19
SEM PENA NEM GLÓRIA O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990 Adrián Gurza Lavalle RESUMO Este artigo apresenta uma interpretação do debate brasileiro sobre a nova sociedade civil transcorrido nos anos 1990, examinando as características e limites da literatura sociológica que investiu na formulação de uma categoria normativa da sociedade civil, capaz de alicerçar reflexões teoricamente consistentes acerca do papel emancipatório de um certo conjunto de novos atores sociais. Recentemente os termos desse debate assumiram um registro menos sobrecarregado de expectativas e exigências teóricas sobre aqueles atores e mais voltado à análise de espaços institucionais de encontro entre a sociedade civil e o Estado, mas tal deslocamento de perspectiva não se fez acompanhar de uma discussão que explicitasse os motivos que animaram o abandono dos pressupostos daquela literatura. Palavras-chave: sociedade civil; espaço público; teoria social brasileira. SUMMARY This article presents an interpretation of the Brazilian debate on the new civil society during the 1990's, examining the features and limits of a sociological literature which has attempted to formulate a normative category of civil society, that could able to sustain theoretically informed reflections about the emancipatory role of certain new social actors. Recently, such debate has assumed terms less stressed by theoretical expectations and requirements towards such actors, and more engaged in analyzing institucional spaces where civil society meets the state. Never- theless, such change of perspective has not been followed by a discussion that could disclose the reasons for departing from the suppositions of that literature. Keywords: civil society; public space; Brazilian social theory. Na América Latina, as análises sociológicas dos anos 1990 acerca das transformações na ação social após os processos de abertura política foram realizadas, em boa medida, a partir de amplo consenso em torno do robustecimento do papel democratizador das associações civis, equaciona- do por meio de teorizações normativas sobre a (nova) sociedade civil. Em última análise, tratou-se das repercussões locais de amplos debates interna- cionais que conquistaram posições hegemônicas nos campos da sociologia e da filosofia política, em particular nas teorias do espaço público, da ação social e da democracia. Diversos autores discerniram, aqui e alhures, a emergência de novos atores civis autônomos, de um associativismo cívico cujas qualidades encerrariam promissoras conseqüências: arraigados no tecido social e destinados a elucidar publicamente questões relevantes para JULHO DE 2003 91

20080627 sem pena_nem_gloria

Embed Size (px)

DESCRIPTION

GURZA LAVALLE, A. Sem pena nem glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos 1990. Novos Estudos, n. 66, julho de 2003.

Citation preview

Page 1: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIAO DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

Adrián Gurza Lavalle

RESUMOEste artigo apresenta uma interpretação do debate brasileiro sobre a nova sociedade civiltranscorrido nos anos 1990, examinando as características e limites da literatura sociológica queinvestiu na formulação de uma categoria normativa da sociedade civil, capaz de alicerçarreflexões teoricamente consistentes acerca do papel emancipatório de um certo conjunto denovos atores sociais. Recentemente os termos desse debate assumiram um registro menossobrecarregado de expectativas e exigências teóricas sobre aqueles atores e mais voltado àanálise de espaços institucionais de encontro entre a sociedade civil e o Estado, mas taldeslocamento de perspectiva não se fez acompanhar de uma discussão que explicitasse osmotivos que animaram o abandono dos pressupostos daquela literatura.Palavras-chave: sociedade civil; espaço público; teoria social brasileira.

SUMMARYThis article presents an interpretation of the Brazilian debate on the new civil society during the1990's, examining the features and limits of a sociological literature which has attempted toformulate a normative category of civil society, that could able to sustain theoretically informedreflections about the emancipatory role of certain new social actors. Recently, such debate hasassumed terms less stressed by theoretical expectations and requirements towards such actors,and more engaged in analyzing institucional spaces where civil society meets the state. Never-theless, such change of perspective has not been followed by a discussion that could disclose thereasons for departing from the suppositions of that literature.Keywords: civil society; public space; Brazilian social theory.

Na América Latina, as análises sociológicas dos anos 1990 acerca dastransformações na ação social após os processos de abertura política foramrealizadas, em boa medida, a partir de amplo consenso em torno dorobustecimento do papel democratizador das associações civis, equaciona-do por meio de teorizações normativas sobre a (nova) sociedade civil. Emúltima análise, tratou-se das repercussões locais de amplos debates interna-cionais que conquistaram posições hegemônicas nos campos da sociologiae da filosofia política, em particular nas teorias do espaço público, da açãosocial e da democracia. Diversos autores discerniram, aqui e alhures, aemergência de novos atores civis autônomos, de um associativismo cívicocujas qualidades encerrariam promissoras conseqüências: arraigados notecido social e destinados a elucidar publicamente questões relevantes para

JULHO DE 2003 91

Page 2: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

o conjunto da sociedade, eles escapariam à órbita dos interesses particula-ristas inerentes à política e à economia, preservando todavia a capacidadede instar a esfera política a atender seus reclamos legítimos. Assim, o agirincessante e pulverizado dos inúmeros atores da (nova) sociedade civilanimou a renovação de discursos emancipatórios, cujos diagnósticos apon-taram a democratização da democracia e a ampliação do espaço público pelamobilização social autônoma.

São bem conhecidos os autores que realizaram as principais ou maisinfluentes contribuições teóricas para atualizar a idéia de sociedade civil sobnova definição. Ainda que o próprio conceito conte com secular tradição,cristalizada em mais de uma linhagem da filosofia política moderna, asenergias de sua nova pujança conceitual responderam originariamente aodebate que acompanhou as intensas mudanças nos países do Leste Euro-peu, em particular na sociedade polonesa da segunda metade da década de1970. Trata-se dos trabalhos de Jean Cohen e Andrew Arato, cuja formulaçãomais elaborada encontrou alicerces na crítica e reapropriação de categoriascentrais ao programa de pesquisa de Jürgen Habermas.

No Brasil, a idéia de sociedade civil tem sido corrente no debatepolítico e nos estudos acadêmicos pelo menos desde o fim dos anos 1970,tornando-se mais ostensiva sua utilização ao longo do decênio seguinte. Nadécada de 1990, porém, ela foi investida de especificações conceituais a talponto restritivas que suas semelhanças com as definições das décadasanteriores são quase apenas nominais. Contudo, e a despeito de interpre-tações mais ponderadas, houve continuidade notável em outros planos: aliteratura dos anos 1990 sobre a sociedade civil incidiu no prolongamentode certos "consensos fáceis" — para lançar mão da feliz fórmula cunhadapor Gabriel Cohn1 — gerados no contexto dos esforços políticos e intelectu-ais contra a ditadura militar e acolhidos e sistematizados na produçãoacadêmica sobre os movimentos sociais. Esses consensos assumiam acoincidência entre a esquerda, a ação social e a razão, confrontadas à bar-bárie do poder. Nos anos 1990 os atores sociais e os conflitos foram elabo-rados em registro menos premido pelas circunstâncias, é claro, mas as altasexpectativas depositadas nos movimentos sociais (já revisitadas e criticadasnos balanços dessa produção acadêmica) continuaram a ser postas, emmaior ou menor medida, na perspectiva da emergência de uma nova socie-dade civil.

Parece que o teor dominante da literatura sociológica sobre a açãosocial da década de 1990 finalmente cedeu a leituras mais nuançadas e, porcerto, críticas ante os efeitos analíticos acarretados por uma concepção tãoaltamente estilizada e idealizada da sociedade civil. De forma discreta, odebate foi se deslocando para registros sensivelmente mais pragmáticos emenos ambiciosos quanto aos ônus das exigências normativas depositadassobre os atores representativos da sociedade civil. O teor da discussão, hoje,salienta o potencial de sinergia nas relações Estado-sociedade, a relevânciados novos espaços de participação, o papel da sociedade civil no desenhode políticas públicas, a emergência de novas institucionalidades e a multipli-

92 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(1) Cohn, Gabriel. "Razão e his-tória". In: Vigevani,Tullo (org.).Liberalismo e socialismo: velhose novos paradigmas. São Paulo:Unesp, 1995, pp. 29-36.

Page 3: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

cação de formas inéditas de representatividade — mesmo que ainda emestado embrionário. Em vez de atores discutem-se espaços, e o lugar dasdistinções — por vezes maniqueístas — entre a sociedade civil e o Estado éocupado por estudos empíricos sobre o papel de determinados atores dasociedade civil em ambientes institucionais específicos.

Um dos peculiares efeitos dessa gradual e silenciosa redefinição dostermos do debate é o fato de o esgotamento da agenda dos anos 1990 terocorrido "sem pena nem glória", isto é, sem uma produção de balançosequiparável àquela que marcou o abandono da literatura sobre movimentossociais e, sobretudo — e neste ponto o contraste com a literatura demovimentos sociais também é notável —, sem ter deixado uma obra dereferência obrigatória ou inconteste, capaz de condensar o conhecimentoacumulado no período, de simbolizar seus melhores subsídios analíticos oude balizar as análises da ação social dos anos vindouros.

Nas páginas que se seguem busca-se traçar uma interpretação abran-gente do debate sobre a sociedade civil transcorrido nos anos 1990. O iti-nerário está organizado em quatro passos. Primeiro, situa-se a redescober-ta da sociedade civil no contexto intelectual e disciplinar do que aqui échamado de "retorno da sociologia" ao cenário do debate latino-americano.Segundo, examinam-se as peculiaridades do conceito de sociedade civilcunhado na década passada e seus efeitos restritivos sobre os atoresempíricos ali "autorizados" a se tornar expressão da nova sociedade civil.Terceiro, analisam-se o papel normativo conferido a esses atores pelaliteratura e a reafirmação desse papel como elemento invocado para dis-tinguir a nova sociedade civil de outras abordagens presentes no debatenacional. Por fim, apresentam-se algumas considerações críticas e aborda-seo deslocamento do debate sobre a sociedade civil, apontando-se os traçosmais salientes da discussão deste início de década. A caracterização dosprincipais postulados em torno da nova sociedade civil recorre principal-mente aos trabalhos dos autores mais influentes no período considerado:Sérgio Costa e Leonardo Avritzer. Entretanto, também serão consideradosoutros interlocutores que participaram do debate, sustentando posições emmaior ou menor grau semelhantes2.

O retorno da sociologia

A emergência da literatura sobre a nova sociedade civil, como pers-pectiva de interpretação dos dilemas enfrentados no processo de conso-lidação e ampliação da democracia, aparece vinculada àquilo que poderiaser denominado "retorno da sociologia" no âmbito do pensamento latino-americano. Após as repercussões das teorias do desenvolvimento cepalinasformuladas no final dos anos 1950, entre as décadas de 1960 e 80 foisociológica a matriz a embasar boa parte dos desenvolvimentos das ciênciassociais na região — por sinal preocupadas com a resolução dos entraves

JULHO DE 2003 93

(2) Por exemplo, Ilse Scherer-Warren, Maria da Glória Gohn,Ana Amélia da Silva e Liszt Viei-ra, além de autores que contri-buíram direta ou indiretamen-te ao debate a partir de posi-ções críticas.

Page 4: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

legados por histórias nacionais repletas de iniqüidade, hiperexploração ecolonialismo, que emperravam a modernização das estruturas sociais3. Defato, tratou-se em boa medida de um pensamento não apenas acerca damodernização, mas ele mesmo modernizador, isto é, confiante nos efeitosincorporadores das mudanças em curso, na viabilidade da plena realizaçãoda "segunda abolição" graças ao profundo impacto da materialização da"ordem social competitiva" — para dizê-lo de forma exemplar com aspalavras de Florestan Fernandes em meados da década de 19604.

Não obstante o bom desempenho das estruturas produtivas, quepassaram a multiplicar os milagres econômicos, os processos de industriali-zação e urbanização produziram resultados de integração socioeconômicamuito aquém das expectativas e acarretaram novos problemas vinculadosao crescimento da pobreza, em termos da precariedade das condições devida e da inserção econômica de crescentes camadas urbanas, avultadas aoritmo da migração. Para além daquilo que poderia ser pensado comoinsuficiências do crescimento econômico, tratava-se mais exatamente deefeitos perversos da própria modernização5, cuja reflexão conceitual maisrelevante foi elaborada no marco do debate sobre as implicações de umaeventual massa marginal — teoria da marginalidade —, ou seja, de um largosegmento populacional desnecessário à reprodução do capital6.

Cindidos seus vínculos com as teorias da modernização pelo mercadoe ante a acentuação das tendências registradas na década anterior, o pensa-mento sociológico defrontou-se com interessante bifurcação nos anos 1980:de um lado, em continuidade com a tradição marxista, explorou as possi-bilidades da modernização pela via política, agora encarnadas em atoressociais inéditos — teorias dos movimentos sociais —, e de outro extremousua crítica mediante o recurso a conceitos cunhados na sociologia clássicado século XIX para formular uma sociologia da decadência das sociedadeslatino-americanas, capaz de "delimitar conceitualmente o fenômeno histó-rico da dissolução social"7 — "anomia", "desintegração", "pulverização","atomização", "desequilíbrio", "instabilidade", "retraimento aos grupos pri-mários", "ruptura de identidades" e "identidades restringidas" foram, entreoutros, termos introduzidos por essa vertente para espelhar as manifesta-ções da dissolução social8. Essa inflexão desencantada do pensamentolatino-americano foi analisada por Sérgio Zermeño (autor, por sinal, doconceito de "identidades restringidas") em termos de uma "desorganizaçãodos conceitos" paralela à desordem acarretada pelas profundas mudançasocorridas nas sociedades do Cone Sul em meio aos "milagres" desenvolvi-mentistas9. Por sua vez, a problemática dos movimentos sociais foi equa-cionada em dois grandes marcos analíticos: as teorias da mobilização derecursos, dominantes na discussão anglo-saxônica, e as teorias do marxis-mo estruturalista e dos novos movimentos sociais (pós-industriais), hege-mônicas nas formulações provenientes da Europa continental. Foram estasúltimas que registraram maior presença no debate latino-americano10.

Entrementes, ante os exíguos incentivos de uma sociologia da auto-dissolução e sobretudo ante a incapacidade das teorizações sociológicas em

94 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(3) Cf. Marini, Ruy M. "La déca-da de 70 revisitada". In: Marini,Ruy M. e Millán, Márgara(orgs.). La teoría social latino-americana: la centralidad delmarxismo (vol. III). México:Unam/El Caballito, 1995, pp.17-41; Cueva, Agustín. "Refle-xiones sobre Ia sociologia lati-noamericana". In: Marini, RuyM. e Millán, Márgara (orgs.). Lateoría social latinoamericana:textos escogidos (vol. III). Méxi-co: Unam/Cela, 1995, pp. 379-397.

(4) Fernandes, Florestan. A in-tegração do negro na sociedadede classes (vol. 2). São Paulo:Ática, 1978 [1964], pp. 116-332.Outro autor altamente repre-sentativo desse momento éGino Germani (cf. Política y so-ciedad en una época de transi-ción: de la sociedad tradicionala la sociedad de masas. BuenosAires: Paidós, 1962, pp. 147-162),

(5) Sem dúvida, um trabalhoemblemático nessa perspecti-va foi o coordenado por LúcioKowarick e Vinícius CaldeiraBrant: São Paulo, 1975 — cres-cimento e pobreza. São Paulo:Loyola, 1976, esp. pp. 21-61.

(6) As duas posições antagôni-cas nesse debate foram repre-sentadas de forma lúcida pelostrabalhos, hoje clássicos, deJosé Nun ("Superpoblación re-lativa, ejército industrial de re-serva y masa marginal". RevistaLatinoamericana de Sociología,1969; republicado como "Lamarginalidad en América Lati-na: el concepto de masa mar-ginal" em Marini e Millán(orgs.), La teoria social latinoa-mericana: textos escogidas (vol.II), loc. cit., pp. 139-179) e Fer-nando Henrique Cardoso ("Co-mentários sobre os conceitosde superpopulação relativa emarginalidade". Estudos Ce-brap, nº 1, 1971, pp. 99-130),crítico das tendências "catastro-fistas" anunciadas por Nun e dapertinência do seu conceito demassa marginal no âmbito deuma análise reputada marxista.Recentemente, José Nun reto-mou o tema em texto instigan-te: "O futuro do emprego e atese da massa marginal". NovosEstudos, nº 56, março de 2000,pp. 43-63.

(7) Tironi, Eugenio. "Para unasociologia de la decadencia: elconcepto de disolución social".Proposiciones (Santiago), nº 12,dezembro de 1986, p. 12.

(8) Em 1989 Francisco Weffortlançou mão da sociologia dadecadência para refletir acercada "degenerescência das socie-dades latino-americanas", adi-cionando às tendências de ex-pansão da anomia nova hipó-tese inspirada nos arranjosemergentes na ordem interna-

Page 5: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

voga para dar conta das transformações políticas que se alastraram peloCone Sul, foi outro pensamento que se tornou hegemônico, desta feitaoriundo da ciência política: as teorias da transição democrática, que equaci-onaram em registro diferente a relação entre modernização e política. Comefeito, pouco preparado para esclarecer os caminhos pós-ditaduras me-diante o redesenho de instituições políticas democráticas, quer pelo seudesencanto com as possibilidades da transformação social — no limite, atéda existência civilizada do social —, quer pela sua vocação para a compre-ensão não-institucional da política, o pensamento sociológico assumiu pelaprimeira vez em décadas um papel secundário no debate internacional eparticularmente no debate latino-americano.

Nesse quadro, não é de estranhar que a literatura dos anos 1990 sobrea nova sociedade civil tenha apresentado sua contribuição como ancoradano "retorno da sociologia", pois, aceitos de forma consensual tanto os ser-viços prestados pelas teorias da transição quanto o êxito dos processos dedemocratização dos regimes na América Latina, reivindicou-se que o olharatento da abordagem sociológica tinha a capacidade de acusar os limites doentendimento meramente institucional da política, salientando as enormespendências em termos de uma "democratização societal":

Ao longo dos anos 1990 vai-se consolidando uma nova abordagem dademocratização; esta, de natureza sociológica, refuta a homologaçãoentre os processos de construção institucional e a democratizaçãosocietal subentendida nas teorias da transição11.

Por outras palavras, as transições deixaram incólumes certos traços poucodemocráticos da política nas sociedades latino-americanas: fundamental-mente, segundo caracterização de Leonardo Avritzer, a altíssima continui-dade dos interesses políticos dominantes nas velhas e indesejáveis práticaspolíticas e as abissais desigualdades de acesso ao poder, que perpetuavam odesequilíbrio nas "relações societárias"12.

Assim, o pensamento sociológico, não na sua vertente pessimista, masem linha de continuidade com as teorias dos movimentos sociais, propôs-se a reabrir o caminho para a análise das possibilidades de transforma-ção pela via da ação social, cujos atores e suas valiosas contribuições teriamsido relegados pelo confinamento da democracia aos estreitos marcos doarcabouço político-institucional. Nesse ponto houve ampla coincidência,como o indica a multirreferencialidade da seguinte passagem de SérgioCosta:

Alguns autores (dentre outros Alvarez, Dagnino, Escobar e Avritzer)mostraram que as teorias da transição, ao privilegiarem um conceitode democracia centrado unicamente na vigência de "instituições"

JULHO DE 2003 95

cional: o bloqueio de perspec-tivas e o sentimento da perdade futuro nessas sociedades (cf."A América Latina errada". In:Qual democracia? São Paulo:Companhia das Letras, 1992[1989], pp. 35-62).

(9) Zermeño, Sergio. La socie-dad derrotada: el desorden me-xicano del fin de siglo. México:Siglo XXI/ Unam, 1996, pp. 37-45. Cf. também, do mesmo au-tor, "Hacia una democracia co-mo identidad restringida: socie-dad y política en México". Re-vista Mexicana de Sociologia,nº 2, 1987.

(10) Cf. Gohn, Maria da Glória.Teorias dos movimentos sociais:paradigmas clássicos e contem-porâneos. São Paulo: Loyola,1997, pp. 211-223, 281-285. Pa-ra as duas vertentes do para-digma europeu, cf. Castells, Ma-nuel. "Los movimientos soci-ales urbanos en la vía democrá-tica al socialismo" (1979), Bor-ja, Jordi. "Movimientos urbanosy cambio político" (1981). In:Bassols, Mario e outros. Anto-logía de sociologia urbana, Mé-xico: Unam, 1988, pp. 777-783,801-829; Touraine, Alain. "Osnovos conflitos sociais — paraevitar mal-entendidos" (1983),Melucci, Alberto. "Um objetivopara os movimentos sociais?".Lua nova (Cedec), nº 17, junhode 1989, pp. 5-18, 49-66.

(11) Costa, Sérgio. "La esferapública y las mediaciones en-tre cultura y política: el caso deBrasil". Metapolítica (México),nº 9, janeiro de 1999, p. 95.

(12) Avritzer, Leonardo. "Umdesenho institucional para o no-vo associativismo". Lua Nova(Cedec), nº 39, 1997, pp. 149-151. Cumpre recordar que nocampo da ciência política asanálises da institucionalizaçãoda democracia foram menos"otimistas" do que as da litera-tura das transições (cf. Limon-gi, Fernando. "Institucionaliza-ção política". In: Miceli, Sergio(org.). O que ler na ciência so-cial brasileira (1970-95). SãoPaulo: Anpocs/Sumaré, 1999,vol. III, pp. 101-155).

Page 6: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

democráticas (eleições livres, direitos civis garantidos, normalidadeda atividade parlamentar etc.), confinaram o estudo da democratiza-ção à esfera institucional, ignorando "o hiato entre a existênciaformal de instituições e a incorporação da democracia às práticascotidianas dos agentes políticos"13.

Seja dito de passagem que, em perspectiva crítica semelhante, isto é,buscando alargar os conceitos além de sua dimensão político-institucional,as ciências sociais, e particularmente o trabalho sociológico, encontraramna questão da cidadania outra veia temática de rearticulação do pensamen-to. Há claros pontos de contato entre a "nova cidadania" — segundo deno-minação também cunhada para esse campo temático — e a nova sociedadecivil, visto que o alargamento do conceito de cidadania faz-se de modo aconsiderar mudanças na sociabilidade, na cultura política, na definição dedireitos, na constituição de atores sociais e, portanto, no deslocamento dofoco conceitual da relação entre o Estado e o indivíduo para a incorporaçãoda sociedade civil como protagonista inovadora dessa ampliação de frontei-ras14. Com efeito, também a nova cidadania e seu amplo espectro de pro-blemas e expectativas encontraram-se freqüentemente sob o risco de uma"inflação normativa" — para dizê-lo com a arguta expressão de DaniloZolo15.

Em boa medida, o "retorno da sociologia" em moldes enfaticamentenormativos constitui de fato uma resposta aos limites das teorias da transi-ção, sem força heurística para equacionar os problemas mais abrangentes dademocracia e até mesmo da política, irredutíveis à mera dimensão instituci-onal do sistema político, embora esta seja condição sine qua non da própriademocracia. Essa ênfase normativa também parece vinculada ao declínio damatriz teórica marxista, que no curso do terceiro quartel do século orientaraseus esforços intelectuais no sentido de pensar a transformação social comoprojeto assentado em processos materiais e políticos de longo prazo.Independentemente da plausibilidade de tal auto-apresentação, confiantequanto às vantagens de seu enfoque centrado na análise da nova sociedadecivil, interessa salientar que a mudança de perspectiva aparece justificadacomo introdução de uma proposta analítica mais adequada para arrostar osdesafios do presente. A fim de avaliar os saldos de uma década de análisessob essa proposta, convém precisar suas feições distintivas.

Conceito e atores empíricos

O enfoque da nova sociedade civil reputou-se investido de maior per-tinência para equacionar os desafios do presente porque não fornecia, nempretendia fornecer, uma caracterização meramente descritiva da existência edo comportamento dos atores sociais emergentes ou de recente consolida-

96 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(13) Costa, Sérgio. "Movimen-tos sociais, democratização e aconstrução de esferas públicaslocais". Revista Brasileira de Ci-ências Sociais (Anpocs), nº 35,outubro de 1997, p. 121 (a cita-ção entre aspas refere-se aAvritzer, Leonardo. "Culturapolítica, atores sociais e demo-cratização". In: A moralidadeda democracia. São Paulo/Be-lo Horizonte: Perspectiva/UFMG, 1996, p. 136).

(14) Cf. Dagnino, Evelina. "Osmovimentos sociais e a emer-gência de uma nova noção decidadania". In: idem (org.).Anos 90: política e sociedadeno Brasil. São Paulo: Brasilien-se, 1994, pp. 108-109; Teixei-ra, Elenaldo C. "As dimensõesda participação cidadã". Cader-nos CRH (UFBa), na 1, 1997,pp. 191-194, 205-207; Compa-rato, Fábio K. "A nova cidada-nia". Lua Nova (Cedec), nº 28/29, 1993, pp. 85-105.

(15) Zolo, Danilo. "La ciudada-nía en una era poscomunista".La Política (Barcelona), n° 3,outubro de 1997, p. 122.

Page 7: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

ção; antes, visava restabelecer um marco de interpretação simultaneamenteempírico e normativo para apreender o sentido cabal das novas tendênciasregistradas na ação coletiva, extraindo-lhes conseqüências relevantes para aredefinição da democracia e do espaço público no país. De fato, para alémdos resultados bem ou mal-sucedidos dos diversos casos, as iniciativas dasassociações pertencentes à sociedade civil adquiriram enorme ressonânciano interior dessa literatura porque foram tipificadas como expressão do for-talecimento e autonomização da opinião e do espaço públicos diante dasinstâncias mais ou menos herméticas dos poderes econômico e político —por sinal, não raro concebidos como incapazes de materializar motu proprioo "interesse geral" da sociedade.

Mais especificamente, a nova sociedade civil foi definida como umatrama diversificada de atores coletivos, autônomos e espontâneos a mobi-lizar seus recursos associativos mais ou menos escassos — via de regradirigidos à comunicação pública — para ventilar e problematizar questõesde "interesse geral". Os traços de tal definição parecem consensuais. Naspalavras de Avritzer,

o que caracteriza a sociedade civil brasileira é a procura pela autono-mia de uma esfera de generalização de interesses associada à perma-nência de uma forma institucional de organização baseada na inte-ração comunicativa16.

Costa discorre de forma semelhante em reflexão acerca da "redescoberta dasociedade civil no Brasil":

Aos movimentos sociais e às demais organizações que representam, naórbita da esfera pública, os fluxos comunicativos provindos do mundoda vida aparecem associados os papéis de articuladores culturais, denúcleos de tematização de interesses gerais e de fortalecimento daesfera pública como instância de crítica e controle do poder17.

É claro que no desdobramento dos conteúdos principais de tal de-finição surgem diferenças de ênfase entre os autores, mas uma análisepormenorizada da literatura dos anos 1990 permite salientar certos elemen-tos articulados de maneira semelhante, ainda que nem todos estejampresentes em cada formulação sobre a nova sociedade civil: primeiro, suanatureza coletiva ou horizontal, isto é, falou-se em "associações autônomas","associativismo civil", "ancoragem no mundo da vida"; segundo, o caráterlegítimo de suas demandas ou propósitos, concebidos em termos de "inte-resse geral", "problemas provindos do mundo da vida" ou "objetivos não-sistêmicos"; terceiro, a adesão e separação livre e espontânea de seus

JULHO DE 2003 97

(16) Avritzer, Leonardo. "Mo-delos de sociedade civil: umaanálise específica do caso bra-sileiro''. In: idem (org.), Socie-dade civil e democratização.Belo Horizontc; Del Rey, 1994,p. 284, grifo meu.

(17) Costa, Sérgio. "Esfera pú-blica, redescoberta da socieda-de civil e movimentos sociaisno Brasil", Novos Estados, nº38, março de 1994, p. 47, grifomeu.

Page 8: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

membros, o que remetia à índole não-organizacional ou informal da asso-ciação ("associativismo voluntário", "espontaneidade social", "inovação so-cial"); quarto, a importância dos processos de comunicação na formação davontade coletiva e nas estratégias para suscitar a atenção pública ("te-matização pública de problemas"); e, por fim, seu papel de mediação entrea sociedade não organizada e os poderes econômico e político18. Pelacombinação de tais critérios, atores que eram tidos como pilares da açãosocial emancipadora no curso dos anos 1980 tornaram-se persona non gratana lista dos atores representativos da sociedade civil no decênio seguinte —tal o caso, sem dúvida emblemático, do movimento sindical e dos atoreseclesiásticos.

Esse conjunto de aspectos, na medida em que externo à lógica domercado ou do poder político, explicaria o protagonismo da nova socie-dade civil como força revitalizadora do espaço público e da democracia. Nolimite, os autores atentavam — apostavam até — na reconstrução teórica eprática da democracia e do espaço público animada pela reconstrução teó-rica e prática da ação social, definindo assim os propósitos mais ambiciososdaquilo que poderia ser denominado, na expressão cunhada por SérgioCosta, "'projeto' contemporâneo de sociedade civil", no qual

é básica a idéia de que esta (como em Gramsci) se distingue das esferasdo Estado e da economia, buscando-se evitar assim, a um só tempo, oliberalismo, no qual a integração social se encontra no mercado, e oestatismo, onde a sociedade civil aparece subsumida no Estado (comonos países socialistas)l9.

Formulações assim promissoras não foram elaboradas com caráter deprevisões; antes, pretendiam diagnosticar processos em curso. Para Avrit-zer, por exemplo, o novo associativismo civil tornara-se responsável pelasuperação (finalmente!) da tradicional debilidade e desorganização dassociedades latino-americanas. Segundo ele, a renitência de tal debilidadederivaria, dentre outros fatores, do caráter homogeneizador da matriz doassociativismo colonial — dominado por entidades de cunho religioso — e,após a Independência, das feições assumidas pelas lojas maçônicas daregião — incapazes de se pautar por padrões laicos e pluralistas. Em vistadisso o novo associativismo latino-americano teria atingido um patamarverdadeiramente moderno, na medida em que seria plural e autônomo comrespeito ao Estado20.

Embora recorrentes, os diversos elementos utilizados na conceituaçãoda nova sociedade civil começam a enfrentar dificuldades conforme asanálises se deslocam de postulados abrangentes e abstratos para critériosespecíficos na identificação dos seus respectivos atores empíricos. Cumpreprecisar, então, os esforços particulares de consociação compreendidosnesse associativismo civil voluntário. Embora a resposta tenha sido um tanto

98 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(18) A recorrência de tais ele-mentos pode ser facilmenteconstatada: cf. Costa, Sérgio,"Categoria analítica ou passe-partout político-normativo: no-tas bibliográficas sobre o con-ceito de sociedade civil". Revis-ta Brasileira de Informação Bi-bliográfica em Ciências Sociais(Anpocs), nº43, 1997, p. 17; "Ademocracia e a dinâmica da es-fera pública". Lua Noua (Ce-dec), nº 36, 1995, pp. 62-63;"Contextos da construção doespaço público no Brasil". No-vos Estudos, nº 47, março de1997, p. 183; "La esfera públi-ca...", loc. cit., p. 100; Gohn,op. cit., p. 301; Avritzer, "Umdesenho institucional...", loc.cit., pp. 161-168.

(19) Costa, Sérgio. "Esfera pú-blica...", loc. cit., pp. 40-41. Noseu artigo sobre as esferas pú-blicas locais em dois municípi-os de Minas Gerais, o autor ex-plicita com particular clareza oconteúdo do "projeto": "O for-talecimento da sociedade civile o emolduramento de seu po-tencial de representação políti-ca num contexto institucionalque faça da participação destaseu referente central de sus-tentação, legitimidade e estabi-lização constituem hoje, semdúvida, o projeto político demaior visibilidade pública daesquerda pós-marxista" ("Ato-res da sociedade civil e partici-pação política: algumas restri-ções". Cadernos do Ceas, nº155, janeiro de 1995, p. 70).

(20) Avritzer, "Um desenho ins-titucional...", loc. cit. pp. 153-156. O anacronismo de tal in-terpretação, visto que o associ-ativismo e os atributos de plu-ralidade e autonomia do inte-resse individual não são valo-res a-históricos, ilustra bem oônus normativo do conceito,ou melhor, o tipo de discrimi-nação normativa por ele ope-rada. Sem recorrer à discrimi-nação normativa, tal reconstru-ção histórica teria de reconhe-cer, por exemplo, que o espíri-to associativo já fora bastante"entusiasta" no Rio de Janeiroda Primeira República, onde asassociações de auxílio mútuoatingiram 282.937 associados— aproximadamente 50% dapopulação de mais de 21 anos(cf. Carvalho, José Murilo de.Os bestializados. O Rio de Ja-neiro e a república que não foi.São Paulo: Companhia das Le-tras, 1996, p. 143).

Page 9: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

controversa, a pergunta é simples: afinal, quem integrou a nova sociedadecivil tal como compreendida na literatura em questão? Houve consensosobre o papel predominante de certas formas de associação inovadoras,notadamente as ONGs, mas não ocorreu assim no que diz respeito aosmovimentos sociais, outrora privilegiados pela sociologia como referênciacentral no horizonte das possibilidades da ação social. Não se trata apenasde um aggiornamento lingüístico graças ao qual a semântica gasta dosmovimentos sociais teria desaparecido do vocabulário das ciências sociaisdurante uma década para ser substituída por novas palavras — palavras aserem utilizadas de modo igualmente intenso.

Na verdade, não parece claro que os atributos do conceito da novasociedade civil fossem plenamente harmônicos com os dos movimentossociais, por vezes dotados de sólidas estruturas organizacionais e cujofuncionamento e efetividade não raro impõem custos no terreno da espon-taneidade — para não enfatizar o problema dos expedientes de luta política,nem sempre considerados legítimos por amplas camadas da população.Mais relevante é notar que, embora nos anos 1980 houvesse consensoquanto à impossibilidade de compreender os movimentos sociais a partir dedeterminada inserção estrutural, esses novos atores foram pensados, naAmérica Latina, no quadro maior das classes sociais, dos sujeitos coletivos eda questão da dominação. Assim afirmava Eder Sader, referindo-se aoperíodo final dos anos 1970: "Eu estava, sim, diante da emergência de umanova configuração de classes populares no cenário público"; as "caracterís-ticas comuns [dos movimentos sociais] nos permitem falar de uma novaconfiguração de classe"21. Nesse sentido, a incorporação dos movimentossociais à nova sociedade civil, por autodefinição pós-marxista e normativa,negligenciou o problema de certa incompatibilidade entre os termos de am-bas as discussões22.

Malgrado as dificuldades para enquadrar os movimentos sociais noconceito de sociedade civil cunhado nos anos 1990, parte da literaturareconheceu certa continuidade entre os esforços mais modestos do asso-ciativismo civil e as grandes iniciativas de mobilização social organizada,resolvendo-se o problema como um assunto de grau de abrangência nacapacidade de representação de interesses. Entendeu-se que os movimen-tos se situavam "um degrau analítico acima das demais associações dasociedade civil", com "um espectro temático e de conteúdos mais amplo queo destas"23. À margem da pertinência conceitual de tal operação — serespeitadas as restrições estabelecidas pela própria literatura —, há razõesestratégicas a se levar em consideração: os estudos sobre os novos movi-mentos sociais e a literatura da nova sociedade civil partilharam um mesmohorizonte político, qual seja, o da possibilidade da modernização pela via daação social. Nesse sentido, e em termos da inadequação a seus própriosquesitos, alguns autores seriam mais tolerantes com os atores sociais queencarnam a crítica à democracia institucional do que com a ação crítica deatores institucionais — partidos, por exemplo, ou melhor, porque referentesindispensáveis da literatura sobre movimentos sociais, Igreja e sindicatos24.

JULHO DE 2003 99

(21) Sader, Eder. Quando no-vos personagens entram em ce-na — experiências, falas e lu-tas dos trabalhadores da Gran-de São Paulo (1970-80). SãoPaulo: Paz e Terra, 1988, pp.36, 311. Cf., também, o alenta-do artigo de Luis Alberto Res-trepo, "A relação entre a socie-dade civil e o Estado — ele-mentos para uma fundamenta-ção teórica do papel dos movi-mentos sociais na América La-tina". Tempo Social (Departa-mento de Sociologia da USP),nº 2, 1990, pp. 61-62, 78-100.

(22) Leonardo Avritzer perce-beu com agudeza tal incompa-tibilidade (cf. "Modelos de so-ciedade civil...", loc. cit., esp.pp. 282-300).

(23) Costa, "Esfera pública...",loc. cit., p. 46. Para reforçar oargumento: "... consideramosos movimentos sociais comoexpressões de poder da socie-dade civil" (Gohn, op. cit., p.251).

(24) Dois livros que balizarama reflexão em torno dos novosmovimentos sociais evidencia-ram a relevância desses atoresinstitucionais: além do já citadoQuando novos personagens en-tram em cena, de Eder Sader,São Paulo: o povo em movimen-to, organizado por Paul Singere Vinícius Caldeira Brant (SãoPaulo: Vozes/Cebrap, 1980).

Page 10: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

Ademais, não parece descabido afirmar que a flexão das exigentes restri-ções da definição da nova sociedade civil diante dos movimentos sociaispermitia, a um só tempo, ampliar o leque de interlocutores e definir certacontinuidade com o debate das duas décadas anteriores, atenuando as di-ferenças entre as posições conceituais que informaram a discussão nessesdois momentos.

Uma vez esclarecida a participação ambígua dos movimentos sociaisno elenco de atores privilegiados pela definição da nova sociedade civil,cabe reconhecer que sua relevância na literatura foi modesta se comparadacom o peso das formas mais representativas do novo associativismo civil:associações de caráter local as mais diversas (de moradores, de lazer, cul-turais e ambientais); pequenas agremiações profissionais e por afinidadede posições em áreas e práticas específicas (de pais e alunos, de usuários,grupos de protesto, iniciativas de defesa do meio ambiente); associações desolidariedade com distintos segmentos sociais (sem-teto, meninos de rua,mães solteiras, deficientes); movimentos de reivindicação ou defesa dedireitos vinculados a identidades (negro, feminista, de idosos). Essa miríadede empenhos associativos constituiu o corpo do "novo associativismo civil"e definiu seus traços principais, assim identificados por Avritzer: o aumentoexpressivo das iniciativas de consociação, a introdução de mudanças subs-tanciais na cultura política, já que tais atores não mais se voltariam para suaincorporação no seio do Estado, e sobretudo a constituição de novo padrãode ação coletiva, orientado por critérios não funcionais, ou seja, territoriais,temáticos e plurais25.

Contudo, nem todas as formas de associação contempladas em talelenco adquirem igual importância, pois para além do peso quantitativo decada uma delas o conceito da nova sociedade civil privilegiou aquelas comespecial vocação para o fortalecimento do espaço público pela via da in-termediação societária e da tematização pública de problemas de "interessegeral". Por outras palavras, a definição da nova sociedade civil abarca amploespectro de experiências associativas, mas há aquelas constituídas sem ointuito de intermediar interesses ou tematizar problemas (clubes da terceiraidade, associações de ex-alunos, grupos de bibliófilos, filatelistas, alpinistasetc), cujas atividades foram pouco valorizadas analiticamente porque se-riam distantes do papel reservado à sociedade civil, ou seja, por careceremde relevância para o fortalecimento da democracia e do espaço público26.

Em termos da diversidade da "arte da associação", à la Tocqueville,pouca coisa sobrevive às exigências desse crivo normativo. Com efeito,particularmente favorecidas portal recorte analítico, as ONGs constituíram afigura associativa por excelência do debate sobre a sociedade civil dos anos1990 — aliás, elas tampouco compreendiam iniciativas organizacionaiscomo as gremiais, comunitárias ou dos grupos de protesto. Apesar do amploconsenso quanto à predominância das ONGs como os atores mais significa-tivos da nova sociedade civil, houve discrepâncias quanto aos alcances deseu agir: as posições oscilaram desde a mera afirmação descritiva de seucrescimento vertiginoso e da expansão de suas funções de intermediação

100 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(25) Avritzer, "Um desenho ins-titucional. ..", loc. cit., pp. 152-153.

(26) Algumas iniciativas seme-lhantes a esse tipo de consoci-ação foram caracterizadas porIlse Scherer-Warren como as-sociações de adesão a causasespecíficas ou de uma únicacausa e, junto com as associa-ções sem especificação, foramcomputadas na sua pesquisasob a categoria "outros" — oque evidencia sua escassa rele-vância para a literatura (cf. As-sociativismo civil em Florianó-polis— evolução e tendências.Paper para o Primer Encuentrode la Red de Investigación delTercer Sector de América Lati-na y el Caribe, Rio de Janeiro,1998).

Page 11: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

social, num pólo27, até, no outro, a elaboração de esperançosos postuladosacerca de seu papel inovador no plano da cultura política e, ainda mais, desua função denunciatória dos "temas mais importantes que explicitam achamada crise civilizatória em geral"28.

Missão normativa e deslindes teóricos

Fundamentalmente as ONGs, mas também os movimentos sociais eoutras formas de associação voltadas para a intermediação e tematizaçãopública de problemas, foram definidos, conforme exposto, como novosatores da sociedade civil capazes de arregimentar as energias inovadorasesparsas na sociedade não organizada, reconfigurando o cenário da demo-cracia no país. Mas o fato de esses atores eventualmente encarnarem osatributos definidos pela literatura — horizontalidade, espontaneidade, legi-timidade, ação comunicativa, intermediação societária — não permite aindaavaliar adequadamente o sentido substantivo de sua caracterização comosociedade civil. Na literatura dos anos 1990 esse sentido residiu no seu papelnormativo, cuja compreensão cabal somente estaria ao alcance, segundo ospróprios autores, de elaborações conceituais habilitadas para lidar com aquestão normativa na redefinição da democracia.

A certas concepções da sociedade civil escaparia a dimensão essencialdos novos atores, pois sua perspectiva "despreza os mecanismos normati-vos de geração de interesses que submetem as ações do Estado e os dis-cursos do poder ao crivo da opinião pública" — para expressá-lo sucinta-mente segundo formulação de Avritzer em crítica a Francisco Weffort29.Assim, as transformações na democracia e no espaço público decorrentesdo influxo de formas inéditas de participação admitiam, presumidamente,caracterização substantiva: não se tratava apenas do aprimoramento institu-cional pelo efeito da concorrência conflitante de novos interesses organiza-dos (apreciação não substantiva porque elude qualquer afirmação acerca daidoneidade moral desses interesses), mas da índole em si superior do agir edos propósitos dos atores da nova sociedade civil.

A função normativa da nova sociedade civil não seria passível deelucidação sob perspectivas de abordagem tais como as representadas nostrabalhos de Wanderley Guilherme dos Santos ou Fábio Wanderley Reis,seja porque seriam "estreitos" os marcos da perspectiva institucional dapolítica, seja porque a visão liberal e pluralista, ao conceber os esforços deconsociação em termos de infra-estrutura poliárquica, reduziria sua influên-cia ou ao aprimoramento da democracia institucional ou à admissão dosnovos atores e suas demandas no arcabouço das instituições democráticasjá existentes30. A redefinição substantiva da democracia pela ação da socie-dade civil tampouco receberia melhor tratamento nas leituras informadaspela lógica da luta de classes, pois nessa ótica a nova dinâmica social torna-se prenúncio da aglutinação de um sujeito coletivo ou de forças políticas

JULHO DE 2003 101

(27) Cf. D'Arc, Hélène R. "Obasismo acabou? A análise so-bre a participação comunitáriano Brasil (1970-90)". CadernosCRH (UFBa), n° 26-27, janeirode 1997, pp. 240-241; Wander-ley, Luiz Eduardo W. "Rumosda ordem pública no Brasil — aconstrução do público". SãoPaulo em Perspectiua (Funda-ção Seade), nº 4, outubro de1996, pp. 99-101; Gohn, op.cit.. p. 297; Costa, "Atores dasociedade civil...", loc. cit., p.71.

(28) Silva, Ana Amélia da. "Doprivado para o público: ONGse os desafios da consolidaçãodemocrática". Cadernos doCeas, nº 146, julho de 1993, p.41. Para outras leituras "enfáti-cas", cf. Scherer-Warren, Ilse." Organizações não-governa-mentais na América Latina: seupapel na construção da socie-dade civil". São Paulo em Pers-pectiva (Fundação Seade), nº 3,julho de 1994, pp. 10, 13-14;Vieira, Liszt. "Sociedade civil eespaço global". São Paulo emPerspectiva, nº 4, outubro de1996, esp. pp. 113-119.

(30) O deslinde, nesse caso, écom respeito à perspectiva deWanderley Guilherme do San-tos em As razões da desordem(Rio de Janeiro: Rocco, 1994,pp. 77-115), mas também in-clui posições como a de FábioWanderley Reis (cf. "Cidada-nia, mercado e sociedade ci-vil". In: Diniz, Eli, Lopes, JoséSérgio e Prandi, Reginaldo(orgs.). O Brasil no rastro dacrise. São Paulo: Anpocs/lpea/Hucitec, 1994, pp. 328-343).Para uma crítica ao segundoautor em termos semelhantes,cf Costa, "La esfera pública...",loc. cit., pp. 101-103.

Page 12: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

contestatórias — notadamente os partidos políticos —, diluindo a espe-cificidade dos novos atores31. Os autores dos anos 1990 reivindicaram amaior pertinência de sua abordagem porque ao mesmo tempo ela respeitavaa heterogeneidade e o pluralismo do novo padrão da ação social e, aosustentar uma compreensão normativa da sociedade civil, conferia sentidounitário aos efeitos de sua ação diversa e reconhecia plenamente sua po-tencialidade como agente transformador da democracia — em sentidosubstantivo.

De fato, embora sem constituir a chave de interpretação dominante, asociedade civil aparece pelo menos desde finais da década de 1970 comoobjeto de reflexão, em registros diferentes, na obra de autores comoCoutinho (1979), Weffort (1984), Boschi (1987), Sader (1988) e, mais recen-temente, Santos (1993) e Reis (1994)32. A despeito dessa presença no debatenacional, a redefinição da nova sociedade civil introduziu atributos eexigências normativos suficientes para distanciar as concepções em termosincompatíveis33 — o que não raro gerou mal-entendidos em trabalhos atransitarem despercebidos entre posturas analíticas cuja continuidade é emboa medida nominal. Convém mencionar que coexistiram nos anos 1990outras interpretações da sociedade civil não enquadráveis nos pressupostosda literatura aqui analisada, mas que, independentemente de sua consistên-cia analítica ou de seus ganhos empíricos, não foram a referência fundamen-tal a informar o debate34.

Procede, então, analisar os conteúdos normativos a partir dos quais seconstruiu a interpretação da radical mudança no plano da ação social e dosaportes substantivos da sociedade civil para a transformação da democraciae a reconstrução do espaço público. Para tanto, a seguinte passagem deSérgio Costa é oportuna no esclarecimento das supostas diferenças entre osatores e interesses da política convencional e os da nova sociedade civil:

Se a influência dos grupos corporativos que defendem interesses parti-culares e específicos é devida, antes de tudo, a sua capacidade econtrole dos recursos comunicativos disponíveis, o poder político dosmovimentos sociais e das demais associações da sociedade civil é,sobretudo, resultado do mérito normativo de suas bandeiras, isto é, dasua possibilidade de catalisação da anuência e do respaldo social.Nesse caso, o espaço público não mais pode ser representado unica-mente, como fazem os pluralistas, como mercado de interesses emdisputa. O espaço público deve ser representado como a arena quetambém medeia os processos de articulação de consensos normativos ede reconstrução reflexiva dos valores e disposições morais que nortei-am a convivência social35.

Na lógica que subjaz a essa perspectiva, a sociedade e o conjunto deações orientadas para sua regulação, transformação ou conservação apa-

102 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(31) As referências nem sem-pre são explícitas, mas de qual-quer maneira atingem aborda-gens da sociedade civil clara-mente representadas por auto-res como Carlos Nelson Couti-nho (A democracia como valoruniversal e outros ensaios. Riode Janeiro: Salamandra, 1984[1979], pp. 21-49), FranciscoWeffort (Por que democracia?São Paulo: Brasiliense, 1984,pp. 93-97) e Eder Sader (op.cit.), pp. 30-37.

(32) Boschi, Renato Raul. A arteda associação: política de basee democracia no Brasil, Rio deJaneiro: Iuperj/Vértice, 1987,pp. 14l-l6l; para as demaisreferências, ver as duas notasanteriores. É ilustrativo o fatode o termo "sociedade civil"aparecer no trabalho coorde-nado por Kowarick e Brant em1975 (op. cit., pp. 147-155),mas sem receber ainda qual-quer tratamento conceitual es-pecífico.

(33) Foi comum o esforço emdelimitar a "correta" compre-ensão da sociedade civil e seupapel no espaço público, tantono plano das alternativas teóri-cas quanto no das interpreta-ções correntes nas últimas duasdécadas no Brasil (cf. Avritzer,Leonardo. "Além da dicotomiaEstado/mercado: Habermas,Cohen e Arato". Novos Estudos,n° 36, julho de 1993, pp. 215-220; "Modelos de sociedade ci-vil...", loc. cit., pp. 294-300;Costa, "A democracia e a dinâ-mica...", loc. cit., pp. 55-61; "Laesfera pública...", loc. cit., pp.93-106; "Categoria analíticaou...", loc. cit., pp. 7-10, 12-16.

(34) Cf., por exemplo, Landim,Leilah (org.). Ações em socieda-de: militância, caridade, assis-tência etc, Rio de Janeiro: Iser/Nau, 1998; Fernandes, RubemCésar. Privado, porém público:o Terceiro Setor na Am éríca La -tina. Rio de Janeiro: Civicus/Relume Dumará, 1994; SilvaTelles, Vera da. "Sociedade ci-vil e construção de espaçospúblicos". In: Dagnino (org.),op. cit., pp. 100-101; "Socieda-de civil e os caminhos (incer-tos) da cidadania", Wanderley,Luiz Eduardo. "Massas e socie-dade civil: notas para um estu-do". São Paulo em Perspectiva(Fundação Seade), nº 2, abrilde 1994, pp. 8 e 12, 33-40; Nas-cimento, Mariângela. "Demo-cracia e espaço público no Bra-sil". Cadernos do Ceas, nº 138,setembro de 1999, pp. 37-45.

(35) Costa, "La esfera públi-ca...", loc. cit., p. 104, gritosmeus.

Page 13: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

recém cindidos em dois mundos regidos por dinâmicas e procedimentosnitidamente diferenciados: o mundo institucional da política, com seus in-teresses, práticas e atores, e o mundo societário que, quando organizado emobilizado pela consociação civil, irrompe no primeiro e aventa problemasrelevantes para o conjunto da sociedade. No primeiro reinam os interessesparticularistas, as organizações e a política na sua conotação mais mesqui-nha, enquanto no segundo imperam as bandeiras normativas, as associa-ções autônomas e a política do consenso. Não é gratuito que as palavras"interesse" e "organização" tenham sido evitadas no campo semânticoutilizado por essa literatura para descrever o agir da nova sociedade civil (anão ser na acepção "interesse geral", no primeiro caso), produzindo umefeito de diferenciação entre uma política universalista e outra particularista,previamente definidas como atributos e não avaliadas em suas causas econflitos específicos. Assim, os atores tradicionais do mundo da política —partidos, organismos corporativos e grupos de interesse — agiriam em regrana defesa de interesses oriundos da economia ou da própria política, masnão da sociedade, contando para isso com posições privilegiadas quanto àdisposição de recursos de poder, recursos cujo uso, pautado por umaracionalidade meramente estratégica, resultaria por vezes inescrupuloso,quando não ilegítimo, pois escaparia ao escrutínio público. A caracterizaçãonormativa da sociedade civil como representante de "interesses gerais" e aconstrução quase tipológica de sua oposição ao mundo institucional eorganizativo da política como reino dos interesses particularistas foramlargamente utilizadas na literatura36.

Sem sombra de dúvida, tipificar o mundo institucional da política co-mo pólo negativo de uma dualidade cujo termo oposto é a ausência departicularismo no agir da sociedade civil constitui uma hiper-simplificaçãode duvidosos ganhos analíticos, e mereceria, portanto, passar pelo crivode uma crítica minuciosa. Todavia, interessa por enquanto considerar ostermos da caracterização do pólo positivo, isto é, a justificativa dosatributos pressupostos como consubstanciais à nova sociedade civil. Estanão é sinônimo da sociedade como um todo; na verdade, sua constituiçãofoi compreendida como cristalização de iniciativas de mobilização earticulação social que elevariam a certo patamar de efetividade os anseiosda população, edificando um conjunto difuso de instituições não cindidasda vida cotidiana da sociedade. Lidando com consensos emergentes —não com interesses —, tais instituições promoveriam e representariamaqueles anseios.

A legitimidade desses consensos emergentes se estribaria em doissuportes fundamentais. Primeiro, na medida em que arraigados na vidacotidiana e comunitária da sociedade, esses consensos não almejariam pro-pósitos de cunho particularista, inerentes ao desempenho dos atores tradi-cionais da política. Na incompreensão desse fato radicaria o "equívoco dasconcepções que aceitam a inovação social e a permanência da sociedade ci-vil, mas que [...] vinculam sua institucionalização a interesses particularis-tas", ou de forma de mais enfática ainda:

JULHO DE 2003 103

(36) Cf., por exemplo, Scherer-Warren, "Organizações não-governamentais...", loc. cit.,pp. 13-14; Vieira, "Sociedadecivil...", op. cit., pp. 107-108,113-119; Silva, op. cit., pp. 39-41, 45; Costa, "A democracia ea dinâmica...", loc. cit., pp. 62-63; "Contextos da constru-ção...", loc. cit., p. 183; "Esferapública...", loc. cit., pp. 44-47,50; "Movimentos sociais...",loc. cit., pp. 127-128; "Atoresda sociedade civil...", loc. cit.,p. 72; Avritzer, "Modelos desociedade civil...", loc. cit., pp.294-300; "Um desenho institu-cional...", loc. cit., p. 170.

Page 14: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

Não é possível, de modo algum, eliminar a distinção analítica entremovimentos sociais e organizações da sociedade civil voltados para adefesa da cidadania e do interesse público, por um lado, e associaçõesde caráter econômico e político-administrativo, por outro. [...] É tam-bém o que tentam fazer aqueles que em vão procuram desqualificar asorganizações da sociedade civil, equiparando-as a grupos de in-teresse3 7.

Segundo, a geração de consensos no mundo social não admitiria manipu-lação nem a introdução de quaisquer mecanismos artificiais para substituir agenuína opinião dos envolvidos — como ocorre, mais uma vez, nas práticascostumeiras da política —, mas obedeceria aos ditames da interação comu-nicativa38. Essa construção autêntica de consensos pressuporia o acordopúblico das eventuais posições conflitantes mediante a explanação racionalde argumentos factual e moralmente válidos para todos os interlocutoresenvolvidos, e por isso seria capaz de impulsionar novos processos deenriquecimento normativo da vida pública e da democracia.

Enquanto o mundo institucional da política permaneceria ensimesma-do, preso na ação estratégica e na realização de particularismos, impedidoportanto de se exprimir com transparência acerca dos motivos que neleimperam, a nova sociedade civil se mostraria capaz de defender e reivindicar"interesses gerais" legítimos, passíveis de ampliação representativa pela viado diálogo público. Ainda mais, a construção de acordos no seio da soci-edade civil, além de configurar um processo transparente, aberto a todosaqueles que decidissem nele se engajar espontaneamente, não privilegiariaargumentos de índole factual: antes, procederia mediante a geração deconsensos morais, pois apenas a partir deles seria viável a edificação denovas solidariedades. Em conseqüência, as inúmeras iniciativas de consoci-ação civil introduziriam no espaço público questões relevantes para oconjunto da sociedade, sendo portadoras de "interesses gerais" — legítimose moralmente cimentados.

A correta apreciação da potencialidade dos atores da nova sociedadecivil obrigaria a equacionar, então, tanto seu papel na resolução de amploleque de problemas — cujas repercussões transbordam o âmbito do local oucomunitário — quanto sua novidade em termos do padrão de ação social ede sua função na geração de pressões legítimas dirigidas à transformaçãosubstantiva da democracia. Assim, o influxo pertinaz do agir disperso eautônomo desses atores constituiria novo programa de ampliação do espa-ço público e de reforma das instituições democráticas, não apenas objeti-vando seu aprimoramento formal, senão viabilizando seu aprofundamentosegundo critérios normativos atrelados à emergência legítima de consensosmorais. Arrojada proposta de Avritzer ilustra com clareza a entronizaçãomoral da sociedade civil na reforma da democracia: trata-se da "constituiçãode uma câmara provisória de publicização da sociedade política", voltada a"regulamentar a forma de competição da sociedade política, regulamenta-

104 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(37) Respectivamente: Avritzer,"Modelos de sociedade civil...'',loc, cit., p. 294; Vieira, "Socie-dade civil...", loc. cit., p. 112.

(38) Cf'., por exemplo, Costa,"Esfera pública...", op. cit., pp.46-48.

Page 15: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

ção essa que tem se constituído em fonte de deslegitimação da própriasociedade política"39. Em suma, para empregar frase de efeito cunhada porCosta, a "democratização da democracia" sintetizaria o aporte inusitado dosnovos atores sociais40. Tal aporte, cumpre recordar com Avritzer, apenasseria corretamente perceptível sob as balizas fornecidas por essa literatura:

O problema de uma teorização adequada da sociedade civil se traduz,portanto, no surgimento de uma teoria capaz de mostrar como asestruturas normativas da institucionalidade democrática são capazesde produzir a generalização de interesses, apesar da predominânciados mecanismos de geração de particularidades, um problema que asociedade civil tem enfrentado como o problema central da esferapública no Brasil41.

O discreto encerramento dos anos 1990

A literatura da nova sociedade civil lançou mão de critério duplo:empírico-descritivo quanto aos atributos dos atores que redefiniam umnovo padrão de ação social — filiação espontânea, horizontalidade etc. — eprescritivo quanto ao comportamento desses atores no espaço público —veiculação de consensos genuínos, isenção de comportamentos própriosaos atores tradicionais da política etc. As altas expectativas da literaturabasearam-se nessa combinação de estipulações empíricas e normativascomo asserção factual: a função normativa da sociedade civil não apenas seencontrava teoricamente cimentada, aparecendo como aposta conceitual,mas também foi proposta como caracterização da superioridade moral tantodos consensos societários veiculados pelos novos atores quanto do própriocomportamento destes quando da exposição e resolução pública de seusreclamos. Isso acarretou sérias dificuldades na aplicação do conceito, vistoque a introdução de exigências normativas como expediente de discrimina-ção tende a diluir os contornos do conceito fixados pelo critério descritivo eimplica o risco de pressupor a existência de um juízo externo — desde aperspectiva do observador imparcial — habilitado a avaliar caso a caso oproceder dos atores, atribuindo-lhes ou negando-lhes o estatuto de mem-bros da sociedade civil.

Se as características empírico-descritivas delimitam um universo restri-to de iniciativas de consociação, conforme já exposto, uma vez assentes osconteúdos prescritivos instaura-se uma deontologia do comportamento dosatores como baliza a gerar novas exclusões. Com efeito, o crivo dos quesitosestabelecidos pela literatura não apenas exclui partidos políticos, grupos deinteresse, sindicatos, organizações econômicas e instituições altamente hie-rarquizadas — como as Igrejas —, mas também pode levar à "expulsão" daspróprias associações da sociedade civil quando assumem comportamentos

JULHO DE 2003 105

(39) Avritzer, "Um desenho ins-titucional...", loc. cit., p. 170.Cf. também Scherer-Warren,"Organizações não-governa-mentais...". loc. cit, p. 13: "Estesentido está relacionado à uto-pia [...] de fortalecimento dasociedade civil e de desenvol-vimento de uma racionalidadeética [...]. Esta ética desenvolvi-da no seio da sociedade civilpoderia vir a atuar como umaforça de regulamentação de ou-tros setores (mercado e Es-tado)".

(40) Costa, "Esfera pública...",loc. cit., p. 47.

(41) Avritzer, "Modelos de so-ciedade civil...", loc. cit., p. 300.

Page 16: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

ou mecanismos de negociação inerentes à esfera política, pois ao exceder oslimites de seu papel normativo correm o risco de corromper seu genuínopotencial democratizante: "No limite, essas organizações deixam de seratores da sociedade civil, transformando-se em apêndices do sistema polí-tico"42.

A pergunta imediata parece óbvia: onde e como traçar a tênue frontei-ra que separa o enraizamento social genuíno de uma associação da deturpa-ção de seu potencial normativo, condicionado por esse enraizamento? Se talindagação não carece de interesse teórico — e elaborada nesse planoparece pertinente —, a introdução de uma deontologia como princípio dediferenciação para lidar com as associações civis existentes gera ambigüida-des de difícil resolução. Como lidar, por exemplo, com a problemática dainstitucionalização permanente desses novos atores se a literatura vedaqualquer burocratização ou dependência do poder público? De fato, posi-ções mais sensíveis ante os riscos de alheamento sustentaram que, sob penade desvirtuar seu caráter, os novos atores deveriam limitar-se ao exercíciode pressões cognitivo-morais, de índole essencialmente comunicativa, re-cusando sua consolidação em estruturas burocratizadas e a tentação de agirpela via do poder político, administrativo ou econômico43.

Em face de tais dificuldades, resultantes da eventual distância entre oscritérios restritivos da literatura e as práticas reais das associações, seria deesperar que a multiplicação de exigências derivadas da combinação de am-bos os critérios — empírico-descritivo e normativo — suscitasse dúvidasrazoáveis acerca da plausibilidade de avançar na compreensão cabal dofuncionamento da sociedade civil com base nesses pressupostos. Primeiro,porque o "otimismo" desse enfoque transfere considerável ônus moral aosatores por ele privilegiados, e segundo porque não parece pertinenteatribuir tantas conseqüências para a redefinição teórica e prática da demo-cracia, da ação social e do espaço público a um universo de iniciativas deconsociação delimitado por uma lógica tão restritiva.

Para além das dificuldades ou das pertinências analíticas, sem dúvidaseria ingênuo não reconhecer que a grande influência e a rápida expansãodesse enfoque nos anos 1990, assim como, salvo raras exceções, a omissãogeneralizada dessas dificuldades na própria literatura, obedeceram em boamedida ao papel desempenhado pela idéia de nova sociedade civil enquan-to projeto político a preencher o vazio deixado pelo declínio das teorias dosmovimentos sociais. De fato, não é gratuita a presença de semelhanças entreambas as perspectivas: também os movimentos sociais foram distinguidospor sua novidade, espontaneísmo e autonomia, por se constituírem comatores radicalmente externos à lógica das instituições políticas e por suasalvissareiras contribuições à transformação da cultura política; e também aliteratura manifestou sua perplexidade ao se defrontar com a instituciona-lização desses movimentos, atribuindo-lhe noções de conotação negativacomo "cooptação", "desmobilização" e "refluxo" — isso para não mencio-nar a notável coincidência, em ambas as perspectivas, entre a fala dos atorese o discurso acadêmico44.

106 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(42) Costa, "Atores da socieda-de civil...", loc. cit., p. 69. Acitação provém de uma análisedos efeitos corruptores da polí-tica; especificamente, da ado-ção de "estratégias negociadas"pelos atores da sociedade civilem dois estudos de caso: Juizde Fora e Governador Vala-dares.

(43) Cf. Costa, "A democracia ea dinâmica...", loc. cit., pp. 60-63.

(44) Essas características do de-bate em torno dos movimentossociais foram exploradas no ba-lanço desenvolvido por RuthCorrêa Leite Cardoso: "A traje-tória dos movimentos sociais".In: Dagnino (org.), op. cit., pp.81-90. Cf., também, Cunha, Flá-vio S. "Movimentos sociais ur-banos e a redemocratização: aexperiência do movimento fa-velado de Belo Horizonte". No-vos Estudos, nº 35, março de1993, pp. 134-135, 142; Nunes,Edison. "Movimentos popula-res na transição inconclusa".Lua Nova (Cedec), nº 13, se-tembro de 1987, pp. 92-94. Pa-ra uma crítica dessa relação "ci-clotímica" entre o pensamentoacadêmico e os movimentossociais, cf. Ottmann, Götz. "Mo-vimentos sociais urbanos e de-mocracia no Brasil—uma abor-dagem cognitiva". Novos Estu-dos, n° 41, março de 1995, pp.186-207.

Page 17: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

Semelhantes dificuldades não passaram despercebidas aos olhos deleitores menos entusiastas quanto ao papel da produção acadêmica naconstrução simbólica e cognitiva de novos sujeitos da transformação social.Durante o período de auge da literatura aqui analisada, e sob diferentesperspectivas de análise, vários autores levantaram evidências e desenvol-veram reflexões que nutriram a crítica dos pressupostos analíticos ou dasimplicações teóricas e empíricas de uma concepção da sociedade civil assimnormativa. Houve quem salientasse, como feito aqui, o despropósito teóri-co de entronizar a sociedade civil como reino moral alheio ao particularis-mo, cuja contrapartida é reduzir o mercado a instância estranha a qualquerforma de condensação de interesses amplos, esquecendo-se, por exemplo,seus efeitos positivos na corrosão das hierarquias sociais adscritivas45.Também houve quem frisasse, com olhar agudo, a paradoxal complemen-taridade entre as interpretações holistas da sociedade civil, unificada emalguma espécie de comunhão superior ao "particularismo", e a construçãosimbólica de uma identidade política subordinada a uma concepção orgâni-ca do Estado-nação, que submete as teias privadas da solidariedade socialao universalismo da autoridade e cujos índices mais expressivos são o cor-porativismo no plano institucional e o populismo no terreno da ideologia edo exercício do poder — em ambos os casos os interesses particularesaparecendo com valência negativa e deslegitimando o eventual desenvolvi-mento de padrões pluralistas de ação política e social46. Sem esquecer que,no seu conhecido trabalho, Wanderley Guilherme dos Santos não apenasassinalou o modesto crescimento de associações de "interesse geral" noquadro geral do boom associativo do último quartel do século XX, mastambém chamou a atenção para a inexpressiva participação dos eventuaisassociados em face de seu número potencial ("alienação política", "absente-ísmo organizacional")47.

Além disso, diversos autores exploraram problemas que indicamsérias insuficiências da literatura em questão: a baixa valorização da ativida-de comunitária como via eficaz para a resolução de problemas vinculados àqualidade de vida da população ou como expediente para a educaçãocidadã48; os riscos presentes no crescimento exponencial das ONGs comosetor de serviços de intermediação social, cuja consolidação tende a fazê-lasdesempenhar funções substitutivas de seu público-alvo e a gerar interessesdiferenciados e concorrenciais49; a paradoxal contribuição do discurso danova sociedade civil ao desinteresse geral pela política, graças à sua auto-representação como ator "impolítico" e legítimo portador de interessesgerais, o que, além de coadunar com as tendências de retração do Estado,banaliza a questão da reforma institucional ("frenesi ético-moralizante"50); ainexistência de relação entre o incremento de associações civis e as mudan-ças no cenário político e socioeconômico das últimas décadas, de um lado,e o incremento participativo da população seja nos partidos políticos ou nasassociações civis, seja no encaminhamento de demandas ou sugestõesmediante o contato pessoal com políticos ("alienação associativa", "concep-ção vigorosa de uma sociedade civil miúda"51); a impossibilidade de as

JULHO DE 2003 107

(45) Reis, op. cit., pp. 338-342.

(46) Reis, Elisa. "Desigualdadee solidariedade: uma releiturado 'familismo amoral1 de Banfi-eld". Revista Brasileira de Ci-ências Sociais (Anpocs), nº 29,outubro de 1995, pp. 35-48.

(47) Santos, op. cit., pp. 80-89,104.

(48) Pedro, Jacobi. "A percep-ção de problemas ambientaisem São Paulo". Lua Nova (Ce-dec), n° 31, 1993, pp. 47-55;França, Cássio Luiz de. A im-portância da participação po-pularnoprocesso de'implemen-tação de políticas de verticali-zação de favelas na cidade deSão Paulo. São Paulo: disserta-ção de mestrado, FGV, 1999.

(49) Arellano-López, Sonia ePetras, James. "A ambígua aju-da das ONGs na Bolívia". Ca-dernos do Ceas, nº 156, marçode 1995, pp. 57-59; D'Arc, op.cit., pp. 249-251.

(50) Nogueira, Marco Aurélio."A sociedade civil contra a po-lítica?''. São Paulo em Perspecti-va (Fundação Seade), nº 2, abrilde 1994, pp. 21-25. Sem dúvi-da, seria possível analisar osincentivos para assunção deformas "impolíticas" de organi-zação em termos das diversasvantagens e benefícios capita-lizáveis mediante semelhantedeslinde com respeito aos ato-res políticos tradicionais; entreessas vantagens, há algumas deíndole política que poderiamser concebidas, segundo for-mulação por nós já exploradaem outro lugar, como o "sobre -peso político da não-política"(cf. Lavalle, Adrián G. "Dos pa-radojas de la sociedad civil me-xicana". Etcétera, nº 144, no-vembro de 1995, pp. 17-18).

(51) Ferreira, Marcelo C. "Asso-ciativismo e contato políticonas regiões metropolitanas doBrasil: 1988-1996 — revisitan-do o problema da participa-ção". Revista Brasileira de Ci-ências Sociais (Anpocs), nº 41,outubro de 1999, pp. 91, 94-95, 98-99; Lavalle, Adrián G.Espaço e vida públicos: refle-xões teóricas e sobre o pensa-mento político social no Brasil.São Paulo: tese de doutoramen-to em Ciência Política, FFLCH-USP, 2001.

Page 18: 20080627 sem pena_nem_gloria

SEM PENA NEM GLÓRIA: O DEBATE SOBRE A SOCIEDADE CIVIL NOS ANOS 1990

associações comunitárias manterem indefinidamente a mobilização sociale a própria organização sem a combinação de atividades reivindicativas,próprias da nova sociedade civil, com atividades de caráter assistencialista— indesejáveis, segundo a literatura, porque imbuídas de particularismo etransigentes com a lógica da esfera política52.

Tais críticas não questionam a existência de mudanças, no curso dasúltimas três décadas, nos expedientes mais usuais da ação social institucio-nalizada em associações; apenas esboçam, grosso modo, um panoramadifícil de ser equacionado ao modo do esbelto figurino de uma sociedadecivil concebida sob tamanha estilização conceitual normativamente reforça-da. Contudo, não cabe imputar às críticas a responsabilidade pelo esgota-mento do debate sobre a sociedade civil dos anos 1990: não foi esse tipo de"ferimentos" o que minou as suas energias. Na verdade, tratou-se mais deum abandono dos termos do debate por infecundidade cognitiva, por faltade fôlego dentro de sua própria agenda e por incapacidade de produzirsubsídios analíticos e empíricos passíveis de nutrir linhas de pesquisa. Nesseponto, e malgrado as afinidades aqui salientadas, há uma diferença notávelcom a literatura dos movimentos sociais dominante nos anos 1980, cujodebate não apenas foi capaz de produzir extraordinária renovação nasabordagens da ação social e no conhecimento empírico de atores coletivosespecíficos, como também mostrou sua intensidade e riqueza na sedimenta-ção de uma obra capital da sociologia no país, em cujas páginas cristalizou-se uma década de produção acadêmica — alude-se, é claro, ao já citadoQuando novos personagens entram em cena, de Eder Sader.

Assim, o debate sobre a sociedade civil dos anos 1990 exauriu-se emsilêncio, sem pena nem glória, sem sequer acusar explicitamente a mudançanos termos da sua própria discussão e cedendo à introdução das balizas deuma agenda mais pragmática e menos exigente quanto às qualidadesmorais de seus atores. É claro que agora o contexto não mais diz respeito atendências de abertura, institucionalização e democratização de sistemaspolíticos, mas a mudanças globais nos padrões de intervenção do Estado. Aesse respeito, o atual leque de temas nas agendas acadêmicas e das agênciasde financiamento é sintomático: cidadania responsável, isto é, participativa,não limitada ao exercício passivo de direitos preexistentes; desenvolvimen-to local, não como decorrência de macrodiretrizes, senão vinculado aocontrole, conhecimento e anseios de microatores de base territorial; gover-nança em vez de governabilidade; accountability enquanto horizonte deexploração para ampliar as interfaces entre o Estado e a sociedade civil(aquém ou além dos mecanismos democráticos clássicos); inovação institu-cional para a criação de espaços de gestão e participação da sociedade civilno Estado.

Não é esta a ocasião para avaliar o mérito desse repertório temático,mas sem dúvida ele espelha algumas das faces do deslocamento analíticoocorrido nos últimos anos. Hoje é claramente perceptível a mudança deregistro no debate, outrora centrado nas potencialidades de transformaçãodos novos atores da sociedade civil e agora preocupado com a proliferação

108 NOVOS ESTUDOS N.° 66

(52) Fontes, Breno Augusto."Estrutura organizacional dasassociações políticas voluntá-rias". Revista Brasileira de Ciên-cias Sociais (Anpocs), nº 32.outubro de 1996, pp. 43-46.

Page 19: 20080627 sem pena_nem_gloria

ADRIÁN GURZA LAVALLE

de formas inéditas de participação e exercício da cidadania, com as dinâmi-cas e alcances dos conselhos e outros espaços de participação publicamenteinstitucionalizados, com a gestão social de políticas públicas específicas ecom o advento de representatividades emergentes — representatividades,por sinal, de legitimidade e contornos ainda confusos53. Essa mudança temdesdobramentos analíticos relevantes em pelo menos três planos: as aná-lises sociológicas da ação social, tradicionalmente focadas em atores e/ousujeitos coletivos, agora esquadrinham as dinâmicas de espaços e ambien-tes institucionais (orçamento participativo, conselhos), assim como seusefeitos sobre os atores e interesses da sociedade civil neles representados;a tradicional dicotomia da filosofia política "sociedade civil/Estado", via deregra interpretada nas análises sociais em chave de antagonismo, recebehoje tratamento em termos de sinergia, complementaridade e conflituosi-dade animadas pela lógica política do governo da ocasião, e não pelascaracterísticas estruturais do Estado; por fim, o caráter enfaticamente norma-tivo da literatura dos anos 1990, engajada no esclarecimento da missãotransformadora da sociedade civil, cede passo a indagações mais preocupa-das com a compreensão empírica de processos em curso, notadamente osalcances, entraves e limitações das novas formas de interação entre asociedade civil e o Estado.

Ainda é cedo para delinear os traços que se tornarão distintivos naagenda da ação social da primeira década do século XXI, mas dois desdo-bramentos são certos e promissores: primeiro, não se tratará de simplesaggiornamento do debate dos anos 1990, visto que sua lógica analítica nãomais anima a reflexão e a pesquisa acadêmicas; segundo, após duas décadasde recíproco distanciamento, iniciado com o advento dos estudos sobretransições e com o simultâneo declínio da sociologia no cenário latino-americano, parece que a sociologia e a ciência política reencontram terrenopropício para a interlocução na análise de políticas públicas. A prudênciaaconselha não declarar findo tal distanciamento, mas sem dúvida ambas asdisciplinas podem vir ao encontro de uma compreensão mais abrangente dainteração entre o mundo das instituições da política e das políticas e o mun-do da ação social.

(53) Consulte-se aquele quetalvez seja até o momento oesforço mais consistente a bali-zar o deslocamento do debatesobre a sociedade civil: Dagni-no, Evelina (org.). Sociedadecivil e espaços públicos no Bra-sil. São Paulo: Paz e Terra,2002, particularmente os capí-tulos de Dagnino, Ana ClaudiaTeixeira, Leonardo Avritzer eLuciana Tatagiba. Cf., também,os seguintes trabalhos apresen-tados no XXVI Encontro Anualda Anpocs (Caxambu, 2002):Gestão urbana em São Paulo,2000-2002: atores e processosna questão dos conselhos, deMaria da Gloria Gohn, e Parti-cipação e arenas públicas: umquadro analítico para pensaros conselhos municipais e osfóruns de desenvolvimento lo-cal, de Gisele dos Reis.

Recebido para publicação em20 de fevereiro de 2003.

Adrián Gurza Lavalle é profes-sor do Departamento de Políti-ca da PUC-SP e pesquisador doCebrap. Publicou nesta revista"A longa transição: eleições eregime político no México" (nº58).

JULHO DE 2003 109