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Sobre alfabetização.
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Emilia Ferreiro
A desestabilização das escritas silábicas: alternâncias e desordem com pertinência Emilia Ferreiro
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A autora Psicolinguista e doutora em Psicologia, é investigadora emérita do Centro de Investigação e de
Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México. Área de estudoPsicogênese da língua
escrita. Contato
Este texto1 explora novas maneiras de entender as dificuldades das crianças de
fala espanhola para abandonar a análise silábica da palavra oral e substituí-la pela
análise sequencial de fonemas. Propõe-se uma analogia com a escuta musical
(não profissional) de um acorde de vários instrumentos (cordas e sopros) e um
mecanismo de ancoragem em uns ou outros (vogais ou consoantes), similar à
alternância de centrações cognitivas. Vários exemplos do processo de produção
de palavras "difíceis" por crianças de 5 anos ilustram a utilidade desse enfoque.
Introdução
Em 1979, foi publicado no México, o livro Los Sistemas de Escritura en el
Desarollo del Niño2. Os dados que o compõem foram recolhidos em Buenos
Aires e arredores em uma época particularmente inóspita para os habitantes do
país. Esses dados foram analisados no exílio por Ana Teberosky (em Barcelona)
e por mim (em Genebra), em tempos em que não havia correio eletrônico,
escâner nem os recursos de comunicação a distância a que estamos acostumados.
Nesse livro se defendia, entre outras teses, uma particularmente ousada: para
tratar de entender a escrita alfabética, as crianças falantes da língua espanhola
passam por um período silábico. De fato, inventam uma escrita silábica em que
cada letra escrita corresponde a uma sílaba oral. No período de apogeu dessas
construções silábicas, aparecem letras pertinentes para cada sílaba. Em espanhol,
as letras pertinentes privilegiadas são as vogais3.
Na obra se sustenta o seguinte: "A criança abandona a hipótese silábica e
descobre a necessidade de fazer uma análise que vá além da sílaba pelo conflito
entre a hipótese silábica e a exigência da quantidade mínima de grafias (ambas as
exigências puramente internas, no sentido de serem hipóteses originais da
criança) e o conflito entre as formas gráficas que o meio propõe e a leitura dessas
formas gráficas em termos da hipótese silábica (conflito entre uma exigência
interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito)".
De acordo. Porém o que quer dizer "fazer uma análise que vá 'além' da sílaba"? O
que ali se disse é basicamente correto (ainda que deveria ter posto palavras
gráficas no lugar de formas gráficas). Correto, mas insuficiente. Nesse
fragmento, somente se fala dos conflitos, mas não se diz nada acerca das
maneiras peculiares e próprias de analisar a sílaba em função da escrita no
momento de crise da hipótese silábica. Por acaso se passa do período silábico ao
alfabético porque se abandona a análise oral em sílabas e se passa a uma análise
em sequências de fonemas? O período seguinte (que chamamos silábico-
alfabético) parece indicar que isso não ocorre, já que as produções desse
momento da evolução são mistas por natureza: algumas sílabas se escrevem com
uma única letra, como no período precedente, mas outras sílabas se escrevem
com mais de uma letra, anunciando, ao que parece, o abandono da análise
silábica.
Recentemente, comecei a prestar atenção em processos de produção que podem
nos pôr na pista de um novo modo de compreensão desse período de transição.
Dois exemplos enfocam a questão.
Maria (5 anos) vai escrever a palavra sopa. Vai dizendo as sílabas enquanto
escreve as vogais correspondentes. O resultado é OA. Maria observa o resultado
e diz "está faltando". Típica situação em que o requisito de quantidade mínima se
impõe. O interessante é que Maria, buscando outras letras para pôr, não repete
nenhuma das anteriores, mas volta a dizer "so-pa" enquanto coloca as consoantes
correspondentes a essas sílabas. (De fato, repete várias vezes "so" antes de pôr S
e várias vezes "pa" antes de grafar P, como se buscasse essas letras). O resultado
é OASP. Todas as letras da palavra estão ali, mas em desordem. Maria não
consegue ler sua própria escrita. Poderíamos pensar que primeiro analisou as
vogais, os núcleos vocálicos das sílabas e depois os ataques 4 consonantais.
Contudo, essa descrição me parece incorreta. Como veremos, se trata sempre de
representar a sílaba, a mesma unidade, porém com base em perspectivas
diferentes, ancoragens diferentes. O que Maria produz são duas escritas silábicas
justapostas.
Um caso extraordinário é Santiago, também de 5 anos (Molinari e Ferreiro,
2007). A essa criança se solicita que escreva uma lista de compras, primeiro no
papel e depois no computador. Dois desses pares de palavras são notáveis.
Santiago já sabe que não se pode escrever somente com vogais. Produz SA no
papel e OD na tela para soda; escreve SAM no papel e ALE na tela para salame.
Por quê, se Santiago conhece todas as letras de soda e desalame, não pode
colocá-las juntas? Temos chamado alternâncias grafo-fônicas esse fenômeno.
Como explicá-lo? Creio que assistimos a alternâncias de centrações cognitivas
sobre dois aspectos da unidade sílaba. A sílaba oral é considerada com base em
suas ancoragens diferentes. As letras escolhidas correspondem a essas duas
ancoragens. Uma centração no lado vocálico da sílaba ocorre depois uma
centração no lado consonantal. A mesma sílaba é ouvida de outro lugar. (Ouvida
e vista porque a escrita permite vê-la).
Novos dados de investigação
As crianças que estão me ajudando a entender esse frágil, mas importante
momento da evolução, são de La Plata, Argentina. Têm 5 anos e foram
interrogadas por Andrea Ocampo e Graciela Brena com a supervisão e o apoio de
Claudia Molinari.
Elas frequentam duas escolas diferentes, porém similares quanto ao modo de
introduzir a cultura escrita. Não necessito detalhar aqui suas características,
somente enfatizar que a análise da oralidade resulta da confrontação com
desafios que a escrita ou a leitura colocam5. E que essas crianças estão
acostumadas a justificar suas produções porque escrevem habitualmente no
coletivo ou em pequenos grupos e porque a confrontação de diferentes soluções
para um mesmo problema de escrita é habitual. Os últimos dados obtidos são do
fim do ano escolar de 2008. Ainda nos resta muito para analisar, mas alguns
resultados são suficientemente claros para publicá-los porque me parecem muito
importantes.
Selecionamos crianças que no início do ano escolar escreviam bem o nome
próprio, mas escreviam qualquer outra palavra usando quase exclusivamente
vogais (vogais pertinentes). A essas crianças propusemos a escrita de uma lista
de palavras particularmente difíceis: 15 palavras em uma sessão (o que é
enorme), todas dissílabas (que são particularmente difíceis pela exigência de
quantidade mínima) e, além disso, dissílabas com uma sílaba que os professores
qualificam de "complexas": CVV, como na primeira sílaba da palavra piano6;
CVC, como na primeira sílaba da palavra torta; CVVC, como na primeira sílaba
da palavrafiesta7 (festa)
8.
Realizaram-se três entrevistas individuais ao longo do ano escolar. Quinze
crianças foram acompanhadas em 2007 (com foco em sílabas CVV) e outros 15
em 2008 (com foco em sílabas CVC, CVVC).
A tarefa consistia em escrever uma lista de palavras, porém os elementos da lista
estavam inseridos em uma mininarrativa que falava sobre a preparação de
uma fiesta (festa), com umbaile, a escolha de uma reina (rainha) a quem se vai
dar um collar de perlas... (colar de pérolas). Fiesta, baile, reina, collar,
perlas faziam parte da lista. O objetivo do procedimento era assegurar que as
crianças compreendiam as palavras que iam escrever9.
Por que apresentar palavras tão difíceis a crianças de 5 anos? Pode parecer
absurda a proposta. Com efeito, se interrogamos aquelas que ainda não resolvem
com as duas letras necessárias a escrita de sílabas CV, o que esperamos que
façam com as sílabas complexas? Precisamente, é disso que se trata em uma
investigação psicogenética e psicolinguística (já que não temos a intenção de
desenvolver uma investigação didática). Necessitamos verificar se as crianças, ao
longo do ano escolar, ignoram as dificuldades dessas sílabas (reduzindo-as
primeiro à vogal e depois, eventualmente, à CV) ou se enfrentam essas
dificuldades e o que resulta disso.
Recordo a célebre boutade - dito irônico, provocativo - de um brilhante
colaborador de Jean Piaget (1896-1980), Pierre Gréco (1927-1988), que disse em
uma conferência: "A um psicólogo que trabalha com a teoria psicogenética se
pode pedir que nos diga de que maneira um bebê anda de bicicleta". Pois bem,
queremos ver de que maneira os que ainda não podem escrever CV (ainda não
podem caminhar) resolvem sílabas complicadas (andam de bicicleta).
Sílabas com ditongo (CVV)
Nem todas as sílabas complicadas são igualmente difíceis. Um dissílabo é difícil,
porém, se o dissílabo contém um ditongo, pode se transformar em um trissílabo,
acentuando as duas vogais (pia-no se converte em pi-a-no), com o qual se pode
escrever IAO, superando, ao mesmo tempo, os requisitos quantitativos e
qualitativos próprios desse período. As crianças se dão conta dessa
possibilidade?
Algumas delas escrevem esses dissílabos com ditongo como se se tratassem de
trissílabos e põem as três vogais pertinentes. Elas, ao longo do ano, começaram a
incorporar consoantes em sua escrita. Entre uma entrevista e a seguinte,
registramos dois fenômenos particularmente importantes: a) desaparecimento do
ditongo ao aparecerem as primeiras consoantes; ou então b) o ditongo subsiste,
mas em desordem, quando aparecem as primeiras consoantes.
Vejamos um exemplo de desaparecimento do ditongo ao surgirem as primeiras
consoantes. Uriel escreve radio (rádio), ao longo do ano escolar, assim:
AIO>ROO>RIO (as setas indicam a existência de intervalo entre uma entrevista
e outra). O ditongo se perde ao aparecer a primeira consoante. R não é o ataque
da sílaba, mas outra maneira de escrever a sílaba "ra", primeiro com A e depois
com R. Na última entrevista, o ditongo reaparece - a renúncia momentânea à
variedade interna havia deixado Uriel insatisfeito. Parece-me difícil sustentar que
Uriel pôde analisar o ditongo e que, poucos meses depois, foi incapaz de analisá-
lo. Creio que o que está ocorrendo tem pouco a ver com as possibilidades de
análise oral de fonemas. O problema está em outro lugar.
Em outros casos, as vogais do ditongo subsistem, mas em desordem, na segunda
entrevista. Julieta escreve radio: AIO>RIDO>RADIO.
É importante o registro de tudo o que ocorre durante o processo de produção para
compreender por que essas letras pertinentes, porém em desordem, satisfazem as
crianças. Por exemplo, Micaela (na terceira entrevista) vai escrever baile e
começa com as vogais AE. Olha o resultado enquanto diz "bai, bai... La ve corta
(V)"10
e intercala a letra V: AVE. Volta a considerar o resultado enquanto diz
"bai-le... Falta o L" e o agrega ao final. O resultado é AVEL e o lê sem
problemas, assinalando duas letras para cada sílaba. Está satisfeita porque,
efetivamente, as letras são pertinentes. A ordem dentro da sílaba não importa.
Sílabas com consoantes em posição coda (CVC)
O aparecimento das consoantes na posição coda costuma ir acompanhado de
severos problemas de desordem com pertinência. A palavra torta foi proposta nas
duas primeiras entrevistas. Milagros e Valentina escreveram TROA na segunda
entrevista, mas chegaram ao resultado por meio de processos diferentes.
Milagros inicia escrevendo OAA e comenta "dois a... está complicado". Lê o
resultado "to-o...or-ta". Em função dessa leitura, tenta colocar OOA, revisa suas
escritas prévias e vê que já pôs OOA para collar (colar). Deixa OAA, insatisfeita.
Na segunda entrevista, antecipa "como Tomás, o T e o O (TO) e o A (A)". O
resultado é TOA. Leitura de controle: "tor... e o erre" (agrega R ao final). O
resultado é TOAR (desordem com pertinência). Nova leitura de controle: "tor-
tar... ah! o erre aqui". Volta a escrever: TROA (desordem com pertinência, com
o R inserido em lugar inadequado, porém "dentro" da sílaba a que pertence).
Valentina, na primeira entrevista, começa a aceitar duas letras para não repetir
vogais. Escreve OA. Na segunda entrevista, verbaliza enquanto escreve: "to, a
letra te (T) torr, o erre (R) tor-ta, a letra a (A)" O resultado é TRA. Inicia a
leitura de controle: "tor... a letra o". Intercala essa vogal. O resultado é TROA
(desordem com pertinência, como Milagros).
Vejamos um exemplo do que pode ocorrer com uma palavra no
plural, perlas11
(pérolas) cujas duas sílabas apresentam codas (R e S,
respectivamente). Tomás é uma criança que desde a primeira entrevista utiliza
consoantes e está muito atento à representação das codas. Em todas as
entrevistas, escreve essa palavra com letras pertinentes, mas em desordem:
PRES>REAS>PRSA // PRLSA (a barra dupla indica mudança durante a mesma
sessão). A escrita da segunda entrevista (REAS) é particularmente notável
porque Tomás escreve as duas codas, porém nenhuma das duas consoantes em
posição de ataque. O detalhamento da produção é assim: na primeira entrevista,
Tomás antecipa "per, per, perlas, a letra pe e o erre" (PR) "o e" (E) "esse" (S)".
O resultado é PRES, que lê assinalando duas letras por sílaba. Na segunda
entrevista, também antecipa enquanto escreve: "o erre e o e" (RE) las, o a
(A)per-las, esse (S)". O resultado é REAS. Na terceira entrevista, antecipa duas
letras por sílaba: "per (PR) las (SA) Aí está". Lê o resultado, PRSA, como "per-
las" (2 por sílaba) e conclui "o ele (L) na frente do esse (S). Intercala essa letra.
O resultado é PRLSA. Procede a uma leitura de controle: "per (PR) las (LSA)".
Mostra-se satisfeito com o resultado.
Sílabas com ditongo e coda (CVVC)
Uma das palavras propostas, fiesta, tem uma sílaba inicial particularmente difícil,
com ditongo e consoante S em posição coda. Uriel escreve fiesta assim:
IEA>IEA>ETA // FSA. As escritas das duas primeiras sessões são idênticas.
Porém, na terceira, há uma troca notável. O primeiro recorte oral é "fies-ta" e
corresponde à produção ETA. Ao controlar sua produção, Uriel faz outro recorte
"fi-es-ta", recusa o que havia escrito e produz FSA (lê uma letra por sílaba).
Indicação importante de evolução: há mais consoantes que vogais na última
produção.
Camila, na terceira entrevista, nos oferece um expressivo exemplo. Diz: "com
efe" e escreve FETA. Lê "fi-es" (sobre as primeiras duas letras) e conclui: "Falta
o esse (S)". Inclui o esse e fica FETSA. Começa a ler: "fi... falta o i". Insere o i e
fica FEITSA. Novamente controla: "fi... Tenho que tirar o E". Dessa vez, decide
reescrever a palavra e o resultado é FITA. Começa a ler: "fies... Falta o esse".
Inclui S na mesma posição que antes. Fica FITSA. Camila, cansada, renuncia a
uma leitura analítica e lê "fiesta" sem segmentações, deslizando o dedo sobre as
letras, em um gesto contínuo. A série de transformações de Camila é a seguinte:
FETA // FETSA // FEITSA // FITA // FITSA.
Todo o trabalho de Camila é sobre a primeira sílaba, a sílaba difícil. A segunda
sílaba, bem resolvida de início, fica desarticulada por todo esse trabalho. Na ação
de escrever, Camila intercala sem ordenar. É a leitura que impõe a busca de uma
ordem porque na oralidade as sílabas não são permutáveis. Camila insere letras, o
que é um sinal de grande progresso. Mas, uma coisa é dar-se conta que a
sílaba /fies/ tem um I e um S, e algo muito diferente é saber onde exatamente pôr
essas letras. Camila sabe que devem ir "dentro", mas não sabe ainda se "vai antes
de" ou "depois de".
A escuta da sílaba como um acorde musical
Para tratar de compreender o que está ocorrendo - compreendê-lo desde o ponto
de vista do sujeito em evolução -, proponho deixar momentaneamente de lado as
teorias fonológicas da sílaba que não podem dar conta desses processos porque
não estão pensadas em termos evolutivos. Pensemos na escuta musical de alguém
que não é músico de profissão.
Posso escutar uma obra orquestral (uma sinfonia de Joseph Haydn [1732-1809]
ou Wolfang Mozart [1756-1791], por exemplo) prestando atenção na linha
melódica em geral, nas mudanças de intensidade, nas variações rítmicas. A obra
musical é produzida por todos os instrumentos da orquestra e posso escutá-la
como um objeto único, mesmo sabendo que diferentes instrumentos contribuem
para ela, mas sem atentar em particular a nenhum deles.
Porém posso ter uma escuta da mesma obra focalizada nas cordas (os
instrumentos indispensáveis da orquestra) ou alternadamente nas cordas e nos
instrumentos de sopro. Ter uma escuta que diferencie cordas e sopro, mas
integrados na sonoridade plena da orquestra, é muito difícil para alguém que não
seja músico profissional.
A analogia me parece útil para tentar compreender esse momento preciso da
evolução. Da centração privilegiada nas vogais (as cordas que vibram) se passa a
escutar o mesmo acorde musical desde outros instrumentos (não vogais). São
centrações alternadas, incompatíveis entre si: uma ou outra, porém não as duas
de uma vez.
Parece-me que as crianças escutam a sílaba como se fosse um acorde musical
produzido por vários instrumentos. É a escrita que obriga a considerar esses sons
simultâneos como se fossem sucessivos.
As alternâncias com pertinência (caso Santiago, escritas de soda e salame)
expressariam o momento das centrações excludentes sobre os instrumentos que
participam do acorde musical (as cordas e os sopros, ou seja, as vogais e as
consoantes). Essas centrações alternadas podem aparecer na mesma escrita (caso
Maria, escrita de sopa) como agregados sucessivos. Depois se dão conta de que
no acorde musical (a sílaba) há sons que estão ali dentro e por isso começam a
intercalar. Põem dentro, não põem "antes de" nem "depois de" . Não se pode
passar imediatamente de "está dentro" a "está antes de" ou "depois de"12
. No caso
da sílaba, isto é tanto ou mais difícil que em outros domínios do desenvolvimento
cognitivo.
Omissões e desordem, dois elementos clássicos do diagnóstico de dificuldade de
aprendizagem. Porém essas crianças são perfeitamente normais. Nesse estudo,
todas produziram escritas com letras pertinentes, porém em desordem, em
quantidade variável (no mínimo uma vez e no máximo oito em cada sessão de 15
palavras). Para compreender o que fizeram, é evidente que não basta analisar o
produto final. É preciso compreender o processo e saber com precisão o que
dizem enquanto agregam, apagam, substituem ou intercalam letras. Saber se
seguem modificando a primeira produção ou se decidem reescrever. A
observação deve ser detalhada, e a análise, cuidadosa.
Observações finais
Nas escritas silábicas, a fronteira silábica fica marcada, já que, quando deixamos
que decidam, as crianças preferem caracteres separados e cada letra, separada das
outras, corresponde a uma sílaba. Na escrita alfabética, essa fronteira desaparece.
Parte da dificuldade reside no desaparecimento dessa fronteira.
A passagem do "saber fazer" no plano da ação verbal ao "pensar sobre" os
elementos do produto dessa ação verbal é, nada mais nada menos, que a
transformação da linguagem - instrumento de ação - em objeto de reflexão. É
preciso colocá-la fora de si mesmo e dos outros falantes. Tirá-la do contexto
comunicativo e concebê-la como objeto a ser considerado em si mesmo e por si
mesmo. A grande dificuldade reside em que não se trata de um objeto do mundo
físico ou cultural que preexiste à ação do sujeito sobre esse objeto. A língua oral
existe na medida em que existem atos de fala13
.
Descobrir que os objetos têm partes e que suas partes são classificáveis e
ordenáveis é algo que as crianças de 4, 5 anos já fazem com outros objetos do
mundo físico ou cultural. Por meio de sua ação no mundo, descobriram também
que as propriedades dos objetos completos não coincidem necessariamente com
as propriedades das partes. Agora devem fazê-lo com a língua oral. A escrita lhes
ajuda na análise desde que não seja cópia, que seja uma construção autêntica.
Propus deixar de lado, provisoriamente, as teorias fonológicas. As teorias
fonológicas da sílaba são o que são: modelos teóricos que nos ajudam a
problematizar essa unidade (a sílaba) em termos de suas possíveis distinções
internas. Não são modelos de desenvolvimento e, muito menos, das etapas mais
instáveis desse desenvolvimento. Nós, psicolinguistas, não podemos limitar-nos a
ver quais dos modelos de análise da sílaba se ajustam a nossos dados. Não
podemos ignorar esses modelos. Mas tampouco podemos forçar os dados
evolutivos para que se ajustem a um modelo sincrônico. Por respeito às análises
linguísticas (porém reconhecendo sua im-pertinência para compreender a
evolução), sugiro buscar analogias na música, analogias que têm seu correlato na
teoria psicogenética sobre outros domínios.
Por outro lado, que informação trazem esses dados sobre as relações de
precedência ou sucessão entre oralidade e escrita nesses momentos da evolução?
Já sabemos que os modelos hegemônicos dizem que as crianças devem ser
capazes de analisar a oralidade em termos de sequências de fonemas para
compreender a escrita alfabética (phonological awareness - consciência
fonológica). Eu propus que é a escrita alfabética que obriga a adotar uma atitude
analítica com respeito à fala (Ferreiro, 2003).
Contudo, não se trata de substituir um modelo unidirecional por outro igualmente
unidirecional (como sugere Olson, 1996). O ponto de partida para a análise da
fala é a escrita socialmente constituída, assim como a escrita que as crianças
produzem. Mas indicar o ponto de partida não equivale a predeterminar a
direcionalidade das análises posteriores.
Os exemplos que tenho analisado mostram ações em ambos os sentidos porque a
oralidade não é um objeto único, nem sequer ao nível da palavra: a oralidade
analítica que busca na segmentação silábica as letras pertinentes não é o mesmo
que a oralidade verificadora (leitura) ou a oralidade confirmatória (que também é
leitura).
Por sua vez, o escrito tampouco é um objeto único, nem sequer ao nível da
palavra: há escritas que se impõem ao sujeito, como se fossem imodificáveis,
tanto como tentativas de escrita, provisórias, disponíveis à mudança (nem sempre
felizes).
Temos visto casos em que a interação oral/escrito ocorre em ambos os sentidos
(do oral para o escrito e do escrito para o oral). Mencionar uma interação em
ambos os sentidos não explica nada, mas ao menos previne contra a tentação de
substituir um modelo tradicional unidirecional (oral>escrito) por outro
igualmente unidirecional (escrito>oral).
Parece-me que compreender em todos seus detalhes esses momentos de transição
e, em particular, essa "desordem com pertinência" que expus, é crucial para
entender as dificuldades e as especificidades da alfabetização. Porque mostra,
além disso, as dimensões propriamente dramáticas do processo, um processo que
dista muito de ser linear, ou seja, por adições sucessivas. Ao abandonar a escrita
somente com vogais, ao começar a introduzir consoantes, as crianças não estão
apenas agregando letras aleatoriamente. A introdução das consoantes desorganiza
o sistema anterior e as elas devem empreender a penosa tarefa de encarar os
desafios de encontrar uma nova organização. Essa nova organização impactará
por sua vez a oralidade analítica e a escrita reflexiva.
Bibliografia
- Ferreiro, E. (2003). Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita. Porto Alegre:
Artmed.
- Molinari, C. e Ferreiro, E. (2007). Identidades y diferencias en la escritura en papel y em
computadora en las primeras etapas del processo de alfabetización. Lectura y Vida. Nº 28.
- Olson, D. (1996). O mundo sobre papel. São Paulo: Ática.
Introdução
Novos dados de investigação
Sílabas com consoantes em posição de coda
A escuta da sílaba como um acorde musical
Observações finais
Notas e bibliografia
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Publicado em Especial Artigos, Janeiro 2012.
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