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1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO GRUPO DE ESTUDOS PERMANENTE DE DIREITO, ESTADO E RACISMO AS TENSÕES IDEOLÓGICAS DO CAPITALISMO: UNIVERSALISMO VERSUS RACISMO E SEXISMO Immanuel Wallerstein 1 O mundo moderno, temos dito há tempos, é o primeiro a ir além dos estreitos limites da lealdade local e proclamar a irmandade universal do homem. Ao menos foi isso o que nos disseram lá pela década de 1970. Desde aquele tempo, temos tomado consciência de que a própria terminologia da doutrina universalista como, por exemplo, a frase “a irmandade do homem”, desmente a si própria, uma vez que esta frase é masculina no gênero, o que exclui explicitamente ou ao menos relega a uma esfera secundária todas aquelas que sejam mulheres. Seria fácil multiplicar exemplos linguísticos, todos os quais revelam uma tensão subjacente entre a contínua legitimação ideológica do universalismo no mundo moderno e a persistência da realidade (tanto material quanto ideológica) do racismo e do sexismo neste mesmo mundo. É esta tensão, ou mais precisamente, esta contradição, que eu gostaria de discutir. As contradições não apenas fornecem a força dinâmica dos sistemas históricos; elas também revelam suas características essenciais. Uma coisa é perguntar sobre a procedência da doutrina universalista e o quão largamente ela é compartilhada; e por qual motivo o racismo e o sexismo existem e persistem. Outra muito diferente é questionar sobre as origens do emparelhamento das duas ideologias, ou mesmo argumentar que há uma relação simbiótica entre elas. Começaremos com um aparente paradoxo: o maior desafio ao racismo e ao sexismo tem sido as crenças universalistas; e o maior desafio ao universalismo tem sido as crenças racistas e sexistas. Costuma-se tomar como evidente que os propositores de cada um desses conjuntos de crenças são pessoas em campos opostos. Apenas ocasionalmente 1 Traduzido por Pedro Eduardo Zini Davoglio para uso exclusivo interno do “Grupo de Estudos Permanente de Direito, Estado e Racismo – Mackenzie/SP”

WALLERSTEIN Immanuel - As Tensoes Ideologicas Do Capitalismo-libre

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Na filosofia da mente a Teoria materialista de estado central faz parte da teoria da identidade da mente que identifica os eventos mentais com eventos físicos que ocorrem no cérebro e sistema nervoso central. É, assim, uma forma de fisicalismo. As duas formas mais comumente distinguidas são a teoria da identidade token-token e a teoria da identidade.

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    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE DIREITO

    GRUPO DE ESTUDOS PERMANENTE DE DIREITO, ESTADO E RACISMO

    AS TENSES IDEOLGICAS DO CAPITALISMO: UNIVERSALISMO VERSUS RACISMO E SEXISMO

    Immanuel Wallerstein1

    O mundo moderno, temos dito h tempos, o primeiro a ir alm dos estreitos limites da lealdade local e proclamar a irmandade universal do homem. Ao menos foi isso o que nos disseram l pela dcada de 1970. Desde aquele tempo, temos tomado conscincia de que a prpria terminologia da doutrina universalista como, por exemplo, a frase a irmandade do homem, desmente a si prpria, uma vez que esta frase masculina no gnero, o que exclui explicitamente ou ao menos relega a uma esfera secundria todas aquelas que sejam mulheres. Seria fcil multiplicar exemplos lingusticos, todos os quais revelam uma tenso subjacente entre a contnua legitimao ideolgica do universalismo no mundo moderno e a persistncia da realidade (tanto material quanto ideolgica) do racismo e do sexismo neste mesmo mundo. esta tenso, ou mais precisamente, esta contradio, que eu gostaria de discutir. As contradies no apenas fornecem a fora dinmica dos sistemas histricos; elas tambm revelam suas caractersticas essenciais.

    Uma coisa perguntar sobre a procedncia da doutrina universalista e o quo largamente ela compartilhada; e por qual motivo o racismo e o sexismo existem e persistem. Outra muito diferente questionar sobre as origens do emparelhamento das duas ideologias, ou mesmo argumentar que h uma relao simbitica entre elas. Comearemos com um aparente paradoxo: o maior desafio ao racismo e ao sexismo tem sido as crenas universalistas; e o maior desafio ao universalismo tem sido as crenas racistas e sexistas. Costuma-se tomar como evidente que os propositores de cada um desses conjuntos de crenas so pessoas em campos opostos. Apenas ocasionalmente 1 Traduzido por Pedro Eduardo Zini Davoglio para uso exclusivo interno do Grupo de Estudos

    Permanente de Direito, Estado e Racismo Mackenzie/SP

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    nos permitimos notar que o inimigo, como disse Pogo, somos ns mesmos; e que a maioria de ns (talvez todos ns) considera perfeitamente possvel perseguir as duas doutrinas simultaneamente. Isso, sem dvida, uma situao deplorvel; mas devemos explic-la, e para alm da afirmao simplista de hipocrisia. Este paradoxo (ou esta hipocrisia) duradouro, generalizado e estrutural, no uma falha humana passageira.

    Nos sistemas histricos anteriores ao capitalismo era mais fcil ser coerente. Embora muitos desses sistemas anteriores variassem em suas estruturas e em suas premissas, nenhum deles hesitava em fazer algum tipo de distino moral e poltica entre o pertencente (insider) e o no-pertencente (outsider), distino na qual tanto a crena e as qualidades morais superiores do pertencente quanto o senso de obrigao dos pertencentes uns quanto os outros tomavam precedncia sobre qualquer conceito abstrato a respeito da espcie humana, isso quando tais abstraes existiam. Mesmo as trs religies mundiais monotestas Judasmo, Cristianismo e Islamismo fizeram tais distines entre pertencentes e no-pertencentes apesar de seu compromisso hipottico com um nico Deus presidindo uma nica espcie humana.

    Este ensaio discute primeiro as origens das doutrinas universalistas modernas, seguindo para as fontes do racismo e sexismo modernos e finalmente para as realidades da combinao das duas ideologias, ambas em termos do que deu origem a elas e de quais tem sido suas consequncias.

    H duas maneiras principais de explicar as origens do universalismo como uma ideologia do nosso sistema histrico presente. Uma delas ver o universalismo como o ponto culminante de uma antiga tradio intelectual. A outra v-lo como uma ideologia particularmente apropriada a uma economia-mundo capitalista. Os dois modos de explicar no necessariamente contradizem um ao outro. O argumento de que ele seria a linha de fuga ou o ponto alto de uma longa tradio tem a ver precisamente com o trio de religies monotestas. O salto moral crucial, tem-se argumentado, ocorreu quando os humanos (ou alguns humanos) deixaram de acreditar em um deus tribal e reconheceram a unicidade de Deus e, portanto, implicitamente, a unicidade da humanidade. Certamente, prossegue o argumento, as trs religies monotestas no levaram a lgica de sua posio at as ltimas consequncias. O judasmo reservou uma posio privilegiada ao povo escolhido por Deus e era relutante em acolher novos

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    membros por adoo. O cristianismo e o islamismo quebraram as barreiras entrada no grupo dos escolhidos e seguiram mesmo a direo oposta, com o proselitismo. Mas tanto o cristianismo quanto o islamismo normalmente requeriam um juramento de fidelidade (que o adulto no crente poderia realizar mediante a converso formal) para que se ganhasse acesso integral ao reino de Deus. O pensamento iluminista moderno, diz-se, simplesmente levou esta lgica monotesta um pouco mais longe, derivando igualdade moral e direitos humanos da prpria natureza humana, uma caracterstica com a qual todos ns nascemos e que resulta no fato de que nossos direitos tornam-se atributos naturais em oposio a privilgios adquiridos.

    Esta no uma histria das ideias incorreta. Temos vrios documentos poltico-morais importantes do final do sculo XVIII que refletem esta ideologia iluminista: documentos que receberam ampla credibilidade e adeso como resultado de grandes convulses polticas (a Revoluo Francesa, a descolonizao das Amricas, etc.). Mas podemos levar a histria dessa ideologia adiante. Houve muitas omisses de facto nestes documentos ideolgicos do sculo XVIII sobretudo no que se refere a no-brancos e mulheres. Com o passar do tempo, estas e outras omisses tm sido retificadas mediante a incluso explcita desses grupos sob a epgrafe da doutrina universalista. Na atualidade, inclusive os movimentos sociais cuja razo de ser consiste em pr em prtica polticas racistas ou sexistas tendem a aceitar verbalmente a ideologia do universalismo, com a qual do a impresso de que considerariam vergonhoso proclamar abertamente os princpios que com toda a clareza regem suas prioridades polticas. No difcil, portanto, traar a partir da histria das ideias uma espcie de curva temporal ascendente da aceitao da ideologia universalista e, com base nessa curva, afirmar a presena de uma espcie de processo histrico mundial irreversvel.

    Entretanto, o universalismo s foi seriamente defendido como doutrina poltica no mundo moderno, de modo que parece consistente argumentar que a sua origem deve ser procurada no marco socioeconmico desse mundo. A economia-mundo capitalista um sistema baseado na acumulao contnua de capital. Um dos principais mecanismos que a tornam possvel a converso de qualquer coisa em mercadoria. Estas mercadorias circulam no que denominamos mercado mundial sob a forma de produtos, capital e fora de trabalho. de se supor que quanto mais livre a circulao, mais ativa ser a mercantilizao e, consequentemente, tudo aquilo que se ope ao seu movimento est hipoteticamente contraindicado.

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    Qualquer coisa que impea que os produtos, o capital e a fora de trabalho transformem-se em mercadorias vendveis significa um obstculo para esses movimentos. Todo recurso a critrios para avaliar os produtos, o capital e a fora de trabalho que no sejam seu valor de mercado, toda intromisso de outras prioridades nesta avaliao, fazem com que esses elementos sejam no vendveis ou ao menos, dificilmente vendveis. Por conta de uma lgica interna impecvel, todos os particularismos, sejam quais forem, so considerados incompatveis com a lgica do sistema capitalista, ou no mnimo um obstculo para o seu perfeito funcionamento. Consequentemente, no contexto do sistema capitalista imperativo proclamar uma ideologia universalista e introduzi-la na realidade como elemento fundamental da incessante persecuo da acumulao de capital. Assim, dizemos que as relaes sociais capitalistas so uma forma de solvente universal que reduzem tudo a uma homogna forma de mercadoria cujo nico critrio de valorao o dinheiro.

    Da extrai-se duas consequncias principais. O universalismo permitiria a mxima eficcia possvel na produo de bens. Especificamente, em termos de fora de trabalho, se temos um caminho aberto aos talentos (uma das consignas nascidas na Revoluo Francesa), provvel que coloquemos as pessoas mais competentes nas funes profissionais que, na diviso mundial do trabalho, melhor convenham a suas aptides. Com efeito, temos desenvolvido todo um conjunto de mecanismos institucionais (o ensino pblico, o servio pblico, legislaes anti-nepotismo) que so concebidos para estabelecer o que hoje chamamos de um sistema meritocrtico.

    Por outro lado, a meritocracia seria no apenas economicamente eficaz, mas tambm um fator de estabilizao poltica. medida que na histria do capitalismo (do mesmo modo que nos sistemas histricos anteriores) existem desigualdades na distribuio de recompensas, o ressentimento daqueles que recebem recompensas modestas em face daqueles que recebem as mais importantes seria menos intenso, j que tal desigualdade est justificada pelo mrito e no mais pela tradio. Em outras palavras, pensa-se que a maior parte das pessoas consideraria mais aceitvel, moral e politicamente, o privilgio adquirido mediante o mrito do que o adquirido hereditariamente.

    Esta sociologia poltica me parece discutvel. Diria inclusive que o exato oposto seria o verdadeiro. Ainda que o privilgio adquirido hereditariamente tenha sido aceito, ao menos em parte, durante muito tempo pelos oprimidos, com base em crenas msticas

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    ou fatalistas em uma ordem eterna que, pelo menos, os instalava na comodidade da certeza, o privilgio adquirido por uma pessoa que se supe mais inteligente e, em todo caso, mais instruda do que outra, sumamente difcil de admitir, salvo pela minoria que, efetivamente j est com o p no degrau da escada. Ningum que no seja um yuppie2 ama ou admira um yuppie. Prncipes ao menos podem parecer bondosas figuras paternas. Um yuppie no nada alm de um irmo superprivilegiado. O sistema meritocrtico um dos sistemas politicamente menos estveis. E precisamente por conta desta fragilidade poltica que o racismo e o sexismo entram em cena.

    Durante muito tempo pensou-se que a curva ascendente da ideologia universalista correspondia curva descendente do grau de desigualdade determinado pela raa ou o pelo sexo, tanto na teoria como na prtica. Do ponto de vista emprico, contudo, este no tem sido o caso. Poder-se-ia inclusive observar o contrrio e constatar que, no mundo moderno, os grficos de desigualdades raciais e sexuais tm apresentado aumentos ou, quando muito, estagnao tanto de fato quanto na ideologia. Para determinar as razes disso devemos examinar o que proclamam efetivamente as ideologias racistas e sexistas.

    O racismo no apenas uma atitude de desprezo ou de medo contra pessoas que pertencem a outros grupos definidos por critrios genticos (como a cor da pele) ou por critrios sociais (crena religiosa, pautas culturais, preferncia lingustica, etc.). Via de regra, ainda que inclua este desprezo e este medo, o racismo vai muito mais longe. O desprezo e o medo so aspectos muito secundrios do que define a prtica do racismo na economia-mundo capitalista. Pode-se afirmar inclusive que o desprezo e o medo para com o outro (xenofobia) um aspecto do racismo que guarda uma contradio.

    Em todos os sistemas histricos anteriores, a xenofobia importava uma consequncia fundamental no comportamento: a expulso do brbaro do espao fsico da comunidade, da sociedade, do grupo interno; a verso extrema da expulso era a morte. Quando expulsamos o outro fisicamente, o ambiente que pretendemos acomodar ganha uma pureza, mas inevitvel que ao mesmo tempo percamos algo. Perdemos a fora de trabalho da pessoa expulsa e, consequentemente, a contribuio dessa pessoa

    2 N. T.: Yuppie uma derivao fontica da sigla YUP (Young Urban Professional), que em portugus

    significa Jovem Profissional Urbano. O termo comumente utilizado com carga pejorativa para designar jovens americanos de classe mdia-alta niilistas, consumistas e extremamente individualistas. So o contraponto histrico do movimento hippie.

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    criao de um excedente de que poderamos nos apropriar periodicamente. Isso representa uma perda em todos os sistemas histricos, mas torna-se particularmente grave quando toda a estrutura e a lgica do sistema se fundamentam na acumulao contnua de capital.

    Um sistema capitalista em expanso (e ele est em expanso em boa parte do tempo) necessita de toda a fora de trabalho disponvel, j que esse trabalho que produz os bens por meio dos quais se extrai e acumula o capital. A expulso do sistema no tem sentido. Mas se se quer obter o mximo de acumulao de capital preciso reduzir ao mnimo simultaneamente os custos de produo (e, portanto, os custos gerados pela fora de trabalho) bem como aqueles derivados dos problemas polticos, isto , reduzir ao mnimo e no eliminar, j que isso impossvel as reivindicaes da fora de trabalho. O racismo a frmula mgica que favorece a consecuo de ambos esses objetivos.

    Examinemos um dos primeiros e mais famosos debates feitos at hoje sobre o racismo como uma ideologia. Quando os europeus vieram ao Novo Mundo eles encontraram vrios povos, muitos dos quais eliminaram diretamente pela espada ou indiretamente pelas doenas. Um frei espanhol, Bartolomeu de las Casas, encampou a causa destes povos argumentando que os ndios tinham almas e que era preciso salv-las. Analisemos mais profundamente as implicaes do argumento exposto por De las Casas, que obteve a aprovao oficial da Igreja e finalmente a dos Estados. Dado que tinham alma, os ndios eram seres humanos e, portanto, eram aplicveis a eles as normas do direito natural. Por conseguinte, estava moralmente proibido mat-los de maneira indiscriminada (isto , expuls-los do domnio da humanidade) e era devido procurar a salvao de sua alma (isto , convert-los aos valores universalistas do cristianismo). Ao estarem vivos e presumivelmente em vias de converso, podiam ser integrados fora de trabalho de acordo com suas aptides, o que queria dizer, no mais baixo nvel de hierarquia profissional e salarial.

    De um ponto de vista operacional, o racismo adotou a forma do que podemos denominar etnificao (ethnicization) da fora de trabalho. Com isso quero dizer que em todos os tempos histricos existiu uma hierarquia de profisses-remuneraes que tendeu a relacionar-se com certos critrios supostamente sociais. Mas enquanto o modelo de etnificao tem sido uma constante, os seus detalhes tm variado em cada

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    lugar e momento, tomando partes diferentes da gentica e dependendo da localizao dos povos e das raas que se encontram em um espao e tempo concretos e as necessidades hierrquicas da sua economia.

    Isso quer dizer que o racismo tem sempre articulado as pretenses baseadas na continuidade de um vnculo com o passado (definido gentica e/ou socialmente) a uma extrema flexibilidade na definio presente das fronteiras entre estas identidades reificadas denominadas raas ou grupos tnicos, nacionais e religiosos. A flexibilidade que oferece a reivindicao de um vnculo com as fronteiras do passado, unida reviso contnua destas fronteiras no presente, adquire a forma de uma criao e de uma contnua recriao de comunidades e grupos raciais e/ou tnicos, nacionais e religiosos. Eles sempre esto presentes, e sempre so classificados hierarquicamente, mas nem sempre so exatamente os mesmos. Certos grupos podem ser mveis nesse sistema de classificao; alguns grupos podem desaparecer ou se combinar com outros; enquanto outros ainda podem se desmembrar ou nascer. Mas toda sociedade tem os seus crioulos (niggers3). Se no houver pretos ou eles forem muito poucos para desempenhar esse papel, algum poderia at mesmo inventar crioulos brancos.

    Este tipo de sistema um racismo constante na forma e na vileza, mas de algum modo flexvel em suas fronteiras tem trs caractersticas chave. Em primeiro lugar, permite

    ampliar e contrair, segundo as necessidades do momento, o nmero de indivduos disponveis para as funes econmicas pior remuneradas e menos gratificantes em um mbito espao-temporal particular. Por outra parte, faz nascer e recria permanentemente comunidades sociais que socializam os seus filhos para que possam desempenhar, no futuro, as funes que lhes correspondem hoje (ainda que, desde cedo, lhes inculquem tambm formas de resistncia). Por ltimo, oferece uma base no-meritocrtica para justificar a desigualdade. Vale a pena destacar este ltimo aspecto. Precisamente por ser uma doutrina anti-universalista, o racismo ajuda a manter o capitalismo como sistema, pois justifica pagamentos sensivelmente baixos para grandes segmentos da fora de trabalho que jamais poderiam ser justificados com base no mrito.

    Mas se o capitalismo como um sistema engendra o racismo, ele precisa engendrar o sexismo tambm? Sim, porque os dois esto intimamente ligados. A etnizao da fora

    3 N.T.: Nigger um termo americano com conotao extremamente ofensiva utilizado para se referir aos

    negros. Usei crioulo como traduo, na esteira de outros autores, mas acredito que o sentido original seja ainda mais pejorativo.

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    de trabalho existe para permitir salrios muito baixos para segmentos inteiros da fora de trabalho. De fato, esses salrios baixos s so possveis porque os assalariados pertencem a estruturas familiares para as quais os proventos salarias de toda uma vida s constituem uma parte relativamente reduzida do total da renda familiar. Tais estruturas familiares precisam de um investimento considervel de trabalho em atividades denominadas de subsistncia e em pequenas atividades mercantis, em parte do homem adulto, mas em maior medida da mulher, dos jovens e idosos.

    Em um sistema como este, o aporte de trabalho no assalariado compensa o baixo nvel dos rendimentos salariais e, por conseguinte, representa na prtica uma subveno indireta aos patres dos assalariados que pertencem a essas famlias. O sexismo permite que no pensemos nisso. O sexismo no apenas a designao de um trabalho diferente, ou mesmo pouco valorizado, para as mulheres, no mais do que o racismo apenas xenofobia. O racismo deve manter as pessoas dentro do sistema de trabalho, no expuls-las dele. O sexismo pretende o mesmo.

    Ao induzirmos as mulheres bem como os jovens e idosos a trabalharem para criar mais-valia para os proprietrios de capital, que sequer lhes pagam, proclamamos que o seu trabalho , de fato, no-trabalho. Inventamos o conceito de dona de casa4 e afirmamos que ela no est trabalhando, mas apenas cuidando da casa. Assim, quando o governo calcula a percentagem da assim chamada fora de trabalho ativa que est empregada, donas de casa no aparecem nem no numerador, nem no denominador do clculo. E ao sexismo segue-se automaticamente o idadismo (ageism). Como consideramos que o trabalho da dona de casa no est criando mais-valia, consideramos tambm que os mltiplos trabalhos dos jovens no-assalariados e dos idosos tambm no esto.

    Nada disso reflete a realidade do trabalho, mas faz corpo a uma ideologia que extremamente poderosa e que a tudo conforma. A combinao entre universalismo e meritocracia funciona perfeitamente como base de legitimao do sistema pelos quadros ou estratos mdios enquanto o racismo opera como mecanismo destinado a estruturar a maior parte da fora de trabalho. No entanto, isso s vai at certo ponto, e por uma razo muito sensvel: as duas estruturas ideolgicas da economia-mundo capitalista

    4 N.T.: Em ingls a palavra housewife (house = lar; wife = esposa) necessariamente feminina, no

    permitindo a flexo dono de casa, possvel no portugus.

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    esto em flagrante contradio. Em sua combinao, o equilbrio frgil e est sempre em perigo de romper-se, j que diversos grupos atuam para impulsionar a lgica do universalismo, de um lado, e a do racismo-sexismo, de outro.

    Sabemos o que acontece quando o racismo-sexismo vai longe demais. Os racistas podem expulsar totalmente o grupo externo, seja de maneira rpida, como no caso da matana de judeus pelos nazistas, seja mais lentamente, como na adoo de um apartheid. Levadas a tais extremos, estas doutrinas so irracionais e, por sua irracionalidade, encontram resistncias no apenas nas vtimas, mas tambm em foras econmicas poderosas, que no se opem ao racismo, mas ao fato de que se tenha esquecido de seu objetivo original: uma fora de trabalho etnificada, mas produtiva.

    Podemos imaginar tambm o que acontece quando o universalismo levado longe demais. Talvez alguns desejem implementar uma alocao efetivamente igualitria dos postos de trabalho e das recompensas dele advindas, na qual raa (ou seu equivalente) e gnero efetivamente no signifiquem nada. Mas diferentemente do racismo, no h frmula rpida para um maior desenvolvimento do universalismo, j que para isso preciso eliminar no s barreiras legais e institucionais anti-universalistas, mas tambm as estruturas interiorizadas da etnificao, e isso requer tempo: ao menos uma gerao. Assim, mais fcil impedir que o universalismo v longe demais. Em nome do universalismo pode-se denunciar o denominado racismo ao contrrio em todas as ocasies em que se adote uma medida para desmantelar o aparato institucionalizado do racismo e do sexismo.

    O que vemos, portanto, um sistema que funciona graas a uma estreita correlao entre universalismo e racismo-sexismo nas propores corretas. Sempre h tentativas de levar longe demais um ou outro termo da equao, do que deriva uma espcie de trama em ziguezague. A situao poderia prolongar-se eternamente se no fosse por um problema. Com o tempo os ziguezagues no se reduzem, mas tendem a aumentar. A tenso em favor do universalismo cada vez mais forte; do racismo e do sexismo tambm. As apostas sobem, e isso por duas razes.

    De um lado est o impacto sobre todos os participantes da informao adquirida sobre a experincia histrica acumulada; de outro, as tendncias conjunturais do prprio sistema. O ziguezague do universalismo e do racismo-sexismo no o nico do sistema; tambm h o ziguezague da expanso e da contrao econmicas, por exemplo,

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    com o qual o ziguezague ideolgico do universalismo e do racismo-sexismo guarda uma correlao parcial. O ziguezague econmico tambm se agudiza como consequncia de outro fenmeno que no ser abordado aqui. No obstante, dado que as contradies gerais do sistema-mundo moderno o obrigam a entrar em uma profunda crise estrutural, o ponto ideolgico-institucional mais crtico na busca de um sistema diferente est na verdade localizado no acirramento da tenso, no incremento dos ziguezagues entre o universalismo e o racismo-sexismo. No se trata de saber qual dos termos da antinomia terminar por vencer, j que esto ntima e conceitualmente vinculados entre si. A questo que se coloca saber se inventaremos e como sistemas novos que no sejam provenientes nem da ideologia do universalismo nem da do racismo-sexismo. Esta nossa tarefa, que no exatamente fcil.