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Memória Popular: Patativa estende seus barbantes além, muito além do Ceará
● Regina da Costa da Silveira
Roberta Moreira Freitas
Nonada ● 13 ● 2009
MEMÓRIA POPULAR: PATATIVA ESTENDE SEUS BARBANTES ALÉM,
MUITO ALÉM DO CEARÁ
POPULAR MEMORY: PATATIVA EXTENDS HIS STRINGS FAR BEYOND
CEARÁ
Regina da Costa da Silveira
Roberta Moreira Freitas
RESUMO
Este ensaio é parte da pesquisa “A imaginação criadora e as expressões culturais identitárias nas
literaturas em língua portuguesa”, que empreende estudos sobre as literaturas brasileira, angolana e
moçambicana, favorecendo o exercício da Lei 10.639/2003. Ao examinar traços da oralidade em textos
literários da língua portuguesa e a representação do imaginário coletivo na identidade, busca-se valorizar
a diversidade cultural na formação do sujeito. Nesse sentido, os procedimentos de leitura, análise e
interpretação literária vêm precedidos dos seguintes objetivos: examinar a presença dos mitos, lendas e
crenças populares e verificar as marcas de oralidade, o que aqui é direcionado para a literatura de cordel
de Patativa do Assaré, no ano do centenário de seu nascimento. Justifica-se a escolha de Patativa,
levando-se em conta que a literatura de cordel, como manifestação da memória coletiva, evidencia a
desestabilização do saber normativo da língua ao incorporar a oralidade (Zumthor e Câmara Cascudo), ao
mesmo tempo em que tensiona e reencena a tradição (Stuart Hall), com a dinâmica da cultura popular.
PALAVRAS-CHAVE
Literatura de cordel; cultura popular; oralidade; identidade; tradição
ABSTRACT:
This essay is part of the research project "The creative imagination and the identity of cultural
expressions in literatures in Portuguese Language,” which undertakes studies on the Brazilian, Angolan,
and Mozambican literatures, favoring the exercise of the Brazilian law 10.639/2003. As we examine
traces of orality in Portuguese language literary texts and the representation of the collective imagination
on the identity, we seek to highlight the cultural diversity in the formation of the subject. Accordingly, the
procedures of reading, analysis, and literary interpretation come preceded by the following objectives:
examine the presence of myths, legends, and popular beliefs and assess orality marks, which are here
directed to Patativa do Assaré’s cordel literature on the centennial year of his birth. The choice of
Patativa is therefore justified, taking into account that cordel literature, as a manifestation of the
collective memory, highlights the destabilization of the normative knowledge of the language as it
incorporates the orality (Zumthor and Câmara Cascudo), to the pairing form-content.
KEYWORDS:
Cordel literature; popular memory; orality; cultural identity
1 – Cultura popular e tradição
Costuma-se dizer que uma das maneiras de um povo reafirmar sua identidade
cultural é preservar suas tradições. De fato, com Stuart Hall (2003) aprendemos que à
história da “cultura popular” liga-se a expressão “tradição popular”, e esta é vista como
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um dos principais locais de resistência ao modo pelo qual as transformações do povo
são buscadas, reafirmando-se, assim, como termo vital da cultura. Não obstante, o
jamaicano dos estudos culturais inquieta-nos a seguir, ao considerar a tradição como
“termo traiçoeiro da cultura popular”, uma vez que, segundo ele, “a tradição é um termo
que tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas” (HALL, 2003, p. 259).
Mais instigadora ainda são suas afirmações de que a cultura popular não seria
representada pelas tradições populares de resistência, tidas como meramente
conservadoras; sequer pelos processos de reconfiguração que advêm das formas de vida
dos trabalhadores, das relações estabelecidas uns com os outros. Segundo Hall, “A
cultura popular não é, num sentido „puro‟, nem as tradições populares de resistência a
esses processos, nem as formas que a sobrepõem. É o terreno sobre o qual as
transformações são operadas.” (Idem, ibidem, p. 248-249). Por essa via, o princípio
estruturador do popular seriam as tensões entre o que pertence e o que não pertence ao
povo, gerando a oposição “popular e não-popular”, o que também depende da época,
pois as coisas deixam de ter um alto valor cultural para num outro momento serem
apropriadas pelo popular.
Ao afirmar que “Quase todo inventário fixo nos enganará”, Hall (2003, p.258)
lembra oportunamente Bakhtin/Volochínov e o conceito de “comunidade semiótica”.
Diferente de classe social, a comunidade semiótica se utiliza de um único e mesmo
código ideológico de comunicação, de tal modo que classes sociais diferentes servem-
se de uma só e mesma língua, o que confere ao signo ideológico um caráter eterno e
monovalente. Verificar como se processam as mudanças mediante a inserção da
literatura de cordel e com esta o registro da oralidade no meio acadêmico, nas
instituições culturais que têm, entre suas atribuições como adiante Hall nos ensina, a de
policiar as fronteiras que estabelecem o limite entre o popular e o não-popular, eis uma
de nossas propostas antes de verificarmos a contribuição que nesse sentido a obra do
cordelista Patativa do Assaré oferece.
2. Produção popular e folclore
Para tratar de tradição, Câmara Cascudo considera o universo em que a produção
popular e folclórica podem apresentar-se de modo distinto. Mas o que é o folclore? Em
“A literatura oral no Brasil”, o autor dirá que
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A literatura folclórica é totalmente popular, mas nem toda produção popular é
folclórica. Afasta-a do Folclore a contemporaneidade. Pode manter as cores
típicas de uma região [...] mas não será folclórica na legitimidade da
expressão. Os elementos característicos do folclore são: a) antiguidade; b)
persistência; c) anonimato; d) oralidade. [...] Natural é que uma produção que
se popularizou seja folclórica quando se torne anônima, antiga, resistindo ao
esquecimento e sempre citada, num ou noutro meio denunciador da
predileção ambiental. O folclórico decorre da memória coletiva, indistinta e
contínua. Deverá ser sempre popular e mais uma sobrevivência. (CASCUDO,
1984, p. 24).
Visto como decorrência da memória coletiva e em sua distinção diante da
produção popular, o conceito que Câmara Cascudo confere ao folclore reabre a
discussão, tão cara a Stuart Hall anos depois, em torno do que é popular e do que não é.
Por essa via “indistinta e contínua” que bem caracteriza o folclórico, talvez se possa
melhor entender a expressão “„grande tradição‟”, usada por Hall, e que Belinsky,
argentino que se dedica aos estudos do imaginário, denominou mais recentemente de
“ponto cego”1 da cultura. Pelos estudos de Hall, o processo cultural dependeria da
delimitação, “sempre em cada época num local diferente”, entre o que deve ou não ser
incorporado à grande tradição. Importante é o que ele pondera sobre as nossas escolas,
dizendo que, no intento de disciplinar e policiar essa fronteira, as escolas e outras
instituições culturais cumprem, dentre os papéis que desempenham, a de partícipes
vigilantes.
3. A literatura de cordel: uma ameaça às fronteiras?
No Brasil e em países como na França, o cordel que provém da Região Nordeste
vem ocupando espaço privilegiado como gênero artístico-literário. Os versos
apresentam-se em forma de poesia rimada, e quando sua performance ocorre via oral
(canção) e gestual (representação), a literatura de cordel ganha vida e contribui ainda
mais para propagar as histórias e narrativas populares do Nordeste brasileiro, que são
autênticas manifestações de oralidade.
1 Referimo-nos a Jorge Belinsky (2007), autor de Lo imaginario: um estudio. Buenos Aires: Ediciones
Nueva Visón, 2007.
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Mas Zumthor (2000, p. 51) dirá que a oralidade marca nossa tradição cultural
ocidental, e esta “profundamente interiorizada, determinou até época bem recente
muitos de nossos sentimentos e opiniões correntes”, e mesmo quando escrita, a
linguagem ainda é “sentida como vocal” (Ibid.). O autor considera a performance uma
noção central no estudo da comunicação oral, sempre acompanhada da forma, e a voz,
em sua “qualidade de emanação do corpo [...] que, em nível sonoro, o representa
plenamente”. Também considera a percepção que, segundo ele, é “essencialmente
presença” (ZUMTHOR, 2000, p. 98). Então o leitor sente a poesia presente em si e se
sente presente nela, e a voz vai se interiorizando na medida em que a poesia vai
permanecendo para além da “verdade da ficção”, mais próxima ao que Antonio Candido
chamou de a “verdade da existência” (CANDIDO, 1987, p. 78). Assim, a poesia
[...] atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um
sujeito que não se reduz à localização pessoal. [...] enquanto falo, minha voz
me faz habitar a minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e
me libera dele. (ZUMTHOR, 2000, p. 98).
Conforme Luyten (2007), o predomínio da oralidade nas manifestações
populares se deve ao fato de boa parte da população não ter tido acesso a uma
escolaridade regular, o que faz com que muitas pessoas se utilizem do recurso da
memorização para garantir a perpetuação da tradição cultural, ou seja, o repasse dessa
cultura de geração a geração. Zumthor (2000, p. 76), por sua vez, adverte: “Mas a
memória implica „reiteração‟, incessantes variações re-criadoras.” Nessas reflexões
contemporâneas, ressurgem antigas idéias que remetem ao século IV a.C., época em que
a escrita surge para o registro da oralidade, forma de comunicação entre os indivíduos à
época de Platão. “A escrita destrói a memória”, “A escrita enfraquece a mente”,
comenta Walter Ong (1998, p. 94), ao lembrar as preocupações de Platão no Fedro. Ao
que acrescenta: “Se pedirmos a um indivíduo para explicar esta ou aquela afirmação,
podemos obter uma explicação; se fizermos a um texto, não obteremos nada, exceto as
mesmas(...)”. (Idem, ibidem, p. 94-95).
Os gêneros mais comuns de manifestação oral seriam, pois, a poesia (fixa e
móvel) e a prosa. Luyten (2007) menciona os poemas e versos decorados e passados
adiante, as canções infantis e de ninar e as histórias rimadas, como exemplos de poesia
fixa ou tradicional, conforme Cascudo (2000). De forte teor emotivo e com algum
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ensinamento, ela tende a se manter coesa em torno de um acontecimento e a perdurar,
tendo sido registrada ou não. Já os repentes, os desafios e as pelejas (poesia móvel) são
improvisações de poetas cantadores a sós, em duplas (repentes) ou com mais pessoas
(desafios ou pelejas), em que vence o que conseguir rimar por mais tempo,
acompanhando o outro através dos diversos ritmos e estruturas poéticas diferentes. Por
ser raramente registrada, a poesia móvel tende a se perder para sempre na memória. Os
contos, as lendas e o teatro compõem a prosa. Já os ditados e os provérbios podem se
apresentar tanto sob a forma de prosa como de poesia.
Segundo Debs (2009), o termo “poesia popular” foi muitas vezes mencionado
com certo desprezo, considerando-a “literatura menor por oposição à Literatura”. A
simplicidade dos temas abordados e das idéias tratadas, a facilidade de versificação e a
ingenuidade dos sentimentos expressos eram associados à banalidade de rimas, à falta
de originalidade, à pobreza de vocabulário e à riqueza estilística limitada, simbólica e
indigente. No contexto nordestino, todavia,
é preciso recordar que a poesia popular inscreve-se na tradição oral desta
região do interior: um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do
meio rural, em geral analfabeto, improvisa ou narra, graças à sua memória
prodigiosa, “a história dos homens famosos da região, os acontecimentos
maiores, as aventuras de caçadas e de derrubadas de touros, enfrentando os
adversários nos desafios que duram horas e noites inteiras, numa exibição
assombrosa de imaginação, brilho e singularidade na cultura tradicional”.
(DEBS, 2009, p. 1).
Lima (apud CASCUDO, 2000, p. 334) observa que os relatos oral e tradicional
podem ter contornos verossímeis ou não. Segundo ele, “há contos que produzem a
realidade vivida, mas também há os que se situam no âmbito do maravilhoso e do
sobrenatural”.
Todos os autos populares, danças dramáticas, as jornadas dos pastoris, as
louvações das lapinhas, Cheganças, Bumba-meu-boi, Fandango, Congos, o
mundo sonoro e policolor dos reisados, aglutinando saldos de outras
representações apagadas na memória coletiva, resistindo numa figura, num
verso, num desenho coreográfico, são os elementos vivos da literatura oral.
(CASCUDO, 1984, p. 24).
A persistência talvez seja o forte traço característico que mantém viva a
literatura oral. Para Cascudo (2000), as duas fontes contínuas que a preservam são a
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exclusivamente oral e a de cordel (reprodução escrita e versificada desse tipo de
literatura).
4 – Origens e estrutura da Literatura de Cordel
A denominação Literatura de Cordel tem origem na Península Ibérica do século
XVII, mais especificamente em Portugal, quando se produziam pequenos livrinhos que
eram expostos à venda pendurados ou “cavalgados em barbantes” (CASCUDO, 2000,
p. 333). No Brasil, o cordel encontrou espaço privilegiado na região Nordeste,
aparecendo em proporção muito maior do que a prosa. “A Literatura de Cordel dá um
sentido de uniformidade às criações dos poetas populares pela circunstância especial de
se apresentar impressa, reproduzida de textos previamente manuscritos”. (CASCUDO,
1994, p. 24).
A parte impressa compreende menos de 1% da poesia realmente feita no nível
popular. Segundo Luyten (2007), os livretos costumam ser produzidos pelo próprio
autor e a custo mínimo: capas de papel de embrulho comum com reprodução de
xilogravura e folhetos de tamanho equivalente a oito páginas por papel sulfite (a partir
de uma folha dobrada em quatro partes). Os temas são populares, do imaginário, com
fortes origens rurais, religiosidade, crendices, fatalismos da natureza e heróis da região,
ingressando no patrimônio de cultura oral.
Tendo em vista que o cordel subverte a ordem do sagrado, na medida em que ele
é profano ao criticar figuras da ordem do sistema, é importante fazer uma diferença
entre um ritual religioso e o poema:
Entre um ritual religioso e um poema oral [...] a diferença está na „presença
ou ausência do sagrado‟. No ritual, „o discurso se dirige aos poderes que
regem a vida‟; na poesia, à comunidade humana, com diferenças de
finalidade, de destinatário, mas não da própria natureza discursiva.
(ZUMTHOR, 2000, p. 53).
Zumthor (2000, p. 102) afirma que, na cotidianidade dos discursos ou na
expressão informativa,
a poesia opera a extensão da própria linguagem, assim exaltada,
promovida ao universal. Pouco importa que ela seja ou não entregue à
escrita. A leitura torna-se escuta, apreensão cega dessa transfiguração,
enquanto se forma o prazer, sem igual. (ZUMTHOR, 2000, p. 102)
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Para Cascudo (1984, p. 24), a produção contemporânea pelos antigos processos
de versificação popularizada fixa “assuntos de época, guerras, política, sátira, estórias
de animais, fábulas, ciclo do gado, caça, amores, incluindo a poetização de trechos de
romances famosos tornados conhecidos”. Isso se deve à facilidade com a qual a poesia
popular nesses locais é difundida, seja através de cantorias em grupo seja da forma
escrita.
A literatura de Cordel é considerada um dos elementos de maior
comunicabilidade dos meios populares, [...] parte da folk-comunicação, isto
é, sistemas de comunicação por meio dos fenômenos folclóricos [...] do povo
para o povo. (LUYTEN, 2007, p. 8).
Mesmo que boa parte da poesia oral se perca, em função de ser improvisada na
maioria das vezes, é nos muitos livrinhos impressos e na memorização que a Literatura
de Cordel se perpetua. Luyten (2007) observa que as sociedades humanas, quando são
iletradas, utilizam-se desse último recurso para guardar o que acham importante. “Daí a
tendência de ordenar toda espécie de mensagem em forma poética. O ritmo das frases e
a semelhança das partes finais ou iniciais facilitam tremendamente a memorização.”
(LUYTEN, 2007, p. 11). Na hora de passar para o papel esse ritmo, essa poesia musical,
o que se obtém são formas perfeitas de metrificação, como a Sextilha (forma mais
comum, com estrofes de 6 versos de 7 sílabas cada e rimas no 2º, no 4º e no 6º verso), a
Décima (com estrofes de 10 versos com 7 sílabas cada), o Martelo Agalopado (10
versos com 10 sílabas cada), o Quadrão (de 8 a 10 versos em cada estrofe) e a
Quadrinha (com 4 versos). Também pode estar estruturada sob a forma de “abecês”
(forma popularmente conhecida, em que cada estrofe ou cada s com uma letra do
alfabeto).
Em O mundo no papel (1997), David Olson assinala que o aumento considerável
dos planos de erradicação do analfabetismo entre as políticas governamentais e os
movimentos socialistas do séc. XX, do mundo inteiro, deve-se ao objetivo de solucionar
problemas sociais, como a pobreza e o desemprego. Com isso, “as democracias
ocidentais modernas aspiram a erradicar o analfatismo” e “as escolas são estimuladas
rotineiramente a elevar os padrões de alfabetização dos estudantes.” Diante dessas
considerações, o autor indaga-se: “De onde vem este entusiasmo pela escrita?”
(OLSON, 1997, p. 18). Suas considerações revelam que esse entusiasmo se deve ao fato
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de que as concepções sobre a escrita, “simples artefato tecnológico”, vinculam-se à
superioridade cultural, sustentadas nos “mitos” de que a fala, vista como propriedade do
povo, seria solta e desregrada.
5 – Em busca da identidade do cordelista e do seu papel nessa arte popular de
criar e recitar.
A identidade do poeta popular é a identidade do seu povo, de sua cultura, de suas
crenças, sonhos, sofrimento e lutas. O cordelista nordestino, em especial, registra a
história de vida de sua gente, com sua trajetória de dor e/ou de glórias, mas sobretudo
uma quase apologia a suas origens. Sylvie Debs assim define a obra de Patativa:
Poesia telúrica, colhida da terra, dos roçados como se estivesse apanhando
feijão, arroz, algodão, ou quebrando milho e arrancando batata e mandioca.
Sua inspiração não é fruto de estudos. Ela germina dentro de si como a
semente nas entranhas da terra. Testemunha um modo de vida, elabora uma
identidade. (DEBS, 2009, p. 1-2).
Se não os tem de modo espontâneo, ele busca se apropriar ao máximo dos
costumes e do linguajar do seu povo, indo aos locais mais inóspitos, se preciso for.
Vasculha a fundo os mistérios de um linguajar característico e causador de
estranhamento escondidos em cada rosto humilde.
Como um narrador-testemunha, ele ouve, pesquisa e registra o que é seu por
herança, e tem a missão de ser o porta-voz, o rapsodo, o representante de sua gente no
seu país e no mundo.
É certo que, como assevera Luyten (2007), e nisso encontramos correspondência
com os estudos de Stuart Hall, a cultura popular abrange todos os setores da vida de um
povo, e geralmente indica certa oposição à cultura oficial, erudita. Ela se manifesta com
maior vigor em sociedades nas quais a divisão de classes é acentuada. Sendo assim, um
dos papéis principais do cordelista é unir a tradição musical do local (nos repentes,
desafios e pelejas, comuns dos teatros populares) aos recursos da poesia metrificada,
rimada e ritmada (para facilitar a memorização), ou seja, produzir pela oralidade, sons,
nas performances do corpo e na escrita, como tempero que dá sabor especial ao seu
trabalho, e apresentar o resultado dessa produção aos estrangeiros (de cá e de lá), para
dar o seu recado, o recado de seu povo.
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Considerando a influência das tradições dos trovadores, dos repentistas, dos
violeiros e da literatura de cordel, é forçoso reconhecer na voz do poeta
popular o eco dos sofrimentos, das alegrias e das desgraças da população
nordestina do sertão. (DEBS, 2009, p. 1).
Se a poesia, com ou sem fixação tipográfica, “foi feita para o canto, para a
declamação, para a leitura em voz alta”, como defende Cascudo (1984, p. 24), então ela
se constitui num poderoso aliado para a propagação da voz. E a voz é o instrumento
sagrado do cordelista. Através da poesia performática, a voz do poeta popular ganha o
mundo, e os barbantes do nordeste brasileiro não são mais limite para os seus registros:
“Por e na voz, a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou em
nós”. (ZUMTHOR, 2000, p. 100). Tendo a voz como instrumento e a poesia como
aliada, o cordelista representa sua comunidade, brigando e por ela reivindicando. E o
corpo, de coadjuvante no ato performático, passa a exercer uma função tão importante
quanto a própria voz.
O texto poético significa o mundo. E pelo corpo que o sentido é aí percebido.
O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é
sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível,
do tangível. [...] ele é muito mais do que o objeto de um discurso
informativo. (ZUMTHOR, 2000, p. 90).
Por fim, a última (se não a principal) tarefa do cordelista: capturar o leitor, o
ouvinte ou o espectador, conterrâneo ou estrangeiro, de cá ou de lá. Conforme Zumthor
(2000, p. 89), “o discurso que alguém me faz com o mundo [...] constitui para mim um
corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado por ele; ação dupla,
reversível, igualmente válida nos dois sentidos.” De nada adianta o talento do artista
popular, a performance da voz, a gestualidade do corpo, a poesia e o sentimento de
dever do emissor para com a sua gente se não houver relação recíproca de entendimento
e identificação com o receptor. Adiante, seguindo a reflexão de Olson, serão aqui
discutidos os efeitos da transposição do cordel expresso de forma oral para a escrita.
6 – Patativa do Assaré e o Cordel – fortuna crítica
Eu venho dêrne menino
dêrne muito pequenino,
cumprindo o belo destino
que me deu Nosso Senhor (Patativa do Assaré)
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E o impacto do mar e de tantas águas para quem saía de um sertão castigado pelas secas.
(Gilmar de Carvalho)
Antônio Gonçalves da Silva, cordelista cearense conhecido em todo o nordeste
brasileiro como Patativa do Assaré, recebeu esse nome no Pará por analogia ao pássaro
da Chapada do Araripe.2 Nasceu em 5 de março de 1909, na Serra de Santana,
município cearense de Assaré. Alfabetizou-se aos oito: “Juntou as sílabas, formou as
palavras. Foi o suficiente [...]. Singularizou-se pela ode performática e oral.”
(FEITOSA, 2009b, p. 1).
Mas além de sua formação alicerçada no cordel e nas cantorias dos repentes,
Patativa leu os clássicos: Camões, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Machado de Assis
e Olavo Bilac. O rádio foi fundamental para a propagação dos poemas de Patativa. Cego
de um olho, em sua peregrinação, semelha-se Patativa aos rapsodos da Grécia antiga, e
sua cegueira parcial é atributo físico que o aproxima ainda mais do poeta cego Homero3.
Sabe-se das dificuldades que Patativa enfrentou para chegar a Fortaleza, do trem ao Ita
do Nordeste. Graças a sua arte de compor e recitar versos, sua biografia registra
memorável ascensão, assegurando-lhe estender seus barbantes para além, muito além do
Ceará:
É quando se pode falar em seu processo criativo, solitário, muitas
vezes ao trabalhar o chão, quando imaginava uma cena e os versos se
acumulavam, como se fossem camadas dessa mesma terra que se
justapunham. Depois, era só copiar, à noite, à luz da lamparina e o
poema estava pronto. (CARVALHO, 2001, p. 31).
De sua biografia, o registro de que Patativa do Assaré faleceu aos 93 anos, em 9
de julho de 2002. Em 2009, assistimos às suas memórias em Ave Poesia, filme de
2 Patativa, segundo Dicionário Houaiss, é ave passeriforme da família dos emberizídeos, encontrada nas
regiões meridionais e setentrionais do Brasil e em países adjacentes; com cerca de 10,5 cm de
comprimento.
3 Rapsodo cego, Homero viveu provavelmente no séc. VIII a.C. Apresentava-se de pé, apoiado em um
bastão, peregrinava pelas cortes e ágoras, os mercados públicos das polis daquela época, a recitar cantos,
lembrando feitos de heróis, seus antepassados. Patativa, por sua vez, além da cegueira parcial, sofrera um
acidente na via pública em Fortaleza e, por isso, caminhava apoiando-se também num bastão.
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Rosemberg Cariry, de quem já conhecíamos o artigo “Patativa do Assaré – um mestre
da poesia popular”, de 1987, no livro Ispinho e Fulo.
7 – A poesia de Patativa do Assaré
À poesia de Patativa, conforme Nascimento, precede um período de escuta:
Com sua sensibilidade poética, Patativa abriu as veredas do sertão, entrou na casa
de taipa, coberta de palha, ouviu estórias de lobisomem, caiporas e almas penadas,
contadas à beira do fogo, nos terreiros das choupanas mais humildes do sertão
sem luz elétrica, sem rádio, sem televisão. (NASCIMENTO, 1995, p. 12).
Assim, pode-se afirmar que sua poesia se iniciou de forma aparentemente
tímida, simplória, preocupada apenas em aproximar o leitor da cultura dos sertanejos
nordestinos, cujo vocabulário sempre foi rico em traços característicos de oralidade que
desestabilizam o saber normativo da língua.
A oralidade é, pois, um “recurso que não perde em Patativa sua missão
comunicativa. Sua voz está a serviço da verdade, da vida e dos homens. [...] por meio da
poética oral, luta incansavelmente pela sua terra e pela sua gente.” (FEITOSA, 2009a,
p. 1). Teve sua obra, seus versos, permeados “pelo uso de uma memória oral que a
caracteriza como testemunhal, „documental‟”. (SILVA, 2009, p. 1):
A versificação utilizada, em geral a sextilha hexassilábica ou a décima
heptassilábica de rimas contínuas, parece mais ser a expressão de uma técnica
de memorização do que a expressão de uma forma poética erudita, a serviço
da transmissão de um „saber simbólico: ciência, cultura popular, tradição‟.
[...] A declamação se atém ao essencial: a narrativa dos acontecimentos. [...]
Sob essa aparente ingenuidade, esconde-se uma profunda experiência da vida
cotidiana que confere uma dimensão simbólica determinante à sua obra.
(DEBS, 2009, p. 1).
Em função de todas essas características, Patativa foi evoluindo e sua poesia
adquiriu um teor mais crítico e politizado, conservando sempre a pureza do traço
lamentoso e triste do seu povo em cada verso. Seu canto mítico se personificou “num
pio de pássaro, que ora canta, ora soluça”. (FEITOSA, 2009a, p. 1). Considerada poesia
realista, “crua, rude e provocante”, conforme Nascimento na apresentação do livro
Patativa e o universo fascinante do sertão, a poesia de Patativa
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mexeu com o rico, mitigou a ferida social do pobre caboclo e conclamou a
todos para uma tomada de posição diante das injustiças. A poesia de Patativa
recobra a força original da mensagem evangélica, desmascarando o
comodismo daqueles que entendem que Deus é o responsável pelo estado de
pobreza dos nordestinos, induzidos assim ao conformismo e à passividade.
(NASCIMENTO, 1995, p. 12).
De acordo com Feitosa (2009, p. 1), ele foi “um poeta plural. Cantou as agruras
e as alegrias sertanejas, a natureza e a cultura, o universal e o regional, sempre buscando
a correção do social e a igualdade entre os homens.”
8 – O registro da obra de Patativa e uma importante descoberta
A transcrição da obra de Patativa para os meios gráficos “perde boa parte da
significação expressa por meios não-verbais (voz, entonação, pausas, ritmo, pigarro e a
linguagem corporal através de expressões faciais, gestos) que realçam características
expressas somente no ato performático (como ironia, veemência, hesitação, etc.).”
(ASSARÉ, 2009b, p. 1). Todavia, é sobre seu registro escrito que o pesquisador poderá
compreender “a genialidade do trovador nordestino, cuja amplitude dos versos – seja
temática, seja de gênero – sempre encantou e intrigou seus ouvintes e leitores, inclusive
os acadêmicos” (ASSARÉ, 2009a, p. 1), sempre trazendo temas, “imagens, recursos
estilísticos que atestam o domínio e a familiaridade de Patativa com valores de uma
poesia cultivada para além do cânon da poesia sertaneja.” (JUNIOR, 2009, p. 2). Em
outras palavras: “a complexidade da obra de Patativa é evidente [...] pela sua capacidade
de criar versos tanto nos moldes camonianos [...], como poesia de rima e métrica
populares.” (PATATIVA DO ASSARÉ, 2009b, p. 1):
Sua poesia experimentou as cantorias e seus desafios, o cordel e sua dicção
repentista, a alfabetização iniciática e as leituras dos clássicos da poesia
universal. Atravessou o limiar dos terreiros para se abrigar nas praças, junto
aos feirantes. Invadiu as ondas do rádio e se difundiu na mídia de tal maneira
que não há como classificá-lo entre “popular” e “erudito”, “regional” e
“universal”, pois o canto de Patativa é eterno e universal. (SANTOS, 2009, p. 1).
Luiz Tadeu Feitosa, por sua vez, assevera:
Sabedoria e uma quase mediunidade, inocência e muita sagacidade misturam-
se nesse sistema perceptivo. Vários códigos o compõem. Ele é mais do que
mídia, é uma complexa comunicação em ininterrupto processo. Comunicação
de uma lógica pouco conhecida, mas reveladora e envolvente. (FEITOSA,
2009a, p. 1).
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Em continuidade, o autor afirma que a presença de Patativa ocorrera junto aos
“principais acontecimentos da vida do país, não como testemunha, mas como ator
social. De sua idílica Serra de Santana, fez ecoar seu canto e interferiu na cena
brasileira, com a força de uma voz poética e profética.” (FEITOSA, 2009b, p. 2). É o
caso do poema intitulado “Antônio Conselheiro” cujos versos dão conta do mito
presente na história da rebelião de Canudos, interior da Bahia.
No Brasil, Patativa fora reconhecido de modo especial após pesquisas realizadas
no exterior, sobretudo na França, com seu tradutor para o francês, Jean-Pierre Rousseau,
e Sylvie Debs4. Entre os estudantes brasileiros, acadêmicos de Letras, seu nome causou
estranhamento na maioria das universidades brasileiras quando, na virada deste século,
figurou dentre a lista de escritores selecionados para o ENADE, chamado à época
Provão do MEC. Hoje o poeta de Assaré é referência de norte a sul do País,
evidenciando que o saber normativo da língua convive com a sabedoria popular e com
os avessos da língua culta. A diversidade na produção de Patativa é evidenciada nas
obras em que o próprio poeta diferenciava seus versos feitos em linguagem culta – ou
próxima dela – (“Antônio Conselheiro” e “História de Aladim e a lâmpada
maravilhosa”) daqueles denominados de poesia “matuta” (“O Poeta da Roça”, “Ispinho
e fulô”, “Linguage dos óio”). De toda sorte, ele anunciava aos poetas da cidade: “Cante
lá que eu canto cá”, conforme vem intitulada uma de suas obras.
Comprova-se a hípótese de o cordelista manter, junto à língua padrão da norma
culta, o perfil dos personagens, ao resgatar as lendas que provêm do imaginário
europeu: Da África tinha chegado/Aquele belo garoto/ [...] um velho misterioso/
tinha um leal coração/De aspecto desumano/[...] O feiticeiro Africano/Essa visão era
um gênio/ que o anel obedecia/ Mas o verdadeiro herói/ Com paciência sofria
(PATATIVA DO ASSARÉ, 2000, p. 41 e 51). Todavia, incluem-se também os mitos do
Nordeste reproduzidos com essas características. No poema “Antônio Conselheiro”,
Patativa conta a história do herói e líder do povo nordestino, Antônio Conselheiro, que
virou mito: Desta forma, na Bahia,/Sonhava com o luzeiro/Crescia a comunidade./Da
aurora da nova vida./E ao mesmo tempo crescia/Era qual outro Moisés/ Uma bonita
4 No documentário “Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry (2009), dentre os depoimentos críticos à obra de
Patativa, destacam-se Sylvie Debs e Jean-Pierre Rosseau.
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cidade./Conduzindo os seus fiéis/Já o Antônio Conselheiro/ Para a terra
prometida.”(PATATIVA DO ASSARÉ, 1994).
Seja na vertente da linguagem “culta”, seja na da linguagem “matuta”, o apelo à
religiosidade se fixa quase como uma marca registrada. A presença da metalinguagem
funciona como uma justificativa para a sua criação. É o caso de “O Poeta da Roça”:
Cada um na vida tem/Meu verso rastero, singelo e sem graça,/Seu direito de
julgar./(...)com razão quero falar/Nas pobre paioça, da serra ao sertão.” (PATATIVA
DO ASSARÉ, 2000, p. 20).
Resultado da leitura dos poemas e da revisão da fortuna crítica de Patativa, boa
parte das nossas reflexões encontra-se aqui resumidamente neste ensaio. Deparamo-nos
desde o início com a constante tensão no terreno em que batalham a “letra e a voz”, para
usar a expressão de Zumthor. A começar pela expressão “literatura oral”, tão cara a
Câmara Cascudo, sobre a qual o autor declara ser paradoxal, uma vez que literatura
provém de littera/letra, a escrita em oposição a oralidade. De acordo com os estudos
culturais de Stuart Hall, foi possível estender um pouco mais as questões que
polemizam o que diz respeito ao saber normativo da língua, diante da expressão da
cultura popular que a língua falada representa.
Entendemos que registrar a fala, e nesse caso a do matuto cearense, é gerar
tensão no território em que se introduzem as grandes transformações da língua. E se “a
poesia oral improvisada é uma arte universal, com longas e diversificadas trajetórias em
quase todos os continentes”, como já afirmaram Pimentel e Corrêa (2008, p.5), é preciso
reafirmar a ocorrência de impacto que essa arte universal dos menestréis e rapsodos
pode causar ao servir-se de uma língua, de modo acentuado e na maioria das vezes,
distinta do padrão da norma culta, gerando, afinal, desassossego nos leitores menos
avisados.
Ao escrever ora na língua culta padrão, como a História do Aladim e a lâmpada
maravilhosa (PATATIVA DO ASSARÉ, 2000, p. 39-72) ora na língua que registra a
oralidade do homem do interior brasileiro, Ispinho e fulô, Patativa torna-se mediador da
cultura popular; inscreve-se mediante o princípio estruturador do popular representado,
como se evidenciou no início deste ensaio de acordo com Hall, pelas tensões entre o que
pertence e o que não pertence ao povo, gerando a oposição “popular e não-popular”.
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Pelos registros da escrita, a poesia dos cordelistas é arte que preserva o
folclórico, com temas do imaginário popular, tais como as lendas, os mitos e a
religiosidade, incorporando-se ao que se convencionou denominar aqui de grande
tradição (HALL, 2003) e de ponto cego (BELINSKY, 2007). Contudo, é arte que
também se desnuda para dar conta de comunidades semióticas diversificadas. Patativa
do Assaré tem o domínio da norma culta, graças às leituras dos clássicos: Camões,
Castro Alves, Machado de Assis. Não obstante, privilegia os registros da oralidade, a
linguagem coloquial do agricultor pobre do sertão.
Ao atentar para os registros da oralidade com a leitura dos poemas de cordel,
modificam-se os currículos do ensino de língua e de literatura, conquanto que o ensino
não mais ocorrerá mediante um único código, monovalente e eterno, que privilegia a
língua escrita padrão, por vezes distante da realidade social da grande maioria dos
indivíduos. Com a introdução dos estudos críticos da literatura de cordel, confere-se às
escolas, universidades e demais instituições culturais não apenas a função de policiar as
fronteiras do saber, entre o código de comunicação que pertence à cultura popular e o
que não pertence, mas esses locais de cultura se tornam palco em que se travam as
grandes transformações, capazes de examinar a oralidade como “marca de nossa
tradição cultural ocidental” (ZUMTHOR, 2000), mas de modo especial como marca da
tensão e do confronto que reencena e ao mesmo tempo desacomoda a tradição presa ao
passado.
Referências
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Regina da Costa da Silveira é professora titular do UniRitter, Porto Alegre, RS,
Editora de Nonada Letras em Revista, com doutorado em Letras Literatura Brasileira
pela UFRGS.
Roberta Moreira Freitas é acadêmica do Curso de Letras, UniRitter, bolsista
FAPERGS e ilustradora dos livros: RIBOLDI, Ari. O bode expiatório. (v. 1). Porto Alegre, Ed. AGE, 2007.
__________. Cabeça de bagre. Porto Alegre, Ed. AGE, 2008.