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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR
O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico
frente ao discurso hegemônico
NATAL-RN
2017
JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR
O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico
frente ao discurso hegemônico
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre, sob a orientação da Profª. Dra. Lore
Fortes.
NATAL-RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Santos Junior, Jairo José dos.
O conceito de bullying escolar: um contraponto sociológico
frente ao discurso hegemônico / Jairo José dos Santos Junior. - 2017.
97f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, 2017.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lore Fortes.
1. Bullying. 2. Ideologia. 3. Gênero. 4. Discurso. 5.
Construcionismo Crítico. I. Fortes, Lore. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.62:343.434
JAIRO JOSÉ DOS SANTOS JUNIOR
O CONCEITO DE BULLYING ESCOLAR: um contraponto sociológico frente ao
discurso hegemônico
Apresentada em: __ /__/ 2017
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Lore Fortes - Orientadora
Presidente da banca
__________________________________________________________________________________________
André Augusto Diniz Lira - Universidade Federal de Campina Grande
Membro externo
__________________________________________________________________________________________
Irene Alves de Paiva - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Membro interno
NATAL-RN
2017
EPÍGRAFE
“Tão logo a falsidade seja desmascarada, a violência nua terá que aparecer em
toda sua hediondez – e a violência, derrotada, desaparecerá.”
Alexander Solzhenitsyn (1918-2008)
DEDICATÓRIA
Ao professor Jairo Santos e à Dona Tereza Cristina, a quem devoto meu mais sincero apreço e
respeito.
A todas as vítimas que viveram ou ainda vivem o contexto de uma agressão bullying: esta
pesquisa reflete a eterna lembrança de que vocês nunca estarão a sós.
AGRADECIMENTOS
À professora e amiga, Lore Fortes, a quem sempre serei agradecido pelo genuíno
reconhecimento, credibilidade e apreço intelectual por este trabalho desenvolvido ao longo do
meu percurso acadêmico.
Aos meus pais devoto a mais sincera gratidão pelo incansável reconhecimento que sempre
tiveram em relação a um potencial que em mim jamais ousei crer.
À Yoanna Monteiro, pelos préstimos emocionais e logísticos nos momentos de construção do
texto dissertativo, também agradeço imensamente.
À Verônica Leite sou grato pelos momentos de solicitude em momentos pessoais difíceis da
produção da pesquisa.
Aos professores, André Augusto e Irene Paiva, membros da banca de defesa, também destino
um solene agradecimento pelo comprometimento com a leitura crítica deste trabalho.
RESUMO
O fenômeno bullying constitui-se como uma forma de agressão interpessoal que já há algum
tempo se tornou bastante reconhecida, debatida e problematizada por diversos estudiosos ou
pelos meios de comunicação, devido principalmente à explosão global de massacres
escolares, cuja autoria, na maioria das vezes, está atribuída a ex-alunos que outrora foram
vítimas desta forma de intimidação. Na tentativa de compreender e apontar soluções para esta
questão, diversos estudos e pesquisas acadêmicas emergiram primordialmente na década de
1980, tentando desde então estabelecer contornos precisos em torno da definição desta forma
de agressão. A maioria destas interpretações e estudos se filia ao paradigma interpretativo
proposto na década de 1980 pelo pesquisador sueco Dan Olweus (1978), pioneiro mundial e
principal referência nos estudos sobre o tema bullying. O presente trabalho de dissertação
problematiza este enfoque tradicional supracitado e debate sobre a necessidade de se romper
com este monopólio interpretativo produzido, permitindo assim que outros saberes científicos
possam adentrar na discussão deste tema e produzir novas maneiras de compreensão sobre o
assunto. Desta forma, constitui-se como objetivo geral desta pesquisa problematizar
criticamente o discurso hegemônico que celebra a questão do bullying e que anuncia suas
“verdades” como se fossem as únicas possíveis e necessárias a serem aceitas. Além disto, é
missão deste estudo apresentar um contraponto sociológico de intepretação que ofereça uma
nova perspectiva de compreensão do assunto, agora sob o enfoque de temáticas específicas,
tais como a de gênero; a da produção do discurso; e a da ideologia na cultura. Para tanto, esta
pesquisa recorre metodologicamente à teoria construcionista crítica e seu conjunto de
postulados que apontam a construção social da realidade humana a partir da ideologia e da
cultura, de modo que esta mesma realidade pode ser oportunamente desconstruída pela
mesma ação humana. Contando com entrevistas junto a vítimas de bullying e com uma
revisão de literatura comparativa entre as ideias de autores provenientes do enfoque
tradicional e aqueles que comungam do pensamento construcionista crítico, esta dissertação
almeja abrir espaço para que, na posteridade, áreas de conhecimento científico distintas do
paradigma tradicional de interpretação do fenômeno possam se inserir nos debates e
problematizações acerca da questão e consequentemente produzir novos olhares que
pluralizem o entendimento desta forma de intimidação.
Palavras-chave: Bullying. Ideologia. Gênero. Discurso. Construcionismo crítico.
ABSTRACT
The bullying phenomenon constitutes a form of interpersonal aggression that for some time
has become well-known, debated and problematized by several scholars or the media, mainly
due to the global explosion of school massacres, whose authorship, for the most part, is
attributed to former students who were once victims of this form of intimidation. In an
attempt to understand and point solutions to this question, several studies and academic
research emerged primarily in the 1980s, trying to establish precise contours around the
definition of this form of aggression. Most of these interpretations and studies are based on
the interpretive paradigm proposed in the 1980s by the Swedish researcher Dan Olweus
(1978), a world pioneer and main reference in studies on the subject of bullying. This
dissertation deals with this traditional approach and discusses the need to break with this
interpretive monopoly produced, thus allowing other scientific knowledge to enter into the
discussion of this topic and to produce new ways of understanding about the subject. Thus, it
is a general objective of this research to critically problematize the hegemonic discourse that
celebrates the issue of bullying and that announces its "truths" as if they were the only ones
possible and necessary to be accepted. In addition, it is the mission of this research to present
a sociological counterpoint of interpretation that offers a new perspective of understanding the
subject, now under the focus of specific themes, such as gender, discourse and ideology
production in culture. To do so, this research methodologically refers to the critical
constructionist theory and its set of postulates that point to the social construction of human
reality from ideology and culture, so that this reality can be timely deconstructed by the same
human action. Counting on interviews with victims of bullying and a comparative literature
review between the ideas of authors coming from the traditional approach and from those who
share critical constructional thinking, this dissertation aims to open space so that, in posterity,
areas of scientific knowledge distinct from the paradigm Traditional interpretation of the
phenomenon can be inserted in the debates and problematizations about the issue and,
consequently, produce new looks that pluralize the understanding of this form of intimidation.
Keywords: Bullying. Ideology. Genre. Speech. Critical constructionism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 09
1 A ESCOLA COMO PALCO PARA A PRÁTICA DE BULLYING: UM ENFOQUE
CRÍTICO-CONSTRUCIONISTA ..................................................................................................... 16
1.1 A INQUIETAÇÃO PESSOAL EM RELAÇÃO AO BULLYING: UM BREVE RELATO AUTOBIOGRÁFICO ........................................... 16
1.2 A INQUIETAÇÃO ACADÊMICA EM RELAÇÃO AO BULLYING: O CONSTRUCIONISMO CRÍTICO COMO ESCOLHA METODOLÓGICA ... 20
1.3 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FABRICAÇÃO DAS DIFERENÇAS E DESIGUALDADES ENTRE OS INDIVÍDUOS ............................... 27
2 ENTRE AMEAÇAS, SOCOS E PONTAPÉS: NOTAS SOCIOLÓGICAS SOBRE O
BULLYING ESCOLAR PRATICADO ENTRE MENINOS ......................................................... 35
2.1 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO UNIVERSO MASCULINO: O DIÁLOGO COM O
ENFOQUE/PARADIGMA TRADICIONAL ......................................................................................................................... 35
2.2 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO UNIVERSO MASCULINO: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO
SOCIOLÓGICO ............................................................................................................................................. 44
2.3 A CATEGORIA DE GÊNERO NO ÂMBITO DA HETERONORMATIVIDADE: SOBRE COMO MENINOS SE TORNAM
AGRESSIVOS ............................................................................................................................................. 49
3 ÍNTIMAS, INIMIGAS E DISSIMULADAS: NOTAS SOCIOLÓGICAS SOBRE O
BULLYING ESCOLAR PRATICADO ENTRE MENINAS.......................................................... 53
3.1 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO CONVENCIONAIS: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA
TRADICIONAL ............................................................................................................................................. 53
3.2 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO CONVENCIONAIS: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO
SOCIOLÓGICO ............................................................................................................................................. 55
4 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: O BULLYING ANALISADO ATRAVÉS DA
MODALIDADE ENTREVISTA ........................................................................................................ 62
4.1 A FORMA DE COLETA DE DADOS: A ENTREVISTA SOB A MODALIDADE HISTÓRIA DE VIDA ....................................................... 62
4.2 ENTREVISTA COM SAFIRA AMMANN, CAICOENSE E PROFESSORA APOSENTADA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB. .......... 63
4.3 ENTREVISTA COM POLIANA ALEIXO, NATALENSE E FONOAUDIÓLOGA .......................................................................... 69
4.4 UM RAIO-X DAS ENTREVISTAS SOB A PERSPECTIVA DE DISCUSSÃO QUE SE FAZ EM TORNO DO FENÔMENO BULLYING .................. 72
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 77
ANEXOS ....................................................................................................................................... 80
9
INTRODUÇÃO
A presente dissertação de mestrado inicia proferindo algumas ressalvas importantes
sobre o tema da violência escolar, perspectiva geral de onde emergirá toda a discussão aqui
feita sobre o fenômeno de agressão bullying. A primeira delas refere-se à constatação da
existência de uma dificuldade comum entre estudiosos da temática da violência escolar em
definir contornos precisos sobre sua conceituação. Segundo o artigo de Stelko-Pereira e
Williams (2010), tal empecilho repousaria na falta de consenso entre os próprios estudiosos
do assunto, que expõem em seus estudos e pesquisas diferentes pontos de vista sobre o tema;
no considerável número de variáveis (sociais, culturais, geográficas, idade, sexo, status social
etc.) que atravessam a conceituação do fenômeno, conferindo-lhe dinamicidade e
mutabilidade no tempo e no espaço; nas nuances interpretativas verificadas em diferentes
países sobre o tema (as perspectivas inglesa, americana e espanhola são bem diversas sobre o
que seja a violência escolar, por exemplo); na falta de consenso interdisciplinar em sua
investigação (entre matérias como a psicologia, sociologia, antropologia e pedagogia, por
exemplo); e na suposição sobre quais determinantes estariam por trás do desencadeamento
deste ato agressivo (ou seja, se a gênese da violência estaria no indivíduo; no interior da
escola; no meio social; na comunidade ao redor do espaço estudantil etc.).
Na pesquisa dos autores supracitados, portanto, pode-se verificar que o fenômeno da
violência escolar, além de complexo, é organizado em múltiplas perspectivas e posturas
ideológicas que ora são concordantes ora divergentes. Some-se a isto, a polissemia habitual no
âmbito da definição (suscitada ou pelos estudiosos ou por disciplinas científicas) e suas
múltiplas variáveis de análise, o que leva a depreender que conceituar com precisão e
aceitação universal o fenômeno da violência escolar é uma tarefa complexa do ponto de vista
epistemológico. Portanto, deixa-se claro aqui que não é missão desta dissertação de mestrado
recorrer a um longo escrutínio sobre os diferentes conceitos que giram em torno desta
problemática. Busca-se, antes de qualquer coisa, situar a questão da violência escolar na
discussão corrente que envolve o tema principal deste trabalho: a questão do bullying e seu
conceito vigente.
Um segundo ponto é que a questão da diversidade das formas de expressão da
violência escolar faz com que vários autores (STELKO-PEREIRA; WILLIANS, 2010;
ABRAMOVAY; RUA, 2003; FANTE & PEDRA, 2008; CALHAU, 2010) procedam numa
10
profusa elaboração de taxonomias (critérios de diferenciação, definições em função espaço
onde se manifesta a agressão; diferenciações de acordo com os grupos envolvidos ou com os
locais de ação etc.) que visam distinguir, selecionar e classificar os atos agressivos no entorno
escolar conforme o uso de metodologias específicas defendidas em suas análises/pesquisas. O
objetivo é mapear o fenômeno para promover uma definição abrangente e universal sobre o
mesmo. Para todos os efeitos, também não é tarefa desta dissertação detalhar as diversas
tipologias que tratam da violência escolar (ou seja, as suas múltiplas formas de classificação).
O enfoque desta pesquisa, portanto, reside especificamente na problemática do bullying entre
escolares, no qual a questão da violência escolar em si será examinada de forma corrente no
decorrer das reflexões deste trabalho.
Discorrido brevemente sobre as observações acima, a pesquisa prossegue apontando
como Abramovay e Rua (2003) destacam em sua obra o fato de que a percepção sobre o
fenômeno da violência escolar mudou bastante no decorrer da história social mais recente: se
no passado os estudos incidiam exclusivamente sobre agressões direcionadas por professores
aos seus alunos (na forma de punições ou castigos corporais, por exemplo); na
contemporaneidade, o enfoque (feito em sua maioria por antropólogos, sociólogos, psicólogos
e outros especialistas) tem privilegiado o exame da violência mútua praticada entre alunos, de
alunos contra a propriedade material ou ainda, em menor proporção, de alunos contra
professores e professores contra alunos. As autoras também deixam claro nesta obra que a
preocupação com o problema da violência escolar é bastante antiga. Nos Estados Unidos, por
exemplo, tornou-se tema relevante de estudos acadêmicos a partir da década de 1950; no
Brasil, porém, as primeiras investigações sobre a temática floresceram somente na década de
1970, quando pedagogos e pesquisadores procuravam explicações para o crescimento das
taxas de violência e de criminalidade no cenário social mais geral. Vale salientar que no
passado, o problema era visto apenas sob a perspectiva da indisciplina; na atualidade, passa a
ser encarado como uma questão de delinquência juvenil associada a outros comportamentos
destoantes, tais como uso de drogas, formação de grupos destinados ao assédio e porte ilegal
de armas – inclusive de fogo – nas dependências escolares.
Dentro desta perspectiva abrangente e complexa que abarca a questão da violência
escolar, um conjunto sistemático de pesquisas acadêmicas eclodiu no final da década de 1970
em alguns países do norte europeu (expandindo-se logo em seguida para o resto do
continente), na tentativa de compreender o significativo aumento de suicídios entre crianças e
adolescentes no final daquela década. Suas prováveis causas, de acordo com estes estudos,
estavam ligadas aos maus-tratos e a intimidação, praticadas entre companheiros escolares
11
durante seu convívio interpessoal cotidiano. A denominação utilizada para definir esta forma
específica de agressão proveio da língua inglesa: bullying, que significa opressão,
intimidação, agressão, assédio. Cunhado pioneiramente pelo pesquisador sueco Dan Olweus
(1978), o termo reflete o abuso de poder praticado em ambientes escolares através da
utilização de um subconjunto de comportamentos intimidativos caracterizados pela sua
repetição incessante contra uma mesma vítima; pelo desequilíbrio de poder entre o agressor e
o agredido; pela ausência de motivos que justifiquem a realização dos ataques; e pelas
sequelas psicoemocionais que podem deixar em todos os envolvidos (FANTE; PEDRA, 2008,
pp. 33-41).
Ainda de acordo com os últimos autores, esta forma de intimidação é o reflexo de uma
dinâmica psicossocial expansiva que integra um número cada vez maior de crianças e
adolescentes ao redor do mundo, independente do gênero, etnia ou sexualidade, por exemplo.
Tal agressão manifesta-se através de comportamentos variados que vão desde a agressão
física, ameaças ou imputação de apelidos pejorativos, podendo também culminar na prática de
imposição de isolamento social ou de silêncio coletivo contra a vítima. Embora a escola tenha
sido identificada como o cenário mais propenso a manifestação de sua ocorrência, o bullying
também pode se desencadear em outros ambientes de convivência interpessoal, tais como no
trabalho (workplacebullying ou assédio moral); nas forças armadas; na vida familiar; nas
prisões; nos asilos etc. Pode igualmente se estender para o ambiente virtual, na forma de
intimidações e ameaças que se fortalecem com o auxílio de redes sociais, de celulares ou
chats virtuais (Ciberbullying).
A presente dissertação de mestrado, que representa uma continuidade investigativa da
minha monografia de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais no ano de 2010,
tem como objetivo geral problematizar sociologicamente a construção epistemológica do
conceito de bullying escolar feito por estudiosos e especialistas do assunto, buscando
estabelecer um diálogo entre a sociologia (novo lócus teórico) e a literatura científica
tradicional que há muito concebe o fenômeno bullying. O interesse pelo tema, por sua vez,
emergiu de uma motivação pessoal e de outra acadêmica: a primeira está ligada ao fato de que
a agressão bullying esteve presente em momentos distintos da minha vida escolar, ou seja,
durante o final da infância e, depois, na adolescência, na condição de vítima desta forma de
intimidação; e a segunda relaciona-se a incessante busca pessoal por respostas científicas para
compreender o porquê da minha vitimização no ambiente escolar, um espaço que outrora eu
supus seguro, pacífico e feliz.
12
Do ponto de vista acadêmico, o ponto de partida para alcançar estes propósitos nasceu
da leitura pessoal que fiz durante a graduação sobre a dissertação de mestrado da
pesquisadora Deborah Christina Antunes (2008) intitulada Razão Instrumental e Preconceito:
Reflexões sobre o Bullying. Contando com uma abordagem inédita em que aponta o caráter
ideológico que subjaz toda discussão atual sobre o conceito de bullying, aquela autora
denuncia, fundamentando-se em determinados referenciais teóricos da sociologia (tais como
os conceitos de Razão Instrumental e de Preconceito oriundos da perspectiva teórica da
Escola de Frankfurt), como a definição deste fenômeno faz parte de uma ciência
instrumentalizada que serve para a readaptação das pessoas a mesma ordem social do qual
outrora emergiram, ordem esta que, em seus fundamentos, permanece irretocável, desigual e
opressora. Em outros termos, embora a maioria dos estudos e pesquisas tradicionais sobre a
temática bullying permita uma visualização quantitativa (estatística) sobre o problema graças
a grande quantidade de dados, de projeções numéricas e de perfis comparativos que oferta ao
leitor, estes não são suficientes, por si só, para fornecer uma percepção profunda e crítica das
realidades interpeladas. Conforme atesta Antunes (2008), falta a estas pesquisas, em meio a
sua enxurrada de dados numéricos devidamente articulados, uma reflexão com impulso
crítico, uma análise sociológica que lhes permita interpretar estes dados, estes números e suas
resoluções estatísticas, problematizando-as a partir de suas influências sociais, culturais,
políticas e históricas.
Do exposto acima, busco tecer algumas considerações que, doravante, se expressarão
nos objetivos específicos deste trabalho. Em primeiro lugar, aponto o caráter evidentemente
ideológico do conceito bullying, uma vez que o mesmo, em sua tentativa de corrigir os
prejuízos produzidos no contexto de relações sociais escolares, busca reinserir (mediante uma
série de intervenções morais, psicoterápicas e médicas sobre os protagonistas da agressão) os
envolvidos na intimidação à mesma ordem social que outrora serviu de base para a
emergência do conflito, permanecendo, assim, imanente, irretocável e inquestionada. Neste
caso, o conceito de ideologia surge como alento para nortear as reflexões sobre esta etapa da
discussão, em que se busca apontar o caráter ideológico por trás desta agressão.
Em segundo lugar, na maioria das pesquisas que buscam produzir explicações sobre a
questão do bullying, os estudiosos admitem ao longo de suas análises a incidência de fatores
sociais, culturais ou econômicos na irrupção do problema. Todavia, estes são tratados em suas
pesquisas como “fatos naturais”, ou seja, como elementos não passíveis de uma
problematização ou intervenção crítica, o que culmina no distanciamento desta forma de
violência das contradições sociais que indubitavelmente a produziram e desencadearam.
13
Cabe, neste momento particular da discussão, desconstruir a ideia subjacente de que uma
suposta ação da natureza existiria anterior à atuação da cultura, debate profícuo no campo
sociológico, e apontar como alguns estudos sobre o bullying feitos ao redor do mundo –
especialmente aqueles provenientes das ciências médicas e naturais, saberes tradicionais que
correntemente consagram como “verdadeiro” o que afirmam sobre o fenômeno –, que
medicalizam e naturalizam os comportamentos socioculturais dos protagonistas, como se
estes fossem efeitos exclusivos de sua biologia, decorrentes de uma suposta herança genética,
de instintos ou de uma natureza outra.
Por último, intenta-se apontar nesta dissertação que, a despeito de uma suposta
natureza, instinto ou herança genética imaginada pelos estudiosos tradicionais do tema, os
sujeitos humanos são desde sempre seres culturais e que, como tal, constroem suas existências
de acordo com sua cultura e história. Trata-se, portanto, de afirmar a ideia da primazia
absoluta da cultura sobre a configuração do indivíduo humano. No âmbito deste enfoque,
recorro particularmente aos estudos sociológicos atuais em torno das questões de gênero,
ideologia e produção do discurso para vislumbrar a distinção entre a forma de agressão
bullying masculina e a sua correspondente feminina, destacando como a cultura é um fator
distintivo na construção histórica dos sujeitos e de suas sociabilidades.
A partir de tudo o que foi anteriormente delineado, o primeiro capítulo, intitulado “A
escola como palco para a prática de bullying: um enfoque crítico-construcionista” busca ao
longo de suas páginas desconstruir criticamente um dos principais pilares que sustentam a
ideologia inerente a fenomenologia bullying: a ideia de que uma natureza, de ordem
metafísica, religiosa, celestial, biológica etc., precede ou se antecipa a cultura na construção
dos sujeitos humanos. O argumento que utilizo para refutar esta hipótese, bastante defendida
pelos tradicionais estudiosos do tema central deste trabalho, provém majoritariamente das
ideias do sociólogo Alípio de Sousa Filho acerca daquilo que intitula como teoria
construcionista crítica da realidade social: trata-se de uma síntese de pressupostos, postulados,
ideias e conclusões provenientes do universo de estudos sobre indivíduo, cultura e sociedade
(realizados pela antropologia, sociologia e história principalmente) que convergem em direção
à premissa central de que toda realidade humano-social é produto de construção humana,
cultural e histórica. Em outras palavras, trata-se de uma concepção que vislumbra a realidade
social como resultado da ação dos próprios seres humanos de acordo com suas peculiaridades
histórico-culturais. Nesta perspectiva, portanto, não há um “antes” da cultura, uma
“substância” ou “natureza” do qual os homens seriam antecipadamente portadores e do qual
herdariam espontaneamente seus traços de personalidade, hábitos, idiossincrasias,
14
temperamentos etc. A crítica sobre o papel da instituição escolar moderna neste processo de
segregação dos sujeitos e produção cultural de suas agressividades, tais como a intimidação
bullying, também será parte importante do debate deste capítulo.
Se o objetivo anterior é desconstruir o argumento biologizante e essencialista, que
credita às emoções, desejos e vontades humanas uma origem supostamente
biológica/natural/instintiva, a partir do argumento construcionista crítico; o segundo capítulo
parte para uma análise mais específica, agora em torno da forma de agressão praticada entre
meninos no ambiente escolar. Intitulado “Entre ameaças, socos e pontapés: notas sociológicas
sobre o bullying escolar praticado entre meninos”, esta parte do trabalho se debruça numa
reflexão sobre as agressões física, direta e com danos materiais praticados entre meninos no
espaço escolar. Ao contrário das garotas, que se utilizam da dissimulação e da manipulação
social em suas intimidações, os meninos geralmente partem de imediato para o confronto
físico no intuito de resolver instantaneamente suas demandas. Nesta parte da pesquisa,
objetiva-se destacar como a cultura gerencia e distingue a produção de modelos de ser e de
existir diametralmente opostos entre os gêneros humanos, culminando em representações de
agressividade igualmente diferentes. As noções sociológicas acerca de gênero e ideologia
sustentarão a discussão neste momento específico do trabalho.
No terceiro capítulo, intitulado “Íntimas, inimigas e dissimuladas: notas sociológicas
sobre o bullying escolar praticado entre meninas” percorre-se um caminho similar ao feito no
capítulo anterior, agora sob a perspectiva de análise em torno da agressão entre meninas. Em
outras palavras, busca-se compreender a intimidação feminina através de um processo
comparativo em relação à masculina, visto que enquanto os punhos e o corpo são as armas
preferidas para resolver os conflitos entre garotos, as meninas usam o silêncio, seus
relacionamentos e sua intimidade para destruir suas vítimas, mantendo uma fachada de doçura
perante os adultos que torna sobremaneira difícil a detecção desta forma de agressão mútua.
Os conceitos de gênero e ideologia mais uma vez fundamentarão esta etapa da dissertação,
bem como a questão da forma de produção do discurso que celebra esta imposição distintiva
entre a expressão da agressividade masculina e a feminina.
No quarto capítulo, denominado “Entre a teoria e a prática: o bullying analisado
através da modalidade entrevista”, procura-se analisar comparativamente duas entrevistas
estruturadas sob a modalidade história de vida, na qual uma professora universitária
aposentada e uma jovem profissional da área da saúde relatam em depoimentos distintos suas
experiências pessoais com o bullying e a forma como lidaram com a agressão no decorrer de
suas trajetórias biográficas. O interessante a se perceber é que, embora pertençam a gerações
15
históricas distintas, as nuances da agressão bullying entre meninas relativamente se repetem
em ambas as histórias. A utilização da entrevista sob a perspectiva de história de vida focaliza
uma etapa ou um determinado setor da experiência pessoal colocada em questão. (MINAYO,
1996). Objetiva-se que as entrevistadas retratem o conjunto específico de suas experiências
intimidativas de forma retrospectiva. Portanto, a biografia de ambas será retomada a partir de
um recorte parcial, abordando apenas informações pertinentes ao contexto temático de
interesse do entrevistador. A postura metodológica no ato da entrevista, tal como
recomendada por Pierre Bourdieu (2008) em sua obra A Miséria do Mundo, serviu como
parâmetro para a forma de condução ou do rumo das intervenções.
Embora se trate de um trabalho de natureza predominantemente teórica, a presente
dissertação, além da realização das entrevistas anteriormente mencionadas, fará menções a
alguns episódios históricos de violência bullying que ganharam destaque midiático no Brasil e
no mundo. Tais menções ocorrerão de forma corrente ao longo da discussão, sem
necessariamente se ater em detalhes sobre um ou outro episódio. Antes de conscientizar em
prol da tolerância, este trabalho almeja resgatar o real sentido da palavra alteridade. Não se
objetiva, portanto, ensinar aqui sobre como os atores sociais devem suportar uns aos outros
em seu complexo contexto de diferenças e de pluralidades; nem de demonizar esta ou aquela
forma de intepretação científica que trate da questão do bullying por meio de diferentes
prismas metodológicos e teóricos. Trata-se, antes, de se destacar a importância da riqueza das
diferenças humanas enquanto fonte necessária ao seu próprio progresso existencial,
enfatizando como o bullying pode ser converter num obstáculo significativo nesta busca de
reconhecimento global e positivo da diversidade humana enquanto fonte inesgotável de
progresso existencial.
16
1 A ESCOLA COMO PALCO PARA A PRÁTICA DE BULLYING:
UM ENFOQUE CRÍTICO-CONSTRUCIONISTA
1.1 A INQUIETAÇÃO PESSOAL EM RELAÇÃO AO BULLYING1: UM BREVE
RELATO AUTOBIOGRÁFICO
As experiências mencionadas nesta subseção, por questão metodológica, serão
subdividas em dois momentos distintos de análise: a primeira fase de agressão, que segue do
final da infância até a metade da adolescência; e a segunda fase de intimidação, vivida durante
todo o ano do pré-vestibular. Todas elas serão narradas na primeira pessoa do singular, não
obedecerão a uma sequência cronológica linear e não serão pontuadas em detalhes
específicos. O intuito é refletir, antes de tudo, sobre minhas vagas reminiscências em torno
daquilo que outrora interpretei como “experiências intimidativas pessoais”. Historicamente,
tais experiências tiveram início na minha pré-adolescência, estendendo-se até os quinze anos;
e após breve pausa, voltaram a se repetir no ano de pré-vestibular, cessando no início da
minha vida acadêmica. Trata-se de percepções que, embora subjetivas, serão analisadas de
maneira objetiva e sistemática, à luz das reflexões, análises e estudos científicos que
tradicionalmente concebem a violência bullying. Por questões de privacidade, não serão
mencionados nomes de personagens e nem detalhes de espaços ou ambientes que
comprometam a integridade do entorno escolar, palco das intimidações.
O período compreendido entre o final da minha infância e meados da adolescência,
entre os nove e quinze anos de idade e que foi vivido durante o início da década de 1990,
correspondeu à primeira fase da agressão. Nele, as relações interpessoais entre meus colegas
de classe paulatinamente adquiriam um caráter irascível e veemente, no que tange a expressão
de suas emoções e comportamentos através de demonstrações exacerbadas e frequentes de
virilidade, que finalmente se materializavam em brigas, ameaças e intimidações. Embora
encarasse este cenário como algo natural, diante do processo de desenvolvimento das
personalidades adolescentes, fui uma exceção clara a tal regra de convivência, já que demorei
a me afastar das práticas, brincadeiras e costumes típicos da infância. Alguns colegas, porém,
1 O bullying é uma forma de agressão desencadeada em diversos espaços de convivência interpessoal, tais como
ambiente de trabalho, igreja, forças armadas, prisões, etc. (FANTE 2005). Nesta dissertação, porém, o uso desta
palavra doravante se referirá exclusivamente a uma manifestação inerente apenas aos ambientes de natureza
educacional, tais como escolas, universidades e faculdades.
17
não demonstraram concordância com minha personalidade infante em um período marcado
pela plena ascensão à juventude.
Apesar de a minha escola ser católica, a nossa vivência religiosa estava circunscrita a
momentos pontuais do cotidiano escolar, tais como a oração matinal diária e algumas
comemorações em alusão às festividades específicas. No tempo restante, nos dedicávamos às
atividades pedagógicas de praxe, de acordo com o itinerário formativo proposto pela
instituição. As meninas, por um lado, se organizavam em grupos específicos de amizade,
enquanto os meninos, por outro, eram mais genéricos em suas interações interpessoais, já que
os esportes coletivos, tais como o futebol, ensejavam uma integração geral do grupo. Embora
fizesse parte do conjunto universal de colegas da sala de aula e participasse de algumas
disputas e brincadeiras, me reunia com mais frequência com três amigos específicos por mera
questão de afinidade e gostos em comum. Neste círculo específico de amizade, ainda
estávamos particularmente encantados pela magia da infância, por seus temas e suas
brincadeiras. As “experiências intimidativas pessoais”, definição que utilizei para dar nome as
minhas vivências com o bullying, passaram a fazer parte do meu cotidiano escolar justamente
quando o grupo geral de garotos da turma passou a discordar da forma de convivência do
nosso círculo de amizade específico, momento em que nossos hábitos passaram a ser
comparados com as suas práticas “maduras e adolescentes”, o que os motivou a nos perseguir
por destoarmos do padrão estabelecido de convivência da sala.
As principais agressões que sofri foram verbais, especialmente na forma de apelidos e
constrangimentos coletivos, tendo como plateia os demais alunos da sala. Embora ainda
considerasse a todos como amigos, eu começava a partir de então a desconfiar de suas
verdadeiras atitudes e intenções, especialmente quando passei a ser o alvo central dos ataques.
Apesar de sofrer com tudo que acontecia, procurava interpretar aquele conjunto de
hostilidades como questões de temperamento oriundas a falta de amadurecimento pessoal
típica dos adolescentes. Pelo menos foi com este discurso que aliviei parte da angústia que
sentia, esperando um dia que aquilo finalmente se encerrasse. Porém, além de não cessarem,
as intimidações ainda perduraram até a segunda metade da minha adolescência, por volta dos
quinze anos, quando finalmente resolvi mudar de turma para encerrar a perseguição que sofria
através de apelidos, escárnios e constrangimentos públicos. É importante destacar aqui que os
intervalos para o lanche e os horários de entrada e saída em sala de aula eram os momentos
preferidos para se perpetrar as agressões, sempre feitas pelo grupo geral de colegas homens e
pautadas principalmente na atribuição de apelidos desqualificadores da minha imagem
estética, do meu vestuário e da minha sexualidade. Nunca compreendi o porquê de ser o alvo
18
“preferido” da turma (até o momento em que finalmente me deparei com a literatura científica
pertinente ao tema, já no período da graduação). Quanto aos professores, resta salientar que
alguns deles se omitiam quando testemunhavam as agressões e outros eram coniventes com
os episódios, embora jamais fizessem algo para estimulá-los.
De acordo com Fante e Pedra (2008, p. 41), “o bullying nasce da recusa a uma
diferença, da intolerância e do desrespeito ao outro”. Trata-se, portanto, de uma forma de
assédio escolar que ocorre na perspectiva oculta, ou seja, de maneira velada, longe da
supervisão dos adultos. Consiste, portanto, no abuso de poder entre escolares que não se
evidencia como manifestação de violência explícita, sendo intrínseca às relações interpessoais
dos alunos. Embora seja encarado por muitos estudiosos como um fenômeno novo por se
constituir como objeto de investigação apenas nas últimas décadas do século 20 (FANTE,
2005b); também é interpretado como um fenômeno bastante antigo por sempre ter existido
nas relações escolares e por ter passado despercebido da maioria dos profissionais da
educação durante muito tempo.
Retomando a narrativa: de fato, foi nos momentos de maior ausência da supervisão
dos adultos que percebi que as agressões se manifestavam com maior intensidade. Também
em espaços pouco policiados da escola, tais como o ginásio e as áreas de lazer coletivo,
ocorria boa parte daquelas intimidações. Não à toa, segundo os autores citados no último
parágrafo, a maioria das escolas pesquisadas por muitos estudiosos ainda não estaria
preparada para lidar francamente com a questão em sua realidade interior, seja por puro
despreparo de seus profissionais, seja por descaso em relação ao problema ou ainda por medo
de admitir a existência do fenômeno em suas dependências e consequentemente perder
alunos. Ainda de acordo com Fante e Pedra (2008):
A intimidação bullying ocorre e sempre ocorreu em todas as escolas,
independente de sua localização, turno ou poder aquisitivo da comunidade
escolar [...] tem no pátio de recreio o seu lugar de maior incidência agressiva
[...] ocorre num duplo movimento – de dentro para fora da escola e vice-
versa, o que explica muitas agressões e tragédias nas imediações escolares,
praças públicas e ruas [...] e concentra nos maus-tratos verbais, mediante
apelidos depreciativos, sua maior incidência de ataques (FANTE; PEDRA,
2008, pp. 45-52-53-54).
Contudo, outro dado chocante mencionado pelos autores supracitados me chamou a
atenção: o fato de o bullying se propagar, cada vez mais, na educação infantil no ensino
fundamental e médio. Embora os papéis dos protagonistas da agressão se definam com maior
clareza entre o sexto e o nono ano do ensino fundamental, é no ensino médio que as agressões
19
adquirem maior gravidade, intensidade e qualidade, tornando-se mais coletivas e genéricas. É
nesta etapa da vida escolar, portanto, que começo a narrar aqui a segunda fase da intimidação
– período correspondente ao meu último ano escolar, ou seja, o período de pré-vestibular.
Após mudar de sala na metade do ensino médio, vivi um período de relativa
tranquilidade quanto à imputação de apelidos e agressões verbais, conforme outrora sofri com
a minha turma anterior. No período de pré-vestibular, especificamente no ano de 1999, era
costume pedagógico da escola de promover um rearranjo ou redistribuição entre as turmas e
os alunos de acordo com o seguinte critério: cada sala de aula deveria comportar, a partir de
então, os discentes que fizessem parte da mesma área científica que almejavam ingressar na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Desta maneira, uma sala representaria, por
exemplo, os alunos que comungavam por interesses em cursos das Ciências Humanas; outra
turma, por sua vez, comportaria os alunos das Ciências Exatas; e assim sucessivamente. Com
esta forma específica de organização e distribuição, me vi novamente diante dos meus antigos
algozes, agora na sala de aula do pré-vestibular e eles não perderam tempo em retomar as
intimidações verbais do passado, mediante a imputação repetitiva e incansável de apelidos
depreciativos. O ano de 1999, portanto, seria mais difícil de suportar do que os anteriores.
Minha condição de vítima, a despeito das mudanças pelo qual passei com a progressão
da idade, ainda me tornava presa fácil para as novas agressões que surgiram. Desta forma,
ainda não encontrava, com 17 anos de idade, meios adequados para responder aos ataques,
somando-se a este fato o agravante de que estávamos em ano de preparação para o vestibular,
o que demandava maior primor pelos estudos. Aqui é oportuno destacar que, quando saí em
busca de explicações durante o período de graduação, verifiquei que uma das características
centrais de toda agressão bullying é o “desequilíbrio de poder, o que dificulta a defesa da
vítima.” (FANTE; PEDRA, 2008, p. 39). Mas, do que se trata afinal este desequilíbrio?
Segundo os autores:
O desequilíbrio de poder é caracterizado pelo fato de que a vítima não
consegue defender-se com facilidade independente da sua idade ou estatura
física, nem motivar outros para que a defendam. Geralmente, os ataques são
produzidos por um grupo de agressores, o que reduz as possibilidades de
defesa das vítimas. As estratégias de ataque normalmente são ardilosas e
sutis, expondo, as vítimas a vergonha e ao constrangimento público. Entre os
praticantes de bullying evidencia-se a insegurança pessoal, por isso a escolha
das vítimas é feita, preferencialmente, contra aqueles que não dispõem de
habilidades de defesa. Outro fator que se evidencia é a habilidade de
liderança, de influência e de persuasão. Normalmente, os bullies são muito
habilidosos em sair-se bem de situações difíceis, especialmente quando
indagados sobre seus atos agressivos. (FANTE; PEDRA, 2008, p. 40).
20
A agressão bullying só se tornaria um tema razoavelmente inteligível para mim ao
longo dos anos de graduação em Ciências Sociais pela UFRN, todavia, este curso não se
constituiu como minha primeira opção de vestibular. Ao terminar o ensino médio e junto com
ele ter se encerrado o sofrimento decorrente de um ano tumultuado e marcado por
intimidações até o último dia, escolhi realizar o vestibular para o curso de Psicologia na
UFRN, que abandonei após um ano de estudos; ainda tentaria depois cursar outra carreira no
campo das Ciências Exatas antes de finalmente chegar onde queria. A busca de respostas no
campo da Psicologia foi em vão, seja pela não identificação pessoal com o curso, seja pelas
tintas com cores vívidas que ainda insistiam em pintar a minha mente com lembranças
negativas do sofrimento que vivi durante parte da vida escolar, deixando-me inseguro e
confuso sobre o que naquele momento aspirava para o meu futuro. Afinal de contas, conforme
Cury (2003) destaca em sua obra, a experiência bullying é traumática ao psiquismo de suas
vítimas não apenas pela forte carga emocional de constrangimento vivenciada, mas também
pelas cadeias de pensamentos destrutivos que se constroem e que aprisionam a mente da
vítima num circuito traumático de lembranças que deixam marcas biopsicossociais bastante
duradouras. E estas marcas, por mais que não quisesse, ainda duraram em mim por muito
tempo.
1.2 A INQUIETAÇÃO ACADÊMICA EM RELAÇÃO AO BULLYING: O
CONSTRUCIONISMO CRÍTICO COMO ESCOLHA METODOLÓGICA
Embora a vida escolar tivesse se encerrado no ano de 1999, as marcas do sofrimento
permaneceriam indeléveis no decorrer da minha vida universitária. No ano de 2004 prestei
meu último exame vestibular, desta vez para o curso de Ciências Sociais da UFRN, sendo
aprovado em segundo lugar geral. Sempre alimentei um espírito inquieto perante as
sistematizações sociais e políticas tradicionais ou modernas, tais como as formas de
organização pedagógica e institucional do espaço escolar; os modelos erigidos de ser e agir
reproduzidos em sociedade; as formas de sociabilidade humana delineadas pela cultura
predominante de uma dada realidade; o papel exercido pela religião na vida individual e
coletiva; as indagações populares sobre a democracia brasileira etc. Eram muitas as
inquietações e curiosidades que me atinavam, mas nenhuma delas era maior do que a sede em
compreender a problemática bullying. Durante o início da graduação, me lancei
primeiramente na leitura exploratória de uma série de autores que tratavam deste tema,
sempre apoiados por teorias, conceitos e métodos provenientes das Ciências médicas e
21
Comportamentais. No âmbito nacional, por exemplo, recorri a autores como Cleodenice Fante
(2005a; 2005b; 2008), José Augusto Pedra (2008), José Augusto Cury (2003), Aramis Lopes
Neto (2003; 2005), Lélio Braga Calhau (2009), Ana Beatriz Barbosa Silva (2010), Gabriel
Chalita (2008), entre outros tantos. No campo internacional, por sua vez, mergulhei nas ideias
de Alessandro Costantini (2004); Dan Olweus (1978); Rachel Simmons (2004); Jane
Middlelton-moz e Mary Lee Zawadski (2007). Adicionem-se a este cabedal de leitura as
pesquisas feitas em cartilhas, reportagens jornalísticas, depoimentos de celebridades, artigos
de opinião etc. Começava, a partir daquele momento, a aplacar minhas desavenças com o
passado assombrado pelo fantasma do bullying.
Após três anos de ininterruptas leituras, agora articuladas com as reflexões
sociológicas que adquiri na vida acadêmica, comecei a refletir sobre como investigar esta
problemática no âmbito das Ciências Sociais. Foi neste momento que a questão bullying
passou a ser encarada por mim não mais apenas como uma simples fonte de respostas para os
dilemas do passado, mas como um possível objeto de estudo científico que a meu ver ainda
carecia de certa atenção por parte das Ciências Humanas, em geral, e pela Sociologia, em
particular. Mas, de que tipo de atenção se tratava?
A inquietação acadêmica (de caráter objetivo e científico) materializou-se
precisamente no período de conclusão da graduação no ano de 2009 através do trabalho de
monografia2. Embora já tivesse amplo domínio sobre o tema em geral, percebi que a
abordagem científica que o atravessava se fazia sempre à luz do discurso científico
proveniente das Ciências Médicas e Comportamentais (ou seja, da medicina pediátrica,
psicologia, psiquiatria e psicopedagogia)3. Isto significa afirmar que boa parte do que se
concebe e se produz no âmbito da ciência acerca do fenômeno bullying reverbera-se em
intepretações teóricas, conceitos e metodologias que vislumbram muito mais o impacto
patológico/psicológico direto que a agressão proporciona aos seus protagonistas do que o
ônus que a ordem social tem na reprodução da desigualdade, do preconceito e da ausência de
alteridade nas relações interpessoais humanas, inclusive, no interior da escola. Em outras
palavras: 1) há uma desatenção por parte da literatura tradicional que trata da agressão em
relação às mediações sociais que influenciam a irrupção dos comportamentos dos personagens
2 Monografia esta intitulada BULLYING ESCOLAR: Uma problematização crítico-construcionista do conceito
de bullying (UFRN, 2009). 3 É importante frisar que, nesta análise, não incluo a psicologia social no rol das disciplinas que adotam uma
concepção essencialista da realidade humano-social (tal qual fazem a psicologia evolucionista, a psicobiologia e
a sociobiologia, por exemplo). Ao contrário das outras, a psicologia social empreende a tarefa de conhecer o
indivíduo tanto no conjunto de suas relações sociais como naquilo que lhe é específico, sem desmerecer a cultura
como mola propulsora da construção humana. (MILITÃO 2005 p. 5).
22
desta agressão. 2) também é prevalente o discurso patologizante ou medicalizante que
recorrentemente atribui a culpa pelo problema inteiramente aos protagonistas do assédio
escolar, deixando de lado a análise crítica sobre o papel da cultura e da ordem social na
produção de suas maneiras de ser, de agir e de se relacionar.
É importante frisar, no entanto, que neste paradigma tradicional que legitima o que se
compreende sobre o fenômeno bullying, nem todas as áreas da psicologia ou de outras
ciências, por exemplo, comungam unanimemente do discurso essencialista e patologizante
que aufere aos protagonistas da agressão uma suposta responsabilidade ontológica pelo que
fazem. O exemplo mais claro, conforme atesta FARR (2004), é a própria psicologia social e
seu viés dialético de análise do indivíduo em conjugação cultural com a sociedade: a
construção social do sujeito aliada as suas disposições psicoemocionais culminam na
produção de seres humanos.
Além destas constatações iniciais, uma nova verificação pessoal a partir das leituras
exploratórias chamou minha atenção: o fato de a maioria destes estudos científicos, que
tomam a temática bullying como objeto de estudo, utilizarem, predominantemente,
metodologias quantitativas para produzir suas interpretações. Ou seja, se utilizam de diversas
técnicas estatísticas para levantamento de dados sobre as realidades pesquisadas e procedem
no uso do método comparativo como forma de confrontar os diferentes estudos produzidos
para, posteriormente, construir um panorama ou mapa que permita uma interpretação objetiva
da realidade bullying. Acerca do que foi dito acima, é importante destacar que:
Os estudos com base apenas em dados estatísticos e no diagnóstico de sua
ocorrência, as intervenções baseadas em modelos de uma educação pré-
determinada, assim como sua fácil assimilação e ampla divulgação pelos
meios de comunicação de massa, o desolamento causado por suas
consequências e a inquestionável necessidade de intervenção via imperativos
morais, denunciam, ainda que apenas pelas lacunas, que tal conceito faz
parte de uma ciência instrumentalizada e a serviço da adaptação das pessoas
para a manutenção de uma ordem social desigual. É importante que se
questione a finalidade do conceito criado pelos pesquisadores da área e
adotado inteiramente por alguns colegas brasileiros. Pensar até que ponto a
classificação possibilitada pela adoção desta tipologia da violência não
mascara os processos sociais inerentes aos comportamentos classificados
como bullying, ou mesmo admitindo a existência de tais processos, ao tratá-
los como naturais, é o primeiro passo que uma ciência deve dar, se o seu
objetivo é, de fato, contribuir para o desenvolvimento da humanidade e não
para a mera adaptação dos indivíduos. (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 35).
Embora na monografia eu tenha tangenciado o caráter ideológico por trás do conceito
e do discurso que subjazem as verdades em torno do fenômeno bullying, aquele trabalho
23
apenas representou um primeiro passo na tentativa de articulação entre a ciência sociológica e
a concepção tradicional que trata cientificamente da violência bullying. Esta dissertação de
mestrado, portanto, representa um aprofundamento da discussão iniciada outrora na
graduação, agora tomando como referência novas categorias de análise do campo sociológico,
dentro de uma perspectiva interdisciplinar. O objetivo agora é de proporcionar elucubrações
sociológicas acerca desta forma de agressão que aqui é estudada e abrir novas possibilidades
de intepretação que destaquem a importância dos fenômenos sociais no desencadeamento de
todas as engrenagens desta dinâmica agressiva, desde a formação dos personagens envolvidos
até a manifestação da intimidação em si.
Dessa forma, a primeira preocupação que surge é de natureza metodológica, ou seja:
como promover um diálogo interdisciplinar entre estudiosos que insistem em amalgamar os
campos da cultura e da natureza – tal qual fazem os especialistas que tradicionalmente
investigam o fenômeno bullying – e o grupo de autores provenientes do campo das Ciências
Humanas, especialmente aqueles que concebem o homem como o resultado de um constructo
cultural e histórico? Afinal de contas, conforme será argumentado neste trabalho, a cultura
contribui decisivamente para a configuração da maioria dos elementos característicos deste
contexto agressivo específico.
Para iniciar a discussão, tome-se como exemplo a fala de Cleo Fante (2005b), que em
uma de suas obras dedica um capítulo inteiro a explicar como alguns conceitos e teorias do
âmbito da medicina ou da psicologia, por exemplo, são proeminentes na explicação sobre o
desencadeamento da violência e da agressividade entre jovens. Embora admita em sua fala a
existência de uma suposta polissemia atrelada a alguns destes termos, o que suscita diferentes
interpretações, ela destaca que fatores biológicos ou cognitivos é que se tornam decisivos na
irrupção do fenômeno bullying. Sobre a agressividade, por exemplo, ela pontua:
Concluímos lembrando que o comportamento agressivo surge como
resultado de uma elaboração afetivo-cognitiva, fruto das experiências
vivenciadas pelo indivíduo, que se torna motivadora de processos
inconscientes capazes de atribuição de valores e ressignificação de
conteúdos à realidade, originando conduta e sentimentos de ira que, uma vez
estimulados, alimentam e sustentam a conduta agressiva, fugindo muitas
vezes ao controle voluntário do indivíduo, por ter sido condicionado a
utilizá-la como forma de resolução de conflitos e de satisfação dos desejos
de realização pessoal. (FANTE, 2005b, p. 167).
Por sua vez, Almeida e Medrado (2007) delineiam em seu artigo acadêmico o perfil de
um hipotético agressor de bullying, onde são enfáticos ao admitir a interferência de
24
componentes biológicos na constituição do comportamento agressivo de um provável
agressor:
“Bully” que quer dizer brigão, valentão, tirano, exprime atitudes agressivas
intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, causando
dor e intimidação em suas “vítimas”. Pode-se aliar a isso a efervescência
hormonal e a necessidade de autoafirmação, fatos típicos da adolescência
podendo-se chegar a uma receita explosiva. (ALMEIDA e MEDRADO,
2007, p.1).
Por último, destaquem-se as palavras de Aramis Lopes Neto (2005), que deixam no ar
a seguinte dúvida: seria possível a existência de indivíduos naturalmente predispostos a sofrer
ou a praticar bullying em suas relações interpessoais futuras?
Existem dúvidas se os danos à saúde precedem o bullying ou se são esses
atos que afetam a saúde dos alvos. O estresse causado pela vitimização
poderia levar ao surgimento de patologias, mas as crianças e adolescentes
com problemas como depressão ou ansiedade podem se tornar alvos de
bullying. Poucos estudos investigaram essa relação, mas as duas hipóteses
contam com forte apoio. A intervenção precoce, tanto com relação aos alvos
quanto aos autores, pode reduzir os riscos de danos emocionais tardios.
(LOPES NETO, 2005, p. 168).
Este conjunto de citações evidencia uma postura bastante comum na literatura
científica produzida por aqueles que se propunham a estudar e conceber as verdades sobre a
fenomenologia bullying. Nesta forma de concepção, admite-se a presença palpável de uma
suposta metafísica da substância ou da essência anterior aos sujeitos humanos, que em algum
momento de suas vidas lhes desencadearia ou impulsionaria a se constituírem como reais
agressores, vítimas ou espectadores num hipotético contexto de intimidação.
Também é comum, na maioria dos escritos que advogam o ponto de vista supracitado,
a presença de uma taxonomia detalhada que perfila de maneira contundente o comportamento
ou a conduta de um potencial agressor, vítima ou espectador. Como exemplo disso, Aramis
Lopes Neto (2005) dedica uma parte de seu artigo científico a examinar precisamente as
específicas características dos personagens de uma intimidação bullying, destacando como
certos fatores naturais ou biológicos definiriam o modo de ser e agir de cada um dos
respectivos atores. Sobre os agressores, ele menciona que “fatores individuais também
influem na adoção de comportamentos agressivos: hiperatividade, impulsividade, distúrbios
comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar
deficiente.” (LOPES NETO, 2005, p. 169).
25
Aqui surge o primeiro argumento que justifica a adoção, nesta dissertação, do
pressuposto construcionista crítico e, concomitantemente, a primeira crítica ao
discurso/literatura tradicional que concebe as verdades em torno da problemática bullying: “o
que funda o humano é o mundo dos objetos, signos, relações e instituições criados pelo
próprio humano. Fora deste entendimento estão os idealismos e substancialismos de todos os
matizes que propunham causas e efeitos fora da cultura e da história humana.” (SOUSA
FILHO, 2007, p. 8). Em outras palavras, a realidade social humana existente (incluindo as
dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) decorre das práticas culturais dos seres
humanos no decurso de suas histórias e nos diferentes espaços que se distribuem. “Línguas,
religiões, leis, normas sociais, valores, moral, sexualidade, ideias etc.” (SOUSA FILHO,
2007, p. 3) expressa em alguns exemplos este caráter de coisa construída da realidade social.
Segundo Sousa Filho (2007, p. 11), “uma teoria construcionista é um legado de muitos
autores e trabalhos nos diversos campos em ciências humanas e sociais, assim como de
filosofias.”. Seu fundamento central é o pressuposto da primazia da cultura sobre o indivíduo
humano, pelo qual não se admite a existência de nada lhes fundando que não provenha antes
da linguagem, da cultura e do social. Portanto, não existe um “antes” da cultura e da história
humana que porventura funde os sujeitos ou indivíduos, ou seja, supostos seres celestiais ou
divinos como elementos precursores do humano; heranças genéticas derivadas de uma
evolução ancestral que determinariam a existência individual e coletiva; características inatas
herdadas cromossomicamente de antepassados que explicariam o modo de ser de um
indivíduo etc. No entanto, o conceito de bullying tal qual concebido e enunciado pela
literatura científica hegemônica que se apropria de seu sentido, é categoricamente forjado
numa perspectiva essencialista, biologista e substancialista, deixando escapar os diversos
fundamentos sociais e culturais que lhe atravessam e definem.
É importante destacar que tal postulado construcionista não está isento de críticas por
parte de outros saberes científicos. Sousa Filho (2007, p.8-9), por ocasião do assunto, rebate
em seu texto a acusação feita por outras formas de conhecimento de que o pressuposto
construcionista crítico seria culturalista, reducionista e dogmático. Sobre o assunto, ele
argumenta que:
Aos que veem nisso uma ciência que apenas enxergaria “o que vem de fora”
(sic.) e não enxergaria “o que vem de dentro” (sic.), dicotomia curiosa e um
tanto cômica!, Aos que aderiram febrilmente à tese que imputa dogmatismo
e reducionismo às ciências humanas, por estas não praticarem a ciência-do-
meio-a-meio (metade cultura, metade natureza, entendimento que se vale da
epistemologia da “tolerância”, contra os “radicalismos”), o que se pode
26
recomendar é que façam escolhas coerentes. O ecletismo aligeirado e
acrítico de certas tendências hoje, pretensamente renovadoras das ciências
humanas, confundindo cultura e natureza, apenas tem servido para reforçar
representações do senso comum social a propósito da existência humana. E
sobre a acusação de dogmatismo, é bom lembrar que nenhuma teoria pode
pensar seriamente em atribuir a outra a pecha de ser dogmática sem aplicar a
si a mesma fórmula. E que se acrescente: na produção do conhecimento
teórico, não se pode ir muito adiante se não se confia na teoria com a qual se
trabalha ou nela se investe. Não se trata, entretanto, da ideia de um “modelo
fechado”, mas, como assinalado antes, uma visão compósita, aberta, de
sínteses, mestiçagens teóricas com interação metodológica. (SOUSA
FILHO, 2007, p. 9).
Portanto, quando se fala em primazia cultural sobre a construção humana, não se
busca em nenhum momento estabelecer argumentações puramente abstratas e desprovidas de
comprovação empírica. Afinal de contas, tal primazia se confirma por si só a partir dos dados
antropológicos e sociológicos que a demonstram largamente. (SOUSA FILHO, 2007).
O segundo argumento que justifica a adoção por esta pesquisa do construcionismo
crítico como ferramenta metodológica se ancora naquilo que Sousa Filho (2007) aponta como
uma necessária vocação crítica do cientista humano. Em outros termos, ser construcionista é
algo inerente à própria formação epistemológica do cientista humano e social, devendo esta
vocação se expressar primeiramente na oposição frente à dicotomia entre natureza e cultura e
na sua forma de conceber a existência do homem no mundo como algo inteiramente
cultural/social. Assim, por esta dissertação se tratar de um estudo interdisciplinar entre a
literatura hegemônica que trata da questão do bullying e a Sociologia, que entra como um
saber crítico em relação a esta forma usual de se conceber tal violência, nada mais coerente do
que se filiar a esta perspectiva metodológica supracitada como ferramenta de ação para
desconstrução do que tradicionalmente se estabelece no meio científico sobre o bullying.
O último argumento que justifica o caráter construcionista da organização
metodológica desta dissertação tem a ver com o fato da teoria em questão se organizar através
de sínteses/composições/mestiçagens provenientes de elaborações teóricas diversas de autores
do campo das humanidades ou mesmo através de modificações em seus sentidos originais,
onde todas elas estão articuladas coerentemente através de uma sistematização metodológica.
(SOUSA FILHO, 2007). Esta combinação ampla de teorias, retiradas de seus domínios de
origem, conforme destaca o autor, pode suscitar críticas entre aqueles que identificam
“mistura”, “salada” ou “confusão” no trabalho dos que buscam reconhecer aspectos comuns
nas diversas interpretações da realidade existentes no interior das ciências humanas. Quanto a
este aspecto, Sousa Filho (2007) deixa claro que:
27
De minha parte, não se trata de apagar a autonomia própria de cada
posicionamento teórico e suas particularidades, mas de apontar que posições
habitualmente vistas como “nada tendo a ver uma com a outra” (ideia
bastante reforçada nas mutilações praticadas no ensino universitário) estão
assentadas em fundamentos e conclusões comuns, que são possíveis
demonstrar, e entre elas tornando-se possível produzir interações
metodológicas importantes. (SOUSA FILHO, 2007, p. 5).
Portanto, o construcionismo crítico se consolida como a alternativa metodológica que
regerá a organização das ideias e argumentos desta dissertação, na medida em que permite
uma articulação metodológica coerente entre autores fundamentais das ciências humanas, que
em comum concebem a primazia da cultura e do social sobre a construção da realidade
histórica dos indivíduos em seus diferentes espaços de convivência. Trata-se, como já dito, de
uma vocação crítica que permite a qualquer cientista humano/social se opor a velha dicotomia
entre natureza e cultura, a partir do que alega o seu postulado central: o de que a realidade
social é resultado da ação de construção dos próprios seres humanos, de acordo com suas
diferenças culturais e etapas históricas. Entenda-se por realidade social todas as suas
dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas e por constructo as diversas estratégias,
ferramentas e artifícios culturais (língua, religião, moral, leis etc.) que servem como subsídio
aos indivíduos para nortear, compreender, aperfeiçoar e facilitar a sua existência no mundo.
1.3 A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FABRICAÇÃO DAS DIFERENÇAS E
DESIGUALDADES ENTRE OS INDIVÍDUOS
Após justificar a escolha metodológica que rege a elaboração desta dissertação, a
próxima abordagem será debater sobre o papel que as instituições de ensino desempenham na
irrupção de atitudes agressivas tais como o bullying. Como o leitor poderá visualizar nos
parágrafos a seguir, escolhi enveredar pelo campo escolar e pelo emprego da categoria de
gênero como instrumento de análise crítica nesta dissertação, devido ao significado especial
que estes marcadores têm para mim, uma vez que foi na escola mediante agressões
homofóbicas (apelidos, ameaças e questionamentos quanto a minha sexualidade) que
experimentei as maiores dores decorrentes da intimidação bullying em minha infância e
adolescência.
Para entender como as escolas ou universidades, concebidas como instituições
promovedoras da emancipação social dos indivíduos através da formação educacional,
28
reverberam em suas dependências atitudes de segregação, intolerância e exclusão, suscitadas
aparentemente por questões econômicas, étnicas, sexuais ou de gênero. (LOURO, 1997).
Sobre esta questão, uma indagação pode ser imediatamente levantada: qual a
relevância destes espaços pedagógicos no contexto das manifestações de atitudes agressivas
de intolerância e preconceito, tais como o bullying? Para responder a esta pergunta, tome-se
inicialmente como exemplos alguns dos principais massacres ou tiroteios com vítimas,
ocorridos em diversos países, que tiveram como motivação principal para sua irrupção o
sofrimento decorrente do bullying. A maioria deles foi realizado no interior de escolas ou
universidades que, no passado, serviram de palco para o sofrimento de seus autores através da
intimidação bullying. (FANTE, 2005a). Como os exemplos ocorridos nos Estados Unidos,
tais como o de Columbine, em Littleton, no Colorado (doze vítimas fatais) e o da escola
Virgínia Tech (trinta e duas vítimas fatais) ou tiroteios ocorridos no Brasil como o de
Taiúva/SP, em 2003; Remanso/BA, em 2004, e Realengo, em 2011, na cidade do Rio de
Janeiro. O que fortalece o argumento de que, além de se configurarem cada vez mais como
uma prática comum, estes massacres parecem representar uma forma de “devolução” da dor e
do flagelo, que outrora as vítimas sofreram no passado, à mesma realidade escolar ou
acadêmica que se mostrou naquela oportunidade incapaz de ajudá-los ou defendê-los das
agressões.
O espaço escolar ou universitário, conforme Louro (1997), exerce deliberadamente
uma ação distintiva sobre os sujeitos que acolhe em seu interior: isola adultos de crianças,
alunos ricos de alunos pobres, meninos de meninas e sujeitos “normais” dos “desviantes”.
Suas normas regimentais tem o propósito de delimitar sistematicamente as formas de
ocupação de seus espaços de acordo com os tipos (sexuais, etários etc.) de sujeitos, visam
orientar sistematicamente as suas condutas habituais e definir “lugares específicos” a serem
ocupados pelos meninos e meninas ou pelos pequenos e os maiores, por exemplo. Em outras
palavras, trata-se de uma instituição que segrega, normatiza e elabora as identidades sociais de
seus membros sob a perspectiva de controle sistemático do espaço, do tempo, do corpo e da
mente.
Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade,
a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma
ação distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos — tornando aqueles
que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela
dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos
mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização (LOURO, 1997,
p. 57).
29
Outro aspecto crucial que explica como a cumplicidade escolar contribui para o
desencadeamento de agressões e intimidações como o bullying refere-se à busca de uma
suposta aparência de naturalidade que entremeia suas ações, cujo objetivo é o de fazer
conceber entre seus membros a percepção de que suas estruturas significadoras e fundadoras
são provenientes de uma ordem natural e não de uma dimensão cultural. A forma de
enraizamento da disciplina, do controle e dos padrões de ser e de agir nas individualidades,
por exemplo, além de sobremaneira intenso, também vem acompanhado por uma sutileza ou
fina nuance que faz com que estes sujeitos concebam tudo aquilo que foi apreendido e
interiorizado, através das práticas e dos ritos escolares, como derivados de uma suposta
“ordem natural das coisas”, escamoteando o papel que o sistema cultural desempenha neste
complexo processo de estruturação de sua realidade.
Ao longo da história, as diferentes comunidades (e no interior delas, os
diferentes grupos sociais) construíram modos também diversos de conceber
e lidar com o tempo e o espaço: valorizaram de diferentes formas o tempo do
trabalho e o tempo do ócio; o espaço da casa ou o da rua; delimitaram os
lugares permitidos e os proibidos (e determinaram os sujeitos que podiam ou
não transitar por eles); decidiram qual o tempo que importava (o da vida ou
o depois dela); apontaram as formas adequadas para cada pessoa ocupar (ou
gastar) o tempo... Através de muitas instituições e práticas, essas concepções
foram e são aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase “naturais” (ainda
que sejam "fatos culturais"). A escola é parte importante desse processo.
(LOURO, 1997, pp. 59-60).
Tome-se como exemplo do que foi dito anteriormente as identidades escolarizadas de
meninos e meninas, cujos gestos, movimentos e sentidos são incorporados e treinados
paulatina e recorrentemente em seus cotidianos, segundo o que as expectativas sociais de
gênero especificam para cada uma destas categorias. Qual seria, portanto, o provável
resultado deste processo supracitado? A produção de corpos escolarizados, que expressam
por si mesmos as marcas da distinção e da segregação, de acordo com os critérios
taxonômicos que a escola estabelece para diferenciar seus membros.
Todavia, aqui surge uma dúvida: seria possível impor um controle escolar absoluto de
maneira a produzir uma disciplina uniforme e irresistível entre todos os membros da
comunidade estudantil? Ainda que Louro (1997) ateste que a escola produz uma
aprendizagem social bem elaborada, eficaz, sutil e continuada que objetiva disciplinar o uso
do espaço, do corpo e das mentes estudantis, percebe-se que alguns sujeitos resistem,
30
escapam ou violam este complexo processo disciplinador, reproduzindo em seus corpos e
suas mentes expressões dissonantes do itinerário preconizado pela ideologia escolar.
De modo que todos os alunos são incorporados indistintamente ao processo de
socialização imposto pela realidade escolar, são obrigados a se conduzirem conforme o que é
preconizado pelas normas de expressão corporal e de uso sistemático dos espaços de
acomodação e a educarem seus corpos e mentes conforme a ação pedagógica estipulada por
aquela instituição, sob o risco de sanções em caso de descompassos. Apesar deste intenso
escrutínio formativo de suas personalidades, alguns sujeitos resistem aos efeitos desta
complexa engenharia social e ainda expressam transgressões em seus corpos e pensamentos.
É importante frisar que esta resistência manifestada nos corpos e nas mentes de alguns destes
sujeitos nem sempre é um processo consciente. Todavia, quando o é, os dissidentes fazem
questão de reverberar em sua estética ou aparência seu desacordo com o que está instituído.
Muitos casos de intolerância e preconceito, portanto, representam reflexos da rejeição às
diferenças que o outro manifesta em sua essência e existência étnica, regional, estética etc.
Embora existam “punições” institucionais escolares previstas para coibir o
descumprimento individual perante o processo hegemônico de fabricação escolar –
continuado, sutil e quase imperceptível – dos sujeitos, estas penas possuem uma finalidade
bastante específica e somente coíbem aquilo que porventura possa ameaçar ou atentar contra a
ordem, o controle e a estabilidade da ideologia escolar. Questões relativas a supostas
“brincadeiras”, que no fundo se revestem de intolerância ou preconceito, quando não são
relativizadas pelos gestores/educadores, são vistas como algo próprio da idade ou tidas como
necessárias ao processo de amadurecimento dos jovens. (CALHAU, 2009).
O bullying escolar, costumeiramente classificado por seus especialistas como uma
forma de opressão subjacente a maioria destas “brincadeiras”, vem sendo paulatinamente
ignorado ou negado por muitas realidades escolares do mundo. Esta negação ou descaso
produz danos de maneira silenciosa entre a maioria dos sujeitos escolares envolvidos com a
questão. (FANTE; PEDRA, 2008). Trata-se, portanto, de uma prática violenta que obedece a
uma lógica de costumes que muitas escolas ainda se negam em reconhecer ou que, quando a
reconhecem, não se preocupam seriamente em erradicar. Conforme atesta Cleo Fante (2005b)
em sua obra:
Ficamos muito impressionados com a pouca conscientização da realidade do
fenômeno nos meios educacionais e com o despreparo dos profissionais
desse setor para lidarem com a violência, especialmente a velada. Algo que
chamou nossa atenção foi o fato de muitos diretores negarem o fenômeno da
31
violência existente em suas escolas, pincipalmente os que administram
escolas particulares. (FANTE, 2005b, p. 51).
Em outros termos: a escola (e muitas universidades ao redor do mundo) reproduz a
incorporação de um habitus4 conivente com o capital cultural hegemônico sobre as
personalidades discentes, mas escamoteia, ou pelo menos se olvida, as atitudes de perseguição
contra o outro que porventura venha a destoar destes padrões culturais concebidos como
corretos, verdadeiros e únicos. O bullying, encarado pelos especialistas como uma agressão
interpessoal cujo fundamento é o não reconhecimento das diferenças, nasce neste contexto de
impunidade, descaso e omissão. Além disso, conforme Calhau (2009) destaca em sua obra, a
agressão bullying pode se iniciar no interior da escola, mas se desdobrar em seus efeitos para
além de seus muros e instalações físicas, explodindo em atos de violência nas ruas, praças,
shoppings etc. A intolerância e o preconceito, portanto, podem começar num lugar onde
jamais se supunha acontecer, como escolas ou universidades, e ter reflexos deletérios para
além dos espaços de onde emergiram.
Vale salientar que não é missão deste trabalho estigmatizar as escolas ou universidades
como únicas fontes institucionais de produção da intolerância e de segregação entre
indivíduos. Todavia, elas se constituem como terreno fértil e bastante favorável ao
florescimento destes tipos de condutas. De modo que fica no ar a dúvida de como as práticas
de agressão bullying se tornam tão profícuas no interior de espaços tão caracterizados por
controle e disciplina como estes? A premissa sociológica que surge como argumento repousa
na crítica à suposta neutralidade da instituição escolar feita pelo sociólogo Pierre Bourdieu
(1975) em parceria com Jean Claude Passeron (1975) no livro A Reprodução. Elementos para
uma teoria do sistema de ensino, no qual os autores evidenciaram a prática recorrente de uma
lógica reprodutivista dos valores hegemônicos das classes dominantes na formação cultural
dos sujeitos discentes que frequentavam as escolas francesas à época da pesquisa. Segundo a
obra, desde os seus primórdios, a escola funcionaria como um aparelho ideológico
determinado a reproduzir e a reforçar em seu interior a hegemonia cultural das classes
dominantes, assim como as desigualdades sociais e culturais mais amplas da realidade social,
deixando de lado seu princípio transformador/libertador das existências individuais através da
educação. Para lograr êxito em seu intento, segundo Bourdieu e Passeron (1975), seria
necessário à escola a execução de três mecanismos coordenados de ação: a imposição de um
4 Conceito desenvolvido/aperfeiçoado pelo sociólogo Pierre Bourdieu que se refere ao processo de inculcação de
disposições sociais estruturadas e estruturantes pelos indivíduos, sendo expressas nos seus modos de sentir,
pensar e agir, refletindo tais disposições incorporadas (BOURDIEU, 1975).
32
habitus específico, a reprodução de um capital cultural como fonte de significação e a prática
da violência simbólica.
O primeiro consiste na incorporação de disposições sociais ou de uma estrutura social
pelo indivíduo, que se reverbera em sua subjetividade de modo a reproduzir em suas
expressões/comportamentos o cabedal cultural hegemônico. O objetivo, portanto, seria
preservar os mecanismos sociais dominantes e ratificar em suas individualidades a ordem
material e simbólica socialmente estabelecida de modo indireto, involuntário e escamoteando
os conflitos derivados da hierarquia de classes. A violência simbólica, por sua vez, seria o
mecanismo de ação que converte a prática pedagógica escolar (ensinamentos, ritos, posturas,
deveres cívicos etc.) na reprodução cultural hegemônica, ou seja, a cultura erudita em
detrimento da cultura popular. A sua expressão acontece nas performances intelectuais e
sociais dos sujeitos através da interiorização do habitus, que confirma sem resistências a
supremacia dos valores culturais dominantes. Se a violência simbólica corresponde à prática
ou o mecanismo direto de ação, o habitus adquirido passa a ser o efeito almejado por este
processo de reprodução dos valores culturais hegemônicos. (BOURDIEU, 1975).
Por último, o capital cultural – conjunto de significados ou sentidos produzidos a partir
das disputas de classes e que posteriormente são consagrados como “verdades” que definem o
que é ou não aceito culturalmente na realidade social – que é veiculado pela escola aos
sujeitos discentes, configura-se como o cabedal de conhecimento do qual a escola extrai sua
ação pedagógica. Tal capital corresponde à bagagem cultural proveniente das classes
dominantes, porém, é apreendida diferentemente por cada um dos indivíduos escolares,
conforme suas origens sociais, de modo que indivíduos mais pobres, neste contexto, tendem a
ter mais “dificuldades” no aprendizado escolar do que outros provenientes de camadas sociais
mais ricas que podem, devido a sua condição econômica, usufruir melhor dos elementos da
cultura hegemônica e elitista. Diante disso, a escola promove uma segregação pedagógica
travestida de uma “ideologia do mérito”, mas na verdade, os alunos que herdam competências
culturais mais refinadas de suas origens familiares, por exemplo, largam na frente dos mais
desfavorecidos, que têm seu progresso justificado através do epíteto do “esforço” ou do
“comprometimento” com os estudos e com a causa escolar. Desse modo, acaba alquebrando
todo aquele que não possui capital cultural suficiente para acompanhar o itinerário formativo
proposto pela escola, que privilegia os valores simbólicos provenientes das elites sociais em
detrimento do conhecimento popular e leigo. (BOURDIEU, 1975).
Em suma, a escola é um microcosmo que reproduz a perspectiva cultural dominante e
hegemônica da sociedade no interior de sua vida comunitária, na qual se apresenta como
33
autoridade legítima capaz de assegurar a ordem e de fornecer sentidos sobre a existência para
os seus membros. Aqueles que não acompanham sua ação pedagógica se tornam culpados
devido a uma pretensa falta de esforço pessoal, de comprometimento ou por supostos
problemas de aprendizagem ou psicológicos. A prática de bullying escolar, além de se refletir
no descaso ou na negação de muitas escolas sobre sua incidência, também decorre deste
desequilíbrio pedagógico que afeta muitos alunos, especialmente, aqueles que provêm de
realidades sociais cuja bagagem cultural destoa do itinerário formativo tido como legítimo e
necessário pela escola – itinerário apoiado nos valores, sentidos e significados da cultura das
classes dominantes. Muitos casos de intolerância e perseguição não se dão apenas pela
dissonância estética, étnica, sexual ou regional entre um agressor e sua vítima, mas
manifestam-se também por causa do déficit cultural e pedagógico entre estas partes. Se o
mundo atual caracteriza-se por uma notória crise de alteridade e de reconhecimento do eu no
outro (VELHO, 2008) esta crise, que guarda na agressão bullying cores bem vívidas, também
expressa uma tentativa de manutenção e perpetuação do imperativo cultural dominante (seus
valores, suas verdades, suas formas de ser e de existir) e de supressão/coerção sobre as
manifestações de transgressão e de resistência daqueles que não concordam em viver sob os
desígnios da hegemonia cultural instituída.
A agressão bullying, assim, também se converte numa ferramenta bastante eficiente
em prol da erradicação das transgressões individuais sexuais, de gênero, de etnia, de origem
social ou econômica etc., que muitas escolas ainda insistem em não admitir, reconhecer ou
combater formalmente no âmbito de suas dependências. Se não fossem os massivos alertas
perpetrados em sua própria direção através de massacres, tiroteios e atentados, a maioria
deles, provavelmente, jamais insistiria em desenvolver programas públicos e pedagógicos de
prevenção, controle e erradicação do bullying escolar. Já que por se tratar de um problema
cada vez mais notório e danoso à sua imagem institucional, a maioria delas vem mudando de
ideia quanto a forma de encarar o fenômeno. A título de exemplo, fica registrado abaixo de
que forma um ataque escolar, tal qual o ocorrido na cidade de Taiúva, no interior paulista,
pode reverberar violência de volta à própria instituição de ensino, mesmo com o passar dos
anos. É comum que vítimas de bullying, após anos de sofrimento e descaso da instituição
escolar, retornem à mesma para a concretização de um ato final em busca de uma justiça que
jamais encontraram em seus anos de vida estudantil:
Em janeiro de 2003, na cidade de Taiúva, no interior paulista, um tímido
jovem de 18 anos, depois de concluir o ensino médio, atirou contra
34
cinquenta pessoas durante o horário de recreio da escola onde estudara.
Atingiu oito pessoas e depois se matou com um tiro na cabeça. As vítimas
sobreviveram, porém uma delas ficou paraplégica. Este adolescente era
obeso desde a infância e foi motivo de piada para os colegas da escola.
Mesmo após emagrecer trinta quilos continuaram zoando dele (FANTE;
PEDRA, 2008, p. 56, grifo nosso).
No próximo capítulo, a dissertação empreenderá uma discussão sobre os efeitos
decorrentes deste complexo procedimento escolar de fabricação e distinção dos sujeitos de
acordo com a ideologia vigente. Tais efeitos, conforme já tangenciado nesta primeira parte do
trabalho, produzem distinções significativas entre os indivíduos de acordo com certas
categorias de classificação impostas pela ideologia cultural. Nesse sentido, esta pesquisa
busca apontar especificamente como a violência bullying também possui palpáveis diferenças
ou distinções em sua forma de manifestação, de acordo com as delimitações de gênero e
sexualidade estipuladas pelo sistema cultural hegemônico para os sujeitos. De forma que
intenta responder por que os ataques desferidos pelos meninos são tão diferentes dos
perpetrados pelas meninas? Qual destas formas anteriores de agressão seria mais destrutiva ou
danosa para seus protagonistas? Como o fenômeno da ideologia se manifesta neste processo
de elaboração das identidades humanas na escola e no contexto específico de irrupção da
agressão bullying de acordo com a tipologia humana de cada participante?
35
2 ENTRE AMEAÇAS, SOCOS E PONTAPÉS: NOTAS
SOCIOLÓGICAS SOBRE O BULLYING5 ESCOLAR PRATICADO
ENTRE MENINOS
2.1 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO
UNIVERSO MASCULINO: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA
TRADICIONAL
A maioria dos ataques6 em massa desferidos contra escolas e Universidades ao redor
do mundo na forma de tiroteios, resultando em um número significativo de vítimas mortas ou
feridas, possui a marcante característica em comum de terem sido protagonizados por
indivíduos do sexo masculino. Geralmente, são adolescentes, jovens universitários ou ex-
alunos, que se dirigem à instituição do qual fizeram ou ainda fazem parte, em uma atitude de
retaliação, vingança ou desejo de reparação por causa da vitimização bullying que outrora
sofreram naquele espaço. Conforme descrevem Fante e Pedra (2008) são exemplos de
massacres que expressam o amplo protagonismo de jovens do sexo masculino no contexto das
catástrofes escolares: o de 1997, ocorrido na cidade de West Paducah, no Estado do
Kentucky, orquestrado por um garoto de 14 anos, resultando em cinco mortes e cinco feridos;
o de 1998, na cidade de Jonesboro, no Arkansas, em que dois estudantes de onze e treze anos
vitimaram fatalmente cinco pessoas; o de Springfield, no Oregon, onde dois adolescentes de
dezessete e dezoito anos mataram dois colegas e feriram outros vinte; o de 1999, na cidade de
Littleton, no estado do Colorado, no qual dois estudantes protagonizaram a célebre chacina de
Columbine, que resultou na morte de treze pessoas e em outras dezenas de feridos; e o de
abril de 2007, em Blacksburg, no Estado da Virgínia, considerado o maior atentado em um
espaço educacional do mundo, onde um aluno sul-coreano matou trinta e duas pessoas e feriu
5 A agressão bullying é tradicionalmente classificada, conforme se verifica na leitura de diversos estudiosos do
tema, como um fenômeno, ou seja, como algo passível de ser descrito mediante procedimentos científicos de
análise, observação e apreensão de sua ocorrência. Portanto, a dissertação se utilizará amplamente desta
designação para se referir a tal agressão aqui pesquisada.
6 É importante destacar que nem todos os ataques protagonizados por membros do sexo masculino contra
escolas/universidades ao redor do mundo foram motivados especificamente pelo bullying. Alguns exemplos: O
massacre de Beslan em 2004, na Rússia (terrorismo); o massacre de Maalot em 1974, no Estado de Israel
(terrorismo); o massacre de 1989 dirigido a uma renomada universidade do Canadá (misoginia e aversão ao
feminismo) entre outros tantos. Nesta pesquisa, serão considerados apenas para análise os casos impulsionados
pela fenomenologia bullying.
36
outras vinte e nove. Todos estes ocorridos apenas nos Estados Unidos, o país com maior
incidência de ataques catalogados.
No entanto, para além do país norte-americano, diversos outros massacres em escolas
ocorreram ao redor do mundo e, coincidência ou não, tiveram como protagonistas membros
do sexo masculino que outrora foram alvos/vítimas de bullying, em suas respectivas
realidades escolares. Para citar alguns exemplos, o da cidade de Erfurt, na Alemanha, em abril
de 2002 (dezesseis mortos); em Carmen de Patagones, na Argentina, em 2004 (três mortos e
cinco feridos); na cidade de Tuusula, na Finlândia, em novembro de 2007 (oito mortos) ou no
Brasil, as tragédias no município de Taiúva, em São Paulo, em 2003; no de Remanso, no
interior baiano, em 2004; e no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, em 2011.
Diante deste cenário de explosão de violência, surgem de imediato algumas
indagações: Quais seriam as prováveis causas desencadeadoras destes massacres escolares?
Por que a autoria destas tragédias com armas de fogo em ambientes educacionais geralmente
está atribuída a membros do sexo masculino? E por que esta modalidade de expressão de
violência é a preferida entre adolescentes ou jovens garotos vítimas da agressão bullying?
Para tentar responder as perguntas enunciadas acima, a pesquisa passa a dialogar, ao
longo desta e da próxima seção, com duas fontes ou paradigmas de interpretação teórica que
tentam dar inteligibilidade a violência bullying: a primeira delas, doravante por mim
denominada de enfoque tradicional, é baseada no conjunto de constatações, estudos de caso e
pesquisas provenientes da literatura científica hegemônica que, desde meados da década de
1970, procura estabelecer contornos precisos e legítimos sobre as formas de manifestação da
violência bullying; e a segunda, denominada de enfoque sociológico, tem como ponto de
partida a análise geral da dissertação de mestrado de Deborah Christina Antunes (2008),
intitulada Razão Instrumental e Preconceito: Reflexões sobre o Bullying7 que se constitui
como um marco acadêmico na tentativa de romper com a lógica discursiva que predomina na
produção das verdades sobre a agressão bullying, através de uma reflexão crítica sobre suas
“verdades”. Além da dissertação mencionada, o presente trabalho também toma como
referência uma nova perspectiva de análise/reflexão, a abordagem/compreensão teórica
denominada de construcionista crítica.
Nesta primeira seção do capítulo, o alvo da discussão incidirá sobre o primeiro
enfoque, o discurso tradicional provém majoritariamente das ideias de autores do campo
Ciências Médicas e Comportamentais, tais como a medicina e a psicologia, legitima há
7 Defendida na Universidade Federal de São Carlos, estado de São Paulo.
37
décadas as verdades em torno do que se concebe sobre o fenômeno bullying e se constitui
como o paradigma referencial quando se fala do assunto, atualmente. Por se tratar de uma
abordagem bastante ampla e diversa em termos de autores, estudos e pesquisas, não será
possível abarcar detalhadamente cada uma das perspectivas autorais específicas. O foco da
investigação, portanto, residirá no discurso ou no paradigma geral que se constituiu e que se
reproduz recorrentemente nas falas de diversos autores, em suas tentativas de compreender
este tipo de agressão.
Toda definição8 que é feita por algum autor sobre o fenômeno bullying, no âmbito do
discurso científico tradicional, leva em consideração, no momento de sua elaboração,
determinados critérios básicos, estabelecidos pelo primeiro acadêmico a investigar
sistematicamente a agressão, o pesquisador norueguês Dan Olweus9 (1978), esses critérios
foram elaborados para identificar e diferenciar prováveis condutas bullying de outras formas
de violência ou de brincadeiras próprias da idade. (FANTE; PEDRA, 2008). São eles: a)
ações repetitivas contra a mesma vítima num período prolongado de tempo; b) desequilíbrio
de poder, o que dificulta a defesa da vítima; c) ausência de motivos que justifiquem os
ataques. FANTE e PEDRA (2008) ainda acrescentam um quarto critério: os sentimentos
negativos mobilizados e as sequelas emocionais deixadas nas vítimas deste tipo de agressão.
Portanto, qualquer proposta de conceituação sobre a agressão bullying necessariamente leva
em conta os critérios acima destacados.
Embora o termo bullying seja semanticamente unívoco, isto é, possua sentido
uniforme em qualquer definição que o abarque, os diversos especialistas que o estudam
elaboraram, no decorrer de suas pesquisas, uma complexa e criteriosa taxonomia em torno
deste fenômeno, cujo objetivo seria o de mapear detalhada e sistematicamente as principais
variáveis inerentes ao contexto da agressão. São elas: a) as características dos personagens
envolvidos nesta forma de violência; b) as principais diferenças entre a agressão praticada por
meninos e meninas; c) as formas de maus-tratos (ataques) utilizadas no fenômeno; d) as
modalidades de manifestação da agressão bullying; e) o papel da faixa etária dos envolvidos
8 Albino e Terêncio (2012) reforçam em seu artigo que é muito comum o hábito de cunhar novos nomes para
fenômenos antigos. Com o bullying, portanto, não foi diferente: trata-se de um termo importado da língua inglesa
que adentrou prontamente na literatura estrangeira com o ar de novidade (dando evidência e destaque ao que se
buscava compreender), mas que dificultou sua visualização em um contexto mais amplo de análise através de
outras variáveis (sociais, culturais, econômicas etc.). Destaque-se também o fato de que muitos países criaram
termos próprios para se referir a este tipo de agressão, sem que se perca o seu significado: prepotenza ou
bullismo (Itália); yjime (Japão); agressionen unter shulern (Alemanha); acoso ou intimidación (Espanha) etc. Em
geral, o termo em inglês bullying é empregado na maioria dos países onde é estudado. 9 Para mais detalhes, recomendo a leitura integral da obra deste autor, que foi a primeira grande investigação
sistemática e acadêmica sobre o tema bullying: OLWEUS, D. Aggression in the Schools: Bullies and Whipping
Boys. Washington: Hemisphere Pub. Corp.; New York: Halsted Press, 1978.
38
como critério decisivo na irrupção e caracterização da agressão; f) as causas e as
consequências desta forma de intimidação; a prevalência do bullying no mundo; g) as
medidas, procedimentos e encaminhamentos que devem ser tomados para solucionar este
problema.
Tal taxonomia e suas variáveis são sustentadas metodologicamente por pesquisas
empíricas – estudos de caso em torno do comportamento de personagens envolvidos, de
públicos-alvo previamente especificados para realização de diagnóstico ou análises objetivas
a partir das características fornecidas por um espaço amostral representativo da agressão;
descritivas de realidades escolares atingidas ou do perfil biopsicossocial de seus personagens;
quantitativas através de levantamentos estatísticos sobre a incidência de casos e o volume de
agressões em dada realidade; e comparativas – confronto ou cruzamento dos dados para
comparar as realidades pesquisadas. Acerca desta forma de proceder, tome-se como exemplo
o criterioso procedimento de classificação e de descrição da agressão bullying adotado por
Lopes Neto (2005), em seu artigo acadêmico que versa sobre o assunto:
O bullying é classificado como direto, quando as vítimas são atacadas
diretamente, ou indireto, quando estão ausentes. São considerados bullying
direto os apelidos, agressões físicas, ameaças, roubos, ofensas verbais ou
expressões e gestos que geram mal estar aos alvos. São atos utilizados com
uma frequência quatro vezes maior entre os meninos. O bullying indireto
compreende atitudes de indiferença, isolamento, difamação e negação aos
desejos, sendo mais adotados pelas meninas. (LOPES NETO, 2005, p. 166,
grifo nosso).
Em outra parte do mesmo artigo, em que busca dar detalhes sobre os protagonistas da
agressão, o autor prossegue no seu intento classificatório e descritivo:
As crianças e adolescentes podem ser identificados como vítimas, agressores
ou testemunhas de acordo com sua atitude diante de situações de bullying.
Não há evidências que permitam prever qual papel adotará cada aluno, uma
vez que pode ser alterado de acordo com as circunstâncias. A forma de
classificação utilizada pela ABRAPIA teve o cuidado de não rotular os
estudantes, evitando que estes fossem estigmatizados pela comunidade
escolar. Adotaram-se, então, os termos autor de bullying (agressor), alvo de
bullying (vítima), alvo/autor de bullying (agressor/ vítima) e testemunha de
bullying. (LOPES NETO, 2005, pp. 166-167).
Portanto, são diversos os autores que seguem esta linha metodológica, que vislumbra a
violência bullying mediante a análise articulada de dados estatísticos provenientes de
pesquisas empírico-descritivas e meramente diagnósticas do problema quando de sua
39
ocorrência em uma determinada realidade. Em outras palavras, é notório o viés puramente
taxonômico, comparativo e descritivo que a maioria dos estudiosos do fenômeno adota em
suas interpretações, quando tenta conferir inteligibilidade a questão bullying; na predileção
pela adoção de métodos quantitativo-estatísticos na busca de traduzir as manifestações
agressivas; e, por último, no caráter objetivo e superficial de suas interpretações, quando o
que fazem na verdade é apenas mapear/cartografar através de dados numéricos
matematicamente equacionados as realidades pesquisadas. Fornecer uma visão objetiva,
precisa e pragmática sobre uma realidade acossada pela violência bullying parece, portanto,
ser a finalidade da maioria destes estudiosos. Todavia, conforme atesta Antunes (2008),
representa pouco para aqueles que defendem a ideia de uma contribuição crítica de outras
variáveis, principalmente socioculturais e humanas, que são decisivas na irrupção desta forma
de violência. Embora muitos autores dissertem em suas pesquisas sobre as supostas “causas”
sociais, políticas, econômicas, culturais etc. que contribuem para a irrupção do fenômeno
bullying, não as problematizam, tratando-as como coisas naturais e apartadas da realidade
social do qual o fenômeno eclodiu. É importante salientar, porém, que não se busca nesta
dissertação desprezar a relevância por trás do “fazer científico” tradicional e de sua forma de
investigação e intervenção sobre a problemática bullying. Porém, conforme atentam Antunes
e Zuin (2008) é importante sempre deixar claro que:
No entanto, entende-se que não são por si só suficientes. É necessária que se
some a eles a análise sociológica das formas de organização e das forças
objetivas da sociedade, de modo a, com impulso crítico, interpretar os dados,
mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido social dos fenômenos
singulares encontrados como um meio de desencantamento das construções
sociológicas que perderam sua relação com a realidade. (ANTUNES;
ZUIN, 2008, p. 35).
E, prosseguindo em sua reflexão sobre esta questão, os autores concluem:
Observa-se que os pesquisadores, de forma geral, ao dissertarem sobre as
supostas “causas” do que chamam bullying, dentre as quais se destacam os
fatores econômicos, sociais, culturais e particulares, não as problematizam.
Tal atitude desemboca na defesa da expressão genérica do “educar para a
paz” utilizada por Fante (2005). Desta forma, as influências familiares, de
colegas, da escola e da comunidade, as relações de desigualdade e de poder,
a relação negativa com os pais e o clima emocional frio em casa parecem
considerados naturais e apartados das contradições sociais que os
produziram. (ANTUNES; ZUIN, 2008, p. 36).
40
Nesta primeira seção do capítulo, é importante frisar o fato de que a esta lógica
taxonômica e empírica de interpretação da violência bullying, filia-se uma corrente de autores
responsáveis pela produção de um discurso hegemônico que há muito tempo concebe as
formas desta agressão: Cleodenice Fante (2005a; 2005b; 2008), Aramis Lopes Neto (2003;
2012), José Augusto Pedra (2008), Lélio Braga Calhau (2009), Alessandro Costantini (2004),
entre muitos outros. Em suas falas, eles expressam ideias e argumentos acerca da agressão
bullying através de verdadeiros manuais de classificação e descrição das
condutas/comportamentos agressivos e da prescrição de medidas, procedimentos e
encaminhamentos terapêuticos ou médicos, voltados para se resgatar à civilidade e ao
convívio social adequado os sujeitos afetados/desviados/deslocados que protagonizaram a
intimidação bullying e que por ela foram “marginalizados”.
Assim, para começar a responder as perguntas elencadas no início desta seção, de
acordo com a interpretação tradicional supracitada, inicialmente considera-se necessário
proceder na descrição detalhada de cada um dos protagonistas que contextualizam o
fenômeno. Segundo Fante e Pedra (2008), os envolvidos numa agressão bullying representam
três tipos de personagens: as vítimas, que podem ser provocadoras (atraem impulsivamente
para si o agressor) ou agressoras (aquelas que reproduzem a vitimização que sofreram por
outros contra terceiros); os agressores ou bullies descritos como prepotentes, arrogantes e
transgressores das normas que lhe são impostas; e os espectadores, aqueles que nem
interferem na agressão por medo de se tornarem as próximas vítimas nem mobilizam ajuda
em prol dos agredidos. Trata-se de personagens bem definidos e caracterizados, que
supostamente agem conforme aspectos inerentes as suas especificidades individuais, as suas
capacidades de interação social e as suas habilidades psicoemocionais. Portanto, há a ideia de
lugares/perfis bem delimitados que são ocupados por qualquer sujeito, como na forma de um
enquadramento em perfis status quo.
É importante perceber que este mesmo procedimento de classificação descrito acima é
reproduzido por outros autores em suas pesquisas. Tome como exemplo, portanto, Lopes
Neto (2005) que classifica de maneira similar em seu artigo os personagens da agressão como
alvos de bullying, autores de bullying e testemunhas de bullying. Costantini (2004) define os
protagonistas do fenômeno como vítimas e intimidadores, Calhau (2010) reproduz a mesma
forma de classificação dos personagens utilizada por Cleodenice Fante e José Augusto Pedra
(2008) em sua obra. Adicione-se a isto o fato de que na fala de todos eles existe um
diagnóstico pré-concebido que supostamente justificaria nas próprias individualidades
daqueles personagens o porquê de eles virem a ser classificados como agressores, vítimas ou
41
espectadores. De modo que se recorre a aspectos da personalidade e do comportamento
psicossocial dos envolvidos para justificar o porquê de um deles ser enquadrado numa ou
noutra categoria da agressão. Esta postura de “enquadramento prévio” dos personagens pode
ser atestada, por exemplo, na fala de Fante e Pedra (2008) no momento em que buscam
definir com precisão o “provável” perfil de uma vítima provocadora:
São aqueles alunos que agem impulsivamente, provocando os colegas e
atraindo contra si reações agressivas, contra as quais não conseguem lidar
com eficiência. Por isso acabam vitimizados. Geralmente são imaturos,
apresentam comportamento dispersivo e dificuldade de concentração.
Alguns podem ser hiperativos, possuem “gênio ruim”, agem de maneira
provocadora aos colegas e respondem de maneira ineficaz quando, em
contrapartida, são atacados ou insultados. (FANTE; PEDRA, 2008, pp. 59-
60).
Do mesmo modo, a fala de Lopes Neto (2005), quando busca perfilar os supostos
agressores ou bullies, se orienta nesta direção:
O autor de bullying é tipicamente popular; tende a envolver-se em uma
variedade de comportamentos antissociais; pode mostrar-se agressivo
inclusive com os adultos; é impulsivo; vê sua agressividade como qualidade;
tem opiniões positivas sobre si mesmo; é geralmente mais forte que seu alvo;
sente prazer e satisfação em dominar, controlar e causar danos e sofrimentos
a outros. Além disso, pode existir um “componente benefício” em sua
conduta, como ganhos sociais e materiais. São menos satisfeitos com a
escola e a família, mais propensos ao absenteísmo e à evasão escolar e têm
uma tendência maior para apresentarem comportamentos de risco (consumir
tabaco, álcool ou outras drogas, portar armas, brigar etc.). As possibilidades
são maiores em crianças ou adolescentes que adotam atitudes antissociais
antes da puberdade e por longo tempo. (LOPES NETO, 2005, p. 167).
Aqui já é possível esboçar uma provável resposta para a primeira pergunta feita no
início desta seção: Quais são as causas desencadeadoras destes massacres? O enfoque ou
discurso tradicional, pretensamente hegemônico em suas verdades, reporta-se através de seus
enunciados às inúmeras causas que levam a irrupção de uma agressão bullying ou de um
massacre escolar, mas todas estas causas estão de alguma forma circunscritas ao campo
biopsicossocial do sujeito, em detrimento da realidade sociocultural que o circunda. Em
outras palavras, seria nas individualidades, na personalidade, na forma de expressão das
emoções, no comportamento social, na percepção mental da realidade, na influência familiar,
na falta de empatia social, na timidez, no retraimento social etc. que se localizaria a fonte das
respostas para os massacres e tiroteios em escolas e universidades ao redor do mundo,
42
motivadas de alguma forma pelo bullying. Bastaria ao pesquisador “enquadrar” o personagem
analisado em sua pesquisa a um daqueles “perfis” que melhor se adequa às características
subjetivas do sujeito analisado: o de agressor (quando ele aparenta ser prepotente e arrogante
em sua subjetividade); vítima (quando parece ser sensível ou retraído em seu
comportamento); ou espectador (quando é trepidante e confuso diante de conflitos e tensões
que testemunha).
Todavia, ainda resta responder duas últimas perguntas: Por que a autoria destas
tragédias com armas de fogo em ambientes educacionais geralmente está atribuída a membros
do sexo masculino? E por que esta modalidade de expressão de violência é a preferida entre
adolescentes ou jovens garotos vítimas da agressão bullying? Além das “características
individuais”, que supostamente lhes levam a se tornarem o que são, o paradigma tradicional
sugere que a agressão bullying funcionaria como um catalisador que recrudesceria o
sofrimento das vítimas até o limite do suportável, especialmente entre os meninos. Ou seja,
além do fator individual, que supostamente explica porque cada personagem desenvolve uma
propensão a agir de uma ou outra forma no contexto da agressão, um novo ingrediente pode
ser adicionado a esta complexa questão: a diferença de reação das vítimas em face da agressão
seria fruto também da simples diferença comportamental entre os sexos. Em outras palavras,
meninos vitimados tendem a explodir em violência explícita, pelo fato de serem homens em
busca de vingança e meninas agredidas velam seu sofrimento para sociedade para não
despertar dúvidas quanto a sua reputação de “boa menina”. No mais, todo o resto se
explicaria, aparentemente, com base nas comparações estatísticas e descritivas entre os casos
estudados. Pelo menos é o que sugerem muitas das pesquisas da corrente tradicional de
análise do fenômeno.
Assim, muitos autores recorrem a uma análise simplista, pragmática e pouco
aprofundada quando interpretam e comparam o bullying masculino e feminino, e suas
consequências para os envolvidos, pautando-se na tradicional lógica de interpretação de dados
estatísticos, de observação descritiva e comparativa entre casos e na aplicação de
metodologias empíricas para fornecer respostas razoáveis sobre o porquê das diferenças entre
as agressões. Apenas em alguns exemplos, quando buscam diferenciar a forma de intimidação
entre meninos e entre meninas, Fante e Pedra (2008) ponderam:
Nos países em que o bullying é pesquisado, os índices encontrados entre
alvos e autores revelam que a incidência entre meninos é maior. No passado,
acreditava-se que esse tipo de comportamento era próprio de meninos,
porém, com os avanços das pesquisas, constatou-se ser comum também
43
entre as meninas. Enquanto que a maioria dos meninos utiliza, comumente,
os maus tratos físicos e verbais, as meninas se valem mais de maledicência,
fofoca, difamação, exclusão e manipulação para provocar sofrimento
psicológico nas vítimas. (FANTE; PEDRA, 2008, p. 64).
Lopes Neto (2005), representando outro exemplo, também vai de encontro a esta
tradicional metodologia utilizada pelo paradigma hegemônico, no intento de diferenciar em
seu artigo a agressão bullying entre garotos e garotas:
Entre os agressores, observa-se um predomínio do sexo masculino,
enquanto que, no papel de vítima, não há diferenças entre gêneros. O fato de
os meninos envolverem-se em atos de bullying mais comumente não indica
necessariamente que sejam mais agressivos, mas sim que têm maior
possibilidade de adotar esse tipo de comportamento. Já a dificuldade em
identificar-se o bullying entre as meninas pode estar relacionada ao uso de
formas mais sutis. (LOPES NETO, 2005, p. 166, grifo nosso).
A verdadeira guinada nesta forma de interpretação, porém, a despeito do pragmatismo
e da superficialidade das análises descritivas e comparativas feitas no paradigma tradicional,
ocorre decisivamente nas páginas da obra da Cientista Política norte-americana Rachel
Simmons(2004), que em Garota Fora do Jogo traça um paralelo bastante claro sobre o que
motivaria um garoto a explicitar sua raiva e agressividade abertamente para todos e o que
levaria uma menina a ocultar/retrair seu sofrimento diante de uma agressão tal como a do
bullying. A autora aponta na discussão de sua obra, como a questão de gênero é condição sine
qua non para entender tal diferença, inclusive na produção de expressões diferentes do
bullying.
De acordo com Simmons (2004), a expressão da agressividade do sujeito a partir de
sua raiva acumulada, seja qual for o motivo que a desencadeou, é diretamente proporcional à
expectativa de gênero que a sociedade lança sobre aquele indivíduo, caso seja um menino ou
uma menina. Segundo a autora:
A agressão é marca registrada da masculinidade; ela permite aos homens
controlar o ambiente em que vivem e a sua subsistência. Para o que der e
vier, os meninos gozam de total acesso às brigas. O vínculo começa desde
cedo: a popularidade dos meninos é em grande parte determinada por sua
disposição de jogar duro. Eles conseguem o respeito dos colegas pelas
proezas atléticas, pela resistência à autoridade e pelas atitudes firmes,
impertinentes, dominadoras, frias e confiantes. (SIMMONS, 2004, p. 27).
Portanto, aos meninos é dado o aval social para expressar sua agressividade e raiva de
maneira explícita, clara e pública, visto que a agressão é um poderoso termômetro dos valores
44
sociais de uma dada comunidade, que ajudam a cristalizar os papéis sexuais de seus membros.
De acordo com a ideia de responsabilidade social atribuída a cada um segundo sua categoria
de gênero, caberia aos homens prover e proteger sua família, através da força, intrepidez e
virilidade e às mulheres, serem nutrizes e mães, através do cuidado, afeto e afeição.
(SIMMONS, 2004). Assim, os homens estão legitimados culturalmente a expressarem
publicamente suas emoções, sentimentos e insatisfações, especialmente através de projeções
marcadas por sua virilidade e força física. Às garotas, reserva-se o direito de restringirem sua
raiva e agressividade, já que “a cultura ridiculariza a agressão nas meninas como não
feminina.” (SIMMONS, 2004, p. 28).10
A explicação acima justifica, portanto, o porquê da maioria dos ataques serem
protagonizados por jovens rapazes e, preferencialmente, através de armas de fogo. Muitos
garotos, embora vitimados e traumatizados, numa tentativa de revide pela força, integram-se a
grupos (gangues destinadas ao assédio) para hostilizar seu agressor ou vitimar outros
indivíduos mais frágeis que eles. Todavia, os mais abalados pela agressão se munem de armas
e explosivos e vão até a escola em busca de justiça, massacram o maior número possível de
pessoas e, posteriormente, eles põem fim a própria existência (FANTE; PEDRA, 2008). A
mensagem que eles buscam deixar com esta última ação de afirmação é bastante clara: não se
trata apenas de se vingar ou buscar justiça pelo que ocorreu, é necessário deixar bastante
visível, explícito e marcante que a dor que outrora sofreram nas mãos de seus algozes deve ser
devolvida em proporções homéricas para o mesmo lugar onde tudo começou, porém recheada
de força, terror e violência.
2.2 AS PARTICULARIDADES DA AGRESSÃO BULLYING PRATICADA NO
UNIVERSO MASCULINO: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO SOCIOLÓGICO
Na primeira seção deste capítulo discorreu-se com detalhes sobre o paradigma
tradicional que concebe as verdades sobre o bullying e sobre as particularidades da agressão
praticada entre membros do sexo masculino, através das lentes da perspectiva hegemônica.
Portanto, detalhou-se como um conjunto de autores ancorados em uma perspectiva analítico-
metodológica produziu um discurso unissonante, cujo principal efeito foi o de legitimar
academicamente as verdades em torno do que se concebe como bullying. É importante
relembrar que, do ponto de vista cronológico, esta corrente tradicional filia-se as intepretações
10
Mais detalhes da agressão feminina serão discutidos no capítulo três desta dissertação, voltado
especificamente para esta temática.
45
feitas por Dan Olweus (1978), que no final da década de 1970, conceituou o fenômeno e
definiu critérios precisos para diferenciá-lo de outras formas de violência ou de brincadeiras
próprias da idade. Afinal de contas, conforme ele mesmo atesta, o fenômeno bullying foi e
ainda é costumeiramente interpretado e confundido como um conjunto de brincadeiras
próprias da idade, com rituais de amadurecimento necessários a crianças e adolescentes ou
ainda como um processo necessário de transição dos jovens para a fase da vida adulta,
concebida como mais dura e intolerante.
Nesta segunda seção, parte-se para uma nova proposta de percepção da fenomenologia
bullying, agora sob as lentes de uma postura epistemológica diferente, que supõe a influência
decisiva de fatores de ordem cultural e social na configuração do universo de ações que
caracterizam esta agressão. Embora esta perspectiva já tenha sido tangenciada, neste momento
será aprofundada a partir do debate em torno de duas categorias clássicas do conhecimento
sociológico, ideologia e gênero. Tais conceitos serão discutidos no âmbito semântico da
perspectiva construcionista crítica da realidade social, no âmago das ideias de sociólogos que
comungam entre si este paradigma. É importante salientar que não se trata de fazer aqui uma
análise atomizada, desconectada das ideias e percepções provenientes dos estudos filiados à
perspectiva tradicional de análise do fenômeno bullying. O objetivo central é dialogar
criticamente e de maneira interdisciplinar com “aquelas verdades” outrora instituídas,
oferecendo um contraponto interpretativo, o sociológico, que permita pavimentar novos
caminhos de discussão e de interpretação, inclusive entre outros campos do saber científico,
sobre a agressão denominada bullying.
Neste sentido, o primeiro argumento que utilizo para dialogar de maneira
interdisciplinar com a perspectiva tradicional é o da ideologia. Para tanto, relembro que a
primeira proposta acadêmica que se lançou a criticar o “fazer científico” que tradicionalmente
concebe as verdades sobre o bullying (o enfoque tradicional) foi a dissertação de mestrado de
Deborah Christina Antunes (2008). Posteriormente, o artigo Do Bullying ao Preconceito: os
desafios da barbárie à educação (ANTUNES; ZUIN, 2008), retoma o foco da discussão que
outrora desencadeou em seu trabalho stricto sensu: denunciar como o conceito de bullying, tal
como concebido por uma ciência pragmática e instrumental, atende a manutenção da ordem
vigente ao invés de colaborar para a emancipação dos indivíduos. Conforme referenda em seu
artigo:
O conceito bullying coloca tudo em seu lugar, tenta arrumar e justificar
aquilo que fere a ideologia democrática, e acaba por mascarar as tensões e
46
contradições que estão na base da própria barbárie. Esse é o risco que se
corre ao se utilizar a mera classificação e quantificação. Ao contrário, as
práticas de violência nas escolas devem ser compreendidas por meio da
análise social, das formas de organização e das forças objetivas da
sociedade, e de como tais forças se materializam e se calcificam nos sujeitos
que se desenvolvem neste meio. Estudar a violência requer também este
impulso crítico, tanto nas análises teóricas quanto na interpretação dos
dados, de modo a mostrar suas múltiplas tensões e questionar o sentido
social dos fenômenos singulares encontrados. (ANTUNES; ZUIN, 2008, pp.
39-40).
A despeito das diferenças entre os procedimentos de análise, da metodologia e da
revisão de literatura da dissertação supracitada e os que são utilizados neste trabalho de
mestrado11
, é importante destacar que as duas investigações debatem sobre o fenômeno da
ideologia inerente a agressão bullying. Ainda que cada uma destas pesquisas se filie a
correntes de análise distintas sobre este termo.
No trabalho de Antunes (2008), o conceito de bullying, concebido conforme dados
estatísticos e tão somente no diagnóstico de sua ocorrência, faz parte de uma ciência
instrumentalizada a serviço da adaptação das pessoas para a manutenção de uma ordem social
desigual. Ao mascarar os processos sociais responsáveis pela sua eclosão, constitui-se como
uma forma de alienação, o que impede que agressores, vítimas e espectadores percebam como
o conflito é escamoteado e concebido sob a aparência de um problema individual e pontual
entre delinquentes. De modo que a autora se vincula claramente a tradição marxista de
reflexão sobre a ideologia, no meu trabalho, porém, busco enxergar este fenômeno para além
do terreno de análise proposta pelo marxismo.
Para começar, destaco que Sousa Filho (2007, p. 23) aponta que a ideologia é “objeto
por excelência da crítica construcionista”. Segundo ele, em sua acepção clássica, ou marxista,
a finalidade da ideologia seria a de promover a inversão na imagem que a realidade social
oferece de si mesma quanto aos seus fundamentos, no intuito de perpetuar a sua dominação e
de impor os valores simbólicos da classe dominante sobre as demais classes, com o auxílio do
estado. O objetivo é a perpetuação da dominação desta classe e desta forma de realidade
instituída sobre todas as formas que porventura a desafiem ou a transgridam. (MARX;
ENGELS, 1986).
Todavia, é na perspectiva atual que o conceito de ideologia se amplia para além de um
ponto de vista de uma classe particular no interesse de sua dominação. Conforme pondera
11
O primeiro se ancora majoritariamente nos autores e estudos provenientes da Escola de Frankfurt ou Instituto
para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt – Alemanha - para argumentar suas ideias; a minha
dissertação, por sua vez, se filia a perspectiva construcionista crítica de análise da realidade social para refletir
sobre a questão do bullying.
47
Sousa Filho (2007, p. 24), a ideologia é “um fenômeno que não é exclusivo da sociedade
fundada na divisão de classes e na separação entre sociedade e poder do Estado, sociedades
capitalistas ou outras. Nem fenômeno cuja natureza se restrinja à justificação das relações de
produção e para a reprodução do modo de produção.”. E complementa:
Anterior a toda outra coisa, a ideologia assegura, por meio de representações
imaginárias, crenças coletivas e certas ideias sociais, que todos os sistemas
de sociedade funcionem e durem como realidades que existiriam por si
próprias, sem o concurso da ação humana. Resultado que a ideologia procura
obter invertendo e ocultando o caráter de coisa construída, arbitrária e
convencional de toda ordem social-cultural e suas instituições, e cujo efeito é
a eficácia de sua dominação sobre os indivíduos, engendrada e reproduzida
sem o recurso da força. Nesses termos, a ideologia constitui o modo de
operar de toda cultura (enquanto sistema de sociedade), ao procurar
naturalizar-se, universalizar-se e eternizar-se, e atua por meio dos discursos
sociais (variando do mito ao chamado discurso científico) que oferecem os
sentidos e as significações legitimadoras do que em cada cultura está
instituído e aceito. (SOUSA FILHO, 2007, pp. 24-25).
Em primeiro lugar deve-se salientar que o enfoque ou paradigma tradicional, a
literatura que produz as verdades sobre o que é bullying, isenta de responsabilidade pela
agressão a realidade social, que permanece, assim, imanente, intocável, eterna, estável e
inquestionável quanto as prováveis “causas” que levam alguém a ser intimidado, ou seja,
sobre quais seriam as fontes desencadeadoras desta desordem agressiva. Em segundo lugar,
prescreve-se encaminhamentos, procedimentos ou medidas que busquem solucionar o suposto
“problema”, localizado “apenas” na subjetividade dos indivíduos envolvidos na agressão,
isentando a análise de uma reflexão crítica quanto ao papel decisivo da cultura e da sociedade
na irrupção desta forma de violência. Por fim, uma vez “retificados” através de procedimentos
terapêuticos médicos ou psicológicos, os personagens da agressão estariam aptos a retornarem
a mesma realidade social desigual, realidade esta que, graças à ação da ideologia, foi isenta de
sua responsabilidade quanto à manifestação da intimidação.
Assim, uma vez vitimado por uma agressão bullying, um sujeito (dentro deste enfoque
analítico supracitado) só vai encontrar respostas para a opressão que sofreu fora do contexto
social de onde esta mesma intimidação eclodiu: a) fora da escola ou do preconceito que se
reproduz nela; da homofobia que se reifica nas atitudes de seus colegas de classe e
professores; no machismo que define espaços a serem ocupados e comportamentos a serem
praticados por homens e por mulheres; no conteúdismo exacerbado que privilegia a
competição intelectual travestida na ideia do mérito; na norma que suavemente violenta os
membros escolares de maneira simbólica. b) fora da comunidade, que legitima representações
48
sociais que põem em degredo (seja pelas vozes individuais ou institucionais) o “diferente” sob
a pretensa insígnia de que são desviados, doentes, anormais e loucos e que, portanto, devem
ser retificados através da medicina ou da psicologia. c) fora da cultura ou dos inatismos,
substancialismos e essencialismos de toda ordem, que insistem em classificar e justificar a
origem e a ordem das coisas humanas, segundo uma suposta “metafísica da essência ou da
substância” (natureza, seres celestiais, deuses, entidades transcendentais etc.). Dessa forma,
cabe a esta hipotética vítima, portanto, tentar resgatar sua integridade perdida na agressão
recorrendo a discursos ideológicos consonantes com a manutenção da realidade social
instituída – o médico e o psicológico, por exemplo – que oferecem, através de seus
enunciados terapias, medicalizações, ajustes de condutas etc. Uma “retificação legítima” a sua
subjetividade, aos supostos “erros” que o levaram a fazer parte deste complexo contexto
agressivo.
Além de escamotear o conflito para preservar a realidade social que produz as
desigualdades tais como a do bullying, o próprio discurso ou paradigma tradicional se
apresenta por si só ideológico por excelência, visto que monopoliza através de suas
enunciações a produção de sentidos e verdades que justificam e concebem o que significa o
bullying. Afinal de contas, o paradigma tradicional, a imensa e variada literatura acadêmica e
profissional que desde meados da década de 1970 concebe os significados sobre o fenômeno,
hegemoniza o discurso sobre a agressão a partir da lente das ciências médicas e da psicologia,
deixando de lado outros saberes científicos que poderiam contribuir proficuamente com o
entendimento global desta complexa questão, tais como a sociologia ou a antropologia, por
exemplo. Suas verdades enunciadas hegemonicamente – perfil dos personagens; definição do
termo; formas de ataque etc. – são de uma aparência única, eterna e indiscutível. O problema
da ideologia, portanto, vai muito além do seu intento clássico de manutenção de uma dada
forma de realidade social e de sua dominação, pois constitui-se, também, como um problema
de natureza epistemológica.
A ideologia é um fenômeno que poderia explicar o porquê de muitos garotos vítimas
de bullying na escola retornarem para esta mesma instituição posteriormente, na busca de
reparação ou justiça pelos danos causados. Não bastam para eles as terapias psicológicas,
intervenções medicamentosas ou aconselhamentos familiares que lhes são oferecidos para
superarem definitivamente seus traumas escolares. Afinal de contas, após longos períodos de
abuso pessoal, eles percebem que a escola, seus membros e a comunidade ao redor
permanecem incólumes, intocáveis e imaculadas. Não à toa, muitos ataques e tragédias
ocorrem anos após as agressões sofridas por aquela vítima, que doravante se torna autor, na
49
sua escola. Tome-se como exemplo o que foi debatido sobre o Massacre de Realengo
ocorrido, em 2011. Wellington Menezes de Oliveira, o autor da chacina, tinha à época vinte e
três anos de idade quando atacou a escola onde havia estudado há dez anos, depoimentos de
colegas dizem que foi no ano de 2001 que as agressões foram mais intensas e recorrentes.
(LOPES, 2012). Descrito como tímido, reservado e diferente dos colegas na sua vida escolar,
foi prontamente classificado como “doente” após o atentado que perpetrou. A despeito das
prováveis patologias que possivelmente lhe acometeram durante a vida, o que o motivaria a
atacar a sua escola dez anos após o sofrimento que ali outrora experimentou?
Em síntese, a ideologia é um fenômeno que age no universo simbólico, que, por sua
vez, é a matriz produtora de todos os significados/sentidos que conferem legitimidade as
estruturas da realidade sociocultural, invertendo/distorcendo os sentidos destas simbolizações
de forma a alcançar seu principal intento: naturalizar/divinizar/eternizar esta mesma realidade
social, e suas instituições, tornando-a imodificável, inevitável e eterna. Qualquer tentativa de
transgressão a sua ordem – e o bullying representa uma destas formas de ameaça ao que está
aí instituído – deve ser combatida através de eficazes procedimentos de erradicação, de
correção ou retificação. É papel da ideologia, portanto, homogeneizar a ordem social em todas
as suas dimensões, desde as condutas e idiossincrasias até as representações, crenças e mitos
individuais ou sociais, não admitindo práticas dissonantes que ameacem o que está instituído,
estabelecido e aceito como legítimo (SOUSA FILHO, 2007). Desta forma, os protagonistas
da agressão bullying, sejam agressores, vítimas ou espectadores, representam expressões de
transgressão a ordem e as normas institucionais (da escola, da família ou da cultura), ao irem
em direção contrária ao itinerário sociocultural legítimo, mediante a desordem que causam
graças aos seus comportamentos de agressão/vitimização. A sociedade e suas instituições, por
sua vez, continuam ali, imaculadas e intocadas, a despeito dos traumas e problemas que
recaem nos participantes da intimidação.
2.3 A CATEGORIA DE GÊNERO NO ÂMBITO DA HETERONORMATIVIDADE:
SOBRE COMO MENINOS SE TORNAM AGRESSIVOS
Para finalizar a discussão desta seção, considera-se necessário mencionar outro
exemplo de manifestação da ideologia na realidade social, agora através da concepção pública
moderna em torno do que se depreende sobre a prática da homossexualidade, ou seja, a crença
de que é um comportamento localizado na dimensão patológica/desviante, nas margens do
discurso/prática social que conferem legitimidade a realidade. Tal ideologia, manifestada sob
50
a forma de crenças, enunciados ou produção de sentidos e saberes, produz uma série de
representações sociais de tácita rejeição/abjeção a esta prática sexual e aos seus praticantes.
Este sentido social, uma vez instituído hegemonicamente e consolidado, culmina na produção
de discursos morais provenientes de diversas instituições, tais como a igreja e a família
tradicional, que rejeitam e condenam a homossexualidade como forma abjeta de expressão do
desejo humano, relegando-a ao degredo. Aqui, me reporto finalmente ao segundo argumento
que explica a questão bullying sob o enfoque sociológico: a categoria de gênero no âmbito da
heteronormatividade.
Se a ideologia do conceito de bullying escamoteia o conflito e as tensões sociais
inerentes à manifestação do fenômeno, deslocando o foco do problema do social para o
individual e imputando aos sujeitos a culpa e as razões de suas dores, o que motiva, conforme
já debatido, o retorno de muitos deles para atacar aquela realidade que outrora foi palco de seu
sofrimento. A questão de gênero explica porque meninos são mais pungentes e explícitos em
suas agressões e meninas escamoteiam sua raiva e agressividade para não terem sua
feminilidade questionada.
A produção dos gêneros humanos ao longo da história, conforme atesta Bento (2006),
revela que as diferenças entre homem e mulher durante muito tempo foram, e ainda são,
concebidas numa perspectiva exclusivamente dicotômica e naturalizante: o binarismo de
gênero. Em linhas gerais, os sujeitos de qualquer sociedade são classificados existencialmente
a partir de duas categorias diametralmente distintas, porém complementares, a do homem e a
da mulher. Tal classificação é retilínea, ou seja, para que um sujeito seja classificado como
homem legítimo numa determinada sociedade, ele deve se enquadrar inexoravelmente no
seguinte axioma: pênis-homem-racionalidade-paternidade-procriação-heterossexualidade. A
mulher, por sua vez, enquadra-se na perspectiva axiomática: vagina-mulher-emoção-
maternidade-procriação-sexualidade. Este sistema dicotômico, fundamentado na diferença
sexual/genital, impõe a qualquer sujeito uma concordância em sua existência entre seu gênero
(papel social de atuação), corpo (dimensão estético-física) e sexualidade (dimensão
reprodutiva e hedônica). Tal sistema é legitimado pelo discurso ideológico heteronormativo,
o conjunto de critérios tradicionais que vincula diretamente o comportamento social e a
identidade sexual do sujeito à sua genitália. As instituições estão aí, normatizando, policiando
e vigiando os possíveis deslizes ou deslocamentos dos indivíduos. Caso o sujeito porventura
destoe dos axiomas que lhe são impostos exclusivamente a partir de sua genitália, passam a
ser estigmatizados, patologizados ou deslocados para as margens da convivência social.
51
Conforme conceitua Richard Miskolci (2009), em seu Dossiê intitulado A Teoria
Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização:
A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as
obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como
natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais do que o aperçu de
que a heterossexualidade é compulsória, a heteronormatividade é um
conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e
controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo
oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e
normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo
histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem
heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente
coerente, superior e “natural” da heterossexualidade. (MISKOLCI, 2009,
pp.156-157).
Este emparelhamento heteronormativo, de acordo com o autor, representa um conjunto
de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle dos sujeitos para que
organizem suas vidas a partir do modelo heterossexual de convivência, tido como legítimo,
ideal e hegemônico. A ideologia referenda este dispositivo de controle através de um discurso
que lhe confere a aparência de superioridade, coerência e naturalidade e diz que ser
heterossexual é inerente à natureza humana e necessário à sua manutenção existencial através
da reprodução. Qualquer coisa fora deste paradigma está localizada na dimensão do abjeto, do
proibido, do errado, do doentio, do imoral e do anormal.
Portanto, ser “homem heterossexual” é o ideal de gênero a ser seguido e vivido pelos
sujeitos genitalmente concordantes com este axioma. E não basta ao indivíduo expressar tal
“verdade” apenas no âmbito da sua sexualidade em si, lugar em que os policiamentos
institucionais obtêm menor êxito em seu intento normatizador, visto que a prática sexual
reside no campo do privado, do íntimo ou do escondido. O seu comportamento público, sua
composição estética, suas preferências culturais, seus gostos musicais etc. também devem
deixar bastante claro para a sociedade sua filiação inexorável a esta insígnia heterossexual.
Caso contrário, será questionado, estigmatizado e defenestrado da convivência socialmente
legítima.
Desta forma, cabe ao sujeito homem e heterossexual expressar sua virilidade, força e
atitude, atributos exclusivamente masculinos, através de atividades e comportamentos físicos,
pungentes, racionais e até mesmo violentos. Na escola, a masculinidade é materializada em
seus corpos através das atitudes e preferências por espaços de desafio e competição física; por
esportes ou competições atléticas baseadas na demonstração de força e sagacidade; por
52
atitudes culturais que valorizem a coragem, a bravura e a racionalidade e por resoluções dos
conflitos interpessoais com base na violência. O bullying masculino, muito além das
percepções discursivas que pululam o paradigma tradicional dos estudiosos do fenômeno,
representa uma expressão de assertividade masculina de um indivíduo sobre outro, no intuito
de se granjear prestígio e popularidade social através do conflito, da disputa e da competição.
E isto só pode ocorrer mediante atitudes explícitas, que reforcem a masculinidade de quem
agride sobre quem é agredido. Não à toa, muitos casos de brigas e ataques entre garotos são
filmados, celebrados e reverenciados por aqueles que assistem ao embate, legitimando a
atitude de violência que ali ocorre. Disputas masculinas, portanto, destoam sobremaneira das
disputas femininas. Afinal de contas, segundo atesta Simmons (2004), aos homens está
facultado o direito de expressar sua raiva e agressividade conforme a idealização de gênero
que lhe é imposta compulsoriamente, de maneira explícita, aberta, veemente, viril, física e
baseada no uso da força.
A ideologia e a heteronormatividade são noções que caminham lado a lado para
justificar em parte o que está por trás de muitas explosões de violência masculina no contexto
histórico das agressões bullying. Também são argumentos firmes para justificar a
manifestação de outras expressões de violência em ambientes diversos ao escolar, tais como a
homofobia, que muitos autores definem com bullying homofóbico (FANTE; PEDRA, 2008)
ou o assédio moral em ambientes de trabalho, denominado como mobbing (FANTE; PEDRA,
2008). Estes últimos traços de violência também são desdobramentos de condutas abusivas
cultivadas ao longo do tempo por muitos agressores ou bullies, que desde criança
demonstravam em suas atitudes a intolerância e o desrespeito com quem destoa dos padrões
de ser e de agir, sendo a maioria deles provenientes do sexo masculino.
Não se trata de divinizar ou demonizar os enfoques teóricos discutidos ao longo deste
capítulo, busca-se perceber criticamente que o foco do problema bullying, suas causas e
consequências, muito antes de residir apenas em seus protagonistas e suas subjetividades,
repousa numa constelação de variáveis sociais, culturais e individuais. Visto que essas
variações exigem por si mesmas uma interpretação crítica, se o objetivo de qualquer ciência é
o de fornecer inteligibilidade a uma questão tão complexa e multifacetada tal qual é o
bullying. Como a sociologia oferece diversas ferramentas em seu vasto cabedal de
conhecimento para ampliar este complexo e desafiador debate, no próximo capítulo, irei
enveredar a discussão para o sexo feminino. Com o intuito de entender “Por que as meninas
expressam sua raiva e agressividade de maneira distinta dos garotos? ” “Estariam também por
trás da produção desta diferença de atitudes as questões de gênero e ideologia? ”
53
3 ÍNTIMAS, INIMIGAS E DISSIMULADAS: NOTAS
SOCIOLÓGICAS SOBRE O BULLYING ESCOLAR PRATICADO
ENTRE MENINAS
3.1 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO
CONVENCIONAIS: O DIÁLOGO COM O ENFOQUE/PARADIGMA
TRADICIONAL
No capítulo anterior, discutiu-se sobre as particularidades inerentes ao universo de
agressões bullying praticados por membros do sexo masculino. Verificou-se que suas práticas
agressivas são mais diretas, físicas e explícitas, quando comparadas com o universo de
agressões feminino. Mas, por que existe tamanha discrepância entre os sexos quando o
assunto é a intimidação bullying?
O ponto de partida desta discussão é a obra da autora norte-americana Rachel
Simmons (2004) intitulada Garota fora do jogo. Neste livro, a autora destaca de maneira
abrangente a existência de uma “cultura oculta da agressividade nas meninas” que, ao
contrário dos meninos, é marcada pelo silêncio da sociedade que escamoteia o
reconhecimento do fenômeno e pela manipulação íntima e social da vítima. A autora revela
que muito mais do que dar voz a um problema tratado com marginalidade pela cultura e
sociedade, ela estava dando voz para si mesma (já que na infância havia sido vítima de
bullying) e para o público com o qual interagiu, rompendo de vez o silêncio que sempre
entremeou suas existências.
De acordo com a estudiosa, os ataques entre garotas, cuja denominação no livro é o de
“bullying das meninas”, geralmente acontecem dentro de um círculo restrito de amizades,
onde a agressividade e a raiva são expressas de forma indireta, dissimulada e não-física. As
meninas se utilizam da maledicência, da fofoca, de apelidos maldosos e manipulações para
infligir sofrimento psicológico às suas vítimas. (SIMMONS, 2004, p. 11). Por se tratar de
agressões restritas a círculos de amizades íntimos, se tornam mais difíceis de serem
identificadas por um observador, culminando em maior sofrimento às vítimas. É importante
destacar três aspectos: o primeiro refere-se ao fato de que pela sutileza com que a intimidação
ocorre, deduz-se que as agressoras agem com maior crueldade contra suas vítimas através de
conspirações, boatos, cochichos, isolamento social, difamações e injúrias; o segundo assevera
que a cultura nega às meninas o acesso ao conflito aberto, a expressões veementes de
54
agressividade e de raiva em suas intimidações; por último, a autora deixa claro que não
pretende afirmar que o sentimento de raiva e de agressividade entre ambos os sexos é
diferente, mas as formas como cada um deles as expressam, sim. A agressão das meninas é
mais dissimulada e relacional, a dos meninos mais direta e física/material, o que não significa
que sejam diferentes quanto aos sentimentos e emoções mobilizados.
Ao longo da obra, Simmons (2004) faz importantes alertas: primeiramente, apesar das
diferenças claras de atitudes entre meninos e meninas, num contexto hipotético de agressão
bullying, ela não pretende sugerir a suposta existência de um cenário engessado/fixo dos
perfis dos seus protagonistas, como que se cada papel – de vítima, agressor ou espectador –
representasse um lugar estanque e estereotipado para acomodação dos sujeitos envolvidos na
dinâmica do problema. Nesse sentido, agredir uma vítima com o uso da força física, por
exemplo, embora seja mais recorrente entre meninos, também é uma atitude relativamente
verificada em conflitos agressivos entre meninas. Da mesma forma, meninos também se
utilizam da maledicência, da conspiração e da manipulação de suas vítimas para efetivar suas
intimidações. Conforme atestam Albino e Terêncio (2012), ainda que o enfoque/paradigma
tradicional que concebe a agressão bullying privilegie o fracionamento dos papéis dos
personagens de uma agressão como estratégia de análise, é mais viável a ideia de que estes
papéis são bastante voláteis e intercambiáveis, de forma que um mesmo indivíduo, no
decorrer de sua vida escolar, pode se tornar agressor, vítima e espectador em variados
contextos de agressão.
Outro destaque importante que Simmons (2004) faz, repousa no fato de que a
conscientização pública sobre a questão do bullying geralmente abrange as agressões
perpetradas entre garotos, especialmente por causa das diversas tragédias com armas de fogo
em ambientes escolares e acadêmicos que ocorreram ao redor do mundo. As discussões sobre
o tema ainda insistem em focalizar a questão da agressividade masculina em detrimento da
feminina, como se os danos causados pelos primeiros fossem muito mais brutais que o das
últimas. Em sua própria experiência pessoal de pesquisa sobre a questão, a autora demonstra
como se sentiu diante deste fato:
Num oceano de artigos sobre a agressão e bullying dos meninos, havia
apenas um punhado de artigos sobre meninas. Não havia livros disponíveis.
Nenhum guia para pais. Nenhum manual de sobrevivência engraçadinho
para crianças. Sentada ali, lendo os artigos, eu não conseguia me identificar,
nem a Abby (sua agressora na infância), naquilo que a maioria desses
pesquisadores chamavam de bullying. Primeiro, fiquei surpresa, depois,
frustrada. (SIMMONS, 2004, p. 10).
55
Outro fato é o de que nem todas as garotas se esquivam do conflito, da agressão
oculta, alternativa ou convencional, o comportamento não é unânime entre as garotas.
Contudo, meninas brancas e provenientes da classe média, em função da maior rigidez com
que as regras de feminilidade lhes são impostas, são majoritariamente mais adeptas a
modalidade alternativa de intimidação do que outros grupos pesquisados por Simmons
(2004), como as negras, as latinas e as operárias, que se utilizam mais da franqueza, da
assertividade e do conflito direto para resolver os conflitos. Assim, Simmons (2004) destaca
que o bullying feminino se subdivide em três categorias distintas de comportamento
agressivo: a) a agressão relacional, em que atitudes de punição e isolamento sobre a vítima se
dão no âmbito do relacionamento de amizade, mascarado por um falso apego e por uma
cordial intimidade entre a agressora e o seu alvo; b) a agressão indireta, no qual a algoz evita
o contato direto com sua vítima e utiliza terceiros como veículo para agredi-la; c) as agressões
alternativas, em que o alvo é manipulado por um grupo específico do qual faz parte, sem
conseguir se desprender de suas agressoras por medo da solidão e do isolamento.
3.2 AS PARTICULARIDADES DAS AGRESSÕES “ALTERNATIVAS” OU NÃO
CONVENCIONAIS: A PROPOSIÇÃO DE UM DIÁLOGO SOCIOLÓGICO
Rachel Simmons (2004) representa um duplo divisor de águas no universo das
discussões gerais sobre o fenômeno bullying, pois ao passo que ela rompe com a lógica
analítica inerente ao enfoque/paradigma tradicional que trata da agressão em questão, também
apresenta ao mundo acadêmico, de maneira mais descortinada e sistemática, o bullying
feminino como uma expressão de intimidação tão danosa quanto sua correspondente
masculina. Observa-se que a autora quer lançar luz para outra dimensão do problema bullying,
que a cultura hegemônica ainda insiste em relegar a escamoteação, já que ainda se privilegia o
discurso de solução das agressões baseando-se no modelo de bullying masculino. Mas, de que
maneira ocorre este processo de desprestígio da modalidade feminina do bullying?
A discussão se dará mediante o diálogo entre ideologia, o conceito de gênero sob a
perspectiva heteronormativa e a crítica a forma de produção do discurso hegemônico em torno
do bullying. A primeira definição está ligada à crítica ao saber hegemônico, denominada de
enfoque/paradigma tradicional. A questão do discurso, por sua vez, será analisada sob uma
perspectiva crítica em torno de seu processo de produção, controle e regulação. Já a noção de
gênero sob o enfoque heteronormativo é um desdobramento das discussões desencadeadas em
56
torno da questão da ideologia. Afinal de contas, são noções intercambiáveis no amplo
universo de discussões da sociologia.
Inicialmente, relembro uma das principais preocupações registradas pela escritora
Rachel Simmons (2004), a constatação do privilégio social/público feito em torno da
discussão que se faz sobre o bullying masculino e o esquecimento público/social em torno da
agressão realizada entre garotas/meninas/mulheres. Nessa perspectiva, o problema reside na
concepção cultural que se faz em torno do “ser mulher, do que deve predominar, em nossa
sociedade, nas individualidades femininas. Por meio do amparo e anuência das instituições
sociais e do imaginário popular, concebe-se a expectativa social de gênero em torno dos
sujeitos femininos através do “mito da ‘boa menina’, desde pequenas, as garotas são criadas
para se cuidarem e se protegerem; para serem gentis boazinhas e meigas; para ter muitas
amizades, baseadas na cordialidade e no zelo ao próximo; e para nunca, jamais, demonstrarem
em suas manifestações pessoais e sociais raiva e agressividade. ” (SIMMONS, 2004, pp. 27-
29). Nesse sentido, ser uma “boa menina” expressa um papel que está em profundo desacordo
com a agressão e a raiva, em contraponto ao que é chancelado para os garotos, em suas
condutas interpessoais. “Boas meninas, portanto, não devem sentir raiva. A agressão ameaça
os relacionamentos, colocando em risco a capacidade da menina de ser cuidadosa e
‘boazinha’. A agressão destrói aos poucos aquela pessoa em que as meninas devem se
transformar quando adultas.” (SIMMONS, 2004, p. 28). A partir disso, como interpretar
sociologicamente o fenômeno de mitificação do feminino baseado numa opressão cultural que
se impõe sobre a forma de existir das mulheres?
Para lançar luz a esta questão, Michel Foucault (2011), em A Ordem do Discurso,
explica como “a produção do discurso12
é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade.” (FOUCAULT, 2011, p. 9). De modo que qualquer discurso produzido na
realidade social é sempre alvo de regulação, normatização e controle em torno de sua
distribuição, especialmente feitos pelas instituições religiosa, jurídica, familiar etc., com a
finalidade principal de reproduzir e perpetuar os valores de dominação hegemônicos
estipulados como válidos por uma realidade social de maneira sutil, escamoteada e suave.
12
Sobre a definição deste termo, Foucault (2011, p. 49) explica que “o discurso nada mais é do que a
reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma
do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as
coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência em
si.”
57
Dentre os mecanismos de controle e regulação que se impõem sobre a produção do
discurso, chamo atenção para aquilo que Foucault (2011) definiu como procedimentos de
exclusão, que são as limitações impostas sobre um discurso para definir o que se pode ou não
fazer através da expressão de seus enunciados e sentidos. De maneira sintética, os três
procedimentos em questão são a interdição da palavra; a questão da separação e da rejeição; e
a vontade de verdade a que se pretende um discurso. Na interdição da palavra, Foucault
(2011, p. 9) é bastante preciso ao afirmar que “o mais evidente, o mais familiar também, é a
interdição. Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. ” Já a
segunda forma de exclusão diz respeito à segregação, classificação e rejeição pelo qual um
sujeito passa através de seu discurso, caso ele não esteja submetido adequadamente às normas
sociais vigentes. Foucault (2011) cita um exemplo de como isto ocorre:
Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é
aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que
sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade
nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo
autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da
missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo. (FOUCAULT,
2011, pp. 10-11).
Por fim, há a questão da vontade de verdade inerente a qualquer discurso, o modo
como se dá historicamente a produção da verdade e como ela se localiza estrategicamente em
cada discurso ao longo da história de uma sociedade. O valor de verdade inerente a um
discurso é uma questão historicamente construída e estabelecida, portanto, variável conforme
os interesses sociais de um povo em dado momento de sua história. (FOUCAULT, 2011).
A partir dessa breve explanação feita sobre os procedimentos de exclusão que envolve
a produção do discurso, procedo na primeira interpretação crítica da questão do bullying
feminino, feita sob as lentes do universo analítico supracitado. Ao retomar a Simmons (2004),
percebi a denúncia em torno da recorrente tentativa da cultura e da sociedade de impor uma
exclusão/interdição sobre as falas das garotas, sobre suas necessidades de expressarem de
maneira declarada, aberta e pública o conflito bullying que vivenciam entre si. Conforme a
autora:
Algumas agressões alternativas são invisíveis aos olhos dos adultos. Para se
esquivarem da desaprovação social, as meninas se escondem sob uma
fachada de doçura para se magoarem mutuamente em segredo. Elas passam
olhares dissimulados e bilhetes, manipulam silenciosamente o tempo todo,
58
encurralam-se nos corredores, dão as costas, cochicham e sorriem. Esses
atos, cuja intenção é evitar serem desmascaradas e punidas, são
epidêmicos em ambientes de classe média, em que as regras de feminilidade
são mais rígidas. (SIMMONS, 2004, p. 33, grifo nosso).
Fica claro, desta forma, que não é facultado às garotas o direito de enunciarem
agressivamente seus sentimentos através de uma linguagem aberta e compreensiva ao meio
social. Já que a produção de uma linguagem exclusiva de agressão feita pelas meninas,
caracterizada como relacional, íntima, indireta, não declarada, conspiradora e dissimulada,
reflete o degredo em que podem manifestar suas expressões de hostilidade. De forma que é
uma linguagem somente inteligível e decodificada por aquelas que participam do universo
exclusivo e fechado de relacionamento.
A segunda interdição diz respeito à postura social que obrigatoriamente devem manter
em seus comportamentos para que não sejam desmascaradas e punidas em público. O mito da
“boa garota” é a expressão de uma fachada que deve salvaguardar em seus comportamentos
públicos a imagem de bondade e gentileza, para que não sejam segregadas e rejeitadas
socialmente. Para tanto, a despeito do discurso agressivo que utilizam intimamente em suas
intimidações, há em seus comportamentos públicos o contraditório discurso de candura,
respeito, polidez, educação e cordialidade. Afinal de contas, de acordo com Simmons (2004,
p. 28), “a cultura ridiculariza a agressão nas meninas como não feminina”. Assim, qualquer
violação em torno do seu papel de gênero compulsoriamente determinado (como a de uma
pessoa que dá carinho e zela pelos relacionamentos e amizades) representa uma ameaça a sua
reputação e feminilidade, podendo lhes condenar a rejeição social e comunitária. De modo
que quando a personalidade de uma garota apresenta características tradicionalmente
atribuídas ao gênero masculino, como posturas de assertividade, veemência e determinação,
há questionamentos e dúvidas das mais diversas quanto ao seu papel de “boa menina”, em seu
convívio social.
A terceira interdição – a vontade de verdade – repousa na forma como a ciência e a
literatura acadêmica, juntas, situam a questão do bullying feminino em comparação ao seu
correspondente masculino. Visto que existe uma abundância de estudos e pesquisas sobre a
agressão masculina e uma rarefação sobre a questão feminina. Debatendo sobre este assunto,
Simmons (2004) pontua:
[...] as primeiras pesquisas sobre agressão transformaram o “mito” da “boa”
menina, não agressiva, em fato: as primeiras experiências de agressão foram
realizadas quase sem a presença de participantes do sexo feminino. Como os
59
homens tendem a exibir diretamente a agressão, os pesquisadores
concluíram que ela se expressava somente desta maneira. Outras formas de
agressão, quando observadas, foram rotuladas como desvio ou ignoradas.
(SIMMONS, 2004, p. 31).
E tece as seguintes observações sobre as dificuldades que obstaculizam a realização de
pesquisas sobre o bullying entre meninas:
Os estudos sobre o bullying herdaram estas falhas das primeiras pesquisas. A
maioria dos psicólogos procurava agressões diretas, como socar, ameaçar e
implicar. Os cientistas também mediram a agressão em ambientes onde atos
indiretos seriam quase impossíveis de observar. Vista segundo a perspectiva
dos cientistas, a vida social das meninas parecia plácida e tranquila com as
águas de um lago. Foi somente em 1992 que alguém questionou o que havia
sob a superfície. (SIMMONS, 2004, p. 31).
A verdade a que se pretende filiar a discussão sobre bullying no âmbito do paradigma
tradicional13
configura-se apenas como uma “possibilidade de verdade”. Trata-se de
enunciados que não questionam a ordem instituída, que celebram a validade do discurso
hegemônico (que trata do bullying masculino como único problema real a ser solucionado);
que são mantidos pelas estruturas sociais que lhe validam/qualificam/legitimam14
; e põem nas
margens outras manifestações destoantes (como o bullying feminino, por exemplo). O que se
dá sob o epíteto justificativo de que se tratam de “brincadeiras”, “rituais de maturidade”, isso
quando as manifestações não são ignoradas em si mesmas.
Não é difícil perceber o caráter ideológico que envolve esta discussão, seja nas
individualidades das meninas, quando se expressam sob uma inerente duplicidade em torno de
sua imagem pessoal – no privado são agressivas, em público são doces e meigas – seja na
cultura, que sustenta uma elaboração imagética ilusória com a finalidade de preservar o que
está socialmente instituído. Afinal de contas, a eficácia da ideologia decorre “de sua
ancoragem invisível nas esferas psíquica, emocional e cognitiva do indivíduo. ” (SOUSA
FILHO, 2007, p. 26). Essa ancoragem submete compulsoriamente o sujeito à cultura
hegemônica da qual faz parte, que aliena a auto percepção enquanto elemento
construído/fabricado/elaborado pela cultura e que lhe legitima como membro da sociedade
apenas através desta destinação forçada, que impõe as convenções morais, sociais e culturais
como coisas verdadeiras, únicas, eternas e imutáveis. No caso das meninas, por exemplo, a
maioria acredita realmente que nasceu para ser boa, gentil, amável, nutriz e protetora, pois
13
Perspectiva que prioriza o enfoque sobre as agressões masculinas em detrimento das femininas. 14
A pedagogia médica e psicológica, por exemplo, são instituições que reforçam esta ideia de “verdade”.
60
esta identificação decorre da crença em torno de uma suposta “natureza” feminina. Ideologia
e discurso, portanto, são expressões de poder, normatização e regulação das existências dos
sujeitos através dos processos de socialização efetivados pelo sistema cultural hegemônico e
as instituições que lhe sustentam.
Para finalizar, complemento a discussão destacando o enfoque de gênero que
tradicionalmente é imposto pela cultura hegemônica sobre as individualidades femininas: o
heteronormativo. Da mesma forma que ocorre entre os meninos, as meninas são
compulsoriamente orientadas a se constituírem segundo o axioma concebido como
“genuinamente feminino”, que é imposto sobre suas subjetividades muitas vezes desde antes
do nascimento: vagina-mulher-emoção-maternidade-procriação-sexualidade. Trata-se,
portanto, de tecnologias discursivas (BENTO, 2006) que constantemente aparam/retificam as
fissuras que porventura possam surgir ao longo de seus desenvolvimentos humanos, através
de ferramentas de interdição e proibição que calcinam os “erros” porventura cometidos:
fissuras/erros sociais (interdições sobre comportamentos públicos, posturas, vestuários e
espaços a serem ocupados); fissuras/erros subjetivos (proibições sobre emoções, sentimentos,
e sensações que não são inerentes à expectativa de gênero feminina); e fissuras/erros estéticos
(a necessidade que eternamente acompanha os sujeitos femininos mediante a apresentação de
corpos depilados, ornamentados e desenhados conforme o itinerário que lhes é imposto).
Não à toa, a obra de Rachel Simmons (2004), além de chamar atenção para um
problema grave de intimidação que ocorre silenciosamente nas relações interpessoais
femininas, também denuncia a opressão ideológica e discursiva que a cultura impõe sobre o
modo de existir feminino. Sousa Filho (2007) define a ideologia da heterossexualidade
compulsória, ao dizer que é:
Modo ideológico de representar a realidade do sexo humano e as “marcas de
gênero” nos corpos, que, dentre outros efeitos, concorre para a produção e
sustentação da falsa ideia da diferença sexual como dada a priori, em algum
plano (biológico ou “outro”, na metafísica da substância), e da ideia
correlata-imediata da heterossexualidade como igualmente natural e inata –
ideologia da heterossexualidade obrigatória. Tudo o que não se enquadra
nesse esquema passa a ser considerado da ordem do “desvio”, do “bizarro”,
da “anomalia”. Esquema fundador dos preconceitos e da discriminação
contra homossexuais e, igualmente, contra travestis, transexuais. (SOUSA
FILHO, 2007, pp. 28-29).
Todavia, nem todo processo de socialização e de experiência na cultura por parte dos
sujeitos humanos se restringe apenas à sujeição ideológica e a dominação (SOUSA FILHO,
61
2007, p. 26): “manifestações de resistência; transgressões; subversões e criações atestam o
fracasso da sociologia em seu intento domesticador e homogeneizador da vida individual e
coletiva.” Rupturas ou furos na realidade cultural hegemônica são, portanto,
constantes/recorrentes e demonstram, que nem todos os indivíduos são submissos ao
aparelhamento discursivo/ideológico hegemônico da realidade social. Se a busca que sempre
se faz é pela emancipação do sujeito frente à hegemonia cultural que lhe oprime, tais
transgressões já constituem um passo importante na longa busca por este ideal.
Desta forma, a sociologia oferta, através de seus conceitos, teorias e métodos, novas
elucubrações que permitem formas modernas de compreensão sobre a questão do bullying
tanto masculino, quanto feminino, dando novo fôlego a este debate através de novas
proposituras discursivas. A concepção tradicional da agressão bullying, para além da
ideologia e da hegemonia discursiva que a sustentam, pode ser sujeita a fissuras/rupturas
metodológicas e epistemológicas, que permitam a qualquer pesquisador do tema a utilização
de intepretações científicas inéditas para dialogar e apontar novas direções, caminhos e
orientações, na busca por soluções em torno desta complexa dinâmica agressiva. A fim deste
propósito esta dissertação ancorou suas linhas escritas e argumentos utilizados.
62
4 ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: O BULLYING ANALISADO
ATRAVÉS DA MODALIDADE ENTREVISTA
4.1 A FORMA DE COLETA DE DADOS: A ENTREVISTA SOB A MODALIDADE
HISTÓRIA DE VIDA
O capítulo final desta dissertação tem como finalidade apresentar uma análise
pormenorizada em torno de duas entrevistas realizadas ao longo dos estudos de mestrado,
empreendidas junto a personagens do sexo feminino, que em momentos determinados de suas
respectivas trajetórias de vida experimentaram de alguma forma os efeitos da agressão
bullying.
Na primeira entrevista, interpelo uma professora universitária aposentada que no
contexto passado de sua vida vivenciou momentos de hostilidade em etapas diferentes de sua
trajetória. Na segunda, dialogo com uma jovem profissional da área de saúde, fonoaudióloga,
que, diferentemente da primeira entrevistada, foi alvo de agressões bullying apenas no período
de sua infância escolar. Em torno de ambas as histórias, destaque-se a realização feita por esta
pesquisa de um reconhecimento prévio em torno de suas respectivas histórias pessoais: no
primeiro caso, recorreu-se a leitura antecipada do livro autobiográfico escrito pela
entrevistada, intitulado Assim Vivi, Assim Amei (2015); no segundo, buscou-se informações a
priori através de conversas informais realizadas junto a personagem. Ao final deste primeiro
momento de análise em torno de cada entrevista supracitada, procede-se a elaboração de um
breve paralelo entre tais narrativas, auxiliada pelas lentes teóricas e conceituais que
tradicionalmente vislumbram a temática bullying.
Antes de iniciar esta jornada, faz-se necessário realizar uma pequena incursão
esclarecedora sobre o emprego da metodologia destinada a coletar os dados ou informações
das entrevistadas, sobre o uso da pesquisa bibliográfica tópica inerente à realização de
entrevistas elaboradas sob a modalidade história de vida. Conforme explica Minayo (1996),
trata-se de um conjunto de procedimentos utilizados pelo entrevistador na tentativa de
focalizar uma etapa ou um determinado setor da biografia do entrevistado, que porventura
esteja caracterizado pela experiência que é foco principal da discussão. Assim, em ambas as
entrevistas realizadas por esta pesquisa, não se recorre à utilização do conjunto total da
experiência biográfica vivida, mas as etapas que dizem respeito especificamente à
manifestação da agressão bullying, alvo dos estudos desta dissertação. Embora se tenha aqui
63
observado fielmente todos os procedimentos exigidos em qualquer entrevista de história de
vida (como a interação profunda com o informante; a privacidade em torno do acolhimento
aos pensamentos reprimidos que porventura cheguem ao entrevistador em tom de confidência;
a não elaboração de perguntas fora de contexto ou tendenciosas; e uma pesquisa biográfica
antecipada sobre o entrevistado), a dissertação não se isentou de observar os significados,
valores, crenças e motivações por trás de cada fala dos respectivos personagens. Ainda que
seja clara a adoção de uma neutralidade axiológica inexoravelmente necessária à conduta
deste entrevistador, tentou-se aprofundar, através de algumas perguntas pontuais, o
significado que as personagens conferiram a alguns trechos específicos de sua experiência
agressiva em face da vivência global da intimidação.
Enquanto entrevistador é importante destacar também o conjunto de posturas que se
procurou constantemente adotar no decorrer das entrevistas, no intuito de se adequar às
recomendações que o sociólogo Pierre Bourdieu (2008) faz em seu livro A Miséria do Mundo.
Tais como a utilização de um diálogo “socrático”, de uma interlocução baseada numa “escuta
ativa e metódica” que permita dar fluidez a voz do entrevistado; a “autoanálise provocada e
acompanhada”, no qual o entrevistador insinua-se na tentativa de fazer emergir na fala do
entrevistado enunciações expressivo-extraordinárias que outrora nunca teve a oportunidade de
explicitar; a produção de um roteiro de questões que suavize os constrangimentos sociais
subjacentes à exposição das narrativas autobiográficas; a estratégia de intervenção maiêutica,
no qual não em nenhum momento se extorque do entrevistado suas respostas como se fossem
inteiramente provenientes de suas subjetividades, mas como elementos inerentes ao complexo
quebra cabeça cultural que se constitui como fonte de suas percepções existenciais; as
preocupações em torno da fidelidade a tudo o que foi manifestado e colhido pela entrevista; e
à inteligibilidade durante o processo de transcrição das narrativas, momento em que o
entrevistador faz na sua escrita, ponderações explicativas em torno de passagens de áudio que
se configurem como obtuso-ilegíveis no âmbito da entrevista. Feitas estas considerações e
esclarecimentos, apresenta-se a seguir a análise em torno de cada uma das entrevistas
realizadas.
4.2 ENTREVISTA COM SAFIRA AMMANN, CAICOENSE E PROFESSORA
APOSENTADA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB.
64
A entrevista abaixo15
, que contou com a participação da Professora Lore Fortes
(UFRN), foi realizada no dia 15 de outubro de 2015, mais precisamente numa manhã
ensolarada de quinta-feira. Residindo em um alto edifício localizado no bairro de Ponta
Negra, na Zona Sul da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, a entrevistada Safira Bezerra
Ammann nos recebeu de maneira amistosa na sala de seu apartamento para nos relatar
algumas de suas experiências de vida que, conforme ela mesma classificara em seu livro
autobiográfico Assim Vivi, Assim Amei (2015), lhe são percebidas como opressoras e hostis.
Aos oitenta e três anos de vida, casada com um suíço e professora aposentada pela UnB,
Safira, seridoense de Caicó/RN, acumulou ao longo de sua trajetória biográfica diversas
experiências dentro e fora do Brasil, graças à profícua bagagem cultural que adquiriu como
resultado das diversas viagens feitas ao redor do mundo e da extensa trajetória acadêmica e
profissional que desenvolveu em sua vida. Sentados os três na sala da anfitriã após os
amistosos ritos de apresentação, demos início à gravação da entrevista, realizada através de
uma narrativa corrente e paulatinamente articulada com pequenas pausas para esclarecimentos
sobre um ou outro trecho/episódio de sua história de vida.
A narrativa se inicia com uma breve contextualização pessoal da entrevistada sobre
seu nascimento e infância no interior potiguar, vivida até os oito anos de idade em duas
fazendas na região do Seridó, nas quais sua família residiu à época. Durante este período,
Safira não teve a companhia dos seus sete irmãos, pois todos já estudavam na cidade, o que a
levou ao convívio com os filhos dos moradores da fazenda. Ela descreve: “Eu era uma filha
solitária no sentido de que dos meus irmãos o mais próximo a mim tinha sete anos de
diferença e estudava em Caicó e em Natal. Então, fui uma filha quase que única, no sentido de
que era eu sozinha na fazenda com meus pais. ” (SAFIRA, entrevista, 2015). O convívio com
os moradores locais, somado a distância dos irmãos, fez com que ela adquirisse os hábitos
deles, especialmente no âmbito da linguagem e do vocabulário, que, naquela época,
destoavam bastante dos costumes dos habitantes das cidades. Conforme relata:
Então, isso já para contextualizar o fato que vem em seguida, minha
linguagem / vocabulário era muito parecido com o dos filhos dos moradores.
eu (...) não tinha um vocabulário “rico” como o das crianças de Caicó. E aos
oito anos de idade fui morar em Caicó para estudar porque meus pais
alfabetizavam todos os filhos em casa e quando íamos para escola já era no
segundo ano primário. (SAFIRA, entrevista, 2015).
15
A entrevista se encontra na íntegra em anexo.
65
Com oito anos de idade, mudou-se para a cidade de Caicó para dar continuidade aos
seus estudos, o que foi crucial naquele momento de sua infância, tendo passado a residir com
sua irmã mais velha (e também madrinha) e suas duas filhas, que eram quase da sua idade.
Segundo Safira, “uma delas era minha colega de turma na escola. Elas eram meninas da
cidade, caicoenses, nascidas e criadas em Caicó. E eu era menina do mato de modo que eu já
era discriminada aí de entrada. Elas tinham um vocabulário caicoense e eu era rural, chamada
Menina do Mato.” (SAFIRA, entrevista, 2015).
Nesta etapa, Safira experimentou a primeira hostilidade em relação aos seus hábitos
interioranos por parte dos habitantes da cidade, ou ainda pior, pelos membros de sua própria
família. Embora estivesse sofrendo com tudo aquilo, ela relata que não encarava tais
hostilidades propriamente como uma agressão bullying:
(...) naquele tempo eu não tinha a menor noção disso aí. Eu só me sentia
diminuída, inferior. Eu não tinha a capacidade de absorver essa relação, esse
preconceito de bullying, não. Eu só me sentia inferior. Eu era uma Menina
do Mato e eles eram crianças da cidade. Eu me sentia inferior a eles, mas não
conseguia contextualizar nem conceituar nada disso. (SAFIRA, 2015).
Episódios posteriores viriam a intimidá-la novamente na infância, especialmente por
sua pouca familiaridade com determinadas brincadeiras típicas da cidade:
Eu me lembro de ter levado uma bolada no rosto, porque eu não dominava a
bola. Ela não fazia parte de meu mundo rural. Nossos brinquedos eram
muito diferentes. Nós não tínhamos bolas de futebol ou de vôlei, isso não
existia em nossa fazenda. Então quando cheguei a Caicó, eu não conhecia o
jogo, e levava boladas muito dolorosas no rosto. A turma gozava e me
vaiava... eu sempre terminava chorando o que estimulava ainda mais os
citadinos a me intimidar. (SAFIRA, entrevista, 2015).
No contexto destas agressões, tanto meninas quanto meninos a intimidavam durante os
momentos de brincadeira. No tocante às meninas, ela menciona a hostilidade recorrente das
colegas pela sua falta de habilidade com a bola:
Levava novamente uma vaia. A me vaiar. Que é o bullying, né? Vaia, eu não
sei, porque nunca estudei o bullying... isto é bullying, não é? Vaiar não é
bullying?” E prossegue, descrevendo os prováveis motivos por trás das
agressões: “Eu era vaiada de muitas formas: porque não dominava os jogos,
por causa do meu vocabulário, que muitas vezes não era correto porque era
das crianças rurais, que não eram da minha classe social. (SAFIRA,
entrevista, 2015).
66
Em determinado momento da sua fala, ela contrapõe sua vivência na fazenda,
apontando a postura compreensiva dos pais quando se expressava verbalmente, com sua
experiência na cidade. Quanto aos meninos, ela relata um episódio em que a brincadeira era a
de construção de uma barragem, na qual descreve o comportamento astuto e esperto dos
garotos da época:
Os meninos eram dominadores - o macho como dominador da fêmea. Isso
que eu interpreto hoje. Mas naquele tempo eu não sabia interpretar assim: o
macho dominador da fêmea. Então nós éramos as frágeis e os meninos eram
os fortes. Essa interpretação eu faço hoje - os machos dominadores. Eles
eram mais espertos e eram capazes de perceber que indo mais acima –
porque naquela rua havia um declive - eles perceberam que indo mais acima
eles dominavam a água. Então eles construíram uma barragem. Uma barreira
lá em cima e nós ficamos mais em baixo e não dominamos a água. ” E
pondera: “Eles eram mais espertos que nós... A gente era menor de idade, a
gente era do ‘sexo frágil’ eles se julgaram dominadores já. Os machos
dominadores, mais inteligentes, mais espertos. Hoje é a leitura que eu faço,
mas naquele tempo eu não era capaz. Eu só me senti frustrada, eu não
consegui fazer uma barragem, saí chorando e pedi o colo da minha mãe. O
sexo frágil que corre pra mãe. (risos) Mas, a interpretação que eu fiz foi de
hoje, madura. (SAFIRA, entrevista, 2015).
O período de agressões na infância durou aproximadamente um ano e pouco a pouco
se encerrou, porém, com um marcante divisor de águas. Sobre este, ela descreve o momento
de forma bastante entusiasmada:
E também, na escola, eu fui me afirmando como uma menina que, me
diziam que eu era inteligente. (...) A professora, aliás, elogiou a minha
redação e eu fiquei pasma porque eu nunca tinha sido elogiada. Porque eu
sempre era a menina do campo a Menina do Mato e, de repente, a professora
elogia a minha redação e eu fiquei admiradíssima: Ai, eu fiquei tão admirada
em ser elogiada. (SAFIRA, 2015).
Este episódio, que representa um marco em sua vida, pode ser interpretado como uma
transição entre uma etapa marcada por uma rejeição entre seus conterrâneos e uma que passa
a descortinar seu reconhecimento social dentro e fora daquela cidade. Se durante o período de
adaptação no município de Caicó ela se sentira intimidada e diminuída por colegas infantes, o
que se refletia em baixa autoestima, agora com o reconhecimento intelectual na escola, sua
autoestima voltava a se recuperar.
Todavia, outros episódios de hostilidade iriam marcar novamente sua biografia, só que
desta vez na vida adulta. Um deles refere-se ao período de admissão como docente na
67
Universidade de Brasília, em meados da década de 1970, e a forma como se sentiu quando
teve que se deparar com um ambiente ocupado por pessoas predominantemente “sulistas”:
Sentimento de Inferioridade (...). Eu nordestina e a UnB cheia de sulistas né?
(Risos). (...) eu era nordestina. Eu era a única professora nordestina. Eu tive
foi outro grande desafio. Olha, eu, você fez uma pergunta interessantíssima.
Eu me senti novamente a Menina do Mato. Juro a você. Eu me senti
novamente... e você vê que a frase que aquela professora (eu não sei se você
conheceu aquela professora): “a reunião foi postergada. ” Pela primeira vez
eu ouvi aquela frase”. (SAFIRA, entrevista, 2015).
Em relação a este último momento, Safira relata que foi corrigida pela professora em
questão na ocasião em que se utilizou especificamente do termo “adiada” para se referir a uma
reunião do qual participariam: “postergada” deveria ser o termo apropriado e correto a ser
utilizado em sua fala, segundo a professora que a corrigiu. Todavia, a despeito da correção, a
intenção daquela professora em retificar Safira foi evidentemente preconceituosa. Além de ser
uma professora nordestina na capital do país, outro detalhe viria a incomodar os seus colegas
de profissão da UNB naquela época: a ausência de um título de mestrado e de doutorado em
seu currículo acadêmico. Esta hostilidade se agravou especialmente quando Safira assumiu a
chefia do Departamento de Ciências Sociais daquela Universidade. Quanto a esta etapa
específica de sua vida, ela pondera que:
Em matéria de titulação, eu não era inferior no Serviço Social. No
Departamento de Serviço Social eu não era inferior porque ninguém tinha
mestrado nem doutorado. Todos tinham especializações. Havia
especializações iguais a minha, como a que fiz em Paris sobre Sociologia,
durante um ano. Tinha outras professoras como era a ‘onda’ ir, como era.
Mas eu, eu, dentro do departamento... porque é o seguinte: quando eu fui pra
lá, existia / era um Departamento de Ciências Sociais. Não existia ainda o
Departamento de Serviço Social. E o Serviço Social estava dentro de
Ciências Sociais. Então, tinha muitos doutores, professores com doutorado
nos Estados Unidos. Mas, no curso de Serviço Social ninguém tinha, tá?
(SAFIRA, entrevista, 2015).
Contudo, logo emerge em sua trajetória a superação destes obstáculos através de
atitudes contundentes. Quando lhe pergunto o que representou esta chefia de departamento
numa das mais prestigiadas universidades do Brasil ela responde de maneira precisa: “no
curso de Serviço Social, eu era igualitária, mas no Departamento de Ciências Sociais eu era
inferior. Mas, eu logo fui e ultrapassei porque eu fiz doutorado e pós-doutorado. Tá? ”
(SAFIRA, entrevista, 2015).
68
Na parte final da entrevista, pergunto-lhe se as agressões que outrora sofrera na
infância seriam similares as que ela viria experimentar na fase adulta, especialmente no
cotidiano da UNB enquanto professora. Ela pontua:
Acho que não. Eram mais veladas, mais veladas porque tinha professores
goianos que também não têm o status do paulista... eu nordestina e os
goianos, éramos um pouco abaixo dos paulistas. Tá entendendo? Então tinha
outros professores que tinham status próximos ao meu como nordestina. Tá
entendendo? Então eu me igualava um pouco aos goianos... quer dizer, de
Goiás, não de Goiânia.”. (...) “Não, eu não era tão discriminada não. E,
também, porque eu tinha vindo de um curso de Paris. Eu tinha terminado de
fazer um curso de Paris, de um ano, de Sociologia então eu não fui, sabe?
(SAFIRA, entrevista, 2015).
É importante destacar que a entrevistada galgou posições sociais de prestígio e de
reconhecimento no decorrer de sua trajetória biográfica sem se servir de qualquer outro
esforço ou mecanismo que não aqueles relacionados à sua determinação, esforço pessoal e
comprometimento com os ideais e causas que sempre acreditou e defendeu. Safira relata na
última parte da entrevista um episódio inusitado, em resposta a seguinte indagação que lhe fiz:
“Gostaria de saber se você, diante de tantos episódios em que esse sentimento de inferioridade
aflorou, se houve algum resquício na sua personalidade em função desses sentimentos que
afloraram? Se você desenvolveu algum tipo de receio, medo, pânico em relação às pessoas
pelo fato de você ser nordestina, nascer em Caicó? ” Sobre este aspecto, ela relatou que foi
desafiada durante um momento em que um professor entrou em sua sala no exato momento
em que ministrava aulas, trazendo junto a si um enorme processo e afirmando que necessitava
de sua assinatura para o processo de reconhecimento de seu Departamento.
“As pessoas pensavam que iam me dobrar, pessoas de chefia, homens, pelo
fato de eu ser mulher. ” Safira prossegue: “Eu darei a minha assinatura, se
me convier, hoje, mas agora estou dando aula... eu nunca pensei que eu
tivesse tanta coragem como fêmea. Até hoje me arrepio porque ele era de
uma arrogância. ” (SAFIRA, entrevista, 2015).
A entrevista encerrou-se neste exato ponto, porém sobre a narrativa de sua história de
vida é importante destacar aqui o fato de que ela, conforme relata em seu livro autobiográfico,
viveu um período de sua vida na cidade de Fribourg, na Suíça, acompanhada do marido e de
suas filhas, onde trabalhou como professora de português na École Migros, assumindo a
responsabilidade de ensinar esta língua para adultos interessados em fazer turismo em terras
brasileiras. Portanto, este relato vida demonstra que o bullying, embora fosse recorrente em
69
alguns momentos de sua trajetória, não a impediu de superar com resiliência e muito humor
os obstáculos impostos, representando apenas um conjunto de experiências pessoais que
culminaram no fortalecimento de sua personalidade e no seu reconhecimento social extenso.
4.3 ENTREVISTA COM POLIANA ALEIXO16
, NATALENSE E FONOAUDIÓLOGA
A recepção da personagem para a realização do diálogo foi feita em minha residência
no dia 19/04/201717
, uma quarta-feira, no turno noturno. Com base em conversas informais
que já haviam sido anteriormente estabelecidas com a entrevistada, procedemos
imediatamente na realização da entrevista, decorridos as formalidades iniciais. Sentados os
dois na sala de estar da minha residência e munido de um gravador e de um celular, demos
início a interlocução.
Inicialmente, de acordo com a fala inicial de Poliana, as agressões que sofrera na sua
infância foram realizadas por um grupo fixo de três meninas, sempre no espaço da sala de
aula, perdurando em torno de 12 meses. Conforme ela mesma descreve:
Era assim: elas pegavam as coisas, escondiam, diziam que eu tinha
escondido; pegavam lápis, quebravam e diziam que eu tinha quebrado. E
como eu era muito sensível, sou até hoje, então isso me afetava, então, eu
passei de ser uma aluna boa, que gostava de ir para escola, né? Na minha
época, o pré-escolar, isso foi na primeira série, eu tinha seis anos, então
assim minhas notas no pré-escolar eram ótimas, boas, ótimas, né? Que era
ruim, boa, regular... e passei pra ser uma aluna que tirava zero, porque eu
não interesse em estudar nenhum, porque eu não tinha interesse em estar na
escola, de ir para aula, porque eu não gostava de estar naquele ambiente.
(POLIANA, 2017).
De acordo com sua interpretação, tudo aquilo pelo que passou, naquele momento de
sua vida, se configurava como bullying:
Eu considero como bullying, porque assim, era comigo. E eram sempre as
mesmas meninas que faziam alguma coisa todos os dias, elas me faziam
chorar, me faziam não querer ir para escola. É tanto que eu reprovei e fiquei
feliz por ter reprovado, porque assim eu troquei de turma. ” Fica claro com a
descrição acima que, além dos efeitos emocionais, também houve uma
consequência na sua formação educacional: a perda de um ano letivo.
Porém, ela descreve que aquele prejuízo não foi de todo modo ruim: “(...)
meu pai, por ele ver tudo que passou durante o ano, ele chegou com o
boletim da escola, um pote de sorvete e uma passagem para passar as férias
16
É utilizado nesta narrativa um pseudônimo para a entrevistada. 17
A entrevista se encontra na íntegra em anexo.
70
no Rio de Janeiro, para eu esquecer aquele ano. (POLIANA, entrevista,
2017).
E segue acrescentando:
Quando eu troquei de turma e elas sumiram na minha vida, porque os
intervalos não ficavam tão parecidos, o pessoal da primeira série fica num
canto, o pessoal da segunda série fica em outro, né? Então eu não tinha
muito contato mais com elas em sala de aula, banheiro, bebedouro, com elas
(enchendo o saco). Então, aí eu nunca mais reprovei, voltei a ser uma boa
aluna. (POLIANA, entrevista, 2017).
Sobre os tipos de agressões que sofria, POLIANA destaca algumas:
Elas escondiam o zíper, diziam que eu tinha arrancado o zíper. Elas riscavam
a borracha e diziam: “por que você riscou minha borracha? ” Sem eu ter
riscado. E eu dizia: “não, eu não fiz isso”, entendeu? A imagem que eu tenho
é de eu sentada na cadeira e ela vindo assim com o estojo e dizendo: “você
quebrou meu zíper, agora eu não abro mais meu estojo” Eu fiz: “não, eu não
fiz nada disso não. ” “Foi você sim, tenho certeza que foi você. ” Eu fiz:
“não, não fui eu, não fui eu. ” Isso que eu lembro, da borracha riscada, a
borracha era branquinha e tava toda riscada de hidrocor. Fez assim: “porque
você fez isso na, minha caneta, minha borracha? ”, “não fui eu que fiz isso”,
“foi sim, foi você, foi você, foi você. ” (POLIANA, entrevista, 2017).
Quando lhe perguntei sobre o porquê de ser tão perseguida em sala de aula por
algumas das suas colegas, Poliana afirmou que uma de suas agressoras certa vez justificou
que:
Era engraçado, divertido, ver você, porque aquela menina grandona, bobona
e a gente conseguia dominar. Uma delas me disse que é porque eu era
grandona e bobona, então era bom tirar onda com a minha cara. Eu sou uma
pessoa mais tranquila e elas eram mais, vamos dizer assim, extrovertidas,
agressivas. Não é agressiva de bater, que elas nunca me bateram. (...) isso,
elas eram mais vivas. E eu era mais inocente, vamos dizer assim, eu não
tinha malícia de dizer assim: “ah! vá se ferrar.” Não sei se é porque eu sou
filha única, mas uma amiga me disse: “ah! você é filha única e você não sabe
que irmão mais velho faz bullying e que você aprende a se virar no mundo
por causa do irmão mais velho. Que enche o saco, tira onda”. (POLIANA,
entrevista, 2017).
Todavia, ela acredita que o fato de alguém ser filho único ou emocionalmente sensível
não se constitui como condição fundamental para que se torne alvo de bullying: “quantas
pessoas são filhos únicos e não passam por isso? Acho que é mais da personalidade da pessoa,
da criação, do ambiente. Tem tantos fatores que podem influenciar isso. ” Quando lhe
pergunto se alguém agiu em prol de sua defesa, ela comenta: “eu lembro muito a professora
71
do outro ano, quando eu reprovei, de noventa e um, que é a professora Ismênia, que foi uma
professora que me recebeu com todo amor, carinho e atenção. Foi uma professora que fez um
diferencial muito grande. ” (POLIANA, entrevista, 2017).
No momento final da entrevista, eu lhe fiz as duas últimas perguntas. A primeira delas:
o que ela diria caso se deparasse com alguma de suas agressoras na atualidade? Poliana
destacou em sua fala que isto este encontro já aconteceu e naquele momento:
Tirou onda com uma delas só, porque, assim, eu nunca me encontrei com as
três; já teve discussão, mas tipo assim, agora a gente estava com álcool, né?
“Tipo assim, você fez isso comigo, não sei o que mais, não sei o que lá”, aí
ela disse: “ah! era fácil, você era bobona”. Mas, hoje em dia a gente é até
amiga, então tipo, passou. Entendeu? Não é uma coisa que me faça mal.
(POLIANA, entrevista, 2017).
Na última pergunta, busco saber se ela já havia superado as experiências pelo qual
passara na infância. Ela responde com contundência:
(...) com a minha maturidade de hoje em dia eu vejo assim: hoje em dia, eu
vejo assim, tudo na vida é pra alguma coisa, certo? Não sei se vai precisar
gravar isso, mas eu acho assim: tudo que a gente passa na vida é pra alguma
coisa, pro bem ou pro mal, para gente aprender. Então, isso que eu precisei
passar, talvez tenha sido necessário pra eu reprovar, porque eu tenho certeza
que minha vida teria sido totalmente diferente, teria sido outra vida se eu
tivesse continuado na minha turma. Os meus ciclos de amizade, as minhas
experiências teriam sido totalmente diferentes. Então, eu acho que
necessitava, que ela era uma coisa planejada pra passar na vida, pra eu poder
mudar de turma, pra eu ter essa minha vida que eu tive. (POLIANA,
entrevista, 2017).
Poliana, hoje, tem 31 anos, é servidora pública da área da saúde no governo do estado
do Rio Grande do Norte e também atende pacientes em um consultório particular. Órfã de
mãe, afirma em sua narrativa que embora aquele ano escolar tenha sido bastante doloroso, seu
maior sofrimento de vida repousa na perda maternal precoce de sua progenitora para uma
doença neurológica degenerativa, o que culminou no seu forçado amadurecimento pessoal e
social. O bullying, portanto, é enxergado pela entrevistada como um evento traumático que
não resultou apenas em perdas, como a de um ano letivo escolar ou os traumas emocionais
que vivenciou. Ele representou uma mudança em seu cotidiano de vida (troca de turma;
formação de novas amizades), que, por sua vez, levou-a a alcançar tudo àquilo que atualmente
granjeia em sua vida. Embora sua vida lhe satisfaça nos dias atuais, sua fala final expressa
certa resignação e objetividade com o que aconteceu, como se o bullying que sofreu
72
representasse um propósito de aprendizado social para além da finalidade agressiva que
habitualmente possui.
4.4 UM RAIO-X DAS ENTREVISTAS SOB A PERSPECTIVA DE DISCUSSÃO QUE
SE FAZ EM TORNO DO FENÔMENO BULLYING
As duas entrevistas acima mencionadas são exemplos claros de intimidações que se
motivaram pela recusa a diferenças em torno da forma de ser das entrevistadas. Embora
ambas possam ser classificadas como episódios de bullying feminino, de acordo com os
critérios estabelecidos historicamente por Dan Olweus (1978), para classificar e distinguir
condutas bullying de outras manifestações de interação social, as experiências possuem
diferenças notórias. A experiência intimidativa vivida pela professora Safira é historicamente
fragmentada em recortes biográficos. Já a experiência agressiva de Poliana, porém, é
contínua e dentro de uma mesma atmosfera cronológica de intimidação. Isto significa dizer
que Safira viveu intimidações diferentes, em contextos diversos da sua vida e que foram
motivadas por causas distintas. Já Poliana, por outro lado, foi alvo de agressões num itinerário
constante e ininterrupto, que durou um ano inteiro de sua vida infantil.
Portanto, Safira descreve tanto na entrevista quanto no seu livro autobiográfico que foi
alvo de bullying em um período da infância, motivada pela sua chegada a cidade no papel de
uma capioa; e no contexto de sua vida acadêmica-profissional, desencadeada pela sua pouca
qualificação e pela origem regional. É importante destacar que, embora se tratem de
momentos dispersos em sua cronologia biográfica, tais agressões conforme descritas reforçam
a ideia da recorrente intolerância que geralmente acompanha a personalidade de um agressor
frente às manifestações de diversidade que porventura não comunguem com as convenções
que acredita serem legítimas, verdadeiras e únicas. Portanto, a ideologia acompanha a
vitimização bullying do qual Safira foi vítima, primeiro na crença das crianças da cidade de
Caicó que não lhe outorgam legitimidade enquanto “menina da cidade” devido a sua
discrepância de costumes, como a forma de falar ou a falta de traquejo com brincadeiras
infantis comuns naquele município. Depois pela crença de determinados professores
“sulistas” de que a mesma seria uma professora “inferior” simplesmente pelo fato de provir
do Nordeste brasileiro (região costumeiramente associada ao atraso no desenvolvimento da
nação), de ser mulher e por não apresentar as credenciais (títulos de mestrado e de doutorado)
que lhe legitimariam a ocupar as funções de docente de uma renomada universidade pública,
73
Universidade de Brasília, e de chefe de departamento de um curso superior da mesma
instituição.
Poliana, por outro lado, é o reflexo de uma intimidação bullying apenas na infância.
Durante um ano, através de um processo recorrente todos os dias, marcado por um
desequilíbrio de poder, no qual três agressoras que imprimiam sofrimento articulado a uma
mesma vítima sem motivações “evidentes” para a agressão. O argumento utilizado pelas
agressoras para justificar as agressões sempre se localizou numa suposta diferença física e
emocional entre elas e a vítima, o que acarretou no acúmulo de prejuízos psicossociais para a
vítima, insegurança, medo, revolta, tristeza e apatia no desempenho educacional, culminando
na perda de um ano letivo escolar. Mais uma vez o bullying nasce de uma recusa da diferença
do outro, da intolerância à diversidade.
Destaque-se a resiliência por trás das trajetórias de vida das entrevistadas, que resultou
em superação e crescimento pessoal. Cada uma a seu modo superou as agressões que sofreu
sem o contributo de intervenções médicas ou psicológicas, conforme constatado nas
entrevistas realizadas. Safira, mesmo tendo percebido desde cedo que se tornara alvo de
hostilidades por parte de agentes diversos, jamais se abateu diante de seus agressores e
demonstrou ao longo de sua trajetória de vida uma constante assertividade como forma de
superação das intimidações pelo qual passara. Poliana acredita que aquele trecho específico de
agressão bullying que ocorreu em sua infância serviu como aprendizado social que a levou a
alcançar sua forma atual vida. Embora tenha sido traumática, mudou o rumo de sua vida
pessoal e a levou a novas formas de sociabilidade e novos caminhos biográficos, sem os quais
não teria atingido se não fosse o bullying na infância.
Um aspecto curioso a se destacar é a imagem de candura e docilidade que emerge na
fala de Poliana quando se refere a sua personalidade infantil. Isto vai ao encontro do que
Simmons (2004) definiu como a personalidade cordial e terna que toda menina deve ter em
sua vida pública. Assim, Poliana expressa o modelo clássico de comportamento social
feminino esperado. Já suas agressoras fogem do lugar comum das agressoras tipicamente
femininas: não atacam na intimidade da amizade, são diretas na intimidação e promovem uma
agressão coletiva. O motivo por trás dos ataques? A discrepância de tipos humanos, pois as
bullies destoavam do comportamento de Poliana. Enquanto eram mais descoladas, sagazes e
populares, a vítima se reservava ao seu perfil introspectivo de interação social. É notória
como a ideologia cultural esta inerente nesta narrativa de intimidação, por meio de
intimidações perpetradas há a tentativa de homogeneização das condutas destoantes do
modelo estabelecido como legítimo e aceito em sala de aula. Na fala das agressoras, quando
74
questionadas sobre o porquê de serem agressivas, fica claro o intento discriminatório de suas
ações: a vítima era mais alta, mais sensível e mais introspectiva, o que lhes motivavam a
dominá-la pelo uso da agressividade.
Quanto a Safira, enfatiza-se a bravura e inconformismo perante o assédio que sofreu
em momentos distintos de sua vida. Nos momentos em que foi atacada, ela fugiu do lugar
comum das vítimas, conforme atesta Fante & Pedra (2008), não foi passiva e encontrou
mecanismos de defesa para as agressões. Sua fala está pontuada de exemplos sobre isto: no
momento em que foi designada para chefiar um departamento da Universidade de Brasília ou
na oportunidade em que utilizou um termo diverso do que era costumeiro na fala de seus
docentes colegas. Para além das agressões que experimentou, outros aspectos merecem
destaque na sua narrativa, pois ainda que se tratasse de bullying aquilo que sofrera, o conjunto
de ataques escamoteou a tradicional intolerância social que se impõe através de atitudes de
discriminação e preconceito. Na infância, por exemplo, Safira representava uma outsider
vinda da fazenda para se socializar com um grupo estabelecido de crianças na cidade, já
bastante agregado em suas formas de ser, agir e pensar. Na vida adulta, o fato de ser mulher e
nordestina, aparentemente, culminou na sua intimidação pelos colegas, o que se justifica na
crítica que lhe foi feita pelo uso de um termo diferente do linguajar local no momento de
adiamento de uma reunião. Sua narrativa que descreve os episódios de agressão que outrora
sofreu corroboram a crítica contundente que Antunes (2008) faz em sua dissertação, na qual o
uso do termo bullying muitas vezes é aplicado para mascarar situações antigas e há muito
conhecidas de intolerância social, tais como atitudes de desrespeito, homofobia, sexismo,
machismo, misoginia etc.
Neste caso, por si só, o termo já é ideológico por sobrepujar outras formas de
intimidação social sob ao epíteto de um novo rótulo, de uma nova denominação, que
prontamente cai no gosto de muitos estudiosos que se debruçam sobre a questão acreditando
se tratar de uma nova forma de expressão de violência.
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção desta pesquisa de dissertação configura-se como uma expressão de
resistência ante a hegemonia do discurso tradicional que concebe a questão do bullying.
Afinal de contas, cabe à ciência recorrer constantemente à crítica sobre os paradigmas
estabelecidos que concebem os fatos e fenômenos do mundo. Ao longo deste trabalho, ao se
ancorar na perspectiva construcionista crítica, um legado de muitos autores e trabalhos nos
diversos campos em ciências humanas e sociais, assim como de filosofias (SOUSA FILHO,
2007), não se objetivou debater sobre as ideias específicas da constelação de autores que se
filiam a este enfoque crítico. Buscou-se, contudo, trabalhar em torno da forma de pensar
comum por cada um deles expressa, sempre ancorados no princípio ou noção de que a
realidade social é uma construção humana, histórica, filosófica e cultural. Para tanto,
denunciar a ideologia que acompanha o discurso hegemônico que trata da questão bullying foi
tarefa primordial desta pesquisa.
Além da ideologia, outro enfoque importante foi dado para temas de constante
reflexão sociológica, tais como a questão de gênero e do discurso. Mas por que proceder desta
forma? Em primeiro lugar, a pesquisa inclinou-se, desde o início, na busca de estabelecer um
paralelo entre as intimidações masculinas e femininas. Em segundo, por que a questão do
discurso, conforme concebida por Foucault (2011), é terreno basilar onde se pavimentam as
diferenças entre uma e outra agressão. É a partir da produção regulada e normatizada dos
discursos que se configuram os interditos que se impõem sobre agressão feminina e que,
concomitantemente, se autorizam a publicitação da agressividade e da raiva masculinas. O
conceito de gênero, por sua vez, veio dar luz para a questão de como se produzem as
dimensões do masculino e do feminino, a partir de uma agenda compulsória, naturalizada e
dissociativa de sujeitos homem e sujeitos mulher, isto é, a heteronormatividade.
É sempre relevante destacar que não foi tarefa desta dissertação demonizar este ou
aquele paradigma de interpretação do fenômeno bullying. Também não está na agenda desta
pesquisa sugerir, através da longa discussão desencadeada, a existência de uma suposta
“teoria da conspiração” que constantemente avilta o sujeito mulher em sua forma de exprimir
sua existência e legitima/chancela/autoriza o modo de ser masculino de maneira arbitrária,
completamente livre das normas e das regulações impostas pela cultura e sociedade. Seu
objetivo precípuo sempre esteve claro ao longo de suas páginas, o de apresentar no tabuleiro
76
de xadrez a forma como as peças concorrem entre si num imbricado jogo de estratégias
marcadas pela tentativa de se conquistar a vitória, mediante a imposição da dominação da
forma de jogar de um jogador sobre outro. A forma como tais peças se movimentam e as leis
que regem toda a sua dinâmica de movimentação também são objeto recorrente de análise da
presente pesquisa. Posto que, se por um lado existe uma perspectiva tradicional de concepção
da questão bullying atribuindo majoritariamente o foco de suas análises para o fenômeno
desencadeado entre garotos; de outro, porém, existem manifestações de resistência que
buscam lançar luz para a questão da agressividade que, cada vez mais, marca as relações
interpessoais entre garotas em várias realidades do mundo.
Assim, destaco a necessidade urgente de se empreender novas investidas
interpretativas, pela academia, por pesquisadores ou por organizações governamentais e não
governamentais. Além de novas proposituras metodológicas que proporcionem uma
ampliação cada vez maior da inteligibilidade em torno do tema numa escala cientificamente
mais global, no intuito de que novas propostas de encaminhamento em prol da compreensão
desta forma de violência emerjam em diferentes espaços de pesquisa e investigação. Esta
dissertação não almeja estabelecer conclusões fechadas, fixas ou exatas sobre sua tentativa de
compreender e analisar a questão do bullying, já que o tema é inesgotável e infindável em
termos de debates e interpretações que porventura possam ser feitas. Propõe-se, neste final, a
sugestão de ampliação das investigações em um nível mais aprofundado e sistematizado, fato
que só pode por mim ser realizado em uma dimensão de estudos no âmbito do doutorado.
Se existe algo a ser deixado neste momento por este trabalho para seus leitores, se
refere à proposição de novas formas de diálogo entre os diversos saberes científicos que se
lancem a estudar o tema, sempre numa perspectiva interdisciplinar e intercambiável de ideias,
visando quebrar a produção do monopólio discursivo-ideológico que constantemente impõe
“verdades” em torno desta questão que é tão multifacetada e complexa. À apresentação de
novos contrapontos sociológicos, em torno de novas ideias, conceitos, teorias e perspectivas
que suscitem a continuidade da ruptura, do furo, e da resistência, já feita anteriormente por
alguns autores e agora efetuada por esta dissertação, em relação às verdades
hegemonicamente enunciadas pelo discurso hegemônico e tradicional. Com o intuito de abrir
inéditas possibilidades de interpretação, a partir de novos enfoques que dirimam as lacunas
ainda não compreendidas em torno desta agressão. Nunca é demais frisar que a temática
bullying, além de bastante complexa, é sobremaneira multifacetada em função das diversas
variáveis sociais, culturais, psicológicas, médicas etc., que são acionadas no decorrer de sua
dinâmica agressiva.
77
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80
ANEXOS
ANEXO 1 - TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA 1
Nome: SAFIRA AMMANN
Idade: 82
Formação: PROFESSORA UNIVERSITÁRIA APOSENTADA
Data: 15/10/2015
Pesquisador: esta entrevista é parte componente da pesquisa de mestrado - sob orientação da
Profa. Lore - do aluno Jairo José dos Santos Junior, a entrevistada será a profa. Dra. Safira e
será parte componente do trabalho de dissertação que será concluído ao final do curso.
Pesquisador: primeiramente, eu queria agradecer a oportunidade de estar diante da Profa.
Safira após a leitura da sua biografia, que por sinal é bastante rica em experiências e uma
lição de vida para mim que estou começando a minha vida profissional, a minha vida
acadêmica, enfim..., a entrevista se baseará em alguns pontos destacados no livro que dizem
respeito à temática central da minha pesquisa, temática essa denominada “Bullying na escola”
ou “violência na escola”. É: em primeiro lugar, Safira, eu gostaria que você detalhasse um
pouco mais a experiência que você narra na página 44, experiência essa que diz respeito à sua
saída da fazenda e à sua chegada à cidade de Caicó. O capítulo é: “A menina vai à escola”. No
momento em que você entra na escola, você menciona na página 44 o uso do termo bullying.
Eu gostaria que você falasse um pouco mais dessa experiência.
Informante: eu vou contextualizar um pouco mais amplamente a minha saída da fazenda
para Caicó. ((ruído)) Bom, eu nasci em Caicó, mas porque meu pai sempre levava minha mãe
para ter os seus filhos em Caicó e não na fazenda. Mas, era só para ter a criança, para o parto
e depois voltava para fazenda, de modo que eu tive minha infância na fazenda. Só passei três
meses em Caicó enquanto meu pai mudava de fazenda, de uma fazenda pra outra, de modo
que a minha infância até meus oitos anos de idade foi na fazenda. Eu era uma filha solitária,
no sentido de que os meus irmãos o mais próximo a mim tinha sete anos de diferença e
estudava em Caicó e depois em Natal. Então, fui uma filha quase única, no sentido de que era
sozinha na fazenda com meus pais e o meu convívio era com os filhos dos moradores. Então,
a minha linguagem era muito parecida com a linguagem/, isso já para contextualizar o fato
que vem contado em seguida, minha linguagem era muito parecida com o vocabulário dos
81
filhos dos moradores. Então, eu não tinha um vocabulário “rico”, rico entre aspas, como as
crianças de Caicó. E aos oito anos de idade, então, eu fui morar em Caicó para estudar, porque
meu pai alfabetizava, nossa alfabetização, de todos os filhos do meu pai e da minha mãe era
feita em casa. /Alfabetização/ e quando nós íamos para a escola já íamos para o segundo ano
primário. Na alfabetização, você deve ter visto pelo livro, nós aprendíamos um pouco de
Geografia, um pouco de História, um pouco de aritmética e português, ditados, etc., leitura
alta sem erros, sem gaguejar. Tudo isso era feito em casa com a supervisão de minha mãe e
meu pai (ele era professor primário quando solteiro em Assú e depois que casou passou a ser
proprietário rural e, então, nós éramos alfabetizados em casa. Quando íamos para escola –
todos os filhos – já pegávamos o segundo ano primário. Então, eu já fui para Caicó para morar
na casa de uma irmã minha, que tinha duas filhas um pouquinho mais velhas do que eu, de
modo que eu era tia mais nova do que duas sobrinhas – uma era dois anos mais velha do que
eu e outra, alguns meses mais do que eu. Uma delas era minha colega de turma na escola. Elas
eram meninas da cidade, caicoenses, nascidas e criadas em Caicó e eu era uma menina do
mato, eu era chamada menina do mato. De modo que eu já era discriminada aí, “de entrada”.
Elas tinham um vocabulário citadino, caicoense, e eu era uma menina rural, que era chamada
menina do mato. Não sei se já contextualizei bem aí a sua pergunta. E eu fiquei morando
nessa família, que era composta de quatro filhos, que eram essas duas sobrinhas, eu era/
minha irmã, que era a mãe desses quatro filhos, ela tinha idade para ser minha mãe, porque
meu pai se casou duas vezes e teve uma família muito: grande, de dez filhos eu era nona,
portanto eu era já a penúltima filha e essa minha irmã era a primeira filha de meu pai, portanto
ela tinha idade para ser minha mãe. Eu tinha essas duas sobrinhas mais velhas do que eu e
dois outros mais novos. Então era uma casa de quatro crianças na casaonde eu fiquei
morando, com duas mais velhas e duas mais novas que eu. Os dois mais novos era um casal:
um menino e uma menina, mas todos eles eram considerados citadinos e urbanos e eu rural.
Pesquisador: e essa mudança do campo para cidade, você sentiu, você mencionou na escola.
No momento em que você chega na escola você menciona, você usa o termo bullying. Por que
você se apropria e usa esse termo bullying?
Informante: não, na mentalidade que eu tenho hoje. Naquele tempo, eu não tinha a menor
noção disso aí. Eu só me sentia diminuída, eu me sentia inferior. Eu não tinha a capacidade de
bullying, de absorver essa relação, esse preconceito de bullying não. Eu só me sentia inferior,
eu era uma menina do mato e eles eram crianças da cidade. Eu me sentia inferior a eles, mas
não sabia contextualizar nem conceituar nada disso.
Pesquisador: Mas existe algum episódio específico que marcou essa infância?
82
Informante: Bom, existiram vários episódios. Eu boto só um no livro. Você quer que eu
relate o do livro ou você ...?
Pesquisador: não, mais alguns exemplos, alguma brincadeira, algum tipo de ...?
Informante: É. Eu me lembro de ter levado uma bolada no rosto, porque eu não me dava com
bola. Bola não era uma realidade rural. Nossos brinquedos eram muito diferentes de bola. Eu,
nós não tínhamos bola de futebol, de voleibol... isso não existia na nossa fazenda. Os
meninos, talvez, porque eu não tinha convivência com os meninos. Só tinha com as meninas e
nós meninas brincávamos de boneca de pano. E, também, o que eu não conto no livro, é que
nós meninas trabalhávamos com a realidade rural. Então a gente juntava ossinhos das “mãos”
das vacas e dos bezerros e fazíamos currais com aqueles ossinhos. Então, os ossinhos serviam
de... eram vacas, eram bezerros, a gente fazia currais com os ossinhos. E eu não tinha
convivência com bola. Então, quando eu cheguei em Caicó, que tinha jogos com bola, eu não
dominava absolutamente a bola de borracha que naquele tempo não era bola de couro. Então,
eu levava boladas na rosto e eles riam muito como era que eu não dominava o jogo de bola.
Pesquisador: essas atitudes eram repetitivas?
Informante: eram repetitivas. Então, eu voltava...[ =
Pesquisador: [atitudes sempre voltadas para você?
Informante: = sim. Eu era a menina que não dominava o jogo da bola.
Pesquisador: E somente por parte dos meninos? Ou as meninas também?
Informante: não, não. As meninas também. As meninas jogavam bola como voleibol, mas
em círculo. A gente ainda não tinha campo de voleibol para meninas em Caicó, naquela
época. Eu tenho 82 anos, atualmente, vou fazer 83 no final do ano. Então, a gente não jogava
o voleibol em campo, mas em círculos.
Pesquisador: Eu queria esclarecer apenas os fatos, as agressões partiam dos meninos
especificamente ou as meninas também promoviam esse tipo de intimidação?
Informante: as meninas também. E tinha um jogo que era ordecam, hoje eu sei pronunciar
porque eu domino francês, mas lá em Caicó se chamava ordecam e eu não sabia de jeito
nenhum que isso era um nome francês. Hoje, depois que eu dominei o francês, é que eu vi que
isso é um nome francês que significa fora de campo e era um jogo muito agressivo, de força:
tinha que jogar a bola para a menina que tivesse fora de campo com toda força que ela não
conseguisse pegar a bola, sabe? E eu não pegava nunca, porque eu não tinha prática de jogo
de bola.
Pesquisador: e isso levava a...
83
Informante: levava novamente a uma vaia, a me vaiar. Que é o bullying. Vaia, eu não sei,
porque nunca estudei o bullying... isso é bullying, não é? Vaiar não é bullying?
Pesquisador: isso. O bullying é uma atitude que se caracteriza pela repetição prolongada
contra a mesma pessoa.
Informante: eu era vaiada de muitas formas: porque não dominava os jogos, por causa do
meu vocabulário, que muitas vezes um vocabulário que não era correto, porque era das
crianças rurais, que não eram da minha classe social, porque meu pai não tinha problema com
isso. Ele me corrigia, mas ele não me vaiava, nunca ria do meu vocabulário. Nem minha mãe.
E eu convivia só com adultos dentro de casa, na casa da fazenda.
Pesquisador 2 (Profa. Lore): isso durou quanto tempo Safira? [Que você ficou...
Pesquisador: [esse período de agressões. Você conseguiu...?
Informante: [eu acho que um ano talvez. Depois eu me adaptei e adquiri o vocabulário
urbano.
Pesquisador: você se adaptou e aí cessaram as agressões?
Informante: é... Pouco a pouco foram cessando as agressões. E também na escola, eu fui me
afirmando como uma menina que me diziam que eu era inteligente. Eu me lembro que no
livro, aliás, eu conto que eu nunca... A professora, uma vez, elogiou a minha redação e eu
fiquei pasma, porque eu nunca tinha sido elogiada. Porque eu sempre era a menina do campo,
eu era a menina do mato e nunca tinham me dito que eu era inteligente, nunca. De repente, a
professora elogia a minha redação e eu fiquei admiradíssima. Eu era elogiada, eu fiquei tão
admirada em ser elogiada.
Pesquisador: com relação ao uso desse termo: menina do mato. Existia algum apelido que foi
intitulado pra você por causa desse aspecto de vir de uma fazenda?
Informante: não, era isso: menina do mato.
Pesquisador: Safira, no livro, tem um episódio do livro que é na página 9, você fala sobre
uma barragem. A sabotagem de uma barragem por parte dos colegas, dos amigos. Você era
pequena ainda eu acho que tinha mais ou menos...
Informante: é.
Pesquisador: eu queria que você falasse um pouco mais. E esse episódio, também, como
você compreende esse episódio? Como você pode denominar esse episódio? Porque você
mostra uma grande frustração em função da barragem, que a água não descia e vocês viram
que a água não vinha e vocês foram olhar e os meninos estavam rindo.
Informante: era, porque as meninas eram menores do que os meninos. Os meninos eram
dominadores, o macho como dominador da fêmea. Isso que eu interpreto hoje. Mas naquele
84
tempo, eu não sabia interpretar assim: o macho dominador da fêmea. Então, nós éramos as
frágeis e os meninos eram os fortes. Essa interpretação eu faço hoje como os machos
dominadores. Eles eram mais espertos e eram capazes de perceber que indo mais acima –
porque naquela rua havia um declive – então, eles perceberam que indo mais acima eles
dominavam a água. Então, eles construíram uma barragem. Uma barreira lá em cima e nós
ficamos mais em baixo e não dominamos a água.
Pesquisador: Esse episódio você classifica como uma simples atitude de preconceito por
parte deles? Ou também algo relacionado ao bullying?
Informante: não, era esperteza. Eles eram mais espertos do que nós... a gente era menor de
idade, a gente era do “sexo frágil”. Eles se julgaram dominadores já, os machos dominadores,
mais inteligentes, mais espertos. Hoje é a leitura que eu faço, mas, naquele tempo, eu não era
capaz. Eu só me senti frustrada, eu não consegui fazer uma barragem, saí chorando e pedi o
colo da minha mãe. O sexo frágil que corre pra mãe. (risos) Mas, a interpretação que eu fiz foi
de hoje, madura.
Pesquisador: a próxima pergunta tem a ver com sua mudança do Brasil para Suíça. No
capítulo em que você mostra o quanto essa mudança foi dura para sua filha, Jussara. A
mudança em que ela era adolescente e foi um pouco dura pelo fato dela sair do Brasil e já
estar adaptada aqui e ir para Suíça, um país culturalmente bem diferente, bem diverso do
nosso país. Essa mudança, como você poderia descrevê-la? Além de descrever, eu gostaria de
saber se existe uma certa semelhança com a mudança da menina Safira, que sai do sítio e vai
pra Caicó.
Informante: acho muito inteligente a sua pergunta. Acho que houve uma semelhança sim.
Sendo que em idades diferentes. Eu era criança de oito anos de idade e ela já era uma
adolescente. Ela teve que renunciar aos colegas dela, a turminha dela de amigas, mas foi um
golpe muito grande. Foi muito difícil para ela, inclusive a língua, a nacionalidade. Acho que
foi mais duro pra ela do que pra mim, inclusive, pelo contexto de nacionalidade.
Pesquisador: ela enfrentou algum tipo de agressão, de hostilidade pelo fato de ela ser uma
brasileira que adentrava na Suíça, na escola?
Informante: não, acho que não. Me deixa refletir um pouco... Nós fomos para um povoado.
Nossos primeiros seis meses, aliás, quatro meses escolares, foram num povoado bem
pequenininho. Lá na Suíça, existem muito esses povoados, eram próximos da cidade maior
que era Friburg. E ela fez amizades, ela tinha 12 anos. Mas ela tinha deixado o círculo de
amizade dela... Eu acho que o sacrifício dela foi maior do que o meu. Foi maior, inclusive, na
língua.
85
Pesquisador: isso.
Informante: foi muito duro pra ela. Acho que foi muito maior o sacrifício dela do que o meu.
Pesquisador 2 (Profa. Lore): E para Pauline que era tão...?
Informante: pois é, mas Pauline ela chega e, no dia seguinte, Pauline estava com uma mão de
um lado e a outra do outro com as meninas. Pauline é de uma facilidade de adaptação.
Incrível. E Jussara não, Jussara vai muito devagar, vai muito devagar... São duas filhas, você
viu.
Pesquisador: isso.
Informante: e aí Pauline, logo na primeira semana, Pauline estava correndo na rua como se
fosse dona da rua.
Pesquisador: (Risos).
Informante: e Jussara não. Jussara leva muito tempo pra fazer novas amizades.
Pesquisador: entendi.
Informante: é essa a diferença.
Pesquisador: Safira, você mencionou que se sentiu inferior na sua chegada à escola, na
infância. É: mais à frente, no livro, você assume a docência na UnB. E, durante essa passagem
do livro, [ eu noto que você menciona mais uma vez... =
Informante: [Sentimento de Inferioridade.
Pesquisador: = Sentimento de Inferioridade. Eu queria que você falasse mais um pouco
disso. Dessa docência na UnB.
Informante: eu, nordestina, e a UnB cheia de sulistas. (Risos).
Pesquisador 2 (Profa. Lore): É o que eu falei pra você. (Risos)
Informante: é sim, mas é... É, eu era nordestina. Eu era a única professora nordestina, eu tive
foi outro grande desafio. Olha eu, você fez uma pergunta interessantíssima. Eu me senti
novamente a menina do mato. Juro a você. Eu me senti novamente. E você vê que a frase que
aquela professora, eu não sei se você conheceu aquela professora: “a reunião foi postergada. ”
[Pela primeira vez eu ouvi aquela frase. =
Pesquisador: [que na UFRN você teria dito adiada.
Informante: = não. Eu nunca diria isso: a reunião foi postergada. Ai, ai. Aqui é postergada.
Então, eu tenho que aprender essa palavra. Foi postergada a reunião (risos). /Era uma
professora, eu não sei se você alcançou, ela era paulista, [ela teve um filho sem cérebro, não
sei se você se lembra... não? =
Pesquisador 2 (Profa. Lore): [Não... não imagino quem seja...
86
Informante: = eu não me lembro o nome dela. Ela ficou pouco tempo na UnB. Não, então,
não sei, porque esse fato era notório. Você, então, chegou depois. Ela era paulista, era
professora de sociologia e, bom, na época, você já entendeu... eu me senti novamente, assim,
a matuta. Matuta é um termo muito/ não sei se você conhece esse termo matuta.
Pesquisador: conheço.
Informante: é, você é daqui de Natal (risos).
Pesquisador: sou daqui de Natal.
Informante: pronto matuta. Eu era a matuta, é o sinônimo de mato.
Pesquisador 2 (Lore): Só que as boladas que você recebia eram de outro tipo.
Informante: eram de outro tipo, as boladas...
Pesquisador: eu gostaria que você falasse um pouco mais dessas boladas, porque eu gostaria
de saber o seguinte, a pergunta que faço é: esse sentimento que você desenvolveu na docência
da UnB se justifica por algumas atitudes, também, de “boladas”, falando metaforicamente, lá
na UnB, pelo fato de você ser nordestina... você sofreu algum tipo de agressão? De
intimidação ou mesmo de...?
Informante: acho que... não, menos. Eram mais veladas, mais veladas, porque tinha também
goianos, tinha também professores goianos, que também não têm o status do paulista,
entende? Eu, nordestina, e os goianos, éramos um pouco abaixo dos paulistas, entende? Então
tinha outros professores que tinham status próximos ao meu como nordestina, tá entendendo?
Então, eu me igualava um pouco aos goianos... quer dizer, de Goiás, não de Goiânia. Os
professores goianos que era Leise, era Silvinha, não sei se você alcançou Silvinha, professora
de serviço social, que era também de Goiás... não, eu não era tão discriminada não. E também
porque eu tinha vindo de um curso de Paris. Eu tinha terminado de fazer um curso em Paris,
de um ano, de sociologia, então eu tinha esse status. Mas, além de nordestina, eu tinha um
diploma em Paris, sabe?
Pesquisador: eu gostaria que você me falasse mais dessa questão, porque, no livro, quando
você chega, [você ainda não tinha mestrado nem doutorado. =
Informante: [nem doutorado.
Pesquisador: = e você menciona que alguns professores eram paulistas e com doutorado nos
Estados Unidos. Aí, eu queria que você me falasse um pouco disso. Se também essa carga
simbólica ainda não alcançada de mestrado e doutorado também lhe fazia pensar que era
inferior.
Informante: pesava. É, mas eu tinha... em matéria de titulação, eu não era inferior no Serviço
Social. No departamento de Serviço Social, eu não era inferior, porque ninguém tinha
87
mestrado nem doutorado. No Serviço Social, ninguém tinha mestrado nem doutorado, quando
eu entrei. Todos tinham especializações, tinham especializações iguais a minha. Como na
especialização que eu fiz em Paris, tinha outras professoras como era Odair, mas eu, eu,
dentro do departamento... porque é o seguinte: quando eu fui pra lá, existia / era o
departamento de Ciências Sociais. Não existia ainda o departamento de Serviço Social. E o
Serviço Social estava dentro de Ciências Sociais. Então, nas Ciências Sociais, tinha muitos
doutores com doutorado na Sorbonne, nos Estados Unidos, etc. então, no departamento de
Ciências Sociais tinha muitos doutores, mas no curso de Serviço Social ninguém tinha.
Pesquisador: entendi.
Informante: então, no curso de Serviço Social, eu era igualitária, mas no departamento de
Ciências Sociais eu era inferior. Mas, eu logo fui e ultrapassei, porque eu tive pós-doutorado.
Pesquisador: por último, assim, o que representou pra você a chefia do Departamento de
Ciências Sociais da UnB?
Informante: pois é, menino. Eu me arrepio. Olhe, eu me arrepio até hoje.
Pesquisador: essa sensação de menina do mato, esse sentimento, aflorou mais uma vez?
Informante: aflorou, mas aí eu já tinha ido devagarinho. Mas eu não me considerava... eu
achava que tinha sido... Que eu estava ali não era por mérito não, era por uma questão
política. Porque foi um momento em que o político pesava muito. Havia pessoas mais radicais
do que eu, com muito mais prestígio, muito mais saber do que eu. Eu tinha certeza disso. Não
era meu saber que se impunha. Eu sabia demais disso. Eu sempre soube disso. Não era o meu
saber que estava em jogo, era minha posição política. Eu era mais... eu tinha mais jogo de
cintura.
Pesquisador 2 (Profa. Lore): você sempre foi, quando eu te conheci lá em Brasília, [eu
reconhecia você como uma pessoa extremamente moderada. =
Informante: [pois é...
Pesquisador 2 (Profa. Lore): = é eu acho que você tinha função conciliatória.
Informante: era uma posição politicamente conciliatória. E eu não enfrentava assim como
Sadir. Sadir, ele era. Frontalmente, ele era declaradamente de esquerda, ele impunha as
armas... então, ele era um homem de muito valor, mas ele estava lá pra lutar de esquerda... ele
jamais seria chefe do departamento. Ele fazia parte da chapa. Então, ele foi, eu me lembro que
a gente estava no teatro e Roque Laraia, Roque era um professor de muito prestígio, tinha sido
chefe do departamento, e na véspera de eu ser nomeada ele já sabia que eu tinha sido a
escolhida. Aí ele disse assim: “teremos uma fair lady para a chefia do departamento” e riu. E,
então, já sabia que seria uma mulher. A chefe do departamento, mas ninguém sabia que era
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eu. Mas ele disso isso: “teremos uma fair lady”. Então, ele deu uma dica! De que era uma
mulher, mas ele fez um risinho e já descartou Sadir. Que era o primeiro da lista. E eu acho
que eu era a segunda da lista, encaminhada pra reitoria. Então, ficou aquele suspense assim.
Porque Sadir era o primeiro da lista, encaminhada pela chefia, pelo departamento. Aí eu me
encolhi lá e disse: “Meu Deus do céu. ” Porque eu não queria de jeito nenhum, porque eu não
gostava, nunca gostei de cargos administrativos, sabe? E foi muito difícil para mim levar dois
anos como chefe do departamento, porque eu enfrentei situações que eu não vou contar aqui.
Mas eu enfrentei situações que se for “fora” de situações eu posso contar para Lore saber,
porque eu nunca contei para ninguém; mas, agora que Lore está professora em Natal eu posso
contar, mas fora da área de gravação. (risos).
Pesquisador: é... Faltam só mais duas perguntas. Durante toda essa sua história de vida
belíssima. Eu gostaria de saber se você, diante de tantos episódios em que esse sentimento de
inferioridade aflorou, se houve algum resquício na sua personalidade em função desses
sentimentos que afloraram. Se você desenvolveu algum tipo de receio, medo, pânico em
relação às pessoas pelo fato de você ser nordestina, nascer em Caicó?
Informante: Olha, isso que eu ia contar, eu vou dizer agora, sem falar nos nomes, mas eu fui
desafiada duas vezes. As pessoas pensavam que iam me dobrar, pessoas de chefia, homens,
pensando que pelo fato de eu ser mulher e estar na chefia iam me dobrar. Durante uma aula,
era isso que eu ia contar, mas vou contar sem dizer, sem falar, sem nomear os... Durante uma
aula, eu era chefe do departamento, eu dando aula, uma personalidade, um homem, entrar
com um processo “deste tamanho”, interromper minha aula e dizer assim: “eu quero a sua
assinatura, porque nós vamos entrar agora na reitoria com esse processo para reconhecimento
do nosso departamento. ” Eu disse: “Mas eu estou dando aula”. Ele disse: “Mas nós
precisamos de sua assinatura agora”. Eu disse: “Desculpe, você entre na secretaria com o seu
processo que quando...” “Mas nós precisamos HOJE. ” “Eu darei a minha assinatura, se me
convier, hoje, mas agora estou dando aula. ” Menina, eu nunca pensei que eu tivesse tanta
coragem como fêmea, eu nunca pensei que eu tivesse tanta coragem. Até hoje, eu me arrepio
porque ele era de uma arrogância, pois foi o maior desafio da minha vida e é o meu único
orgulho como fêmea. Você sabe quem foi? Depois você vai saber...
Pesquisador: eu já, assim, já estou bastante satisfeito com a entrevista.
Informante: obrigada. Eu nunca empreguei essa palavra fêmea pra mim mesma. (risos) Foi a
primeira vez.
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Pesquisador: eu agradeço, mais uma vez, a professora Safira, a minha professora Lore,
minha orientadora, e aqui eu dou por encerrada a entrevista. E fico feliz e também gostaria de
externar que...[ =
Informante: [eu devia ter contado esse episódio neste livro...
Pesquisador: = eu queria que você fizesse uma dedicatória nesse livro.
Pesquisador 2 (profa Lore): Mas sempre tem alguma coisa que falta.
Informante: Pois é, a gente se esquece de tanta coisa.
ANEXO 2 - TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTA
NOME: POLIANA ALEIXO
IDADE: 31 ANOS
FORMAÇÃO: FONOAUDIÓLOGA
DATA: 19/04/2017
Pesquisador: bem, esta entrevista faz parte componente da minha pesquisa de pós-graduação
no programa de pós-graduação em Ciências Sociais na UFRN e é parte componente do meu
trabalho de tese e vai compor como estudo de caso, através de uma narrativa, sobre o tema
principal que é a fenomenologia “bullying”. Então, vou começar fazendo 10 pontuações e
gostaria de agradecer primeiro a você, Poliana, e vou fazer 10 pontuações e você pode falar
livremente, discorrer livremente, sobre essas 10 pontuações de acordo com sua memória e sua
história de vida que forem resgatados através da sua mente, ok?
Informante: Ok.
Pesquisador: vamos lá, primeira delas: eu gostaria de pedir detalhes gerais sobre a
experiência que você vivenciou.
Informante: certo, bem, era assim: na escola, eu tinha seis anos de idade, certo? E tinha um
grupo de meninas, né? Que elas me perseguiam diariamente, então tudo era motivo para elas
irem me tirar a paciência e não era assim: a: feia. Era assim: elas pegavam as coisas,
escondiam, diziam que eu tinha escondido; pegavam lápis, quebravam e diziam que eu tinha
quebrado. E como eu era muito sensível, sou até hoje, então isso me afetava, então, eu passei
de ser uma aluna boa, que gostava de ir para escola, né? Na minha época, o pré-escolar, isso
foi na primeira série, eu tinha 6 anos, então assim minhas notas no pré-escolar eram ótimas,
boas, ótimas, né? Que era ruim, boa, regular... e passei pra ser uma aluna que tirava zero,
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porque eu não interesse em estudar nenhum, porque eu não tinha interesse em estar na escola,
de ir para aula, porque eu não gostava de estar naquele ambiente.
Pesquisador: certo, aí vem a segunda pergunta: você considera a sua experiência como
bullying? Por que?
Informante: eu considero como bullying, porque assim era comigo. E eram sempre as
mesmas meninas que faziam alguma coisa todos os dias, elas me faziam chorar, me faziam
não querer ir para escola. É tanto que eu reprovei e fiquei feliz por ter reprovado, porque
assim eu troquei de turma. Eu saí da turma, só que não tem no meu histórico escolar essa
reprovação, porque como foi a primeira série é como se eu não tivesse cursado mil
novecentos e noventa. É como se não existisse mil novecentos e noventa na minha vida, em
oitenta e nove eu fiz o pré-escolar e em noventa e um fiz a primeira série. Noventa não existiu
na minha vida. E meu pai, por ele ver tudo que passou durante o ano, ele chegou com o
boletim da escola, um pote de sorvete e uma passagem para passar as férias no Rio de Janeiro,
para eu esquecer aquele ano.
Pesquisador: [uma espécie de... =
Informante: [premiação. (/... apagar) o ruim.
Pesquisador: = tentativa de apagar o que você passou.
Informante: é tanto que depois disso, eu nunca mais reprovei na escola. Quando eu troquei
de turma e elas sumiram na minha vida, porque os intervalos não ficavam tão parecidos, o
pessoal da primeira série fica num canto, o pessoal da segunda série fica em outro, né? Então
eu não tinha muito contato mais com elas em sala de aula, banheiro, bebedouro, com elas (né
encher o saco). Então, aí eu nunca mais reprovei, voltei a ser uma boa aluna.
Pesquisador: entendi. Você mencionou uma coisa interessante, você disse que as agressões
eram recorrentes, repetitivas ou eram pontuais? Assim, acontecia uma vez, depois demorava
mais algum tempo?
Informante: isso eu não sei lhe dizer, porque assim, foram várias coisas e foi um ano, então
na cabeça de uma criança de seis anos...
Pesquisador: foi durante um ano, mas sempre de maneira repetitiva?
Informante: porque elas não estavam...elas não se juntaram para fazer isso comigo no pré-
escolar, foi só no primeiro ano, entendeu? E como eu tinha seis anos, eu não lembro a
extensão, eu sei que foi um ano que eu não quis estudar, acho que eu tenho até as provas
guardadas, porque tinha zero nas provas. Zero vírgula três, zero vírgula dois, um dia desse eu
achei as provas.
Pesquisador: entendi. Então eram repetitivas... recorrentes.
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Informante: eram, elas escondiam o zíper, diziam que eu tinha arrancado o zíper. Elas
riscavam a borracha. Diziam: “por que você riscou minha borracha? ” Sem eu ter riscado. E
eu dizia: “não, eu não fiz isso. ” Entendeu?
Pesquisador: tem uma pergunta importante agora, você acha que nesse contexto de
agressões, a culpa era sua? Era delas? A quem você atribui a culpa de tudo isso? [ você se
sentiu culpada alguma vez? =
Informante: [eu não lembro.
Pesquisador: = “eu sou assim, eu sou muito sensível.” Você mencionou que era sensível.
Informante: é, mas isso é uma visão minha de hoje, de uma pessoa mais madura. Na época,
eu não sei.
Pesquisador: certo, mas a quem você atribuiria uma culpa desse contexto de agressão?
Informante: uma delas me disse que é porque eu era grandona e bobona, então era bom tirar
onda com a minha cara. Mas eu não sei lhe dizer o que eu sentia, só não queria tá lá, eu só não
queria passar por aquilo.
Pesquisador: você era diferente delas? No comportamento, na forma de se vestir?
Informante: não, porque era uniforme. (O modo de) se vestir é o mesmo.
Pesquisador: tranquilo.
Informante: mas no comportamento, sim. Eu sou uma pessoa mais tranquila e elas eram
mais, vamos dizer assim, extrovertidas, agressivas. Não é agressiva de bater, que elas nunca
me bateram...
Pesquisador: populares?
Informante: isso populares, não sei se é popular, porque seis anos não tem isso, existe isso,
popular... entendeu? Tipo assim, as mais espertas, elas se achavam mais espertas...
Pesquisador: mais vivas, né?
Informante: isso, mais vivas. E eu era mais inocente, vamos dizer assim, eu não tinha malícia
de dizer assim: “a: vá se ferrar. ” Não sei se é porque eu sou filha única, uma amiga me disse:
“a: você é filha única e você não sabe que irmão mais velho faz bullying e que você aprende a
se virar no mundo por causa do irmão mais velho. Que enche o saco, tira onda”.
Pesquisador: concordo, ele lhe ensina a viver, teoricamente.
Informante: exatamente. a: as meninas diziam: “porque você é filha única, você não sabia
disso, tinha que dar uma resposta rápido”, mas eu não sei dar a resposta rápido.
Pesquisador: mas isso seria então um motivo, uma culpa? O fato de você ser filha única,
você acha que se você tivesse uma irmã, ou um irmão, você não teria sofrido bullying?
Informante: nem sei lhe dizer, mas pode ser que sim. Ou pode ser que não... é::
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Pesquisador: provável que sim... ou não.
Informante: por que quantas pessoas são filhos únicos e não passam por isso? Acho que é
mais da personalidade da pessoa, da criação, do ambiente... tem tantos fatores que podem
influenciar isso.
Pesquisador: com certeza. Você falou em alguns personagens, eu gostaria que você falasse
um pouco mais sobre os personagens dessa experiência? Os agressores ou as testemunhas que
tinham na época, pessoas que presenciavam e não faziam nada.
Informante: a escola em si eu não lembro muito, não lembro se a professora interferiu, sei
que... é tanto que eu não lembro qual a era a professora dessa série, eu lembro muito a
professora do outro ano, quando eu reprovei, de noventa e um, que é a professora Ismênia,
que foi uma professora que me recebeu com todo amor, carinho e atenção. Foi uma professora
que fez um diferencial muito grande... né? Porque eu entrei numa turma totalmente nova,
perdi minha turma da escola, perdi todas as minhas amigas, porque minhas amiguinhas
passaram e eu reprovei. Mas eu vim bem, porque eu me livrei daquelas três, eram três
meninas... né? Que se juntavam para fazer isso comigo.
Pesquisador: era um grupo?
Informante: era um grupo, eram três meninas sempre, certo? Então elas... é::, sinceramente,
só lembro que elas faziam isso comigo, eu não lembro o rosto muito delas, sei que eram elas.
Tanto que levei anos, quando me encontrei com a pessoa e levei anos... um tempo... não foi de
imediato, eu fiz: “você fez isso comigo. ” Depois veio o estalo, foi você. Tanto que a mãe dela
fez: “a: era por causa de você que eu ia tanto na escola, porque vinha as reclamações que ela
tinha perturbado uma menina. ” Eu fiz: “é, por minha causa mesmo. ”
Pesquisador: você falou uma coisa interessante, você não lembra com muita clareza dos
momentos.
Informante: mas eu lembro do que elas faziam.
Pesquisador: aí que vem a pergunta, quais as consequências dessa experiência? Além da
memória... da memória que ficou, da experiência, você acha que houve alguma consequência
emocional, física, psicológica?
Informante: sinceramente, não lhe dizer, eu acho que...
Pesquisador: houve a perda de um ano. Você atribui também a esse fato?
Informante: não, com certeza. Eu reprovei por causa delas, não teve outro motivo pra eu
reprovar não. Foi por causa delas, foi porque eu tinha medo de ir pra escola, eu ia e ficava
mais...eu lembro que eu sentava sempre na última carteira, na última cadeira, e ficava mais
retraída, não prestava atenção na aula, ficava voando, não queria tá ali, porque eu sabia que
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alguma coisa ia acontecer... né? Que em algum momento elas iam dizer que eu quebrei um
lápis, elas não faziam agressão fisicamente em mim, as agressões eram essas: dizer que eu
roubei, dizer que eu quebrei, dizer que eu risquei. Me acusar de coisas.
Pesquisador: que era essa a pergunta que eu ia fazer: como eram as agressões? Não eram
físicas, você já mencionou. [Então, eram =
Informante: [isso. Elas diziam que eu quebrava alguma coisa, elas diziam que eu riscava
alguma coisa.
Pesquisador: = psicológicas, no caso.
Informante: isso. Diziam que eu quebrava, que eu roubava, que eu estragava. E eu não
lembro... era só entre elas três, tipo assim, a professora não se envolvia. Não lembro da
professora em nenhum momento se envolver, mas aí depois eu fiquei sabendo que a mãe de
uma delas era chamada lá, né? Então, provavelmente, a professora deveria falar alguma coisa.
Pesquisador: ela percebia, porém não intervia diretamente, no momento.
Informante: eu não lembro, eu não lembro, realmente. A imagem que eu tenho é eu sentada
na cadeira e ela vindo assim com o estojo e dizendo: “você quebrou meu zíper, agora eu não
abro mais meu estojo. ” Eu fiz: “não, eu não fiz nada disso não ”, “foi você sim, tenho certeza
que foi você. ” Eu fiz: “não, não fui eu, não fui eu. ” Isso que eu lembro, da borracha riscada,
a borracha era branquinha e tava toda riscada de hicrocor. Fez assim: “porque você fez isso
na, minha caneta, minha borracha? ”, “não fui eu que fiz isso ”, “foi sim, foi você, foi você,
foi você. ” E segundo uma delas que me relatou: “era engraçado, divertido, ver você, porque
aquela menina grandona, bobona e a gente conseguia dominar”.
Pesquisador: então, elas enxergavam a agressão não como agressão, mas como um
divertimento?
Informante: pelo que ela fala, é isso.
Pesquisador: elas tinham satisfação, digamos assim? Bem interessante. Quais os motivos,
você já falou um pouco, os motivos para que essas agressões ocorressem? [Mas você acha que
foi porque você era mais... =
Informante: [bobona. Boba. É o que elas dizem.
Pesquisador: = na visão delas?
Informante: isso.
Pesquisador: certo.
Informante: mas na minha visão, não lembro.
Pesquisador: certo, você era alta também, mais alta do que elas.
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Informante: sempre fui a mais alta da minha turma, mesmo reprovando. E quando reprovei
então eu fiquei gigantesca.
Pesquisador: então o tipo físico e a questão emocional, o fato de você ser mais tranquila,
[mais emocionalmente =
Informante: [reservada.
Pesquisador: = sensível, reservada. Isso é uma espécie de chamariz, chamou a atenção delas
e elas...
Informante: hum-rum, eu acho que elas viram o elo fraco. Alguém fraco.
Pesquisador: então você acha que elas perceberam que você, no contexto da sala, era mais
frágil? E elas decidiram...
Informante: é, que eu era mais fraca. Isso, porque você imagina eram três turmas: A, B e C. e
na primeira série virou A e B, então houve uma mesclagem, porque no pré não existia isso e
elas já estudavam lá no pré.
Pesquisador: elas já eram bem amigas, digamos assim.
Informante: não, não lembro delas de quem era... eu sei que uma delas, Luana, com certeza
era da minha turma, mas as outras não lembro. Entendeu? E tipo elas se juntaram e se
acharam as poderosas e viu que ali tinha um elo fraco.
Pesquisador: você já conhecia Luana antes das três se unirem?
Informante: sim, na pré-escolar. Ela fez pré-escolar comigo.
Pesquisador: ela era sua amiga, então?
Informante: não, ela era da minha turma na escola. Não, quem era minha amiga era outra, era
Suzana. Suzane, o pai dela era militar.
Pesquisador: mas a partir do momento que as turmas se mesclaram, ela se uniu às outras
duas e?
Informante: isso. E fizeram isso.
Pesquisador: certo, só falta mais duas.
Informante: você vai mudar os nomes, né?
Pesquisador: com certeza. Você buscou algum tipo de ajuda ou apoio para superar essa
experiência ou para tentar apagar da memória?
Informante: não.
Pesquisador: não? Mesmo com a reprovação, você continuou com sua vida cotidiana.
Informante: não, foi, passou, a vida continuou. Aí eu acho que eu que fiz bullying em algum
(menino) futuramente. Não sei, né?
Pesquisador: então você chegou a praticar bullying também?
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Informante: não, eu peguei uma briga com minha prima, mas aí foi briga de prima. Aí ela
juntou a turma dela contra a minha turma na escola. Foi a maior confusão.
Pesquisador: a: então, foi um episódio pontual? Se resolveu?
Informante: foi, a gente ficou de castigo, toda a turma. A minha turma e a dela. A sala
inteira. Você tem noção. Eu botei a terceira série contra a segunda série, numa briga
fenomenal no ginásio. Não, mas isso aí...
Pesquisador: isso aí é um episódio pontual que realmente não consiste em bullying, vou lhe
explicar mais com detalhes.
Informante: tá.
Pesquisador: e aí vem a última pergunta: o que você faria se você tivesse a oportunidade de
se encontrar com elas três? Hoje. Hum... um famoso, uma acareação como a gente vê na
televisão, uma acareação entre o acusado e o acusador. Você gostaria de ter a oportunidade de
falar alguma coisa ou é algo superado que você não precisa mais mexer? Ou... enfim.
Informante: não, eu tiro onda com uma delas só, porque assim eu nunca me encontrei com as
três, já teve DR de..., mas tipo assim, agora gente tava com álcool, né? “Tipo assim, você fez
isso comigo, não sei que mais, não sei o que lá”, aí ela disse: “ a: era fácil, você era bobona”,
mas hoje em dia a gente é até amiga, então tipo, passou. Entendeu? [Não é uma coisa que me
faça... =
Pesquisador: [superou.
Informante: = é, superou. E com a minha maturidade de hoje em dia eu vejo assim: hoje em
dia, Jairo, eu vejo assim, tudo na vida é pra alguma coisa, certo? Não sei se vai precisar gravar
isso, mas eu acho assim: tudo que a gente passa na vida é pra alguma coisa, pro bem ou pro
mal, para gente aprender. Então, isso que eu precisei passar, talvez tenha sido necessário pra
eu reprovar, porque eu tenho certeza que minha vida teria sido totalmente diferente, teria sido
outra vida se eu tivesse continuado na minha turma. Os meus ciclos de amizade, as minhas
experiências teriam sido totalmente diferentes. Então, eu acho que necessitava...que ela era
uma coisa planejada pra passar na vida, pra eu poder mudar de turma, pra eu ter essa minha
vida que eu tive.
Pesquisador: então, você encara essa experiência como um processo necessário para que
você pudesse acordar, de certa forma, pra alguns aspectos da vida?
Informante: isso, eu acho necessário para você ter a sua vida no percurso da sua vida.
Pesquisador: você acha necessário?
Informante: não, eu acho que não tinha sido necessário. Eu acho assim, não é que o bullying
seja fundamental...
96
Pesquisador: ele foi fundamental no seu contexto pessoal?
Informante: isso, ele mudou a minha vida.
Pesquisador: entendi.
Informante: entendeu? Mas, talvez isso já era pra alguma coisa...meus ciclos de amizade
teriam sido outros, eu teria entrado na faculdade em outra época da minha vida. Talvez eu não
tivesse feito a faculdade que eu fiz, então eu acho assim: nada na vida é por acaso, tudo tem o
seu propósito, é só a gente começar a ver o lado bom das coisas. Entendeu? Na época, aquilo
dali foi ruim, mas eu ganhei um pote de sorvete e uma viagem pro Rio.
Pesquisador: ou seja, houve o lado bom da moeda, né? Teve o lado ruim e teve o lado bom,
nesse contexto.
Informante: exatamente. E eu acho assim: que não levei tanto pro resto da vida, porque tipo
algumas delas que continuaram da escola, em uma turma mais na frente, e eu não tive mais
contato com elas. Porque tipo foi aquele ano, foi o ano que elas estudaram comigo, elas
continuaram na escola, mas pararam de me perseguir.
Pesquisador: certo, então foi durante o ano, mas você acredita que se elas tivessem
continuado nos anos subsequentes poderia a agressão ter continuado?
Informante: acho que sim.
Pesquisador: você acredita nisso?
Informante: acredito. Porque pelo que a mãe de Lua falou, ela foi chamada várias vezes na
escola e ela nunca mudou.
Pesquisador: entendi. Ela nunca tirou da personalidade dela esse caráter agressivo.
Informante: Durante aquele ano, por que não foi várias vezes que ela me perturbou na escola
durante o ano? E a mãe dela foi chamada várias vezes durante o ano na escola? E ela não
mudou, porque se ela tivesse mudado, na primeira vez que a mãe dela havia sido chamada, ela
teria mudado. E a mãe dela foi chamada várias vezes, durante aquele ano.
Pesquisador: entendi. Para finalizar eu gostaria que você desse algumas palavras finais, se
você achar necessário, sobre a experiência ou o conjunto das experiências que você viveu
naquele ano.
Informante: amigo, é: ... posso falar amigo? Você tira, né? Durante o processo eu lembro que
foi doloroso, é muito ruim você ser acusada de ser roubada, é muito ruim você ser acusada de
destruir uma coisa que você não destruiu. Pela minha personalidade, eu sofri. Talvez você,
pela sua personalidade de tirar onda, você ia tirar onda. “Pois é, quer que eu termine de
quebrar? ”. Depende da personalidade da pessoa, entendeu? Mas eu acho que a gente tem que
tentar, com as dores da vida, ver o lado bom. Não é fácil, vamos dizer assim: a: mundo de
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Poliana, tudo tem seu lado bom. Não é fácil, é processo que tem que ser diário. Naquela
época, eu não tinha essa maturidade, eu apenas sofri e muitas vezes não contei pros meus pais,
porque você não sabe o que tá fazendo de errado, né? Então assim, é tentar tirar o lado bom.
O meu lado bom, eu vejo assim: eu não teria as minhas amigas de hoje se eu tivesse
continuado na turma dela e eu gosto das minhas amigas de hoje. Então, pronto. Foi necessário
pra eu conhecer as minhas amigas, Andreza é minha amiga até hoje, Valeska é minha amiga
até hoje, Maria Fernanda. Então assim... Cris, então as minhas amigas da época da escola se
deu a esse episódio, porque se eu não tivesse reprovado, eu não teria elas. E eu gosto de ter
elas na minha vida, então é o lado bom, eu acho. Tentar tirar o lado bom e tirar onda hoje de
(incompreensão), se ela bebe, eu digo: “você é culpada, você fez bullying em mim. ” (risos).
Pesquisador: tá certo então, pois eu agradeço e aqui a gente encerra a nossa entrevista, tá
bom?
Informante: valeu, amigo. Desculpa aí qualquer coisa. Pronto, destrave. Aí você vai fazer:
pera aí, concluído. Não, stop.