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Passagens A singular indecisão do flâneur. Assim como a espera parece ser o estado próprio do contemplador impassível, a dúvida parece ser o do flâneur. Em uma elegia de Schiller, lé- se: "A asa indecisa da borboleta. "10 Isto remete à correlação entre a eufórica leveza e o sentimento de dúvida, tão característica da embriaguez no haxixe. [M 4a. IJ E. T. A Hoffmann como tipo do flâneur. Seu conto "Des Vetters Eckfenster" ("A janela de esquina do primo") é o testamento do flâneur. Daí o grande êxito de Hoffmann na França, onde este tipo gozava de especial compreensão. Nas observações biográficas da edição em cinco volumes de seus últimos escritos lê-se: "Hoffmann nunca foi um grande aficcionado da natureza. Os seres humanos a comunicacação com eles, sua observação, o simples fato de olhá-los importavam-lhe mais que qualquer outra coisa. Quando saía a passeio no verão, o que, com bom tempo, ocorria diariamente no entardecer ... não era fácil encontrar uma taverna ou confeitaria, onde ele não tivesse entrado para ver se havia pessoas, e de que espécie." [M 4a, 2) Ménilmontant. "Neste imenso bairro, cujos magros salários condenam crianças e mulheres a eternas privações, a Rue de Ia Chine e as que se encontram com ela e a cruzam, como a Rue des Partants e esta surpreendente Rue Orfila, tão fantástica com seus circuitos e suas voltas bruscas, com seus tapumes de madeira mal cortada, seus caramanchões desabitados, seus jardins desertos regressando ao estado de pura natureza, com ervas daninhas e arbustos selvagens, respiram o sossego e uma rara calma... É, sob um grande céu, uma trilha no campo, onde a maioria das pessoas que passam parece ter comido e bebido." J. K. Huysmans, Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 95 ("La rue de Ia Chine"). (M 4a, 31 Dickens. "Em suas cartas ... queixa-se sempre, quando em viagem, mesmo nas montanhas da Suíça ... sobre a falta do burburinho das ruas que era indispensável para sua produção poética. 'Não saberia dizer como as ruas me fazem falta', escreveu ele em 1846 de Lausanne, onde elaborou um de seus maiores romances (Dombey and Son). 'Parece que elas fornecem a meu cérebro algo que lhe é imprescindível quando precisa trabalhar. Durante uma semana, quinze dias, consigo escrever maravilhosamente em um lugar afastado; um dia em Londres é então suficiente para me refazer e me inspirar de novo. Mas o esforço e o trabalho de escrever dia após dia sem essa lanterna mágica são enormes... Meus personagens parecem paralisados quando não têm uma multidão ao redor... Em Gênova ... eu tinha ao menos duas milhas de ruas iluminadas por onde eu podia vagar durante a madrugada, e um grande teatro todas as noites."' Franz Mehring, "Charles Dickens", Die Neue Zeit, Stuttgart, 1912, XXX, n O 1, pp. 621-622. [M 4a, 41 Descrição da miséria, provavelmente sob as pontes do Sena: "Uma boêmia dorme, a cabeça inclinada para frente, a bolsa vazia entre as pernas. Sua blusa é coberta de alfinetes que o sol faz brilhar. E todos os seus acessórios domésticos e de toalete duas escovas, a faca aberta 10 "Des Schmetterlings zweifelnder Flügel." Cf. Friedrich Schiller, Såmtliche Werke. vol. l, Munique. 1965. p. 229: "...mit zweifelndem Flügel / Wiegt der Schmetterling Sich über dem rötlichen Klee." (R.T.) II Os volumes XI-XV dos Ausgewåh/te Schriften de E. T. A. Hoffmann foram publicados em 1839 pela Editora Fr. Brodhag, Stuttgart. A citaçåo que segue, de autoria de Julius Eduard Hitzig, encontra-se no vol. XV, pp. 32-34. (R.T.)

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• Passagens

A singular indecisão do flâneur. Assim como a espera parece ser o estado próprio do

contemplador impassível, a dúvida parece ser o do flâneur. Em uma elegia de Schiller, lé-

se: "A asa indecisa da borboleta. "10 Isto remete à correlação entre a eufórica leveza e o

sentimento de dúvida, tão característica da embriaguez no haxixe.[M 4a. IJ

E. T. A Hoffmann como tipo do flâneur. Seu conto "Des Vetters Eckfenster" ("A janela de

esquina do primo") é o testamento do flâneur. Daí o grande êxito de Hoffmann na França,

onde este tipo gozava de especial compreensão. Nas observações biográficas da edição em

cinco volumes de seus últimos escritos lê-se: "Hoffmann nunca foi um grande

aficcionado da natureza. Os seres humanos — a comunicacação com eles, sua observação, o

simples fato de olhá-los — importavam-lhe mais que qualquer outra coisa. Quando saía a

passeio no verão, o que, com bom tempo, ocorria diariamente no entardecer ... não era fácil

encontrar uma taverna ou confeitaria, onde ele não tivesse entrado para ver se lá havia

pessoas, e de que espécie."[M 4a, 2)

Ménilmontant. "Neste imenso bairro, cujos magros salários condenam crianças e mulheres

a eternas privações, a Rue de Ia Chine e as que se encontram com ela e a cruzam, como a

Rue des Partants e esta surpreendente Rue Orfila, tão fantástica com seus circuitos e suas

voltas bruscas, com seus tapumes de madeira mal cortada, seus caramanchões desabitados,

seus jardins desertos regressando ao estado de pura natureza, com ervas daninhas e arbustos

selvagens, respiram o sossego e uma rara calma... É, sob um grande céu, uma trilha no

campo, onde a maioria das pessoas que passam parece ter comido e bebido." J. K. Huysmans,

Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 95 ("La rue de Ia Chine").(M 4a, 31

Dickens. "Em suas cartas ... queixa-se sempre, quando em viagem, mesmo nas montanhas

da Suíça ... sobre a falta do burburinho das ruas que era indispensável para sua produção

poética. 'Não saberia dizer como as ruas me fazem falta', escreveu ele em 1846 de Lausanne,

onde elaborou um de seus maiores romances (Dombey and Son). 'Parece que elas fornecem

a meu cérebro algo que lhe é imprescindível quando precisa trabalhar. Durante uma semana,

quinze dias, consigo escrever maravilhosamente em um lugar afastado; um dia em Londresé então suficiente para me refazer e me inspirar de novo. Mas o esforço e o trabalho deescrever dia após dia sem essa lanterna mágica são enormes... Meus personagens parecemparalisados quando não têm uma multidão ao redor... Em Gênova ... eu tinha ao menosduas milhas de ruas iluminadas por onde eu podia vagar durante a madrugada, e umgrande teatro todas as noites."' Franz Mehring, "Charles Dickens", Die Neue Zeit, Stuttgart,1912, XXX, nO 1, pp. 621-622.

[M 4a, 41

Descrição da miséria, provavelmente sob as pontes do Sena: "Uma boêmia dorme, a cabeçainclinada para frente, a bolsa vazia entre as pernas. Sua blusa é coberta de alfinetes que o solfaz brilhar. E todos os seus acessórios domésticos e de toalete — duas escovas, a faca aberta

10 "Des Schmetterlings zweifelnder Flügel." Cf. Friedrich Schiller, Såmtliche Werke. vol. l, Munique. 1965.p. 229: "...mit zweifelndem Flügel / Wiegt der Schmetterling Sich über dem rötlichen Klee." (R.T.)

II Os volumes XI-XV dos Ausgewåh/te Schriften de E. T. A. Hoffmann foram publicados em 1839 pelaEditora Fr. Brodhag, Stuttgart. A citaçåo que segue, de autoria de Julius Eduard Hitzig, encontra-se novol. XV, pp. 32-34. (R.T.)

IO 47/

e a marmita fechada — estão tão bem arrumados que essa aparência de ordem cria quaseuma intimidade, a impressão de um intérieur em torno dela." Marcel Jouhandeau, Imagesde Paris, Paris, 1934, p. 62.

[M 5, 11

"'Mon beau navire' fez sucesso... Foi o ponto de partida de toda uma série de canções demarinheiros que pareciam ter transformado todos os parisienses em homens do mar, e osfaziam sonhar com a canoagem... Na rica Veneza, onde brilha o luxo, / Onde reluzem, naságuas, os pórticos dourados, / Onde estão os grandes palácios cujo mármore revela / Obras-primas da arte, tesouros adorados! / Não tenho senão minha gôndola, / Viva como umpássaro, / que balança e voa / Mal tocando a água." H. Gourdon de Genouillac, Les Refrainsde Ia Rue de 1830 à 1870, Paris, 1879, pp. 21-22.

[M 5, 21

"— O que é, então, este maldito guisado que cheira tão mal e que cozinha neste grandecaldeirão? ... diz um tipo provinciano a uma velha porteira. — Isso, caro senhor, são lajesque eles cozinham para pavimentar nosso pobre boulevard, que passaria muito bem semelas! ... Pergunte-me, antes, se o passeio não era mais agradável quando se caminhava sobre

a terra, como num jardim." La Grande Vile: Nouveau Tableau de Paris, Paris, 1844, vol. I,

p. 334 ("Le bitume" — "O betume").(M 5, 31

Sobre os primeiros ônibus: "Acaba de se criar uma concorrência, as 'Dames Blanches'...

Esses veículos são inteiramente pintados de branco, e os cocheiros, vestidos de ... branco,

tocam com o pé num fole a ária de La Dame Blanche: 'A dama de branco olha para você...'"

Nadar, Quand J'étais Photographe: 1830 et Environs, Paris, 1900, pp. 301-302.[M 5, 41

Musset denominou certa vez o trecho dos boulevards que se localiza atrás do Théâtre des

Variétés e que não era freqüentado pelos flâneurs de "grandes Índias".[M 5, 51

O flâneur é o observador do mercado. Seu saber está próximo da ciência oculta da conjuntura.

Ele é o espião que o capitalismo envia ao reino do consumidor.

O flâneur e a massa: o "Rêve parisien" de Baudelaire poderia ser muito instrutivo a esse

respeito.5, 71(M

A ociosidade do flâneur é um protesto contra a divisão do trabalho.

O asfalto foi primeiramente utilizado nas calçadas.

(M 5, 81

[M 5, 91

"Uma cidade como Londres, onde se pode caminhar durante horas sem chegar sequer ao

início do fim, sem encontrar o mínimo sinal que indique a proximidade do campo, é algo

realmente singular. Esta centralização enorme, esta aglomeração de dois milhões e meio de

472 • Passagens

seres humanos, em um único lugar, centuplicou a força destes dois milhões e meio; elevou

Londres à condição de capital comercial do mundo, criou as gigantescas docas e reuniu os

milhares de navios que navegam continuamente no Tâmisa... Só mais tarde, descobrir-se-á o

número de sacrifícios que isto cuStou. Depois de percorrer durante alguns dias as calçadas das

ruas principais..., percebe-se que estes londrinos tiveram que sacrificar a melhor parte de

suas qualidades humanas para realizar todos estes milagres da civilização... O próprio tumulto

das ruas possui algo de repugnante, algo que revolta a natureza humana. Estas centenas de

milhares de pessoas de todas as classes e camadas sociais, que se comprimem ao passar

umas pelas outras, não são todas elas seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades

e o mesmo interesse de serem felizes? E não devem elas finalmente buscar sua felicidade da

mesma forma e com os mesmos meios? No entanto, estas pessoas passam apressadas umas

as outras, como se nada tivessem em comum, como se nada as unisse, mantendo apenas

um único acordo tácito, o de que cada uma se mantenha no lado direito da calçada para

que as duas correntes da multidão, ao passar por ali, não se detenham mutuamente; a

ninguém ocorre conceder ao outro o mais simples olhar. A indiferença brutal, o isolamento

insensível de cada indivíduo em seus interesses particulares, vem à tona de maneira tantomais repugnante e ofensiva quanto mais estes indivíduos são confinados naquele espaçoreduzido. Embora saibamos que este isolamento do indivíduo, este egoísmo tacanho é portoda parte o princípio básico da nossa sociedade atual, ele não se manifesta em nenhumlugar de maneira tão descarada e evidente, tão presunçosa, como justamente aqui no tumultoda cidade grande." Friedrich Engels, Die Lage der arbeitenden Masse in Englund, 2a ed.,Leipzig, 1848, pp. 36-37 ("Die großen Städte" — "As grandes cidades").

"Entendo por boêmios esta classe de indivíduos cuja existência é um problema, cujacondição é um mito, cuja fortuna é um enigma; que não têm endereço certo, nenhumabrigo reconhecido, que não se encontram em parte alguma e que encontramos por todaparte! Aqueles que não têm nenhuma situação e exercem cinqüenta profissões; cuja maioriase levanta de manhã sem saber onde jantará à noite; ricos hoje, famintos amanhã; prontospara viver honestamente se puderem, e de outro modo se não puderem." Adolphe d'Enneryet Grangé, Les Bohémiens de Paris (EAmbigu-Comique, 27 de setembro de 1843), Paris(série Magasin Théatral), pp. 8-9.

[M 5a, 2)

<fase média>

Então, atravessando o pórtico de Saint-Martin,Passou como um raio o Ónibus romântico.

Gozlan], Le Triomphe des Omnibus: Poème Héroï£omique, Paris, 1828, p. 15.

Quando estava para ser construída a primeira linha alemã de trens na Baviera, a faculdadede medicina de Erlangen emitiu 0 seu parecer...: 0 movimento rápido provocaria

oenças cerebrais; mesmo a mera observação de um trem passando em velocidade poderiarovocå-las; seria portanto necessário construir em ambos os lados da ferrovia um tapumee cinco pés de altura." Egon Friedell, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique,931, p. 91.

IM 6, 21

'Já por volta de 1845 ... havia por toda a Europa estradas de ferro e navios a vapor; celebravam-se os novos meios de transporte... Imagens, cartas e narrativas de viagem eram os gênerospreferidos dos autores e leitores." Egon Friedell, Kulttogeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique,

1931, p. 92.

[M 6, 31

A seguinte observação é típica para os questionamentos da época: "Quando viajamos porum rio ou lago, o corpo fica sem moumento ativo ... a pele não experimenta nenhumacontraçáo, os poros permanecem abertos e suscetíveis à absorção de todas as emanações e

vapores em meio aos quais nos encontramos. O sangue ... fica ... concentrado nas cavidades

do peito e do ventre, e chega com dificuldade às extremidades." J.-F. Dancel, De l'lnfluence

des Vqages sur l'Homme et sur ses Maladies: Ouvrage Spécialement Destiné aux Gens du Monde,

Paris, 1846, p. 92 ("Des promenades en bateau sur les lacs et les rivières" — "Passeios de

barco nos lagos e rios").[M 6,41

Distinção notável entre o flâneur e o badaud [basbaque): "Não se deve confundir, entretanto,

o flâneur com o badaud: há uma nuança... O simples flâneur ... está sempre em plena posse

de sua individualidade; a do badaud, ao contrário, desaparece, absorvida pelo mundo exterior ...

que o impressiona até a embriaguez e o êxtase. O badaud, sob a influência do espetáculo,

torna-se um ser impessoal; não é mais um ser humano, é o público, é a multidão. De

natureza diferente, alma ardente e ingênua, inclinada ao devaneio ... o verdadeiro badaud

é digno da admiração de todos os corações retos e sinceros." Victor Fournel, Ce Qu'on Voit

dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p. 263 ("L'odyssée d'un flâneur dans les rues de Paris").[M 6, 51

A fantasmagoria do flâneur: a partir dos rostos, fazer a leitura da profissão, da origem e do

caráter.[M 6, 61

Em 1857, ainda havia uma linha regular de diligências entre Paris e Veneza. <Cf. M 7, 9>

tM6,71

Sobre o fenómeno da colportagem do espaço: "O senso do mistério — escreveu OdilonRedon, que havia aprendido seu segredo em Da Vinci — é estar o tempo todo no equívoco,

nos aspectos duplos, triplos, nas suspeitas de aspecto (imagens dentro de imagens), nas

formas que podem vir a ser, ou que virão a ser, segundo o estado de espírito do observador.

Todas coisas mais que sugestivas, pelo fato de aparecerem." Cit. em Raymond Escholier,"Artiste", in: Arts et Métiers Graphiques, no 47, 01 jun. 1935, p. 7.

IM 6a, 11

474 g Pe.øagøns

o sonambulismo terá desaparecido. Mas peloO flâneur noturno. "Amanhã, talvez, ...

menos terá vivido bem, durante os trinta ou quarenta anos que terá durado... O homem

pode descansar de tempos em tempos, as paradas e as estações lhe são permitidas; mas ele

não tem o direito de dormir." Alfred Delvau, Les Heures Parisiennes, Paris, 1866, pp. 200 e

206 ("Deux heures du matin"). Que a vida noturna tinha uma extensão considerável, é

demonstrado pelo fato de que, segundo Delvau (p. 163), as lojas fechavam às 22 horas.[M 6©z1

No vaudeville de Barré, Radet e Desfontaines — M. Durelief ou Petite revue des embellissements

de Paris (Théâtre du Vaudeville, 9 de junho de 1810), Paris, 1810 a cidade de Paris, em

forma de maquete, construída pelo Sr. Durelief, foi integrada ao cenário. O coro observa:

"como é agradável ter Paris inteira em seu salão, em seu poder". (p. 20) A peça gira em

torno de uma aposta entre o arquiteto Durelief e o pintor Ferdinand: se o primeiro tivesse

esquecido em sua maquete de Paris qualquer um dos embelezamentos, ele cederia

imediatamente a Ferdinand a mão de sua filha Victorine; caso contrário, só após dois anos.

Descobre-se que o escultor esquecera-se de S. M. a Imperatriz Marie Louise, o mais belo

ornamento" de Paris.

A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber,

persegue esta realidade. Sem o saber — por outro lado, nada é mais insensato do que a tese

convencional que racionaliza seu comportamento e é a base inconteste da ilimitada literatura

que descreve o flâneur em seu comportamento e aparência. Trata-se da tese de que o flâneur

teria escolhido como objeto de seu estudo a aparência fisionómica das pessoas, a fim de

fazer a partir do andar, da estrutura física e das expressões faciais a leitura da nacionalidade

e do status social, do caráter e do destino. O interesse em dissimular as reais motivações do

flâneur deveria ser bastante premente para dar crédito a teses tão inconsistentes.

O flâneur assume a roupagem do viajante em "Le voyageur", de Maxime Du Camp:

" —Tenho medo de parar, é o meu instinto de vida;

O amor me causa medo demais; não quero amar.

—Ande, então! Vá, pobre miserável,

Retome tua triste estrada e persiga o teu destino.

Maxime Du Camp, Les Chants Modernes, Paris, 1855, p. 104.[M 7, 11

Litografia. "Os cocheiros dos Fiacres brigando com os dos Ônibus". Cabinet des Estampes.[M 7, 21

Em 1853 já existiam estatísticas oficiais sobre o tráfego de veículos em certos pontosprincipais de Paris. "Em 1853, trinta e uma linhas de ônibus serviam Paris, e é interessanteobservar que, com pouca diferença, essas linhas eram designadas com as mesmas letras que

to 475

nossos ônibus atuais. Assim, a 'Madeleine-Basti11e' já era a linha E." Paul d'Ariste, 1a Vieet le Monde du Boulevard, 1830-1870, Paris, 1930, p. 196.

[M 7, 31

Nos pontos de baldeação dos ônibus, os passageiros eram chamados por um número deordem e tinham que se apresentar para garantir seu direito a um lugar. (1855)[M 7, 41

"A hora do absinto ... data do florescimento ... da pequena imprensa. Outrora, quando nãohavia senão os grandes e sérios jornais ... não existia a hora do absinto. A hora do absinto éo resultado lógico das colunas de fofoca e da crónica." Gabriel Guillemot, Le Bohème, Paris,1869, p. 72 ("Physionomies parisiennes ").

[M 7, 51

Louis Lurine, Le TreizièmeArrondissement de Paris, Paris, 1850, é um dos testemunhos maissignificativos da fisionomia própria do bairro. O livro possui características de estilo peculiares.Personifica o bairro; não são raras as fórmulas do tipo: "O décimo terceiro arrondissementnão se dedica ao amor de um homem, a não ser quando que lhe proporciona vícios paraamar" (p. 216). 12

[M 7, 61

A expressão de Diderot "Como é bela a rua!" é muito cara aos cronistas daflånerie.[M 7, 71

Sobre a lenda do flâneur: .Com a ajuda de uma palavra que escuto ao passar, reconstituotoda uma conversa, toda uma vida; o tom de uma voz é suficiente para unir o nome de umpecado capital ao homem com quem acabo de cruzar, de quem só vislumbrei o perfil."Victor Fournel, Ce Qu'on Voit dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p. 270.

[M 7, 81

Ainda no ano de 1857, partia às seis horas da manhã da Rue Pavée-Saint-André umadiligência para Veneza, numa viagem que durava seis semanas. Cf. Fournel, Ce Qu'on Voitdans les Rues de Paris, p. 273.

[M 7, 91

Nos ônibus, um mostrador que indicava o número de passageiros. Para quê? Como aviso aocobrador que distribuía os bilhetes.

[M 7, 101

"Observa-se ... que o ônibus parece apagar e petrificar todos os que dele se aproximam.As pessoas que ganham a vida com os viajantes ... são reconhecidas, em geral, por suaagitação grosseira... , da qual os empregados dos ônibus são praticamente os únicos que nãoapresentam traços. Pode-se dizer que dessa pesada máquina emana uma influência plácidae soporífica, semelhante àquela que faz adormecer as marmotas e as tartarugas no começodo inverno." Victor Fournel, Ce Qu'on Voit dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p. 283("Cochers de fiacres, cochers de remise et cochers d'omnibus").

[M 7a, 11

12Na época em que Paris contava apenas com as doze circunscriçóes da regiåo central, ou seja. antes da

reforma administrativa de 1859, o "décimo-terceiro arrondissement" designava o lugar dos amores

ilícitos. (J.L.)

476 Passagens

"No momento da publicação dos Mystères de Paris, ninguém, em certos bairros da

duvidava da existência de Tortillard, de Chouette, do príncipe Rodolphe." Charles Louandrq

Les Idées Subversives de Notre Temps, Paris, 1872, p. 44.

A primeira sugestão de um sistema de ônibus deve-se a Pascal, e ela foi concretizada sob

Luís XIV, embora com a restrição significativa de que os soldados, pajens, lacaios e

outras pessoas de libré, inclusive os serventes e trabalhadores braçais não poderiam subir

nas ditas carruagens". Em 1828, a introdução dos ônibus, sobre os quais lê-se em um

cartaz: "Esses veículos ... avisam quando vão passar, acionando um jogo de cornetas

recentemente inventado." Eugène D'Auriac, Histoire Anecdotique de ['Industrie Française,

Paris, 1861, pp. 250 e 281.[M 7a, 31

Entre os espectros da cidade encontra-se "Lambert" — uma personagem inventada, talvezum flâneur. Em todo caso, o boulevard foi-lhe atribuído como palco de suas aparições.Havia uma estrofe famosa com o refrão: "Eh, Lambert!". Delvau dedica-lhe um capítulo(p. 228) em seu Les Lions duJour, Paris, 1867.

A figura de um camponês no cenário urbano é descrita por Delvau em Les Lions duJour, nocapítulo "Le pauvre à cheval". "Este cavaleiro era um pobre diabo, cujos meios impediam-no de andar a pé, e que pedia esmola como um outro teria pedido uma informação sobreo caminho. Esse mendigo... , com seu pequeno poldro de crinas selvagens, de pêlo ásperocomo o de um asno do campo, me ficou durante muito tempo no espírito e diante dosolhos... Ele morreu — rentista." Alfred Delvau, Les Lions duJour, Paris, 1867, pp. 116-117("Le pauvre à cheval").

[M 7a, 5]

Para enfatizar o novo sentimento da natureza, que para o parisiense está acima de qualquertentação gastronómica, escreve Rattier: "Um faisão faria cintilar, diante do seu abrigo defolhagem, as plumas de ouro e rubis de seu penacho e de sua cauda..., ele o saudaria comoa um nababo da floresta." Paul-Ernest de Rattier, Paris N'existe Pas, Paris, 1857, pp. 71-72.

Decididamente, não é a falsa Paris que produzirá o badaud... De flâneur que era, nascalçadas e diante das vitrines, homem nulo, insignificante, insaciável de saltimbancos e deemoções baratas; alheio a tudo o que não é pedra, fiacre, lanterna a gás ... transformou-seem lavrador, viticultor, industrial da lã, do açúcar e do ferro. Ele já não se abala com oshábitos da natureza. A germinação das plantas já não lhe parece sem vínculo com osprocessos de fabricação utilizados no bairro Saint-Denis." Paul-Ernest de Rattier, ParisN'existe Pas, Paris, 1857, pp. 74-75.

(M 8, 11

Em seu panfleto Le Siècle Maudit, Paris, 1843, que denuncia a corrupção da sociedadecontemporânea, Alexis Dumesnil utiliza-se de uma ficção tomada de empréstimo a Juvenal:

subitamente a multidão no bouhardficaria paralisada, e se faria um registro dos pensamentos

e objetivos de cada indivíduo neste instante (pp. 103-104).

[M 8, 21

"A oposição entre a cidade e o campo ... é a expressão mais flagrante da subsunção do• divíduo à divisão do trabalho e à uma determinada atividade que lhe é imposta — urnasubsunção que transforma um em obtuso animal urbano, e o outro em obtuso animal

ampestre." (Karl Marx e Friedrich Engels, Die deutsche Ideologie, Marx-EngeIs Archiv, ed.

org. por D. Rjazanov, vol. I, Frankfurt a. M., 1928, pp. 271-272)(M 8, 31

No Arco do Triunfo: "Incessantemente circulam nessas ruas, para cima e para baixo, cabriolés,

ônibus, hirondelles, velocíferos, citadinas, Dames blanches, seja qual for o nome desses diversos

veículos públicos; e além deles os inumeráveis whiskys, carruagens, carroças, cavaleiros e

amazonas." L. Rellstab, Paris im Frühjahr 1843, Leipzig, 1844, vol. I, p. 212. O autor

menciona também um ônibus que trazia sua destinação escrita numa bandeira.

Por volta de 1857 (cf. H. de Pène, Paris Intime, Paris, 1859, p. 224), a parte superior dos

ônibus — a impériale — era proibida às mulheres.[M 8, 51

"O genial Vautrin, escondido sob a capa do abade Carlos Herrera, havia previsto o entusiasmo

dos parisienses com os transportes coletivos, quando investiu todos os seus recursos nessas

empresas, a fim de constituir um dote para Lucien de Rubempré." Une Promenade à

Travers Paris au Temps des Romantiques: Exposition de Ia Bibliothèque et des Travaux Historiques

de Ia Ville de Paris, [1908; autores: Poëte, Beaurepaire, Clouzot, Henriot) p. 28.[M 8, 61

"Aquele que vê sem ouvir fica muito mais ... inquieto que aquele que ouve sem ver. Este

deve ser um fator significativo para a sociologia da cidade grande. As relações entre os

homens nas grandes cidades ... caracterizam-se por um acentuado predomínio da atividadeda visão sobre a da audição. E isso antes de tudo, devido aos meios de comunicaçãopúblicos. Antes do desenvolvimento que tiveram, no século XIX, os ônibus, as ferrovias eos bondes, as pessoas não tinham a ocasião de poder ou de dever se olhar mutuamentedurante minutos ou horas seguidas sem se falar." G. Simmel, Mélanges de PhilosophieRélativiste: Contribution à Ia Culture Philosophique, Paris, 1912, pp. 26-27 ("Essai sur Iasociologie des sens"). Esse fato, que Simmel relaciona com o estado de preocupação elabilidade, faz parte, de certa maneira, da fisiognomonia vulgar. A diferença entre estafisiognomonia e a do século XVIII deve ser estudada.

[M 8a, 11

"Paris • veste um fantasma com velhos números do Constitutionnel e produz ChodrucDuclos." Victor Hugo, CEuvres Complètes, Romances, vol. VII, Paris, 1881, p. 32 (LesMisérables,

111).

[M 8a, 21

Sobre Victor Hugo: "A manhã, para ele, constituía o trabalho imóvel; a tarde, o trabalhorava as impériales dos ônibus, esses 'balcões ambulantes', como ele as chamava,

478 • Passagens

de onde podia estudar à vontade os aspectos diversos da gigantesca cidade. Dizia que o

barulho ensurdecedor de Paris lhe produzia o mesmo efeito que o mar." Édouard

Figures de Bronze ou Statues de Neige, Paris, 1900, p. 25 ("Victor Hugo").

(M 8a, 31

Existência autônoma dos quartiers: ainda em meados do século, dizia-se da Île Saintouis

que uma moça de lá, caso não gozasse de boa reputação, teria que procurar o futuro maridofora do quartier.

[M 8a, 4]

"Ó, noite! ó, refrescantes trevas! ... nos labirintos pedregosos de uma capital, cintilação dasestrelas, explosão dos lampiões, sois os fogos de artifício da deusa Liberdade!" CharlesBaudelaire, Le Spleen de Paris, Paris, Hilsum, p. 203 ("Le crépuscule du soir").

(M 8a, 51

Nomes de ônibus por volta de 1840, em Gaëtan Niépovié, Études Physiologiques sur lesGrandes Métropoles de l'Europe Occidentale, Paris, 1840, p. 113: Parisiennes, Hirondelles,Citadines, Vigilantes, Aglaés, Deltas.

[M 8a, 61

Paris como paisagem aos pés dos pintores: "Levante a cabeça ao atravessar a Rue Notre-Dame-de-Lorette e dirija seu olhar a um dos terraços que coroam as casas, à moda italiana.Então, é impossível que você não perceba desenhar-se, sete andares acima do nível dacalçada, alguma coisa semelhante a esses bonecos colocados nos campos para servir deespantalho... — É, para começar, um robe em que se fundem, sem harmonia, todas as coresdo arco-íris, uma calça de corte esquisito e chinelos impossíveis de descrever. Sob esseaparato burlesco esconde-se um jovem pintor." Paris Chez Soi, Paris, 1854, pp. 191-192(Albéric Second, "Rue Notre-Dame-de-Lorette").

Geffroy, sob o impacto das obras de Meryon: "São as coisas representadas que dão a quem asobserva a possibilidade de sonhá-las." Gustave Geffroy, Charles Meryon, Paris, 1926, p. 4.[M 9, 21

O ônibus, este Leviatã da carroceria, e essas viaturas tão numerosas, entrecruzando-se coma rapidez de um raio!" Théophile Gautier [in: Edouard Fournier, Paris Démoli, 2a ed., comprefácio de Théophile Gautier, Paris, 1855, p. IV]. (Este prefácio foi publicado em LeMoniteur Universelde 21 de janeiro de 1854, provavelmente como crítica à primeira edição.Parece que é total ou parcialmente idêntico ao "Mosaïque de ruines", de Gautier, in: PoisauXIXSièc1e, Paris, 1856.)

[M 9, 31

os elementos temporais mais heterogêneos coexistem, portanto, na cidade. Quando sesai de uma casa do século XVIII e se entra em outra do século XVI, cai-se em um declivetemporal; bem ao lado há uma igreja da época gótica, e afundamos em um abismo; marsalguns passos e chegamos a uma rua da época dos Giinderjahre ... e subimos a montanhado tempo. Quem entra em uma cidade sente-se como em um tecido de sonho, onde umacontecimento de hoje se articula com o mais remoto. Uma casa associa-se a uma outta,