2. Como as crianas aprendem sobre o mundo que as rodeia? Como
tomamos decises ou enfrentamos riscos? O que diferencia os gnios do
comum dos mortais? Amor, confiana, sensibilidade, decepo,
criatividade quais os mecanismos por trs de todos esses, e outros,
processos que tomam conta de nossas mentes dia- riamente? Neste
livro extraordinrio, Pinker conduz o leitor com maestria por duas
grandes teorias: o evolucionismo de Darwin e a moderna cincia
cognitiva. Tudo para mostrar como podemos estar bem pr- ximos de
uma das ltimas fronteiras do conhecimento a mente humana. "Uma obra
que altera completamente nosso modo de pensar o pensamento."
Christopher Lehmann-Haupt, The New York Times I
3. Como funciona a mente humana? Utilizando conceitos como a
teoria com- putacional da mente e a teoria da evo- luo, o psiclogo
e cientista cogniti- vo Steven Pinker convida o leitor a um passeio
por diversas reas do conhe- cimento humano, sem nunca perder de
vista seu objetivo principal: sugerir e por vezes at explicar nossa
capaci- dade de amar, manter ou no relaes sociais, criar, julgar ou
mes- mo ver figuras em 3D, assistir televiso e se emocionar com
msica. "A psicologia ser baseada em no- vos fundamentos", previu
Charles Dar- win ao final de A origem das espcies. Em Como a mente
funciona, Pinker d mais um passo nesse sentido sem medo de causar
polmica. A partir de elementos da cincia cognitiva, o au- tor
formula um modelo matemtico sufi- ciente para explicar o
funcionamento da mente humana. Feito isso, envere- da pela teoria
evolucionista para tornar plausvel esse modelo, agora em ter- mos
biolgicos: seria a mente humana um sistema de rgos computacionais
desenhados pela seleo natural a fim de solucionar os problemas
enfrenta- dos por nossos antepassados em tem- pos remotos? 0
projeto no poderia ser mais am- bicioso, alm de lucidamente
argumen- tado, em estilo cativante e acessvel. Pinker se arma no
apenas de mode- los experimentais e tericos, mas ainda de exemplos
do cotidiano para forne- cer uma viso atual e revolucionria do
funcionamento da mente humana. Comparvel, sem exagero, a Stephen
Jay Gould, Oliver Sacks e Richard Daw- kins, Pinker merece lugar
entre os prin- cipais autores de divulgao cientfica de nossa poca.
Reconhecido como um dos maio- res cientistas cognitivos do mundo,
Ste- ven Pinker professor de psicologia e diretor do Centro de
Neurocincia Cog- nitiva do MIT. Depois de lecionar em Harvard e
Stanford, conquistou reno- me com o best-seller O instinto da
linguagem (1994). Atualmente reside em Cambridge,
Massachusetts.
4. C O M O A MENTE FUNCIONA
5. STEVEN PINKER COMO A MENTE FUNCIONA Traduo: LAURA TEIXEIRA
MOTTA 2- edio 1 ~ reimpresso
6. Copyright 1997 by Steven Pinker Ttulo original: How the mind
works Capa: Marcelo Serpa Reviso tcnica: lvaro Antunes Mestre em
Cincias da Computao (Inteligncia Artificial) pela UFRGS ndice
remissivo: MarthaM. B. Borthowski Preparao: urea Kanashiro Reviso:
Ana Maria Alvares Ana Maria Barbosa Beatriz de Freitas Moreira Ana
Paula Castellani Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
(CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pinker, Steven, 1954-
Como a mente funciona / Steven Pinker ; traduo Laura Teixeira
Motta. So Paulo : Companhia das Letras, 1998. Ttulo original: How
the mind works. Bibliografia. ISBN 85-7164-846-8 1. Evoluo humana
2. Neurocincia cognitiva 3. Neuro- psicologia 4. Psicologia 5.
Seleo natural 1. Ttulo. 98-5410 ndices para catlogo sistemtico: 1.
Mente : Processos intelectuais conscientes : Psicologia 153 2.
Processos intelectuais conscientes : Mente : Psicologia 153 2001
Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA. Rua
Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo SP Telefone: (11)
3846-0801 Fax: (11) 3846-0814 www.companhiadasletras.com.br
CDD-153
7. Para Ilavenil
8. SUMRIO Prefcio 9 1. Equipamento padro 13 2. Mquinas
pensantes 70 3. A vingana dos nerds 162 4. O olho da mente 227 5.
Boas idias 318 6. Desvairados 383 7. Valores familiares 447 8 . 0
sentido da vida 546 Notas 593 Referncias bibliogrficas 613 Crditos
643 ndice remissivo 645
9. PREFCIO Qualquer livro intitulado Como a mente funciona
deveria comear com uma nota de humildade; comearei com duas.
Primeiro, no entendemos como a mente funciona nem de longe to bem
quanto compreendemos como funciona o corpo, e certamente no o
suficiente para projetar utopias ou curar a infelicidade. Ento, por
que esse ttulo audacioso? O lingista Noam Chomsky declarou certa
vez que nossa ignorncia pode ser dividida em problemas e mistrios.
Quando estamos dian- te de um problema, podemos no saber a soluo,
mas temos insights, acu- mulamos um conhecimento crescente sobre
ele e temos uma vaga idia do que buscamos. Porm, quando defrontamos
um mistrio, ficamos entre maravilhados e perplexos, sem ao menos
uma idia de como seria a explica- o. Escrevi este livro porque
dezenas de mistrios da mente, das imagens mentais ao amor romntico,
foram recentemente promovidos a problemas (embora ainda haja tambm
alguns mistrios!). Cada idia deste livro pode revelar-se errnea,
mas isso seria um progresso, pois nossas velhas idias eram muito
sem graa para estar erradas. Em segundo lugar, eu no descobri o que
de fato sabemos sobre o fun- cionamento da mente. Poucas das idias
apresentadas nas pginas seguintes so minhas. Selecionei, de muitas
disciplinas, teorias que me parecem ofe- recer um insight especial
a respeito dos nossos pensamentos e sentimentos, que se ajustam aos
fatos, predizem fatos novos e so coerentes em seu con- tedo e
estilo explicativo. Meu objetivo foi tecer essas idias em um quadro
9
10. coeso, usando duas idias ainda maiores que no so minhas: a
teoria com- putacional da mente e a teoria da seleo natural dos
replicadores. O captulo inicial expe o quadro geral: a mente um
sistema de rgos de computao que a seleo natural projetou para
resolver os problemas enfrentados por nossos ancestrais evolutivos
em sua vida de coletores de ali- mentos. Cada uma das duas grandes
idias computao e evoluo ocupa a seguir um captulo. Analiso as
principais faculdades da mente em captulos sobre percepo,
raciocnio, emoo e relaes sociais (parentes, parceiros romnticos,
rivais, amigos, conhecidos, aliados, inimigos). O lti- mo captulo
discute nossas vocaes superiores: arte, msica, literatura, humor,
religio e filosofia. No h captulo sobre a linguagem; meu livro
anterior, O instinto da linguagem, abrange esse tema de um modo
comple- mentar. Este livro destina-se a qualquer pessoa que tenha
curiosidade de saber como a mente funciona. No o escrevi apenas
para professores e estudantes, e nem somente com a inteno de
"popularizar a cincia". Espero que tanto os estudiosos como o
pblico leitor possam se beneficiar de uma viso geral sobre a mente
e o modo como ela atua nas atividades humanas. Nesse alto nvel de
generalizao, pouca a diferena entre um especialista e um leigo
reflexivo, pois se hoje em dia ns, especialistas, no podemos ser
mais do que leigos na maioria das npssas prprias disciplinas, que
dizer das disciplinas afins! No forneci exames abrangentes da
literatura pertinente nem uma exposio de todos os lados de cada
debate, pois isso tornaria o livro impos- svel de ler de fato,
impossvel at de ser erguido. Minhas concluses pro- vm de avaliaes
da convergncia das evidncias de diferentes campos e mtodos; forneci
citaes pormenorizadas para que os leitores possam acom- panh-las.
Tenho dvidas intelectuais com numerosos professores, alunos e cole-
gas, mas principalmente com John Tooby e Leda Cosmides. Eles
forjaram a sntese entre evoluo e psicologia que possibilitou este
livro e conceberam muitas das teorias que apresento (e muitas das
melhores piadas). Ao me convidarem para passar um ano como membro
do Centro de Psicologia Evolucionista da Universidade da Califrnia,
em Santa Brbara, eles me pro- porcionaram o ambiente ideal para
pensar e escrever, alm de amizade e con- selhos inestimveis. Sou
imensamente grato a Michael Gazzaniga, Marc Hauser, David Kemmerer,
Gary Marcus, John Tooby e Margo Wilson pela leitura de todo o
original e pelas valiosas crticas e incentivos. Outros colegas
generosa- mente comentaram captulos em suas reas de especializao:
Edward Adel- son, Barton Anderson, Simon Baron-Cohen, Ned Block,
Paul Bloom, 10
11. David Brainard, David Buss, John Constable, Leda Cosmides,
Helena Cronin, Dan Dennett, David Epstein, Alan Fridlund, Gerd
Gigerenzer, Judith Harris, Richard Held, Ray Jackendoff, Alex
Kacelnik, Stephen Koss- lyn, Jack Loomis, Charles Oman, Bernard
Sherman, Paul Smolensky, Eli- zabeth Spelke, Frank Sulloway, Donald
Symons e Michael Tarr. Muitos outros esclareceram dvidas e deram
sugestes proveitosas, entre eles Robert Boyd, Donald Brown,
Napoleon Chagnon, Martin Daly, Richard Dawkins, Robert Hadley,
James Hillenbrand, Don Hoffman, Kelly Olguin Jaakola, Timothy
Ketelaar, Robert Kurzban, Dan Montello, Alex Pentland, Roslyn
Pinker, Robert Provine, Whitman Richards, Daniel Schacter, Devendra
Singh, Pawan Sinha, Christopher Tyler, Jeremy Wolfe e Robert
Wright. Este livro produto dos ambientes estimulantes de duas
instituies: o Instituto de Tecnologia de Massachusetts e a
Universidade da Califrnia, em Santa Brbara. Meus agradecimentos
especiais a Emilio Bizzi, do Depar- tamento de Cincias Cognitivas e
do Crebro do MIT, por conceder-me uma licena sabtica, e a Loy Lytle
e Aaron Ettenberg, do Departamento de Psi- cologia, bem como a
Patricia Clancy e a Marianne Mithun, do Departa- mento de Lingstica
da UCSB, por me convidarem para ser pesquisador visitante em seus
departamentos. Patricia Claffey, da Biblioteca Teuber do MIT,
conhece tudo, ou pelo menos sabe onde encontrar, o que d na mesma.
Sou grato por seus incans- veis esforos para descobrir o material
mais desconhecido com rapidez e bom humor. Minha secretria, muito a
propsito chamada Eleanor Bonsaint, concedeu-me sua ajuda
profissional e animadora em inmeros assuntos. Meus agradecimentos
tambm a Marianne Teuber e a Sabrina Detmar e Jen- nifer Riddell, do
Centro List de Artes Visuais do MIT, pela sugesto para a arte da
capa.* Meus editores, Drake McFeely (Norton), Howard Boyer
(atualmente na University of Califrnia Press), Stefan McGrath
(Penguin) e Ravi Mir- chandani (atualmente na Orion), concederam-me
sua ateno e excelen- tes sugestes durante todo o processo. Tambm
sou grato a meus agentes, John Brockman e Katinka Matson, por seus
esforos em meu benefcio e sua dedicao literatura cientfica.
Agradecimentos especiais a Katya Rice, que ao longo de catorze anos
trabalhou comigo em quatro livros. Seu senso analtico e toque
magistral melhoraram as obras e me ensinaram muito sobre clareza e
estilo. (*) O autor se refere capa americana original. (N. T.)
11
12. Imensa minha gratido para com minha famlia, pelo apoio e
suges- tes que me deram: Harry, Roslyn, Robert e Susan Pinker,
Martin, Eva, Carl e Eric Boodman, Saroja Subbiah e Stan Adams. Meus
agradecimentos tam- bm a Windsor, Wilfred e Fiona. O maior
agradecimento para minha esposa, Ilavenil Subbiah, que desenhou as
figuras, fez comentrios inestimveis sobre o originai, conce- deu-me
constante apoio, sugestes e carinho e compartilhou a aventura. Este
livro dedicado a ela, com amor e gratido. Minhas pesquisas sobre
mente e linguagem foram subvencionadas pelo National Institutes of
Health (subveno HD 18381), pela National Science Foundation
(subveno 82-09540, 85-18774 e 91-09766) e pelo McDonnell-Pew Center
for Cognitive Neuroscience, do MIT. 12
13. 1 EQUIPAMENTO PADRO Por que h tantos robs na fico mas
nenhum na vida real? Eu pagaria muito por um rob que pudesse tirar
a mesa depois do jantar ou fazer umas comprinhas na mercearia da
esquina. Mas essa oportunidade eu no terei neste sculo e
provavelmente nem no prximo. Existem, evidentemente, robs que
soldam ou pintam em linhas de montagem e que andam pelos cor-
redores de laboratrios; minha pergunta sobre as mquinas que andam,
falam, vem e pensam, muitas vezes melhor do que seus patres
humanos. Desde 1920, quando Karel Capek cunhou o termo rob
emsuapeaR.l/.R., os dramaturgos evocam-no livremente: Speedy, Cutie
e Dave de Eu, rob, de Isaac Asimov, Robbie de O planeta proibido, a
lata de sardinha de braos sacolejantes de Perdidos no espao, os
daleks de Dr. Who, Rosie, a empregada dos Jetsons, Nomad, de
Jornada nas estrelas, Hymie, do Agente 86, os mordo- mos
desocupados e os lojistas briguentos de Dorminhoco, R2D2 e C3PO de
Guerra nas estrelas, o Exterminador, de O exterminador do futuro,
Tenente- comandante Data, de Jornada nas estrelas A nova gerao, e
os crticos de cinema piadistas de Mystery Science Theater 3000.
Este livro no sobre robs; sobre a mente humana. Procurarei expli-
car o que a mente, de onde ela veio e como nos permite ver, pensar,
sentir, interagir e nos dedicar a vocaes superiores, como a arte, a
religio e a filo- sofia. Ao longo do caminho, tentarei lanar uma
luz sobre peculiaridades distintamente humanas. Por que as
lembranas desaparecem gradualmen- te? Como a maquiagem muda a
aparncia de um rosto? De onde vm os este- 13
14. retipos tnicos e quando eles so irracionais? Por que as
pessoas perdem a calma? O que torna as crianas malcriadas? Por que
os tolos se apaixonam? O que nos faz rir? E por que as pessoas
acreditam em fantasmas e espritos? Mas o abismo entre os robs da
imaginao e os da realidade meu pon- to de partida, pois mostra o
primeiro passo que devemos dar para conhecer a ns mesmos: avaliar o
design fantasticamente complexo por trs das proezas da vida mental
s quais no damos o devido valor. A razo de no haver robs
semelhantes a seres humanos no surge da idia de uma mente mecnica
estar errada. E que os problemas de engenharia que ns, humanos,
resolve- mos quando enxergamos, andamos, planejamos e tratamos dos
afazeres dirios so muito mais desafiadores do que chegar Lua ou
descobrir a se- qncia do genoma humano. A natureza, mais uma vez,
encontrou solues engenhosas que os engenheiros humanos ainda no
conseguem reproduzir. Quando Hamlet diz: "Que obra de arte um
homem! Que nobreza de racio- cnio! Que faculdades infinitas! Na
forma e no movimento, que preciso e admirvel!", nossa admirao deve
se dirigir no a Shakespeare, Mozart, Einstein ou Kareem
Abdul-Jabbar, mas para uma criana de quatro anos atendendo a um
pedido de guardar um brinquedo na prateleira. Em um sistema bem
projetado, os componentes so caixas-pretas que desempenham suas
funes como por mgica. Ocorre exatamente assim com a mente. A
faculdade com que ponderamos o mundo no tem a capaci- dade de
perscrutar seu prprio interior ou nossas outras faculdades para ver
o que as faz funcionar. Isso nos torna vtimas de uma iluso: a de
que nossa psicologia provm de alguma fora divina, essncia
misteriosa ou princpio todo-poderoso. Na lenda judaica do Golem,
uma figura de barro foi anima- da quando a equiparam com a inscrio
do nome de Deus. Esse arqutipo reproduzido em muitas histrias de
robs. A esttua de Galatia ganhou vida com a resposta de Vnus s
preces de Pigmalio; Pinquio foi vivificado pela Fada Azul. Verses
modernas do arqutipo do Golem aparecem em algumas das menos
fantasiosas histrias da cincia. Afirma-se que toda a psicologia
humana explica-se por uma causa nica, onipotente: um crebro grande,
cultura, linguagem, socializao, aprendizado, complexidade,
auto-organi- zao, dinmica de redes neurais. Pretendo convencer voc
de que nossa mente no animada por algu- ma emanao divina ou
princpio maravilhoso nico. A mente, como a espaonave Apoo,
projetada para resolver muitos problemas de engenha- ria, sendo,
portanto, equipada com sistemas de alta tecnologia, cada qual
arquitetado para superar seus respectivos obstculos. Inicio com a
exposio desses problemas, que constituem tanto as especificaes para
o design de um rob como o tema da psicologia. Pois acredito que a
descoberta, pela 14
16. 2 5 2 2 2 4 2 2 2 2 2 4 2 3 3 2 4 4 2 2 8 2 1 3 1 4 3 1 4 1
1 3 5 1 2 8 1 3 1 1 2 9 2 5 5 2 3 5 2 3 0 2 4 9 2 5 3 2 4 0 2 2 8 1
9 3 1 4 7 1 3 9 1 3 2 1 2 8 1 3 6 1 2 5 2 5 0 2 4 5 2 3 8 2 4 5 2 4
6 2 3 5 2 3 5 1 9 0 1 3 9 1 3 6 1 3 4 1 3 5 1 2 6 1 3 0 2 4 0 2 3 8
2 3 3 2 3 2 2 3 5 2 5 5 2 4 6 1 6 8 1 5 6 1 4 4 1 2 9 1 2 7 1 3 6 1
3 4 Cada nmero representa o brilho de um dentre os milhes de
minscu- los retalhos [patches] que compem o campo visual. Os nmeros
menores provm de retalhos mais escuros; os maiores, de retalhos
mais brilhantes. Os nmeros mostrados no quadro so os verdadeiros
sinais provenientes de uma cmera eletrnica manejada pela mo de uma
pessoa, embora pudessem igualmente ser as taxas de disparo de
algumas das fibras nervosas que vo do olho ao crebro quando uma
pessoa olha para uma mo. Para reconhecer objetos e no trombar com
eles, o crebro de um rob ou um crebro humano precisa processar
laboriosamente esses nmeros e adivinhar que tipos de objetos
existentes no mundo refletem a luz que os fez aparecer. O problema
humilhantemente difcil. Primeiro, um sistema visual precisa
localizar onde termina um objeto e comea o fundo da cena. Mas o
mundo no um livro de colorir, com con- tornos pretos ao redor de
regies slidas. O mundo que se projeta em nossos olhos um mosaico de
minsculos retalhos sombreados. Talvez, poderamos supor, o crebro
visual procure regies onde uma colcha de retalhos de nmeros grandes
(uma regio mais brilhante) seja limtrofe de uma colcha de retalhos
de nmeros pequenos (uma regio mais escura). Voc pode dis- tinguir
uma fronteira desse tipo no quadrado de nmeros; ela segue na dia-
gonal, da parte superior direita para o centro da parte inferior.
Na maioria das vezes, infelizmente, voc no teria encontrado a borda
de um objeto, onde ele d lugar ao espao vazio. A justaposio de
nmeros grandes e pequenos poderia ter provindo de muitos arranjos
distintos de matria. O desenho da pgina seguinte esquerda,
concebido pelos psiclogos Pawan Sinha e Edward Adelson, parece
mostrar um circuito de ladrilhos cinza-cla- ros e cinza-escuros. Na
verdade, ele um recorte retangular em uma cobertura preta atra- vs
da qual voc est vendo uma parte da cena. No desenho direita, a
cobertura foi removida e voc pode ver que cada par de quadrados
cinza, quadrados que esto lado a lado, provm de um arranjo
diferente de objetos. Nmeros grandes ao lado de nmeros pequenos
podem provir de um objeto que est frente de outro objeto, de papel
escuro colocado sobre papel claro, de uma superfcie pintada com
dois tons de cinza, de dois objetos tocan- do-se lado a lado, de
celofane cinza sobre uma pgina branca, de um canto interior ou
exterior onde duas paredes se encontram ou de uma sombra. De alguma
forma o crebro precisa resolver esse problema de "quem nasceu pri-
16
17. meiro: o ovo ou a galinha?" tem de identificar objetos
tridimensionais a partir dos retalhos na retina e determinar o que
cada retalho (sombra ou pin- tura, dobra ou revestimento, claro ou
opaco) a partir do conhecimento do objeto do qual o retalho faz
parte. As dificuldades apenas comearam. Depois de termos esculpido
o mundo visual em objetos, precisamos saber do que eles so feitos,
digamos, distinguir neve de carvo. A primeira vista, o problema
parece simples. Se os nmeros grandes provm de regies brilhantes e
os pequenos, de regies escuras, ento nmero grande eqivale a branco,
que eqivale a neve, e nmero pequeno eqivale a preto, que eqivale a
carvo, certo? Errado. A quantidade de luz que atinge um local da
retina depende no s do quanto um objeto claro ou escuro, mas tambm
do quanto brilhante ou opaca a luz que ilumina o objeto. O medidor
de luz de um fotgrafo mostraria a voc que mais luz ricocheteia de
um pedao de carvo que est ao ar livre do que de uma bola de neve
dentro de casa. Por isso que tantas pessoas muitas vezes se
decepcionam com seus instantneos e a fotografia um ofcio to compli-
cado. A cmera no mente; se deixada a seus prprios recursos, ela
mostra cenas ao ar livre como leite e cenas de interior como lama.
Os fotgrafos, e s vezes microchips existentes na cmera, com
jeitinho persuadem o filme a fornecer uma imagem realista,
servindo-se de truques como regulagem do tempo do obturador,
aberturas das lentes, velocidades de filme, flashes e manipulaes na
cmara escura. 17
18. Nosso sistema visual faz muito melhor. De algum modo, ele
permite que vejamos o brilhante carvo ao ar livre como um objeto
preto e a escura bola de neve dentro de casa como algo branco. Esse
um resultado adequa- do, pois nossa sensao consciente de cor e
luminosidade condiz com o mun- do como ele em vez de com o mundo
como ele se apresenta aos olhos. A bola de neve macia, molhada e
tende a derreter esteja dentro ou fora de casa, e ns a vemos branca
esteja ela dentro ou fora. O carvo sempre preto, sujo e tende a
queimar, e sempre o vemos preto. A harmonia entre como o mundo
parece ser e como ele tem de ser uma realizao de nossa magia
neural, pois preto e branco no se anunciam simplesmente na retina.
Caso voc ainda esteja ctico, eis uma demonstrao corriqueira. Quando
um televisor desligado, a tela de uma cor cinza-esverdeada clara.
Quando o aparelho est ligado, alguns dos pontos fosforescentes
emitem luz, pintando as reas brilhantes da imagem. Mas os outros
pontos no sugam luz e pintam as reas escuras; eles simplesmente se
mantm cinzentos. As reas que voc enxerga como pretas so, na
verdade, apenas a sombra plida do tubo de imagem que vemos quando o
aparelho est desligado. O negrume no real, um produ- to dos
circuitos cerebrais que normalmente permitem que voc veja o car- vo
como carvo. Os engenheiros da televiso exploraram esses circuitos
quando projetaram a tela. O problema seguinte ver em profundidade.
Nossos olhos esmagam o mundo tridimensional transformando-o num par
de imagens retinianas bidi- mensionais, e a terceira dimenso
precisa ser reconstituda no crebro. Mas no h sinais reveladores nos
retalhos projetados na retina que indiquem o quanto uma superfcie
se encontra distante. Um selo na palma de sua mo pode projetar
sobre sua retina o mesmo quadrado que uma cadeira do outro lado da
sala ou um prdio a quilmetros de distncia (pgina seguinte, figura
1). Uma tbua de cortar vista de frente pode projetar o mesmo
trapezide que vrios fragmentos irregulares dispostos em posies
inclinadas (figura 2). Voc pode perceber a intensidade deste fato
da geometria, e do me- canismo neural que lida com ele, fitando uma
lmpada durante alguns segundos ou olhando para uma cmera quando o
flash dispara, o que tempo- rariamente produz um retalho branco em
sua retina. Se em seguida voc olhar a pgina sua frente, a ps-imagem
adere a ela e parece ter uma ou duas polegadas de um lado a outro.
Se olhar para a parede, a ps-imagem parece ter pouco mais de um
metro de comprimento. Se olhar para o cu, ela do tamanho de uma
nuvem. 18
19. Finalmente, como um mdulo de viso poderia reconhecer os
objetos que esto l fora, no mundo, de modo que o rob possa nome-los
ou lem- brar o que eles fazem? A soluo bvia construir um gabarito
ou molde para cada objeto, duplicando sua forma. Quando um objeto
aparece, sua proje- o na retina se ajustaria a seu prprio gabarito,
como um pino redondo em um buraco redondo. O gabarito seria
rotulado com o nome da formaneste caso, "a letra P" , e, sempre que
uma forma coincidisse com ele, o gabari- to anunciaria o nome.
Infelizmente, esse dispositivo simples funciona mal de ambos os
modos possveis. Ele v letras P que no esto ali; por exemplo, d um
alarme falso para o R mostrado no primeiro retngulo abaixo. E deixa
de ver letras P que esto l; por exemplo, no a v quando ela est fora
de lugar, inclinada, obl- qua, longe demais, perto demais ou
enfeitada demais: 19
20. E esses problemas surgem com uma letra do alfabeto precisa
e bem defi- nida. Imagine ento tentar criar um "reconhecedor" para
uma camisa ou um rosto! Sem dvida, aps quatro dcadas de pesquisas
em inteligncia artifi- cial, a tecnologia do reconhecimento de
formas melhorou. Voc talvez possua software para escanear uma
pgina, reconhecer a impresso e conver- t-la com razovel preciso em
um arquivo de bytes. Mas os reconhecedores de forma artificiais
ainda no so preo para o que temos em nossa cabea. Os artificiais so
projetados para mundos puros, fceis de reconhecer e no para o
entrelaado, misturado mundo real. Os numerozinhos engraados na
parte inferior dos cheques foram cuidadosamente desenhados, de modo
que suas formas no se sobreponham, e impressos com um equipamento
especial que os posiciona com exatido para que possam ser
reconhecidos por gaba- ritos. Quando os primeiros reconhecedores de
rosto forem instalados em prdios para substituir os porteiros, nem
tentaro interpretar o claro-escuro de seu rosto; escanearo os
contornos bem delineados, rgidos de sua ris ou de seus vasos
sangneos retinianos. Nosso crebro, em contraste, mantm um registro
da forma de cada rosto que conhecemos (e de cada letra, animal,
instrumento etc.), e o registro de algum modo ajusta-se a uma
imagem reti- niana mesmo quando ela distorcida de todas as maneiras
que menciona- mos. No captulo 4 examinaremos o modo como o crebro
realiza essa proeza magnfica. Vejamos mais um milagre cotidiano:
transportar um corpo de um lugar para outro. Quando desejamos que
uma mquina se mova, ns a colocamos sobre rodas. A inveno da roda
freqentemente apregoada como a mais louvvel realizao da civilizao.
Muitos livros didticos ressaltam que nenhum animal desenvolveu
rodas ao longo de sua evoluo, citando esse fato como um exemplo de
que a evoluo muitas vezes incapaz de encon- trar a soluo tima para
um problema de engenharia. Mas esse no , abso- lutamente, um bom
exemplo. Mesmo que a natureza pudesse fazer um alce evoluir at lhe
aparecerem rodas, ela decerto optaria por no faz-lo. Rodas so teis
somente num mundo com estradas e trilhos. Atolam em qualquer
terreno mole, escorregadio, ngreme ou irregular. As pernas so
melhores. 20
21. As rodas precisam rolar sobre uma superfcie contnua de
apoio, mas as per- nas podem ser colocadas em uma srie de bases de
apoio diferentes, sendo a escada um exemplo extremo. As pernas
tambm podem ser posicionadas de modo a minimizar cambaleios e a
passar por cima de obstculos. Mesmo hoje em dia, quando o mundo
parece ter se transformado em um estacionamen- to, apenas cerca da
metade do solo do planeta acessvel a veculos com rodas ou trilhos,
mas a maior parte dos terrenos do planeta acessvel a ve- culos com
ps ou patas: animais, os veculos projetados pela seleo natural. Mas
as pernas tm um preo alto: o software para control-las. Uma roda,
simplesmente girando, muda gradualmente seu ponto de apoio e pode
suportar peso o tempo todo. Uma perna precisa mudar seu ponto de
apoio de uma vez s, e o peso tem de ser descarregado para que ela
possa faz-lo. Os motores que controlam a perna tm de alternar entre
manter o p no cho enquanto ele sustenta e impele a carga e
descarregar o peso para deixar a per- na livre para mover-se.
Durante todo esse tempo, preciso manter o centro de gravidade do
corpo dentro do polgono definido pelos ps, de modo que o corpo no
tombe. Os controladores tambm devem minimizar o desperdi- ador
movimento de sobe-desce que o tormento dos que cavalgam. Nos
brinquedos de corda que andam, esses problemas so toscamente
resolvidos por um encadeamento mecnico que converte um eixo
giratrio em movi- mento de passos. Mas os brinquedos no podem
ajustar-se ao terreno encon- trando o melhor apoio para os ps.
Mesmo se resolvssemos esses problemas, teramos descoberto apenas
como controlar um inseto ambulante. Com seis pernas, um inseto
sempre capaz de manter um trip no cho enquanto ergue o outro trip.
Em todos os instantes ele se mantm estvel. Mesmo os animais
quadrpedes, quan- do no se movem rpido demais, conseguem manter um
trip no cho o tempo todo. Mas, como comentou um engenheiro, "a
prpria locomoo ereta sobre dois ps do ser humano parece quase uma
receita para o desas- tre, sendo necessrio um notvel controle para
torn-la praticvel". Quan- do andamos, repetidamente nos
desequilibramos e interrompemos a queda no momento preciso. Quando
corremos, decolamos em arrancadas de vo. Essas acrobacias areas nos
permitem fixar os ps em apoios muito separa- dos, ou separados de
um modo errtico, que no nos apoiariam se estivsse- mos parados, e
permitem tambm nos espremermos em caminhos estreitos e saltar
obstculos. Mas ningum at agora descobriu como fazemos isso.
Controlar um brao representa um novo desafio. Segure uma lumin- ria
de arquiteto e movimente-a diagonalmente em uma reta que parte de
perto de voc, abaixa-se esquerda, afasta-se e sobe direita. Observe
as hastes e articulaes enquanto a luminria se move. Embora a
luminria 21
22. siga uma linha reta, cada haste volteia em um arco
complexo, ora precipi- tando-se com rapidez, ora permanecendo quase
parada, s vezes passando de uma curva para um movimento reto.
Agora, imagine ter de fazer tudo ao contrrio: sem olhar para a
luminria, voc tem de coreografar a seqncia dos volteios ao redor de
cada junta que iro mover a luminria ao longo da trajetria reta. A
trigonometria pavorosamente complicada. Mas seu brao uma luminria
de arquiteto, e seu crebro, sem esforo, resolve as equaes toda vez
que voc aponta para alguma coisa. E, se voc alguma vez j segurou
uma luminria de arquiteto pela braadeira que a prende, perce- ber
que o problema ainda mais difcil do que descrevi. A lmpada balan- a
sob seu peso, como se tivesse vontade prpria; o mesmo faria seu
brao caso seu crebro no compensasse o peso, resolvendo um problema
de fsi- ca quase intratvel. Uma faanha ainda mais admirvel
controlar a mo. Quase 2 mil anos atrs, o mdico grego Galeno
salientou a primorosa engenharia natu- ral existente na mo humana.
Ela um nico instrumento que manipula objetos de uma espantosa
variedade de tamanhos, formas e pesos, de um tronco de rvore a uma
semente de paino. "O homem manuseia todos eles to bem quanto se
suas mos houvessem sido feitas visando exclusivamente a cada um",
observou Galeno. A mo pode ser configurada como um gancho (para
levantar um balde), uma tesoura (para segurar um cigarro), um man-
dril de cinco mordentes (para erguer um porta-copos), um mandril de
trs mordentes (para segurar um lpis), um mandril de dois mordentes
com almofadas opostas (para costurar com agulha), um mandril de
dois morden- tes com uma almofada encostada em um lado (para girar
uma chave), em posio de apertar (para segurar um martelo), como um
disco que prende e gira (para abrir um vidro) e numa posio esfrica
(para pegar uma bola). Cada posio de segurar requer uma combinao
precisa de tenses muscu- lares que moldam a mo na forma apropriada
e a mantm assim, enquanto a carga tenta faz-la reassumir a forma
inicial. Pense em erguer um pacote de leite longa vida. Se no
apertar o suficiente, voc o deixar cair; se apertar demais, o
esmagar; e balanando de leve voc pode at mesmo usar os movimentos
sob as pontas dos dedos como um medidor de nvel para saber quanto
leite h dentro! E nem comearei a falar sobre a lngua, um balo de
gua sem ossos controlado apenas por apertos, capaz de tirar comida
de um dente posterior ou de executar o bal que articula palavras
como trincheiras e sextos. 22
23. "Um homem comum maravilha-se com coisas incomuns; um sbio
maravilha-se com o corriqueiro." Conservando na mente a mxima de
Con- fcio, continuemos o exame de atos humanos corriqueiros com os
olhos peculiares de um projetista de rob que procura duplicar esses
atos. Finja que, de algum modo, construmos um rob capaz de enxergar
e mover-se. O que ele far com o que vir? De que maneira decidir
como agir? Um ser inteligente no pode tratar cada objeto que v como
uma enti- dade nica, diferente de tudo o mais no universo. Precisa
situar os objetos em categorias, para poder aplicar ao objeto que
tiver diante de si o conheci- mento que adquiriu arduamente a
respeito de objetos semelhantes, encon- trados no passado. Mas,
sempre que algum tenta programar um conjunto de critrios para
abranger os membros de uma categoria, a categoria desintegra-se.
Deixando de lado conceitos ardilosos como "beleza" ou "materialismo
dialtico", veja- mos um exemplo didtico de um conceito bem
definido: "solteiro". Um sol- teiro, est claro, simplesmente um
homem adulto que nunca se casou. Agora imagine que uma amiga
pediu-lhe para convidar alguns solteiros para a festa que ela vai
dar. O que aconteceria se voc usasse essa definio para decidir qual
das pessoas a seguir ir convidar? Arthur vive feliz com Alice h
cinco anos. Eles tm uma filha de dois anos e nunca se casaram
oficialmente. Bruce estava prestes a ser convocado pelo Exrcito,
por isso casou com sua amiga Barbara para conseguir a dispensa. Os
dois nunca viveram juntos. Ele j teve vrias namoradas e tenciona
obter a anulao do casamento assim que encontrar algum com quem
deseje casar. Charlie tem dezessete anos. Mora na casa dos pais e
est no curso secundrio. David tem dezessete anos. Saiu de casa aos
treze, comeou um pequeno neg- cio e hoje em dia um bem-sucedido
jovem empresrio que leva uma vida de playboy em seu apartamento de
cobertura. Eli e Edgar formam um casal homossexual e vivem juntos h
vrios anos. Faisal est autorizado pela lei de sua terra natal, Abu
Dhabi, a ter trs esposas. Atualmente tem duas e est interessado em
conhecer outra noiva em potencial. Padre Gregory bispo da catedral
catlica em Groton upon Thames. 23
24. Essa lista, fornecida pelo cientista da computao Terry
Winograd, mostra que a definio direta de "solteiro" no captura
nossas intuies quanto a quem se enquadra na categoria. Saber quem
solteiro apenas uma questo de bom senso, mas no h nada de banal no
bom senso. De algum modo, ele tem de encontrar seu cami- nho em um
crebro de ser humano ou de rob. E o bom senso no simples- mente um
almanaque sobre a vida que pode ser ditado por um professor ou
transferido como um enorme banco de dados. Nenhum banco de dados
poderia arrolar todos os fatos que conhecemos tacitamente, e ningum
jamais nos ensinou esses fatos. Voc sabe que, quando Irving pe o
cachor- ro no carro, o animal no est mais no quintal. Quando Edna
vai igreja, sua cabea vai junto. Se Doug est dentro da casa, deve
ter entrado por alguma passagem, a menos que tenha nascido ali e
dali nunca tivesse sado. Se Sheila est viva s nove da manh e est
viva s cinco da tarde, tambm estava viva ao meio-dia. As zebras na
selva nunca usam pijama. Abrir um vidro de uma nova marca de
manteiga de amendoim no encher a casa de vapor. As pes- soas nunca
enfiam termmetros para alimentos na orelha. Um esquilo menor que o
monte Kilimanjaro. Portanto, um sistema inteligente no pode ser
entupido com trilhes de fatos. Tem de ser equipado com uma lista
menor de verdades essenciais e um conjunto de regras para deduzir
suas implicaes. Mas as regras do bom senso, assim como as
categorias do bom senso, so frustrantemente difceis de estabelecer.
Mesmo as mais diretas no conseguem capturar nosso raciocnio
cotidiano. Mavis mora em Chicago e tem um filho cha- mado Fred, e
Millie mora em Chicago e tem um filho chamado Fred. Porm, embora a
Chicago onde Mavis mora seja a mesma Chicago onde Millie mora, o
Fred que filho de Mavis no o mesmo Fred que filho de Millie. Se h
uma sacola em seu carro e um litro de leite na sacola, ento h um
litro de leite em seu carro. Mas, se h uma pessoa em seu carro e um
litro de sangue em uma pessoa, seria estranho concluir que h um
litro de sangue em seu carro. Ainda que voc conseguisse elaborar um
conjunto de regras que origi- nassem apenas concluses sensatas, no
nada fcil usar todas elas para guiar inteligentemente o
comportamento. Evidentemente, quem pensa no pode aplicar apenas uma
regra por vez. Um fsforo emite luz; um serrote cor- ta madeira; uma
fechadura de porta aberta com uma chave. Mas rimos de algum que
acende um fsforo para espiar o que h num tanque de combus- tvel,
que serra a perna sobre a qual se apoia ou que tranca o carro com a
chave em seu interior e passa a hora seguinte tentando descobrir
como tirar 24
25. a famlia l de dentro. Quem pensa precisa computar no apenas
os efeitos diretos de uma ao, mas os efeitos colaterais tambm. No
entanto quem pensa no pode ficar fabricando previses sobre todos os
efeitos colaterais. O filsofo Daniel Dennett pede-nos que
imaginemos um rob projetado para buscar uma bateria de reserva em
uma sala que tam- bm contm uma bomba-relgio. A Verso 1 viu que a
bateria estava em um carrinho e que, se puxasse o carrinho, a
bateria viria junto. Infelizmente, a bomba tambm estava no
carrinho, e o rob no deduziu que pux-lo traria junto a bomba. A
Verso 2 foi programada para levar em conta todos os efei- tos
colaterais de suas aes. Acabara de computar que puxar o carrinho no
mudaria a cor das paredes da sala e estava provando que as rodas
fariam mais giros do que o nmero de rodas existentes no carrinho
quando a bomba explodiu. A Verso 3 estava programada para
distinguir entre implicaes relevantes e irrelevantes. Ficou ali
parada, deduzindo milhes de implica- es e colocando todas as
relevantes em uma lista de fatos a considerar e todas as
irrelevantes em uma lista de fatos a desconsiderar, enquanto a bom-
ba-relgio tiquetaqueava. Um ser inteligente precisa deduzir as
implicaes do que ele sabe, mas apenas as implicaes relevantes.
Dennett ressalta que esse requisito representa um problema imenso
no s para se projetar um rob mas tam- bm para a epistemologia, a
anlise do como sabemos. Esse problema escapou observao de geraes de
filsofos, tornados complacentes pela ilusria falta de esforo de seu
prprio bom senso. S quando os pes- quisadores da inteligncia
artificial tentaram duplicar o bom senso em computadores, a suprema
tbula rasa, o enigma, atualmente denominado "problema do modelo"
[frame problem], veio luz. Entretanto, de algum iTiodo, todos ns
resolvemos o problema do modelo quando usamos nos- so bom senso.
Imagine que de alguma forma superamos esses desafios e temos uma
mquina com viso, coordenao motora e bom senso. Agora precisamos
descobrir como o rob os usar. Temos de dar a ele motivos. O que um
rob deveria desejar ? A resposta clssica est nas Regras Fun-
damentais da Robtica, de Isaac Asimov, "as trs regras que esto
embutidas mais profundamente no crebro positrnico de um rob": 1. Um
rob no pode ferir um ser humano ou, por inao, permitir que um ser
humano sofra qualquer mal. 25
26. 2. Um rob tem de obedecer s ordens que os seres humanos lhe
derem, exceto quando essas ordens entrem em conflito com a Primeira
Lei. 3. Um rob tem de proteger sua prpria existncia, desde que essa
pro- teo no entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.
Asimov, com perspiccia, notou que a autopreservao, esse imperati-
vo biolgico universal, no emerge automaticamente em um sistema com-
plexo. Ela tem de ser programada (neste caso, como a Terceira Lei).
Afinal, to fcil construir um rob que permita a sua prpria runa ou
elimine um defeito cometendo suicdio quanto construir um rob que
sempre cuide do Patro. Talvez seja at mais fcil; os fabricantes de
robs s vezes assistem horrorizados s suas criaes alegremente
cortando fora um membro ou se despedaando contra a parede, e uma
proporo significativa das mquinas mais inteligentes do mundo so os
msseis de cruzeiro e as bombas guiadas "inteligentes". Mas a
necessidade das duas outras leis est longe de ser bvia. Por que dar
a um rob uma ordem para que ele obedea s ordens as ordens ori-
ginais no bastam? Por que comandar um rob para que ele no faa mal
no seria mais fcil nunca mandar que ele fizesse mal? Ser que o uni-
verso contm uma fora misteriosa que impele as entidades para a
malda- de, de modo que um crebro positrnico precisa ser programado
para resistir a ela? Nos seres inteligentes inevitavelmente se
desenvolve um problema de atitude? Neste caso, Asimov, assim como
geraes de pensadores, como todos ns, foi incapaz de se desvencilhar
de seus prprios processos de pensamento e de v-los como um produto
do modo como nossa mente foi formada, em vez de v-los como leis
inescapveis do universo. A capacidade do homem para o'mal nunca se
afasta de nossa mente, e fcil julgar que o mal simples- mente vem
junto com a inteligncia, como parte de sua prpria essncia. Esse um
tema recorrente em nossa tradio cultural: Ado e Eva comendo o fru-
to da rvore do conhecimento, o fogo de Prometeu e a caixa de
Pandora, o violento Golem, o pacto de Fausto, o Aprendiz de
Feiticeiro, as aventuras de Pinquio, o monstro de Frankenstein, os
macacos assassinos e o amotinado HAL de 2001: Uma odissia no espao.
Da dcada de 50 at o fim dos anos 80, inmeros filmes no gnero
computador desvairado refletiram o temor popu- lar de que os
exticos mainframes da poca viessem a ficar mais espertos e mais
poderosos e, algum dia, se voltassem contra ns. Agora que os
computadores realmente ficaram mais espertos e mais poderosos, a
ansiedade esvaeceu. Os ubquos computadores em rede da atua- lidade
tm uma capacidade sem precedentes para fazer o mal se algum dia se
26
27. tornarem perversos. Mas as nicas aes danosas provm do caos
imprevis- vel ou da maldade humana em forma de vrus. J no nos
preocupamos com serial killers eletrnicos ou subversivas conspiraes
de silcio, porque esta- mos comeando a perceber que a maldade assim
como a viso, a coorde- nao motora e o bom senso no aparece
livremente com a computao, ela tem de ser programada. O computador
que roda o WordPerfect em sua mesa continuar a encher pargrafos
enquanto for capaz de alguma coisa. Seu software no sofrer uma
mutao insidiosa para a depravao como o retrato de Dorian Gray.
Mesmo que isso fosse possvel, por que ele o desejaria? Para
conseguir ...o qu? Mais discos flexveis? O controle do sistema
ferrovirio do pas? Satisfao de um desejo de cometer violncia
gratuita contra os tcnicos de manuteno da impressora a laser? E ele
no teria de se preocupar com a represlia dos tcnicos, que, com uma
volta de parafuso, poderiam deix-lo pateticamente cantando o
"Parabns a voc"? Uma rede de computadores talvez pudesse descobrir
a segurana de agir em um grupo numeroso e tramar uma tomada
organizada do poder mas o que levaria um computador a se oferecer
como voluntrio para disparar o pacote de dados ouvidos no mun- do
inteiro e arriscar-se a ser o primeiro mrtir? E o que impediria que
a coa- lizo fosse solapada por desertores de silcio e opositores
conscientes? A agresso, como todas as demais partes do
comportamento humano que supo- mos naturais e espontneas, um
dificlimo problema de engenharia! Mas, por outro lado, os motivos
mais benvolos, mais brandos, tam- bm so. Como voc projetaria um rob
para obedecer ordem de Asimov de jamais permitir que um ser humano
sofresse algum mal devido inao? O romance The tin meu, de Michael
Frayn, publicado em 1965, tem como cenrio um laboratrio de robtica;
os engenheiros da Ala tica, Macin- tosh, Goldwasser e Sinson, esto
testando o altrusmo de seus robs. Levaram demasiadamente ao p da
letra o hipottico dilema mencionado em todos os livros didticos de
filosofia moral no qual duas pessoas se encontram em um barco
salva-vidas construdo para apenas uma, e ambas morrero se uma delas
no se lanar ao mar. Assim, os cientistas colocam cada rob numa
balsa com outro ocupante, depositam a balsa em um tan- que e
observam o que acontece. [Na] primeira tentativa, Samaritano I se
jogara na gua com grande entusias- mo, mas se jogara na gua para
salvar qualquer coisa que por acaso estivesse a seu lado na balsa,
de sete caroos de lima a doze sementes molhadas de alga marinha.
Aps muitas semanas de discusso obstinada, Macintosh admitira que a
falta de discriminao era insatisfatria, abandonando Samaritano I e
27
28. construindo Samaritano II, o qual se sacrificaria apenas
por um organismo pelo menos to complicado quanto ele prprio. A
balsa parou, girando lentamente, a alguns centmetros da superfcie
da gua. "Deixe cair", gritou Macintosh. A balsa atingiu a gua com
estrondo. Sinson e Samaritano sentaram-se muito quietos.
Gradualmente, a balsa foi parando, at que uma tnue cama- da de gua
comeou a penetrar nela. Imediatamente, Samaritano inclinou- se
frente e agarrou a cabea de Sinson. Com quatro movimentos precisos,
mediu o tamanho de seu crnio e depois parou* computando. Ento, com
um clique resoluto, rolou para o lado at cair da balsa e afundou
sem hesitao no tanque. Mas, medida que os robs Samaritano II
passavam a comportar-se como os agentes virtuosos dos livros de
filosofia, ficava cada vez menos claro se havia neles realmente
alguma virtude. Macintosh explicou por que sim- plesmente no atava
uma corda no abnegado rob para facilitar recuper-lo: "No quero que
ele saiba que ser salvo. Isso invalidaria sua deciso de sacri-
ficar-se [...] Por isso, de vez em quando, deixo um deles l dentro,
em vez de pesc-lo. Para mostrar aos outros que no estou brincando.
Dei baixa em dois esta semana". Tentar saber o que preciso para
programar a bondade em um rob mostra no s quanto mecanismo preciso
para ser bom mas, antes de mais nada, o quanto ardiloso o conceito
de bondade. E quanto ao mais afetuoso de todos os motivos? Os
vacilantes compu- tadores da cultura pop dos anos 60 no eram
tentados s pelo egosmo e o poder, como vemos na cano do comediante
Allan Sherman, "Automa- tion", cantada no mesmo tom de "Fascinao":
11 was automation, I know. That was what was making the factory go.
It was IBM, it was Univac. It was ali those gears going clickety
clack, dear. I thought automation was keen Till you were replaced
by a ten-ton machine. It was a computer that tore us apart, dear,
Automation broke my heart [...] It was automation, Vm told, That's
why I gotfired and Fm out in the cold. How could I have known, when
the 503 Started in to blink, it was winking at me, dear? I thought
it was just some mishap When it sidled over and sat on my lap.
28
29. But when it said "I love you" and gave me a hug, dear,
That's when Ipulledout... its... plug.* Mas, apesar de toda a
doidice que o caracteriza, o amor no falha mec- nica, pane ou
defeito de funcionamento. A mente nunca est to maravilho- samente
concentrada como quando se volta para o amor, e deve haver clculos
intricados que pem em prtica a singular lgica da atrao, fascina- o,
corte, recato, entregaf compromisso, insatisfao, escapada, cime,
abandono e desolao. E no fim, como dizia minha av, cada panela
encon- tra sua tampa; a maioria das pessoas incluindo,
significativamente, todos os nossos ancestrais d um jeito de viver
com um parceiro tempo suficien- te para produzir filhos viveis.
Imagine quantas linhas de programa seria pre- ciso para duplicar
isso! Projetar um rob uma espcie de tomada de conscincia. Tendemos
a ter uma atitude blas com respeito nossa vida mental. Abrimos os
olhos, e artigos familiares aparecem; desejamos que nossos membros
se movam, e objetos e corpos flutuam at o lugar desejado; acordamos
depois de um so- nho e voltamos para um mundo tranqilizadoramente
previsvel; Cupido retesa o arco e dispara a flecha. Mas pense no
que seria necessrio para um pedao de matria obter todos esses
resultados improvveis e voc comea- r a enxergar atravs da iluso.
Viso, ao, bom senso, violncia, moralida- de e amor no so acidentes,
no so ingredientes inextricveis de uma essncia inteligente, nem
inevitabilidade de um processamento de informa- es. Cada uma dessas
coisas um tour de force, elaborado por um alto nvel de design
deliberado. Oculto por trs dos painis da conscincia, deve exis- tir
um mecanismo fantasticamente complexo analisadores pticos, siste-
mas de orientao de movimento, simulaes do mundo, bancos de dados
sobre pessoas e coisas, programadores de objetivos, solucionadores
de con- flitos e muitos outros. Qualquer explicao sobre como a
mente funciona que faa uma aluso esperanosa a alguma fora mestra
nica ou a um elixir produtor de mente como "cultura", "aprendizado"
ou "auto-organizao" (*) "Era a automao, eu sei./ Era o que estava
fazendo a fbrica funcionar./ Era IBM, era Univac./ Eram todas
aquelas engrenagens fazendo clqueti-clqueti, querida./ Eu achava a
automao uma bele- za/ At que substituram voc por uma mquina de dez
toneladas./ Foi um computador que nos separou, querida,/ A automao
partiu meu corao [...]// Foi a automao, me disseram,/ Por causa
dela fui des- pedido e no tenho onde cair morto./ Como que eu podia
saber, quando a 503/ Comeou a lampejar, que ela estava piscando
para mim, querida?/ Pensei que fosse um mero acidente/ Quando ela
veio che- gando de lado e sentou no meu colo./ Mas quando ela disse
'eu te amo' e me abraou, querida,/ Foi quan- do eu puxei... seu...
plugue." 29
30. comea a parecer vazia, absolutamente incapaz de satisfazer
as exigncias do impiedoso universo com o qual lidamos to bem. O
desafio do rob permite entrever uma mente munida de equipamen- to
original, mas ainda pode parecer a voc um argumento meramente teri-
co. Ser que de fato encontramos sinais dessa complexidade quando
examinamos diretamente o mecanismo da mente e os projetos para
mont- lo? Acredito que sim, e o que vemos nos amplia os horizontes
tanto quanto o prprio desafio do rob. Quando as reas visuais do
crebro sofrem dano, por exemplo, o mun- do visual no fica
simplesmente embaado ou crivado de buracos. Determi- nados aspectos
da experincia visual so eliminados enquanto outros ficam intactos.
Alguns pacientes vem um mundo completo mas s prestam aten- o a
metade dele. Comem a comida que est do lado direito do prato, fazem
a barba s na face direita e desenham um relgio com doze nmeros
espre- midos na metade direita do mostrador. Outros pacientes
perdem a sensao de cor, mas no vem o mundo como um filme de arte em
preto-e-branco. As superfcies lhes parecem encardidas e
pardacentas, acabando com seu apetite e libido. H tambm quem pode
ver os objetos mudarem de posio mas no consegue v-los em movimento
uma sndrome que um filsofo certa vez tentou convencer-me de que era
logicamente impossvel! O vapor de uma chaleira no flui, parece um
pingente de gelo; a xcara no se enche gradualmente com ch; est
vazia e de repente fica cheia. Outros pacientes no so capazes de
reconhecer os objetos que vem: seu mundo como uma caligrafia que no
conseguem decifrar. Eles copiam fielmente um pssaro mas o
identificam como um toco de rvore. Um isquei- ro um mistrio at ser
aceso. Quando tentam tirar as ervas daninhas do jar- dim, eles
arrancam as rosas. Alguns pacientes conseguem reconhecer objetos
inanimados, mas no rostos. O paciente deduz que a face no espelho
deve ser a sua prpria, mas no se reconhece naturalmente. Identifica
John F. Kennedy como Martin Luther King e pede esposa para usar uma
fita durante uma festa para poder encontr-la na hora de ir embora.
Mais estra- nho ainda o paciente que reconhece o rosto mas no a
pessoa: v sua espo- sa como uma impostora espantosamente
convincente. Essas sndromes so causadas por um dano, geralmente um
derrame, em uma ou mais das trinta reas cerebrais que compem o
sistema visual dos pri- matas. Algumas reas so especializadas para
a cor e a forma, outras para o local do objeto, ou para o que o
objeto, e outras ainda para o modo como o objeto se move. Um rob
que v no pode ser construdo apenas com o visor olho-de-peixe dos
filmes de cinema, e no surpreende descobrir que os humanos tambm no
so feitos dessa maneira. Quando contemplamos o 30
31. mundo, no discernimos as muitas camadas de mecanismos que
fundamen- tam nossa experincia visual unificada at que uma doena
neurolgica as disseque para ns. Outro alargamento de horizonte
proporcionado pelas espantosas semelhanas entre gmeos idnticos, que
compartilham as receitas genti- cas construtoras da mente. Suas
mentes so assombrosamente semelhantes, e no s em medidas grosseiras
como o QI e em traos de personalidade como neuroticismo e
introverso. Eles so semelhantes em talentos como soletra- o e
matemtica, nas opinies sobre questes como apartheid, pena de morte
e mes que trabalham fora, na escolha da carreira, nos hobbies,
vcios, devoes religiosas e gosto para namoradas. Os gmeos idnticos
so muito mais parecidos do que os gmeos fraternos, que compartilham
apenas meta- de das receitas genticas e, o que mais surpreendente,
os que so criados separadamente so quase to parecidos quanto os que
so criados juntos. Gmeos idnticos separados ao nascer tm em comum
caractersticas como entrar na gua de costas e s at os joelhos,
abster-se de votar nas eleies por sentirem-se insuficientemente
informados, contar obsessivamente tudo o que est vista, tornar-se
capito da brigada voluntria de incndio e deixar pela casa
bilhetinhos carinhosos para a esposa. As pessoas acham essas
descobertas impressionantes, at mesmo ina- creditveis. Descobertas
assim lanam dvidas sobre o "eu" autnomo que todos ns sentimos
pairar sobre nosso corpo, fazendo escolhas enquanto seguimos pela
vida e afetado exclusivamente pelos nossos ambientes do pas- sado e
do presente. Decerto a mente no vem equipada com tantas partes
minsculas para poder nos predestinar a dar a descarga antes e
depois de usar o vaso sanitrio ou a espirrar por brincadeira em
elevadores apinhados, citando aqui duas outras caractersticas
compartilhadas por gmeos idnti- cos criados separadamente. Mas, ao
que parece, isso ocorre. Os efeitos abrangentes dos genes foram
documentados em numerosos estudos e se evi- denciam
independentemente do modo como so testados: comparando gmeos
criados separadamente e criados juntos, comparando gmeos idn- ticos
e fraternos, comparando filhos adotivos e biolgicos. E, apesar do
que os crticos s vezes alegam, os efeitos no so explicados por
coincidncia, fraude ou semelhanas sutis nos ambientes familiares
(como agncias de adoo empenhadas em colocar gmeos idnticos em lares
que incentivem entrar de costas no mar). As descobertas,
naturalmente, podem ser mal interpretadas de vrias maneiras, como
por exemplo imaginando um gene para deixar bilhetinhos carinhosos
pela casa ou concluindo que as pessoas no so afetadas por suas
experincias. E uma vez que esses estudos podem medir apenas os
modos como as pessoas diferem, eles pouco informam sobre 31
32. o padro da mente que todas as pessoas normais tm em comum.
Mas, mos- trando de quantos modos a mente pode variar em sua
estrutura inata, as des- cobertas abrem nossos olhos para quanta
estrutura a mente deve possuir. ENGENHARIA REVERSA DA PSIQUE A
complexa estrutura da mente o tema deste livro. Sua idia funda-
mental pode ser expressa em uma sentena: a mente um sistema de rgos
de computao, projetados pela seleo natural para resolver os tipos
de pro- blemas que nossos ancestrais enfrentavam em sua vida de
coletores de ali- mentos, em especial entender e superar em
estratgia os objetos, animais, plantas e outras pessoas. Essa
sntese pode ser desdobrada em vrias afirma- es. A mente o que o
crebro faz; especificamente, o crebro processa informaes, e pensar
um tipo de computao. A mente organizada em mdulos ou rgos mentais,
cada qual com um design especializado que faz desse mdulo um perito
em uma rea de interao com o mundo. A lgica bsica dos mdulos
especificada por nosso programa gentico. O funcio- namento dos
mdulos foi moldado pela seleo natural para resolver os pro- blemas
da vida de caa e extrativismo vivida por nossos ancestrais durante
a maior parte de nossa histria evolutiva. Os vrios problemas para
nossos ancestrais eram subtarefas de um grande problema para seus
genes: maximi- zar o nmero de cpias que chegariam com xito gerao
seguinte. Dessa perspectiva, a psicologia uma engenharia "para
trs". Na enge- nharia "para a frente", projeta-se uma mquina para
fazer alguma coisa; na engenharia reversa, descobre-se para que
finalidade uma mquina foi proje- tada. Engenharia reversa o que os
peritos da Sony fazem quando um novo produto anunciado pela
Panasonic, ou vice-versa. Eles compram um exemplar, levam para o
laboratrio, aplicam-lhe a chave de fenda e tentam descobrir para
que servem todas as partes e como elas se combinam para fazer o
dispositivo funcionar. Todos ns fazemos engenharia reversa quando
esta- mos diante de um novo aparelho interessante. Remexendo numa
loja de antigidades, podemos encontrar alguma geringona que
inescrutvel at descobrirmos o que ela foi projetada para fazer.
Quando percebemos que se trata de um descaroador de azeitona,
entendemos subitamente que o anel de metal destina-se a segurar a
azeitona e que a alavanca abaixa uma lmina em X que passa por uma
ponta e empurra o caroo para fora pelo lado opos- to. As formas e
disposies das molas, dobradias, lminas, alavancas e anis so todas
compreendidas em uma satisfatria onda de discernimento. 32
33. Entendemos at mesmo por que as azeitonas enlatadas tm uma
inciso em forma de X num dos extremos. No sculo XVII, William
Harvey descobriu que as veias tinham vlvu- las e deduziu que as
vlvulas deviam estar ali para fazer o sangue circular. Desde ento,
vemos o corpo como uma mquina maravilhosamente com- plexa, um
conjunto de tirantes, juntas, molas, polias, alavancas, encaixes,
dobradias, mancais, tanques, tubulaes, vlvulas, bainhas, bombas,
per- mutadores e filtros. Mesmo hoje podemos nos fascinar ao saber
para que ser- vem determinadas partes misteriosas. Por que temos
orelhas com pregas e assimtricas? Porque elas filtram as ondas
sonoras provenientes de vrias direes de modos diferentes. As
nuances da sombra do som dizem ao cre- bro se a origem dele est
acima ou abaixo, diante ou atrs de ns. A estrat- gia de fazer a
engenharia reversa do corpo tem prosseguido na segunda metade deste
sculo, em nossos estudos sobre a nanotecnologia da clula e das
molculas da vida. A essncia da vida, acabamos descobrindo, no um
gel tremulante, resplandecente e assombroso, mas uma engenhoca com
minsculas guias, molas, dobradias, hastes, chapas, magnetos, zperes
e escotilhas, montados por uma fita de dados cujas informaes so
copiadas, transferidas e lidas. O fundamento lgico da engenharia
reversa para as coisas vivas pro- vm, obviamente, de Charles
Darwin. Ele mostrou que "rgos de extrema perfeio e complexidade,
que justificadamente despertam nossa admira- o", no se originam da
providncia de Deus, mas da evoluo de replica- dores ao longo de
perodos de tempo imensamente longos. A medida que os replicadores
se replicam, erros aleatrios de cpia s vezes emergem, e os que por
acaso melhoram a taxa de sobrevivncia e reproduo do replicador ten-
dem a acumular-se no decorrer das geraes. Plantas e animais so
replica- dores, e seu mecanismo complexo, portanto, parece ter sido
projetado para permitir-lhes sobreviver e reproduzir-se. Darwin
asseverou que sua teoria explicava no s a complexidade do corpo de
um animal mas tambm a de sua mente. UA psicologia assentar em um
novo alicerce", foi sua clebre previso no final de A origem das
espcies. Mas a profecia de Darwin ainda no se cumpriu. Mais de um
sculo depois de ele ter escrito essas palavras, o estudo da mente,
em sua maior parte, ain- da ignora Darwin, muitas vezes
desafiadoramente. A evoluo considera- da irrelevante, pecaminosa,
ou boa apenas para especulaes diante de um copo de cerveja no fim
do dia. A alergia evoluo nas cincias sociais e cog- nitivas tem
sido, a meu ver, uma barreira para a compreenso. A mente um sistema
primorosamente organizado; realiza proezas notveis que nenhum
engenheiro capaz de duplicar. Como as foras que moldaram esse
sistema, e 33
34. os propsitos para os quais ele foi criado, podem ser
irrelevantes para entend- lo? O pensamento evolucionista
indispensvel, no na forma concebida por muitos sonhando com elos
perdidos ou narrando histrias sobre os estgios do Homem , mas na
forma de meticulosa engenharia reversa. Sem ela, somos como o
cantor de "The marvelous toy" [O brinquedo maravilhoso], a cano de
Tom Paxton que relembra um presente ganho na infncia: "Ele fazia
ZIP! quando se movia, e POP! quando parava, e UORRRR quando estava
quieto; eu nunca soube exatamente o que ele era, e acho que nunca
saberei". S em anos recentes o desafio de Darwin foi aceito por uma
nova abor- dagem, batizada de "psicologia evolucionista" pelo
antroplogo John Tob- by e pela psicloga Leda Cosmides. A psicologia
evolucionista rene duas revolues cientficas. Uma a revoluo
cognitiva das dcadas de 1950 e 1960, que explica a mecnica do
pensamento e emoo em termos de infor- mao e computao. A outra a
revoluo na biologia evolucionista das dcadas de 1960 e 1970, que
explica o complexo design adaptativo dos seres vivos em termos da
seleo entre replicadores. As duas idias formam uma combinao
poderosa. A cincia cognitiva ajuda-nos a entender como uma mente
possvel e que tipo de mente possumos. A biologia evolucionista
ajuda-nos a entender por que possumos esse tipo de mente especfico.
A psicologia evolucionista deste livro , em certo sentido, uma
exten- so direta da biologia, concentrando-se em um rgo, a mente,
de uma esp- cie, Homo sapiens. Porm, em outro sentido, uma tese
radical que descarta o modo como as questes relativas mente tm sido
formuladas por quase um sculo. As premissas deste livro
provavelmente no so as que voc ima- gina. Pensamento computao,
procuro demonstrar, mas isso no signifi- ca que o computador uma
boa metfora para a mente. A mente um conjunto de mdulos, mas estes
no so cubculos encapsulados ou fatias cir- cunscritas da superfcie
do crebro. A organizao de nossos mdulos men- tais provm de nosso
programa gentico, mas isso no quer dizer que existe um gene para
cada caracterstica ou que o aprendizado menos importante do que
julgvamos. A mente uma adaptao desenvolvida pela seleo natural, mas
isso no significa que tudo o que pensamos, sentimos e fazemos
biologicamente adaptativo. Evolumos de macacos, mas isso no quer
dizer que nossa mente igual deles. E o objetivo supremo da seleo
natural propagar genes, mas isso no quer dizer que o supremo
objetivo das pessoas propagar genes. Permita-me explicar por qu.
Este livro sobre o crebro, mas no discorrerei profusamente a
respei- to de neurnios, hormnios e neurotransmissores. Isso porque
a mente no 34
35. o crebro, e sim o que o crebro faz, e nem mesmo tudo o que
ele faz, como metabolizar gordura e emitir calor. A dcada de 1990
tem sido chamada Dcada do Crebro, mas nunca haver uma Dcada do
Pncreas. O status especial do crebro deve-se a uma coisa especial
que ele faz, a qual nos per- mite ver, pensar, sentir, escolher e
agir. Essa coisa especial o processamen- to de informaes, ou
computao. Informao e computao residem em padres de dados e em
relaes de lgica que so independentes do meio fsico que os conduz.
Quando voc telefona para sua me em outra cidade, a mensagem
permanece a mesma enquanto sai de seus lbios e vai at o ouvido
materno, mesmo que fisica- mente ela mude de forma, passando de
vibraes do ar a eletricidade em um fio, cargas no silcio, luz
tremulante em um cabo de fibra ptica, ondas ele- tromagnticas,
voltando ento em ordem inversa. Em um sentido seme- lhante, a
mensagem permanece a mesma enquanto sua me a repete para seu pai,
que est na outra ponta do sof, depois de ter mudado de forma na
cabe- a dela, transformando-se em uma cascata de neurnios
disparando e subs- tncias qumicas difundindo-se atravs de sinapses.
De modo semelhante, um dado programa pode ser executado em
computadores feitos de tubos de vcuo, comutadores eletromagnticos,
transistores, circuitos integrados ou pombos bem treinados, e
realiza as mesmas coisas pelas mesmas razes. Esse insight, expresso
pela primeira vez pelo matemtico Alan Turing, pelos cientistas da
computao Alan Newell, Herbert Simon e Marvin Minsky e pelos
filsofos Hilary Putnam e Jerry Fodor, hoje em dia denomi- nado
teoria computacional da mente. Ele uma das grandes idias da hist-
ria intelectual, pois resolve um dos enigmas que compem o "problema
mente-corpo": como conectar o etreo mundo do significado e da
inteno, a essncia de nossa vida mental, a um pedao fsico de matria
como o cre- bro. Por que Bill entrou no nibus? Porque desejava
visitar sua av e sabia que o nibus o levaria para l. Nenhuma outra
resposta serviria. Se ele detes- tasse a av, ou se soubesse que o
itinerrio mudou, seu corpo no estaria naquele nibus. Por milnios,
isso foi um paradoxo. Entidades como "que- rer visitar a av" e
"saber que o nibus vai at a casa da vov" no tm cor, cheiro nem
sabor. Mas ao mesmo tempo so causas de eventos fsicos, to potentes
quanto uma bola de bilhar batendo em outra. A teoria computacional
da mente resolve o paradoxo. Ela afirma que crenas e desejos so
informaes, encarnadas como configuraes de smbo- los. Os smbolos so
os estados fsicos de bits de matria, como os chips de um computador
ou os neurnios do crebro. Eles simbolizam coisas do mun- do porque
so desencadeados por essas coisas via rgos dos sentidos e de- vido
ao que fazem depois de ser desencadeados. Se os bits de matria que
35
36. constituem um smbolo so ajustados para topar com os bits de
matria que constituem outro smbolo exatamente do jeito certo, os
smbolos correspon- dentes a uma crena podem originar novos smbolos
correspondentes a outra crena relacionada logicamente com a
primeira, o que pode originar smbolos correspondentes a outras
crenas e assim por diante. Por fim, os bits de matria componentes
de um smbolo topam com bits de matria conec- tados aos msculos, e o
comportamento acontece. A teoria computacional da mente, portanto,
permite-nos manter crenas e desejos em nossas expli- caes do
comportamento enquanto os situamos diretamente no universo fsico.
Ela permite que o significado seja causa e seja causado. A teoria
computacional da mente indispensvel para lidar com as questes que
ansiamos por responder. Os neurocientistas gostam de salien- tar
que todas as partes do crtex cerebral tm aparncia muito semelhante
no s as diferentes partes do crebro humano, mas tambm os crebros de
animais diferentes. Algum poderia concluir que toda atividade
mental em todos os animais igual. Mas uma concluso melhor que no
podemos simplesmente observar um retalho do crebro e ler a lgica do
intricado padro de conectividade que faz cada parte executar sua
tarefa distinta. Da mesma forma que todos os livros so,
fisicamente, apenas combinaes dife- rentes dos mesmos setenta e
tantos caracteres e todos os filmes so, fisica- mente, apenas
padres diferentes de cargas ao longo das trilhas de um videoteipe,
todo o gigantesco emaranhado de espaguetes do crebro pode parecer
igual quando examinado fio por fio. O contedo de um livro ou filme
reside no padro das marcas de tinta ou cargas magnticas e se
evidencia ape- nas quando o trecho lido ou visto. De modo
semelhante, o contedo da ati- vidade cerebral reside nos padres de
conexes e nos padres de atividade entre os neurnios. Diferenas
minsculas nos detalhes das conexes podem fazer com que retalhos do
crebro de aparncia semelhante imple- mentem programas muito
diferentes. Somente quando o programa execu- tado a coerncia se
evidencia. Como escreveram Tooby e Cosmides: H pssaros que migram
orientando-se pelas estrelas, morcegos que usam a eco- localizao,
abelhas que computam a variao de canteiros de flores, aranhas que
tecem teias, humanos que falam, formigas que cultivam, lees que
caam em bando, guepardos que caam sozinhos, gibes mongamos,
cavalos-mari- nhos polindricos, gorilas polginos [...] Existem
milhes de espcies animais no planeta, cada qual com um conjunto
diferente de programas cognitivos. O mesmo tecido neural bsico
corporifica todos esses programas e poderia sus- tentar muitos
outros igualmente. Fatos acerca das propriedades dos neurnios,
neurotransmissores e desenvolvimento celular no podem indicar quais
des- ses milhes de programas a mente humana contm. Mesmo que toda a
ativi- dade neural seja a expresso de um processo uniforme no nvel
celular, a 36
37. disposio dos neurnios em gabaritos de canes de pssaro ou
programas de tecedura de teia de aranha que importa. Isso,
obviamente, no implica que o crebro irrelevante para a com- preenso
da mente! Programas so montagens de unidades de processamen- to de
informaes simples minsculos circuitos que podem adicionar, fazer a
comparao com um padro, ligar algum outro circuito ou executar
outras operaes lgicas e matemticas elementares. O que esses
microcir- cuitos podem fazer depende apenas do que eles so feitos.
Circuitos feitos de neurnios no podem fazer exatamente as mesmas
coisas que circuitos fei- tos de silcio e vice-versa. Por exemplo,
um circuito de silcio mais rpido do que um circuito neural, mas
este pode fazer a comparao com um padro maior do que o permitido
para um circuito de silcio. Essas diferenas salien- tam-se nos
programas produzidos com os circuitos e afetam a rapidez e a
facili- dade com que os programas fazem diversas coisas, ainda que
no determinem exatamente que coisas eles fazem. Com isso no quero
dizer que sondar o tecido cerebral irrelevante para a compreenso da
mente, apenas que no suficiente. A psicologia, a anlise do software
mental, ter de escavar muito atravs da montanha antes de se
encontrar com os neurobilogos que vm cavando o tnel pelo outro
lado. A teoria computacional da mente no a mesma coisa que a
despreza- da "metfora do computador". Como ressaltaram muitos
crticos, os compu- tadores so seriais, fazendo uma coisa por vez;
os crebros so paralelos, fazendo milhes de coisas de uma vez.
Computadores so rpidos; crebros so lentos. As peas de computadores
so confiveis; as peas do crebro apresentam rudo. Os computadores
possuem um nmero limitado de cone- xes; os crebros possuem trilhes.
Os computadores so montados segundo um projeto; os crebros tm de
montar-se sozinhos. Sim, e os computadores vm em caixas cor de
massa de vidraceiro, tm arquivos AUTOEXEC.BAT e mostram protetores
de tela com torradeiras voadoras, e os crebros, no. O argumento no
que o crebro como os computadores vendidos nas lojas. Em vez disso,
o argumento que crebros e computadores incorporam inte- ligncia por
algumas das mesmas razes. Para explicar como os pssaros voam,
recorremos a princpios de sustentao e resistncia aerodinmica e
mecnica dos fluidos princpios que explicam tambm como os avies
voam. Isso no nos obriga a usar uma Metfora do Avio para os
pssaros, incluindo motores a jato e servio de bordo com bebidas
grtis. Sem a teoria computacional impossvel entender a evoluo da
mente. A maioria dos intelectuais julga que a mente humana deve
ter, de alguma forma, escapado ao processo evolutivo. A evoluo,
acreditam eles, s consegue fabricar instintos estpidos e padres de
ao fixos: um impulso 37
38. sexual, um mpeto agressivo, um imperativo territorial,
galinhas chocando ovos e fracotes seguindo brutamontes. O
comportamento humano dema- siado sutil e flexvel para ser produto
da evoluo, pensam eles; deve provir de algum outro lugar digamos,
da "cultura". Mas se a evoluo nos equi- pou no com impulsos
irresistveis e reflexos rgidos mas com um computa- dor neural, tudo
muda. Um programa uma receita intricada de operaes lgicas e
estatsticas dirigidas por comparaes, testes, desvios, laos e sub-
rotinas embutidas em sub-rotinas. Os programas de computador
artificiais, da interface com o usurio do Macintosh s simulaes do
clima e progra- mas que reconhecem a fala e respondem a perguntas
em ingls, nos do uma indicao da finesse e do poder de que a
computao capaz. O pensamento e o comportamento humano, por mais
sutis e flexveis que possam ser, pode- riam ser produto de um
programa muito complexo, e esse programa pode ter sido nossa dotao
da seleo natural. O mandamento tpico da biologia no "Fars...", e
sim "Se... ento... seno...". A mente, afirmo, no um nico rgo, mas
um sistema de rgos, que podemos conceber como faculdades
psicolgicas ou mdulos mentais. As entidades hoje comumente
invocadas para explicar a mente como inte- ligncia geral,
capacidade de formar cultura, estratgias de aprendizado com
mltiplos propsitos seguramente iro pelo mesmo caminho do proto-
plasma na biologia e da terra, ar, fogo e gua na fsica. Essas
entidades so to informes se comparadas aos fenmenos precisos que
elas se destinam a explicar que preciso atribuir-lhes poderes quase
mgicos. Quando os fen- menos so postos no microscpio, descobrimos
que a complexa textura do mundo cotidiano sustentada no por uma
substncia nica mas por muitas camadas de mecanismo elaborado. Os
bilogos h muito tempo substituram o conceito de um protoplasma
onipotente pelo conceito dos mecanismos funcionalmente
especializados. Os sistemas de rgos do corpo fazem seu trabalho
porque cada um deles foi construdo com uma estrutura especifica-
mente talhada para executar a tarefa. O corao faz circular o sangue
porque configurado como uma bomba; os pulmes oxigenam o sangue
porque so configurados como permutadores de gs. Os pulmes no podem
bombear o sangue, e o corao no pode oxigen-lo. Essa especializao
encontrada em todos os nveis. O tecido cardaco difere do tecido
pulmonar, as clulas cardacas diferem das clulas pulmonares e muitas
das molculas compo- nentes das clulas cardacas diferem das
componentes das clulas pulmona- res. Se no fosse assim, nossos rgos
no funcionariam. 38
39. Um pau para toda obra no mestre em nenhuma, e isso vale
tanto para nossos rgos fsicos como para nossos rgos mentais. O
desafio do rob evidencia esse fato. Construir um rob implica muitos
problemas de enge- nharia de software, sendo necessrios truques
diferentes para resolv-los. D> Tomemos nosso primeiro problema,
o sentido da viso. Uma mquina que enxerga precisa resolver um
problema denominado ptica invertida. A ptica comum o ramo da fsica
que permite prever como um objeto com determinada forma, material e
iluminao projeta o mosaico de cores que denominamos imagem
retiniana. A ptica uma matria bem compreendi- da, empregada em
desenho, fotografia, engenharia de televiso e, mais recentemente,
computao grfica e realidade virtual. Mas o crebro preci- sa
resolver o problema oposto. O input a imagem retiniana, e o output
uma especificao dos objetos que h no mundo e do que eles so feitos
ou seja, o que sabemos que estamos vendo. E a est o xis do
problema. A ptica invertida o que os engenheiros chamam de "um
problema mal proposto". Ele absolutamente no tem soluo. Assim como
fcil multiplicar alguns nmeros e enunciar o produto, mas impossvel
tomar um produto e indi- car os nmeros que foram multiplicados para
obt-lo, a ptica fcil, mas a ptica invertida impossvel. Entretanto,
nosso crebro a pratica toda vez que abrimos a geladeira e retiramos
uma jarra. Como pode ser isso? A resposta que o crebro fornece as
informaes que es to faltando, infor- maes sobre o mundo no qual
evolumos e o modo como ele reflete a luz. Se o crebro visual "supe"
que est vivendo em determinado tipo de mundo um mundo iluminado por
igual, composto principalmente de partes rgi- das com superfcies
regulares uniformemente coloridas , ele pode fazer boas suposies
quanto ao que est l fora. Como vimos anteriormente, impossvel
distinguir carvo de neve examinando o brilho de suas projees
retinianas. Mas digamos que exista um mdulo para perceber as
proprieda- des das superfcies e que embutido nele haja a seguinte
suposio: "O mun- do iluminado de modo regular e uniforme". O mdulo
pode resolver o problema do carvo ou da neve em trs etapas:
subtraindo qualquer gradien- te de brilho de um extremo da cena ao
outro extremo; estimando o nvel mdio de brilho da cena inteira;
calculando a tonalidade de cinza de cada retalho subtraindo seu
brilho do brilho mdio. Grandes desvios positivos em relao mdia so
vistos como coisas brancas; grandes desvios negativos, como coisas
pretas. Se a iluminao realmente for regular e uniforme, essas
percepes registraro com preciso as superfcies do mundo. Uma vez que
o Planeta Terra tem, mais ou menos, correspondido hiptese da
ilumina- o uniforme desde tempos imemoriais, a seleo natural teria
procedido acertadamente incorporando essa hiptese. 39
40. O mdulo de percepo de superfcies resolve um problema
insolvel, mas isso teve seu preo. O crebro abriu mo de toda
pretenso de ser um solucionador geral de problemas. Ele foi
equipado com um dispositivo que percebe a natureza das superfcies
em condies de visibilidade tpicas da Terra por ser especializado
nesse problema local. Mude-se minimamente o problema, e o crebro no
mais o resolve. Digamos que vamos colocar uma pessoa em um mundo
que no banhado pela luz solar, e sim iluminado por uma colcha de
retalhos de luz engenhosamente dispostos. Se o mdulo de percepo de
superfcies supe que a iluminao regular, deve ser seduzido a ter
alucinaes com objetos que no se encontram ali. Isso poderia aconte-
cer de verdade? Acontece todo dia. Chamamos essas alucinaes de
proje- es de slides, filmes de cinema e televiso (inclusive com a
cor preta ilusria que mencionei anteriormente). Quando vemos
televiso, fitamos uma lmina de vidro bruxuleante, mas nosso mdulo
de percepo de superfcies diz ao resto de nosso crebro que estamos
vendo pessoas e lugares reais. O mdulo foi desmascarado; ele no
apreende a natureza das coisas, fia-se numa tela ilusionista. Essa
tela ilusionista est to profundamente incorpo- rada operao de nosso
crebro visual que no somos capazes de apagar as informaes nele
escritas. Nem mesmo no mais inveterado telemanaco o sistema visual
um dia "aprende" que a televiso uma vidraa de pontos fos- fricos
brilhantes, e a pessoa nunca perde a iluso de que existe um mundo
por trs da vidraa. Nossos outros mdulos mentais precisam de suas
prprias telas ilusio- nistas para resolver seus problemas
insolveis. Um fsico que deseja calcular como o corpo se move quando
os msculos so contrados tem de resolver problemas de cinemtica (a
geometria do movimento) e dinmica (os efei- tos das foras). Mas um
crebro que precisa calcular como contrair os ms- culos para fazer o
corpo mover-se tem de resolver problemas de cinemtica invertida e
de dinmica invertida que foras aplicar a um objeto para faz- lo
mover-se em determinada trajetria. Assim como a ptica invertida, a
cinemtica e a dinmica invertidas so problemas mal propostos. Nossos
mdulos motores resolvem-nos fazendo hipteses extrnsecas mas
sensatas no hipteses sobre iluminao, obviamente, mas sobre corpos
em movi- mento. Nosso bom senso com respeito a outras pessoas um
tipo de psicologia intuitiva tentamos inferir as crenas e desejos
das pessoas a partir do que elas fazem, e tentamos prever o que
elas faro com base em nossas suposies quanto a suas crenas e
desejos. Contudo, nossa psicologia intuitiva precisa supor que as
outras pessoas tm crenas e desejos; no podemos sentir uma crena ou
desejo na cabea de outra pessoa do mesmo modo como sentimos 40
41. o cheiro de uma lkranja. Se no vssemos o mundo social
atravs das lentes dessa suposio, seramos como o rob Samaritano I,
que se sacrificava por um saquinho de caroos de lima, ou como o
Samaritano II, que se jogava na gua em benefcio de qualquer objeto
com uma cabea semelhante cabe- a humana, mesmo se ela pertencesse a
um grande brinquedo de corda. (Ve- remos adiante que os indivduos
acometidos de uma determinada sndrome no tm a suposio de que as
pessoas possuem mente e de fato tratam as pes- soas como brinquedos
de corda.) At mesmo nossos sentimentos de amor pelos membros da
famlia incluem uma suposio especfica quanto s leis do mundo
natural, neste caso um inverso das leis ordinrias da gentica. Os
sentimentos pelos familiares destinam-se a ajudar nossos genes a se
replicar, mas no podemos ver ou cheirar genes. Os cientistas
empregam a gentica comum para deduzir como os genes distribuem-se
entre os organismos (por exemplo, a meiose e o sexo fazem com que a
prole de duas pessoas tenha 50% de seus genes em comum); nossas
emoes em relao aos familiares usam um tipo de gentica invertida
para adivinhar quais dentre os organismos com os quais interagimos
tm probabilidade de compartilhar nossos genes (por exemplo, se
algum parece ter os mesmos pais que voc tem, trate essa pessoa como
se o bem-estar gentico dela coincidisse com o seu). Retomarei esse
assunto em captulos posteriores. A mente tem de ser construda com
partes especializadas porque preci- sa resolver problemas
especializados. S um anjo poderia ser um soluciona- dor geral de
problemas; ns, mortais, temos de fazer suposies falveis com base em
informaes fragmentrias. Cada um de nossos mdulos mentais resolve
seu problema insolvel com um grande ato de f no modo como o mundo
funciona, fazendo suposies que so indispensveis mas indefens- veis
sua nica defesa sendo que as suposies funcionaram a contento no
mundo de nossos ancestrais. A palavra "mdulo" faz lembrar
componentes que se podem destacar ou encaixar, e isso enganoso. Os
mdulos mentais no tendem a ser visveis a olho nu como territrios
circunscritos na superfcie do crebro do mesmo modo que distinguimos
a barrigueira ou a traseira de um boi na vitrine do aougue. Um
mdulo mental provavelmente se parece mais com um bicho atropelado
na estrada, espalhando-se desordenadamente pelas protubern- cias e
fendas do crebro. Ou pode ser fragmentado em regies que se interli-
gam por meio de fibras, as quais fazem a regio atuar como uma
unidade. A beleza do processamento de informaes est na
flexibilidade de sua deman- da por terreno. Assim como a
administrao de uma grande empresa pode estar espalhada por vrios
prdios ligados por uma rede de telecomunicaes, ou um programa de
computador pode estar fragmentado em diferentes partes 41
42. do disco ou da memria, os circuitos que aliceram um mdulo
psicolgico podem estar distribudos pelo crebro de um modo
espacialmente aleatrio. E os mdulos mentais no precisam estar
impermeavelmente isolados uns dos outros, comunicando-se apenas por
meio de alguns canais estreitos. (Essa uma concepo especializada de
"mdulo" que muitos cientistas cog- nitivos debateram aps uma
definio de Jerry Fodor.) Os mdulos so defi- nidos pelas coisas
especiais que fazem com as informaes sua disposio, e no
necessariamente pelos tipos de informao de que dispem. Portanto, a
metfora do mdulo mental um pouco desajeitada; met- fora melhor a do
"rgo mental", proposta por Noam Chomsky. Um rgo do corpo uma
estrutura especializada talhada para desempenhar uma fun- o
especfica. Mas nossos rgos no vm num saquinho, como os midos de
ave; so integrados em um todo complexo. O corpo compe-se de siste-
mas divididos em rgos, construdos com tecidos feitos de clulas.
Alguns tipos de tecido, como o epitlio, so usados, com modificaes,
em muitos rgos. Alguns rgos, como o sangue e a pele, interagem com
o resto do cor- po atravs de uma superfcie comum convoluta,
amplamente difundida, e no podem ser circundados por uma linha
pontilhada. As vezes no est claro onde um rgo termina e outro
comea, ou que tamanho de um pedao do corpo desejamos chamar de rgo.
(A mo um rgo? E um dedo? E um osso do dedo?) Essas so questes
pedantes de terminologia , e os anatomis- tas e fisiologistas no
perderam tempo com elas. O que est claro que o cor- po no como
carne de porco prensada e enlatada; ele possui uma estrutura
heterognea de muitas partes especializadas. Tudo isso provavelmente
vale para a mente. Quer estabeleamos ou no fronteiras exatas para
os compo- nentes da mente, est claro que ela no uma carne enlatada
mental, pos- suindo uma estrutura heterognea de muitas partes
especializadas. Nossos rgos fsicos devem seu design complexo s
informaes con- tidas no genoma humano, e o mesmo, a meu ver,
aplica-se aos nossos rgos mentais. No aprendemos a ter um pncreas,
e tambm no aprendemos a ter um sistema visual, aquisio de
linguagem, bom senso ou sentimentos de amor, amizade e justia.
Nenhuma descoberta isolada comprova essa afirma- o (assim como
nenhuma descoberta isolada comprova que o pncreas tem uma estrutura
inata), mas muitas linhas de evidncias convergem nessa direo. A que
mais me impressiona o Desafio do Rob. Cada um dos gran- des
problemas de engenharia resolvidos pela mente insolvel na ausncia
de hipteses incorporadas sobre as leis que se aplicam na respectiva
arena de integrao com o mundo. Todos os programas criados por
pesquisadores da 42
43. inteligncia artificial foram especificamente projetados
para uma rea espe- cfica, como linguagem, viso, movimento ou um dos
muitos tipos diferen- tes de bom senso. Nas pesquisas sobre
inteligncia artificial, o orgulhoso criador de um programa s vezes
o apregoa como uma mera amostra de um sistema de uso geral a ser
elaborado futuramente, mas todo mundo da rea rotineiramente
descarta bazfias desse tipo. Predigo que ningum jamais construir um
rob semelhante a um ser humano e me refiro a um rob realmente
semelhante a um ser humano a menos que o equipe com siste- mas
computacionais feitos sob medida para resolver diferentes
problemas. Ao longo de todo o livro, encontraremos outras linhas de
evidncias indicativas de que nossos rgos mentais devem seu design
bsico ao nosso programa gentico. J mencionei que boa parte da
primorosa estrutura de nossa personalidade e inteligncia
compartilhada por gmeos idnticos criados separadamente e, portanto,
mapeada pelos genes. Bebs e crianas pequenas, quando testados com
mtodos engenhosos, demonstram um entendimento precoce das
categorias fundamentais do mundo fsico e social e, s vezes, dominam
informaes que nunca lhes foram apresentadas. As pessoas acalentam
muitas crenas que contradizem suas experincias, mas foram
verdadeiras no meio em que se desenvolveram, e se empenham por
objetivos que subvertem seu prprio bem-estar, mas foram adaptativos
naquele ambiente. E, contrariamente difundida crena de que as
culturas variam de maneira arbitrria e sem limite, estudos da
literatura etnogrfica mostram que os povos do mundo compartilham
uma psicologia universal assombrosamente minuciosa. Mas, se a mente
possui uma estrutura inata complexa, isso no signifi- ca que
aprender no importante. Expor a questo de modo que estrutura inata
e aprendizado sejam lanados um contra o outro, como alternativas
ou, quase to ruim quanto isso, como ingredientes complementares ou
for- as interagentes, um erro colossal. No que esteja absolutamente
errada a afirmao de que existe interao entre estrutura inata e
aprendizado (ou entre hereditariedade e meio, natureza e criao,
biologia e cultura). Em vez disso, ela se enquadra em uma categoria
de idias que so to ruins que nem ao menos esto erradas. Imagine o
seguinte dilogo: "Este novo computador rico em tecnologia avanada.
Tem processador de quinhentos megahertz, um gigabyte de RAM, um
terabyte de armazenagem em disco, monitor colorido com realidade
virtual tridimensional, sada para voz, acesso direto World Wide
Web, especializao em doze matrias e edies incorporadas da Bblia,
Encyclopaedia Britannica, Bartlett's famous quotations e 43