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Memória Popular: Patativa estende seus barbantes além, muito além do Ceará ● Regina da Costa da Silveira Roberta Moreira Freitas Nonada 13 2009 MEMÓRIA POPULAR: PATATIVA ESTENDE SEUS BARBANTES ALÉM, MUITO ALÉM DO CEARÁ POPULAR MEMORY: PATATIVA EXTENDS HIS STRINGS FAR BEYOND CEARÁ Regina da Costa da Silveira Roberta Moreira Freitas RESUMO Este ensaio é parte da pesquisa “A imaginação criadora e as expressões culturais identitárias nas literaturas em língua portuguesa, que empreende estudos sobre as literaturas brasileira, angolana e moçambicana, favorecendo o exercício da Lei 10.639/2003. Ao examinar traços da oralidade em textos literários da língua portuguesa e a representação do imaginário coletivo na identidade, busca-se valorizar a diversidade cultural na formação do sujeito. Nesse sentido, os procedimentos de leitura, análise e interpretação literária vêm precedidos dos seguintes objetivos: examinar a presença dos mitos, lendas e crenças populares e verificar as marcas de oralidade, o que aqui é direcionado para a literatura de cordel de Patativa do Assaré, no ano do centenário de seu nascimento. Justifica-se a escolha de Patativa, levando-se em conta que a literatura de cordel, como manifestação da memória coletiva, evidencia a desestabilização do saber normativo da língua ao incorporar a oralidade (Zumthor e Câmara Cascudo), ao mesmo tempo em que tensiona e reencena a tradição (Stuart Hall), com a dinâmica da cultura popular. PALAVRAS-CHAVE Literatura de cordel; cultura popular; oralidade; identidade; tradição ABSTRACT: This essay is part of the research project "The creative imagination and the identity of cultural expressions in literatures in Portuguese Language,” which undertakes studies on the Brazilian, Angolan, and Mozambican literatures, favoring the exercise of the Brazilian law 10.639/2003. As we examine traces of orality in Portuguese language literary texts and the representation of the collective imagination on the identity, we seek to highlight the cultural diversity in the formation of the subject. Accordingly, the procedures of reading, analysis, and literary interpretation come preceded by the following objectives: examine the presence of myths, legends, and popular beliefs and assess orality marks, which are here directed to Patativa do Assaré’s cordel literature on the centennial year of his birth. The choice of Patativa is therefore justified, taking into account that cordel literature, as a manifestation of the collective memory, highlights the destabilization of the normative knowledge of the language as it incorporates the orality (Zumthor and Câmara Cascudo), to the pairing form-content. KEYWORDS: Cordel literature; popular memory; orality; cultural identity 1 Cultura popular e tradição Costuma-se dizer que uma das maneiras de um povo reafirmar sua identidade cultural é preservar suas tradições. De fato, com Stuart Hall (2003) aprendemos que à história da “cultura popular” liga-se a expressão “tradição popular, e esta é vista como

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Memória Popular: Patativa estende seus barbantes além, muito além do Ceará

● Regina da Costa da Silveira

Roberta Moreira Freitas

Nonada ● 13 ● 2009

MEMÓRIA POPULAR: PATATIVA ESTENDE SEUS BARBANTES ALÉM,

MUITO ALÉM DO CEARÁ

POPULAR MEMORY: PATATIVA EXTENDS HIS STRINGS FAR BEYOND

CEARÁ

Regina da Costa da Silveira

Roberta Moreira Freitas

RESUMO

Este ensaio é parte da pesquisa “A imaginação criadora e as expressões culturais identitárias nas

literaturas em língua portuguesa”, que empreende estudos sobre as literaturas brasileira, angolana e

moçambicana, favorecendo o exercício da Lei 10.639/2003. Ao examinar traços da oralidade em textos

literários da língua portuguesa e a representação do imaginário coletivo na identidade, busca-se valorizar

a diversidade cultural na formação do sujeito. Nesse sentido, os procedimentos de leitura, análise e

interpretação literária vêm precedidos dos seguintes objetivos: examinar a presença dos mitos, lendas e

crenças populares e verificar as marcas de oralidade, o que aqui é direcionado para a literatura de cordel

de Patativa do Assaré, no ano do centenário de seu nascimento. Justifica-se a escolha de Patativa,

levando-se em conta que a literatura de cordel, como manifestação da memória coletiva, evidencia a

desestabilização do saber normativo da língua ao incorporar a oralidade (Zumthor e Câmara Cascudo), ao

mesmo tempo em que tensiona e reencena a tradição (Stuart Hall), com a dinâmica da cultura popular.

PALAVRAS-CHAVE

Literatura de cordel; cultura popular; oralidade; identidade; tradição

ABSTRACT:

This essay is part of the research project "The creative imagination and the identity of cultural

expressions in literatures in Portuguese Language,” which undertakes studies on the Brazilian, Angolan,

and Mozambican literatures, favoring the exercise of the Brazilian law 10.639/2003. As we examine

traces of orality in Portuguese language literary texts and the representation of the collective imagination

on the identity, we seek to highlight the cultural diversity in the formation of the subject. Accordingly, the

procedures of reading, analysis, and literary interpretation come preceded by the following objectives:

examine the presence of myths, legends, and popular beliefs and assess orality marks, which are here

directed to Patativa do Assaré’s cordel literature on the centennial year of his birth. The choice of

Patativa is therefore justified, taking into account that cordel literature, as a manifestation of the

collective memory, highlights the destabilization of the normative knowledge of the language as it

incorporates the orality (Zumthor and Câmara Cascudo), to the pairing form-content.

KEYWORDS:

Cordel literature; popular memory; orality; cultural identity

1 – Cultura popular e tradição

Costuma-se dizer que uma das maneiras de um povo reafirmar sua identidade

cultural é preservar suas tradições. De fato, com Stuart Hall (2003) aprendemos que à

história da “cultura popular” liga-se a expressão “tradição popular”, e esta é vista como

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um dos principais locais de resistência ao modo pelo qual as transformações do povo

são buscadas, reafirmando-se, assim, como termo vital da cultura. Não obstante, o

jamaicano dos estudos culturais inquieta-nos a seguir, ao considerar a tradição como

“termo traiçoeiro da cultura popular”, uma vez que, segundo ele, “a tradição é um termo

que tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas” (HALL, 2003, p. 259).

Mais instigadora ainda são suas afirmações de que a cultura popular não seria

representada pelas tradições populares de resistência, tidas como meramente

conservadoras; sequer pelos processos de reconfiguração que advêm das formas de vida

dos trabalhadores, das relações estabelecidas uns com os outros. Segundo Hall, “A

cultura popular não é, num sentido „puro‟, nem as tradições populares de resistência a

esses processos, nem as formas que a sobrepõem. É o terreno sobre o qual as

transformações são operadas.” (Idem, ibidem, p. 248-249). Por essa via, o princípio

estruturador do popular seriam as tensões entre o que pertence e o que não pertence ao

povo, gerando a oposição “popular e não-popular”, o que também depende da época,

pois as coisas deixam de ter um alto valor cultural para num outro momento serem

apropriadas pelo popular.

Ao afirmar que “Quase todo inventário fixo nos enganará”, Hall (2003, p.258)

lembra oportunamente Bakhtin/Volochínov e o conceito de “comunidade semiótica”.

Diferente de classe social, a comunidade semiótica se utiliza de um único e mesmo

código ideológico de comunicação, de tal modo que classes sociais diferentes servem-

se de uma só e mesma língua, o que confere ao signo ideológico um caráter eterno e

monovalente. Verificar como se processam as mudanças mediante a inserção da

literatura de cordel e com esta o registro da oralidade no meio acadêmico, nas

instituições culturais que têm, entre suas atribuições como adiante Hall nos ensina, a de

policiar as fronteiras que estabelecem o limite entre o popular e o não-popular, eis uma

de nossas propostas antes de verificarmos a contribuição que nesse sentido a obra do

cordelista Patativa do Assaré oferece.

2. Produção popular e folclore

Para tratar de tradição, Câmara Cascudo considera o universo em que a produção

popular e folclórica podem apresentar-se de modo distinto. Mas o que é o folclore? Em

“A literatura oral no Brasil”, o autor dirá que

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A literatura folclórica é totalmente popular, mas nem toda produção popular é

folclórica. Afasta-a do Folclore a contemporaneidade. Pode manter as cores

típicas de uma região [...] mas não será folclórica na legitimidade da

expressão. Os elementos característicos do folclore são: a) antiguidade; b)

persistência; c) anonimato; d) oralidade. [...] Natural é que uma produção que

se popularizou seja folclórica quando se torne anônima, antiga, resistindo ao

esquecimento e sempre citada, num ou noutro meio denunciador da

predileção ambiental. O folclórico decorre da memória coletiva, indistinta e

contínua. Deverá ser sempre popular e mais uma sobrevivência. (CASCUDO,

1984, p. 24).

Visto como decorrência da memória coletiva e em sua distinção diante da

produção popular, o conceito que Câmara Cascudo confere ao folclore reabre a

discussão, tão cara a Stuart Hall anos depois, em torno do que é popular e do que não é.

Por essa via “indistinta e contínua” que bem caracteriza o folclórico, talvez se possa

melhor entender a expressão “„grande tradição‟”, usada por Hall, e que Belinsky,

argentino que se dedica aos estudos do imaginário, denominou mais recentemente de

“ponto cego”1 da cultura. Pelos estudos de Hall, o processo cultural dependeria da

delimitação, “sempre em cada época num local diferente”, entre o que deve ou não ser

incorporado à grande tradição. Importante é o que ele pondera sobre as nossas escolas,

dizendo que, no intento de disciplinar e policiar essa fronteira, as escolas e outras

instituições culturais cumprem, dentre os papéis que desempenham, a de partícipes

vigilantes.

3. A literatura de cordel: uma ameaça às fronteiras?

No Brasil e em países como na França, o cordel que provém da Região Nordeste

vem ocupando espaço privilegiado como gênero artístico-literário. Os versos

apresentam-se em forma de poesia rimada, e quando sua performance ocorre via oral

(canção) e gestual (representação), a literatura de cordel ganha vida e contribui ainda

mais para propagar as histórias e narrativas populares do Nordeste brasileiro, que são

autênticas manifestações de oralidade.

1 Referimo-nos a Jorge Belinsky (2007), autor de Lo imaginario: um estudio. Buenos Aires: Ediciones

Nueva Visón, 2007.

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Mas Zumthor (2000, p. 51) dirá que a oralidade marca nossa tradição cultural

ocidental, e esta “profundamente interiorizada, determinou até época bem recente

muitos de nossos sentimentos e opiniões correntes”, e mesmo quando escrita, a

linguagem ainda é “sentida como vocal” (Ibid.). O autor considera a performance uma

noção central no estudo da comunicação oral, sempre acompanhada da forma, e a voz,

em sua “qualidade de emanação do corpo [...] que, em nível sonoro, o representa

plenamente”. Também considera a percepção que, segundo ele, é “essencialmente

presença” (ZUMTHOR, 2000, p. 98). Então o leitor sente a poesia presente em si e se

sente presente nela, e a voz vai se interiorizando na medida em que a poesia vai

permanecendo para além da “verdade da ficção”, mais próxima ao que Antonio Candido

chamou de a “verdade da existência” (CANDIDO, 1987, p. 78). Assim, a poesia

[...] atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um

sujeito que não se reduz à localização pessoal. [...] enquanto falo, minha voz

me faz habitar a minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e

me libera dele. (ZUMTHOR, 2000, p. 98).

Conforme Luyten (2007), o predomínio da oralidade nas manifestações

populares se deve ao fato de boa parte da população não ter tido acesso a uma

escolaridade regular, o que faz com que muitas pessoas se utilizem do recurso da

memorização para garantir a perpetuação da tradição cultural, ou seja, o repasse dessa

cultura de geração a geração. Zumthor (2000, p. 76), por sua vez, adverte: “Mas a

memória implica „reiteração‟, incessantes variações re-criadoras.” Nessas reflexões

contemporâneas, ressurgem antigas idéias que remetem ao século IV a.C., época em que

a escrita surge para o registro da oralidade, forma de comunicação entre os indivíduos à

época de Platão. “A escrita destrói a memória”, “A escrita enfraquece a mente”,

comenta Walter Ong (1998, p. 94), ao lembrar as preocupações de Platão no Fedro. Ao

que acrescenta: “Se pedirmos a um indivíduo para explicar esta ou aquela afirmação,

podemos obter uma explicação; se fizermos a um texto, não obteremos nada, exceto as

mesmas(...)”. (Idem, ibidem, p. 94-95).

Os gêneros mais comuns de manifestação oral seriam, pois, a poesia (fixa e

móvel) e a prosa. Luyten (2007) menciona os poemas e versos decorados e passados

adiante, as canções infantis e de ninar e as histórias rimadas, como exemplos de poesia

fixa ou tradicional, conforme Cascudo (2000). De forte teor emotivo e com algum

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ensinamento, ela tende a se manter coesa em torno de um acontecimento e a perdurar,

tendo sido registrada ou não. Já os repentes, os desafios e as pelejas (poesia móvel) são

improvisações de poetas cantadores a sós, em duplas (repentes) ou com mais pessoas

(desafios ou pelejas), em que vence o que conseguir rimar por mais tempo,

acompanhando o outro através dos diversos ritmos e estruturas poéticas diferentes. Por

ser raramente registrada, a poesia móvel tende a se perder para sempre na memória. Os

contos, as lendas e o teatro compõem a prosa. Já os ditados e os provérbios podem se

apresentar tanto sob a forma de prosa como de poesia.

Segundo Debs (2009), o termo “poesia popular” foi muitas vezes mencionado

com certo desprezo, considerando-a “literatura menor por oposição à Literatura”. A

simplicidade dos temas abordados e das idéias tratadas, a facilidade de versificação e a

ingenuidade dos sentimentos expressos eram associados à banalidade de rimas, à falta

de originalidade, à pobreza de vocabulário e à riqueza estilística limitada, simbólica e

indigente. No contexto nordestino, todavia,

é preciso recordar que a poesia popular inscreve-se na tradição oral desta

região do interior: um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do

meio rural, em geral analfabeto, improvisa ou narra, graças à sua memória

prodigiosa, “a história dos homens famosos da região, os acontecimentos

maiores, as aventuras de caçadas e de derrubadas de touros, enfrentando os

adversários nos desafios que duram horas e noites inteiras, numa exibição

assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional”.

(DEBS, 2009, p. 1).

Lima (apud CASCUDO, 2000, p. 334) observa que os relatos oral e tradicional

podem ter contornos verossímeis ou não. Segundo ele, “há contos que produzem a

realidade vivida, mas também há os que se situam no âmbito do maravilhoso e do

sobrenatural”.

Todos os autos populares, danças dramáticas, as jornadas dos pastoris, as

louvações das lapinhas, Cheganças, Bumba-meu-boi, Fandango, Congos, o

mundo sonoro e policolor dos reisados, aglutinando saldos de outras

representações apagadas na memória coletiva, resistindo numa figura, num

verso, num desenho coreográfico, são os elementos vivos da literatura oral.

(CASCUDO, 1984, p. 24).

A persistência talvez seja o forte traço característico que mantém viva a

literatura oral. Para Cascudo (2000), as duas fontes contínuas que a preservam são a

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exclusivamente oral e a de cordel (reprodução escrita e versificada desse tipo de

literatura).

4 – Origens e estrutura da Literatura de Cordel

A denominação Literatura de Cordel tem origem na Península Ibérica do século

XVII, mais especificamente em Portugal, quando se produziam pequenos livrinhos que

eram expostos à venda pendurados ou “cavalgados em barbantes” (CASCUDO, 2000,

p. 333). No Brasil, o cordel encontrou espaço privilegiado na região Nordeste,

aparecendo em proporção muito maior do que a prosa. “A Literatura de Cordel dá um

sentido de uniformidade às criações dos poetas populares pela circunstância especial de

se apresentar impressa, reproduzida de textos previamente manuscritos”. (CASCUDO,

1994, p. 24).

A parte impressa compreende menos de 1% da poesia realmente feita no nível

popular. Segundo Luyten (2007), os livretos costumam ser produzidos pelo próprio

autor e a custo mínimo: capas de papel de embrulho comum com reprodução de

xilogravura e folhetos de tamanho equivalente a oito páginas por papel sulfite (a partir

de uma folha dobrada em quatro partes). Os temas são populares, do imaginário, com

fortes origens rurais, religiosidade, crendices, fatalismos da natureza e heróis da região,

ingressando no patrimônio de cultura oral.

Tendo em vista que o cordel subverte a ordem do sagrado, na medida em que ele

é profano ao criticar figuras da ordem do sistema, é importante fazer uma diferença

entre um ritual religioso e o poema:

Entre um ritual religioso e um poema oral [...] a diferença está na „presença

ou ausência do sagrado‟. No ritual, „o discurso se dirige aos poderes que

regem a vida‟; na poesia, à comunidade humana, com diferenças de

finalidade, de destinatário, mas não da própria natureza discursiva.

(ZUMTHOR, 2000, p. 53).

Zumthor (2000, p. 102) afirma que, na cotidianidade dos discursos ou na

expressão informativa,

a poesia opera a extensão da própria linguagem, assim exaltada,

promovida ao universal. Pouco importa que ela seja ou não entregue à

escrita. A leitura torna-se escuta, apreensão cega dessa transfiguração,

enquanto se forma o prazer, sem igual. (ZUMTHOR, 2000, p. 102)

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Para Cascudo (1984, p. 24), a produção contemporânea pelos antigos processos

de versificação popularizada fixa “assuntos de época, guerras, política, sátira, estórias

de animais, fábulas, ciclo do gado, caça, amores, incluindo a poetização de trechos de

romances famosos tornados conhecidos”. Isso se deve à facilidade com a qual a poesia

popular nesses locais é difundida, seja através de cantorias em grupo seja da forma

escrita.

A literatura de Cordel é considerada um dos elementos de maior

comunicabilidade dos meios populares, [...] parte da folk-comunicação, isto

é, sistemas de comunicação por meio dos fenômenos folclóricos [...] do povo

para o povo. (LUYTEN, 2007, p. 8).

Mesmo que boa parte da poesia oral se perca, em função de ser improvisada na

maioria das vezes, é nos muitos livrinhos impressos e na memorização que a Literatura

de Cordel se perpetua. Luyten (2007) observa que as sociedades humanas, quando são

iletradas, utilizam-se desse último recurso para guardar o que acham importante. “Daí a

tendência de ordenar toda espécie de mensagem em forma poética. O ritmo das frases e

a semelhança das partes finais ou iniciais facilitam tremendamente a memorização.”

(LUYTEN, 2007, p. 11). Na hora de passar para o papel esse ritmo, essa poesia musical,

o que se obtém são formas perfeitas de metrificação, como a Sextilha (forma mais

comum, com estrofes de 6 versos de 7 sílabas cada e rimas no 2º, no 4º e no 6º verso), a

Décima (com estrofes de 10 versos com 7 sílabas cada), o Martelo Agalopado (10

versos com 10 sílabas cada), o Quadrão (de 8 a 10 versos em cada estrofe) e a

Quadrinha (com 4 versos). Também pode estar estruturada sob a forma de “abecês”

(forma popularmente conhecida, em que cada estrofe ou cada s com uma letra do

alfabeto).

Em O mundo no papel (1997), David Olson assinala que o aumento considerável

dos planos de erradicação do analfabetismo entre as políticas governamentais e os

movimentos socialistas do séc. XX, do mundo inteiro, deve-se ao objetivo de solucionar

problemas sociais, como a pobreza e o desemprego. Com isso, “as democracias

ocidentais modernas aspiram a erradicar o analfatismo” e “as escolas são estimuladas

rotineiramente a elevar os padrões de alfabetização dos estudantes.” Diante dessas

considerações, o autor indaga-se: “De onde vem este entusiasmo pela escrita?”

(OLSON, 1997, p. 18). Suas considerações revelam que esse entusiasmo se deve ao fato

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de que as concepções sobre a escrita, “simples artefato tecnológico”, vinculam-se à

superioridade cultural, sustentadas nos “mitos” de que a fala, vista como propriedade do

povo, seria solta e desregrada.

5 – Em busca da identidade do cordelista e do seu papel nessa arte popular de

criar e recitar.

A identidade do poeta popular é a identidade do seu povo, de sua cultura, de suas

crenças, sonhos, sofrimento e lutas. O cordelista nordestino, em especial, registra a

história de vida de sua gente, com sua trajetória de dor e/ou de glórias, mas sobretudo

uma quase apologia a suas origens. Sylvie Debs assim define a obra de Patativa:

Poesia telúrica, colhida da terra, dos roçados como se estivesse apanhando

feijão, arroz, algodão, ou quebrando milho e arrancando batata e mandioca.

Sua inspiração não é fruto de estudos. Ela germina dentro de si como a

semente nas entranhas da terra. Testemunha um modo de vida, elabora uma

identidade. (DEBS, 2009, p. 1-2).

Se não os tem de modo espontâneo, ele busca se apropriar ao máximo dos

costumes e do linguajar do seu povo, indo aos locais mais inóspitos, se preciso for.

Vasculha a fundo os mistérios de um linguajar característico e causador de

estranhamento escondidos em cada rosto humilde.

Como um narrador-testemunha, ele ouve, pesquisa e registra o que é seu por

herança, e tem a missão de ser o porta-voz, o rapsodo, o representante de sua gente no

seu país e no mundo.

É certo que, como assevera Luyten (2007), e nisso encontramos correspondência

com os estudos de Stuart Hall, a cultura popular abrange todos os setores da vida de um

povo, e geralmente indica certa oposição à cultura oficial, erudita. Ela se manifesta com

maior vigor em sociedades nas quais a divisão de classes é acentuada. Sendo assim, um

dos papéis principais do cordelista é unir a tradição musical do local (nos repentes,

desafios e pelejas, comuns dos teatros populares) aos recursos da poesia metrificada,

rimada e ritmada (para facilitar a memorização), ou seja, produzir pela oralidade, sons,

nas performances do corpo e na escrita, como tempero que dá sabor especial ao seu

trabalho, e apresentar o resultado dessa produção aos estrangeiros (de cá e de lá), para

dar o seu recado, o recado de seu povo.

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Considerando a influência das tradições dos trovadores, dos repentistas, dos

violeiros e da literatura de cordel, é forçoso reconhecer na voz do poeta

popular o eco dos sofrimentos, das alegrias e das desgraças da população

nordestina do sertão. (DEBS, 2009, p. 1).

Se a poesia, com ou sem fixação tipográfica, “foi feita para o canto, para a

declamação, para a leitura em voz alta”, como defende Cascudo (1984, p. 24), então ela

se constitui num poderoso aliado para a propagação da voz. E a voz é o instrumento

sagrado do cordelista. Através da poesia performática, a voz do poeta popular ganha o

mundo, e os barbantes do nordeste brasileiro não são mais limite para os seus registros:

“Por e na voz, a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou em

nós”. (ZUMTHOR, 2000, p. 100). Tendo a voz como instrumento e a poesia como

aliada, o cordelista representa sua comunidade, brigando e por ela reivindicando. E o

corpo, de coadjuvante no ato performático, passa a exercer uma função tão importante

quanto a própria voz.

O texto poético significa o mundo. E pelo corpo que o sentido é aí percebido.

O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é

sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível,

do tangível. [...] ele é muito mais do que o objeto de um discurso

informativo. (ZUMTHOR, 2000, p. 90).

Por fim, a última (se não a principal) tarefa do cordelista: capturar o leitor, o

ouvinte ou o espectador, conterrâneo ou estrangeiro, de cá ou de lá. Conforme Zumthor

(2000, p. 89), “o discurso que alguém me faz com o mundo [...] constitui para mim um

corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele; ação dupla,

reversível, igualmente válida nos dois sentidos.” De nada adianta o talento do artista

popular, a performance da voz, a gestualidade do corpo, a poesia e o sentimento de

dever do emissor para com a sua gente se não houver relação recíproca de entendimento

e identificação com o receptor. Adiante, seguindo a reflexão de Olson, serão aqui

discutidos os efeitos da transposição do cordel expresso de forma oral para a escrita.

6 – Patativa do Assaré e o Cordel – fortuna crítica

Eu venho dêrne menino

dêrne muito pequenino,

cumprindo o belo destino

que me deu Nosso Senhor (Patativa do Assaré)

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E o impacto do mar e de tantas águas para quem saía de um sertão castigado pelas secas.

(Gilmar de Carvalho)

Antônio Gonçalves da Silva, cordelista cearense conhecido em todo o nordeste

brasileiro como Patativa do Assaré, recebeu esse nome no Pará por analogia ao pássaro

da Chapada do Araripe.2 Nasceu em 5 de março de 1909, na Serra de Santana,

município cearense de Assaré. Alfabetizou-se aos oito: “Juntou as sílabas, formou as

palavras. Foi o suficiente [...]. Singularizou-se pela ode performática e oral.”

(FEITOSA, 2009b, p. 1).

Mas além de sua formação alicerçada no cordel e nas cantorias dos repentes,

Patativa leu os clássicos: Camões, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Machado de Assis

e Olavo Bilac. O rádio foi fundamental para a propagação dos poemas de Patativa. Cego

de um olho, em sua peregrinação, semelha-se Patativa aos rapsodos da Grécia antiga, e

sua cegueira parcial é atributo físico que o aproxima ainda mais do poeta cego Homero3.

Sabe-se das dificuldades que Patativa enfrentou para chegar a Fortaleza, do trem ao Ita

do Nordeste. Graças a sua arte de compor e recitar versos, sua biografia registra

memorável ascensão, assegurando-lhe estender seus barbantes para além, muito além do

Ceará:

É quando se pode falar em seu processo criativo, solitário, muitas

vezes ao trabalhar o chão, quando imaginava uma cena e os versos se

acumulavam, como se fossem camadas dessa mesma terra que se

justapunham. Depois, era só copiar, à noite, à luz da lamparina e o

poema estava pronto. (CARVALHO, 2001, p. 31).

De sua biografia, o registro de que Patativa do Assaré faleceu aos 93 anos, em 9

de julho de 2002. Em 2009, assistimos às suas memórias em Ave Poesia, filme de

2 Patativa, segundo Dicionário Houaiss, é ave passeriforme da família dos emberizídeos, encontrada nas

regiões meridionais e setentrionais do Brasil e em países adjacentes; com cerca de 10,5 cm de

comprimento.

3 Rapsodo cego, Homero viveu provavelmente no séc. VIII a.C. Apresentava-se de pé, apoiado em um

bastão, peregrinava pelas cortes e ágoras, os mercados públicos das polis daquela época, a recitar cantos,

lembrando feitos de heróis, seus antepassados. Patativa, por sua vez, além da cegueira parcial, sofrera um

acidente na via pública em Fortaleza e, por isso, caminhava apoiando-se também num bastão.

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Rosemberg Cariry, de quem já conhecíamos o artigo “Patativa do Assaré – um mestre

da poesia popular”, de 1987, no livro Ispinho e Fulo.

7 – A poesia de Patativa do Assaré

À poesia de Patativa, conforme Nascimento, precede um período de escuta:

Com sua sensibilidade poética, Patativa abriu as veredas do sertão, entrou na casa

de taipa, coberta de palha, ouviu estórias de lobisomem, caiporas e almas penadas,

contadas à beira do fogo, nos terreiros das choupanas mais humildes do sertão

sem luz elétrica, sem rádio, sem televisão. (NASCIMENTO, 1995, p. 12).

Assim, pode-se afirmar que sua poesia se iniciou de forma aparentemente

tímida, simplória, preocupada apenas em aproximar o leitor da cultura dos sertanejos

nordestinos, cujo vocabulário sempre foi rico em traços característicos de oralidade que

desestabilizam o saber normativo da língua.

A oralidade é, pois, um “recurso que não perde em Patativa sua missão

comunicativa. Sua voz está a serviço da verdade, da vida e dos homens. [...] por meio da

poética oral, luta incansavelmente pela sua terra e pela sua gente.” (FEITOSA, 2009a,

p. 1). Teve sua obra, seus versos, permeados “pelo uso de uma memória oral que a

caracteriza como testemunhal, „documental‟”. (SILVA, 2009, p. 1):

A versificação utilizada, em geral a sextilha hexassilábica ou a décima

heptassilábica de rimas contínuas, parece mais ser a expressão de uma técnica

de memorização do que a expressão de uma forma poética erudita, a serviço

da transmissão de um „saber simbólico: ciência, cultura popular, tradição‟.

[...] A declamação se atém ao essencial: a narrativa dos acontecimentos. [...]

Sob essa aparente ingenuidade, esconde-se uma profunda experiência da vida

cotidiana que confere uma dimensão simbólica determinante à sua obra.

(DEBS, 2009, p. 1).

Em função de todas essas características, Patativa foi evoluindo e sua poesia

adquiriu um teor mais crítico e politizado, conservando sempre a pureza do traço

lamentoso e triste do seu povo em cada verso. Seu canto mítico se personificou “num

pio de pássaro, que ora canta, ora soluça”. (FEITOSA, 2009a, p. 1). Considerada poesia

realista, “crua, rude e provocante”, conforme Nascimento na apresentação do livro

Patativa e o universo fascinante do sertão, a poesia de Patativa

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mexeu com o rico, mitigou a ferida social do pobre caboclo e conclamou a

todos para uma tomada de posição diante das injustiças. A poesia de Patativa

recobra a força original da mensagem evangélica, desmascarando o

comodismo daqueles que entendem que Deus é o responsável pelo estado de

pobreza dos nordestinos, induzidos assim ao conformismo e à passividade.

(NASCIMENTO, 1995, p. 12).

De acordo com Feitosa (2009, p. 1), ele foi “um poeta plural. Cantou as agruras

e as alegrias sertanejas, a natureza e a cultura, o universal e o regional, sempre buscando

a correção do social e a igualdade entre os homens.”

8 – O registro da obra de Patativa e uma importante descoberta

A transcrição da obra de Patativa para os meios gráficos “perde boa parte da

significação expressa por meios não-verbais (voz, entonação, pausas, ritmo, pigarro e a

linguagem corporal através de expressões faciais, gestos) que realçam características

expressas somente no ato performático (como ironia, veemência, hesitação, etc.).”

(ASSARÉ, 2009b, p. 1). Todavia, é sobre seu registro escrito que o pesquisador poderá

compreender “a genialidade do trovador nordestino, cuja amplitude dos versos – seja

temática, seja de gênero – sempre encantou e intrigou seus ouvintes e leitores, inclusive

os acadêmicos” (ASSARÉ, 2009a, p. 1), sempre trazendo temas, “imagens, recursos

estilísticos que atestam o domínio e a familiaridade de Patativa com valores de uma

poesia cultivada para além do cânon da poesia sertaneja.” (JUNIOR, 2009, p. 2). Em

outras palavras: “a complexidade da obra de Patativa é evidente [...] pela sua capacidade

de criar versos tanto nos moldes camonianos [...], como poesia de rima e métrica

populares.” (PATATIVA DO ASSARÉ, 2009b, p. 1):

Sua poesia experimentou as cantorias e seus desafios, o cordel e sua dicção

repentista, a alfabetização iniciática e as leituras dos clássicos da poesia

universal. Atravessou o limiar dos terreiros para se abrigar nas praças, junto

aos feirantes. Invadiu as ondas do rádio e se difundiu na mídia de tal maneira

que não há como classificá-lo entre “popular” e “erudito”, “regional” e

“universal”, pois o canto de Patativa é eterno e universal. (SANTOS, 2009, p. 1).

Luiz Tadeu Feitosa, por sua vez, assevera:

Sabedoria e uma quase mediunidade, inocência e muita sagacidade misturam-

se nesse sistema perceptivo. Vários códigos o compõem. Ele é mais do que

mídia, é uma complexa comunicação em ininterrupto processo. Comunicação

de uma lógica pouco conhecida, mas reveladora e envolvente. (FEITOSA,

2009a, p. 1).

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Em continuidade, o autor afirma que a presença de Patativa ocorrera junto aos

“principais acontecimentos da vida do país, não como testemunha, mas como ator

social. De sua idílica Serra de Santana, fez ecoar seu canto e interferiu na cena

brasileira, com a força de uma voz poética e profética.” (FEITOSA, 2009b, p. 2). É o

caso do poema intitulado “Antônio Conselheiro” cujos versos dão conta do mito

presente na história da rebelião de Canudos, interior da Bahia.

No Brasil, Patativa fora reconhecido de modo especial após pesquisas realizadas

no exterior, sobretudo na França, com seu tradutor para o francês, Jean-Pierre Rousseau,

e Sylvie Debs4. Entre os estudantes brasileiros, acadêmicos de Letras, seu nome causou

estranhamento na maioria das universidades brasileiras quando, na virada deste século,

figurou dentre a lista de escritores selecionados para o ENADE, chamado à época

Provão do MEC. Hoje o poeta de Assaré é referência de norte a sul do País,

evidenciando que o saber normativo da língua convive com a sabedoria popular e com

os avessos da língua culta. A diversidade na produção de Patativa é evidenciada nas

obras em que o próprio poeta diferenciava seus versos feitos em linguagem culta – ou

próxima dela – (“Antônio Conselheiro” e “História de Aladim e a lâmpada

maravilhosa”) daqueles denominados de poesia “matuta” (“O Poeta da Roça”, “Ispinho

e fulô”, “Linguage dos óio”). De toda sorte, ele anunciava aos poetas da cidade: “Cante

lá que eu canto cá”, conforme vem intitulada uma de suas obras.

Comprova-se a hípótese de o cordelista manter, junto à língua padrão da norma

culta, o perfil dos personagens, ao resgatar as lendas que provêm do imaginário

europeu: Da África tinha chegado/Aquele belo garoto/ [...] um velho misterioso/

tinha um leal coração/De aspecto desumano/[...] O feiticeiro Africano/Essa visão era

um gênio/ que o anel obedecia/ Mas o verdadeiro herói/ Com paciência sofria

(PATATIVA DO ASSARÉ, 2000, p. 41 e 51). Todavia, incluem-se também os mitos do

Nordeste reproduzidos com essas características. No poema “Antônio Conselheiro”,

Patativa conta a história do herói e líder do povo nordestino, Antônio Conselheiro, que

virou mito: Desta forma, na Bahia,/Sonhava com o luzeiro/Crescia a comunidade./Da

aurora da nova vida./E ao mesmo tempo crescia/Era qual outro Moisés/ Uma bonita

4 No documentário “Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry (2009), dentre os depoimentos críticos à obra de

Patativa, destacam-se Sylvie Debs e Jean-Pierre Rosseau.

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cidade./Conduzindo os seus fiéis/Já o Antônio Conselheiro/ Para a terra

prometida.”(PATATIVA DO ASSARÉ, 1994).

Seja na vertente da linguagem “culta”, seja na da linguagem “matuta”, o apelo à

religiosidade se fixa quase como uma marca registrada. A presença da metalinguagem

funciona como uma justificativa para a sua criação. É o caso de “O Poeta da Roça”:

Cada um na vida tem/Meu verso rastero, singelo e sem graça,/Seu direito de

julgar./(...)com razão quero falar/Nas pobre paioça, da serra ao sertão.” (PATATIVA

DO ASSARÉ, 2000, p. 20).

Resultado da leitura dos poemas e da revisão da fortuna crítica de Patativa, boa

parte das nossas reflexões encontra-se aqui resumidamente neste ensaio. Deparamo-nos

desde o início com a constante tensão no terreno em que batalham a “letra e a voz”, para

usar a expressão de Zumthor. A começar pela expressão “literatura oral”, tão cara a

Câmara Cascudo, sobre a qual o autor declara ser paradoxal, uma vez que literatura

provém de littera/letra, a escrita em oposição a oralidade. De acordo com os estudos

culturais de Stuart Hall, foi possível estender um pouco mais as questões que

polemizam o que diz respeito ao saber normativo da língua, diante da expressão da

cultura popular que a língua falada representa.

Entendemos que registrar a fala, e nesse caso a do matuto cearense, é gerar

tensão no território em que se introduzem as grandes transformações da língua. E se “a

poesia oral improvisada é uma arte universal, com longas e diversificadas trajetórias em

quase todos os continentes”, como já afirmaram Pimentel e Corrêa (2008, p.5), é preciso

reafirmar a ocorrência de impacto que essa arte universal dos menestréis e rapsodos

pode causar ao servir-se de uma língua, de modo acentuado e na maioria das vezes,

distinta do padrão da norma culta, gerando, afinal, desassossego nos leitores menos

avisados.

Ao escrever ora na língua culta padrão, como a História do Aladim e a lâmpada

maravilhosa (PATATIVA DO ASSARÉ, 2000, p. 39-72) ora na língua que registra a

oralidade do homem do interior brasileiro, Ispinho e fulô, Patativa torna-se mediador da

cultura popular; inscreve-se mediante o princípio estruturador do popular representado,

como se evidenciou no início deste ensaio de acordo com Hall, pelas tensões entre o que

pertence e o que não pertence ao povo, gerando a oposição “popular e não-popular”.

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Pelos registros da escrita, a poesia dos cordelistas é arte que preserva o

folclórico, com temas do imaginário popular, tais como as lendas, os mitos e a

religiosidade, incorporando-se ao que se convencionou denominar aqui de grande

tradição (HALL, 2003) e de ponto cego (BELINSKY, 2007). Contudo, é arte que

também se desnuda para dar conta de comunidades semióticas diversificadas. Patativa

do Assaré tem o domínio da norma culta, graças às leituras dos clássicos: Camões,

Castro Alves, Machado de Assis. Não obstante, privilegia os registros da oralidade, a

linguagem coloquial do agricultor pobre do sertão.

Ao atentar para os registros da oralidade com a leitura dos poemas de cordel,

modificam-se os currículos do ensino de língua e de literatura, conquanto que o ensino

não mais ocorrerá mediante um único código, monovalente e eterno, que privilegia a

língua escrita padrão, por vezes distante da realidade social da grande maioria dos

indivíduos. Com a introdução dos estudos críticos da literatura de cordel, confere-se às

escolas, universidades e demais instituições culturais não apenas a função de policiar as

fronteiras do saber, entre o código de comunicação que pertence à cultura popular e o

que não pertence, mas esses locais de cultura se tornam palco em que se travam as

grandes transformações, capazes de examinar a oralidade como “marca de nossa

tradição cultural ocidental” (ZUMTHOR, 2000), mas de modo especial como marca da

tensão e do confronto que reencena e ao mesmo tempo desacomoda a tradição presa ao

passado.

Referências

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Regina da Costa da Silveira é professora titular do UniRitter, Porto Alegre, RS,

Editora de Nonada Letras em Revista, com doutorado em Letras Literatura Brasileira

pela UFRGS.

Roberta Moreira Freitas é acadêmica do Curso de Letras, UniRitter, bolsista

FAPERGS e ilustradora dos livros: RIBOLDI, Ari. O bode expiatório. (v. 1). Porto Alegre, Ed. AGE, 2007.

__________. Cabeça de bagre. Porto Alegre, Ed. AGE, 2008.

Memória Popular: Patativa estende seus barbantes além, muito além do Ceará

● Regina da Costa da Silveira

Roberta Moreira Freitas

Nonada ● 13 ● 2009

RIBOLDI, Ari. O bode expiatório. (v. 2). Porto Alegre, Ed. AGE, 2009.