamar atenção para um

problema grave de intimidação que ocorre silenciosamente nas relações interpessoais

femininas, também denuncia a opressão ideológica e discursiva que a cultura impõe sobre o

modo de existir feminino. Sousa Filho (2007) define a ideologia da heterossexualidade

compulsória, ao dizer que é:

Modo ideológico de representar a realidade do sexo humano e as “marcas de

gênero” nos corpos, que, dentre outros efeitos, concorre para a produção e

sustentação da falsa ideia da diferença sexual como dada a priori, em algum

plano (biológico ou “outro”, na metafísica da substância), e da ideia

correlata-imediata da heterossexualidade como igualmente natural e inata –

ideologia da heterossexualidade obrigatória. Tudo o que não se enquadra

nesse esquema passa a ser considerado da ordem do “desvio”, do “bizarro”,

da “anomalia”. Esquema fundador dos preconceitos e da discriminação

contra homossexuais e, igualmente, contra travestis, transexuais. (SOUSA

FILHO, 2007, pp. 28-29).

Todavia, nem todo processo de socialização e de experiência na cultura por parte dos

sujeitos humanos se restringe apenas à sujeição ideológica e a dominação (SOUSA FILHO,

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2007, p. 26): “manifestações de resistência; transgressões; subversões e criações atestam o

fracasso da sociologia em seu intento domesticador e homogeneizador da vida individual e

coletiva.” Rupturas ou furos na realidade cultural hegemônica são, portanto,

constantes/recorrentes e demonstram, que nem todos os indivíduos são submissos ao

aparelhamento discursivo/ideológico hegemônico da realidade social. Se a busca que sempre

se faz é pela emancipação do sujeito frente à hegemonia cultural que lhe oprime, tais

transgressões já constituem um passo importante na longa busca por este ideal.

Desta forma, a sociologia oferta, através de seus conceitos, teorias e métodos, novas

elucubrações que permitem formas modernas de compreensão sobre a questão do bullying

tanto masculino, quanto feminino, dando novo fôlego a este debate através de novas

proposituras discursivas. A concepção tradicional da agressão bullying, para além da

ideologia e da hegemonia discursiva que a sustentam, pode ser sujeita a fissuras/rupturas

metodológicas e epistemológicas, que permitam a qualquer pesquisador do tema a utilização

de intepretações científicas inéditas para dialogar e apontar novas direções, caminhos e

orientações, na busca por soluções em torno desta complexa dinâmica agressiva. A fim deste

propósito esta dissertação ancorou suas linhas escritas e argumentos utilizados.

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62

4 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: O BULLYING ANALISADO

ATRAVÉS DA MODALIDADE ENTREVISTA

4.1 A FORMA DE COLETA DE DADOS: A ENTREVISTA SOB A MODALIDADE

HISTÓRIA DE VIDA

O capítulo final desta dissertação tem como finalidade apresentar uma análise

pormenorizada em torno de duas entrevistas realizadas ao longo dos estudos de mestrado,

empreendidas junto a personagens do sexo feminino, que em momentos determinados de suas

respectivas trajetórias de vida experimentaram de alguma forma os efeitos da agressão

bullying.

Na primeira entrevista, interpelo uma professora universitária aposentada que no

contexto passado de sua vida vivenciou momentos de hostilidade em etapas diferentes de sua

trajetória. Na segunda, dialogo com uma jovem profissional da área de saúde, fonoaudióloga,

que, diferentemente da primeira entrevistada, foi alvo de agressões bullying apenas no período

de sua infância escolar. Em torno de ambas as histórias, destaque-se a realização feita por esta

pesquisa de um reconhecimento prévio em torno de suas respectivas histórias pessoais: no

primeiro caso, recorreu-se a leitura antecipada do livro autobiográfico escrito pela

entrevistada, intitulado Assim Vivi, Assim Amei (2015); no segundo, buscou-se informações a

priori através de conversas informais realizadas junto a personagem. Ao final deste primeiro

momento de análise em torno de cada entrevista supracitada, procede-se a elaboração de um

breve paralelo entre tais narrativas, auxiliada pelas lentes teóricas e conceituais que

tradicionalmente vislumbram a temática bullying.

Antes de iniciar esta jornada, faz-se necessário realizar uma pequena incursão

esclarecedora sobre o emprego da metodologia destinada a coletar os dados ou informações

das entrevistadas, sobre o uso da pesquisa bibliográfica tópica inerente à realização de

entrevistas elaboradas sob a modalidade história de vida. Conforme explica Minayo (1996),

trata-se de um conjunto de procedimentos utilizados pelo entrevistador na tentativa de

focalizar uma etapa ou um determinado setor da biografia do entrevistado, que porventura

esteja caracterizado pela experiência que é foco principal da discussão. Assim, em ambas as

entrevistas realizadas por esta pesquisa, não se recorre à utilização do conjunto total da

experiência biográfica vivida, mas as etapas que dizem respeito especificamente à

manifestação da agressão bullying, alvo dos estudos desta dissertação. Embora se tenha aqui

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observado fielmente todos os procedimentos exigidos em qualquer entrevista de história de

vida (como a interação profunda com o informante; a privacidade em torno do acolhimento

aos pensamentos reprimidos que porventura cheguem ao entrevistador em tom de confidência;

a não elaboração de perguntas fora de contexto ou tendenciosas; e uma pesquisa biográfica

antecipada sobre o entrevistado), a dissertação não se isentou de observar os significados,

valores, crenças e motivações por trás de cada fala dos respectivos personagens. Ainda que

seja clara a adoção de uma neutralidade axiológica inexoravelmente necessária à conduta

deste entrevistador, tentou-se aprofundar, através de algumas perguntas pontuais, o

significado que as personagens conferiram a alguns trechos específicos de sua experiência

agressiva em face da vivência global da intimidação.

Enquanto entrevistador é importante destacar também o conjunto de posturas que se

procurou constantemente adotar no decorrer das entrevistas, no intuito de se adequar às

recomendações que o sociólogo Pierre Bourdieu (2008) faz em seu livro A Miséria do Mundo.

Tais como a utilização de um diálogo “socrático”, de uma interlocução baseada numa “escuta

ativa e metódica” que permita dar fluidez a voz do entrevistado; a “autoanálise provocada e

acompanhada”, no qual o entrevistador insinua-se na tentativa de fazer emergir na fala do

entrevistado enunciações expressivo-extraordinárias que outrora nunca teve a oportunidade de

explicitar; a produção de um roteiro de questões que suavize os constrangimentos sociais

subjacentes à exposição das narrativas autobiográficas; a estratégia de intervenção maiêutica,

no qual não em nenhum momento se extorque do entrevistado suas respostas como se fossem

inteiramente provenientes de suas subjetividades, mas como elementos inerentes ao complexo

quebra cabeça cultural que se constitui como fonte de suas percepções existenciais; as

preocupações em torno da fidelidade a tudo o que foi manifestado e colhido pela entrevista; e

à inteligibilidade durante o processo de transcrição das narrativas, momento em que o

entrevistador faz na sua escrita, ponderações explicativas em torno de passagens de áudio que

se configurem como obtuso-ilegíveis no âmbito da entrevista. Feitas estas considerações e

esclarecimentos, apresenta-se a seguir a análise em torno de cada uma das entrevistas

realizadas.

4.2 ENTREVISTA COM SAFIRA AMMANN, CAICOENSE E PROFESSORA

APOSENTADA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB.

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64

A entrevista abaixo15

, que contou com a participação da Professora Lore Fortes

(UFRN), foi realizada no dia 15 de outubro de 2015, mais precisamente numa manhã

ensolarada de quinta-feira. Residindo em um alto edifício localizado no bairro de Ponta

Negra, na Zona Sul da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, a entrevistada Safira Bezerra

Ammann nos recebeu de maneira amistosa na sala de seu apartamento para nos relatar

algumas de suas experiências de vida que, conforme ela mesma classificara em seu livro

autobiográfico Assim Vivi, Assim Amei (2015), lhe são percebidas como opressoras e hostis.

Aos oitenta e três anos de vida, casada com um suíço e professora aposentada pela UnB,

Safira, seridoense de Caicó/RN, acumulou ao longo de sua trajetória biográfica diversas

experiências dentro e fora do Brasil, graças à profícua bagagem cultural que adquiriu como

resultado das diversas viagens feitas ao redor do mundo e da extensa trajetória acadêmica e

profissional que desenvolveu em sua vida. Sentados os três na sala da anfitriã após os

amistosos ritos de apresentação, demos início à gravação da entrevista, realizada através de

uma narrativa corrente e paulatinamente articulada com pequenas pausas para esclarecimentos

sobre um ou outro trecho/episódio de sua história de vida.

A narrativa se inicia com uma breve contextualização pessoal da entrevistada sobre

seu nascimento e infância no interior potiguar, vivida até os oito anos de idade em duas

fazendas na região do Seridó, nas quais sua família residiu à época. Durante este período,

Safira não teve a companhia dos seus sete irmãos, pois todos já estudavam na cidade, o que a

levou ao convívio com os filhos dos moradores da fazenda. Ela descreve: “Eu era uma filha

solitária no sentido de que dos meus irmãos o mais próximo a mim tinha sete anos de

diferença e estudava em Caicó e em Natal. Então, fui uma filha quase que única, no sentido de

que era eu sozinha na fazenda com meus pais. ” (SAFIRA, entrevista, 2015). O convívio com

os moradores locais, somado a distância dos irmãos, fez com que ela adquirisse os hábitos

deles, especialmente no âmbito da linguagem e do vocabulário, que, naquela época,

destoavam bastante dos costumes dos habitantes das cidades. Conforme relata:

Então, isso já para contextualizar o fato que vem em seguida, minha

linguagem / vocabulário era muito parecido com o dos filhos dos moradores.

eu (...) não tinha um vocabulário “rico” como o das crianças de Caicó. E aos

oito anos de idade fui morar em Caicó para estudar porque meus pais

alfabetizavam todos os filhos em casa e quando íamos para escola já era no

segundo ano primário. (SAFIRA, entrevista, 2015).

15

A entrevista se encontra na íntegra em anexo.

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Com oito anos de idade, mudou-se para a cidade de Caicó para dar continuidade aos

seus estudos, o que foi crucial naquele momento de sua infância, tendo passado a residir com

sua irmã mais velha (e também madrinha) e suas duas filhas, que eram quase da sua idade.

Segundo Safira, “uma delas era minha colega de turma na escola. Elas eram meninas da

cidade, caicoenses, nascidas e criadas em Caicó. E eu era menina do mato de modo que eu já

era discriminada aí de entrada. Elas tinham um vocabulário caicoense e eu era rural, chamada

Menina do Mato.” (SAFIRA, entrevista, 2015).

Nesta etapa, Safira experimentou a primeira hostilidade em relação aos seus hábitos

interioranos por parte dos habitantes da cidade, ou ainda pior, pelos membros de sua própria

família. Embora estivesse sofrendo com tudo aquilo, ela relata que não encarava tais

hostilidades propriamente como uma agressão bullying:

(...) naquele tempo eu não tinha a menor noção disso aí. Eu só me sentia

diminuída, inferior. Eu não tinha a capacidade de absorver essa relação, esse

preconceito de bullying, não. Eu só me sentia inferior. Eu era uma Menina

do Mato e eles eram crianças da cidade. Eu me sentia inferior a eles, mas não

conseguia contextualizar nem conceituar nada disso. (SAFIRA, 2015).

Episódios posteriores viriam a intimidá-la novamente na infância, especialmente por

sua pouca familiaridade com determinadas brincadeiras típicas da cidade:

Eu me lembro de ter levado uma bolada no rosto, porque eu não dominava a

bola. Ela não fazia parte de meu mundo rural. Nossos brinquedos eram

muito diferentes. Nós não tínhamos bolas de futebol ou de vôlei, isso não

existia em nossa fazenda. Então quando cheguei a Caicó, eu não conhecia o

jogo, e levava boladas muito dolorosas no rosto. A turma gozava e me

vaiava... eu sempre terminava chorando o que estimulava ainda mais os

citadinos a me intimidar. (SAFIRA, entrevista, 2015).

No contexto destas agressões, tanto meninas quanto meninos a intimidavam durante os

momentos de brincadeira. No tocante às meninas, ela menciona a hostilidade recorrente das

colegas pela sua falta de habilidade com a bola:

Levava novamente uma vaia. A me vaiar. Que é o bullying, né? Vaia, eu não

sei, porque nunca estudei o bullying... isto é bullying, não é? Vaiar não é

bullying?” E prossegue, descrevendo os prováveis motivos por trás das

agressões: “Eu era vaiada de muitas formas: porque não dominava os jogos,

por causa do meu vocabulário, que muitas vezes não era correto porque era

das crianças rurais, que não eram da minha classe social. (SAFIRA,

entrevista, 2015).

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Em determinado momento da sua fala, ela contrapõe sua vivência na fazenda,

apontando a postura compreensiva dos pais quando se expressava verbalmente, com sua

experiência na cidade. Quanto aos meninos, ela relata um episódio em que a brincadeira era a

de construção de uma barragem, na qual descreve o comportamento astuto e esperto dos

garotos da época:

Os meninos eram dominadores - o macho como dominador da fêmea. Isso

que eu interpreto hoje. Mas naquele tempo eu não sabia interpretar assim: o

macho dominador da fêmea. Então nós éramos as frágeis e os meninos eram

os fortes. Essa interpretação eu faço hoje - os machos dominadores. Eles

eram mais espertos e eram capazes de perceber que indo mais acima –

porque naquela rua havia um declive - eles perceberam que indo mais acima

eles dominavam a água. Então eles construíram uma barragem. Uma barreira

lá em cima e nós ficamos mais em baixo e não dominamos a água. ” E

pondera: “Eles eram mais espertos que nós... A gente era menor de idade, a

gente era do ‘sexo frágil’ eles se julgaram dominadores já. Os machos

dominadores, mais inteligentes, mais espertos. Hoje é a leitura que eu faço,

mas naquele tempo eu não era capaz. Eu só me senti frustrada, eu não

consegui fazer uma barragem, saí chorando e pedi o colo da minha mãe. O

sexo frágil que corre pra mãe. (risos) Mas, a interpretação que eu fiz foi de

hoje, madura. (SAFIRA, entrevista, 2015).

O período de agressões na infância durou aproximadamente um ano e pouco a pouco

se encerrou, porém, com um marcante divisor de águas. Sobre este, ela descreve o momento

de forma bastante entusiasmada:

E também, na escola, eu fui me afirmando como uma menina que, me

diziam que eu era inteligente. (...) A professora, aliás, elogiou a minha

redação e eu fiquei pasma porque eu nunca tinha sido elogiada. Porque eu

sempre era a menina do campo a Menina do Mato e, de repente, a professora

elogia a minha redação e eu fiquei admiradíssima: Ai, eu fiquei tão admirada

em ser elogiada. (SAFIRA, 2015).

Este episódio, que representa um marco em sua vida, pode ser interpretado como uma

transição entre uma etapa marcada por uma rejeição entre seus conterrâneos e uma que passa

a descortinar seu reconhecimento social dentro e fora daquela cidade. Se durante o período de

adaptação no município de Caicó ela se sentira intimidada e diminuída por colegas infantes, o

que se refletia em baixa autoestima, agora com o reconhecimento intelectual na escola, sua

autoestima voltava a se recuperar.

Todavia, outros episódios de hostilidade iriam marcar novamente sua biografia, só que

desta vez na vida adulta. Um deles refere-se ao período de admissão como docente na

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Universidade de Brasília, em meados da década de 1970, e a forma como se sentiu quando

teve que se deparar com um ambiente ocupado por pessoas predominantemente “sulistas”:

Sentimento de Inferioridade (...). Eu nordestina e a UnB cheia de sulistas né?

(Risos). (...) eu era nordestina. Eu era a única professora nordestina. Eu tive

foi outro grande desafio. Olha, eu, você fez uma pergunta interessantíssima.

Eu me senti novamente a Menina do Mato. Juro a você. Eu me senti

novamente... e você vê que a frase que aquela professora (eu não sei se você

conheceu aquela professora): “a reunião foi postergada. ” Pela primeira vez

eu ouvi aquela frase”. (SAFIRA, entrevista, 2015).

Em relação a este último momento, Safira relata que foi corrigida pela professora em

questão na ocasião em que se utilizou especificamente do termo “adiada” para se referir a uma

reunião do qual participariam: “postergada” deveria ser o termo apropriado e correto a ser

utilizado em sua fala, segundo a professora que a corrigiu. Todavia, a despeito da correção, a

intenção daquela professora em retificar Safira foi evidentemente preconceituosa. Além de ser

uma professora nordestina na capital do país, outro detalhe viria a incomodar os seus colegas

de profissão da UNB naquela época: a ausência de um título de mestrado e de doutorado em

seu currículo acadêmico. Esta hostilidade se agravou especialmente quando Safira assumiu a

chefia do Departamento de Ciências Sociais daquela Universidade. Quanto a esta etapa

específica de sua vida, ela pondera que:

Em matéria de titulação, eu não era inferior no Serviço Social. No

Departamento de Serviço Social eu não era inferior porque ninguém tinha

mestrado nem doutorado. Todos tinham especializações. Havia

especializações iguais a minha, como a que fiz em Paris sobre Sociologia,

durante um ano. Tinha outras professoras como era a ‘onda’ ir, como era.

Mas eu, eu, dentro do departamento... porque é o seguinte: quando eu fui pra

lá, existia / era um Departamento de Ciências Sociais. Não existia ainda o

Departamento de Serviço Social. E o Serviço Social estava dentro de

Ciências Sociais. Então, tinha muitos doutores, professores com doutorado

nos Estados Unidos. Mas, no curso de Serviço Social ninguém tinha, tá?

(SAFIRA, entrevista, 2015).

Contudo, logo emerge em sua trajetória a superação destes obstáculos através de

atitudes contundentes. Quando lhe pergunto o que representou esta chefia de departamento

numa das mais prestigiadas universidades do Brasil ela responde de maneira precisa: “no

curso de Serviço Social, eu era igualitária, mas no Departamento de Ciências Sociais eu era

inferior. Mas, eu logo fui e ultrapassei porque eu fiz doutorado e pós-doutorado. Tá? ”

(SAFIRA, entrevista, 2015).

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Na parte final da entrevista, pergunto-lhe se as agressões que outrora sofrera na

infância seriam similares as que ela viria experimentar na fase adulta, especialmente no

cotidiano da UNB enquanto professora. Ela pontua:

Acho que não. Eram mais veladas, mais veladas porque tinha professores

goianos que também não têm o status do paulista... eu nordestina e os

goianos, éramos um pouco abaixo dos paulistas. Tá entendendo? Então tinha

outros professores que tinham status próximos ao meu como nordestina. Tá

entendendo? Então eu me igualava um pouco aos goianos... quer dizer, de

Goiás, não de Goiânia.”. (...) “Não, eu não era tão discriminada não. E,

também, porque eu tinha vindo de um curso de Paris. Eu tinha terminado de

fazer um curso de Paris, de um ano, de Sociologia então eu não fui, sabe?

(SAFIRA, entrevista, 2015).

É importante destacar que a entrevistada galgou posições sociais de prestígio e de

reconhecimento no decorrer de sua trajetória biográfica sem se servir de qualquer outro

esforço ou mecanismo que não aqueles relacionados à sua determinação, esforço pessoal e

comprometimento com os ideais e causas que sempre acreditou e defendeu. Safira relata na

última parte da entrevista um episódio inusitado, em resposta a seguinte indagação que lhe fiz:

“Gostaria de saber se você, diante de tantos episódios em que esse sentimento de inferioridade

aflorou, se houve algum resquício na sua personalidade em função desses sentimentos que

afloraram? Se você desenvolveu algum tipo de receio, medo, pânico em relação às pessoas

pelo fato de você ser nordestina, nascer em Caicó? ” Sobre este aspecto, ela relatou que foi

desafiada durante um momento em que um professor entrou em sua sala no exato momento

em que ministrava aulas, trazendo junto a si um enorme processo e afirmando que necessitava

de sua assinatura para o processo de reconhecimento de seu Departamento.

“As pessoas pensavam que iam me dobrar, pessoas de chefia, homens, pelo

fato de eu ser mulher. ” Safira prossegue: “Eu darei a minha assinatura, se

me convier, hoje, mas agora estou dando aula... eu nunca pensei que eu

tivesse tanta coragem como fêmea. Até hoje me arrepio porque ele era de

uma arrogância. ” (SAFIRA, entrevista, 2015).

A entrevista encerrou-se neste exato ponto, porém sobre a narrativa de sua história de

vida é importante destacar aqui o fato de que ela, conforme relata em seu livro autobiográfico,

viveu um período de sua vida na cidade de Fribourg, na Suíça, acompanhada do marido e de

suas filhas, onde trabalhou como professora de português na École Migros, assumindo a

responsabilidade de ensinar esta língua para adultos interessados em fazer turismo em terras

brasileiras. Portanto, este relato vida demonstra que o bullying, embora fosse recorrente em

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alguns momentos de sua trajetória, não a impediu de superar com resiliência e muito humor

os obstáculos impostos, representando apenas um conjunto de experiências pessoais que

culminaram no fortalecimento de sua personalidade e no seu reconhecimento social extenso.

4.3 ENTREVISTA COM POLIANA ALEIXO16

, NATALENSE E FONOAUDIÓLOGA

A recepção da personagem para a realização do diálogo foi feita em minha residência

no dia 19/04/201717

, uma quarta-feira, no turno noturno. Com base em conversas informais

que já haviam sido anteriormente estabelecidas com a entrevistada, procedemos

imediatamente na realização da entrevista, decorridos as formalidades iniciais. Sentados os

dois na sala de estar da minha residência e munido de um gravador e de um celular, demos

início a interlocução.

Inicialmente, de acordo com a fala inicial de Poliana, as agressões que sofrera na sua

infância foram realizadas por um grupo fixo de três meninas, sempre no espaço da sala de

aula, perdurando em torno de 12 meses. Conforme ela mesma descreve:

Era assim: elas pegavam as coisas, escondiam, diziam que eu tinha

escondido; pegavam lápis, quebravam e diziam que eu tinha quebrado. E

como eu era muito sensível, sou até hoje, então isso me afetava, então, eu

passei de ser uma aluna boa, que gostava de ir para escola, né? Na minha

época, o pré-escolar, isso foi na primeira série, eu tinha seis anos, então

assim minhas notas no pré-escolar eram ótimas, boas, ótimas, né? Que era

ruim, boa, regular... e passei pra ser uma aluna que tirava zero, porque eu

não interesse em estudar nenhum, porque eu não tinha interesse em estar na

escola, de ir para aula, porque eu não gostava de estar naquele ambiente.

(POLIANA, 2017).

De acordo com sua interpretação, tudo aquilo pelo que passou, naquele momento de

sua vida, se configurava como bullying:

Eu considero como bullying, porque assim, era comigo. E eram sempre as

mesmas meninas que faziam alguma coisa todos os dias, elas me faziam

chorar, me faziam não querer ir para escola. É tanto que eu reprovei e fiquei

feliz por ter reprovado, porque assim eu troquei de turma. ” Fica claro com a

descrição acima que, além dos efeitos emocionais, também houve uma

consequência na sua formação educacional: a perda de um ano letivo.

Porém, ela descreve que aquele prejuízo não foi de todo modo ruim: “(...)

meu pai, por ele ver tudo que passou durante o ano, ele chegou com o

boletim da escola, um pote de sorvete e uma passagem para passar as férias

16

É utilizado nesta narrativa um pseudônimo para a entrevistada. 17

A entrevista se encontra na íntegra em anexo.

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no Rio de Janeiro, para eu esquecer aquele ano. (POLIANA, entrevista,

2017).

E segue acrescentando:

Quando eu troquei de turma e elas sumiram na minha vida, porque os

intervalos não ficavam tão parecidos, o pessoal da primeira série fica num

canto, o pessoal da segunda série fica em outro, né? Então eu não tinha

muito contato mais com elas em sala de aula, banheiro, bebedouro, com elas

(enchendo o saco). Então, aí eu nunca mais reprovei, voltei a ser uma boa

aluna. (POLIANA, entrevista, 2017).

Sobre os tipos de agressões que sofria, POLIANA destaca algumas:

Elas escondiam o zíper, diziam que eu tinha arrancado o zíper. Elas riscavam

a borracha e diziam: “por que você riscou minha borracha? ” Sem eu ter

riscado. E eu dizia: “não, eu não fiz isso”, entendeu? A imagem que eu tenho

é de eu sentada na cadeira e ela vindo assim com o estojo e dizendo: “você

quebrou meu zíper, agora eu não abro mais meu estojo” Eu fiz: “não, eu não

fiz nada disso não. ” “Foi você sim, tenho certeza que foi você. ” Eu fiz:

“não, não fui eu, não fui eu. ” Isso que eu lembro, da borracha riscada, a

borracha era branquinha e tava toda riscada de hidrocor. Fez assim: “porque

você fez isso na, minha caneta, minha borracha? ”, “não fui eu que fiz isso”,

“foi sim, foi você, foi você, foi você. ” (POLIANA, entrevista, 2017).

Quando lhe perguntei sobre o porquê de ser tão perseguida em sala de aula por

algumas das suas colegas, Poliana afirmou que uma de suas agressoras certa vez justificou

que:

Era engraçado, divertido, ver você, porque aquela menina grandona, bobona

e a gente conseguia dominar. Uma delas me disse que é porque eu era

grandona e bobona, então era bom tirar onda com a minha cara. Eu sou uma

pessoa mais tranquila e elas eram mais, vamos dizer assim, extrovertidas,

agressivas. Não é agressiva de bater, que elas nunca me bateram. (...) isso,

elas eram mais vivas. E eu era mais inocente, vamos dizer assim, eu não

tinha malícia de dizer assim: “ah! vá se ferrar.” Não sei se é porque eu sou

filha única, mas uma amiga me disse: “ah! você é filha única e você não sabe

que irmão mais velho faz bullying e que você aprende a se virar no mundo

por causa do irmão mais velho. Que enche o saco, tira onda”. (POLIANA,

entrevista, 2017).

Todavia, ela acredita que o fato de alguém ser filho único ou emocionalmente sensível

não se constitui como condição fundamental para que se torne alvo de bullying: “quantas

pessoas são filhos únicos e não passam por isso? Acho que é mais da personalidade da pessoa,

da criação, do ambiente. Tem tantos fatores que podem influenciar isso. ” Quando lhe

pergunto se alguém agiu em prol de sua defesa, ela comenta: “eu lembro muito a professora

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do outro ano, quando eu reprovei, de noventa e um, que é a professora Ismênia, que foi uma

professora que me recebeu com todo amor, carinho e atenção. Foi uma professora que fez um

diferencial muito grande. ” (POLIANA, entrevista, 2017).

No momento final da entrevista, eu lhe fiz as duas últimas perguntas. A primeira delas:

o que ela diria caso se deparasse com alguma de suas agressoras na atualidade? Poliana

destacou em sua fala que isto este encontro já aconteceu e naquele momento:

Tirou onda com uma delas só, porque, assim, eu nunca me encontrei com as

três; já teve discussão, mas tipo assim, agora a gente estava com álcool, né?

“Tipo assim, você fez isso comigo, não sei o que mais, não sei o que lá”, aí

ela disse: “ah! era fácil, você era bobona”. Mas, hoje em dia a gente é até

amiga, então tipo, passou. Entendeu? Não é uma coisa que me faça mal.

(POLIANA, entrevista, 2017).

Na última pergunta, busco saber se ela já havia superado as experiências pelo qual

passara na infância. Ela responde com contundência:

(...) com a minha maturidade de hoje em dia eu vejo assim: hoje em dia, eu

vejo assim, tudo na vida é pra alguma coisa, certo? Não sei se vai precisar

gravar isso, mas eu acho assim: tudo que a gente passa na vida é pra alguma

coisa, pro bem ou pro mal, para gente aprender. Então, isso que eu precisei

passar, talvez tenha sido necessário pra eu reprovar, porque eu tenho certeza

que minha vida teria sido totalmente diferente, teria sido outra vida se eu

tivesse continuado na minha turma. Os meus ciclos de amizade, as minhas

experiências teriam sido totalmente diferentes. Então, eu acho que

necessitava, que ela era uma coisa planejada pra passar na vida, pra eu poder

mudar de turma, pra eu ter essa minha vida que eu tive. (POLIANA,

entrevista, 2017).

Poliana, hoje, tem 31 anos, é servidora pública da área da saúde no governo do estado

do Rio Grande do Norte e também atende pacientes em um consultório particular. Órfã de

mãe, afirma em sua narrativa que embora aquele ano escolar tenha sido bastante doloroso, seu

maior sofrimento de vida repousa na perda maternal precoce de sua progenitora para uma

doença neurológica degenerativa, o que culminou no seu forçado amadurecimento pessoal e

social. O bullying, portanto, é enxergado pela entrevistada como um evento traumático que

não resultou apenas em perdas, como a de um ano letivo escolar ou os traumas emocionais

que vivenciou. Ele representou uma mudança em seu cotidiano de vida (troca de turma;

formação de novas amizades), que, por sua vez, levou-a a alcançar tudo àquilo que atualmente

granjeia em sua vida. Embora sua vida lhe satisfaça nos dias atuais, sua fala final expressa

certa resignação e objetividade com o que aconteceu, como se o bullying que sofreu

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representasse um propósito de aprendizado social para além da finalidade agressiva que

habitualmente possui.

4.4 UM RAIO-X DAS ENTREVISTAS SOB A PERSPECTIVA DE DISCUSSÃO QUE

SE FAZ EM TORNO DO FENÔMENO BULLYING

As duas entrevistas acima mencionadas são exemplos claros de intimidações que se

motivaram pela recusa a diferenças em torno da forma de ser das entrevistadas. Embora

ambas possam ser classificadas como episódios de bullying feminino, de acordo com os

critérios estabelecidos historicamente por Dan Olweus (1978), para classificar e distinguir

condutas bullying de outras manifestações de interação social, as experiências possuem

diferenças notórias. A experiência intimidativa vivida pela professora Safira é historicamente

fragmentada em recortes biográficos. Já a experiência agressiva de Poliana, porém, é

contínua e dentro de uma mesma atmosfera cronológica de intimidação. Isto significa dizer

que Safira viveu intimidações diferentes, em contextos diversos da sua vida e que foram

motivadas por causas distintas. Já Poliana, por outro lado, foi alvo de agressões num itinerário

constante e ininterrupto, que durou um ano inteiro de sua vida infantil.

Portanto, Safira descreve tanto na entrevista quanto no seu livro autobiográfico que foi

alvo de bullying em um período da infância, motivada pela sua chegada a cidade no papel de

uma capioa; e no contexto de sua vida acadêmica-profissional, desencadeada pela sua pouca

qualificação e pela origem regional. É importante destacar que, embora se tratem de

momentos dispersos em sua cronologia biográfica, tais agressões conforme descritas reforçam

a ideia da recorrente intolerância que geralmente acompanha a personalidade de um agressor

frente às manifestações de diversidade que porventura não comunguem com as convenções

que acredita serem legítimas, verdadeiras e únicas. Portanto, a ideologia acompanha a

vitimização bullying do qual Safira foi vítima, primeiro na crença das crianças da cidade de

Caicó que não lhe outorgam legitimidade enquanto “menina da cidade” devido a sua

discrepância de costumes, como a forma de falar ou a falta de traquejo com brincadeiras

infantis comuns naquele município. Depois pela crença de determinados professores

“sulistas” de que a mesma seria uma professora “inferior” simplesmente pelo fato de provir

do Nordeste brasileiro (região costumeiramente associada ao atraso no desenvolvimento da

nação), de ser mulher e por não apresentar as credenciais (títulos de mestrado e de doutorado)

que lhe legitimariam a ocupar as funções de docente de uma renomada universidade pública,

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Universidade de Brasília, e de chefe de departamento de um curso superior da mesma

instituição.

Poliana, por outro lado, é o reflexo de uma intimidação bullying apenas na infância.

Durante um ano, através de um processo recorrente todos os dias, marcado por um

desequilíbrio de poder, no qual três agressoras que imprimiam sofrimento articulado a uma

mesma vítima sem motivações “evidentes” para a agressão. O argumento utilizado pelas

agressoras para justificar as agressões sempre se localizou numa suposta diferença física e

emocional entre elas e a vítima, o que acarretou no acúmulo de prejuízos psicossociais para a

vítima, insegurança, medo, revolta, tristeza e apatia no desempenho educacional, culminando

na perda de um ano letivo escolar. Mais uma vez o bullying nasce de uma recusa da diferença

do outro, da intolerância à diversidade.

Destaque-se a resiliência por trás das trajetórias de vida das entrevistadas, que resultou

em superação e crescimento pessoal. Cada uma a seu modo superou as agressões que sofreu

sem o contributo de intervenções médicas ou psicológicas, conforme constatado nas

entrevistas realizadas. Safira, mesmo tendo percebido desde cedo que se tornara alvo de

hostilidades por parte de agentes diversos, jamais se abateu diante de seus agressores e

demonstrou ao longo de sua trajetória de vida uma constante assertividade como forma de

superação das intimidações pelo qual passara. Poliana acredita que aquele trecho específico de

agressão bullying que ocorreu em sua infância serviu como aprendizado social que a levou a

alcançar sua forma atual vida. Embora tenha sido traumática, mudou o rumo de sua vida

pessoal e a levou a novas formas de sociabilidade e novos caminhos biográficos, sem os quais

não teria atingido se não fosse o bullying na infância.

Um aspecto curioso a se destacar é a imagem de candura e docilidade que emerge na

fala de Poliana quando se refere a sua personalidade infantil. Isto vai ao encontro do que

Simmons (2004) definiu como a personalidade cordial e terna que toda menina deve ter em

sua vida pública. Assim, Poliana expressa o modelo clássico de comportamento social

feminino esperado. Já suas agressoras fogem do lugar comum das agressoras tipicamente

femininas: não atacam na intimidade da amizade, são diretas na intimidação e promovem uma

agressão coletiva. O motivo por trás dos ataques? A discrepância de tipos humanos, pois as

bullies destoavam do comportamento de Poliana. Enquanto eram mais descoladas, sagazes e

populares, a vítima se reservava ao seu perfil introspectivo de interação social. É notória

como a ideologia cultural esta inerente nesta narrativa de intimidação, por meio de

intimidações perpetradas há a tentativa de homogeneização das condutas destoantes do

modelo estabelecido como legítimo e aceito em sala de aula. Na fala das agressoras, quando

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questionadas sobre o porquê de serem agressivas, fica claro o intento discriminatório de suas

ações: a vítima era mais alta, mais sensível e mais introspectiva, o que lhes motivavam a

dominá-la pelo uso da agressividade.

Quanto a Safira, enfatiza-se a bravura e inconformismo perante o assédio que sofreu

em momentos distintos de sua vida. Nos momentos em que foi atacada, ela fugiu do lugar

comum das vítimas, conforme atesta Fante & Pedra (2008), não foi passiva e encontrou

mecanismos de defesa para as agressões. Sua fala está pontuada de exemplos sobre isto: no

momento em que foi designada para chefiar um departamento da Universidade de Brasília ou

na oportunidade em que utilizou um termo diverso do que era costumeiro na fala de seus

docentes colegas. Para além das agressões que experimentou, outros aspectos merecem

destaque na sua narrativa, pois ainda que se tratasse de bullying aquilo que sofrera, o conjunto

de ataques escamoteou a tradicional intolerância social que se impõe através de atitudes de

discriminação e preconceito. Na infância, por exemplo, Safira representava uma outsider

vinda da fazenda para se socializar com um grupo estabelecido de crianças na cidade, já

bastante agregado em suas formas de ser, agir e pensar. Na vida adulta, o fato de ser mulher e

nordestina, aparentemente, culminou na sua intimidação pelos colegas, o que se justifica na

crítica que lhe foi feita pelo uso de um termo diferente do linguajar local no momento de

adiamento de uma reunião. Sua narrativa que descreve os episódios de agressão que outrora

sofreu corroboram a crítica contundente que Antunes (2008) faz em sua dissertação, na qual o

uso do termo bullying muitas vezes é aplicado para mascarar situações antigas e há muito

conhecidas de intolerância social, tais como atitudes de desrespeito, homofobia, sexismo,

machismo, misoginia etc.

Neste caso, por si só, o termo já é ideológico por sobrepujar outras formas de

intimidação social sob ao epíteto de um novo rótulo, de uma nova denominação, que

prontamente cai no gosto de muitos estudiosos que se debruçam sobre a questão acreditando

se tratar de uma nova forma de expressão de violência.

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75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção desta pesquisa de dissertação configura-se como uma expressão de

resistência ante a hegemonia do discurso tradicional que concebe a questão do bullying.

Afinal de contas, cabe à ciência recorrer constantemente à crítica sobre os paradigmas

estabelecidos que concebem os fatos e fenômenos do mundo. Ao longo deste trabalho, ao se

ancorar na perspectiva construcionista crítica, um legado de muitos autores e trabalhos nos

diversos campos em ciências humanas e sociais, assim como de filosofias (SOUSA FILHO,

2007), não se objetivou debater sobre as ideias específicas da constelação de autores que se

filiam a este enfoque crítico. Buscou-se, contudo, trabalhar em torno da forma de pensar

comum por cada um deles expressa, sempre ancorados no princípio ou noção de que a

realidade social é uma construção humana, histórica, filosófica e cultural. Para tanto,

denunciar a ideologia que acompanha o discurso hegemônico que trata da questão bullying foi

tarefa primordial desta pesquisa.

Além da ideologia, outro enfoque importante foi dado para temas de constante

reflexão sociológica, tais como a questão de gênero e do discurso. Mas por que proceder desta

forma? Em primeiro lugar, a pesquisa inclinou-se, desde o início, na busca de estabelecer um

paralelo entre as intimidações masculinas e femininas. Em segundo, por que a questão do

discurso, conforme concebida por Foucault (2011), é terreno basilar onde se pavimentam as

diferenças entre uma e outra agressão. É a partir da produção regulada e normatizada dos

discursos que se configuram os interditos que se impõem sobre agressão feminina e que,

concomitantemente, se autorizam a publicitação da agressividade e da raiva masculinas. O

conceito de gênero, por sua vez, veio dar luz para a questão de como se produzem as

dimensões do masculino e do feminino, a partir de uma agenda compulsória, naturalizada e

dissociativa de sujeitos homem e sujeitos mulher, isto é, a heteronormatividade.

É sempre relevante destacar que não foi tarefa desta dissertação demonizar este ou

aquele paradigma de interpretação do fenômeno bullying. Também não está na agenda desta

pesquisa sugerir, através da longa discussão desencadeada, a existência de uma suposta

“teoria da conspiração” que constantemente avilta o sujeito mulher em sua forma de exprimir

sua existência e legitima/chancela/autoriza o modo de ser masculino de maneira arbitrária,

completamente livre das normas e das regulações impostas pela cultura e sociedade. Seu

objetivo precípuo sempre esteve claro ao longo de suas páginas, o de apresentar no tabuleiro

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de xadrez a forma como as peças concorrem entre si num imbricado jogo de estratégias

marcadas pela tentativa de se conquistar a vitória, mediante a imposição da dominação da

forma de jogar de um jogador sobre outro. A forma como tais peças se movimentam e as leis

que regem toda a sua dinâmica de movimentação também são objeto recorrente de análise da

presente pesquisa. Posto que, se por um lado existe uma perspectiva tradicional de concepção

da questão bullying atribuindo majoritariamente o foco de suas análises para o fenômeno

desencadeado entre garotos; de outro, porém, existem manifestações de resistência que

buscam lançar luz para a questão da agressividade que, cada vez mais, marca as relações

interpessoais entre garotas em várias realidades do mundo.

Assim, destaco a necessidade urgente de se empreender novas investidas

interpretativas, pela academia, por pesquisadores ou por organizações governamentais e não

governamentais. Além de novas proposituras metodológicas que proporcionem uma

ampliação cada vez maior da inteligibilidade em torno do tema numa escala cientificamente

mais global, no intuito de que novas propostas de encaminhamento em prol da compreensão

desta forma de violência emerjam em diferentes espaços de pesquisa e investigação. Esta

dissertação não almeja estabelecer conclusões fechadas, fixas ou exatas sobre sua tentativa de

compreender e analisar a questão do bullying, já que o tema é inesgotável e infindável em

termos de debates e interpretações que porventura possam ser feitas. Propõe-se, neste final, a

sugestão de ampliação das investigações em um nível mais aprofundado e sistematizado, fato

que só pode por mim ser realizado em uma dimensão de estudos no âmbito do doutorado.

Se existe algo a ser deixado neste momento por este trabalho para seus leitores, se

refere à proposição de novas formas de diálogo entre os diversos saberes científicos que se

lancem a estudar o tema, sempre numa perspectiva interdisciplinar e intercambiável de ideias,

visando quebrar a produção do monopólio discursivo-ideológico que constantemente impõe

“verdades” em torno desta questão que é tão multifacetada e complexa. À apresentação de

novos contrapontos sociológicos, em torno de novas ideias, conceitos, teorias e perspectivas

que suscitem a continuidade da ruptura, do furo, e da resistência, já feita anteriormente por

alguns autores e agora efetuada por esta dissertação, em relação às verdades

hegemonicamente enunciadas pelo discurso hegemônico e tradicional. Com o intuito de abrir

inéditas possibilidades de interpretação, a partir de novos enfoques que dirimam as lacunas

ainda não compreendidas em torno desta agressão. Nunca é demais frisar que a temática

bullying, além de bastante complexa, é sobremaneira multifacetada em função das diversas

variáveis sociais, culturais, psicológicas, médicas etc., que são acionadas no decorrer de sua

dinâmica agressiva.

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ANEXOS

ANEXO 1 - TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA 1

Nome: SAFIRA AMMANN

Idade: 82

Formação: PROFESSORA UNIVERSITÁRIA APOSENTADA

Data: 15/10/2015

Pesquisador: esta entrevista é parte componente da pesquisa de mestrado - sob orientação da

Profa. Lore - do aluno Jairo José dos Santos Junior, a entrevistada será a profa. Dra. Safira e

será parte componente do trabalho de dissertação que será concluído ao final do curso.

Pesquisador: primeiramente, eu queria agradecer a oportunidade de estar diante da Profa.

Safira após a leitura da sua biografia, que por sinal é bastante rica em experiências e uma

lição de vida para mim que estou começando a minha vida profissional, a minha vida

acadêmica, enfim..., a entrevista se baseará em alguns pontos destacados no livro que dizem

respeito à temática central da minha pesquisa, temática essa denominada “Bullying na escola”

ou “violência na escola”. É: em primeiro lugar, Safira, eu gostaria que você detalhasse um

pouco mais a experiência que você narra na página 44, experiência essa que diz respeito à sua

saída da fazenda e à sua chegada à cidade de Caicó. O capítulo é: “A menina vai à escola”. No

momento em que você entra na escola, você menciona na página 44 o uso do termo bullying.

Eu gostaria que você falasse um pouco mais dessa experiência.

Informante: eu vou contextualizar um pouco mais amplamente a minha saída da fazenda

para Caicó. ((ruído)) Bom, eu nasci em Caicó, mas porque meu pai sempre levava minha mãe

para ter os seus filhos em Caicó e não na fazenda. Mas, era só para ter a criança, para o parto

e depois voltava para fazenda, de modo que eu tive minha infância na fazenda. Só passei três

meses em Caicó enquanto meu pai mudava de fazenda, de uma fazenda pra outra, de modo

que a minha infância até meus oitos anos de idade foi na fazenda. Eu era uma filha solitária,

no sentido de que os meus irmãos o mais próximo a mim tinha sete anos de diferença e

estudava em Caicó e depois em Natal. Então, fui uma filha quase única, no sentido de que era

sozinha na fazenda com meus pais e o meu convívio era com os filhos dos moradores. Então,

a minha linguagem era muito parecida com a linguagem/, isso já para contextualizar o fato

que vem contado em seguida, minha linguagem era muito parecida com o vocabulário dos

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filhos dos moradores. Então, eu não tinha um vocabulário “rico”, rico entre aspas, como as

crianças de Caicó. E aos oito anos de idade, então, eu fui morar em Caicó para estudar, porque

meu pai alfabetizava, nossa alfabetização, de todos os filhos do meu pai e da minha mãe era

feita em casa. /Alfabetização/ e quando nós íamos para a escola já íamos para o segundo ano

primário. Na alfabetização, você deve ter visto pelo livro, nós aprendíamos um pouco de

Geografia, um pouco de História, um pouco de aritmética e português, ditados, etc., leitura

alta sem erros, sem gaguejar. Tudo isso era feito em casa com a supervisão de minha mãe e

meu pai (ele era professor primário quando solteiro em Assú e depois que casou passou a ser

proprietário rural e, então, nós éramos alfabetizados em casa. Quando íamos para escola –

todos os filhos – já pegávamos o segundo ano primário. Então, eu já fui para Caicó para morar

na casa de uma irmã minha, que tinha duas filhas um pouquinho mais velhas do que eu, de

modo que eu era tia mais nova do que duas sobrinhas – uma era dois anos mais velha do que

eu e outra, alguns meses mais do que eu. Uma delas era minha colega de turma na escola. Elas

eram meninas da cidade, caicoenses, nascidas e criadas em Caicó e eu era uma menina do

mato, eu era chamada menina do mato. De modo que eu já era discriminada aí, “de entrada”.

Elas tinham um vocabulário citadino, caicoense, e eu era uma menina rural, que era chamada

menina do mato. Não sei se já contextualizei bem aí a sua pergunta. E eu fiquei morando

nessa família, que era composta de quatro filhos, que eram essas duas sobrinhas, eu era/

minha irmã, que era a mãe desses quatro filhos, ela tinha idade para ser minha mãe, porque

meu pai se casou duas vezes e teve uma família muito: grande, de dez filhos eu era nona,

portanto eu era já a penúltima filha e essa minha irmã era a primeira filha de meu pai, portanto

ela tinha idade para ser minha mãe. Eu tinha essas duas sobrinhas mais velhas do que eu e

dois outros mais novos. Então era uma casa de quatro crianças na casaonde eu fiquei

morando, com duas mais velhas e duas mais novas que eu. Os dois mais novos era um casal:

um menino e uma menina, mas todos eles eram considerados citadinos e urbanos e eu rural.

Pesquisador: e essa mudança do campo para cidade, você sentiu, você mencionou na escola.

No momento em que você chega na escola você menciona, você usa o termo bullying. Por que

você se apropria e usa esse termo bullying?

Informante: não, na mentalidade que eu tenho hoje. Naquele tempo, eu não tinha a menor

noção disso aí. Eu só me sentia diminuída, eu me sentia inferior. Eu não tinha a capacidade de

bullying, de absorver essa relação, esse preconceito de bullying não. Eu só me sentia inferior,

eu era uma menina do mato e eles eram crianças da cidade. Eu me sentia inferior a eles, mas

não sabia contextualizar nem conceituar nada disso.

Pesquisador: Mas existe algum episódio específico que marcou essa infância?

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Informante: Bom, existiram vários episódios. Eu boto só um no livro. Você quer que eu

relate o do livro ou você ...?

Pesquisador: não, mais alguns exemplos, alguma brincadeira, algum tipo de ...?

Informante: É. Eu me lembro de ter levado uma bolada no rosto, porque eu não me dava com

bola. Bola não era uma realidade rural. Nossos brinquedos eram muito diferentes de bola. Eu,

nós não tínhamos bola de futebol, de voleibol... isso não existia na nossa fazenda. Os

meninos, talvez, porque eu não tinha convivência com os meninos. Só tinha com as meninas e

nós meninas brincávamos de boneca de pano. E, também, o que eu não conto no livro, é que

nós meninas trabalhávamos com a realidade rural. Então a gente juntava ossinhos das “mãos”

das vacas e dos bezerros e fazíamos currais com aqueles ossinhos. Então, os ossinhos serviam

de... eram vacas, eram bezerros, a gente fazia currais com os ossinhos. E eu não tinha

convivência com bola. Então, quando eu cheguei em Caicó, que tinha jogos com bola, eu não

dominava absolutamente a bola de borracha que naquele tempo não era bola de couro. Então,

eu levava boladas na rosto e eles riam muito como era que eu não dominava o jogo de bola.

Pesquisador: essas atitudes eram repetitivas?

Informante: eram repetitivas. Então, eu voltava...[ =

Pesquisador: [atitudes sempre voltadas para você?

Informante: = sim. Eu era a menina que não dominava o jogo da bola.

Pesquisador: E somente por parte dos meninos? Ou as meninas também?

Informante: não, não. As meninas também. As meninas jogavam bola como voleibol, mas

em círculo. A gente ainda não tinha campo de voleibol para meninas em Caicó, naquela

época. Eu tenho 82 anos, atualmente, vou fazer 83 no final do ano. Então, a gente não jogava

o voleibol em campo, mas em círculos.

Pesquisador: Eu queria esclarecer apenas os fatos, as agressões partiam dos meninos

especificamente ou as meninas também promoviam esse tipo de intimidação?

Informante: as meninas também. E tinha um jogo que era ordecam, hoje eu sei pronunciar

porque eu domino francês, mas lá em Caicó se chamava ordecam e eu não sabia de jeito

nenhum que isso era um nome francês. Hoje, depois que eu dominei o francês, é que eu vi que

isso é um nome francês que significa fora de campo e era um jogo muito agressivo, de força:

tinha que jogar a bola para a menina que tivesse fora de campo com toda força que ela não

conseguisse pegar a bola, sabe? E eu não pegava nunca, porque eu não tinha prática de jogo

de bola.

Pesquisador: e isso levava a...

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Informante: levava novamente a uma vaia, a me vaiar. Que é o bullying. Vaia, eu não sei,

porque nunca estudei o bullying... isso é bullying, não é? Vaiar não é bullying?

Pesquisador: isso. O bullying é uma atitude que se caracteriza pela repetição prolongada

contra a mesma pessoa.

Informante: eu era vaiada de muitas formas: porque não dominava os jogos, por causa do

meu vocabulário, que muitas vezes um vocabulário que não era correto, porque era das

crianças rurais, que não eram da minha classe social, porque meu pai não tinha problema com

isso. Ele me corrigia, mas ele não me vaiava, nunca ria do meu vocabulário. Nem minha mãe.

E eu convivia só com adultos dentro de casa, na casa da fazenda.

Pesquisador 2 (Profa. Lore): isso durou quanto tempo Safira? [Que você ficou...

Pesquisador: [esse período de agressões. Você conseguiu...?

Informante: [eu acho que um ano talvez. Depois eu me adaptei e adquiri o vocabulário

urbano.

Pesquisador: você se adaptou e aí cessaram as agressões?

Informante: é... Pouco a pouco foram cessando as agressões. E também na escola, eu fui me

afirmando como uma menina que me diziam que eu era inteligente. Eu me lembro que no

livro, aliás, eu conto que eu nunca... A professora, uma vez, elogiou a minha redação e eu

fiquei pasma, porque eu nunca tinha sido elogiada. Porque eu sempre era a menina do campo,

eu era a menina do mato e nunca tinham me dito que eu era inteligente, nunca. De repente, a

professora elogia a minha redação e eu fiquei admiradíssima. Eu era elogiada, eu fiquei tão

admirada em ser elogiada.

Pesquisador: com relação ao uso desse termo: menina do mato. Existia algum apelido que foi

intitulado pra você por causa desse aspecto de vir de uma fazenda?

Informante: não, era isso: menina do mato.

Pesquisador: Safira, no livro, tem um episódio do livro que é na página 9, você fala sobre

uma barragem. A sabotagem de uma barragem por parte dos colegas, dos amigos. Você era

pequena ainda eu acho que tinha mais ou menos...

Informante: é.

Pesquisador: eu queria que você falasse um pouco mais. E esse episódio, também, como

você compreende esse episódio? Como você pode denominar esse episódio? Porque você

mostra uma grande frustração em função da barragem, que a água não descia e vocês viram

que a água não vinha e vocês foram olhar e os meninos estavam rindo.

Informante: era, porque as meninas eram menores do que os meninos. Os meninos eram

dominadores, o macho como dominador da fêmea. Isso que eu interpreto hoje. Mas naquele

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tempo, eu não sabia interpretar assim: o macho dominador da fêmea. Então, nós éramos as

frágeis e os meninos eram os fortes. Essa interpretação eu faço hoje como os machos

dominadores. Eles eram mais espertos e eram capazes de perceber que indo mais acima –

porque naquela rua havia um declive – então, eles perceberam que indo mais acima eles

dominavam a água. Então, eles construíram uma barragem. Uma barreira lá em cima e nós

ficamos mais em baixo e não dominamos a água.

Pesquisador: Esse episódio você classifica como uma simples atitude de preconceito por

parte deles? Ou também algo relacionado ao bullying?

Informante: não, era esperteza. Eles eram mais espertos do que nós... a gente era menor de

idade, a gente era do “sexo frágil”. Eles se julgaram dominadores já, os machos dominadores,

mais inteligentes, mais espertos. Hoje é a leitura que eu faço, mas, naquele tempo, eu não era

capaz. Eu só me senti frustrada, eu não consegui fazer uma barragem, saí chorando e pedi o

colo da minha mãe. O sexo frágil que corre pra mãe. (risos) Mas, a interpretação que eu fiz foi

de hoje, madura.

Pesquisador: a próxima pergunta tem a ver com sua mudança do Brasil para Suíça. No

capítulo em que você mostra o quanto essa mudança foi dura para sua filha, Jussara. A

mudança em que ela era adolescente e foi um pouco dura pelo fato dela sair do Brasil e já

estar adaptada aqui e ir para Suíça, um país culturalmente bem diferente, bem diverso do

nosso país. Essa mudança, como você poderia descrevê-la? Além de descrever, eu gostaria de

saber se existe uma certa semelhança com a mudança da menina Safira, que sai do sítio e vai

pra Caicó.

Informante: acho muito inteligente a sua pergunta. Acho que houve uma semelhança sim.

Sendo que em idades diferentes. Eu era criança de oito anos de idade e ela já era uma

adolescente. Ela teve que renunciar aos colegas dela, a turminha dela de amigas, mas foi um

golpe muito grande. Foi muito difícil para ela, inclusive a língua, a nacionalidade. Acho que

foi mais duro pra ela do que pra mim, inclusive, pelo contexto de nacionalidade.

Pesquisador: ela enfrentou algum tipo de agressão, de hostilidade pelo fato de ela ser uma

brasileira que adentrava na Suíça, na escola?

Informante: não, acho que não. Me deixa refletir um pouco... Nós fomos para um povoado.

Nossos primeiros seis meses, aliás, quatro meses escolares, foram num povoado bem

pequenininho. Lá na Suíça, existem muito esses povoados, eram próximos da cidade maior

que era Friburg. E ela fez amizades, ela tinha 12 anos. Mas ela tinha deixado o círculo de

amizade dela... Eu acho que o sacrifício dela foi maior do que o meu. Foi maior, inclusive, na

língua.

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Pesquisador: isso.

Informante: foi muito duro pra ela. Acho que foi muito maior o sacrifício dela do que o meu.

Pesquisador 2 (Profa. Lore): E para Pauline que era tão...?

Informante: pois é, mas Pauline ela chega e, no dia seguinte, Pauline estava com uma mão de

um lado e a outra do outro com as meninas. Pauline é de uma facilidade de adaptação.

Incrível. E Jussara não, Jussara vai muito devagar, vai muito devagar... São duas filhas, você

viu.

Pesquisador: isso.

Informante: e aí Pauline, logo na primeira semana, Pauline estava correndo na rua como se

fosse dona da rua.

Pesquisador: (Risos).

Informante: e Jussara não. Jussara leva muito tempo pra fazer novas amizades.

Pesquisador: entendi.

Informante: é essa a diferença.

Pesquisador: Safira, você mencionou que se sentiu inferior na sua chegada à escola, na

infância. É: mais à frente, no livro, você assume a docência na UnB. E, durante essa passagem

do livro, [ eu noto que você menciona mais uma vez... =

Informante: [Sentimento de Inferioridade.

Pesquisador: = Sentimento de Inferioridade. Eu queria que você falasse mais um pouco

disso. Dessa docência na UnB.

Informante: eu, nordestina, e a UnB cheia de sulistas. (Risos).

Pesquisador 2 (Profa. Lore): É o que eu falei pra você. (Risos)

Informante: é sim, mas é... É, eu era nordestina. Eu era a única professora nordestina, eu tive

foi outro grande desafio. Olha eu, você fez uma pergunta interessantíssima. Eu me senti

novamente a menina do mato. Juro a você. Eu me senti novamente. E você vê que a frase que

aquela professora, eu não sei se você conheceu aquela professora: “a reunião foi postergada. ”

[Pela primeira vez eu ouvi aquela frase. =

Pesquisador: [que na UFRN você teria dito adiada.

Informante: = não. Eu nunca diria isso: a reunião foi postergada. Ai, ai. Aqui é postergada.

Então, eu tenho que aprender essa palavra. Foi postergada a reunião (risos). /Era uma

professora, eu não sei se você alcançou, ela era paulista, [ela teve um filho sem cérebro, não

sei se você se lembra... não? =

Pesquisador 2 (Profa. Lore): [Não... não imagino quem seja...

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Informante: = eu não me lembro o nome dela. Ela ficou pouco tempo na UnB. Não, então,

não sei, porque esse fato era notório. Você, então, chegou depois. Ela era paulista, era

professora de sociologia e, bom, na época, você já entendeu... eu me senti novamente, assim,

a matuta. Matuta é um termo muito/ não sei se você conhece esse termo matuta.

Pesquisador: conheço.

Informante: é, você é daqui de Natal (risos).

Pesquisador: sou daqui de Natal.

Informante: pronto matuta. Eu era a matuta, é o sinônimo de mato.

Pesquisador 2 (Lore): Só que as boladas que você recebia eram de outro tipo.

Informante: eram de outro tipo, as boladas...

Pesquisador: eu gostaria que você falasse um pouco mais dessas boladas, porque eu gostaria

de saber o seguinte, a pergunta que faço é: esse sentimento que você desenvolveu na docência

da UnB se justifica por algumas atitudes, também, de “boladas”, falando metaforicamente, lá

na UnB, pelo fato de você ser nordestina... você sofreu algum tipo de agressão? De

intimidação ou mesmo de...?

Informante: acho que... não, menos. Eram mais veladas, mais veladas, porque tinha também

goianos, tinha também professores goianos, que também não têm o status do paulista,

entende? Eu, nordestina, e os goianos, éramos um pouco abaixo dos paulistas, entende? Então

tinha outros professores que tinham status próximos ao meu como nordestina, tá entendendo?

Então, eu me igualava um pouco aos goianos... quer dizer, de Goiás, não de Goiânia. Os

professores goianos que era Leise, era Silvinha, não sei se você alcançou Silvinha, professora

de serviço social, que era também de Goiás... não, eu não era tão discriminada não. E também

porque eu tinha vindo de um curso de Paris. Eu tinha terminado de fazer um curso em Paris,

de um ano, de sociologia, então eu tinha esse status. Mas, além de nordestina, eu tinha um

diploma em Paris, sabe?

Pesquisador: eu gostaria que você me falasse mais dessa questão, porque, no livro, quando

você chega, [você ainda não tinha mestrado nem doutorado. =

Informante: [nem doutorado.

Pesquisador: = e você menciona que alguns professores eram paulistas e com doutorado nos

Estados Unidos. Aí, eu queria que você me falasse um pouco disso. Se também essa carga

simbólica ainda não alcançada de mestrado e doutorado também lhe fazia pensar que era

inferior.

Informante: pesava. É, mas eu tinha... em matéria de titulação, eu não era inferior no Serviço

Social. No departamento de Serviço Social, eu não era inferior, porque ninguém tinha

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mestrado nem doutorado. No Serviço Social, ninguém tinha mestrado nem doutorado, quando

eu entrei. Todos tinham especializações, tinham especializações iguais a minha. Como na

especialização que eu fiz em Paris, tinha outras professoras como era Odair, mas eu, eu,

dentro do departamento... porque é o seguinte: quando eu fui pra lá, existia / era o

departamento de Ciências Sociais. Não existia ainda o departamento de Serviço Social. E o

Serviço Social estava dentro de Ciências Sociais. Então, nas Ciências Sociais, tinha muitos

doutores com doutorado na Sorbonne, nos Estados Unidos, etc. então, no departamento de

Ciências Sociais tinha muitos doutores, mas no curso de Serviço Social ninguém tinha.

Pesquisador: entendi.

Informante: então, no curso de Serviço Social, eu era igualitária, mas no departamento de

Ciências Sociais eu era inferior. Mas, eu logo fui e ultrapassei, porque eu tive pós-doutorado.

Pesquisador: por último, assim, o que representou pra você a chefia do Departamento de

Ciências Sociais da UnB?

Informante: pois é, menino. Eu me arrepio. Olhe, eu me arrepio até hoje.

Pesquisador: essa sensação de menina do mato, esse sentimento, aflorou mais uma vez?

Informante: aflorou, mas aí eu já tinha ido devagarinho. Mas eu não me considerava... eu

achava que tinha sido... Que eu estava ali não era por mérito não, era por uma questão

política. Porque foi um momento em que o político pesava muito. Havia pessoas mais radicais

do que eu, com muito mais prestígio, muito mais saber do que eu. Eu tinha certeza disso. Não

era meu saber que se impunha. Eu sabia demais disso. Eu sempre soube disso. Não era o meu

saber que estava em jogo, era minha posição política. Eu era mais... eu tinha mais jogo de

cintura.

Pesquisador 2 (Profa. Lore): você sempre foi, quando eu te conheci lá em Brasília, [eu

reconhecia você como uma pessoa extremamente moderada. =

Informante: [pois é...

Pesquisador 2 (Profa. Lore): = é eu acho que você tinha função conciliatória.

Informante: era uma posição politicamente conciliatória. E eu não enfrentava assim como

Sadir. Sadir, ele era. Frontalmente, ele era declaradamente de esquerda, ele impunha as

armas... então, ele era um homem de muito valor, mas ele estava lá pra lutar de esquerda... ele

jamais seria chefe do departamento. Ele fazia parte da chapa. Então, ele foi, eu me lembro que

a gente estava no teatro e Roque Laraia, Roque era um professor de muito prestígio, tinha sido

chefe do departamento, e na véspera de eu ser nomeada ele já sabia que eu tinha sido a

escolhida. Aí ele disse assim: “teremos uma fair lady para a chefia do departamento” e riu. E,

então, já sabia que seria uma mulher. A chefe do departamento, mas ninguém sabia que era

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eu. Mas ele disso isso: “teremos uma fair lady”. Então, ele deu uma dica! De que era uma

mulher, mas ele fez um risinho e já descartou Sadir. Que era o primeiro da lista. E eu acho

que eu era a segunda da lista, encaminhada pra reitoria. Então, ficou aquele suspense assim.

Porque Sadir era o primeiro da lista, encaminhada pela chefia, pelo departamento. Aí eu me

encolhi lá e disse: “Meu Deus do céu. ” Porque eu não queria de jeito nenhum, porque eu não

gostava, nunca gostei de cargos administrativos, sabe? E foi muito difícil para mim levar dois

anos como chefe do departamento, porque eu enfrentei situações que eu não vou contar aqui.

Mas eu enfrentei situações que se for “fora” de situações eu posso contar para Lore saber,

porque eu nunca contei para ninguém; mas, agora que Lore está professora em Natal eu posso

contar, mas fora da área de gravação. (risos).

Pesquisador: é... Faltam só mais duas perguntas. Durante toda essa sua história de vida

belíssima. Eu gostaria de saber se você, diante de tantos episódios em que esse sentimento de

inferioridade aflorou, se houve algum resquício na sua personalidade em função desses

sentimentos que afloraram. Se você desenvolveu algum tipo de receio, medo, pânico em

relação às pessoas pelo fato de você ser nordestina, nascer em Caicó?

Informante: Olha, isso que eu ia contar, eu vou dizer agora, sem falar nos nomes, mas eu fui

desafiada duas vezes. As pessoas pensavam que iam me dobrar, pessoas de chefia, homens,

pensando que pelo fato de eu ser mulher e estar na chefia iam me dobrar. Durante uma aula,

era isso que eu ia contar, mas vou contar sem dizer, sem falar, sem nomear os... Durante uma

aula, eu era chefe do departamento, eu dando aula, uma personalidade, um homem, entrar

com um processo “deste tamanho”, interromper minha aula e dizer assim: “eu quero a sua

assinatura, porque nós vamos entrar agora na reitoria com esse processo para reconhecimento

do nosso departamento. ” Eu disse: “Mas eu estou dando aula”. Ele disse: “Mas nós

precisamos de sua assinatura agora”. Eu disse: “Desculpe, você entre na secretaria com o seu

processo que quando...” “Mas nós precisamos HOJE. ” “Eu darei a minha assinatura, se me

convier, hoje, mas agora estou dando aula. ” Menina, eu nunca pensei que eu tivesse tanta

coragem como fêmea, eu nunca pensei que eu tivesse tanta coragem. Até hoje, eu me arrepio

porque ele era de uma arrogância, pois foi o maior desafio da minha vida e é o meu único

orgulho como fêmea. Você sabe quem foi? Depois você vai saber...

Pesquisador: eu já, assim, já estou bastante satisfeito com a entrevista.

Informante: obrigada. Eu nunca empreguei essa palavra fêmea pra mim mesma. (risos) Foi a

primeira vez.

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Pesquisador: eu agradeço, mais uma vez, a professora Safira, a minha professora Lore,

minha orientadora, e aqui eu dou por encerrada a entrevista. E fico feliz e também gostaria de

externar que...[ =

Informante: [eu devia ter contado esse episódio neste livro...

Pesquisador: = eu queria que você fizesse uma dedicatória nesse livro.

Pesquisador 2 (profa Lore): Mas sempre tem alguma coisa que falta.

Informante: Pois é, a gente se esquece de tanta coisa.

ANEXO 2 - TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA

NOME: POLIANA ALEIXO

IDADE: 31 ANOS

FORMAÇÃO: FONOAUDIÓLOGA

DATA: 19/04/2017

Pesquisador: bem, esta entrevista faz parte componente da minha pesquisa de pós-graduação

no programa de pós-graduação em Ciências Sociais na UFRN e é parte componente do meu

trabalho de tese e vai compor como estudo de caso, através de uma narrativa, sobre o tema

principal que é a fenomenologia “bullying”. Então, vou começar fazendo 10 pontuações e

gostaria de agradecer primeiro a você, Poliana, e vou fazer 10 pontuações e você pode falar

livremente, discorrer livremente, sobre essas 10 pontuações de acordo com sua memória e sua

história de vida que forem resgatados através da sua mente, ok?

Informante: Ok.

Pesquisador: vamos lá, primeira delas: eu gostaria de pedir detalhes gerais sobre a

experiência que você vivenciou.

Informante: certo, bem, era assim: na escola, eu tinha seis anos de idade, certo? E tinha um

grupo de meninas, né? Que elas me perseguiam diariamente, então tudo era motivo para elas

irem me tirar a paciência e não era assim: a: feia. Era assim: elas pegavam as coisas,

escondiam, diziam que eu tinha escondido; pegavam lápis, quebravam e diziam que eu tinha

quebrado. E como eu era muito sensível, sou até hoje, então isso me afetava, então, eu passei

de ser uma aluna boa, que gostava de ir para escola, né? Na minha época, o pré-escolar, isso

foi na primeira série, eu tinha 6 anos, então assim minhas notas no pré-escolar eram ótimas,

boas, ótimas, né? Que era ruim, boa, regular... e passei pra ser uma aluna que tirava zero,

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porque eu não interesse em estudar nenhum, porque eu não tinha interesse em estar na escola,

de ir para aula, porque eu não gostava de estar naquele ambiente.

Pesquisador: certo, aí vem a segunda pergunta: você considera a sua experiência como

bullying? Por que?

Informante: eu considero como bullying, porque assim era comigo. E eram sempre as

mesmas meninas que faziam alguma coisa todos os dias, elas me faziam chorar, me faziam

não querer ir para escola. É tanto que eu reprovei e fiquei feliz por ter reprovado, porque

assim eu troquei de turma. Eu saí da turma, só que não tem no meu histórico escolar essa

reprovação, porque como foi a primeira série é como se eu não tivesse cursado mil

novecentos e noventa. É como se não existisse mil novecentos e noventa na minha vida, em

oitenta e nove eu fiz o pré-escolar e em noventa e um fiz a primeira série. Noventa não existiu

na minha vida. E meu pai, por ele ver tudo que passou durante o ano, ele chegou com o

boletim da escola, um pote de sorvete e uma passagem para passar as férias no Rio de Janeiro,

para eu esquecer aquele ano.

Pesquisador: [uma espécie de... =

Informante: [premiação. (/... apagar) o ruim.

Pesquisador: = tentativa de apagar o que você passou.

Informante: é tanto que depois disso, eu nunca mais reprovei na escola. Quando eu troquei

de turma e elas sumiram na minha vida, porque os intervalos não ficavam tão parecidos, o

pessoal da primeira série fica num canto, o pessoal da segunda série fica em outro, né? Então

eu não tinha muito contato mais com elas em sala de aula, banheiro, bebedouro, com elas (né

encher o saco). Então, aí eu nunca mais reprovei, voltei a ser uma boa aluna.

Pesquisador: entendi. Você mencionou uma coisa interessante, você disse que as agressões

eram recorrentes, repetitivas ou eram pontuais? Assim, acontecia uma vez, depois demorava

mais algum tempo?

Informante: isso eu não sei lhe dizer, porque assim, foram várias coisas e foi um ano, então

na cabeça de uma criança de seis anos...

Pesquisador: foi durante um ano, mas sempre de maneira repetitiva?

Informante: porque elas não estavam...elas não se juntaram para fazer isso comigo no pré-

escolar, foi só no primeiro ano, entendeu? E como eu tinha seis anos, eu não lembro a

extensão, eu sei que foi um ano que eu não quis estudar, acho que eu tenho até as provas

guardadas, porque tinha zero nas provas. Zero vírgula três, zero vírgula dois, um dia desse eu

achei as provas.

Pesquisador: entendi. Então eram repetitivas... recorrentes.

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Informante: eram, elas escondiam o zíper, diziam que eu tinha arrancado o zíper. Elas

riscavam a borracha. Diziam: “por que você riscou minha borracha? ” Sem eu ter riscado. E

eu dizia: “não, eu não fiz isso. ” Entendeu?

Pesquisador: tem uma pergunta importante agora, você acha que nesse contexto de

agressões, a culpa era sua? Era delas? A quem você atribui a culpa de tudo isso? [ você se

sentiu culpada alguma vez? =

Informante: [eu não lembro.

Pesquisador: = “eu sou assim, eu sou muito sensível.” Você mencionou que era sensível.

Informante: é, mas isso é uma visão minha de hoje, de uma pessoa mais madura. Na época,

eu não sei.

Pesquisador: certo, mas a quem você atribuiria uma culpa desse contexto de agressão?

Informante: uma delas me disse que é porque eu era grandona e bobona, então era bom tirar

onda com a minha cara. Mas eu não sei lhe dizer o que eu sentia, só não queria tá lá, eu só não

queria passar por aquilo.

Pesquisador: você era diferente delas? No comportamento, na forma de se vestir?

Informante: não, porque era uniforme. (O modo de) se vestir é o mesmo.

Pesquisador: tranquilo.

Informante: mas no comportamento, sim. Eu sou uma pessoa mais tranquila e elas eram

mais, vamos dizer assim, extrovertidas, agressivas. Não é agressiva de bater, que elas nunca

me bateram...

Pesquisador: populares?

Informante: isso populares, não sei se é popular, porque seis anos não tem isso, existe isso,

popular... entendeu? Tipo assim, as mais espertas, elas se achavam mais espertas...

Pesquisador: mais vivas, né?

Informante: isso, mais vivas. E eu era mais inocente, vamos dizer assim, eu não tinha malícia

de dizer assim: “a: vá se ferrar. ” Não sei se é porque eu sou filha única, uma amiga me disse:

“a: você é filha única e você não sabe que irmão mais velho faz bullying e que você aprende a

se virar no mundo por causa do irmão mais velho. Que enche o saco, tira onda”.

Pesquisador: concordo, ele lhe ensina a viver, teoricamente.

Informante: exatamente. a: as meninas diziam: “porque você é filha única, você não sabia

disso, tinha que dar uma resposta rápido”, mas eu não sei dar a resposta rápido.

Pesquisador: mas isso seria então um motivo, uma culpa? O fato de você ser filha única,

você acha que se você tivesse uma irmã, ou um irmão, você não teria sofrido bullying?

Informante: nem sei lhe dizer, mas pode ser que sim. Ou pode ser que não... é::

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Pesquisador: provável que sim... ou não.

Informante: por que quantas pessoas são filhos únicos e não passam por isso? Acho que é

mais da personalidade da pessoa, da criação, do ambiente... tem tantos fatores que podem

influenciar isso.

Pesquisador: com certeza. Você falou em alguns personagens, eu gostaria que você falasse

um pouco mais sobre os personagens dessa experiência? Os agressores ou as testemunhas que

tinham na época, pessoas que presenciavam e não faziam nada.

Informante: a escola em si eu não lembro muito, não lembro se a professora interferiu, sei

que... é tanto que eu não lembro qual a era a professora dessa série, eu lembro muito a

professora do outro ano, quando eu reprovei, de noventa e um, que é a professora Ismênia,

que foi uma professora que me recebeu com todo amor, carinho e atenção. Foi uma professora

que fez um diferencial muito grande... né? Porque eu entrei numa turma totalmente nova,

perdi minha turma da escola, perdi todas as minhas amigas, porque minhas amiguinhas

passaram e eu reprovei. Mas eu vim bem, porque eu me livrei daquelas três, eram três

meninas... né? Que se juntavam para fazer isso comigo.

Pesquisador: era um grupo?

Informante: era um grupo, eram três meninas sempre, certo? Então elas... é::, sinceramente,

só lembro que elas faziam isso comigo, eu não lembro o rosto muito delas, sei que eram elas.

Tanto que levei anos, quando me encontrei com a pessoa e levei anos... um tempo... não foi de

imediato, eu fiz: “você fez isso comigo. ” Depois veio o estalo, foi você. Tanto que a mãe dela

fez: “a: era por causa de você que eu ia tanto na escola, porque vinha as reclamações que ela

tinha perturbado uma menina. ” Eu fiz: “é, por minha causa mesmo. ”

Pesquisador: você falou uma coisa interessante, você não lembra com muita clareza dos

momentos.

Informante: mas eu lembro do que elas faziam.

Pesquisador: aí que vem a pergunta, quais as consequências dessa experiência? Além da

memória... da memória que ficou, da experiência, você acha que houve alguma consequência

emocional, física, psicológica?

Informante: sinceramente, não lhe dizer, eu acho que...

Pesquisador: houve a perda de um ano. Você atribui também a esse fato?

Informante: não, com certeza. Eu reprovei por causa delas, não teve outro motivo pra eu

reprovar não. Foi por causa delas, foi porque eu tinha medo de ir pra escola, eu ia e ficava

mais...eu lembro que eu sentava sempre na última carteira, na última cadeira, e ficava mais

retraída, não prestava atenção na aula, ficava voando, não queria tá ali, porque eu sabia que

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alguma coisa ia acontecer... né? Que em algum momento elas iam dizer que eu quebrei um

lápis, elas não faziam agressão fisicamente em mim, as agressões eram essas: dizer que eu

roubei, dizer que eu quebrei, dizer que eu risquei. Me acusar de coisas.

Pesquisador: que era essa a pergunta que eu ia fazer: como eram as agressões? Não eram

físicas, você já mencionou. [Então, eram =

Informante: [isso. Elas diziam que eu quebrava alguma coisa, elas diziam que eu riscava

alguma coisa.

Pesquisador: = psicológicas, no caso.

Informante: isso. Diziam que eu quebrava, que eu roubava, que eu estragava. E eu não

lembro... era só entre elas três, tipo assim, a professora não se envolvia. Não lembro da

professora em nenhum momento se envolver, mas aí depois eu fiquei sabendo que a mãe de

uma delas era chamada lá, né? Então, provavelmente, a professora deveria falar alguma coisa.

Pesquisador: ela percebia, porém não intervia diretamente, no momento.

Informante: eu não lembro, eu não lembro, realmente. A imagem que eu tenho é eu sentada

na cadeira e ela vindo assim com o estojo e dizendo: “você quebrou meu zíper, agora eu não

abro mais meu estojo. ” Eu fiz: “não, eu não fiz nada disso não ”, “foi você sim, tenho certeza

que foi você. ” Eu fiz: “não, não fui eu, não fui eu. ” Isso que eu lembro, da borracha riscada,

a borracha era branquinha e tava toda riscada de hicrocor. Fez assim: “porque você fez isso

na, minha caneta, minha borracha? ”, “não fui eu que fiz isso ”, “foi sim, foi você, foi você,

foi você. ” E segundo uma delas que me relatou: “era engraçado, divertido, ver você, porque

aquela menina grandona, bobona e a gente conseguia dominar”.

Pesquisador: então, elas enxergavam a agressão não como agressão, mas como um

divertimento?

Informante: pelo que ela fala, é isso.

Pesquisador: elas tinham satisfação, digamos assim? Bem interessante. Quais os motivos,

você já falou um pouco, os motivos para que essas agressões ocorressem? [Mas você acha que

foi porque você era mais... =

Informante: [bobona. Boba. É o que elas dizem.

Pesquisador: = na visão delas?

Informante: isso.

Pesquisador: certo.

Informante: mas na minha visão, não lembro.

Pesquisador: certo, você era alta também, mais alta do que elas.

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Informante: sempre fui a mais alta da minha turma, mesmo reprovando. E quando reprovei

então eu fiquei gigantesca.

Pesquisador: então o tipo físico e a questão emocional, o fato de você ser mais tranquila,

[mais emocionalmente =

Informante: [reservada.

Pesquisador: = sensível, reservada. Isso é uma espécie de chamariz, chamou a atenção delas

e elas...

Informante: hum-rum, eu acho que elas viram o elo fraco. Alguém fraco.

Pesquisador: então você acha que elas perceberam que você, no contexto da sala, era mais

frágil? E elas decidiram...

Informante: é, que eu era mais fraca. Isso, porque você imagina eram três turmas: A, B e C. e

na primeira série virou A e B, então houve uma mesclagem, porque no pré não existia isso e

elas já estudavam lá no pré.

Pesquisador: elas já eram bem amigas, digamos assim.

Informante: não, não lembro delas de quem era... eu sei que uma delas, Luana, com certeza

era da minha turma, mas as outras não lembro. Entendeu? E tipo elas se juntaram e se

acharam as poderosas e viu que ali tinha um elo fraco.

Pesquisador: você já conhecia Luana antes das três se unirem?

Informante: sim, na pré-escolar. Ela fez pré-escolar comigo.

Pesquisador: ela era sua amiga, então?

Informante: não, ela era da minha turma na escola. Não, quem era minha amiga era outra, era

Suzana. Suzane, o pai dela era militar.

Pesquisador: mas a partir do momento que as turmas se mesclaram, ela se uniu às outras

duas e?

Informante: isso. E fizeram isso.

Pesquisador: certo, só falta mais duas.

Informante: você vai mudar os nomes, né?

Pesquisador: com certeza. Você buscou algum tipo de ajuda ou apoio para superar essa

experiência ou para tentar apagar da memória?

Informante: não.

Pesquisador: não? Mesmo com a reprovação, você continuou com sua vida cotidiana.

Informante: não, foi, passou, a vida continuou. Aí eu acho que eu que fiz bullying em algum

(menino) futuramente. Não sei, né?

Pesquisador: então você chegou a praticar bullying também?

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Informante: não, eu peguei uma briga com minha prima, mas aí foi briga de prima. Aí ela

juntou a turma dela contra a minha turma na escola. Foi a maior confusão.

Pesquisador: a: então, foi um episódio pontual? Se resolveu?

Informante: foi, a gente ficou de castigo, toda a turma. A minha turma e a dela. A sala

inteira. Você tem noção. Eu botei a terceira série contra a segunda série, numa briga

fenomenal no ginásio. Não, mas isso aí...

Pesquisador: isso aí é um episódio pontual que realmente não consiste em bullying, vou lhe

explicar mais com detalhes.

Informante: tá.

Pesquisador: e aí vem a última pergunta: o que você faria se você tivesse a oportunidade de

se encontrar com elas três? Hoje. Hum... um famoso, uma acareação como a gente vê na

televisão, uma acareação entre o acusado e o acusador. Você gostaria de ter a oportunidade de

falar alguma coisa ou é algo superado que você não precisa mais mexer? Ou... enfim.

Informante: não, eu tiro onda com uma delas só, porque assim eu nunca me encontrei com as

três, já teve DR de..., mas tipo assim, agora gente tava com álcool, né? “Tipo assim, você fez

isso comigo, não sei que mais, não sei o que lá”, aí ela disse: “ a: era fácil, você era bobona”,

mas hoje em dia a gente é até amiga, então tipo, passou. Entendeu? [Não é uma coisa que me

faça... =

Pesquisador: [superou.

Informante: = é, superou. E com a minha maturidade de hoje em dia eu vejo assim: hoje em

dia, Jairo, eu vejo assim, tudo na vida é pra alguma coisa, certo? Não sei se vai precisar gravar

isso, mas eu acho assim: tudo que a gente passa na vida é pra alguma coisa, pro bem ou pro

mal, para gente aprender. Então, isso que eu precisei passar, talvez tenha sido necessário pra

eu reprovar, porque eu tenho certeza que minha vida teria sido totalmente diferente, teria sido

outra vida se eu tivesse continuado na minha turma. Os meus ciclos de amizade, as minhas

experiências teriam sido totalmente diferentes. Então, eu acho que necessitava...que ela era

uma coisa planejada pra passar na vida, pra eu poder mudar de turma, pra eu ter essa minha

vida que eu tive.

Pesquisador: então, você encara essa experiência como um processo necessário para que

você pudesse acordar, de certa forma, pra alguns aspectos da vida?

Informante: isso, eu acho necessário para você ter a sua vida no percurso da sua vida.

Pesquisador: você acha necessário?

Informante: não, eu acho que não tinha sido necessário. Eu acho assim, não é que o bullying

seja fundamental...

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Pesquisador: ele foi fundamental no seu contexto pessoal?

Informante: isso, ele mudou a minha vida.

Pesquisador: entendi.

Informante: entendeu? Mas, talvez isso já era pra alguma coisa...meus ciclos de amizade

teriam sido outros, eu teria entrado na faculdade em outra época da minha vida. Talvez eu não

tivesse feito a faculdade que eu fiz, então eu acho assim: nada na vida é por acaso, tudo tem o

seu propósito, é só a gente começar a ver o lado bom das coisas. Entendeu? Na época, aquilo

dali foi ruim, mas eu ganhei um pote de sorvete e uma viagem pro Rio.

Pesquisador: ou seja, houve o lado bom da moeda, né? Teve o lado ruim e teve o lado bom,

nesse contexto.

Informante: exatamente. E eu acho assim: que não levei tanto pro resto da vida, porque tipo

algumas delas que continuaram da escola, em uma turma mais na frente, e eu não tive mais

contato com elas. Porque tipo foi aquele ano, foi o ano que elas estudaram comigo, elas

continuaram na escola, mas pararam de me perseguir.

Pesquisador: certo, então foi durante o ano, mas você acredita que se elas tivessem

continuado nos anos subsequentes poderia a agressão ter continuado?

Informante: acho que sim.

Pesquisador: você acredita nisso?

Informante: acredito. Porque pelo que a mãe de Lua falou, ela foi chamada várias vezes na

escola e ela nunca mudou.

Pesquisador: entendi. Ela nunca tirou da personalidade dela esse caráter agressivo.

Informante: Durante aquele ano, por que não foi várias vezes que ela me perturbou na escola

durante o ano? E a mãe dela foi chamada várias vezes durante o ano na escola? E ela não

mudou, porque se ela tivesse mudado, na primeira vez que a mãe dela havia sido chamada, ela

teria mudado. E a mãe dela foi chamada várias vezes, durante aquele ano.

Pesquisador: entendi. Para finalizar eu gostaria que você desse algumas palavras finais, se

você achar necessário, sobre a experiência ou o conjunto das experiências que você viveu

naquele ano.

Informante: amigo, é: ... posso falar amigo? Você tira, né? Durante o processo eu lembro que

foi doloroso, é muito ruim você ser acusada de ser roubada, é muito ruim você ser acusada de

destruir uma coisa que você não destruiu. Pela minha personalidade, eu sofri. Talvez você,

pela sua personalidade de tirar onda, você ia tirar onda. “Pois é, quer que eu termine de

quebrar? ”. Depende da personalidade da pessoa, entendeu? Mas eu acho que a gente tem que

tentar, com as dores da vida, ver o lado bom. Não é fácil, vamos dizer assim: a: mundo de

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Poliana, tudo tem seu lado bom. Não é fácil, é processo que tem que ser diário. Naquela

época, eu não tinha essa maturidade, eu apenas sofri e muitas vezes não contei pros meus pais,

porque você não sabe o que tá fazendo de errado, né? Então assim, é tentar tirar o lado bom.

O meu lado bom, eu vejo assim: eu não teria as minhas amigas de hoje se eu tivesse

continuado na turma dela e eu gosto das minhas amigas de hoje. Então, pronto. Foi necessário

pra eu conhecer as minhas amigas, Andreza é minha amiga até hoje, Valeska é minha amiga

até hoje, Maria Fernanda. Então assim... Cris, então as minhas amigas da época da escola se

deu a esse episódio, porque se eu não tivesse reprovado, eu não teria elas. E eu gosto de ter

elas na minha vida, então é o lado bom, eu acho. Tentar tirar o lado bom e tirar onda hoje de

(incompreensão), se ela bebe, eu digo: “você é culpada, você fez bullying em mim. ” (risos).

Pesquisador: tá certo então, pois eu agradeço e aqui a gente encerra a nossa entrevista, tá

bom?

Informante: valeu, amigo. Desculpa aí qualquer coisa. Pronto, destrave. Aí você vai fazer:

pera aí, concluído. Não, stop.