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Alfred Russel Wallace, Espiritismo, reencarnação
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WALLACE E A REENCARNAO
Apresentao, traduo e notas deMarcio Rodrigues Horta1
Alguns espritas brasileiros insistem em afirmar que Alfred Russel Wallace
(o co-autor da teoria da evoluo) era esprita; tal engano atinge vrios cientistas
famosos do sculo XIX2, mas no caso de Wallace h uma enftica manifestao
negando que seu espiritualismo se resolvesse em espiritismo, como lemos no artigo
abaixo, traduzido para o portugus.
Allan Kardec publicou O livro dos espritos em 1857, na Frana, e o
principal tema que distingue sua doutrina do novo espiritualismo j existente o da
reencarnao3; por t-lo adotado, Kardec desviou-se significativamente do curso at
ento seguido pelo movimento espiritualista, criando um cristianismo sui generis e
formulando uma teologia & teodicia neoplatnicas.
Assim, a informao verdadeira deve se impor, e este trabalho tenciona
evidenciar que a propaganda acerca do Wallace esprita enganosa; por outro lado,
cumpre tambm observar que as objees do famoso sbio ingls contra a reencarnao
hoje no parecem decisivas, sendo maior seu interesse histrico.
Wallace (1823/1913) passou a mocidade no Brasil (de 1848 a 1852 na
Amaznia) e na Oceania (de 1854 a 1862 no Arquiplago Malaio) dedicando-se
biologia, qual forneceu contribuies notveis4 e, pouco depois de voltar Inglaterra,
aproximou-se do espiritualismo, interesse pelo qual jamais perderia; o panorama que
encontrou nesse movimento no diferia significativamente do quadro que se encontra o
1 Doutor em filosofia pela USP e funcionrio de carreira do TRE/SP trabalho terminado em 12/05/2011.2 Por exemplo, no Brasil, a obra intitulada The history of spiritualism (ou seja, a histria do espiritualismo) recebeu uma verso como a Histria do espiritismo; nesta, as palavras espiritualismo, espiritualista etc. foram sistematicamente traduzidas por espiritismo, esprita etc. O resultado consistiu na incluso de uma srie de personagens espiritualistas no rol de adeptos do espiritismo; Wallace foi citado algumas vezes em contextos sugestivos de ligao com o espiritismo, tal como na seguinte passagem: desde os primeiros dias, os espritas tm sustentado que h uma base fsica material para os fenmenos. Na incipiente literatura esprita, encontram-se centenas de vezes descries de um denso vapor semiluminoso, que flui do lado ou da boca do mdium... para citar alguns exemplos... Alfred Russel Wallace descreve ter visto com o Dr. Monck, primeiro uma mancha branca que gradativamente se transformou numa coluna nevoenta. DOYLE, 1995, p. 337.3 Cf. KARDEC, 1857.4 Cf. HORTA, 2004 & HORTA, 2004a.
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espiritismo brasileiro hoje, com seus taumaturgos de variados efeitos e, rapidamente, o
interesse do cientista ingls passou a ser aplicar o mtodo cientfico a esse objeto,
disposio que presentemente seria tambm benfica aos espritas brasileiros, ao menos
para ajud-los a identificar embustes.
No incio do artigo em tela, Wallace justifica a escolha da teosofia como
adversria alegando tratar-se do nico sistema reencarnacionista meticulosamente
elaborado, embora a descrio que dele ofereceu o fez parecer um tanto ingnuo; o eco
da fora psquica como causa da mudana das formas materiais, advogada pela teosofia,
pode ter origem imediata numa interpretao corrente da filosofia zoolgica de
Lamarck, na qual a fora de vontade dos seres subumanos provocaria alteraes
desejveis na presumidamente plstica estrutura material dos seres vivos5. Este aspecto
algo espiritual fez com que, por ocasio da proposio da teoria da evoluo de Darwin,
em 1859, atravs de um mecanismo estritamente materialista, a seleo natural, muitos
pensadores inicialmente fixistas assumissem o lamarckismo, filosofia at ento
pesadamente criticada6.
Outro ponto que salta aos olhos no artigo que Wallace no refutou o tema
da reencarnao; porm, acreditando faz-lo, atacou fundamentalmente a associao
que a teosofia fez entre os temas da reencarnao e da evoluo da forma material (&
do intelecto & da moralidade) humana, a hiptese auxiliar teosfica. Por exemplo,
Richard Behe acreditou refutar a evoluo por seleo natural atacando sua hiptese
5 Segundo Lamarck (1994, p. 230, traduo e negrito meus): Relativamente aos hbitos, curioso observar o seu resultado na forma particular e na estatura da girafa (camelo-pardalis): sabemos que este animal, o mais alto dos mamferos, habita o interior da frica em lugares onde a terra (quase sempre rida e sem arbustos) a obriga a comer a folhagem das rvores e esforar-se continuamente para faz-lo. Resultou deste hbito (...) que as suas pernas frontais se tornaram mais longas do que as pernas traseiras, e que o seu pescoo se alongou de tal modo que, a girafa, sem apoiar-se nas pernas de trs, eleva a sua cabea para alcanar mais de seis metros de altura.6 Segundo BLANC (1994, p. 33): A filosofia desta de Lamarck (...) fez com que postulasse que as espcies no se extinguiam: seria uma afronta ao Criador (...). O que explica que, aps ter sido combatida no incio do sculo XIX pelo conservadorismo religioso (com Cuvier encabeando a fila), a teoria de Lamarck tornou-se, ao contrrio, a tbua de salvao dessa corrente filosfica, quando, a partir da segunda metade do sculo XIX, o darwinismo imps a noo de evoluo como inevitvel - e isso num quadro conceitual agnstico, para no dizer ateu. Blavatsky e os seus podem ter aceitado considerar o transformismo porque as modificaes aleatrias e casuais de Darwin no se ajustavam ao seu esquema crtico do acaso. H um livro sobre a rejeio dos teosofistas a Darwin, intitulado O babuno da Mme. Blavatsky.
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auxiliar, a de que a evoluo ocorre por pequenas acumulaes gradativas7; contudo,
mesmo se a hiptese auxiliar gradualista for falsa, no se infere logicamente que a
evoluo tambm o seja, pois esta pode ocorrer de outro modo, provavelmente como o
prprio Wallace aqui argumentou, de modo pontuado (longos perodos geolgicos de
estabilidade gradualista com mudanas comparativamente rpidas). Assim, do fato de a
reencarnao no ser o motor do progresso da forma material humana, no se segue
necessariamente sua inexistncia; isto apenas demonstra que, se a reencarnao for
verdadeira, seus defensores superdimensionaram seu papel, funo ou atributos.
Ao final do artigo, mais do que lgica ou cientificamente baseado, percebe-
se que Wallace no gosta do tema da reencarnao, o que acaba transparecendo como
constituindo a real motivao por trs do escrito. Um preconceito decide a contenda e,
como tal, j estava presente desde o incio: o tema da reencarnao estranho ao
cientista ingls, sua formao vitoriana, marginal na cultura ocidental, fortemente
minoritrio na cincia contempornea etc. Ao final do artigo, Wallace no esconde seu
alvio por t-lo afastado rapidamente com uma enftica negativa.
Teramos j vivido na Terra? Viveremos nela novamente?8
Alfred Russel Wallace
Claro, no pode haver nenhuma resposta positiva (fundada na experincia)
a essas questes; mas creio que podem ser respondidas com muita proximidade da
certeza se basearmos nossas concluses nos fenmenos verificados, leis da evoluo e
hereditariedade9. Em minha opinio, respostas que apelam principalmente a preferncias
7 BEHE, 1997, pg. 32 e outras.8 Artigo publicado em novembro de 1904 na revista The London magazine.9 Em termos metodolgicos, distintamente do que Wallace presume, parece possvel refutar ou corroborar alegaes de reencarnao: obtida uma descrio espontnea, investigaes em cartrios, arquivos, genealogias etc. podem ser realizadas no sentido de mostr-las falsas ou sustentveis. Por outro lado, o conhecimento cientfico permite separar rapidamente as descries possveis das impossveis e, neste aspecto, o critrio de Wallace sobre a aplicao da cincia nesse terreno fundamentalmente valiosa. Por exemplo: as alegadas viagens astrais de Swedenborg, que dizia visitar seres inteligentes encarnados nos planetas do sistema solar, rapidamente podem ser descartadas e as investigaes sobre tais fenmenos, com justia, devem seguir para o terreno psiquitrico (vide SWEDENBORG, 1988 & 1992).
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pessoais ou presumam necessidades metafsicas so absolutamente inteis. Para evitar
equvocos, tomo os termos das questes em suas definies aparentemente usuais: a)
por ns significo almas idnticas e individuais, ou os egos de todas as pessoas vivas
ou que viveram na Terra; e b) por viver na Terra significo viver em corpos humanos
comuns, no em algum estado incorpreo ou espiritual. De incio, consideremos o que
as respostas afirmativas s perguntas acima realmente implicam.
No incio.
Todos admitem que, em algum perodo no muito remoto geologicamente,
o homem passou a existir; se comeou com um nico par ou como um grupo
desenvolvendo-se simultaneamente a partir de alguma forma subumana inferior no
importa muito. Nos dois casos houve um perodo no qual o nmero de indivduos era
relativamente pequeno e, evidentemente, os descendentes desses homens primitivos no
poderiam j ter vivido na Terra em corpos humanos, nem as segunda ou terceira
geraes, muito mais numerosas10.
A doutrina teosfica da reencarnao, o nico sistema meticulosamente
elaborado que responde s nossas questes afirmativamente11, sustenta que o processo
da reencarnao s comeou depois que a forma humana estava aperfeioada; ento, a
alma humana ou manas nela encarnou, pois isso seria realmente essencial ao
desenvolvimento da alma. A dificuldade relativa s primeiras geraes de homens que
buscavam corpos nos quais viver uma segunda vez superada pela teoria do devachan,
um estado de existncia intermedirio no qual as lies da vida terrena frutificam por
meio da contemplao e comunho com as outras almas na mesma condio; e como tal
estado pode perdurar por perodos muito longos, o incio efetivo da reencarnao teria
10 No contexto, Wallace parece pressupor a teoria demogrfica de Malthus, na qual a populao humana tende a duplicar a cada vinte e cinco anos ou uma gerao; assim, a segunda e terceiras geraes poderiam ser muito mais numerosas; todavia, Malthus tambm sustentava que o crescimento populacional sistematicamente abortado por impedimentos massivamente mortais, tais como a peste, a fome, a guerra etc. Portanto, a alegao de que as geraes seguintes seriam muito mais numerosas tem algo de otimista, e as dificuldades para as almas encontrarem corpos nos quais encarnar e reencarnar poderiam ser ainda maiores do que as apontadas pelo autor do artigo.11 Ignoro se Wallace desconhecia o kardecismo ou o avaliava negativamente.
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se dado num perodo posterior, quando j havia uma populao considervel, fonte
grande e contnua de nascimentos12. Da em diante, supe-se que todas (ou quase todas)
as almas reencarnaram ao seu tempo com vistas a se desenvolver nos graus de
existncia do esprito. Se essa teoria for verdadeira, falando genericamente, segue-se
sem dvida que todos ns j vivemos na Terra e nela viveremos novamente, em todos
os eventos at que o homem se torne muito mais avanado moral e intelectualmente do
que agora. Mas isto verdadeiro? At onde alcano, trata-se de uma especulao pura
que no tem como se apoiar em qualquer evidncia direta13. Mas por outro lado, h um
corpo considervel de evidncias que a torna improvvel no mais alto grau (isso se no
demonstrar inteiramente a sua falcia), como agora esforar-me-ei por mostrar.
As leis da hereditariedade.
A parte da biologia mais diretamente relacionada teoria da reencarnao
aqui discutida consiste nas leis da hereditariedade recm descobertas pelo Sr. Francis
Galton. Por meio de colees muito grandes de fatos relativos s diferentes
caractersticas das plantas, animais inferiores e homem, alm da transmisso dos
caracteres s geraes sucessivas, ele alcanou duas generalizaes notveis que, aps
terem sido bem examinadas e testadas por outros investigadores, hoje so geralmente
aceitas como as verdadeiramente representativas leis da hereditariedade14.
A primeira delas denomina-se lei da regresso mediocridade. Ou seja,
se considerarmos o conjunto dos indivduos de qualquer espcie, variedade ou corpo
considervel de indivduos, podemos sempre encontrar para cada caracterstica que 12 Ao tempo de Wallace, a populao humana caminhava para alcanar dois bilhes de pessoas, fato que, no contexto, significaria quase dois bilhes de almas. Considerando que a populao humana inicial talvez contasse, quem sabe, uns mil corpos, uma imensa populao de almas teria de aguardar uma oportunidade para encarnar, e ainda mais para reencarnar; por esta razo matemtica que Wallace afirma que o incio efetivo da reencarnao teria se dado num perodo posterior. O quadro teosfico que Wallace descreve muito ingnuo, pois, como os deuses no Olimpo, as almas permaneceriam observando a humanidade incipiente por milhares de anos.13 Ponto crucial da crtica de Wallace: desqualificar a teosofia como um sistema puramente metafsico, pela ausncia de sequer um ponto de contato com a realidade; portanto, construdo apenas com a imaginao. 14 Alegao duvidosa de consenso na comunidade cientfica; aparentemente, trata-se mais de retrica destinada a persuadir o pblico leigo, visto que a pesquisa sobre a hereditariedade era um tema candente nessa poca, a gerar muitas cises no interior da comunidade de bilogos. A rigor, nesse terreno, a estabilizao de opinies na comunidade cientfica s foi obtida aps a redescoberta e divulgao das leis de Mendel.
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possa ser medida ou estimada (tais como o tamanho do corpo, das partes, cor etc.) o
valor mdio do conjunto, com quantidades variveis de desvio, freqentemente muito
grandes acima e abaixo da mdia. Mas se tomamos alguma dessas variaes maiores (a
maior ou a menor, a mais escura ou a mais clara etc.) e as cruzamos, descobrimos quase
invariavelmente que os descendentes possuem, em mdia, caracteres menos extremos
que os genitores. Eles tendem a se aproximar do valor mdio do grupo. Assim, homens
muito altos, mesmo se casarem com mulheres muito altas, raramente geram pessoas
mais altas, geralmente ningum to alto e freqentemente de estatura bem mediana; o
mesmo ocorre com pessoas muito baixas, cujos filhos so geralmente mais altos do que
eles mesmos. Esta lei aplica-se a todos os animais observados acuradamente pelos
criadores e foi testada tambm por experimentos em larga escala com plantas. No
entanto, o fato mais interessante notado repetidamente por muitos escritores que as
qualidades mentais seguem a mesma lei. Homens excepcionalmente inteligentes nascem
de pais de habilidade apenas mediana, enquanto tais homens muito raramente tm filhos
brilhantes; grandes gnios nunca. Ento, h tambm aqui a regresso mediocridade.
Como surge o gnio.
A forma mdia ou tpica da espcie, variedade ou raa parece permanecer
fixa por perodos considerveis; depende aparentemente do livre cruzamento entre
indivduos e da ausncia de toda seleo ou destruio de tipos peculiares. Por meio de
algum desses dois processos, a mdia pode ser alterada15 e, ento, a regresso dar-se-
para a nova mdia. Mas apesar dessa regresso geral das formas extremas para a mdia,
excepcionalmente caracteres desenvolvidos (sejam fsicos ou mentais) so hereditrios,
apesar de nem sempre e totalmente16. Embora o gnio mais elevado no seja
15 Com a seleo tornando-se eficiente, presume-se.16 Interessante descrio da evoluo, algo adaptada aos fins do artigo, a saber, abater a proposta teosfica de que a reencarnao das almas aperfeioa paulatinamente a forma material, o intelecto e a moralidade humanos. Para Darwin e Wallace, na comunicao conjunta dos dois grandes cientistas realizada em 1858, a hiptese auxiliar era natura non facit saltum. Ou seja, a evoluo das formas vivas resultaria de um acmulo lento e incessante das caractersticas num dado sentido, o que seria algo compatvel com a doutrina teosfica (a diferena no seria a apontada por Wallace, de ritmos evolutivos, mas a autonomia do mundo material. Ou seja, na natureza, as mudanas so aleatrias, no dirigidas a um ponto desejado. A acumulao num dado sentido uma casualidade estritamente material). No presente texto, Wallace descreve o processo evolutivo como um
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diretamente hereditrio, certas famlias tm produzido por sucessivas geraes grandes,
talentosos e brilhantes seres humanos e, finalmente, nascem os grandes gnios17, assim
como um grande nmero de mediocridades. Weismann e muitos outros escritores
forneceram numerosos exemplos que ilustram esta lei.
A outra generalizao (que estabelece a proporo devida a cada pai e a
cada ancestral na produo das caractersticas da descendncia) ainda mais notvel,
pois tambm serve para explicar a causa da primeira lei. De uma longa comparao de
homens e animais com seus pais e antepassados prximos e remotos, o Sr. Galton
obteve os seguintes resultados como uma mdia constante: os indivduos derivam
metade de suas peculiaridades dos pais (um quarto de cada), um quarto dos seus quatro
avs, um oitavo de seus bisavs e assim indefinidamente. Dentre outros, esta lei foi
criticamente examinada e testada por Karl Pearson, eminente matemtico e professor,
que a considerou em geral correta18.
Por que nos assemelhamos aos nossos ancestrais?
O funcionamento efetivo dessa lei, em conexo com a teoria de Weismann
da continuidade do plasma germinativo19, parece ser que, nos rgos reprodutivos de longo perodo de fixidez alterado por saltos sbitos, uma evoluo pontuada motivada tambm (e no somente) pelo intento de provocar o desencontro dos processos material e espiritual. 17 Presumo que esta seja a melhor traduo para a obscura passagem escrita por Wallace; afinal, Galton estudou a ocorrncia de grande capacidade intelectual em determinadas famlias, o que lhe permitiu supor que as caractersticas mentais de um indivduo eram hereditrias (Asimov, 1976, II, p. 365).18 Correta do ponto de vista estritamente matemtico; aqui, Wallace vale-se de um argumento de autoridade ao citar a adeso do respeitado Pearson segunda generalizao. Efetivamente, Galton foi um dos primeiros a aplicar a matemtica, particularmente a estatstica, ao estudo da hereditariedade. Todavia, seu pressuposto falso, a saber, quando indivduos com caractersticas diferentes se cruzam, seus traos se misturam e o filho, assim, resultaria da composio (cf. Asimov, 1976, II, p. 364). Isto tornou falsa a segunda generalizao, que estende o princpio a toda arvore genealgica do indivduo, o resultado de um blend de sua ascendncia inteira. Segundo Mayr, Galton dava s partculas, no seu raciocnio, um tratamento no sentido de que elas se misturavam... o que acabou contribuindo para sua refutao inequvoca... o mendelismo no podia esperar ser universalmente aceito enquanto no fosse abandonada toda a aderncia lei de Galton (MAYR, 1998, p. 876). Tal como Darwin, Wallace derrapou longamente na hereditariedade e, por jamais conhecer os trabalhos de Mendel, carregou o nus de defender uma teoria que obstava suas descobertas tericas evolutivas e sustentar ao grande pblico que ela harmonizava a biologia de ento. Mendel, que haveria de se tornar a base da gentica contempornea, argumentou de modo radicalmente atomstico, e a partcula que determina uma caracterstica no se desfaz, dissolvendo-se no todo, mas mantm sua individualidade, o que significa que, se receber variao, capaz de transmiti-la prognie, superando a mais renitente dificuldade cientfica aceitao da evoluo.19 August F. L. Weismann (1834/1914), terico da biologia alemo, sustentou nos ltimos trinta anos do sc. XIX que a vida contnua e imortal. A microscopia evidenciara que os microrganismos constantemente se
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cada indivduo, h uma mistura de germes hereditrios derivados de uma longa srie de
ancestrais, quase nas propores acima dadas, e certo nmero deles, tomados como que
ao acaso de cada um dos pais, determina a forma e as caractersticas da prole, sejam
fsicas ou mentais. Portanto, em mdia, as crianas se assemelham a seus pais, seus avs
etc., quase na proporo acima citada, mas h espao para uma variedade infinita de
combinaes. s vezes, os germes parentais prevalecero; por vezes, os de certos
ancestrais e, se na linha ancestral quaisquer caractersticas especiais prevaleceram
durante muitas geraes, tais caracteres seguramente aparecero em algumas das
crianas, mesmo se estiverem ausentes nos pais. Germes de vrios ancestrais distintos
podem tambm se combinar para produzir um resultado cumulativo em relao a
qualquer grupo de personagens e, assim, surgem grandes homens de todo tipo - por
combinaes muito raras e sorte, grandes gnios. claro que isto ser mais provvel de
acontecer quando ambos os pais forem igualmente do mesmo estoque bom. Da famlias
aristocrticas ou comunidades rurais, que freqentemente se casam entre si, serem mais
propensas a perpetuar a boa (ou a m) qualidade do estoque ancestral que possuem;
estes vrios resultados so exatamente o que ocorre20.
Argumentos negativos.
Agora, a aplicao do acima exposto nossa discusso tornar-se- bvia.
As duas grandes leis da hereditariedade aqui expostas abrangem todo o mundo
orgnico: plantas, animais e homem; aplicam-se mente tanto quanto ao corpo, aos
subdividem & podem ser destrudos, mas nunca morrem por envelhecimento. Weissmann atribuiu tais propriedades aos macrorganismos, pois vulos e espermatozides que originam um indivduo foram formados por outros indivduos e assim por diante; portanto, a teoria da continuidade do plasma germinativo defendeu que este seria a essncia da vida, criando um organismo em torno de si com a precpua finalidade de proteger o processo. Samuel Butler ironizou a teoria, ao dizer que por tal pensamento uma galinha apenas a maneira utilizada pelo ovo para produzir outro ovo. Com efeito, para a teoria, o organismo, tendo cumprido sua funo de proteger o plasma germinativo e reproduzi-lo, torna-se dispensvel & pode & deve morrer para o xito da vida em geral. Todavia, apresentar tal teoria ao grande pblico como amiga da evoluo oculta que se criou aqui uma tenso terica. A teoria de Darwin/Wallace pressupe uma gentica que demonstre variao & transmisso de um indivduo de uma espcie para as geraes posteriores; contudo, o isolamento, superproteo e continuidade do plasma germinativo tende ao fixismo & no ao mutacionismo, a despeito da vontade de seu propositor (cf. Asimov, 1976, II, pp. 406/7). 20 Tecnicamente falando, vivemos presentemente um perodo neodarwinista em biologia (com vrias ramificaes), uma vez que a nova sntese, realizada por cientistas notveis em meados do sc. XX, reuniu a ecologia de Darwin e a gentica de Mendel.
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mais elevados sentimentos morais assim como ao intelecto puro21. Porm, se a teoria da
reencarnao como um meio de progresso humano (operando incessantemente)
verdadeira, devem existir indcios de progressos contnuos e verdadeiramente
excepcionais nas formas mais elevadas do carter humano quando comparados com
outras partes do mundo orgnico. Mas no h indcios sequer de uma diferena; decerto,
no avanamos moralmente tanto quanto intelectualmente e, mesmo no intelecto,
tomando mdia, duvidoso que tenhamos realmente avanado desde o tempo de
Scrates e Plato ou dos autores do Maha-Bharata. No apenas no h nenhuma prova
de qualquer avano excepcional no homem, como deveria ter ocorrido se ele tivesse
realmente sido influenciado beneficamente por sucessivas reencarnaes, mas existem
(como mostrei) provas diretas muito convincentes de que nenhum avano efetivamente
se realizou22.
Um pesadelo grotesco.
Sem dvida, outros escritores debruar-se-o nas dificuldades inerentes a
todo o suposto processo da reencarnao23; para mim, no posso conceber que qualquer
alma humana totalmente desenvolvida, apesar de m, possa ser beneficiada ao ser
novamente mergulhada: no meio das condies deplorveis e degradantes hoje
21 A estratgia argumentativa de Wallace consiste em afirmar a autonomia do mundo material relativamente ao espiritual: a vida material evolui por suas prprias leis, o resultado de um longo perodo de estabilidade interrompido por um relativamente curto perodo de modificao. Mas no deveria ser assim, caso a lei espiritual alegada fosse realmente eficiente, ou seja, se estivesse incessantemente agindo como a teosofia sustenta (sistemtico progresso produzido pelas reencarnaes das almas, um aprimoramento lento e irresistvel dos humanos em sua forma material, intelecto e moralidade). Afinal, Wallace argumenta, o homem no apresenta desde seu surgimento mudana substancial alguma, tanto em sua capacidade intelectual quanto moral, apenas mediocridades e alguns gnios eventuais que, por sua vez, no colocam as formas materiais num novo patamar, pois sua descendncia tende a retornar mdia. 22 Com efeito, os esquemas evolucionistas tanto da teosofia quanto do espiritismo parecem se ajustar menos mal ao lamarckismo do que ao darwinismo, uma vez que, naquele, a matria foi concebida como sendo plasticamente mais sujeita s influncias do esprito; contudo, suspeito que por uma longa influncia do e ajustes ao pensamento fixista no Ocidente (aristotelismo & cristianismo), a teosofia naquele momento admitisse uma evoluo restrita, apenas dos humanos, concebidos como seres especiais e a parte na natureza. Assim, a passagem das almas de encarnaes em formas subumanas para as humanas, no incio do sc. XX, estava fora de questo tanto para os teosofistas quanto para Wallace; porm, esteve presente nas derradeiras cogitaes de Kardec, dcadas antes, o que depe contra a avaliao de Wallace de que, no que se refere ao tema da reencarnao, a teosofia era o nico sistema meticulosamente elaborado ento existente. 23 Para uma viso distinta do tema da reencarnao fornecida por Wallace, vide MULLER, 1970; STEVENSON, 1970 & 1977; TARAZI, 1990.
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prevalecentes, seja na manso ou na favela; dentre os ricos sensuais ou os pobres
famintos; na desesperada luta pela riqueza ou pelo alimento bsico; sujeita s torturas
fsicas e morais das workhouses e suas prises; nas ms paixes suscitadas pela
opresso e injustia; ao atravessar os horrores da guerra em cuja preparao
concentramos todos os recursos da cincia e muito da riqueza duramente conquistada
pelas massas, enquanto deixamos seus filhos crescerem na necessidade, misria e vcio
e seus velhos e fracos morrerem lentamente24.
A concepo toda da reencarnao parece-me um pesadelo grotesco que,
como tal, s pode ter se originado nas eras de mistrio e superstio25.
Afortunadamente, a luz da cincia lhe apresenta como inteiramente infundada. Pelas
vrias razes aqui expostas, respondo s questes feitas com uma enftica negativa.
BIBLIOGRAFIA
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KANT, I.; Los Sueos de un visionario explicados por os sueos de la metafsica. Traduo, introduo e notas: Pedro Chacn & Isidoro Reguera, Madri; Aliana Editorial; 1987.
24 O Wallace socialista aproveita o ensejo para alfinetar a sociedade de seu tempo; todavia, o famoso cientista ingls fere um critrio proposto por ele mesmo no incio do artigo: em minha opinio, respostas que apelam principalmente a preferncias pessoais (likes & dislikes)... so absolutamente inteis. Portanto, sua opinio, que no percebe vantagens no retorno das almas por reencarnao a este mundo corrupto, a rigor no deveria ter sido enunciada para responder a pergunta sobre se elas voltam ou no Terra; afinal, como regra geral do realismo, fatos independem de opinies. Resta uma pergunta a ser respondida (agora dogmaticamente, e no de modo crtico) por espiritualistas tais como Wallace: por que a alma encarna uma vez neste mundo corrupto? A resposta tradicional dos espiritualistas, dentro da mentalidade herdada da religio europia, uma de suas matrizes, seria: para lutar pela salvao; contudo, como um estudioso do assunto uma vez observou, se a alma desce Terra uma vez, para viver num corpo material, em princpio no h razo para que isto no ocorra novamente, ou at diversas vezes. MULLER, 1970, p. 20.25 Com efeito, longe de tom-lo por consolador, o budismo considera o ciclo das reencarnaes um inferno, do qual a alma escapa quando se ilumina; modernamente, os que trouxeram esse tema para o Ocidente trataram de nele encontrar um sentido, no mais das vezes evolutivo.
10
KARDEC, A.; Le livre des esprites crit sous la dicts et publi par l'ordels d'esprits suprieurs. 1 edio de 1857 fac-similada por Canuto Abreu; 1957.
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11
Apresentao, traduo e notas de