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A pístis socrática de Platão:
a estrutura dramática dos diálogos platônicos
Rafael Virgilio de Carvalho1
Introdução
No Mundo Grego Antigo, a palavra pístis fazia referência à “confiança” ou
“fidelidade” que se podia dedicar a alguém, significando também a “crença” na existência de
algo. Era um elemento essencial para a comunicação na polis na medida em que dizia
respeito ao suporte e à credibilidade da fala proferida pelo cidadão. No campo filosófico,
mais precisamente, referia-se à devoção de um discípulo para com seu mestre ou à
confiança de que este conhecia a verdade. A pístis reforçava, assim, a decisão e a
deliberação do jovem em seguir os ensinamentos de um filósofo já consagrado pela
sophrosýne (sabedoria), tomando suas palavras como verdadeiras e sua filosofia como
realidade por meio da qual a natureza se tornava inteligível (BENTES, 2011, p. 57).
Provavelmente, foi com Parmênides que a pístis passou a ser empregada no campo
filosófico. Associado à verdade (alétheia), o termo aparece no seu poema Da Natureza (v. 1-
30 apud SEXTO EMPÍRICO, VII, 111) como um conceito importante visto que valida e torna
verossímil a fala da deusa, que o usa para revelar duas vias mutuamente excludentes – a
verdade e a opinião (doxa). Nessa esteira, Platão (República, VI, 505) a entendia como
confiança depositada na percepção do sensível, como se fosse uma opinião acreditada sem
verificação, passivamente aceita pelo testemunho dos sentidos, dos hábitos e costumes
provenientes da educação vulgar. Essencialmente, a pístis era estabelecida pela
1 Doutorando em História e Sociedade pela UNESP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais (NEAM) da UNESP. Projeto de pesquisa, A pístis de Platão, orientado pela Dra. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, UNESP.
comunicação entre um mestre e seu discípulo, cuja relação construía o espaço discursivo da
crença filosófica. À medida que o jovem convivia com um filósofo, ouvindo o pensamento
que este professava, criava-se entre eles um “dispositivo de confiança” que levava o
primeiro a acreditar na fala do segundo. Tal dispositivo era responsável pelo
estabelecimento de um campo da verdade (alétheia) que amparava todo e qualquer
discurso filosófico. Para os gregos antigos, alétheia era uma instância geradora do ser
concebida ora como transcendente, ora como imanente à natureza das coisas. Fosse como
potência divina ou como desvelamento da realidade, no século V a. C., tal ideia balizou o
debate socrático com os sofistas através do qual foram polarizados os significados de pístis e
peithó (persuasão).
Em síntese, a pístis pode ser concebida como “dispositivo” pelo qual a ligação entre
mestre e discípulo era efetivada e, concomitantemente, como “conjunto de disposições” do
habitus filosófico interiorizadas pelo jovem durante os processos comunicativos que
caracterizavam os diálogos entre ambos. Dessa forma, não importava qual a conceituação
dada ao termo, certamente, todos os filósofos estiveram à mercê de um dispositivo e
interiorizaram disposições através desse mecanismo de comunicação peculiar ao campo
filosófico. Com Platão isto não foi diferente.
Problemática
Entretanto, sendo a pístis marca da afetividade vivida pelo discípulo junto a um
mestre, como é possível percebê-la na atualidade? Tal problema direciona a perspectiva de
análise para o sujeito e, tratando-se da pístis platônica, a pergunta que surge é: onde está
Platão em seus diálogos? Pois, antes de qualquer atividade interpretativa, o historiador
precisa observar o sujeito à mercê de determinado dispositivo e que possui certas
disposições em seu habitus para, posteriormente, vislumbrar a expressão da pístis nas fontes
históricas.
Para tanto, tem-se que conceber os diálogos em sua própria materialidade e assumir
que são obras dramáticas que veiculam conteúdo filosófico. Fazer isso é não fechar os olhos
para o aprendizado poético adquirido por Platão em sua juventude, antes mesmo que
começasse a ouvir as conversas de Sócrates na Atenas do século V a. C.. De fato, não se deve
ler os diálogos abstraindo sua semântica, em prol de uma sistematização do pensamento
platônico que não condiz com a realidade material de seus enunciados, e sem levar em
consideração a dramaticidade estipulada por sua estrutura sintática.
Objetivo
Analisar os elementos narrativos, principalmente as representações de Sócrates, que
compõem as narrativas dos diálogos Parmênides, Sofista, Político, Apologia, Críton e Fédon.
Metodologia
Para tatear Platão por meio da leitura de seus diálogos é necessário lê-los como
produto discursivo de um ato material da fala. Isso quer dizer que é factível projetar sua
autoria, ou seja, a enunciação pelo qual os diálogos foram compostos, na medida em que a
estrutura semântica da filosofia platônica for entendida como resultado de uma elaboração
progressiva e humana do pensar de um sujeito e a estrutura dramática de sua obra for
concebida como escolha da expressividade de sua fala.
Assim, só é possível perceber Platão, enquanto sujeito, a partir das escolhas que ele
fez durante os momentos de composição dos enunciados de sua obra. Tal pressuposto
acredita que os elementos dramáticos dos diálogos também geram significados e alteram os
sentidos inerentes à filosofia platônica. Por isso, somente uma análise mais ampla, que não
se limite exclusivamente ao conteúdo filosófico, é capaz de fornecer ao historiador novas
informações para a construção do conhecimento histórico sobre a biografia de Platão. Nessa
direção, a solução proposta para a questão inicial assume a função de perceber o sujeito que
apresenta a pístis, também, como um conjunto de disposições de seu habitus, através do
qual imprimiu nas fontes elementos que hoje ainda podem ser resgatados pela
historiografia.
O estudo da pístis platônica pressupõe que o Platonismo é fruto do desenvolvimento
de um pensamento, ou melhor, que Platão elaborou e reelaborou progressivamente sua
filosofia durante o percurso de sua vida. Partindo disso, surgem as seguintes hipóteses: que,
no início de sua maturidade filosófica, Platão rompeu com o pensamento de seu mestre,
Sócrates, para aderir às ideias e questionamentos pitagóricos e parmenídicos; e que, no final
deste mesmo período reflexivo, o filósofo retornou ao Socratismo readaptando a moral
socrática para balizar o seu pensamento eminentemente ético.
As hipóteses, na verdade, oferecem uma provável ordem ao discurso platônico e
estabelecem uma sequência lógica para os diálogos de modo a nortear a interpretação de
seus enunciados. Os dois momentos que as hipóteses sugerem para maturação da filosofia
platônica são estabelecidos por dois agrupamentos textuais que fundamentam a leitura das
fontes. O primeiro é composto pelos diálogos Parmênides, Sofista e Político, e estruturam o
momento inicial da reflexão filosófica de Platão, quando ele se afasta do pensamento de seu
mestre para entrar em contato, mais substancialmente, com o Pitagorismo e com o
Eleatismo. O segundo grupo inclui os diálogos Apologia, Críton e Fédon, e representa o
momento final da reflexão filosófica da maturidade de Platão. É importante frisar que a
definição de ambos os conjuntos não é arbitrária, pois obedece a critérios estilométricos,
filosóficos e dramáticos, e que as relações textuais e intertextuais entre seus enunciados
depreendem das articulações indicadas pelo próprio Platão durante a enunciação de sua
obra.
No entanto, qual é o nexo que leva a crer que esses agrupamentos textuais fazem
alusão a dois momentos do pensar platônico e, propriamente, remetem às circunstâncias de
composição dos diálogos? O raciocínio que responde a essa demanda parte de alguns
indícios que o presente trabalho busca averiguar. O critério inicial que tenta estabelecer uma
ordem ao discurso de Platão remete aos clássicos estudos estilométricos das fontes
platônicas. Trabalhos como os de Campbell, Arnim, Ritter, Simeterre e Lutoslawski,
procuraram delimitar o parentesco estilístico dos inúmeros diálogos com base na
semelhança entre a métrica de seus enunciados. Tais análises consideravam que o grau de
similaridade entre as escritas dos textos platônicos permitia confirmar se a autoria era
mesma de Platão e determinar a proximidade entre as suas composições.
A intensão da estilometria era estipular a datação dos diálogos, havendo consenso
entre os estudiosos de que a conformidade de estilo remetia a certo período de enunciação
das obras. Por conseguinte, dois principais conjuntos foram diferenciados e, cada qual,
organizados internamente com base na sistematização do conteúdo filosófico específico de
seus textos. Desse modo, uma ordenação cronológica pôde ser projetada mesmo com
muitas lacunas, apesar dos rigorosos recursos tomados da Linguística e da tradição da
exegese platônica. Diga-se de passagem, tais lacunas vêm ao encontro do pressuposto que
compreende o pensamento platônico como um contínuo processo de construção e
reconstrução filosófica.
O mais significativo é que a articulação entre os dois agrupamentos textuais fica a
cargo do Parmênides, cuja composição é a mais recente do primeiro período de enunciação,
e do Sofista e Político, simultaneamente os mais antigos diálogos do período subsequente.
Logo, foram os seus enunciados que materializaram a grande transição do pensamento de
Platão, ocasião em que houve o abandono do Socratismo e a constituição do arcabouço da
ontologia platônica. Tal indício, aliás, ganha força à medida que surgem diversas referências
ao Parmênides nos textos do Sofista e do Político durante a realização das leituras destes
três diálogos.
Filosoficamente, no Parmênides Platão coloca à prova a sua chamada “teoria das
ideias” por meio do método da não contradição de Zenão de Eleia, principal discípulo de
Parmênides e um dos personagens do diálogo, e da crítica à ideia de “participação”
(koinonías) como “algo em si”. Em seguida, no Sofista há a reelaboração da teoria das ideias
assentada no questionamento da separação radical entre o “ser” (onti/einai) e o “não ser”
(mè òn), como afirmava o personagem Parmênides no diálogo que leva o seu nome. Tal
problematização tem em seu âmago a defesa da ideia da participação fundamental do não
ser no ser, o que possibilitaria inclusive a efetivação do próprio método eleático da não
contradição, além de comprovar a existência do falso e da verdade.
As relações entre o Parmênides e o Sofista são extremamente profundas, porquanto
os temas interrogados por Platão no primeiro diálogo são desenvolvidos no segundo. Em
nenhum outro diálogo ocorre tanta intertextualidade quanto no Sofista, visto que em
diversas passagens há menções explícitas ao Parmênides2. No Sofista, Platão procura dar
suporte a sua nascente filosofia criando uma ontologia singular ao defender a existência em
si das ideias, isto é, ao conceber os “nomes” (onoma) enquanto “arquétipos inteligíveis”
(eidon) dos entes do mundo. Nessa trajetória, o Político deu continuidade à ontologia
platônica esboçando uma teleologia política para o pensamento de Platão. Sua teoria sobre
o ser prenuncia o discernimento da natureza do filósofo, o qual aspira ao governo da pólis
mediante o conhecimento da realidade inteligível. Ele, então, aprimora o método dialético
retomando a matemática pitagórica já desenvolvida no Sofista e o subordina a um fim no
qual a dialética passa a ser premissa para o conhecimento da verdade pelo filósofo, além da
realização da justiça na pólis.
O terceiro critério, que corrobora a organização textual do primeiro momento
reflexivo da filosofia platônica, alega que as estruturas dramáticas do Parmênides, do Sofista
e do Político, evidenciam a ruptura de Platão com o pensamento de seu mestre. Mais
precisamente, é a figuração de Sócrates nesses três diálogos que confirma tal tese, posto
que no primeiro texto o personagem é o interlocutor secundário em uma discussão
conduzida pelo mestre de Eleia. Além disso, como confirma a citação acima, Sócrates é
representado como um jovem proferindo um pensamento ainda imaturo e que o faz recair
2 Cf. ex.: PLATÃO, Sofista, 217c.
em constantes contradições graças à astúcia argumentativa de Parmênides, retratado como
um ancião no auge de sua sabedoria.
Discussão dos resultados (parciais)
Na estrutura dramática dos diálogos, os personagens platônicos têm a função de
articular as ideias apropriadas por seu autor junto às diferentes escolas filosóficas gregas.
Lembrando também que quase todos eles estavam imersos na conjuntura política e
filosófica do mundo grego durante os séculos V e IV a. C.. Dessa forma, a figuração dos
personagens mobilizava significados pré-definidos pelo contexto histórico e, somada às
características fixadas pela construção cenográfica do drama, funcionava como mecanismo
de valorização ou desvalorização dos conteúdos filosóficos veiculados pelas falas nos
diálogos.
Dessarte, não é apenas a figuração de Sócrates no Parmênides que indica a
desvalorização do pensamento socrático por Platão, mas o seu papel coadjuvante tanto no
Sofista quanto no Político. Em ambos, depois de introduzir as temáticas dos diálogos,
Sócrates acaba deixando o protagonismo da discussão para o Estrangeiro de Eleia, cujo
personagem é o responsável pela incorporação de ideias pitagóricas e eleáticas na filosofia
platônica. Outro elemento importante, e que ampara esse mecanismo, é o prolongamento
da cena dramática do Sofista ao Político. Estes dois diálogos se passam em um mesmo
cenário, no qual Platão estrutura simultaneamente a valorização do Estrangeiro e a
desvalorização de seu próprio mestre.
O Sofista ocorre um dia após o cenário do Teeteto e, logo em seu início, o
matemático Teodoro apresenta a Sócrates o Estrangeiro de Eleia como sendo um “homem
verdadeiramente divino” (PLATÃO, 216c), trecho a partir do qual o conteúdo filosófico
veiculado por este personagem começa a ser valorizado. Similarmente, no começo do
Político, Sócrates utiliza a sua última fala para sugerir ao Estrangeiro que dialogue com um
dos jovens ali presentes e, deste modo, evita questionar o seu pensamento como fazia com
todos que interpelava. O fato de Sócrates não empregar sua maiêutica significa que a
filosofia do Estrangeiro está de acordo com a verdade, ou seja, ele é “um verdadeiro
filósofo” (PLATÃO, Sofista, 216a). Por isso, o Estrangeiro de Eleia não precisaria reconhecer
que “nada sabe” uma vez que ele “realmente sabe”3.
Não é somente no Político que Sócrates se esquiva à discussão, pois no Sofista ele fez
a mesma sugestão ao Estrangeiro de Eleia4. Tal como fizera no Parmênides, quando Sócrates
foi representando como um jovem imaturo frente ao experiente sábio de Eleia, Platão
continuou desvalorizando o pensamento socrático por meio do mesmo mecanismo literário.
A construção do drama no Sofista e no Político novamente estabelece essa comparação ao
parametrizar os dois jovens interrogados pelo Estrangeiro com a figura de Sócrates.
Enquanto Teeteto encarna sua aparência física e argúcia, o jovem Sócrates é o homônimo do
velho Sócrates. O mais interessante é que os parâmetros escolhidos para efetivar tal
correlação estão estreitamente ligados à ontologia platônica, já que, nela, ele discorre sobre
a produção dos entes e de suas “cópias” (eidolon) até chegar à temática da mímesis, isto é,
da “arte de imitar”. Com esse viés, pode-se admitir que os personagens Teeteto e o jovem
Sócrates são maneiras diferentes de representar o mestre de Platão ainda em sua juventude
e com simultaneidade em uma só cena dramática.
Não é a hora de tratar em pormenores a transrepresentação de Sócrates nos jovens
Teeteto e Sócrates. Entretanto, se for levado em consideração os temas discorridos no
Sofista – no que tange a conceitos como “aparência” (fantasma), “cópia”, “imagem” (eidos),
“semelhança” (eikóna) e imitação, além da própria noção de “figura” (skhema) – tornar-se
claro que a ontologia platônica é o que dá sustentação às figurações desses personagens.
Permitindo, desse jeito, que o mecanismo que qualificava como imaturo o pensamento
socrático, impresso no Parmênides, continuasse a ser usado tanto no Sofista quanto no
Político.
Não se pode menosprezar a engenhosidade e a genialidade poético-filosófica de
Platão, pois, mediante tais levantamentos acerca da estrutura dramática dos diálogos e sua 3 Cf. ex.: PLATÃO, Político, 257d-258a. 4 Cf.: PLATÃO, Sofista, 217d.
relação com o conteúdo filosófico, fica evidente a deliberação na enunciação de sua
filosofia. A preocupação com a estética do drama era muito recorrente nas obras platônicas
e não ficou restrita ao Sofista. Ele sabia que era necessário muito cuidado para expressar o
seu pensamento, que transcendia as palavras de seu texto e o conteúdo a que elas
remetiam, já que a essência do amor pela sabedoria (philosofía) estava na “prolongada
relação entre mestre e discípulo” (PLATÃO, Carta VII, 341a).
No segundo momento da reflexão filosófica de Platão subjaz um problema que
aparentemente põe em xeque as análises estilométricas e a composição dramática
intertextual da Apologia, do Críton e do Fédon. Estas três obras apresentam estilos textuais
diversos e métricas com padrões bem diferentes umas das outras. Porém, suas cenas
dramáticas mantêm uma continuidade nos acontecimentos que compõem as cenografias
dos diálogos. Com tal descompasso, qual critério seguir para que seja esclarecida a
enunciação filosófica de Platão? Será que é impossível levar em consideração a estilometria
e a dramaticidade, nesse caso, por serem tão díspares? Conquanto, o caminho traçado é
exatamente o de confrontar ambos os critérios, aparentemente incompatíveis, para então
projetar uma ordem ao discurso platônico.
Na Poética, Aristóteles (1447b) afirma que os “Diálogos Socráticos” (Sokratikoùs
lógous) eram um reconhecido gênero literário em sua época. Tal gênero, obviamente,
irrompeu em Atenas após a morte de Sócrates, no ano de 399 a. C., quando seus discípulos
começaram um processo literário de reconstrução das memórias e do pensamento do
mestre. Apesar dos diálogos socráticos abordarem, de modo geral, temáticas morais e
filosóficas, sua origem está ligada, exclusivamente, ao retrato apologético de Sócrates diante
do júri ateniense. Dentre os adeptos do gênero estavam Xenofonte, Antístenes, Ésquines,
Aristipo de Cirene, Fédon de Élis, Euclides de Mêgara e, é claro, Platão, todos discípulos
diretos de Sócrates.
Ana Elias Pinheiro (2009, p. 34) menciona que a maior parte desses diálogos foi
escrito pelo círculo socrático durante os anos 90 e 80 do século IV a. C., sendo que as
primeiras composições eram apologias de Sócrates. Um desses textos que ainda pode ser
lido, na Apologia, onde Xenofonte esclarece que outras pessoas já haviam relatado o
episódio do julgamento de Sócrates, no qual certamente estava Platão5. A Apologia
platônica deve, muito provavelmente, ter contado por entre as obras que originaram o
gênero e, levando em consideração as suas características estruturais no que concerne aos
outros diálogos platônicos, ela pode ter sido o primeiro texto em prosa escrito pelo filósofo.
De modo geral, as análises estilométricas colocam a Apologia junto com um primeiro
conjunto de textos platônicos, denominados, em referência ao gênero em questão, de
diálogos socráticos. Os preceitos que levam os estudiosos a enquadrá-los nesse conjunto são
o caráter aporético e a prevalência do método maiêutico de exposição da temática. A
criação poética grega fundava-se na imitação, e como esses preceitos eram os fundamentos
da filosofia socrática, ambos acabaram determinando a estrutura central do gênero. Os
diálogos visavam representar as discussões de Sócrates nos ambientes públicos de Atenas,
sendo configurados por um protagonista, através do qual o tronco discursivo era expresso, e
ao menos um antagonista, que direcionava a construção discursiva do texto. Dessa forma, o
conteúdo filosófico poderia ser impresso no diálogo tendo em vista a teoria literária da
época (mímesis), todavia, sem desconsiderar a subjetividade do autor que imprimia certo
sentido a sua obra.
Assim, o problema inicial emerge à medida que essas características são procuradas
na Apologia, no Críton e no Fédon. Na Apologia, contudo, observa-se uma ainda incipiente
configuração dialógica, visto que seu protagonista, Sócrates, dialoga com um antagonista
(Meleto) somente em um pequeno trecho do texto quando o questiona sobre o ateísmo e a
corrupção de que é acusado. O Críton, por sua vez, apresenta todos os elementos que o
tornam genuinamente socrático, pois, seu drama inicia-se com a figuração dos personagens
e com a fixação do protagonista e do antagonista que mantêm todo o diálogo e que
desenvolvem a temática sem chegar a uma definição, no caso, sobre o que é o “justo”
(dikaíon). O Fédon, por fim, é a obra prima dramática de Platão na medida em que
5 Cf.: XENOFONTE, Apologia, 1.
harmoniza plasticamente sua estrutura dialógica com a exposição da “teoria das ideias”. Não
obstante, sua trama filosófica, que incorpora ao texto ideias pitagóricas e órficas com
sutileza e profundidade, elabora detalhadamente todas as definições presentes na ontologia
platônica, descaracterizando o desenlace aporético que marca os diálogos socráticos.
A suspeita de que a Apologia seja o primeiro diálogo escrito por Platão, durante a
primeira década do século IV a. C., quando ele contava com cerca de trinta e poucos anos,
recai sobre a instabilidade de um texto que reflete um gênero ainda em formação. Esta obra
é praticamente um monólogo no qual a estrutura dialógica propriamente dita compreende
apenas um curto percurso textual, no qual há dezoito falas em que um fugaz antagonista
participa do diálogo. Além disso, nela, Platão não prima pelo conteúdo filosófico, limitando-
se a expor os argumentos pelos quais Sócrates se defende da acusação de Meleto, tangendo
unicamente a máxima délfica pregada pelo mestre (“conhece-te a ti mesmo”) e a suposição
socrática da retribuição divina pelo exercício da virtude na polis.
No Fédon, a exposição filosófica sobre a natureza da alma (psykhé) e sobre a teoria
das ideias se faz com uma incontestável desenvoltura, muito mais complexa e explícita que
em qualquer outro diálogo. A configuração do drama começa pelo perfeito ajustamento da
temática filosófica à cenografia do diálogo. A descrição da prisão na qual Sócrates passa seus
últimos momentos de vida é correlacionada à visão platônica sobre o corpo (somá) e
culmina com um desenvolvimento dialógico pelo qual é pregada a liberdade da alma depois
a morte, mediante uma vida dedicada à filosofia. O cenário e a figuração dos personagens
são, assim, detalhadamente construídos por um Platão que, na altura de seus sessenta anos
de idade, parece se preocupar muito mais com a construção poética de seus diálogos.
No entanto, há um longo período de desenvolvimento filosófico entre as ideias que
são expostas nesses dois diálogos. Na Apologia, Sócrates demonstra uma incerteza sobre o
destino de sua alma após a morte6, enquanto que, no Fédon, Sócrates defende com
6 Cf.: PLATÃO, Apologia, 40c-41a.
veemência a imortalidade da alma7. Nessa obra, Platão transpõe o Pitagorismo, que marcava
seu pensamento desde o Sofista, por meio da descrição órfica da alma e do mito
escatológico sobre a imortalidade. A metempsicose e a identificação da alma com a Ideia são
os elementos pelos quais o filósofo coroa sua ética e finaliza a elaboração teleológica de seu
pensamento. A distância filosófica entre a Apologia e o Fédon é mais do que patente, porém,
esse longo percurso aparece atrofiado quando é levada em conta a continuidade do drama
entre ambos os diálogos. Nessa direção é que o Críton pode ser encarado como mediação de
um para com o outro diálogo, posto que seu drama está situado depois a condenação de
Sócrates e antes de sua morte propriamente dita, já na prisão de Atenas.
O descompasso entre a estrutura dramática e o conteúdo filosófico desses três
diálogos pode indicar, então, uma adequação do primeiro diálogo, concebido como a
primeira composição filosófica de Platão, ao segundo, obra que direciona a ética platônica a
partir da reelaboração ontológica de seu pensamento. Com o Críton, Platão procurou
ressignificar a morte de Sócrates através de um ponto de vista político, questionando os
motivos que o impediu de se exilar de Atenas. Entretanto, antes de falar sobre o dever cívico
de se respeitar o governo e as leis, Platão (Críton, 43c-44b) introduz o diálogo com a notícia
da chegada de um navio vindo de Delos e com a exposição socrática de um sonho com uma
mulher misteriosa, os quais prenunciavam a morte de Sócrates ao final de três dias. Tanto a
notícia quanto o sonho fazem referência à execução da pena socrática, e surgem novamente
logo no início do Fédon (PLATÃO, 58a-c) como elementos conectivos entre ambos os
diálogos. Além disso, neste diálogo, a cenografia da Apologia é resgatada e, por
consequência, a figuração de Sócrates é retomada como corolário.
A ressignificação da morte de Sócrates, iniciada no Críton, tem o seu sentido
finalizado com a grande mensagem moral do Fédon – de que uma vida dedicada à filosofia é
uma vida de preparo para morte. Desse modo, o arcabouço dramático construído pela
sequência dessas três obras acaba criando uma trama que vincula um diálogo ao outro sob
os moldes das trilogias trágicas. Sob esse viés, o Críton assume o papel de resgatar a altivez
7 Cf.: PLATÃO, Fédon, 79e-81a.
do personagem de Sócrates, com toda a paixão com que Platão o representou na Apologia,
para, no Fédon, transformá-lo em um herói que corajosamente encara as consequências de
suas ações, de uma vida dedicada ao cultivo da alma, e aceita a implacabilidade de seu
destino, a morte (thanátou).
O contexto dramático da morte de Sócrates é o ensejo que possibilita a crítica ao
principal ponto de divergência entre o pensamento platônico e a filosofia pitagórica: o
materialismo. No Fédon, Platão (91d-95a) desqualifica a matemática pitagórica, criticando a
concepção de alma entendida como harmonia de um corpo, para modificar o sentido da
tradicional ideia pitagórica de metempsicose, que passaria a validar a noção platônica de
reminiscência (anáminesis). Mais precisamente, o que Platão quer defender é a imortalidade
da alma e a retribuição divina por uma vida dedicada à filosofia, as quais podem ser
alcançadas apenas com o exercício da dialética. E, para isso, nada melhor do que a coragem
com que seu mestre enfrentou a morte mediante a hipótese, transformada em certeza, de
que a alma continua sua existência extracorpórea em alguma região do Hades.
Assim, como ocorreu no primeiro momento de reflexão da maturidade filosófica de
Platão, a figuração do personagem Sócrates aparece mais uma vez no centro da
dramaticidade dos diálogos. Semelhantemente ao que fez no Parmênides, no Sofista e no
Político, quando utilizou mecanismos de desvalorização do Socratismo, Platão agora valoriza
a impavidez socrática diante da morte e, no Fédon, transforma a figura de Sócrates em uma
espécie de Orfeu, cuja aptidão filosófica o leva a penetrar no mundo dos mortos. Seus
antagonistas, Cebes e Símias, são dois jovens filósofos pitagóricos da cidade de Tebas que
relutam em compreender a mensagem transmitida por Sócrates. Tal figuração é
estabelecida antes mesmo de começar a discussão sobre a temática do diálogo, quando, em
um primeiro momento, Sócrates ironiza os ensinamentos ministrados pelo pitagórico Filolau
de Crotona aos dois jovens (PLATÃO, Fédon, 61e) e, em seguida, afirma que tentará se
defender dos questionamentos de ambos como se estivesse novamente diante do júri
ateniense (ibidem, 63b). O arcabouço dramático montado por Platão, dessa maneira, indica
a difícil tarefa de dar outras tonalidades ao Pitagorismo que tanto o influenciou depois da
morte de seu mestre.
Nesse sentido, os elementos que envolvem as figurações do protagonista e dos
antagonistas pitagóricos do Fédon criam um cenário que conduz todo o diálogo, o qual
culmina na oposição entre o comportamento de Sócrates e o de seus amigos e discípulos
que estavam presentes em seu último suspiro na prisão de Atenas. Enquanto o primeiro
adentrava ao Hades sem esboçar qualquer temor, os demais, incluindo Símias e Cebes, não
conseguiam conter as lágrimas e se descontrolavam à medida que o corpo de Sócrates se
anestesiava com o efeito do veneno. Toda a cenografia do Fédon, portanto, influi na
problemática filosófica proposta por Platão de modo a valorizar a postura filosófica de seu
estimado mestre. Sua figuração, nesse caso, vai muito além do recurso literário que
possibilita a crítica ao Pitagorismo, configura-se como elemento de fruição da estrutura
dramática conjunta da Apologia, do Críton e do Fédon, sob o qual repousa toda a expressão
da ética platônica e mobiliza uma moral denominada socrática, que é anterior mesmo à
composição do primeiro diálogo de Platão e que fora transmitida a ele por Sócrates ainda
em sua juventude.
Considerações finais
Analisar os diálogos platônicos é enxergar a imagem de Platão por ele mesmo
projetada. Nessa perspectiva, a figuração do personagem de seu mestre, Sócrates, tanto na
primeira trilogia quanto na segunda, pode crivelmente ser compreendida como uma
projeção de si e, por extensão, de sua pístis. Platão pensava que a pístis não podia ser
expressa através da escrita, a não ser pela comunicação direta de um mestre para com seu
discípulo. Todavia, a própria estrutura textual que escolheu para registrar sua filosofia
possuía a marca dessa comunicação afetiva, isto é, representava o “produto da prolongada
aplicação conjunta entre mestre e discípulo”. Foi por esse motivo que o gênero literário em
questão ficou conhecido como “diálogo”, sendo elaborado pelos discípulos de Sócrates para
que a pístis, engendrada a partir das lições proferidas pelo mestre, de alguma maneira, fosse
transmitida à posteridade.
Nessa direção é que as considerações levantadas neste trabalho têm relevância,
mesmo que não sejam frutos de uma análise mais detalhada, pois, isto ultrapassaria a
proposta inicial. Toda a enunciação dos diálogos platônicos parece ter como plano de fundo
a preocupação de expressar a pístis por meio da escrita. Assim, o uso da representação de
Sócrates em sua figura jovial, tanto no Parmênides quanto no Sofista e no Político, como um
mecanismo de desvalorização da filosofia socrática em prol da apropriação das filosofias
pitagórica e eleática, atesta a ruptura de Platão com o seu mestre. Isso pode ser
compreendido como uma impressão negativa de sua pístis na composição de seus textos.
A pístis se constituía como uma íntima e profunda prática de comunicação entre
mestre e discípulo através da qual eram incorporadas as disposições que a produziam e,
sendo sua estrutura cumulativa, acabava operando como um prisma em que as últimas
experiências sobrepunham as disposições mais antigas. Foi esse aspecto da pístis que fez
com que Platão, já beirando a velhice, retomasse a moral filosófica de seu mestre.
Provavelmente, foram as suas decepções com a política que o fizeram resgatar a altivez do
personagem Sócrates que fora representado por ele em seu primeiro diálogo, a Apologia.
A lembrança da morte de Sócrates foi a última e derradeira mensagem para todos os
discípulos que o acompanharam no final de sua vida. Para Platão, a interpretação do
episódio ficaria latente em sua pístis até o momento em que seu pensar o traria a tona como
percepção dos acontecimentos políticos que vivenciou. Aceito isso, a trilogia
Apologia/Críton/Fédon foi finalizada, possivelmente, entre os anos de 366 a. C. e 353 a. C.,
em um período que vai de sua última viagem a Sicília e a composição de sua Carta VII. O
paralelo com o julgamento e a condenação de Sócrates, através do qual Platão interpreta
sua própria história em Siracusa, confirma bem essa perspectiva de que antigas disposições
da pístis permanecem ativas durante longo tempo. Porquanto, também corrobora a
hipótese de que ele retomou o Socratismo de sua juventude para adaptar a moral de seu
mestre à ética que construíra depois da reelaboração ontológica de sua filosofia.
Nessa direção, a cenografia que começa na Apologia, atravessa o Críton e se encerra
ao final do Fédon, acaba remetendo ao padrão pelo qual Platão percebia e interpretava a
política grega. Dessa forma, a construção dramática que influi na problemática filosófica
proposta por Platão, tanto no primeiro quanto no segundo momento reflexivo tratado neste
trabalho, foi talhada sob o impulso de sua própria pístis. A figuração de Sócrates, portanto,
utilizada de diferentes modos como ponto de articulação entre as filosofias incorporadas por
Platão e com funções literárias peculiares a cada diálogo, configura-se como o principal
veículo de expressão da pístis platônica.
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