172
DIÁLOGOS ABERTOS 4 JOSÉ ALBERTO PINHO NEVES COORDENAÇÃO EVESIACYRFREITASELIARDO

1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

1

DIÁLOGOSABERTOS4J O S É A L B E R T O P I N H O N E V E S

C O O R D E N A Ç Ã O

EVESIACYRFREITASELIARDO

Page 2: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

2

Page 3: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Diálogos Abertos

Page 4: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 5: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

DIÁLOGOS ABERTOS

COORDENAÇÃO José Alberto Pinho Neves

Juiz de ForaUFJF/MAMM

2016

Page 6: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

© by Museu de Arte Murilo Mendes, 2016.

Universidade Federal de Juiz de ForaMarcos Vinício Chein Feres Vice-reitor em exercício da ReitoriaValéria de Faria CristofaroPró-reitora de CulturaJosé Alberto Pinho NevesDireção Interina MAMM

Comissão Editorial MAMM Edimilson de Almeida Pereira, Fernando Perlatto Bom Jardim, Moema Rodrigues Brandão Mendes, Ricardo Cristofaro

Diálogos AbertosCoordenação, José Alberto Pinho Neves. Edição, Katia Dias. Projeto gráfico, capa e diagramação, Nathália Duque. Revisão de texto, Ronald Polito. Fotografia, Alexandre Dornelas. Ficha catalográfica, Ailcto Mendes Novaes.

[2016]UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Pró-reitoria de Cultura

MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Rua Benjamin Constant, 790, CEP. 36015-400, Juiz de Fora, Minas Gerais Tel: (32) 3229-7652 | www.museudeartemurilomendes.com.br

Diálogos Abertos / José Alberto Pinho Neves (Coordenador). – Juiz de Fora : UFJF/MAMM, 2016.

168 p. – (Diálogos abertos, 4)

ISBN 978-85-62136-33-7

1. Arte e literatura - Entrevistas. 2. Literatura – História e crítica. I. Neves, José Alberto Pinho.

CDU : 7:82(079.5)

Page 7: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Sumário

APRESENTAÇÃO 7(Luz sobre o passado)

ELIARDO FRANÇA 12(Fantasia e realidade em traços que instigam à reflexão)

IACYR ANDERSON FREITAS 42(Inteligência verbal em um eterno fluir)

JURACY DE AZEVEDO NEVES 74(Um empreendedor polarizado pela transcendência)

MARCOS MARINHO 106(Voo livre em direção às artes cênicas)

VILLANI-CÔRTES 142(A essência da alma brasileira)

Page 8: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 9: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Quando o assunto é memória, como não pensar em Jorge Luis Borges e no personagem central de seu instigante conto Funes, o memorioso? Bem longe da pretensão de se tornar um prodígio de lembranças genéricas criado de forma acidental, como escreveu o mestre argentino, a série Diálogos Abertos, da Universidade Federal de Juiz de Fora, vem sendo pensada seletivamente, de modo a destacar aqueles que contribuíram de fato para a história da cidade, projetando-a para outras e amplas paragens. Ao recolher o testemunho de homens e mulheres merecedores de ter suas trajetórias revisitadas, os livros desse projeto acadêmico lançam luz apenas sobre o que vale a pena ser reverenciado, transformando-se, assim, em fonte criteriosa e confiável sobre o passado local.

Em uma era de informações abundantes e dispensáveis criada pela internet, os dados garimpados nos depoimen-tos realizados no Museu de Arte Murilo Mendes a partir de 2007 são fundamentais para o entendimento de Juiz de Fora e sua evolução. Aqui está um verdadeiro tesouro, à cidade le-gado por seus cidadãos e suas obras. Neste volume, o quarto já editado, encontram-se as entrevistas de Eliardo França, Iacyr Anderson Freitas, Juracy de Azevedo Neves, Marcos Marinho e Edmundo Villani-Côrtes. O poder da inspiração, das palavras, da notícia, da música e do teatro ganha vida em histórias exemplares, capazes de proporcionar uma viagem no tempo, esclarecendo fatos, explorando detalhes e, em muitos casos, indicando caminhos.

Capaz de fascinar diferentes públicos com traços que vão da ingênua interpretação da infância à dura crítica à colonização do país, o pintor e ilustrador Eliardo França con-ta como conquistou seu espaço, traduzindo-se em um dos mais influentes artistas brasileiros. Seu trabalho com livros infantis, fruto de uma parceria com a escritora Mary França, sua esposa, é reconhecido também pelo caráter pedagógico, graças à habilidade de junção entre fantasia e realidade para trazer à tona importantes discussões. Até chegar à criação autoral, trabalhou com expoentes como Malba Tahan, para quem ilustrou 6 livros, incluindo o célebre O homem que cal-

LUZ

SOBR

E O

PAS

SAD

O

Page 10: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

8

culava, que já superou a 70a edição. Os Contos de Andersen, obra realizada na Dinamarca, é outro ponto alto de sua carreira, assim como a série de pinturas intitulada Músicos.

Dotado de uma inteligência verbal que o distingue em sua geração, Iacyr Anderson Freitas traz no sangue a paixão pelos livros. Influencia-do pelo avô, de quem também herdou o nome, buscou o caminho da escrita, destacando-se como poeta e ensaísta nas Américas e na Europa. Engenheiro por formação e funcionário da Secretaria de Estado da Fa-zenda de Minas Gerais, dedica-se à escrita desde os anos 1980, quando já integrava o grupo Abre Alas e a equipe da revista d’lira, movimentando o caldeirão da cultura juiz-forana. De lá para cá foram inúmeras pre-miações, entre elas a menção especial no Premio Literario Casa de las Américas, em Cuba, com Trinca dos traídos, tendo se sobressaído tam-bém ao ministrar cursos e participar de seminários, alguns em parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora.

Coragem, determinação e visão são qualidades que definem Juracy de Azevedo Neves, um empreendedor que deixa sua marca em iniciati-vas que vão do primeiro cursinho pré-vestibular da cidade à inovadora implantação da tecnologia de medicina nuclear na região. Médico, pro-fessor, construtor e administrador, suas digitais estão ainda na criação do plano de saúde da Santa Casa de Misericórdia, na restauração da Capela Senhor dos Passos, na construção do Teatro Solar. Sem contar o desafio de manter a Rádio Solar, antiga PRB-3, e o jornal Tribuna de Minas, criado em 1981, ano em que assumiu a Esdeva, transformando-a em um dos principais parques gráficos do país. Livre-pensador que in-tegrou o quadro docente da UFJF, ainda guarda um desejo não realiza-do: a interpretação teatral. “Sou um ator frustrado”, confessa.

O menino Passarinho ia ser padre, mas se encontrou ao mergulhar no universo teatral e suas inúmeras possibilidades. Marcos Marinho é dos poucos a se fazer como ator e produtor às próprias expensas, desa-fiando o improvável com aventuras dignas de serem registradas. Criou a companhia Navegar, emprestou corpo e alma ao palhaço Zé Boléo, viajou pelo Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa até trazer para Juiz de Fora o próprio Manuelzão, em carne e osso. São muitos os feitos que o mantiveram em sua rota: o espetáculo Depois das águas, a peça Meu dia perfeito, o grupo Corpo-en-cena. Aprendeu sua mágica com Márcio Libar, Amir Haddad, Gerald Thomas e Denise Stoklos. Viveu de tudo

Page 11: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

9

um pouco para forjar sua persistência e lançar a âncora que o levou ao espaço Mezcla, um marco na vida cultural da cidade.

O que dizer de alguém com a sensibilidade à flor da pele, nascido em um ambiente musical e que se aperfeiçoou sob a égide de ninguém menos que Heitor Villa-Lobos? Em Edmundo Villani-Côrtes saltam aos olhos a humildade, a simplicidade e a delicadeza de um homem que se recusa a ser comparado a gênios, mas ofereceu a Juiz de Fora, nas comemorações dos 150 anos, um Te Deum que enche a cidade de or-gulho e que está à altura dos grandes mestres do gênero. Compositor premiado inúmeras vezes, deixa claro que cada peça que escreveu teve uma história própria, uma razão específica de ser. Por isso, não se deixa comparar àqueles que não viveram a vida que viveu, não sofreram ou tiveram as alegrias que teve. Seu diferencial pode ser resumido em um propósito: “Tento transmitir em minha música as dúvidas e as verdades que achei necessário encarar”. Assim, suas composições se transformam em lições para inspirar a história e o caminho dos que virão. “Um ser humano conecta-se a outro através da admiração, do respeito, da digni-dade, do carinho e de tudo isso a que chamamos amor. Essa procura me faz buscar a música para me expressar, pois não saberia falar sobre isso com palavras”. Esse é Villani-Côrtes, um homem que acredita que a pai-xão acaba tocando as pessoas. No final das contas, o legado é a emoção.

Katia Dias

Page 12: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 13: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

“A memória é uma construção do futuro, mais que do passado”Murilo Mendes

Page 14: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 15: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Nascido em Santos Dumont (MG), em 17 de junho de 1941. Filho de José França Gontijo e Hélia Neves França, radicou-se em Juiz de Fora em 1959, dedicando-se profis-sionalmente à ilustração a partir de 1966. Os trabalhos em livros infantis já estavam presentes no início da carreira que o fez abandonar a ideia de cursar a Faculdade de Arquitetura da UFMG. A parceria com a esposa e escritora Mary França já dura 4 décadas. Com ela teve 4 filhos: Augusto, Patrícia, Daniel e Lucas. Traduzidos para diversas línguas, os livros es-critos por Mary e ilustrados por Eliardo venderam milhões de exemplares e trouxeram vários prêmios nacionais e in-ternacionais para o artista, como de Melhor Ilustrador, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e Menção Honrosa na Bienal de Ilustrações de Bratislava, na Eslová-quia. A partir dos anos 80, com um trabalho já consolidado como ilustrador, Eliardo começa a se dedicar à pintura. A nova empreitada levou o trabalho do artista a importantes galerias brasileiras e europeias. Tomando a figura humana como inspiração, entre os trabalhos já produzidos, estão as telas que remetem à chegada dos portugueses ao Brasil e a construção da identidade cultural brasileira, bem como uma série dedicada à música, notadamente o jazz.

Sobre o ilustrador e o pintor que adotou Juiz de Fora como sua terra, projetando-a além de seus limites, escreve-ram inúmeros críticos e admiradores, inclusive no exterior, entre eles a jornalista Laura Sandroni, integrante do Conse-lho Curador da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juve-nil, em artigo da publicação Salto para o Futuro do Ministério da Educação: “[...] Outra linha seguida por alguns dos nossos melhores autores é aquela em que a fantasia e a realidade se

ELIA

RD

O F

RA

A

Page 16: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

interpenetram na discussão de temas relevantes, como é o caso de Ruth Rocha com O reizinho mandão (1978) e os 2 outros títulos da chamada Trilogia dos reis, que abordam o autoritarismo, escritos em plena dita-dura. É o caso também de um trabalho anterior realizado por um dos nossos principais ilustradores, Eliardo França, com o premiado Rei de quase tudo, de 1974. Nessas obras, como em História meio ao contrário (1978), de Ana Maria Machado, os elementos dos contos de fadas são decompostos e reconstruídos, invertendo-se as relações do poder [...]”.

Page 17: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

15

José Alberto Pinho Neves. Como se deu sua chegada a Juiz de Fora? Poderia nos falar a respeito da Faculdade de Arquitetura? Também gostaria de uma análise sobre o universo cultural da cidade sob a ótica de quem produz literatura infantil e também uma pintura mais madura.Eliardo França. Saí de Santos Dumont em direção a Juiz de Fora em 1959, depois de terminar o ginasial. Minha intenção era fazer o científico e depois a faculdade. Matriculei-me na Academia de Comér-cio, mas, como o curso era muito apertado e eu era muito ligado à ma-landragem, acabei mudando de colégio. Assim que terminei o científico fui para Belo Horizonte estudar num cursinho para tentar o vestibular de Arquitetura na UFMG. Foi um engano muito grande, porque refiz o cursinho pré-vestibular lá, e poderia até ter sido aprovado, quando um professor viu alguns trabalhos meus e falou: “Com esses desenhos, você está na tribo errada. Seu interesse é arquitetura, mas o que você faz se encaixa em artes plásticas. Você é um artista plástico; então, tem que procurar sua turma!”. E foi o que fiz. Enfiei a pasta debaixo do braço e nunca mais voltei na escola de arquitetura. Na verdade, tentei arqui-tetura exatamente por ser o que eu enxergava como o mais próximo do desenho, da prancheta, dos lápis. Achava que tinha a ver, mas estava completamente equivocado. Ainda bem que abri meus olhos a tempo.

Quando voltei para Juiz de Fora, percebi uma efervescência cultural muito expressiva, com grandes artistas plásticos que não estão mais aqui. Arlindo Daibert, Ruy Merheb, Dnar Rocha, Renato Stehling e Heitor de Alencar são exemplos. As décadas de 1960 de 1970 ofere-ciam muito nesse campo. Movimentos promissores se iniciavam, como o do Centro Cultural Pró-Música, do qual fiz parte, com várias expo-sições na galeria Renato de Almeida. Hoje, temos inúmeros artistas, mas penso que está faltando algo. Não sei se a palavra adequada seria “incentivo”. Sei que temos bons espaços para mostrar os trabalhos, mas talvez faltem recursos para concretizar as mostras. Para falar a verdade, precisamos de mais espaço e de mais incentivo, de algo que seja o elo de aproximação entre os artistas plásticos e os ilustradores da cidade, pois temos figuras promissoras, bons quadrinistas, alguns de nível in-ternacional, mas faltam, inclusive, mais leis de apoio à cultura para que a efervescência a que me referi seja retomada.

Page 18: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

16

Pinho Neves. No passado, era mais difícil chegar ao mercado e, consequentemente, isso requeria um amadurecimento maior por parte do artista. Hoje, a pessoa escreve meia dúzia de páginas e já vira poeta, pinta meia dúzia de exercícios, em sala de aula, e já vira artista plástico, requisitando um lugar no mercado. Na década de 60, era diferente; não se chegava a ser artista plástico sem passar por salões de arte; não se pu-blicava um livro sem passar por um crivo maior. Mesmo porque aqueles que se destacavam, naquele momento, eram pessoas consagradas. O mercado editorial estava em ascensão. Sendo assim, poderia nos falar um pouco mais sobre essa sua observação quanto aos espaços atuais e à questão “incentivo versus qualidade”?Eliardo França. No meu caso, não foi tão difícil assim, talvez por-que tenha sido favorecido por alguma confluência astral: algum anjo me ajudou. Mas tudo bem, eu quis me referir às galerias de arte comer-ciais, que não existem aqui. Temos galerias como a do Centro Cultural Pró-Música, que continua de pé, e muito bem dirigida pelos amigos Maria Isabel e Hermínio de Sousa Santos, mas galerias comerciais nós não temos e penso que é importante ter. É fundamental para o artista ter acesso a esses espaços. Talvez seja necessária uma associação, um aglutinamento, uma reunião periódica de artistas que discutam essa ca-rência. Sinto essa falta porque aquela turma dos anos 1960 se reunia, discutia, conversava, trocava ideias. Hoje, cada um faz seu trabalho e pronto, ponto final.

Entretanto, detalhando um pouco mais o meu início, devo reconhe-cer que houve certa dificuldade. Depois que saí da Escola de Belas Ar-tes, em Belo Horizonte, pensei em ir para São Paulo ou Rio de Janeiro. O Rio era mais perto e eu queria fazer história em quadrinhos; então, coloquei uma pasta de desenhos debaixo do braço e procurei uma gran-de empresa da época, a Editora Brasil-América, a Ebal, que era dirigida por Adolfo Aizen, uma lenda em seu campo. Foi o homem que trouxe a história em quadrinhos para o Brasil: Tarzan, Batman, Super-Homem [além de Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente e Flash Gordon]. En-fim, era o papa dos quadrinhos no Brasil [criador da revista Mirim, a pri-meira a usar o formato comic book no Brasil]. Levei meus desenhos sem ter marcado nada. Apenas cheguei e falei: “Quero mostrar um desenho para o senhor!”. Ele, muito simpático, me recebeu em seu gabinete e,

Page 19: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

17

depois de ver meu trabalho, disse: “Você leva jeito, mas o que faz não é história em quadrinhos”. Isso aconteceu em 1966.

Ouvi de Aizen que as histórias em quadrinhos, no Brasil, vinham prontas da Europa e dos Estados Unidos e que não havia condições de concorrência. O processo incluía espalhar para o mundo inteiro os fo-tolitos já prontos, o que era muito mais barato do que pagar a cria-ção de um artista nacional. Entretanto, o diretor da Brasil-América me indicou um caminho que estava se iniciando no país e que era, jus-tamente, a editoração de livros infantis. Ele chamava de álbum para criança. “Vou lhe dar umas histórias para ilustrar e vamos ver o que acontece”, disse. Saí de lá pisando nas nuvens com essa que foi a minha primeira oportunidade de trabalho. Voltei para Juiz de Fora, seguindo seu conselho: “Não venha morar no Rio, em Juiz de Fora estão seus pais, seus amigos... Fique lá, faça o trabalho que lhe dei e traga para o Rio. Ganhe seu dinheiro aqui e gaste lá, porque assim vai economizar muito”. Foi o que fiz. Trabalhei aqui rapidamente e lhe mostrei. A resposta foi que o resultado estava ótimo, muito bom mesmo, e esse foi o primeiro dinheiro que recebi como fruto da minha arte. Lembro que, em Juiz de Fora, ao lado do restaurante Brasão, tinha uma camisaria chamada Quincas, e foi lá que comprei uma camisa para mostrar a meu pai José França Gontijo, que costumava dizer: “Desenhar em capa de caderno não dá camisa a ninguém!”. Fui a Santos Dumont só para lhe mostrar a camisa.

Voltando a Adolfo Aizen, houve um detalhe: embora me tenha remunerado, aquele primeiro trabalho nunca foi publicado. E querem saber a razão? Não era bom o suficiente. Acredito que Aizen me pagou para não me tirar o incentivo. E foi uma atitude fantástica. Logo depois, lhe entreguei outra história, que acabou sendo publicada. Em seguida, fiz 6 livros com o Malba Tahan [heterônimo de Júlio César de Mello e Souza], que até hoje é um dos gigantes da literatura juvenil brasileira. O livro O homem que calculava é um exemplo de sua expressão: publicado pela primeira vez em 1938, teve mais de 70 edições e até hoje vende, como se tivesse sido feito ontem. Durante um ano, talvez 2, ilustrei seus livros, e isso foi muito importante para mim. Lembro que o co-nheci pensando que iria encontrar um árabe, com aquela roupa carac-terística, e, no entanto, encontrei um homem de 2 metros de altura, o

Page 20: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

18

professor Mello e Souza, que dava aulas e proferia palestras de matemá-tica, a princípio no Rio de Janeiro e depois Brasil afora. Não tinha nada a ver com minhas expectativas. Nunca foi do Oriente.

Fiz o trabalho com Malba Tahan indicado por Aizen, que, logo em seguida, disse: “Agora que você teve um início, está livre pra procurar outras editoras”. Foi assim que saí da Brasil-América, já com a ideia de fazer alguma coisa em publicidade. Na época, tínhamos grandes agentes publicitários, como McCann-Erickson e John Walter Thompson. Aca-bei entrando na Editora Conquista, cujo dono, Sebastião de Oliveira Hersen, estava interessado em trabalhar com artistas brasileiros, coisa que poucos faziam na época. Os livros infantis, naquele momento, eram adaptações rasteiras de histórias tradicionais como Chapeuzinho Vermelho. E esse editor era um apaixonado pelo Brasil, um maranhense que que-ria explorar o potencial da terra. Chegava a ser meio radical, mas tudo bem, a intenção era louvável. Ele publicou uma série de livros meus e da Mary, inclusive o primeiro livro da Mary O menino que voa, contando a história de Santos Dumont. E desenhei várias capas de livros. Enfim, fiquei lá por quase 12 anos, mas chegou um momento em que, noivo, pretendia me casar, então precisei dizer que seria impossível sem um emprego formal. Foi quando ele disse: “Não seja por isso!”. Assinou mi-nha carteira e batia meu ponto, porque eu permanecia em Juiz de Fora. Dei sorte de conhecer pessoas assim.

Depois, conheci o fundador da Editora Ática, Anderson Fernandes Dias, um homem fantástico. Ele já tinha visto alguns livros que eu havia ilustrado e me convidou: “Você vai trabalhar aqui!”. Aí lançamos 4 livros da coleção “Gato e Rato” na Bienal de São Paulo, em 1978. Esse foi o princípio e o meio da minha carreira. O fim, ainda não sei.

Iacyr Anderson Freitas. Tocando no assunto das coleções e pas-sando para a sua fase em telas, observo que tem trabalhado muito com séries temáticas, como Terra de Vera Cruz, Alice, O circo, entre outras. É mais fácil trabalhar em cima de temas fechados? É melhor trabalhar as-sim esteticamente? Você se sente mais à vontade ou não?Eliardo França. Se pinto uma tela, com o tema Músicos, por exem-plo, ao terminar já estou com outra ideia de tela sobre músicos na cabe-ça. Então, a sequência é quase automática. Para O circo, fiz o desenho de

Page 21: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

19

uns malabaristas e, depois, percebi que não bastava fazer só aquilo. Alice envolve mil coisas e situações. Também é o caso de Jogos de sedução: não dava para fazer só um quadro. O tema ajuda, mas não me sinto preso. No meio de uma série, faço um quadro que não tem nada a ver com o tema que estava explorando. É algo que Pablo Picasso já falava.

Jorge Sanglard. Poderia nos falar um pouco sobre a articulação em torno do trabalho inicial, que cresceu a ponto de chegar à Europa? Como foi sua experiência na Dinamarca? Como foi essa busca em outra cultura, outra identidade? O que víamos de Hans Christian Andersen era mal traduzido, algumas vezes até mal articulado. E aí você faz um trabalho primoroso, Contos de Andersen, com uma leitura muito precisa da obra. Esse foi um grande marco na sua carreira?Eliardo França. A primeira vez que desenhei, tinha entre 6 e 7 anos de idade. Na época, a professora lia um texto e o aluno, em casa, fazia uma adaptação. Ouvi, em sala de aula, a fábula O rato do campo e o rato da cidade, e a partir dela fiz uma história em quadrinhos. Muitos anos depois, voltei a essa fábula, encarando-a profissionalmente ao de-senhá-la para os Contos de Andersen. Exatamente por as traduções terem sido mal feitas até então, não expressando exatamente o pensamento de Andersen em seu trabalho, imaginei que pudesse ir à Dinamarca para tentar fazer uma série de livros à altura da obra original. Fomos para lá, sentimos o frio, vimos a neve, visitei a casa do escritor, segui al-guns de seus passos dentro de seu próprio país e, depois disso, fizemos uma proposta para a Editora Ática, na verdade para o editor, Ander-son Fernandes Dias, que topou, mas disse: “Não vou bancar tudo. Vo-cês pagam uma parte e eu pago outra”. Achamos que estava de bom tamanho e bem e fomos para a Dinamarca, onde ficamos por quase um ano. Antes de embarcarmos, nosso editor morreu. Acabou não ven-do o trabalho. Foi uma experiência fantástica, vivemos por um tempo em Odense, onde conhecemos várias pessoas, fizemos alguns amigos e fomos entrevistados pelo jornal de maior circulação na cidade. E aí tem um fato curioso: dei meu endereço de casa, então o telefone tocava sem parar, a ponto de ser preciso instalar uma secretária eletrônica que filtrasse os recados. Tivemos a ajuda de muita gente lá. Lembro que, no Brasil, era época de eleições, e, na Dinamarca, queríamos justificar o

Page 22: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

20

voto. Fui até a Embaixada Brasileira para cumprir as formalidades e fui informado que o embaixador era Sérgio Paulo Rouanet, alguém que valia a pena conhecer. A secretária entrou na sala do embaixador para pedir uma audiência, e, ao sair, disse que o professor Rouanet gostaria de se encontrar conosco em sua própria casa. Marcamos para as 17 ho-ras, para tomarmos um uísque, porque sua filha tinha sido alfabetizada com nossos livros. Com isso, todas as portas se abriram e conhecemos o reitor da Universidade de Odense, John Mills, que foi de grande ajuda, e o cônsul honorário, José Luiz de Santana Carvalho, que foi incrível conosco. Fizemos muitas amizades, e, como todos falavam o português e o dinamarquês, foi sensacional, porque pegavam um texto original e a tradução acontecia ali, na hora, com precisão. Era algo muito específico e, no Brasil, não havia nada parecido acontecen-do. Então, houve questões de linguagem e tradução que conseguimos graças a esses amigos.

Jorge Sanglard. Nessa fase na Dinamarca a pintura ainda não tinha aparecido?Eliardo França. Estava começando. Nessa fase, na Europa, havia milhares, centenas de museus para visitar. Víamos aquela grandiosi-dade e pensávamos que teríamos que fazer algo realmente bom. Eu pensava: “Vou abandonar um pouquinho o papel, deixar de lado por um tempo e fazer coisas maiores”. E começou por aí... Na verdade, eu tinha certo receio em relação à pintura, porque, em minha cabe-ça, a pintura estava distante do desenho. Se eu fazia alguma coisa que achava ser pintura, tinha sempre um pintor para dizer: “Não, isso aí é desenho colorido!”. Acabei abandonando esse pensamento, porque não era o que importava.

Jorge Sanglard. Mas há uma diferença perceptível quando analisa-mos o processo de trabalho de cada artista. Dnar Rocha, por exemplo, pensava o quadro todo e, quando ia para a tela, já tinha a obra esboça-da, algo matemático, com tudo organizado na cabeça. Se falarmos de Carlos Bracher, teremos o contrário: a tela é sempre uma incógnita. São 2 concepções diferentes. Como é a sua concepção? Como é o seu processo criativo?

Page 23: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

21

Eliardo França. Tenho uma ideia geral do que vou pintar. Não sei se começaria algo sem saber o que sairia dali. Às vezes, chego a dese-nhar um piloto antes de pintar. Mas tem uma coisa: nunca sai da manei-ra que imaginei, nem quando faço um esboço. Tem muito acaso no meio e o acaso é um grande aliado do pintor. Prefiro imaginar o todo, mas deixando algo inesperado acontecer ao longo da caminhada. Prefiro não fechar, não engessar.

Margaret Marinho. Meus filhos também foram alfabetizados com a coleção Gato e Rato. Lembro-me de minha menina com 4 ou 5 anos, lendo um dos seus livros, e agora, com 22 anos, ainda o guardan-do com muito carinho. Como analisa, hoje, o seu trabalho de ilustração em relação ao início da carreira? Eliardo França. Olha, na coleção Gato e Rato, em 35 títulos reali-zados até hoje, 2010, há muito pouca repetição de técnica. Tem lápis de cor, tem aquarela, tem até óleo...

Margaret Marinho. O artista sempre tem sua evolução, e com todas as técnicas que usa, como avalia o seu trabalho, a sua produção?Eliardo França. Penso que abri bastante o meu leque de percep-ções. Eu saberia como fazer essa avaliação em relação à pintura, porque já não me importa que seja desenho, que seja abstrato, que seja Jean-Michel Basquiat, Pablo Picasso ou essa meninada fantástica do graffiti. Agora, em relação à ilustração, não sei se houve uma evolução. Às vezes pego um trabalho antigo e penso: será que consigo fazer isso? Não sei se posso chamar isso de evolução. Acredito que é mais um acú-mulo de experiências técnicas.

Pinho Neves. Penso que está levando sua resposta para o ponto de vista da evolução técnica da imagem. Mas acredito que existe uma questão que vai além da técnica, que é a sofisticação da ideia, no que diz respeito à associação da palavra e da imagem. Ao abordar Andersen, falamos em tradução e no fato de o Brasil ter sérios problemas nessa área. É claro que existem tradutores notáveis, como Manuel Bandeira, Mário Quintana, Cecília Meireles; mas, de um modo geral, a tradução da palavra pode sugestionar outra concepção, que certamente vai gerar

Page 24: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

22

uma imagem e, com todos os acasos possíveis, vai trazer uma evolução. São fantasias, e seria interessante que as abordasse para nós. Diante de um tema definido, de que forma trata essa fantasia, a ficção? Seria com a mesma informação que você dispunha lá trás ou houve uma sofisticação nesse conhecimento? Mary França. Sugiro a palavra liberdade. Com o tempo, vamos pegando intimidade com o texto, com o criar, com o rabiscar. É essa intimidade que os anos de trabalho nos dão e que nos leva à mudança, mas com liberdade. Por exemplo, Eliardo começa um livro 20 vezes, usa 20 técnicas diferentes, mil coisas, mil bichos, um menino gordo, um menino magro. Namora o desenho de inúme-ras maneiras até chegar a uma conclusão, a um caminho. O processo ainda é o mesmo. É comparável à questão da idade: tenho 60 anos e penso que tenho 20, porque não sentimos o tempo passar. Pensamos que somos sempre a mesma pessoa. Então, Eliardo trata seu trabalho dessa maneira, só que com o acréscimo dessa liberdade. E também há o amadurecimento, que nos ajuda. Certas coisas não importam mais. Olha-se o gato que foi desenhado e não interessa se gostam dele ou não. Há 40 anos, estávamos preocupados se o gato ia agradar ou não. Agora, não interessa se estamos num bom caminho, se estamos acertando. Nosso caminho é esse e pronto. O olhar alheio já não faz diferença. Eliardo França. Penso que é isso. Muito obrigado pela ajuda. (Risos)

Jorge Sanglard. Queria que nos falasse um pouco sobre esse pro-cesso da criação na parceria Mary/Eliardo França. É o texto que vem primeiro ou a ilustração? Como é essa fusão? Como é morar, conviver e trabalhar juntos? Eliardo França. É difícil, mas é bacana. É claro que discutimos, até porque temos muito mais intimidade para brigar. Mas é preciso entender que cinzas não são cinzas... Enfim, a intimidade traz essa dificuldade; porém, ao mesmo tempo, multiplica as chances de criar um livro, porque acreditamos que um bom livro é aquele que “des-completa” a ilustração e vice-versa. Uma coisa faz parte da outra. Um ângulo cruzado. Às vezes, tenho na ilustração detalhes que não exis-tem no texto, e o contrário também acontece. Nesse aspecto, o fato de estarmos juntos facilita, e muito, o desenvolvimento do trabalho final. Na verdade, penso que todo ilustrador esperto deveria se casar com uma escritora. (Risos)

Page 25: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

23

Margaret Marinho. Que diferenças poderia apontar nesse pro-cesso criativo entre a ilustração e a escrita? Isso porque, por exemplo, em O rei de quase-tudo, ilustração e texto se completam. Eliardo França. Não sou escritor, sou ilustrador. Mas creio que a dificuldade de criação é a mesma, embora a combinação das palavras que formam um texto talvez seja mais difícil do que a ilustração. O texto requer uma “oficina” maior, mais completa do que desenhar exige. Não sei se essa é sua pergunta. Como escritores, o Iacyr Anderson Freitas e Mary podem dizer bem melhor do que eu. Penso que achar a combinação certa de palavras é uma carpintaria. E o trabalho de ilustra-ção é mais livre, mais espontâneo talvez.

Leonardo Toledo. Mas como que é esse processo criativo em par-ceria? Você espera a história estar pronta ou há uma interação durante o processo?Eliardo França. Não parte de um tema central. Temos um livro que chama O vento. Não me lembro por que, onde começou, mas tal-vez fosse num dia com um vento mais forte e então resolvemos fazer uma história sobre o vento. Acontece também de uma criança dar a dica em sala de aula, dizendo uma coisa que deflagra a história. São dicas aleatórias. Partimos de um tema central e começamos: eu a fazer as ilustrações e Mary a escrever. Às vezes, falo alguma coisa do texto e ela dá uma dica nas ilustrações. E vamos trabalhando juntos. Texto e ilus-trações nascem ao mesmo tempo.

Mary França. As ideias são o mais importante. Não é o texto, uma palavra atrás da outra, e nem o desenho. É a ideia do que vamos abordar e como vamos fazê-lo. Se é uma história sobre um animal, posso inserir um bichinho. Se é uma história sobre uma criança, é o que vamos ter. Primeiro, são as ideias e, depois, já sabemos como que aquele livro vai terminar. E só então é que o Eliardo vai fazer a ilustração e eu vou trabalhar no texto. É algo totalmente diferente do processo dos Contos de Andersen, porque, ali, eu tinha que contar com fidelidade o que o escritor original escreveu.

Pinho Neves. Você acaba de abordar a questão da ideia, mas há tam-bém a questão de como os personagens vão se associar à ideia. Queria

Page 26: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

24

que vocês fizessem um comentário sobre essa discussão sobre a co-locação de um animal dentro da ideia que pode ser sobre um com-portamento humano. Essa inversão, essa fantasia, é muito interessante. Como isso se dá?

Gostaria de citar um livro de vocês, que é um primor e que muito me emocionou: O guerreiro, que nos remete a um ícone da história da arte, O tocador de pífaro, de Édouard Manet. Se me permitem uma ob-servação, O guerreiro tem uma simplificação muito inteligente em texto, com uma ilustração que acaba sendo melhor que a própria ideia. O desfecho do O guerreiro faz qualquer adulto se emocionar. Eliardo França. Na verdade, o texto de O guerreiro não teve qualquer interferência minha. Nenhuma mesmo. Mas, de fato, ao fazer as ilustrações, havia um flautista, um músico, e pensei em usar Manet como referência.

Mary França. Muitas vezes, por mais que eu assine o texto, as ideias não são minhas. Em grande parte, escrevo a partir de ideias que vieram do Eliardo. Muitas vezes também a ideia parte de mim. Então, se analisarmos esses cerca de 300 livros que fizemos juntos até agora, não há como dizer quem teve a ideia original. É interessante, porque, ao longo de todo o tempo em que estamos juntos, desenvolvemos uma relação tão sem competição, que, 2 meses depois de um livro pronto, já não sabemos qual de nós começou a história. O importante é que a partir daquela inspiração, minha ou dele, conseguimos criar o livro.

Iacyr Anderson Freitas. Algumas ideias, algumas imagens, al-guns desenhos já nascem para um suporte específico. Você pensa numa técnica específica quando tem uma ideia? Eliardo França. Sim, já tenho em mente a técnica que vou usar, inclusive com a possibilidade de usar uma mistura de técnicas. Recen-temente, fiz 2 quadros usando pigmentos de terra que trouxe da Serra do Rola-Moça, perto de Belo Horizonte.

Jorge Sanglard. Gostaria de saber sobre o impacto do jazz em seu trabalho. Lembro-me que, à época de sua experiência na Dinamarca, vi um quadro seu com instrumentistas, todos brancos e louros, e co-mentei que músicos de verdade eram Miles Davis, Billie Holiday, John

Page 27: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

25

Coltrane e o brasileiro Pixinguinha. Disse: “Esquece a Dinamarca, es-quece os ruivos e vamos começar a pintar os negros!”. Foi quando você iniciou uma pesquisa incrível que resultou na série Músicos. Poderia nos falar a respeito?Eliardo França. Quando estávamos na Dinamarca era exatamente isso, víamos muitas bandas de jazz. Víamos aquele povo viking, louro com rabo de cavalo tocando jazz e tal; aliás, são muito bons e amam jazz. Sempre gostei muito de jazz e tinha visto algumas apresentações de jazz com o Miles Davis, com o Modern Jazz Quartet. Aí, pensei: “É isso mesmo!”. Comecei a pesquisar e fiz a série. Gosto demais do Miles Davis. Ninguém jamais vai soprar um trompete como ele. Ele é como o Francis Bacon, que considero o maior pintor do século XX. Ninguém fará o que fizeram, da forma como fizeram, pelos próximos cem anos. Todo mundo pensa que Pablo Picasso era o maior pintor, mas era o Bacon. Picasso era inventor, pintor mesmo era Bacon. É preciso consi-derar a influência do lugar onde estamos. Em Nova York, a inspiração é aquele povo de lá, do jazz etc. e tal. Mas em Portugal, por exemplo, pintei as barrancas de Nazareth, com os pescadores com suas roupas típicas. Fiz uma série de quadros que foram para a galeria do Porto. A influência do lugar, a influência das pessoas e a influência do momento que está sendo vivido têm um peso muito forte. Se eu for para o Nor-deste, vou querer pintar algo característico de lá. Foi o que aconteceu com Van Gogh. O mesmo em relação a Picasso.

Pinho Neves. Voltando a Andersen, gostaria de saber qual é a histó-ria infantil que mais gosta. Qual seria seu livrinho de cabeceira?Eliardo França. O patinho feio! Por vários motivos, entre eles o fato de ter sido o primeiro livro que ganhei de meus pais em meu ani-versário de 5 anos, quando eu mal sabia ler. Também gosto muito da obra de Monteiro Lobato, principalmente dos livros Caçadas de Pedri-nho e Os 12 trabalhos de Hércules, que li aos 11 anos e achei fascinante. Monteiro Lobato é fascinante. Mas o marco da minha vida foi mesmo O patinho feio, talvez por ser uma história autobiográfica. Andersen se considerava muito feio, e era mesmo, não se deixava fotografar de frente, só de perfil. Até sua estátua em Copenhague segue essa orientação. Nasceu pobre, o pai era sapateiro e a mãe, lavadeira. Era,

Page 28: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

26

ele próprio, o patinho feio, que, ao logo da vida, se transformou num cisne. A criança pobre virou um escritor aclamado pelos nobres euro-peus, convidado para os maiores castelos. Mantinha correspondências com escritores como Charles Dickens. Na Dinamarca, Andersen é um herói nacional, com direito a estátuas e nomes de avenidas. No Brasil, isso não se dá, haja vista Monteiro Lobato, que está um tanto esquecido. Há aspectos muito interessantes sobre Andersen: era um homem que viajava muito e, apesar de ter ficado rico, nunca teve uma casa própria. Gostava de se hospedar em casa de amigos, ficava até em palácios, mas nunca além do segundo andar, para que pudesse levar seu baú, com uma caixa de cartola e uma corda para o caso de, num incêndio, se safar pulando a janela. Era uma pessoa muito engra-çada, que reunia as crianças ao seu redor para contar histórias. Gos-tava de fazer silhuetas nas janelas, algo muito típico da Dinamarca à época do Natal. E Andersen ia recortando as tramas, os personagens, a fim de dar mais vida ao que contava. Tenho um livro muito bonito com suas colagens, com essas silhuetas.

Leonardo Toledo. Você que cria essas imagens, esse universo vi-sual para atrair as crianças, que imagens de sua infância ficaram a ponto de influenciar sua obra?Eliardo França. Sempre tive atração por livros. Minha casa era repleta de livros porque meu pai gostava de ler e mantinha uma pequena biblioteca. Então, não era um elemento que apareceu em minha vida de uma hora para outra. A literatura fez parte da minha infância e as imagens me fascinavam. Mais tarde, os desenhos ani-mados me impressionaram muito. Os Estúdios Disney eram uma referência. Considero Branca de neve e os sete anões, longa-metragem lançado em 1937 [Dalva de Oliveira e Carlos Galhardo dublaram a princesa e o príncipe], uma obra-prima. É fantástico. A imagem sempre me atraiu muito.

Jorge Sanglard. Queria que comentasse sobre o dia em que entre-gou a um professor a interpretação não escrita, mas desenhada, de uma aula, e a reação desse professor diante do seu trabalho. Ficou faltando falar sobre esse período.

Page 29: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

27

Eliardo França. Sempre desenhei, sempre fiz caricatura de pro-fessores. Nesse dia, o professor estava dando aula e fui flagrado de-senhando, o que demonstra que o profissional que me tornei veio sendo formado desde a infância. Sempre soube que seria um dese-nhista, um artista plástico. Isso, numa época em que se ouvia que para “se dar bem” na vida era preciso se formar em engenharia ou medicina. Como terceira opção, advogado, e, como quarta, odon-tólogo. Que me desculpem meus amigos dentistas, mas era o que acontecia, diferente de hoje.

Margaret Marinho. Qual é o seu melhor trabalho?Eliardo França. Não tenho a mínima ideia. Talvez o próximo. É o que todo mundo diz... O próximo. A grande motivação não é quando você termina alguma coisa, porque traz um certo vazio. Quando termino um quadro ou um livro parece que meu balão in-terior se esvaziou. E logo em seguida vem o pensamento: “Vou fazer outro trabalho, vou fazer mais”. É muito difícil definir qual seria meu melhor trabalho.

Margaret Marinho. Tem uma preferência?Eliardo França. Não, não tem. Gosto muito da coleção Terra de Vera Cruz, mas não sei se é o melhor trabalho. Gosto da sequência. São 10 quadros falando da chegada dos portugueses no Brasil e o primeiro con-tato entre 2 civilizações tão diferentes. Como disse o Silvério Lopes, é melhor deixar os extraterrestres para lá, pois pode dar uma “zebra” igual à que deu aqui, não é? Os europeus chegaram a Brasil e isso não foi muito bom para os nativos.

Pinho Neves. Considerando a questão do texto e da imagem, gos-taria de saber sobre os casais que são escritores e ilustradores, como no caso de Nelson Cruz e Marilda Castanha. Eliardo França. Aliás, muito bons.

Pinho Neves. Mas cada um tem sua carreira independente, não é? Então, como aconteceu esse casamento também do texto e da imagem? Houve um estalo em determinado momento?

Page 30: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

28

Eliardo França. Mary e eu começamos a estudar ilustração juntos. Quando comecei a trabalhar para a Editora Conquista, havia a cobran-ça quanto às ilustrações, mas não havia um texto que me embasasse. Fazíamos um esboço, uma síntese de uma história e começávamos a trocar ideias a respeito da ilustração. Fazíamos uma série de desenhos e levávamos para o Rio de Janeiro. Até que o editor entendeu que devería-mos ter um escritor, que pudesse colocar texto nas imagens. Tínhamos um roteiro, uma sinopse da história, mas não um texto construído. A própria Editora se prontificou a encontrar um autor, mas, conversando com Mary, eu disse: “Você gosta de escrever, já tem vários textos feitos para o Colégio Santa Catarina, então a escritora será você!”.

Mary França. Escreve! (Risos)

Eliardo França. “Escreve! Vamos tentar escrever!”. E Mary escre-veu um texto sobre Santos Dumont quando menino, exatamente porque ambos éramos de lá. Nosso editor gostou da história, mas argumentou que queria um nome mais conhecido e sugeriu Oranice Franco, um es-critor de São João del-Rei, que tinha um programa na Rádio Nacional chamado Histórias do tio Janjão. E ele foi contratado para dar uma olhada nesse texto. Na verdade, Oranice Franco não chegou a fazer muita coi-sa, pois, na verdade, o texto já estava pronto. E foi a primeira história. Pouco tempo depois, a Editora Ática nos convidou para fazer uma cole-ção destinada a crianças bem pequenas e fizemos os 4 primeiros livros da Gato e Rato: O rabo do gato, O pote de melado, Fogo no céu e O pega-pega. Recebemos uma carta dizendo que jamais imaginaram que pudéssemos fazer um trabalho tão bom. E assim começou esse longo relacionamen-to com a Editora Ática.

Jorge Sanglard. A partir do trabalho conjunto, vocês conheceram o Brasil inteiro e formaram 3 gerações de leitores, alfabetizando muitas crianças. O que aprenderam com esse público?Eliardo França. Aprendemos muito. Quando entramos para con-versar com a criançada é sempre emocionante. Há pouco tempo, fomos a uma escola do Espírito Santo, onde fiz um desenho ali mesmo. Então, um pequenininho de uns 4 ou 5 anos, levantou e disse: “Eliardo?”. E eu:

Page 31: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

29

“Oi!”. E ele: “Eu te amo!”. (Risos) O comportamento dessas crianças é uma oficina. Quer saber de uma coisa? Desde muito tempo, preferimos trabalhar com a coleção Gato e Rato e todos os nossos livros dessa fase têm personagens que são crianças ou animais domésticos. É claro que existem situações em que é necessário inserir outro tipo de bicho, mas preferimos os animais domésticos porque fazem parte do universo in-fantil. E tem um detalhe: não fazemos livro só para vender. Recuso-me a ouvir: “Faz isso assim porque vai vender muito, criança gosta de...”. Não. Se não estiver convicto de que determinada ideia é válida, sim-plesmente não faço. Nunca faço algo só por fazer, não crio uma ilustra-ção porque penso que a criança vai gostar daquilo e então vamos vender mais livros. Na verdade, prefiro fazer coisas para mim que para criança. Estou sendo sincero, não quero enganar o público infantil. Faço o que sinto, o que deve ser feito e, felizmente, a criança gosta.

Iacyr Anderson Freitas. Recorrendo a seu senso crítico como artista plástico, gostaria de sua opinião sobre o fato de uma das edições da Bienal Internacional de Arte de São Paulo ter oferecido ao público o equivalente a uma “Bienal do Vazio”, com salões inteiros sem nada, paredes brancas... Eliardo França. Penso que houve muita enganação em todas as bienais. Vejo que a ideia inicial se perde em muitas ocasiões e o público acaba descobrindo isso. É evidente que tem muitas pessoas sérias fazen-do arte para as bienais, mas também existe muita enganação, com “pa-nelinhas”, amigos dos amigos participando. E acho que isso derrubou um pouco as bienais. Tirou parte da consistência do evento. Vi coisas absurdas. Houve uma edição – se houver algum valor nisso, que me perdoem – em que um japonês, em determinadas horas do dia, che-gava diante de uma espécie de laguinho, logo na entrada da Bienal, e, só de cuecas, dava um grito, mergulhava, saía do outro lado e pronto, acabou. Essa performance era a sua arte. E a imprensa, na época, achou interessante. Eu e uma turma de amigos paulistanos brincávamos que iríamos vestir um uniforme de guarda e na hora em que o japonês pu-lasse na água, o prenderíamos. Essa seria a nossa performance! (Risos) Tem muita coisa assim: uma caixa de tênis de um lado e um tênis velho do outro, com um caminho no meio... Isso é arte? Não sei. Penso que

Page 32: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

30

houve um esvaziamento. Mas, basicamente, acho que é o problema de o evento ter ficado muito restrito a grupinhos.

Pinho Neves. Gostaria de abordar a questão do mercado editorial, comparando a literatura infantil com a literatura de modo geral. O livro para crianças detém uma fatia importante do mercado em sua totalidade?Eliardo França. Hoje, detém uma fatia muito grande; mas, numa determinada época, aconteceu um esvaziamento. Quando começamos, houve um boom – não sei se a palavra é esta. Apareceram muitos edito-res querendo trabalhar com autores nacionais. Como disse antes, até a década de 1960, a maioria dos livros infantis era importada, era tradu-zida; as mudanças vieram a partir da década de 1970, com o surgimen-to da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil [1968], trazendo incentivo com premiações e alavancando a produção de literatura para crianças no Brasil. Aqui, gostaria de abordar um detalhe interessante: o grande comprador dos livros infantis não vem das livrarias, mas dos colégios que os adotam como suporte para a alfabetização. E gostaria de registrar que houve uma época em que essa expansão foi contida, por-que uma educadora mexicana veio ao Brasil e declarou que livros não eram necessários para a alfabetização, bastando uma criança ir ao super-mercado e identificar as embalagens conhecidas para aprender a ler. E muitas escolas tomaram isso ao pé da letra e pararam de indicar livros, o que levou o mercado editorial a afundar. Só que, no meu entendi-mento, essa educadora não queria formar leitores, mas consumidores. Felizmente, essa fase passou, as pessoas entenderam que era um grande erro. Como vamos viver sem livros? Como vamos para a escola sem livro? É impossível. E então houve uma retomada e o mercado editorial brasileiro, no que se refere ao público infantil, ficou muito forte. Muito forte mesmo. Várias editoras dão suporte. É preciso, porém, observar que existem muitos livros que fascinam a criança, mas que, na verdade, são muito pobres. São aqueles livros ricos na embalagem, no visual, mas pobres no conteúdo. É o que chamamos de “literlixo”.

Jorge Sanglard. Vocês percorrem as escolas, as crianças são incen-tivadas a ler, mas o interesse diminui na adolescência. No Brasil, hoje, poucos estão lendo e, em consequência, o nível de reflexão é muito

Page 33: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

31

baixo. Isso é constatado nas principais escolas médias do país. O que está acontecendo?Eliardo França. Temos muitos autores que escrevem para crian-ças, mas poucos que escrevem para adolescentes. Não sei a razão. Existem alguns escritores, muitos deles iniciantes, que já falam a lin-guagem dos jovens, com abordagens sobre o namoro, sobre os tóxi-cos, esse tipo de questão. Aquela coisa ficcional que temos quando adultos está faltando para a juventude, principalmente a partir de 12 anos. Por outro lado, mesmo os leitores, os bons leitores – e eu li muito –, tiveram uma fase da vida em que se desinteressaram. Parece que, num determinado momento, há uma redução circunstancial da vontade de ler, da atenção para o livro. Aparecem outras atividades mais atrativas. Os meninos começam a ver o rabo de saia, o interesse começa a mudar. É também o futebol; enfim, o esporte... Mas a par-tir de uma determinada idade, acabam voltando para o livro. Essa fase difícil acontece até os 18 anos.

Margaret Marinho. Esse público é mais difícil, mas é capaz de nos surpreender muito. Os jovens estão procurando muito por poesia e por prosa.Eliardo França. Mas isso acontece na escola em que você dá aulas ou de uma maneira geral?

Margaret Marinho. Estou tirando por base a minha escola por-que sempre trabalhei com o ensino fundamental até o quarto ou quinto anos. No sexto ano, já é interessante a procura por poesia, talvez porque a adolescência dos alunos esteja muito aflorada. O que esses jovens procuram? Talvez seja se comunicarem por meio dessa linguagem. Se não passar pela emoção, acabam parando de ler. Numa sala de leitura, aconselho:“Não gostaram do livro? É chato? Então, vão lá e troquem!”. A ilustração no livro infantil passa muito pela emoção da criança. Talvez o texto para o adolescente tenha que passar por certo tipo de emoção que o atraia. Eliardo França. Quando um jovem vê um livro ilustrado, em geral diz que é para criança, não para ele. Ouço dos colegas escritores que o jovem está interessado em outro tipo de coisa.

Page 34: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

32

Margaret Marinho. Mas a ilustração para crianças emociona, não é? Como no caso do menino que disse: “Eu te amo!”. É o texto e a ima-gem que passam aquela emoção, que fica na cabecinha, nos olhinhos.Eliardo França. É claro, não tenho dúvidas. Já senti isso e sei como as crianças se sentem. Agora, com o jovem é difícil. Minha experiência com a juventude sou eu mesmo.

Mary França. Como é dividir a prancheta com Lucas?Eliardo França. É ótimo! Lucas, para quem não sabe, é o nosso filho, que também é ilustrador. Aliás, muito bom. Em Belo Horizonte, é o “queridinho” da Editora Dimensão. Todos gostam do seu trabalho. Tudo o que faz lá é muito bem-vindo. Enfim, é o maior prazer, é uma honra muito grande.

Jorge Sanglard. Normalmente, os jovens procuram por uma pro-fissão com possibilidades de ascensão. Como foi com ele? Quando viu que Lucas também gostava de desenhar? Eliardo França. Não interferi na escolha de nenhum deles. Fiz questão de não falar nada. Dizia: “Se quiser fazer isso ou aquilo, pode fazer!”. Isso, justamente por causa da minha experiência no passado. Lucas começou a fazer física na Universidade Federal de Juiz de Fora. Depois, dizia que iria morrer de fome trabalhando com física no Brasil, e por isso iria parar com essa história. Trancou a matrícula e não voltou mais. Então, começou a fazer desenho para publicidade aqui mesmo: Mary fez um texto para que fizesse as ilustrações e deu certo. Ele se deu muito bem.

Iacyr Anderson Freitas. Tive o prazer de ter meus poemas ilustrados por Lucas num dos meus livros. Mas lembro que ouvi dele: “Poxa, é covardia ficar perto do meu pai. Não tem solução para a nossa situação. Ele passa e fala: ‘É assim!’.”. (Risos) Você acha que essa questão é a prática? A experiência com o óleo sobre tela o transformou numa outra pessoa como ilustrador?Eliardo França. Creio que não. Reconheço que há uma linha muito tênue entre a ilustração e a pintura, mas não saberia dizer qual. Para mim, são 2 coisas completamente diferentes. Quando estou ilustrando um li-

Page 35: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

33

vro, é um livro. Se for pintar, essa é a ideia que mantenho. Não confundo uma e outra. Acho que o termo seria: “São diferentemente iguais”.

Jorge Sanglard. E quanto às novas tecnologias?Você trabalha com equipamentos?Eliardo França. É, hoje existe o computador como ferramenta. Eis como vejo as novas tecnologias: como ferramentas. Agora, boa parte dos ilustradores, dos experts e dos críticos não vê com bons olhos esse instrumental. Em 2005, participei do júri da Bienal de Bratislava, na Es-lováquia, e todos os desenhos feitos com a ajuda do computador eram eliminados. Era uma briga entre nós, porque eu argumentava: “É uma ferramenta! Por que não usá-la se está disponível?”. Mas, não sei não, ainda penso que ilustração é aquela coisa manual, feita com a pena, com o lápis de cor. Mas não tenho preconceito quanto ao uso do computa-dor. Para mim, tudo bem, desde que saiba como usar essa ferramenta.

Pinho Neves. Você citou Branca de Neve e os sete anões dos Estúdios Disney... Alguma vez se viu seduzido em passar a imagem estática para a imagem em movimento? Eliardo França. Às vezes, aparece alguém que diz: “Vamos fazer um desenho animado”, e fico entusiasmado. Já tivemos algumas propos-tas de filmes de animação. O rei de quase tudo foi trabalhado em mídia digital pelo Lucas e concretizado em 2011 como animação interativa para ipad. É fascinante ver um desenho em movimento. Conheço ilus-tradores que resistem a essa opção, mas não eu, porque acho bonito, interessante. Porém, não é fácil. Fazer um desenho animado, no Brasil, é muito difícil. O processo é caríssimo. Milhões! Em torno de R$4 mi-lhões. Teria que ter um financiamento, um patrocínio, um mecenato!

Jorge Sanglard. Sei que o cinema o seduz desde sempre. Como é isso em sua vida? O que gosta de assistir?Eliardo França. Sou apaixonado por faroestes. Mas também gosto de filmes antigos, principalmente os de Frank Capra. Uma vez pergun-taram a um crítico o que é cinema e a resposta foi: “Cinema é o Gary Cooper em cima de um cavalo”. Concordo! Isso é que é cinema. Mas sou muito eclético. Só não gosto de novela, detesto! Vejo essas atuais e

Page 36: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

34

tenho pavor. Se me perguntarem quem são os atores, não tenho a míni-ma noção. Como meio de comunicação considero fantástico, e até po-deria continuar a ser, pois já tivemos grandes novelas, como O bem-amado e Saramandaia. Resumindo: cinema e livro são as grandes invenções, as grandes fontes de sabedoria e informação. Enfim, são vida!

Pinho Neves. Você está falando de televisão, de novela... Poderia fazer uma consideração crítica sobre a programação infantil na televisão brasileira?Eliardo França. Não existe. Existe um ou outro desenho animado de boa qualidade, mas os programas das loirinhas pulando para lá e para cá con-tinuam. Deveríamos ter programas de televisão à altura da nossa literatura infantil. Mas não temos! A literatura infantil está mil anos-luz à frente de qualquer programa de televisão, que, ironicamente, é um veículo de altíssi-ma atração para a criança. Mas, infelizmente, a literatura ainda não concor-re com os programas televisivos. Se puser um livro na mão de uma criança e mostrar o programa da Xuxa, ela vai escolher o programa da Xuxa.

Jorge Sanglard. A TV pública no Brasil seria capaz de pensar outra forma de ver e trabalhar a literatura nacional?Eliardo França. Há uma tentativa, sim. A TV Cultura de São Paulo e a TV Futura têm alguns programas, mas não há audiência.

Jorge Sanglard. Mas até hoje a criança pode ver Popeye, Pica-Pau, desenhos criados há décadas, mas com uma qualidade que se mantém. É um absurdo que o Brasil ainda não produza algo de valor para a tele-visão. Nossos grandes desenhistas estão fazendo animação nos Estados Unidos. Eliardo França. Estão fazendo com o desenho animado o que já fizeram com o livro. Vem tudo pronto de fora. Na verdade, não temos cinema. Nosso cinema morreu anos atrás.

Jorge Sanglard. Até temos um política de cinema hoje no Brasil. O complicado é não ter uma política para a área infantil, que só conso-me o produto importado. Temos talentos, mas não os exploramos aqui. Vivemos uma retomada do cinema, que não envolve o público infantil.

Page 37: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

35

Eliardo França. O fato é que não se faz dinheiro em real. Tem que ser dólar. Temos um conhecido que apresentou um projeto de um filme de animação à TV Futura, à Discovery, e ouviu de ambos os canais que não tinham como bancar. Não há dinheiro, esse é o problema. Então, não sobra nada para o filme infantil.

Pinho Neves. As universidades, como instituições públicas e com a possibilidade de criação experimental, deveriam abrir esse espaço. Vejo uma ausência de preocupação com o filme infantil até mesmo por parte das escolas de cinema. Os estudantes querem fazer um filme de prefe-rência erótico porque atrai o público, ou algo de difícil compreensão, que seja sinônimo de inteligência, que remeta a Jean-Luc Godard, por exemplo. As universidades também têm essa lacuna a preencher, não apenas com suas escolas de cinema, mas com uma política que favoreça a criação. Penso que até existe um produto nacional de qualidade atual-mente; porém, carregando as dificuldades da credibilidade.Eliardo França. Certamente. Mas rodamos, rodamos e caímos no mesmo lugar. A Universidade também não tem dinheiro para reverter a situação.

Pinho Neves. Penso que as universidades já vivem outra realidade. Hoje em dia, com a liberdade de definir currículos e investimentos, há mobilidade para ampliar as linhas de pesquisa. A universidade já abraça essa possibilidade. E tem algo muito importante, que queria que co-mentasse: quem doma a universidade é a própria sociedade. Isso dá o que pensar, não é mesmo? Eliardo França. Com certeza.

Iacyr Anderson Freitas. Várias vezes, colocamos, aqui, a ques-tão da educação literária. Seria importante que pudéssemos avaliar uma situação ainda mais grave, que afetou muito as artes plásticas no século XX: a questão da educação estética. Você, com seu currículo de exposi-ções, inclusive fora do país, deve ter notado que há um público especí-fico, do qual fazem parte muitos pintores e pessoas ligadas ao mercado de arte. Gostaria de sua opinião sobre como democratizar o acesso à educação estética. O ideal seria que um público mais amplo pudesse ser atraído, mas a verdade é que a arte, hoje, acaba se restringindo a guetos,

Page 38: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

36

inclusive de mercado, o que produz essas aberrações vistas em algumas bienais como manifestações artísticas, mas sem representar absoluta-mente nada. Como vê isso?Eliardo França. A educação no Brasil ainda tem problemas. Pri-meiro, o professor é mal pago e não tem uma atualização. Salvo raras experiências, como no Paraná, a educação no país é relegada a um se-gundo plano. Penso que os viadutos, as pontes, os votos, o pré-sal são vistos como mais importantes do que a educação, algo completamente diferente do que acontece, por exemplo, na Coreia do Sul. Lá, depois de perderem a guerra, os coreanos reconstruíram tudo até se transfor-mar na nação que o mundo vê hoje, exemplar. Nosso problema não está só na educação estética, está na educação como um todo, que começa com a criança. Hoje, já vemos crianças em museus brasileiros. Isso já é um começo.

No exterior, buscando como exemplo o Guggenheim Museum de Nova York, é constante a presença de turmas de crianças pequenini-nhas, com 3 ou 4 anos. Vi uma turma em volta de uma obra de Marc Chagall, O violinista verde, e o professor perguntando: “O que acham? O que estão pensando sobre o quadro?”. Lembro que uma das crianças respondeu: “Acho que ele está doente!”. O professor insistiu: “Mas por quê?”. E ela: “Porque ele está verde!”. Em seguida, outro garotinho co-mentou que a figura estava sem sapato. Os professores, lá, discutem com crianças dessa idade. E se tratava de escola pública, porque havia grande diversidade de raças. Toda hora tinha uma turma nova entrando no museu, o que não vemos muito no Brasil. A educação estética começa aí, levando a criança para conhecer as galerias de arte e os museus, principalmente. Falta essa mudança, que não vai acontecer de uma hora para outra. É algo para investir agora e sentir os efeitos daqui a 20 ou 30 anos.

A família também tem um papel nessa questão. Pedro Bandeira tem uma história ótima a respeito, pois estava autografando um livro e um pai lhe disse: “Olha, vou comprar o livro para o meu filho, mas é muito caro!”. Aí, Pedro olhou para o pé do menino, viu que estava usando um tênis de R$ 500 e disse para o homem: “O senhor prefere investir no pé do seu menino do que na cabeça dele!”. Então, há uma má vontade mui-to grande por parte das famílias, não por culpa delas, porque isso é algo

Page 39: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

37

que vem de muito tempo. A sociedade consumista se baseia na cultura da televisão, das publicidades. No que se refere à educação estética, há uma similaridade com a educação literária. Poucas famílias dão a devida importância ao livro. Ouvimos sempre: “Já comprei um livro para meu filho este ano! Vou ter que comprar outra vez?”. Falta informação sobre a importância da leitura e seus reflexos numa pessoa. Não é má vonta-de. Ninguém quer ver o filho burro.

Pinho Neves. No que diz respeito ao reconhecimento ao criador brasileiro, como o ilustrador brasileiro é visto lá fora? Eliardo França. Muito poucos são conhecidos. Há exceções, como Candido Portinari. Aliás, essa é uma discussão interessante, porque nós, de língua portuguesa, somos bons de literatura, de artes plásticas, mas temos pouco reconhecimento internacional.

Iacyr Anderson. No caso dos autores traduzidos, assusta um pou-co o fato de serem muito menos conhecidos do que deveriam fora do país. Um exemplo: se João Cabral de Melo Neto escrevesse em inglês seria reconhecido como um dos maiores poetas da humanidade. Quando vamos a Portugal, circulamos em Lisboa, ou vamos aos Estados Unidos, numa livraria em Nova York, quase nunca encontramos autores de lín-gua portuguesa, independente do reconhecimento. A poesia brasileira foi grandiosa no século XX e o próprio Brasil não a conhece. Mas e com relação às artes plásticas? Quer dizer, ela não é conhecida lá fora, mas teve qualidade, substância? Que nomes apontaria como referências no Brasil do século XX?Eliardo França. Penso que nós, de origem portuguesa, sabemos escrever, mas não sabemos pintar. A Holanda tem Van Gogh, a Espanha tem Diego Velásquez. No Brasil, temos os modernos. Temos Hélio Oiticica, Di Cavalcanti, Candido Portinari.

Pinho Neves. Nessa questão das artes plásticas, penso que o Brasil tem sido um pouco ingrato com os produtores de imagem no sécu-lo XX e tem valorizado outros que sucumbiriam a uma crítica mais severa. Nisso, colocaria todos os nomes que você mencionou. Acho que são antagônicos e que existe uma artista que é muito mais impor-tante sob o ponto de vista da identidade cultural brasileira: Tarsila do

Page 40: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

38

Amaral. Mas não há reconhecimento da altura da contribuição de Tar-sila. O mesmo aconteceu com o Alfredo Volpi, que, se fosse nascido nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, talvez desfrutasse de maior prestígio internacional. Essas são pessoas que tinham consciência da questão da criação da imagem, muito acima do exercício de lingua-gem. Hoje, talvez exista uma geração que está retomando essa ideia, não só do conceito sobre o que vem a ser a arte, mas também da as-sociação com a questão da técnica. Gostaria de saber se, em relação à pintura e à ilustração, você poderia estar embarcando no preconceito contra os ilustradores que possam vir a ser pintores, uma vez que há sempre uma associação entre a imagem figurativa do ilustrador e o texto, como se a ilustração não pudesse ter vida própria.Eliardo França. Há pessoas que já disseram isso a respeito do meu trabalho. Eu disse, no início do meu depoimento, que às vezes tem coi-sas na ilustração que não existem no texto, justamente porque a ilus-tração tem vida própria. Mas pode ser que haja preconceito, sim. Para mim, é obvio que a ilustração parte de uma ideia literária, enquanto a pintura não! A pintura não precisa, necessariamente, partir de um texto ou de um fato acontecido. Sei que Guernica, de Pablo Picasso, foi um fato. É uma pintura? Sim. Mas é uma ilustração, porque Picasso ilus-trou a destruição da cidade de Guernica, na Espanha, pelos alemães que apoiavam a ditadura do general Francisco Franco [1937]. Aliás, Picasso fez isso a vida inteira.

Margaret Marinho. Quanto à ilustração infantil, o que considera um marco da ilustração no Brasil? Quem, o que, quando? Eliardo França. Ah, é muito difícil. Não sei.

Jorge Sanglard. Reformulando: quem você gosta? Quem, nesses últimos tempos, chama sua atenção?Eliardo França. Nesses últimos tempos? Tem o Amarildo Lima, o Nelson Cruz, a Ângela Lago, que são fantásticos.

Margaret Marinho. Tem o pessoal do Sul não é?Eliardo França. Sim. Temos o André Neves. Temos muitos ilustra-dores bons.

Page 41: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

39

Margaret Marinho. Como um marco inicial da ilustração infantil no Brasil, quem poderia citar?Eliardo França. Há ilustradores que foram marcantes na história da literatura infantil. Ziraldo foi um marco.

Mary França. Queria que nos falasse sobre a experiência com os ilustradores brasileiros em Bratislava, na Eslováquia, à época em que foi membro do júri da Bienal que promoveram lá.Eliardo França. Conheci as ilustrações, mas não os ilustradores pessoalmente! O júri era internacional, com representantes do Brasil, da Dinamarca, da Bélgica, da Espanha, da Suíça e do Irã. Éramos 9 ju-rados. De alguma forma, sempre havia um tentando “puxar a sardinha para sua brasa”. Claro que havia ilustradores brasileiros concorrendo. Os jurados entravam numa sala, examinavam as ilustrações e a presi-dente do júri conduzia a votação.

Iacyr Anderson Freitas. Não eram só pseudônimos? Havia indi-cação de nacionalidade?Eliardo França. Havia indicação de nacionalidade, sim.

Pinho Neves. Antes de encerrar os trabalhos, por uma questão de tempo, gostaria de saber se quer acrescentar algo.Eliardo França. Quero agradecer o convite, a oportunidade de es-tar aqui e dizer que foi uma noite que passou muito rápido. Foi muito bom ter meus amigos perto, alguns que não via há algum tempo. Muito obrigado a todos.

Pinho Neves. Gostaria de agradecer em nome da Universidade Fe-deral de Juiz de Fora a todos os presentes, aos entrevistadores e a Eliar-do França, que nos honrou com esse depoimento, que, certamente, contribui para essa coleção de registros que se formam por meio do projeto Diálogos Abertos. Obrigado!

Page 42: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 43: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

41

Entrevista concedida ao projeto Diálogos Abertos, em 19 de maio de 2010, no Museu de Arte Murilo Mendes. Entrevistadores: Iacyr Anderson Freitas; Jorge Sanglard; José Alberto Pinho Neves; Leonardo Toledo; Margaret Marinho; Mary França.

Page 44: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 45: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Nasceu em Patrocínio de Muriaé, Minas Gerais, em 22 de setembro de 1963. Filho de Neide Coutinho de Freitas e Tranquilino Avelino de Freitas Neto, radicou-se em Juiz de Fora a partir de 1978. Em 1985, graduou-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Juiz de Fora, onde obteve o título de mestre em Teoria da Literatura. Influenciado pelo avô materno Iacyr dos Reis Coutinho, desde cedo envere-dou pelo universo dos livros, estreando com Verso e palavra, em 1982, época em que se integrou ao grupo Abre Alas e à equipe da revista d’lira. A partir daí, publicou diversas obras de poesia, ensaio literário e prosa de ficção, com divulgação em países como Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Es-tados Unidos, França, Itália, Malta, Suíça e Portugal. Entre as premiações conquistadas estão o primeiro lugar no Con-curso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte (em 1990, com o livro Messe, e em 1993, com o livro Lázaro) e a menção especial no Premio Literario Casa de las Américas, em Cuba (em 2005), com o livro de contos Trinca dos traídos (2003). Além de A soleira e o século (2002), publicou Primeiras letras e Quaradouro (ambos de 2007), títulos que reúnem sua obra poética, em edição revista, recentemente acrescida do volume Viavária (2010). Outras 2 antologias são significati-vas de seu percurso: Oceano coligido (2000) e Terra além mar (2005), publicada em Portugal.

Sobre Iacyr Anderson Freitas, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna, no prefácio de Quaradouro, registrou: “Sendo genuinamente órfica, há na a poesia de Iacyr algo de hieráti-co, de nobre. Não tem o prosaísmo banal dos textos dioni-síacos que despedaçam e fragmentam o cotidiano numa des-mesura anárquica e furiosa. Seu texto não compactua com IA

CYR

AN

DER

SON

FR

EITA

S

Page 46: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

algo que anda sendo publicado por aí como se fosse prosa entrecortada, sem qualquer noção de eficiência do verso como unidade rítmica-for-mal”. Outra consideração pertinente vem do crítico e ensaísta André Seffrin, que, na revista Bravo! no 66, escreve: “[...] Nesse contexto, do ponto de vista estilístico, o autor de A soleira e o século preza antes de tudo as reservas imponderáveis da palavra, e se deixa oxigenar pela mitologia do cotidiano com uma inteligência verbal sem cerebralismos, intuitiva, fluida. [...] Seu trânsito vai do tom elegíaco de As mãos de meu pai, bastante próximo dos sons de um Joaquim Cardozo, à pura celebra-ção do instante que passa, como em Debuxo, terreno palmilhado pelos líricos de hoje e de sempre. São os poetas com poder de transformar em poesia tudo que observam e tocam no espaço terrestre [...]. Com o distanciamento necessário, Iacyr Anderson Freitas soube ser fiel à sua música e filtrou muito bem os ecos permanentes da tradição”.

Page 47: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

45

Pinho Neves. Como se apresentou sua vocação para as letras, e, mais especificamente, para a poesia?Iacyr Anderson Freitas. De início, boa noite a todos. É um pra-zer enorme estar aqui. Já participei deste mesmo projeto, algumas vezes, como entrevistador.

Meu avô materno, de quem herdei o prenome, não chegou a cursar a quarta série do ensino fundamental, mas sempre leu muito. Sempre o via com um livro nas mãos. Partilhei com minha mãe dessa admiração por ele e, desde bem novo, eu também lia muito. Descobri, mais tarde, que os livros adorados pelo meu avô eram de historietas de faroeste... Na verdade, não consigo dissociar o fato de escrever do fato de ler. Jorge Luis Borges tem uma frase magnífica: “Alguns se jactam das pá-ginas que escreveram, eu me orgulho das que tenho lido”. Foi através dessa prática de leitura que me aproximei muito da literatura de prosa, principalmente dos livros do romantismo brasileiro do século XIX. Li toda a obra de José de Alencar, de Machado de Assis, mas o despertar para a poesia se deu em Juiz de Fora, no Colégio Magister, quando me caiu às mãos uma antologia poética de Manuel Bandeira. Foi o máximo, uma revelação maravilhosa e, a partir daquele momento, me aventurei a escrever poesia. É uma trajetória de admiração. Todo o meu percurso na literatura se deu através de diálogo com as pessoas que conheci, com a vida que tive e com os autores que li. Escrevo a partir disso.

William Redmond. Foi por acaso que nossos caminhos se cruza-ram na Universidade. Seu orientador do mestrado em Teoria da Lite-ratura resolveu, de repente, se aposentar, e você, com uma dissertação quase pronta, foi passado para quem estava sem orientandos na época. Eu sempre dizia aos alunos de então que Iacyr era a pessoa ideal para ser orientado, porque resolvia tudo sozinho. Para o orientador só res-tava marcar a data para defesa da dissertação. Gostaria de perguntar que influência teve o mestrado na sua vida poética, porque procurando na internet “engenheiro que escreve poesia” o resultado da pesquisa é quase nulo; tem o Joaquim Cardoso, que também era engenheiro. Sin-ceramente, o mestrado influenciou sua produção literária?Iacyr Anderson Freitas. Influenciou muito positivamente. An-tes de mais nada, quero corrigir a informação: ter como orientador

Page 48: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

46

o professor William foi uma escolha minha e não foi por ausência de orientandos; aliás, o senhor era um professor muito disputado. Foi ma-ravilhosa a experiência que tivemos com essa edição que saiu em livro sobre o Ruy Espinheira Filho. O mestrado me auxiliou muito. Aliás, escrever é um ato intelectual por excelência. Alguns fazem essa divisão: “Mas você é engenheiro; é uma pessoa mais ligada aos cálculos”. Na verdade, a base da linguagem é uma base intelectual. A maior realização intelectual do homem é a linguagem. Chegamos aonde chegamos, es-tamos neste prédio, neste tempo, devido ao domínio da linguagem. O que diferenciou o homem dos demais animais foi o domínio pleno da linguagem. Logo, não é correta essa divisão: a engenharia ocupando o lado racional da balança e a literatura servindo de contrapeso. A prática fria e intelectual, no plano da linguagem e além, é fortíssima no dia a dia do escritor. Trabalhando com professores que tinham ligação maior com o texto em si, com o intrincado processo de interpretação tex-tual, pude aprimorar essa prática. Sou eternamente grato aos grandes professores que tive, entre os quais William Redmond. Por outro lado, conheci também, por dentro, aquela visão da teoria como algo total-mente avesso à prática literária. Em determinados momentos, como algo refratário até mesmo ao melhor entendimento da própria literatu-ra. Ali, naquele mestrado, solidificou em mim a certeza de que precisamos lutar muito para dividir os 2 campos: o aprendizado da língua é uma coisa e o aprendizado da literatura é outra totalmente distinta. Misturar esses 2 campos é um erro de metodologia fora do comum. Por mais que tente-mos nos afastar de certos cacoetes teóricos dos cursos de pós-graduação, às vezes acabamos cometendo esses pecados. A teoria pela teoria, intransi-tiva e impenetrável, imersa nos rótulos científicos da moda acadêmica do momento, para quem possui a prática da literatura e deseja colocar essa prática no seu devido lugar, no lugar do prazer, é muito estranha, para não dizer contraditória. Não existe teoria da literatura capaz de abarcar a multi-plicidade do fenômeno literário, isso é óbvio. Mas quando tal teoria coloca em primeiro plano apenas o estudo da linguagem, então o resultado é pífio. Ora, a literatura é o sítio de transcendência da própria linguagem.

Leila Barbosa. Você disse que a engenharia não tem nada com a sua poesia, apesar de suas numerações. A minha indagação é: como, depois

Page 49: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

47

do mestrado, as teorias atuaram na sua produção? Houve interferên-cias? Quem saiu ganhando? As adequações estéticas?Iacyr Anderson Freitas. Penso que não houve interferência nos textos literários que escrevi. Minha produção poética não levou muito em conta a teoria repassada em sala de aula ou constante da extensa bibliografia manuseada por mim à época. Todavia, as grandes aulas que tive foram absorvidas e se transformaram em textos, é claro. Mas boa parte da teoria me pareceu sempre algo muito problemático para se aplicar à literatura. Por quê? Porque parte de uma visão equivocada da própria ciência. Há uma ciência de pesquisa e de investigação, sim, que soube lidar com as diversas facetas do fenômeno literário, com suas aberturas para os universos simbólicos e para os setores pré-racionais da experiência estética. Todavia, a paixão teórica dominante em quase todo o século XX transformou o estudo da literatura num aborrecido estudo de terminologias. Por outro lado, enquanto crítico e ensaísta, a vivência teórica foi fundamental para a minha formação. Apenas para lembrar: no meu livro A soleira e o século há um poema que brinca com a teoria estruturalista, afirmando que, para que se possa aplicá-la, basta retirar tudo o que qualquer poema possa ter de poético...

Leila Barbosa. Entendo que Iacyr é esse grande poeta porque con-segue juntar as 2 coisas: o Apolo e o Dionísio e, numa elegância muito grande, fazer seus textos.

Pinho Neves. Como é o seu processo de trabalho?Iacyr Anderson Freitas. Com relação ao texto poético, são mui-tos os processos. Por um lado, sou um caderno ambulante: vou colhendo restos de frases, seja na feira, na fila do ônibus ou do supermercado. A conversa de 2 senhoras sobre o preço dos alimentos, a pergunta de um fi-lho para o pai, todas essas coisas são matérias da literatura, e, como quase sempre tenho uma caneta no bolso, anoto as ideias em qualquer pedaço de papel, até mesmo em folha de cheque. O processo para desenvolver isso é outra história: alguns poemas demoraram 10 anos para atingir a forma final. Por quê? Porque cada poema pede a sua forma, e, na verda-de, em poesia há um negócio estranho: dizer a mesma coisa com outras

Page 50: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

48

palavras é dizer outra coisa. Então, é preciso buscar a palavra correta para dizer algo. A escolha de cada palavra é essencial. A poesia tem de captar todo o universo de significações pré-racionais que os vocábulos possuem, entrando em ressonância com o leitor o tempo inteiro. Esse processo é demorado. Lembro-me de um poema que está em A soleira e o século – Ju-linha Ensina – que remete à minha infância, quando, andando pelo quintal da minha casa, percebi que não conhecia as plantas medicinais cultivadas nos canteiros. Minha mãe fazia seus chás e eu não sabia nada a respeito. Ou seja, eu andava com os livros na mão, mas não sabia “ler” as folhas do quintal da minha casa. Eu tinha apenas as folhas do livro; o que era uma contradição enorme. Fiquei com essa ideia na cabeça durante muito tempo. Esse poema só foi escrito 30 anos depois, e a forma que encontrei – quem fala no texto é a Julinha, uma personagem impreg-nada daquela fala coloquial das Gerais – para dar o caráter de rebusca-mento, de inteligência da personagem, foi o decassílabo, apoiado em rimas riquíssimas. Foi uma experiência maluca, porque, além de eu continuar não conhecendo nada em matéria de ervas medicinais, tive de pesquisar sobre o assunto nos livros especializados. Julinha ensina serve, inclusive, como receita. Enfim, demorei bastante para encon-trar a forma de escrever sobre aquele assunto. Por quê? Para ampliar o grau de estranhamento. Ou seja: a fala daquela personagem, com toda a coloquialidade, com todo o universo oral, colocada dentro de um metro clássico, com quartetos, estrutura rímica etc. Em suma, meu método é muito complicado e às vezes pouco metódico: alguns poemas nascem quase prontos, outros demoram um tempo enorme para ficarem no ponto de serem publicados. Muitas versões e muitos poemas vão para o lixo. Não consigo ter uma “receita de bolo” para escrever poemas, felizmente.

Anderson Pires. Num de seus livros há um prefácio de Affonso Romano de Sant’Anna que fala em certa tendência, em certa tradição órfica de sua poesia, exatamente jogando para certa musicalidade, certa sonoridade, até como se você cultivasse isso como um valor mesmo da sua poesia, de seu modo de escrever. Como funciona isso? Quer dizer, às vezes há o sacrifício da palavra em busca dessa outra palavra que tem esse efeito sonoro mais encaixado, ou não?

Page 51: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

49

Iacyr Anderson Freitas. Quando li o prefácio do Affonso, per-cebi que, em somente 2 páginas, ele tinha flagrado um dos aspectos mais essenciais dos 4 livros que estavam reunidos no Quaradouro. Eis a vantagem de poder contar com um grande escritor na apresenta-ção de qualquer obra. Affonso é um poeta magnífico e um grande leitor de literatura, e de poesia, principalmente. Uma determinada precedência do som sobre o sentido, na minha obra, começa com O aprendizado da figura, livro que publiquei em 1989, e vai trilhando um caminho de progressiva radicalização, cujo ápice, a meu ver, é alcan-çado com o Lázaro, publicado em 1995. Quaradouro, segundo volume de minha obra poética reunida, prefaciado pelo Affonso, inclui os 4 li-vros capitais dessa fase órfica, por assim dizer: Sísifo no espelho, Primeiro livro de chuvas, Messe e Lázaro. Mas já estava me sentindo exaurido com aquela forma de escrever poesia. Lázaro foi, assim, um ponto de inflexão na minha obra. Eu não tinha mais como continuar na-quele caminho. Então, fiquei praticamente 4 anos sem escrever e, quando o fiz, publiquei um livro totalmente diferente, composto de sonetos, metro fixo e estrutura rímica regular, intitulado Mirante, escrito em poucos dias de 1999. Por quê? Porque havia o sério risco de ficar me repetindo. Tenho muito medo das repetições. E, assim, meu caminho bibliográfico foi se alterando. Em A soleira e o século, por exemplo, retomo essa experiência do metro fixo, mas aliado a uma visão de sentido extremamente amarrada. O leitor que se aventurar por alguns dos livros reunidos na Soleira estará preso, de certo modo, ao campo semântico evocado. Era uma forma de mu-dar, de sacudir a poeira.

Flávio Cheker. Em A soleira e o século, há a preocupação de uma errata minuciosa, com um trabalho artesanal de listagem. Poderia nos falar um pouco sobre isso? Houve a publicação de sua obra completa, até agora; e percebemos esse cuidado de revê-la, inclusive, com um detalhamento a ponto de gerar essa grande corrigenda. A mesma preocupação é perceptível em seus posfácios. É um pouco como dizer: “desautorizo o que está para trás, é daqui para frente”, até chegar à confecção daquelas caixinhas primorosas com que alguns privilegiados tiveram a chance de ser aquinhoados.

Page 52: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

50

Iacyr Anderson Freitas. Essa também é uma excelente pergun-ta. A errata deveu-se a diversos motivos. Um exemplo: na publicação original, de 2002, em muitos poemas, onde era para colocar “esta”, eu preferi colocar “essa”, quando o verso, principalmente, pedia um refor-ço de sibilantes. Ao fazer a releitura de A soleira e o século, algum tempo depois, senti que tal opção não era a mais correta. Novamente, nesse caso, assombrava-me a precedência do som em relação ao sentido. Re-solvi, então, redigir a errata, inclusive porque fui obrigado a revisar A soleira e o século quando da preparação da minha antologia poética, que foi publicada em Portugal em 2005. Depois de escrever qualquer poema, leio o texto em voz alta diversas vezes. Escrevo com a imagem acústica do poema na cabeça. Isso é uma marca de certos autores, facil-mente reconhecível no processo de leitura de suas obras. É o caso, por exemplo, do Ferreira Gullar, do João Cabral, do Bandeira e do Drum-mond. Além dessas pequenas permutas, ocorreram revisões mais sé-rias, motivadas pela republicação de meus poemas em jornais e revistas. Como minha obra foi objeto, recentemente [2008], de uma dissertação de mestrado, decidi deixar expresso que as edições originais de meus li-vros foram modificadas e que apenas as novas versões me interessavam. Afinal de contas, no universo acadêmico, a publicação original, a edição príncipe, aparece sempre como ponto de referência para a análise da obra em questão. Para mim, ao contrário, vale sempre a última edição que o autor escreve ou revisa. A edição príncipe é um problema. Outro dia, por exemplo, encontrei com uma amiga que me disse ter adquirido o meu primeiro livro num sebo. Creio que por delicadeza, fez grandes elogios àquele meu primeiro equívoco bibliográfico. Esse livro é um dos meus desesperos, é muito ruim. Olha como o autor precisa contar com a sorte, com muita sorte. Doei os meus livros para a biblioteca pública de Juiz de Fora [Biblioteca Municipal Murilo Mendes] e a maio-ria desses livros foi roubada. Esse primeiro livro, no entanto, ninguém rouba. Tudo bem, trata-se de uma obra de quinta categoria... Mas al-guém poderia me prestar o favor de... Esse primeiro livro foi feito em mimeógrafo e pertence àquele tempo... Eu o escrevi quando possuía 16 anos de idade... Acabei retirando-o da minha bibliografia. E o que acon-tece? Nesse trabalho de pesquisa que fizeram com a minha obra, toda

Page 53: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

51

hora vinha aquele negócio: mas vale a primeira edição. Deixei claro, nos 3 volumes de minha obra reunida, que desautorizo todas as primeiras edições de meus livros, porque revisei integralmente a minha obra, e o que vale agora é o que está em Quaradouro, Primeiras letras e A soleira e o século. Quem quiser trabalhar com as primeiras edições, que o faça, mas não com a minha colaboração. Se me procurarem para tal empreitada, direi que tudo bem, mas não dou entrevista, não ajudo, não colaboro. O livro é uma coisa pública; quando sai da prensa, foge ao nosso con-trole, mas, como autor, posso colaborar ou não numa pesquisa acerca da minha própria obra.

Leila Barbosa. Você faz como Murilo Mendes, que dizia: “não sou meu sobrevivente e sim meu contemporâneo”. A partir disso, gostaria de saber como você se sentiu ao rever seus versos. Como ficou a sua emoção quando releu ou modificou seus versos? Isso é uma curiosidade de como o autor modifica algo que já escreveu e o faz, logicamente, pela sua mu-dança de visão de mundo, de perspectiva e até de forma poética.Iacyr Anderson Freitas. Pouco do que publiquei nasceu pron-to. Por isso, obedeço sempre a uma regra básica: depois de escrever um texto e de revisá-lo diversas vezes, coloco-o numa gaveta e só vou retomá-lo 2 anos depois. Por quê? Porque, como autor daquele texto, estou muito próximo dele e não consigo revisá-lo com isenção assim que o escrevo. Para corrigir e acertar um texto literário, é preciso dis-tanciamento, é preciso pôr de lado os sentidos do autor e mobilizar os olhos e o faro do leitor. O olho do autor não serve para o processo de revisão. Na minha forma de escrever e publicar, a revisão já é uma coisa tão intrínseca que, quando voltei a esses textos, não tive muito de emoção, não; na verdade, tive certa raiva por achar que não deveria ter publicado boa parte dos livros que publiquei nos anos 1980. Era uma fase complicada de minha vida e da vida política brasileira – fui diretor de cultura do Diretório Central dos Estudantes (DCE) quando a ditadura militar tentava emplacar a conversa da Abertura – e os livros eram publicados de modo tosco e apressado. Penso: como fui perder o meu tempo publicando coisas tão ruins? Em parte, a experiência que adquiri veio dali. Tive muita dificuldade para revisar os livros daquela década, porque, na minha cabeça, eram livros naturalmente destina-

Page 54: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

52

dos à lixeira. Verso e palavra, por exemplo. Foi muito difícil revisar essas obras dos anos 1980, pois tentei respeitar, na medida do impossível, alguns cacoetes do período. Todavia, suprimi boa parte do horizonte panfletário que marcava os meus primeiros livros. Eu comecei a escre-ver e a publicar poemas muito cedo, esses livros iniciais vieram a lume numa época de exceção. Enfim, há muitos fatores adversos no meio desse processo editorial. É difícil explicar para os meus filhos [Gabriel e Mariana Rogério de Freitas], por exemplo, o que é uma ditadura mi-litar e como aquilo mexia no nosso dia a dia; como essa experiência foi danosa para a cultura brasileira durante tanto tempo, e, mesmo após ter acabado, continuou deixando suas marcas. Por outro lado, tive certo prazer em fazer essa revisão, porque me sentia historicamente distante daquele período, assim como sentia que minha infância ocorreu quase na Idade Média, porque eu estava em Patrocínio do Muriaé, brincando de bilosca, nadando e pescando no rio da minha aldeia, jogando futebol na rua, sem televisão, sem brinquedos eletrônicos e, muitas vezes, sem energia elétrica.

Anderson Pires. Percebo que você é um poeta de reescrever, de voltar, de trabalhar a palavra, de se preocupar, e, ao mesmo tempo, que gosta de “escrever em voz alta”, porque, além da preocupação com as palavras, há a da sonoridade. Há a sensação de ler um poema para um público que não conhece a sua poesia e há a sensação de escrever, uma coisa é coletiva e a outra, privada. Quando está lendo um poema, e fo-caliza alguém escutando o seu poema, a reação dessa pessoa o afeta, o faz repensar alguma coisa?Iacyr Anderson Freitas. Sim, porque são 2 situações muito dis-tintas. Ainda acredito que a literatura deriva de uma solidão extrema. O processo de escrever e o processo subsequente, que é o da leitura, são atos solitários. Mas por que me filio a esse grupo de escritores que escre-vem já com a ideia do verso sendo lido em voz alta? Porque, na verdade, creio que a poesia nunca abandonou a sua origem, e a origem da poesia é sonora. A poesia nasceu como arte do dizer, como performance verbal, como fruto da fala, exploração acústica em sua essência. Confesso que me dá muita tristeza quando percebo que certos poetas não têm ouvido. Atualmente anda pipocando por aí um tipo de poesia que, embora não se

Page 55: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

53

encaixe no modelo de produção visual, naquele parâmetro reconhecível do poema visual, também não demonstra qualquer qualidade no estrato fônico do texto. Ou seja: é um tipo de poesia que não funciona nem como prosa barata. Só compreendo a poesia a partir do meu ouvido. É uma limitação minha, mas cada leitor tem a sua. O processo de leitura – é sempre bom lembrar que ministrei cursos de leitura e de interpretação do texto poético, inclusive aqui na UFJF – impõe ao leitor esse conheci-mento da memória acústica da língua.

Por outro lado, é muito bonito colher um extrato de poema escrito por Safo, quase 7 séculos antes de Cristo, e perceber que as angústias, as tristezas e o sentimento de mundo daquele eu poético têm grandes conexões com o que sentimos hoje. Em literatura, não há como falar-mos em evolução. Dante não é e nem nunca será um poeta dispensável ou menos atual, no sentido mais amplo da palavra. Nem Dante, nem Camões, nem Safo. Os grandes poetas serão sempre fonte de leitura e de conhecimento. E por que isso ocorre? Porque, na verdade, o homem não conseguiu responder a nenhuma das suas questões principais ou “fundantes”, para usar um termo caro a Heidegger. Tais questões orien-tam o nosso estar-no-mundo e não serão respondidas com facilidade: qual o sentido da vida? O que é o amor? Até que ponto governamos ou somos governados pela nossa libido? O que é, realmente, a liberdade? Essas questões nos transcendem.

Anderson Pires. Às vezes parece que a poesia dentro da história da literatura dá respostas diferentes para a mesma pergunta. A qualidade dessa resposta diferente vai marcando a leitura de cada poeta. Mário Quintana tem uma frase que diz: “Grandes poetas não leem grandes poetas, leem seus reclames no jornal”. Desde que vim para Juiz de Fora para fazer Faculdade de Letras, percebo que a sua geração combina pro-dução poética com acadêmica – você, Edimilson, Fiorese. Queria que nos falasse desse lado inicial, como se formou a amizade desse gru-po; houve uma identificação ou foi um movimento que se articulou ao acaso? Como se deu a coincidência também de todos serem poetas e professores?Iacyr Anderson Freitas. O modo como nossa amizade se deu foi devido até mesmo ao período gregário do final dos anos 1970 e

Page 56: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

54

início dos anos 1980, onde tudo era feito em grupo, até porque parte da nossa militância cultural vem da política, no sentido de lutar contra o sistema de exceção que reprimia o ambiente intelectual da época, a ditadura militar. Era uma forma de incomodar um pouco e de dizer que não estávamos felizes com o que ocorria com o país. Quando entrei no grupo Abre Alas, Fiorese já estava. Publiquei meu primeiro livro em 1981 e conheci o grupo todo em 1982. Em 1983, eu já participava da edição do folheto Abre Alas e da revista d’lira. Edimilson chegou alguns meses mais tarde. E ocorreu aquele período em que as pessoas que es-tavam no grupo – aquelas que o fundaram, entre as quais Flávio Cheker, Mutum e Jorge Sanglard – já estavam formadas, não participavam mais do corpo discente da Universidade Federal de Juiz de Fora. Boa parte se mudou da cidade – foi o caso do Luiz Ruffato e, mais tarde, do José San-tos, figura capital na agitação cultural daquele período –, e aí ficamos eu, Fiorese, Edimilson e Júlio Polidoro. Por acaso, também nasceram as Edições d’lira – o nome surgiu com a publicação do meu Pedra-Minas, um livrinho de poemas epigramáticos, que veio encartado no último nú-mero da revista d’lira. Pouco tempo depois, passamos a publicar nossos livros através desse selo editorial.

Assim, formamos um laço de amizade enorme. Eu os considero ir-mãos, estamos sempre em contato, um na casa do outro, sempre con-versando. O processo de publicação da revista d’lira e do Abre Alas en-volvia crítica textual, às vezes apimentada, dentro do próprio grupo. Sempre nos acostumamos a submeter nossos textos à avaliação sincera dos demais escritores. Antes assim do que passar pela prensa e receber bordoada depois. Livros meus foram modificados por eles; livros deles foram modificados por mim. Era um processo lento de ler o outro com outros olhos e tentar revisar e questionar cada verso, cada ponto, cada utilização de palavra. A partir daí nasceram também os ensaístas, os leitores críticos. Não conseguimos desvencilhar o ato de escrever do ato de produzir certa forma de crítica. Trata-se de um ato de depuração intelectual também, inclusive de confronto com o que foi escrito antes. Essa atividade crítica é essencial até para calibrar a mão, porque, no fundo, não conseguimos escrever sem leitura e sem certo arcabouço de leitura. A crítica é, em todos os sentidos, essencial.

Page 57: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

55

Flávio Cheker. O que tem lido? O que o tem influenciado mais nesse sentido? Com quem tem dialogado ultimamente, já que citou Bandeira, Cabral, Drummond? A quem você volta sempre, quem lhe abastece nessa leitura diária? Já estiveram aqui José Santos e Edimilson de Almeida Pereira, que relataram um pouco a maneira pela qual che-garam e se vincularam ao grupo; eu queria, então, que você falasse mais um pouco sobre sua entrada na d’lira e no Abre Alas, do ponto de vista mais da vida. E ainda uma última questão: vocês fizeram um livro em conjunto, o Dançar o nome; Edimilson, no seu depoimento, deu a enten-der que, quando do lançamento do livro, já considerava o projeto como esgotado, não sei se exatamente nesse sentido. Como foi isso? Hoje, o que pensa disso?Iacyr Anderson Freitas. A experiência conjunta e o aspecto gre-gário do Abre Alas e da d’lira marcaram muito, a meu ver, cada um dos escritores que estiveram vinculados àquela experiência. As longas reuni-ões do conselho editorial, com todo mundo sentado no chão e os textos sendo passados e repassados. Cada um lia, avaliava, anotava. Acontece-ram reuniões em que recebíamos colaboração de medalhões da literatura, cujos textos foram vetados por questões de qualidade. Alguns escritores mais antigos do grupo, principalmente os que pediram as colaborações, diziam que eram textos de Fulano de Tal, e mesmo assim vetávamos; era um quebra-pau sem fim. Ninguém entrava na revista só porque tinha nome. Era uma experiência fora do comum, e assim se fazia com relação ao trabalho de todos. De frente para a pessoa, falava-se assim: “Acho que esse texto não está legal, que não deveria ser publicado”. Aí ficava aquela situação, o cara trazia outro texto ou contra-argumentava. Enfim, era uma experiência crítica fenomenal, porque era preciso fundamentar sua opi-nião, não valia “gosto ou não gosto”, embora, no fundo, as coisas rolassem por aí, mas tinha que fundamentar. Havia certas coisas que pegávamos do baú, porque nos apropriamos de tudo o que nos mobiliza o espírito. O que lemos nos pertence, também, depois de certo tempo. Lembro que, numa das reuniões, me deparei com um verso do Drummond no poema de alguém e perguntei a esse alguém se ele tinha utilizado esse verso de propósito. Ele afirmava que o verso era dele, não do Drummond. Na reu-nião seguinte, para comprovar, eu trouxe o livro e vimos que se tratava de Drummond, palavra por palavra.

Page 58: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

56

Então, foi uma experiência incomum, fora a experiência pública que foi o Abre Alas, folheto sempre vinculado ao movimento político da cidade. Por exemplo: no movimento Diretas Já, quando se reivindicavam elei-ções diretas para tudo, inclusive para o Vaticano e o FMI, houve a “chuva de poesia” através de folhetos jogados dos prédios de Juiz de Fora, em co-memoração aos 20 anos da “gloriosa” [ironia com a Ditadura Militar], en-tulhando a cidade de poemas; além dos folhetos sarcásticos “com peque-nas pistas para o SNI” [Serviço Nacional de Informações]. Não tínhamos secretário de redação, era “sectário” de redação; era “comitê” editorial e não conselho; enfim, foram grandes e sérias brincadeiras os eventos de rua do Abre Alas, que marcaram a cidade naquele período. Nas reuniões da d’lira, tínhamos um grupo múltiplo, com artistas plásticos, poetas, escri-tores, prosadores, chargistas, desenhistas, fotógrafos e músicos.

Foi um período que me enriqueceu muito e que se encontra refletido nos livros de então: a capa do Pedra-Minas foi realizada pela Patrícia Bor-ges, a capa do Colagem de bordo & outros poemas ficou por conta do Breno Chagas e a do livro O aprendizado da figura foi feita pelo Rui Merheb, com ilustrações do Ricardo Cristofaro e foto de uma instalação temática do César Brandão. A programação visual de vários livros foi feita pelo Jor-ge Sanglard; conseguíamos diagramar e digitar num jornal da cidade, à noite. Tanto que essa errata foi feita agora porque na época não se podia revisar os livros. Recebíamos a composição pronta, em papel fotográfi-co, que escurecia e ficava imprestável em pouco tempo. Logo, tínhamos de publicar daquele jeito, com urgência, mesmo se contivesse erros. As publicações eram muito toscas nesse sentido. Quando eu fazia aqueles livros, pensava realmente em promover, depois de um certo tempo, quando a maré permitisse, uma revisão desse período, porque tudo era muito difícil. O papel utilizado nas capas e nos miolos dos nossos livros vinha de aparas obtidas nas gráficas da cidade. Isso explica os forma-tos inusitados e as tiragens mais absurdas. Tudo dependia das aparas de papel. Enfim, essa experiência da d’lira e do Abre Alas foi fundamental para cada um de nós que vivemos aquele processo de leitura conjun-ta, de crítica recíproca, sempre na tentativa de fazer com que o outro escrevesse cada vez melhor. Durante um curto período de tempo, eu trabalhei dentro da antiga gráfica do DCE, inclusive. Numa ocasião, me

Page 59: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

57

perguntaram se não seria muito difícil escrever depois de Drummond, de João Cabral e de outros grandes nomes da poesia brasileira do século XX. Respondi que era a melhor coisa do mundo, porque, na verdade, tínhamos pela frente o desafio de fazer algo que tivesse valor, compara-do com os grandes poetas que nos precederam. Essas obras grandiosas são desafios para que se escreva melhor. Você pode ficar aquém, mas você tentou. O pior é ficar se nivelando pela mediocridade.

Ultimamente tenho escrito muito pouco, estou me dedicando mais a ler, que é o que, enfim, no mundo da literatura, me traz prazer. Como Jorge Luis Borges, no entanto, me sinto sempre tentado a tirar da es-tante os mesmos livros. Quero sempre reler as minhas obras prediletas.

Em poesia, por exemplo, 2 poetas falam de forma muito especial ao meu espírito: João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade. Devo ter todas as obras completas que saíram do João Cabral; e tenho também os livros históricos, as primeiras edições. Para mim, trata-se daquele tipo de poeta que fez uma obra única na história da literatura, porque optou por usar como regra certo tipo de concepção que não tem nada a ver com o padrão da lírica. Tanto que, em aulas de literatura, eu pedia sempre aos alunos que encontrassem, em certos poemas cabralinos, algumas das grandes características do texto lírico. Pois bem, não existe nenhuma. Era a prova de que definição, em ter-mos de prática poética, não define nada, felizmente. Durante muito tempo esteve em voga a função poética da linguagem, segundo Roman Jakobson, que diz algo sobre a linguagem, algo sobre a poesia, mas que deixa muito a desejar como visão abrangente do fenômeno poético. Os muitos modismos do século XX oferecem grandes lições a quem quer se aventurar pela poesia hoje. Um exemplo: lidar com a autorre-ferencialidade exige cuidado, pois este foi um caminho trilhado com competência por outros grandes poetas brasileiros do século passado. E, convenhamos, uma poesia que fala só sobre si mesma está fadada a falar para as paredes. Essa coisa de metalinguagem é uma parte da poe-sia, aliás, uma parte muito pequena. A poesia tem que falar da vida das pessoas, tem que entrar fundo na vida das pessoas, tem que entrar no coração de cada um. Se não for assim, não é poesia. A poesia que fala só sobre a linguagem não me interessa. No fundo, vale aquela regra

Page 60: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

58

que o Ferreira Gullar coloca: a poesia tem que ser suja de vida, trazer a experiência biográfica de cada um, fazer com que cada um se debruce sobre si mesmo e pense a respeito do texto, que deve ser um indutor de reflexões. Isso é essencial. Então, me vejo tirando sempre os mesmos livros da estante. Interessa-me voltar ao grande Machado de Assis, ao fabuloso poeta Murilo Mendes, ao Jorge de Lima de A invenção de Orfeu, por exemplo.

Tivemos, no Brasil do século XX, a despeito de todos os problemas com relação ao analfabetismo, à ausência de incentivo à educação, à his-tórica política de exclusão social e econômica, uma literatura vigorosa, que infelizmente não é reconhecida pelo brasileiro médio em geral. Uma poesia, então, de uma qualidade excepcional. Lido com traduções e vejo que não é fácil encontrar um país que coloque, num mesmo sécu-lo, poetas da qualidade de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e Jorge de Lima. É uma poesia riquíssima. Sem falar no Raul Bopp, no Mário Quintana, no Ferreira Gullar, no Mário Faustino. É uma poesia de uma força impressionante para um país que já teve índice de 90% de analfabetismo e que, atualmente [2008], tem índice de analfabetismo funcional, de pessoas que não conseguem ler e interpretar efetivamente um texto simples, de quase 50%. No entanto, nós temos um patrimô-nio poético e literário que deveria causar orgulho em qualquer brasilei-ro. Era para a lírica do nosso país ter um sucesso maior nas estantes das livrarias. Apesar disso, muitos de nossos melhores poetas não possuem mais obras em circulação. É o caso de Cassiano Ricardo, de Carlos Pena Filho e de Henriqueta Lisboa. Quase ninguém conhece Nilo Aparecida Pinto, por exemplo, um sonetista fantástico de Caratinga. É por isso que quero fazer um livro acerca da necessidade desse resgate crítico, porque é importante não deixar que esse patrimônio morra. Como es-critor, além de lutar contra os problemas de mercado, contra a ausência de público, contra as dificuldades de edição dos livros, penso que devo também dar a minha contribuição crítica, no sentido de não deixar que os que vieram antes, e que trabalharam tanto e tão bem, fiquem ao re-lento. Poetas que morreram há pouco tempo já estão sendo esquecidos: Paulo Mendes Campos é um deles. É difícil encontrar um livro seu de

Page 61: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

59

poesia à venda. É lamentável que isso ocorra no Brasil, porque é uma forma deletéria de você pegar a cultura brasileira, feita de um modo tão grandioso, e jogar na lata de lixo. Quando teremos gerações tão brilhantes quanto aquelas? Não encontramos esses livros à venda nas livrarias porque não temos política de leitura no Brasil, e é um absurdo que isso ocorra.

Fernando Fiorese. Já o ouvi falando em outras entrevistas da sua preocupação em encontrar bons leitores. Como trabalha com essa ne-cessidade de democratizar a leitura, de aproximar a leitura do leitor médio e também de instigar o leitor a procurar ser bom leitor?Iacyr Anderson Freitas. Em entrevistas de outros poetas, acho que até corretamente, sob determinado ponto de vista, vários diriam o seguinte: “Essa não é uma missão que nos cabe”. Mas, no fundo, até por ser um compromisso de parte da nossa geração, daqueles que partici-param mais diretamente da distribuição de folhetos de poesia nas ruas, essa preocupação é muito forte ainda. Até mesmo nos cursos que mi-nistrei sobre poesia e sobre interpretação do texto poético, manifestei essa preocupação, porque ainda é possível, sim, fazer muito em relação a isso. Num desses cursos, outro dia, perguntei a um aluno: “Se você não gosta de poesia, que autor você leu?”. E ele me deu o nome de um autor contemporâneo, Fulano de Tal, cuja obra não o cativara em nada. Porque poesias existem muitas. Andando pelas livrarias, você pode en-contrar um poeta maravilhoso, mas altamente intelectualizado, como Mário Faustino, e, na estante ao lado, se deparar com Manuel Bandeira, que, para um leitor iniciante, é uma bela indicação. Outro, com um grau muito forte de parentesco poético com o Bandeira, é o Mário Quintana. Ambos, apesar de possuírem uma cultura sólida, não faziam de suas obras, ao escrever, um compêndio de hermetismos literários. É claro que a poesia sempre impõe um desafio em relação à linguagem e ao processo de interpretação. Estamos habituados a ler de um modo cartesiano – sujeito, predicado, isso significa isso etc. – e a poesia, às vezes, está colocando em destaque aquilo que ela mesma quer negar. É preciso ter uma sensibilidade muito grande para colher o melhor que um texto literário tem a oferecer, porque ele é sarcástico, é polissêmi-co, tornando-se, às vezes, uma armadilha para o leitor.

Page 62: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

60

É terrível você tentar estimular a leitura de poesia por parte dos novos leitores através das teorias e das modas acadêmicas do momento. Não conheço nenhum poeta que queira fazer um texto para ressaltar a teoria tal, para que seja lido através da teoria tal – aliás, conheço alguns, mas são medíocres. A poesia transcende essas coisas. Eu, como autor, creio que toda poesia é um ato de vida, um ato de meditação sobre a vida, e ela só tem sentido se for assim. Se um leitor sentiu que a obra de Drummond, Murilo Mendes, João Cabral não o mobilizou, não o agra-dou, em suma, peço que continue pesquisando, pois vai encontrar ou-tros textos muito bons. Também vejo textos muito ruins desses poetas; ninguém é perfeito. Acho que todo poeta nasceu para ser antologiado, por isso gosto tanto de antologias. Que o leitor faça suas antologias, esse é o melhor caminho; que não tenha medo de enfrentar os autores e que não dê a esses autores autoridade maior do que a que se pode conferir a um ser falível e humano, demasiado humano, porque a poesia é feita para o leitor. Que o leitor enfrente o desafio sem medo, essa é a lição principal, porque, assim, ele estará fruindo um universo cultural fantástico, fabuloso. Nas aulas que ministro, é sempre tocante voltar ao Velho tema, do Vicente de Carvalho, um soneto maravilhoso, belíssimo, de um escritor que passou pela traumática transição do século XIX para o século XX. Safo, 7 séculos antes de Cristo, escreve sobre aquela maçã maravilhosa, no alto da árvore, que os homens esqueceram de colher; esqueceram não, ela diz depois, não alcançaram. Isso é belíssimo! A imagem é a seguinte: aquilo era belo demais, mas os homens não ti-veram condição de alcançar. Essas grandes metáforas, construídas há tanto tempo, são passíveis de adoração hoje. E mobilizam ainda o nosso imaginário.

Leonardo Toledo. Vinicius de Moraes seria um poeta supervalori-zado ou subestimado, atualmente?Iacyr Anderson Freitas. Esse é outro problema que exige um estudo à parte. No fundo, continua em circulação, sempre de forma muito velada, o complicado termo “alta literatura”, geralmente com o fito de manejar determinado preconceito contra os escritores que con-seguiram maior alcance de público. Esse preconceito maculou e preju-

Page 63: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

61

dicou a divulgação acadêmica de obras de Jorge Amado e também do próprio Vinicius de Moraes, infelizmente. Vinicius é um grande sonetis-ta, um poeta de formação clássica, com uma noção métrica e rítmica do verso fora do comum. Ele pertence ao grupo dos que “escrevem em voz alta”, autor de poemas maravilhosos e que, como todo poeta, nasceu para ser antologiado. Uma antologia do Vinicius é algo fora do comum. Há pouco tempo, houve uma série de eventos dedicados à poesia brasi-leira em Portugal, coordenada pelo poeta e fotógrafo Ozias Filho, e um dos poetas de destaque de uma das noites era Vinicius de Moraes. Prin-cipalmente para os autores, para quem escreve, Vinicius continua sendo uma fonte inesgotável, até pela multiplicidade de sua obra: começa com aquele verso bíblico, de feição surrealista, de Ariana, a mulher, dos pri-meiros poemas, e vai se desenvolvendo até o rebuscamento do cotidia-no dos últimos textos, mas sempre com uma inteligência verbal fora do comum. Enfim, o século XX do Brasil, felizmente, foi de prodígios na produção lírica, como Henriqueta Lisboa, que publicou um livro mara-vilhoso em 1949, Flor da morte. Então, sempre que tentamos enumerar os melhores poetas, corremos o risco de deixar alguns de fora.

Flávio Cheker. Você ficou devendo um pouco em seu depoimento sobre a experiência do livro em conjunto, e vou então emendar com outra pergunta. Como é essa questão da prosa? O livro Trinca dos traídos não é só o que você produziu; como está essa produção?Iacyr Anderson Freitas. A ideia inicial de Dançar o nome era a de um CD, exatamente essa ideia de veicular o texto lido. O poema como um objeto sonoro. Procurei o Edimilson e o Fiorese para gravar o CD. Dentro daquele espírito gregário, também procuramos os músicos ami-gos, e Luizinho Lopes, um grande parceiro e compositor, fez o supor-te musical da minha faixa e da faixa do Fiorese. A faixa do Edimilson, juntamente com a de abertura, contou com a participação do Édimo de Almeida Pereira, irmão do poeta de Dormundo. Era um projeto para marcar exatamente isso: ali estavam 3 autores para os quais a oralidade tem uma importância capital. Por quê? Porque são 2 registros total-mente distintos: a récita e o poema na página. Inclusive, lá pelo início dos anos 1980, colecionávamos LPs de Drummond, Ferreira Gullar,

Page 64: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

62

Murilo Mendes, João Cabral; e era muito interessante ter esse registro sonoro, pois alguns textos encontraram fluxos de leitura totalmente diversos dos fluxos pensados inicialmente pelos seus autores. Alguns sequer respeitavam as habituais pausas métricas de seus próprios textos. Enfim, cada autor escreve dentro de determinada concepção de leitura. Quanto ao Dançar o nome, não é um projeto que julgo terminado, por-que ainda me proponho fazer uma segunda dança, uma terceira dança etc. Não vejo problemas em relação a isso, e acho muito bom que se tenha aquele registro sonoro. Foi realmente um livro comemorativo dos 20 anos da nossa parceria literária e, assim, nós 3 fomos para o estúdio. Existem piadas maravilhosas sobre essa nossa incapacidade de lidar com o estúdio. Somos poetas mesmo, não adianta querer mudar o passo da dança.

Quanto ao livro Trinca dos traídos – sou leitor de contos, acho um gênero fantástico, porque nele temos que ser diretos e ter uma lingua-gem ajustada à realidade evocada –, fui realizando aqueles exercícios de prosa, passando para amigos, e as pessoas foram lendo. Resolvi, depois, juntar tudo num livro e fazer como um jogo de cartas. O foco ali é a traição, não só no sentido habitual do termo, traição conjugal, mas traição existencial e traição pelo autoengano, que é, talvez, a base de muitos dos contos do livro. Na verdade, fiz esse livro sem muita ex-pectativa. Eu me considero eminentemente poeta; não sou prosador. A pouca segurança que tenho, dentro da prática autoral, é no verso, mesmo assim muito pequena. Surpreendeu-me a recepção do Trinca dos traídos, o prêmio conquistado, o público e o fato de ter sido adotado para o vestibular da Fundação Getulio Vargas de São Paulo; quer dizer, foi um livro que teve boa ressonância, e acredito que uma ressonância própria da prosa, que tem mais leitores. Tudo isso me assustou porque eu não tinha muita expectativa com o Trinca dos traídos. Hoje, não tenho nenhum conto, nenhum parágrafo escrito em prosa. Algumas ideias me assombram ainda. É um projeto que talvez eu retome? Sim, um novo livro de contos ou um romance, mas tenho escrito cada vez menos. Acredito particularmente que a minha obra já está delineada e está mais ou menos pronta. Viavária obteve menção honrosa no Prêmio do MEC e promessa de edição com tiragem surpreendente; contando com a dis-tribuição gratuita nas escolas. Isso é fantástico, é um marco para mim.

Page 65: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

63

Não arriscaria dizer que Viavária é um canto do cisne, mas tenho escrito muito pouco; minha preocupação é continuar lendo, quer dizer, não está na minha preocupação continuar publicando. Não vou deixar de ser autor ou escritor porque parei de publicar. Nos últimos anos, tenho publicado somente revisões, ou seja: novas versões de velhos poemas. Mas creio que minha obra já está, por assim dizer, delineada.

Flávio Cheker. Vamos nos aprofundar um pouco nisso. É uma ques-tão de vaidade? É exaustão? Você está com 45 anos, é um menino, e está decretando o fim de carreira?Iacyr Anderson Freitas. Não, não é esse o fato. Quanto mais se lê, mais se percebe a limitação de tudo. A leitura é um teste cruel para o escritor, é um teste terrível. Tanto é assim que eu, de plano, não só retiraria da minha bibliografia muitos dos títulos dos anos 1980, como muitos poemas dos anos 1990, e assim por diante. Almejo chegar ao final da minha carreira poética em condição de ser antologiado. Que se faça uma pequena antologia, com pelo menos uma dúzia de textos que podem ser levados adiante, que possam ser lidos daqui a certo tempo. Entendo que publicar é um ato de grande responsabilidade, quando não de loucura. Não vou ficar me repetindo, escrevendo e colocando mais páginas nesse entulho de páginas que é a sociedade de hoje. Sem-pre escrevi quando o texto tinha, a meu ver, algo muito forte a dizer, quando tinha absoluta certeza de que escrevia o que fazia algum sentido para mim. Com o tempo, esse sentido vai esmaecendo. Ganhamos mais experiência, mas perdemos certas esperanças. Não quero ficar me re-petindo, esta é a questão. Quero somente publicar aquilo que não seja descartável. Quero continuar mantendo certo diálogo. Não penso que publiquei obras boas, que sejam irretocáveis, longe disso.

Fernando Fiorese. Seria importante que comentasse 2 questões: a primeira, que é uma raridade nos tempos que correm; e a outra que trata de uma característica que emerge em seus textos mais contemporanea-mente. Uma é a questão mítico-religiosa, que nesses tempos não são mui-to comuns na poesia, e a outra é a questão do humor, cuja experiência na poesia brasileira, fora os poemas-minuto de Oswald de Andrade e alguns outros raros momentos, não frequenta muito a poesia brasileira.

Page 66: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

64

Iacyr Anderson Freitas. Antes de tudo, é um prazer enorme estar aqui com meu irmão Fiorese, que acaba de chegar do lançamento de seu livro em São Paulo. Já tive notícia de que o evento foi um grande sucesso. Quanto à questão mítico-religiosa, considero-me um leitor dedicado da Bíblia – sou cristão de carteirinha e nunca escondi essa inclinação. Por outro lado, ainda me assombra certo agnosticismo, pois toda fé impõe uma aquisição, uma aquisição que se estabeleça a partir de uma determinada forma de estudo e raciocínio. A fé deve ser um sentimento que nos domine também intelectualmente. Afinal de contas, não vamos conseguir responder nunca, com facilidade, as questões essenciais da existência. Mas todo esse embate aquisitivo não abala, em nenhum sentido, a minha fé. Como leitor da Bíblia, não consigo compreender como é que uma mensagem como a que está no Novo Testamento foi utilizada de forma tão brutal pelo fanatismo religioso, para poder lograr e destruir o sentido original da filoso-fia cristã. As rixas entre protestantes e católicos são ridículas quan-do colocadas frente à mensagem original dos Evangelhos. A Bíblia me dá uma emoção fora do comum. Um dia, comentando com os meus filhos, mencionei o quanto ainda me sinto tocado pelo Eclesiastes, es-crito 2 séculos antes de Cristo, e que por mais de 2 mil anos – não só aquele livro, como também os demais textos bíblicos – foi colocado à prova por uma humanidade inteira, que estava carente de sentido. Muitas pessoas encontraram naquelas páginas conforto, inteligência, um modo de encarar a vida, certa forma de ver o mundo. Lembro-me de Isaac B. Singer, importante escritor e contista, judeu, que dizia que as grandes civilizações sempre deixaram grandes marcas arquitetôni-cas. O império romano deixou Roma, que é uma fábula, espalhando seus prodígios arquitetônicos por toda a Europa; bem como os gre-gos e os muçulmanos; o mundo egípcio legou à posteridade grandes monumentos etc. A civilização judaica deixou apenas um livro, mas esse livro funda o Ocidente: a Bíblia. Enquanto outros fizeram um trabalho de construção de muralhas, fortalezas, castelos, eles escre-veram um livro, mas um livro fabuloso. Leio a Bíblia como um livro capital; ali existem histórias geniais. Se olharmos a Bíblia através de lentes literárias, a história de José é fabulosa, a história de Abraão é

Page 67: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

65

fantástica. O Gênesis é uma das grandes elaborações míticas e imagé-ticas da humanidade. O mito da queda está por trás de quase todo mito literário. Trabalhar com esses mitos – aí estou fundindo a visão mítica com a religiosa – é trabalhar com a própria fonte da literatura, que vai estar lá na origem, colocando em foco e em obra as questões essenciais, fundantes – para voltar a Martin Heidegger. Vejo-me dia-logando muito com os mitos gregos, com os mitos religiosos, com as histórias religiosas. Como explicar para um filho o fato de que o ser humano é um ser que tem dentro de si todo um infinito, toda uma vocação para a eternidade, mas que é um ser que em sua lápide tem uma data de início e de fim? Creio que a grande resposta dada pela humanidade, a grande resposta mítica para isso, foi a expulsão do Pa-raíso; quando Deus expulsa Adão e decreta a nossa condenação maior: “Tu és pó, e ao pó voltarás”. É a história da mortalidade, é o nosso caráter mortal que está ali. Essa é a condenação do Homem, que é igual a Deus, que conheceu a árvore do bem e do mal, que provou de seu fruto, mas que, na verdade, foi condenado à finitude. As grandes histórias estão na Bíblia. Todos os Evangelhos são belíssimos; as Cartas de Paulo são fabulosas; o Livro de Jó é genial. Perder o vínculo com essa tradição, seja a dos mitos gregos, seja a dos outros mitos, é perder muito da substância cultural e afetiva da nossa história. Durante uma viagem recente ao Sul de Minas, lembrei-me do mito tupi acerca da Serra da Mantiqueira. Um mito indígena, com registro apenas oral, naturalmente, e belíssimo: o Sol se apaixona por uma mulher, uma princesa da tribo tupi, e se aproxima muito da Terra para cortejar a sua amada, calcinando tudo em volta. Tupã, preocupado com o fato de que a vida pudesse estar ameaçada naquele momento, desterra a princesa e a coloca encarcerada dentro “da maior serra do mundo”, a Serra da Mantiqueira. A princesa, detida naquele lugar sombrio, chora pela falta da luz do Sol e suas lágrimas dão origem a todos os rios. São imagens poéticas muito bonitas. Imagino que esses mitos de fundação, tão diversos no tempo e no espaço, acalentaram a vida privada de muitos povos e foram respostas a indagações existenciais de muitas pessoas. Então, a poesia tem – obrigatoriamente, até por ser uma atividade suja de vida, machucada pela vida, imersa na vida

Page 68: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

66

– que dialogar com esses mitos. Por isso eu fico tão preocupado com essa questão da autorreferencialidade levada a extremos de tortura. A poesia é um exercício intelectual que nos coloca em obra a todo momento. Em obra para a vida.

Fernando Fiorese. A sua obra foi sempre marcada por uma visão muito trágica e, nos últimos livros, acrescenta uma dose de humor. Queria que comentasse isso.Iacyr Anderson Freitas. O humor é a única forma e a única arma que temos para brincar com Deus e com os homens, para espetar um pouco a transcendência. Na verdade, a vida é trágica, em todos os sentidos. No sentido grego do termo, então, a vida humana é extrema-mente trágica. No meu caso, essa é uma das únicas armas eficazes para que eu possa dar uma alfinetada nas muitas políticas de exclusão que temos dentro da nossa sociedade; na nossa própria natureza, tão falha e tão carente de sentido; na própria incerteza que marca a nossa fé – afinal de contas, toda fé nasce de um ato de angústia. Quer dizer, a fé tem algo que a projeta, que a torna uma aposta. Se existe angústia, pode existir também o humor.

Pinho Neves. Vamos direcionar nossa conversa para o mercado edi-torial. Quero colocar uma questão nacional e uma local. Numa cidade que tem como poetas Oscar da Gama, Murilo Mendes, Affonso Roma-no de Sant’Anna e tantos outros, como vê, hoje, a questão da publica-ção em Juiz de Fora? Parece-me que Juiz de Fora vive um momento propício à poesia; o mercado editorial nacional também vive esse mo-mento, com a poesia disputando com sucesso uma significante fatia.Iacyr Anderson Freitas. Nesse caso, temos que isolar Juiz de Fora do resto do país, até por conta da Lei Murilo Mendes, que é uma lei magnífica e que deu alguns bons frutos durante o curto período em que se encontra em vigor. Temos que isolar o diagnóstico de Juiz de Fora do diagnóstico do mundo editorial por 2 motivos. Primeiro: quais eram as tiragens dos livros de poesia no final do século XIX no Brasil? A tiragem média – é claro que eram poucos títulos – era de mil a 2 mil exemplares. Atualmente, quais são as tiragens de livros de poesia no Brasil, inclusive de alguns autores mais conhecidos? De mil a 2 mil

Page 69: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

67

exemplares. Ora, só por aí já se verifica que, na verdade, não se pode sequer utilizar o termo “mercado editorial” para a poesia, porque as editoras pensam em muitos milhares de exemplares, não em mil exem-plares apenas. Poesia é um problema para se publicar e para se vender no Brasil. É muito difícil encontrar livros nas casas dos brasileiros, e livros de poesia é mais difícil ainda. Temos uma grande quantidade de editoras e uma grande quantidade de autores publicando seus livros, porém 99% desses autores pagam do próprio bolso para colocar no mundo livros que não têm distribuição alguma e, consequentemente, não chegam a lugar nenhum. Os autores são obrigados a andar com o livro debaixo do braço, vendendo de porta em porta. Nas livrarias, os títulos de poesia são expostos em lugares pouco visíveis ou de difícil acesso, “tudo porque poesia não vende, ou vende pouco”. A visão do editor é uma visão muito imediatista. Um livro, por exemplo, como o do Augusto dos Anjos, que morou em Leopoldina e está sepultado lá, chegou à enésima edição, vendendo lentamente durante um longo pe-ríodo e dando, sim, retorno financeiro ao editor envolvido, assim como Carlos Drummond, Fernando Pessoa e Vinicius de Moraes. É possível que se criem políticas de incentivo à leitura que passem por esses au-tores, porque são autores que facilitam o acesso inicial do leitor a algo tão difícil como a leitura de poesia, às vezes. Principalmente no Brasil, onde o aprendizado da linguagem é complicado. Boa parte dos estu-dantes universitários sai das universidades com problemas básicos de redação; não sabem escrever e ainda erram bastante quando escrevem. Nesse universo onde as pessoas se formam, mas não sabem diferenciar sujeito de predicado, é realmente complicado estimular a leitura. Mas pode ser feito. Hoje, no Brasil, tecnicamente, com base nos números, não podemos falar na existência de um mercado editorial para a poe-sia. Tirante essas vendas ocasionais, de alguns autores clássicos ou bem divulgados, as tiragens de livros de poesia são muito pequenas; a distri-buição é restrita e, quando se percorre as livrarias do país, verifica-se que são poucas as que têm seção de poesia. Quando isso acontece, tais livrarias situam-se em grandes cidades. No Interior, nem pensar. Na verdade, os livros de poesia não circulam, não chegam a boa parte da população brasileira. Como as tiragens são pequenas, ainda tem um problema adicional: tiragens grandes possibilitam preço de capa menor;

Page 70: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

68

tiragens pequenas, não. Então, além da dificuldade de leitura, do des-preparo de muitas escolas básicas e do próprio professor em trabalhar com poesia, ainda temos o fato de que os livros de poesia são os mais caros. Realmente, essa fórmula não fecha; isso é muito complicado.

William Redmond. Como está a situação da sua poesia fora do Brasil? Em outras línguas e em português?

Fernando Fiorese. É importante colocar aqui a questão da sonori-dade. Queria que comentasse sobre a tradução de sua poesia para outra língua em relação à sonoridade.Iacyr Anderson Freitas. Eu mesmo já traduzi alguns poetas ita-lianos e alguns poetas de língua espanhola. Essa é mais uma das minhas contradições, porque, no fundo, acho que a poesia é intraduzível, e vou explicar a razão. A poesia está muito ligada ao horizonte acústico e semântico da própria língua em que ela foi criada. No fundo, o ele-mento principal de alguns poemas são os sons e a tensão que esses sons acabam estabelecendo com o veio semântico das palavras; esse clássico conflito entre som e sentido. Cada língua opta por certos sons. A língua portuguesa é sibilante por natureza, e esse é um traço que os linguistas reconhecem à distância. Numa língua dura como o alemão, por exem-plo, imaginem como esse conflito se dá. Vamos pegar uma palavra clara em português: “saudade”. Como se leva isso para outra língua, e a carga que isso tem? Não só a palavra, mas a carga que esse som tem? A poe-sia é absolutamente intraduzível, essa é uma questão. O que pode ser feito? Pode ser feita uma recriação na outra língua, que se aproxime talvez do sentido que o poeta originalmente quis realçar. Mesmo uma feliz tradução do T. S. Eliot para a nossa língua, como a que foi realizada pelo poeta Ivan Junqueira, por exemplo, possui lá suas peculiaridades e seus dilemas. Só de se falar de terra devastada, terra desolada, outros sentidos assombram. A poesia é intraduzível, é difícil lidar com isso. Podemos citar o caso de Arthur Rimbaud: era um poeta que escolhia as palavras pelos sons; a produção final de Rimbaud é muito sonora. Aquele que o traduzir pelo sentido original apenas, sem tentar obter essa consonância sonora do verso, fez tudo, menos Rimbaud. Temos,

Page 71: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

69

aqui no Brasil, gente que o traduz dessa forma. Por outro lado, o Ivo Barroso, também poeta, fez um trabalho de tradução fabuloso e dificíli-mo da lírica rimbaudiana. É bastante complicado lidar com tradução de poesia, porque são muitos os fatores que estão ali, por trás do processo de versão e de diálogo estético: o horizonte cultural de cada palavra; o horizonte acústico da língua adotada; a referência a fatores particu-lares; expressões idiomáticas que são totalmente estranhas em outra língua ou que soam mal quando traduzidas. Um poeta espanhol, Fran-cisco Álvarez Velasco, que tem um fabuloso portal de poesia, traduziu inteiramente o Terra além, que é o primeiro livro de A soleira e o século. Na minha revisão, meus embates com ele – conheço espanhol, mas de forma bastante tosca – foram de cartas e mais cartas, escolhendo cada palavra e, ao final, tive que lavar as mãos porque é ele o dono do texto lá na Espanha, porque ele é o poeta que vai assinar a tradução e ele é quem tem que saber se aquilo funciona na sua língua. Agora, quando traduzo um poeta espanhol, eu é que tenho que saber como funcionam em por-tuguês determinadas expressões ou palavras. O tradutor, na verdade, coloca em suas traduções o modo como lê aqueles poemas, pensando no diálogo das línguas envolvidas. Fiz uma avaliação das traduções de meus poemas nas línguas que conheço – tem poemas meus em línguas que me são totalmente estranhas, quanto a essas, nada tenho a dizer, é claro. Recebi, há tempos, poemas meus traduzidos para o maltês, não sei nem que poema, saiu numa página linda de um jornal chamado Focus, da Ilha de Malta. Descobri que o maltês teve muita influência acústi-ca do italiano, mas o código escrito não pertence ao universo latino. Enfim, descobri essa informação, mas não descobri qual foi o poema de minha lavra que foi traduzido para o maltês... Bem, das traduções nas línguas que conheço, algumas me aborreceram bastante, porque os tradutores olharam estritamente o sentido e, quando leio o verso em voz alta, sinto que está errado, que algo está faltando. Tem confronto silábico, algumas traduções estão incorretas etc. Mas eu não posso afir-mar nada disso com autoridade, pois meu conhecimento de tais línguas não me permite tal ousadia. Então, decidi o seguinte: parei de ler o que traduzem. Quando consigo conversar com o tradutor, interagir, como foi o caso do meu diálogo com o poeta argentino Carlos Vitale, com a nossa embaixadora e embaixatriz Prisca Agustoni, com a escritora Vera

Page 72: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

70

Lúcia de Oliveira, que é professora de literatura brasileira na Itália, e com o próprio Francisco Álvarez Velasco ou com o Xosé Lois García, os resultados me agradaram muito, porque houve esse debate e fomos escolhendo cada palavra. Algumas das traduções que não passaram por esse processo chegam a ser lamentáveis, a meu ver.

Fernando Fiorese. A cena literária brasileira, hoje, está tensiona-da, no seu nível propriamente político, de arregimentação de ideias, de divulgação dessas ideias entre os herdeiros, ainda que indiretos, dos concretos e algumas sobrevivências da poesia marginal, ainda que tra-vestida de outros nomes. Vejo que já se incompatibilizou em diversas oportunidades com esses 2 grupos que, de certa forma, controlam os veículos, editam as revistas. Gostaria que falasse um pouco dessa cena e desse tipo de dominância, até mesmo do controle da divulgação de ideias sobre poesia no Brasil.Iacyr Anderson Freitas. Realmente, me incompatibilizei com esses 2 grupos: um domina a mídia numa das maiores cidades do mun-do e o outro dá as cartas noutra megalópole. Não posso afirmar com segurança, mas tudo indica que, por conta disso, minha obra circula mal nesses 2 centros editoriais. Desde a Semana de Arte Moderna [1922], pelo menos, os escritores perceberam a importância dos segundos ca-dernos e, portanto, a política literária passa por essas publicações. A grande diferença histórica, agora, é que o Movimento Modernista Bra-sileiro daquele período tinha uma referência de oposição e de combate muito forte: a literatura acadêmica e parnasiana do início do século XX. Logo, o mote da transgressão cabia muito bem e o Modernismo con-tava com uma geração nascente que foi brilhante – Mário de Andrade, um senhor intelectual; os poetas que participaram da Semana de 1922, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, todos eles encastelados na mídia, mas com uma preocupação muito grande em construir uma obra de qualidade. O que se percebe hoje – e isso se aplica a boa parte dos escritores, mas não a todos, por isso é bom que se coloque essa ressalva – é que a literatura virou uma “masturbação de divã”. E a poesia, princi-palmente. É uma coisa muito chata, as pessoas querem escrever sem ter o que dizer. Vemos aqueles textinhos pequenos que não querem dizer nada. Vamos pensar sobre aquilo e aquilo não diz efetivamente nada. Te-

Page 73: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

71

nho uma resistência muito grande a tudo isso. Penso que o concretismo renovou, de certa forma, a poesia brasileira dos anos 1950 e favoreceu o surgimento de um poeta de extrema qualidade, que é o Augusto de Campos, mas prestou também um desserviço muito grande ao alardear aquela falácia de “fim do verso”, de poesia iconográfica, produzindo textos que eram poeticamente fracos e que também não funcionavam plasticamente na página. Nada daquilo me seduziu, nunca achei que fosse válido trazer para o texto poético essa contribuição meramente visual, sem qualquer ligação fônica ou acústica do texto. Por outro lado, uma parte da assim chamada poesia marginal (e esse nome é péssimo) retomou a Semana de Arte Moderna de 1922 por um viés complica-do. Adotou a festa e colocou o rigor de lado. Não percebeu sequer o momento histórico em que se encontrava inserida. Alguns desavisados ainda lutavam contra certo academicismo que já estava morto no Brasil há mais de 50 anos. Até hoje encontramos pessoas falando em trans-gressão, prosador de transgressão etc.. Transgressão de quê? Em 1922, as academias ainda dominavam o ambiente literário. Nos anos 1970, a conversa é outra. O pior é que ainda hoje aparecem profetas literários usando esse mote caduco de transgressão e obtendo grande espaço nos segundos cadernos da vida.

Infelizmente, é muito difícil encontrar espaços de divulgação, em determinados locais, estando fora desses grupelhos. Tento manter certa independência, inclusive crítica, em relação a essas “panelinhas” lite-rárias. O ônus dessa postura é natural, mas existe o bônus, grandioso, de não pactuar com a mediocridade. Há pouco, numa entrevista, me perguntaram se a minha volta para o metro clássico era uma volta aca-dêmica. Alguns jornalistas vinculados às editorias de cultura de grandes jornais deveriam conhecer um pouco da área em que atuam. Tais pes-soas não sabem nada e a gente tem de fazer um esforço enorme para não sair do sério nas entrevistas. O melhor, então, é construir a própria obra, mineiramente, de forma robusta e pensada, como, aliás, estão fazendo o Fiorese e o Edimilson. Algumas pessoas acham que estar na internet, no blog da vez, é a grande coisa, ou estar na página do jornal da vez, que vai embrulhar a carne de amanhã, é o máximo; mas não, literatura se faz através dos livros e da produção textual de qualidade,

Page 74: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

72

da prática diária, do embate com as palavras. A festinha literária não vai ficar para contar a história.

Fernando Fiorese. Desdobrando isso e evitando qualquer fato de caráter cabotino, portanto tirando Juiz de Fora, quais os poetas que destacaria hoje e que realizam uma obra para além dessas questões ad-vindas desses grupos de controle?Iacyr Anderson Freitas. Próximo, e muito ligado a nós, é o Eus-táquio Gorgone de Oliveira, um poeta de qualidade. Gosto muito de sua obra. Infelizmente, na mesma linha do Nilo Aparecida Pinto, ou seja, muito quietinho, muito na dele, e, talvez, sua obra passe em bran-co em relação à divulgação; temos que nos debruçar sobre sua obra para trazê-lo e resgatar seu fabuloso e maravilhoso trabalho. Ruy Espinheira Filho é um fenomenal poeta. Roberval Pereyr, professor da Universi-dade Estadual de Feira de Santana, é também um poeta fabuloso. Fabrí-cio Carpinejar, que tem uma divulgação ótima, é um excelente poeta. Donizete Galvão. Paulo Henriques Britto, um poeta fantástico, de um humor agudo e inteligente. Alexei Bueno, autor de poemas geniais. O Brasil continua com uma safra muito rica, mas parte das pessoas que falei está fora, totalmente fora dos âmbitos de divulgação. Agora, não tenho dúvida de que o rolo compressor passará sobre os segundos ca-dernos e apenas as obras de qualidade ficarão.

Leila Barbosa. Em 1981, apareceu na Universidade Federal de Juiz de Fora um garoto com um livro – Certa poesia – debaixo do braço, me pedindo para fazer uma apreciação. Fiz a apreciação, e eu também, como não sou minha sobrevivente nem minha contemporânea, quero, além de referendar, refazer a minha apreciação. Antes, era o seguinte: “Ele chegou aflito, pedindo uma apreciação sobre a poesia que jorra de seu corpo jovem. Mas poesia não tem preço, brota do confronto de sua vida tenra com o mundo maduro, às vezes podre. Exprime sua emo-ção, sua perplexidade, sua ânsia de vida, sua necessidade de consertar o mundo. Encerra um ideal, o ideal do menino Iacyr, que luta, que sofre, que vibra, que chora, que se alegra, que se decepciona, que espera, que sobrevive em seus ingênuos e sábios versos”. Hoje, eu diria assim: “Ele chegou tranquilo para ter uma apreciação sobre a poesia que jorra de

Page 75: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

73

seu corpo mais maduro. Mas poesia não tem preço, brota do confronto de sua vida com o mundo, às vezes podre. Exprime sua emoção, sua perplexidade, sua experiência de vida, sua necessidade de consertar o mundo. Encerra um ideal. O ideal do homem Iacyr, que luta, que sofre, que vibra, que chora, que ri, que se alegra, que se decepciona, que es-pera, que sobrevive em seus, hoje, sábios e consagrados versos”.Iacyr Anderson Freitas. A sorte é que passei pelo meu cardiolo-gista recentemente e meu coração está bem. Pois só de ver o livro que a Leila trouxe meu coração já dispara. Esse é o tal que eu expurguei da minha bibliografia. Uma obra que escrevi quando tinha 16 anos de idade e que cometi o erro de publicar em 1981. Imaginem como eu me sin-to agora, depois de tanto tempo, com essa homenagem da Leila, minha grande e inesquecível professora. É uma felicidade enorme e inenarrável esse encontro, por tudo que a estima representa, depois de ter começado a trilhar o caminho literário com esse grande equívoco que foi o Certa poesia. Uma boa noite a todos, foi uma felicidade enorme estar com vo-cês. Espero não tê-los aborrecido muito e que daqui a 25 anos nos encon-tremos novamente para falar mais sobre essas e outras coisas.

Entrevista concedida ao projeto Diálogos Abertos, em 25 de novembro de 2008, no Museu de Arte Murilo Mendes. Entrevistadores: Anderson Pires; Edimilson de Almeida Pereira; Fernando Fiorese; Flávio Cheker; José Alberto Pinho Neves; Leila Barbosa; Leonardo Toledo; William Valentine Redmond.

Page 76: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 77: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Juracy de Azevedo Neves nasceu em 15 de junho de 1932, em Lima Duarte, Minas Gerais. Aos 12 anos de idade se ra-dicou em Juiz de Fora, onde, ao longo de sua trajetória, se destacou como médico, professor e administrador. Filho de José Antunes Neves e Acidália de Azevedo Neves, herdou do pai, exemplo que cultivou vida afora, seu caráter empreen-dedor. A partir de sua visão antropológica, se declara pola-rizado pela historicidade e pela transcendência, consideran-do que todo homem é um produto genético e cultural. Sua formação intelectual teve bases sólidas no curso secundário da Academia de Comércio e na primeira turma da Facul-dade de Medicina que, desde 1961, integra a Universidade Federal de Juiz de Fora. A docência e a militância cultural e empresarial se destacam entre suas numerosas e complexas atividades. Curiosamente, seu negócio inicial foi um bote-quim, aberto ainda na adolescência. Como acadêmico de Medicina, fundou o primeiro curso preparatório para vesti-bular da cidade, o Barros Terra. Foi ainda o responsável por empreendimentos de vulto, como o Instituto Oncológico e o Hospital São Marcos. Administrador nato, sua marca está em investimentos como Águas São Luiz, Artefatos de Ci-mento Caiçaras, Construtora Solar, Minas Miner, Constru-tora Delta, Comar, Solar Promoções [Teatro Solar] e Solar S.A. Exerceu a provedoria da Santa Casa de Misericórdia por 9 anos, época em que restabeleceu as finanças da insti-tuição, graças a iniciativas como o plano de saúde PLASC e o Cemitério Parque da Saudade, sendo o responsável pela restauração da Capela Nosso Senhor dos Passos. No setor de comunicações, adquiriu a emissora PRB-3, Rádio Solar AM, atual CBN, implantou depois a Solar FM, e fundou os jornais

JUR

ACY

NEV

ES

Page 78: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Tribuna de Minas e Tribuna da Tarde, este último criado e extinto no de-correr dos anos 1980. Sob sua batuta, a Esdeva Empresa Gráfica SA se tornou uma das maiores empresas do ramo na América do Sul.

Sobre Juracy Azevedo Neves, o sociólogo, professor e jornalista Ismair Zaghetto, integrante do Comitê de Ética da UFJF, escreveu: “Defini-lo é tarefa complexa, mas, igualmente, exercício prazeroso, justamente pela possibilidade ampla – eu diria, sem exagero, infinita – de se pinçar parce-las, frações, de seus inúmeros talentos. A cidade o conhece mais como o grande empreendedor. Como o homem que trouxe pioneiramente para Juiz de Fora meios do Sistema Financeiro da Habitação, o que permitiu acesso à moradia própria a milhares de famílias de recursos modestos. Ainda no campo do pioneirismo e da inovação, lembram o médico que implantou na região a tecnologia da Medicina Nuclear. Não esquecem, claro, o empresário da indústria gráfica, que deu à Esdeva a dimensão na-cional que ela possui e que edita um jornal do porte da Tribuna de Minas. Ah...o terreno da comunicação... onde chegamos às Rádios Solar AM e FM. E, por falar em cultura, que tal o Teatro Solar, com todas as suas possibili-dades dramatúrgicas? Acerta, igualmente, quem o vê como o cidadão que investiu seu tempo e talento na direção da Santa Casa de Misericórdia, conferindo-lhe padrões técnicos avançados e garantindo-lhe meios per-manentes de subsistência e inovação através do Plasc”.

E acrescenta Ismair Zaghetto, que, em determinado momento de sua formação acadêmica, chegou a ser seu aluno: “Bem, o empreendedor salta aos olhos, mas, eu gosto de ver em Juracy Neves o grande humanista, o no-tável filósofo e professor universitário que construiu na cátedra antropoló-gica da saudosa Fafile e depois na Universidade Federal momentos de puro prazer estético para centenas de alunos (eu fui um desses privilegiados), que passaram a entender melhor os desafios do mundo. Impossível alguém mais bem informado. Conversar com o mestre é aprender sempre. Enfim, diante de talentos tão múltiplos, é natural que escolham perfis ou simples-mente o vejam deste ou daquele prisma. Em um fato, no entanto, acredito que todos concordam: Juracy fez do trabalho um projeto de vida”.

Page 79: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

77

José Alberto Pinho Neves. Gostaria de ressaltar a imensa sa-tisfação que a Universidade Federal de Juiz de Fora tem em colher o depoimento do doutor Juracy de Azevedo Neves, que fez parte da insti-tuição, tanto como estudante quanto como professor do Departamento de Ciências Sociais. Para iniciar essa rodada de perguntas, retomo a me-mória de Murilo Mendes, no livro a Idade do serrote, em que cita: “Juiz de Fora, naquele tempo, era um trecho de terra cercado de pianos por todos os lados”. Daí vem minha questão: como o senhor vê a cidade, hoje, quase 100 anos depois dessa visão do poeta?Juracy Neves. A visão de Murilo Mendes não se aplica mais. Juiz de Fora sofreu muitas transformações e teve um processo inicial de desenvol-vimento por grupos familiares, em que se deu uma dinâmica de progres-so. Depois, não houve continuidade desse processo industrial e a cidade passou por um período, não digo de decadência, mas de certa paralisia. Em seguida, retomou normalmente suas atividades, e, hoje, é um grande centro de prestação de serviços, com uma estrutura educacional de altís-sima qualidade – a Universidade Federal de Juiz de Fora, por exemplo, ocupa posição de destaque no cenário nacional –. Temos boa estrutura hospitalar e também bom comércio. O que acontece realmente é que, pelo fato de a região ser muito pobre e o valor agregado ser muito baixo, o volume de dinheiro circulante é muito pequeno em relação à grandeza da cidade. É preciso que tenha alguém que entenda o problema e comece a pensar o crescimento econômico, social e político. A solução para Juiz de Fora tem que passar pelo desenvolvimento da região. Não adianta sim-plesmente querer desenvolver o município, trazendo indústrias, pois isso incharia a cidade e levaria a uma queda da qualidade de vida. O prefeito de Juiz de Fora tem que ser o prefeito da Zona da Mata, tem que liderar o desenvolvimento da região para beneficiar a cidade. Vejamos o caso de Belo Horizonte: onde está sua pujança? Está nas cidades do seu entorno: Contagem, Betim etc.. Juiz de Fora tem que ser uma cidade da Zona da Mata, com bases para prestar um serviço de altíssima qualidade. Durante as campanhas eleitorais, ouvimos que é preciso trazer indústrias, inves-timentos. No entanto, se isso acontecer sem a devida estrutura, vai ser o caos. É assim que começam as favelas. Então, a cidade de Murilo Mendes, hoje, é outra e está passando por um processo de transformação. É preci-so ter sensibilidade para perceber isso.

Page 80: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

78

Paulo César Magella. Antes de voltarmos à Juiz de Fora atual, vamos falar um pouco de sua chegada à cidade, aos 12 anos, ao tempo em que cursou Medicina, quando fundou o Barros Terra. O senhor ima-ginou que chegaria ao patamar que vislumbra atualmente? Juracy Neves. Para responder à sua pergunta tenho que voltar à minha origem. Nasci em um distrito de Lima Duarte, Esmeril, e logo mudei para Lima Duarte propriamente. Minha família se estabeleceu em um local chamado Beira do Rio, à margem do Rio do Peixe, até que pudesse ir para um lugar melhor. Então, durante 11 anos, vivi em Lima Duarte. Meu pai era um empreendedor nato, um homem que tinha uma visão de crescimento avançada para a época. Era realmente uma pessoa inovadora. Lembro que ainda não existiam frangos de granja, então ele criou um sistema de comprar os frangos da região, que guar-dava em um galinheiro. Dali, colocava tudo em um engradado e mandava para Juiz de Fora e para o Rio de Janeiro. Era um “exportador de aves”, de frangos caipiras. Naquela ocasião, o trem saía de Lima Duarte para Juiz de Fora às 7h30min, o que nos obrigava a levantar às 5 horas. Eu tinha entre 5 e 6 anos e já o ajudava a pegar as galinhas e colocá-las dentro dos engradados para despachar. Essa era a nossa luta. Quando ele já estava em posição de dar um salto, de melhorar de vida, a morte roubou-lhe essa chance aos 37 anos. Meu pai não teve tempo de proje-tar tudo o que queria e sabemos que, muitas vezes, o sucesso depende da longevidade. Se ele tivesse vivido mais, teria caminhado mais. Com isso, infelizmente, tudo mudou. Aos 12 anos, vim para Juiz de Fora e comecei uma nova vida. Aquele menino pobre de Lima Duarte chegou aqui com uma vontade imensa de crescer, seguindo o espírito do pai.

Ainda nos tempos em que morava em Lima Duarte, lembro-me de um fato interessante: em plena Segunda Guerra Mundial, com a campanha de recrutamento para a Força Expedicionária Brasileira (FEB), um médico fez um discurso que me tocou muito, dizendo: “Se preciso for, largarei o bisturi para pegar na baioneta!”. Isso fez nascer em mim a intenção de ser médico. Ali, nasceu a vocação e vim para Juiz de Fora com o propósito de estudar Medicina. Fiz curso secundário na Academia de Comércio, sempre fiel a esse espírito: “Tenho que ser médico!”. Em toda a minha vida, trabalhei como empregado apenas durante 3 anos e 3 meses. Foi a única época em que tive carteira assinada. Daí, abri meu botequim, e

Page 81: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

79

entrei para a faculdade de Medicina, onde criamos um curso preparatório para vestibular. Era algo inovador, uma vez que éramos a primeira turma de Medicina de Juiz de Fora e tínhamos que preparar os candidatos para a segunda turma. Esse foi o primeiro cursinho pré-vestibular da cidade. É importante observar que a preparação para o vestibular é uma deficiên-cia do ensino médio no Brasil desde aquela época, 1953, realidade que permanece até hoje, o que é lamentável. Então, para ser um médico me tornei um professor. Era como eu me mantinha. No quarto ano de facul-dade, comecei a trabalhar na enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, com o doutor João Ribeiro Villaça, uma figura extraordinária. Doutor Villaça era “O” homem da medicina e da cirurgia em Juiz de Fora. Assim que formei, em 1958, me transformei em um de seus assistentes. Eram vários e eu ficava atrás do que era então o quarto ou quinto assistente, até que fui crescendo, obedecendo a um sistema alemão de hierarquia que existia na época. Fui caminhando nessa classificação até chegar a segundo assistente. O primeiro era seu filho [Luiz de Assis Villaça]. Doutor Villaça era professor de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), e como sabia que eu também dava aulas, sugeriu: “Vou me aposentar, você não quer me substituir lá?”. E se prontificou a me dar a orientação ne-cessária. Então, me transformei em professor de Antropologia na Fafile, ministrando aulas também na Medicina, ambas faculdades particulares, até que foram encampadas pela Universidade Federal de Juiz de Fora à época de sua fundação, em 1961. Quando a Universidade foi criada, fui parar no Instituto de Ciências e Letras, que tinha como diretor o profes-sor Afonso Ribeiro da Cruz. Mas como eu tinha muitos outros afazeres, ser professor se transformou em um hobby cultural, e acabei deixando de dar aulas na Medicina, continuando apenas com a Antropologia. Por que continuei com a antropologia? Porque foi o que realmente mudou mi-nha vida, as minhas concepções, a minha ideologia, as minhas convicções. A antropologia me transformou, me fez passar por uma reciclagem. Eu era um garoto católico, tinha uma mãe extremamente religiosa. A partir da formação antropológica, me rebelei contra tudo isso. Minha crença na imortalidade era céu ou inferno; passei a acreditar que apenas a obra eterniza o homem. Então, a antropologia mudou minha vida, foi uma re-volução no sentido cultural; passei a ler mais, a me dedicar mais. Foi uma grande transformação interior.

Page 82: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

80

Paulo César Magella. Comparando o jovem de hoje com o da sua época, o senhor diria que ficou mais difícil ou mais fácil sair de Lima Duarte e vencer em Juiz de Fora? Juracy Neves. Não existe mais fácil ou mais difícil. Exemplifico com um pensamento do Afonso Ribeiro da Cruz com o qual concordo plenamente: “O sucesso depende, primeiro, da oportunidade, segun-do, do talento, terceiro, da coragem”. Oportunidade aparece para to-dos, mas é preciso ter talento para saber aproveitá-la e coragem para embarcar. Sou um homem que nunca perdeu uma oportunidade. Fui professor de Antropologia sem nunca ter estudado a matéria, mas vi a chance, testei o talento e segui sem medo. O difícil é para quem não quer enfrentar. Se houver coragem, o que é difícil passa a ser fácil. Pos-so dizer que, antigamente, tínhamos que criar a oportunidade; hoje, ela aparece para todos, mas se você não tiver a capacidade de aproveitá-la não adianta, ela simplesmente passa. Garanto que todos os que aqui estão já tiveram uma oportunidade na vida. Ela aparece a toda hora... Mas, repito, nada acontece sem talento e coragem.

Afonso Cruz. Com base em seus estudos na Academia de Comér-cio, com os padres alemães, poderia sintetizar quais foram as marcas principais que esses religiosos educadores imprimiram, se imprimiram, na sua formação?Juracy Neves. Na Academia, passei por 2 fases importantes: pri-meiro, a formação religiosa solidificada no sistema cristão – posso até falar em um cristão ateu, o que parece um paradoxo, mas sou cristão e esse cristianismo foi consolidado na Academia –. Apesar de minha mãe ser extremamente católica, essa solidificação se deu, de fato, pelo convívio com os padres alemães, que transmitiam a sabedoria da men-sagem de Jesus Cristo. Um padre em especial, o padre Carlos, que era professor de química e me permitiu preparar aulas práticas em seu la-boratório, teve uma grande influência sobre mim, tanto que, quando ele foi embora, eu o substituí. Então, no primeiro ano de Medicina, eu já lecionava química na Academia. Fui um dos professores mais jovens da Academia de Comércio. Um detalhe interessante: o ambiente era muito sério, formal, e fui obrigado a dar aulas de terno e gravata, o que para mim era um suplício. Não suporto terno e gravata. Foi a época em

Page 83: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

81

que trabalhei de carteira assinada. O diretor era o padre Pimenta, que cedeu uma sala para que fundássemos o curso Barros Terra. Minha pas-sagem pela Academia foi importantíssima e enriquecedora em vários sentidos: o de formação cristã, o de aprendizado em química, o de ser professor, o de nascimento do Barros Terra.

Shirley Torres. Gostaria de dizer que o professor Juracy Neves, com seu espírito empreendedor, já forneceu a resposta à pergunta que eu iria fazer sobre o que despertou seu interesse pela antropologia, além da medicina, 2 áreas aparentemente sem grandes conexões. Ain-da assim, talvez pudesse esmiuçar a questão em torno de sua mudança interior, porque acredito que as transformações mais profundas possam ter outra fonte.Juracy Neves. Naquela ocasião, havia divisão entre antropologia física e antropologia cultural. Na Fafile, fui professor de antropologia fí-sica, porque eu já tinha alguns conhecimentos de antropométrica li-gados à medicina, à evolução do homem. Depois que a Universidade Federal de Juiz de Fora encampou a Fafile, acabou essa divisão e a matéria passou a ser antropologia, abrangendo a física e a cultura. Isso me fez buscar um aprofundamento sobre a evolução do homem. Sou extremamente evolucionista e os estudos atuais permitem, como no caso do DNA, uma investigação para longe do sobrenatural, entrando cada vez mais na ciência, o que leva a uma visão mais natural do mun-do. O fato é que todo fenômeno é sobrenatural até que tenha uma explicação científica; mas que é natural, é. Então, a evolução engloba biologia, psicologia, entre tantos outros elementos, a partir dos quais fui me transformando. O fato de ser professor foi o estímulo para o estudo contínuo, para estar sempre em dia com as novas informações. Hoje, a internet é uma fonte de consulta, mas, na época, tínhamos que ter conhecimento mesmo. Aprendíamos memorizando e desen-volvendo o pensamento. Quem não memoriza não pensa e esse é o defeito da sociedade atual: uma sociedade digital rica em informação e pobre em conhecimento. Ninguém memoriza mais nada, o com-putador já tem tudo prontinho. Antigamente, precisávamos estudar para modificar, mas posso dizer que foi um processo de transforma-ção muito importante.

Page 84: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

82

Afonso Cruz. Sua trajetória vai do professor médico ao homem de negócios, com uma agenda de atividades muito diversificadas. Gosta-ria de abordar o Juracy Neves empreendedor. O senhor mesmo diz, nas suas constantes afirmações, que o homem sobrevive e é eterno por meio da obra que constrói. Minha pergunta passa por esse caminho, a fim de deixar registrados seus feitos. O senhor saiu da Medicina, entrou no setor imobiliário, ingressou na comunicação, sobre a qual gostaria que nos falasse um pouco. Em 1980, o senhor se transformou no acio-nista majoritário da Rádio Sociedade de Juiz de Fora, a PRB-3. O que o levou a entrar no mercado de comunicação eletrônica e depois no de comunicação impressa, em 1981, criando o jornal Tribuna de Minas?Juracy Neves. Vou ter que contar uma história, voltando um pou-quinho no tempo: no final dos anos 1960, eu, que já era cirurgião, e meu sócio [o médico Olamir Rossini] verificamos em um estudo que Juiz de Fora não dispunha de tratamento de combate ao câncer. Tudo se resumia em operar o paciente. Então, desenvolvemos o projeto de instalar na cidade a primeira bomba de cobalto, elemento usado na ra-dioterapia. Daí nasceu a Instituto Oncológico, uma necessidade e tam-bém uma oportunidade amadurecida para dar origem a um setor de oncologia. Passei a viver do trabalho no Instituto Oncológico. Em pa-ralelo, um grande amigo, o psiquiatra José Carlos Barbosa, concordou que deveríamos criar o Hospital São Marcos. Como médico cirurgião, também tive uma experiência administrativa no Pronto Socorro, onde fui secretário de Saúde do prefeito Adhemar Rezende de Andrade. As-sim, entrei para o ramo hospitalar.

No setor imobiliário, nos anos 1970, aconteceu o seguinte: um re-presentante do Banco Nacional de Habitação (BNH) procurou todas as construtoras de Juiz de Fora para lançar seu primeiro empreendimento em Juiz de Fora, mas todas as firmas da época, como a Aguiar Ganimi Villela e a JJ Engenheiros, rejeitaram a proposta. Então, o representante do BNH foi ao Instituto Oncológico e me explicou o projeto. Chamei um sócio formado em engenharia [o engenheiro Fernando Alencar], montamos uma firma e lançamos nosso primeiro empreendimento, o Solar Júpiter, com 99 apartamentos na avenida Rio Branco. Foi como entrei no ramo da construção civil e não parei mais. Construí cerca de 6 mil unidades em Juiz de Fora. Era o auge da construção civil. Como

Page 85: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

83

nenhum de meus 4 filhos [André, Marcos, Márcia e Suzana] quis estu-dar medicina, comecei a deixar de lado a parte hospitalar. Pensei que, se não houvesse, por parte de meus filhos, um interesse pela medicina, não haveria razão de deixar um hospital. Então, fui me afastando des-se tipo de empreendimento, até que pensei, graças novamente à an-tropologia, àquele espírito de comunicação e transcendência: “Tenho que entrar no setor de comunicação, porque só através dela é possível registrar a história!”. E abracei a oportunidade de comprar a Rádio So-ciedade, a PRB-3, que vinha de uma briga entre Assis Chateaubriand e os Diários Associados. Comprei a parte de ambos. Adquiri primeiro a rádio [1980], depois veio a ideia de fundar um jornal. Naquela ocasião, eu já sabia que jornal era um péssimo investimento, por isso comprei a gráfica da Academia de Comércio, a Esdeva, que imprimia o Lar Católi-co. Assim nasceu o jornal dentro da gráfica, já com a consciência de que teria que haver um subsídio para o jornal; no caso, a impressão gráfica. Tudo que fiz foi sempre naquela linha que abordei aqui: “Oportunidade, talento e coragem!”, exemplo que todos devem seguir. O sucesso é isso e depende de cada um, embora outros méritos entrem na balança.

Afonso Cruz. Era esperado que a Esdeva se transformasse no gran-dioso parque gráfico que é hoje? Juracy Neves. Não há como fazer uma previsão desse tipo. Sim-plesmente há a oportunidade, e o risco está sempre implícito. Estou em Juiz de Fora por uma circunstância da vida, que inclui o enraizamento a partir da formação familiar e cultural. Na verdade, a Esdeva, hoje, deveria estar no Rio de Janeiro ou em São Paulo e poderia ser 2 vezes maior. Mas, ao mesmo tempo que a cidade é um limitador, é também uma vantagem em função de sua boa posição geográfica, permitindo o escoamento dos produtos para os grandes centros.

Cesar Romero. A sua vitoriosa carreira profissional revelou, pa-ralelamente, um homem preocupado com a vida cultural da cidade, a ponto de construir o Teatro Solar. Por que uma iniciativa dessa magni-tude não teve seguidores?Juracy Neves. O Teatro Solar nasceu de uma forma interessante: eu, lendo O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, atentei para a citação de

Page 86: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

84

que o homem nasce com todas as vocações dentro de si e, aos poucos, as vai matando: mata o médico, mata o engenheiro, mata o professor, mata o artista e, assim, alguns chegam com nada no final da vida. Sempre me vi como um ator frustrado. Não tive chance de me dedicar à arte cênica. E tinha isso dentro de mim: “Já que não posso ser um ator, vou criar um espaço cênico!”. Aí nasceu o Teatro Solar em um prédio que construímos. Só que, ao longo do tempo, constatamos não ser possível explorar toda a sua potencialidade. A concorrência é um pouco difícil, porque de um lado há a iniciativa privada e de outro a pública, na Uni-versidade, no Pró-Música, na Academia, com isenção de impostos. No caso do teatro privado, a tributação gera a impossibilidade de explorar todas as suas possibilidades. Com isso, optamos por só alugar o espaço. Aquela parte de explorar o teatro acabou, é inviável por 2 razões: pri-meira, Juiz de Fora não vai ao teatro – isso é item 1 –, a frequência é baixíssima; e, segundo, a alta tributação. Mas o espaço está lá.

Afonso Cruz. Gostaria de perguntar sobre um problema que, de certo modo, passamos juntos, à época em que o senhor foi provedor da Santa Casa de Misericórdia, cargo que ocupou por 9 anos. Seria impor-tante que nos contasse a história sobre como foi chamado para assumir aquele posto para salvar uma instituição falida, colocando-a no patamar dos melhores hospitais do país. À época, comentou-se, equivocadamen-te, que essa gestão teria acabado com a chancela de “misericórdia” na instituição. Qual seria, hoje [2009], a sua solução para a Santa Casa de Juiz de Fora, que parece se encontrar na situação precária de antes?Juracy Neves. a Santa Casa se encontrava em uma situação elemen-tar e recebi o convite para assumir a provedoria. Como eu era consi-derado, em Juiz de Fora, um empreendedor que se preocupava só em ganhar dinheiro, quis devolver à sociedade local aquilo que ganhei, as-sumindo a Santa Casa com a proposta de transformá-la em um grande hospital. Foi com esse espírito que entrei para a Santa Casa. Não tinha interesse em nada, era puramente um objetivo humanitário, pois acre-dito na obrigação de contribuir para o social independente de ser ou não empresário. Na época em que assumi a provedoria, a Santa Casa era uma instituição de caridade. Originalmente, todas as Santas Casas tinham como objetivo atender ao indigente. Havia 3 categorias de doentes: os

Page 87: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

85

particulares, com dinheiro para pagar; os que trabalhavam integrados aos institutos de assistência conveniados com o hospital, e os desem-pregados – esses eram os indigentes –, para quem era tudo de graça. Assumi a provedoria em 1984, com o propósito de estruturar a casa e garantir esse espírito da filantropia, de misericórdia. Com a Constitui-ção Federal de 1988, a figura do indigente desapareceu diante do con-ceito de que todos têm os mesmos direitos perante a lei, o que inclui a assistência à saúde. Então, não havia mais razão para a instituição de caridade existir. O que acontece, de fato, é que essas instituições filan-trópicas são obrigadas por lei a disponibilizar 60% dos leitos para a Pre-vidência Social, para o SUS. Esse espírito de misericórdia era sempre administrado amadoristicamente ou desonestamente. Então, o trabalho que fizemos foi o de estruturar um novo hospital, criando um plano de saúde, que é hoje a salvação da Santa Casa. Percebemos que o hospital não conseguiria sobreviver sem um faturamento extra, daí nasceu o Plano de Assistência de Saúde Complementar, o Plasc, um projeto bem sucedido que alcançou 90 mil associados. Com isso, deixamos a Santa Casa de Misericórdia no auge, com uma situação equilibrada, em exce-lentes condições. Com o passar do tempo, houve um desmoronamento, mas a atual administração já está recuperando a solidez, está bem me-lhor do que estava, teve um salto bem grande.

A solução para a Santa Casa seria o que foi feito em Portugal. Por ocasião da Revolução dos Cravos [em 1974], Portugal acabou com as Santas Casas, transformando-as em hospitais públicos. Acredito que a Irmandade Senhor dos Passos, que é dona das Santas Casas, tem que cuidar de crianças e idosos. A saúde é responsabilidade do governo. Tem que ser um hospital municipal com gerenciamento no modelo privado, tipo fundação, e aberto ao público. Se for assim, acaba a necessidade de caridade, de ajuda à instituição. Quer dizer, no Brasil, com a Constitui-ção de 1988, não havia mais o porquê de ver o homem como indigente. Com isso, fui mal interpretado. A Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora não aceitava essa nova realidade. Era um feudo, cheio de grupos como o das irmãs de caridade que ocupavam um andar inteiro do pré-dio e não abriam mão do espaço físico. Queríamos fazer apartamentos e acabamos rompendo com as irmãs e com o bispo [Dom Juvenal Roriz], que, naquela época, entendia que mandava no hospital. O fato é que

Page 88: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

86

a Irmandade era uma instituição religiosa vinculada à diocese, mas do ponto de vista somente religioso e não administrativo. O bispo não en-tendeu isso, então brigamos. Realmente houve uma modificação total, que valeu a pena.

Shirley Torres. Gostaria de saber como conciliou esse seu traço empreendedor, esse arrojo e esse desejo de mudança no cenário con-siderado particularmente adverso, que é o do funcionalismo público federal, ou seja, a Universidade. Gostaria de também ouvir sobre a contrapartida disso, ou seja, esse cenário poderia ter influenciado seu empreendedorismo?Juracy Neves. Eu não participava da administração da Universida-de, era um professor por hobby, um docente que era feliz em dar aulas e ter contato com os alunos. Meu lema de vida sempre foi o seguinte: todo ser humano busca a felicidade, mesmo um suicida – que se mata para fazer findar sua infelicidade –. Se fazemos algo que gostamos, so-mos felizes; se não gostamos, é preciso passar a gostar para ser feliz. Não tem alternativa, temos que gostar de tudo o que fazemos. Veja meu exemplo: eu queria ser médico, mas adorei ser professor, ser empre-sário. Adorei tudo que fiz, e é assim até hoje. A felicidade é a solução, todo ser humano tem que buscá-la. A pessoa com medo de ser feliz cria uma série de tabus, se prende aos grilhões do passado e do futuro, ator-mentando o seu presente. Não se pode estar preso ao que não existe: o passado se foi, o futuro ainda será criado. O que existe é o agora, daqui a pouco já é passado. Passado é memória e só deve voltar à tona quan-do é transformado em presente, relembrando uma coisa boa. Quando busco um fato acontecido, trago a lembrança para o presente e passo a viver esse fato; fora disso, o passado não existe. Então, na Universidade, fui um professor ávido por conhecimento para poder ensinar e causar uma mudança estrutural grande, mental. Observar as grandes transfor-mações era um prazer imenso, e me obrigava a ler, a estudar, a crescer. Quanto à parte administrativa da Universidade, ainda tenho minhas dú-vidas sobre o sistema universitário brasileiro. Aliás, tenho um grande questionamento a respeito, que é o seguinte: formar o cidadão brasi-leiro é função do governo, do Estado, que tem a obrigação de dar um ensino fundamental e médio de altíssima qualidade em tempo integral.

Page 89: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

87

Lamentavelmente, nunca houve, no nosso país, um projeto educacional de fato. A universidade é privilégio de uma elite, se a elite tem dinhei-ro, ela paga; se não tem, o governo empresta. Não é justo que o povo pague para essa elite. Cito um exemplo: tive um colega que estudou para ser mecânico e ganha menos, tem menos status, mas tem que pa-gar para a sociedade. Se essa elite é pobre, pede ao Estado emprestado para depois pagar, devolver, porque não é obrigação do Estado formar elite, a não ser os pesquisadores. A elite tem que ser formada à custa de esforço próprio. Sempre fui contra esse modelo, que é uma guerra, uma aberração. Se voltarmos a Gustavo Capanema [ministro da Educa-ção entre os anos 1934 e 1945], pensou-se em mais um imposto para o Brasil, para que o governo assumisse os ensinos fundamental e médio, à época chamados ginasial e científico. Eram tempos em que a elite brasileira achava um absurdo o rico estudar ao lado do pobre. Então, o Estado passou a investir maciçamente nas universidades, já sabendo que o pobre não chegava lá. A universidade passou a ser de elite. No meu tempo, a escola pública tinha uma qualidade muito superior à de hoje e lá estavam o pobre e o rico. Fiz o curso primário em grupo escolar.

Paulo César Magella. O senhor é contra a universidade pública gratuita?Juracy Neves. Creio que a elite tem que pagar. O pobre pediria o dinheiro emprestado e depois pagaria à sociedade, porque aquele que se forma na universidade é um profissional diferenciado, segundo tese chinesa. O ensino superior, na China, é pago, porque não pode beneficiar uma elite que ocuparia lugar de destaque na sociedade. No Brasil, não existe essa consciência; aqui, domina o espírito de que a universidade tem que ser grátis em todos os níveis, mas ninguém olha para trás a fim de enxergar o ensino de péssima qualidade. Recente-mente, li que, em São Paulo, em um concurso para contratação de 1.500 professoras, todas tiraram zero, mas acabaram sendo admitidas pela Justiça. Isso que dizer que alunos mal preparados resultam em professores ruins, todos produto de um ensino de baixíssima quali-dade. O tempo de escola é pouco no Brasil e mudar isso é função do Estado. Em seu livro Mein Kampf [Minha luta, de 1926], Adolf Hitler já vislumbrava que era função do Estado formar o cidadão e não a elite.

Page 90: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

88

Isso foi o que a Coreia do Sul estabeleceu, investindo na formação do cidadão, com obrigatoriedade do ensino secundário em escolas públi-cas para toda a população. Em 1959, a Coreia era inferior ao Brasil em todos os índices sociais. Era um país paupérrimo, que se transformou ao estabelecer a educação como prioridade.

Paulo César. Como um homem de comunicação, o senhor sabe que essa não é a ideia predominante.Juracy Neves. Predomina a ideia errônea de um Brasil sedimentado por professores, estudantes etc. O ensino médio de melhor qualidade é federal. Um exemplo é o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, com um ensino de altíssima qualidade porque o governo assumiu, buscan-do os melhores professores, com carreira, cursos de atualização etc. Agora, pergunto: como vamos entregar o ensino a um município, a uma prefeitura? Não tem sentido, é um equivoco. Temos que entender a importância de federalizar o ensino médio e a universidade. No Brasil, há uma inversão de valores. E, ao proporcionar um ensino para a elite, o governo se esquece do povo. Aí vem o remendo: bolsa daqui, bolsa dacolá, cota para pobre, cota para isso e para aquilo... Isso é mascarar o problema, porque o indivíduo vai entrar na universidade sem conhe-cimento. É preciso melhorar o ensino fundamental e o ensino médio, só aí todos estarão em condições de cursar o ensino superior. Essa é a única possibilidade de dar ao pobre a oportunidade. A segregação social começa por não haver escola pública de qualidade; 25% são reprovados na primeira série, o que representa um ônus para o governo, sendo que o resultado é o sujeito saindo da escola como um analfabeto funcional. A realidade é que a população brasileira tem 72% de analfabetos fun-cionais. Apenas 25% entendem o que leem. Nós, que fazemos comu-nicação, fazemos jornal para 25% da população brasileira, parcela que conta com indivíduos que não têm o hábito de ler. No mundo, um dos índices mais baixos de leitura de jornais é o do Brasil; então, para mo-dificar esse cenário é preciso uma revolução na educação, que, até hoje, ninguém teve coragem de fazer. Essa chance passou pelos militares in-competentes [referência à Ditadura Militar] que poderiam, com o AI-5, ter resolvido a situação. Se essa revolução educacional não for realizada, o país vai enfrentar problemas gravíssimos.

Page 91: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

89

Paulo César Magella. A via política é um bom mecanismo de fazer essas mudanças. Em 1992, o senhor tentou a prefeitura de Juiz de Fora na sua primeira experiência como candidato e não conseguiu se eleger. A cidade perdeu o empreendedor ou seus negócios ganharam com a sua permanência?Juracy Neves. Quando fui candidato à prefeitura, eu estava saindo de uma experiência de sucesso como provedor da Santa Casa, que me proporcionou conhecimento como administrador de bem não privado e bem filantrópico. Então, a equipe entendeu que eu deveria ser candidato a prefeito. Assim o fiz e foi uma experiência fabulosa. Uma das melhores coisas da minha vida foi ter sido candidato e a melhor de todas foi ter per-dido a eleição. Isso porque o eleitor brasileiro tem uma consciência que não está preparada para entender o que é um prefeito, não está pronta para isso. Basta dizer que a nossa democracia é a mais representativa do mundo, com 72% dos analfabetos funcionais representados por 72% dos deputados federais no Congresso. Isso é altamente representativo, por-que os 72% de analfabetos funcionais elegem os 72% do Congresso. Com isso, fica difícil o empresário, com visão de crescimento, visão dinâmica, se eleger no país. Fui eu em Juiz de Fora, Antônio Ermírio de Moraes em São Paulo. Então, tem que ser político mesmo, tem que mentir, tem que enganar, tem que ser meio bandidão ou não consegue se eleger.

Pinho Neves. O senhor citou que foi secretário de Saúde do pre-feito Adhemar Rezende de Andrade, e depois falou de sua tentativa de chegar à prefeitura. Como o senhor vê o quadro político de Juiz de Fora a partir da década de 1960?Juracy Neves. O problema é que, nesse período, Juiz de Fora ficou praticamente na mesma, na mão de apenas 3 nomes: Tarcísio Delgado, Alberto Bejani e Custódio Mattos. Pinho Neves. Houve a contribuição de Itamar Franco também.

Paulo César Magella. Tivemos Olavo Costa até 1962; Arlindo Leite entre 1962 e 1963; Adhemar Rezende de 1964 a 1967; Itamar Franco entre 1967 e 1970; Agostinho Pestana nos anos 1971 e 1972; novamente Itamar Franco de 1973 a 1974; Saulo Pinto Moreira em 1975 e 1976, além de Melo Reis entre 1977 e 1982.

Page 92: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

90

Juracy Neves. Itamar Franco foi realmente o prefeito que mais inovou, com uma administração bem avançada, fora dos métodos tradicionais, pois Juiz de Fora se alternava entre Olavo Costa e Adhemar Rezende. Durante 16 anos, a partir de 1951, houve uma espécie de rodízio entre eles, com uma interrupção, em 1962-1963, para a gestão de Arlindo Leite. Itamar Franco rompeu com esse ci-clo, fazendo uma boa administração, a primeira por 4 anos, a segun-da por 2 anos. Nesse intervalo, entraram Agostinho Pestana, Saulo Moreira. Melo Reis fez uma boa administração, porque aproveitou o momento da ARENA [Aliança Renovadora Nacional] em Juiz de Fora, conseguindo canalizar alguns recursos para a cidade e usando as oportunidades do momento.

Juiz de Fora tem a vantagem de oferecer uma qualidade de vida mui-to grande, e acredito que é possível crescer mantendo essa qualidade. Reforço o pensamento de que Juiz de Fora é a capital da Zona da Mata e como tal precisa liderar a região. Ao longo do tempo, constatei que os prefeitos todos foram omissos quanto à ação política, cada um cui-dando de sua administração local, de sua administração doméstica. Juiz de Fora não é só isso, é o centro de toda uma região, e se preparou para essa liderança na parte de serviços. Faltou, aqui, um prefeito que tivesse essa visão para liderar os prefeitos da Zona da Mata, com um projeto de desenvolvimento econômico para a região. Há uma pujança em torno da cidade, mas ninguém acordou para isso. Juiz de Fora nunca foi reco-nhecida, de fato, como ponto estratégico geográfico que é, próxima do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Belo Horizonte. Daqui escoa tudo. Trabalhamos para todo o país. As Lojas Americanas existem no Brasil todo e a distribuição parte daqui. Seja qual a destinação, fica fácil em função da boa localização.

Pinho Neves. Essa ausência de atitude, de liderança de Juiz de Fora, pode ser vista como reflexo do declínio que a Zona da Mata sofreu como um todo? Juracy Neves. Juiz de Fora é a cidade líder, indiscutivelmente, mas tem que haver essa consciência. Um município do porte de Juiz de Fora, com a atividade cultural de uma grande Universidade Federal e outras universidades, tem que alavancar, liderar a região,

Page 93: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

91

mas nunca houve um projeto desse tipo. Até falei com o prefeito Custódio Mattos: “Você tem que ser o prefeito da Zona da Mata!”. O presidente americano é o presidente do mundo e não apenas dos Estados Unidos da América. Ele coordena a política mundial, a eco-nomia global. O americano em si não depende do presidente, pois cada estado da Federação é, de certa forma, um país. Então, Juiz de Fora tem que ser a mesma coisa, precisa assumir a liderança. Os empregos de Juiz de Fora dependem da região. A rede de hotelaria em Juiz de Fora é fraca, depende das cidades vizinhas. Insisto: tem que partir daqui a liderança.

Cesar Romero. Partindo para um assunto mais pessoal, gostaria de saber qual teria sido seu momento mágico. Quando passou no vestibu-lar e ingressou na faculdade, integrando a primeira turma de Medicina? Ou seria quando lançou seu primeiro empreendimento imobiliário? Ou, talvez, quando recebeu a homenagem da Unidos do Ladeira, inspirando o samba-enredo da escola? Juracy Neves. Ao longo da minha vida, todos os momentos foram mágicos. Não sei separar um de outro. Não sei dizer qual foi o melhor. Todos foram bons. Pegar a emoção de um determinado instante e bus-car, no passado, outra emoção é muito difícil, porque tudo que vivi foi importante, foi bom. Até perder a eleição para prefeito foi bom. Seria negativo ficar triste e chorar; então, fiquei feliz. Vibrei em todos os mo-mentos da minha vida, porque sempre busco a felicidade.

Afonso Cruz. Como autor do enredo do famoso desfile de carna-val da Unidos do Ladeira, gostaria de saber como consegue conciliar o trabalho com o lazer? Juracy Neves. Tempo é opcional. Temos tempo de fazer tudo o que quisermos. Só não tem tempo quem não faz nada. Tempo é opção para o trabalho, opção para o lazer. Sei dividir bem o tempo. O tal dia de lazer é escolha minha. Gosto de, no domingo, ir para o sítio. Aos sábados não estou preocupado com trabalho. É preciso saber que o tempo é criação do ser humano. Tempo não existe. E se é uma criação do homem é também uma opção do homem. Se queremos fazer algo, encontramos tempo. Não dá para dizer: “Não fiz porque não tenho tempo!”. Isso não aceito.

Page 94: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

92

Afonso Cruz. Gosta de teatro?Juracy Neves. Sim. Gosto de arte cênica e construí um teatro por causa disso. Volto a dizer: sou um ator frustrado. Sabe a razão? Porque não gosto de carnaval. Quando fui homenageado pela escola de samba e estava lá em cima, naquele carro alegórico, fui um grande carnavalesco, um bom ator. Sentia que estava em um palco vivo, vesti a máscara de ator e me transformei em um bom ator, e foi aí que senti que realmente havia “matado” essa arte. A arte cênica é viva, não tem correção. Tudo se pode corrigir, mas não a arte cênica. Ao entrar no palco, é aquilo ali mesmo, não há como corrigir. É o momento. É uma arte muito vibran-te por ser dinâmica, por não permitir falhas. É uma rigidez que tem a ver comigo, pois a vida inteira cobrei muito de mim mesmo, sempre fui muito duro comigo. Aquilo a que me proponho fazer, me cobro integralmente. De vez em quando até me pergunto se eu não poderia ser um pouco mais camarada comigo mesmo, mas eu não sou, gosto de tudo certinho.

Pinho Neves. Gostaria de retomar a questão da escola de samba por conta de uma consideração sua a respeito de reconhecimento. Acredito que ser tema de um samba-enredo, no carnaval, uma atividade de cultu-ra popular que talvez seja a mais abrangente no país, é uma homenagem prestada por outra esfera da sociedade, às vezes distante de quem tem esse trabalho de empreendedor, de intelectual. Isso não proporcionaria uma emoção diferente? Juracy Neves. Claro! Eu, que não gosto de carnaval, fiquei muito tocado. O próprio carnaval em si já é uma emoção diferente, uma festa que rompe com todos os princípios de hierarquia, vira tudo de cabeça para baixo. Em uma escola de samba não há racismo, preconceito: o branco brinca com o negro, o pobre com o rico, o patrão com a em-pregada; então, é um momento em que a sociedade brasileira vira de perna para o ar. A festa emociona nesse sentido, se concentra nesse ambiente, é o palco emocional do indivíduo e do coletivo. Por isso eu disse que, naquele momento, virei um ator. A emoção é tão grande, naquele ambiente, que tudo se transforma. Fiquei empolgado. Mas, no ano seguinte, o diretor me procurou e tive que dizer: “Odeio carnaval. Foi só aquilo e nunca mais!”. (risos).

Page 95: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

93

Shirley Torres. Gostaria de abordar um assunto que muitas vezes conversamos ao tomar um cafezinho ou mesmo em sala de aula, nos corredores do antigo ICHL [Instituto de Ciências Humanas e Letras]: a finitude humana e o modo de superá-la. O homem se imortaliza na obra que faz diferença?Juracy Neves. Claro! O homem se torna imortal pela sua obra. Uns mais, outros menos. Alguém que tem um filho repassa seu DNA; então, ele é imortal, através do filho e assim por diante. É uma sequência. Mas esse é um pensamento complexo: hoje, tem um peixe dentro de mim, tem um rato, tem um sapo, tem tudo isso... É uma longa história evolu-tiva... Em função do DNA, às vezes nasce uma criança com rabo, outra com garras. É o DNA recessivo se manifestando ocasionalmente, é uma herança. E dentro do processo cultural em que todo ser humano nasce com um objetivo, é importante saber que esse nascimento se dá em um mundo onde há uma herança cultural construída ao longo de milhões de anos por homens. Por isso, acredito que todos temos obrigação de acrescentar algo culturalmente, de realizar alguma coisa. É como dizia Machado de Assis: “Existem pessoas cuja morte nada subtrai, cuja vida nada acrescenta”. Então, temos que acrescentar, sempre.

Shirley Torres. Somos de uma geração acadêmica que não foi co-brada a respeito de uma produção que tivesse registro material. Não escrevíamos teses, não éramos obrigados a produzir artigos semanais, alguns sobre coisas estapafúrdias que não fazem diferença. Então, sem dissertações, sem teses, sem artigos, sem livros publicados, gostaria de saber como reconhece a sua permanência no âmbito do seu trabalho como professor. Trabalho já dito como hobby, mas que certamente foi muito além. Ao mesmo tempo, gostaria de saber se houve algo que qui-sesse ter feito e, por alguma razão, não fez ainda no âmbito das Ciências Sociais, do nosso ICHL, então dirigido pelo professor Afonso Ribeiro da Cruz.Juracy Neves. Minha passagem pela Universidade foi um hobby no sentido do prazer que era dar aulas. Eu era um professor vindo de uma faculdade particular sem o compromisso de seguir a carreira docente. Minha formação de magistério era um cursinho pré-vestibular, a Aca-demia de Comércio e, em seguida, a Universidade. Na conjuntura atu-

Page 96: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

94

al, há uma carreira e, em minha opinião, é preciso criticar essa carreira, separando o pesquisador do docente, pois são formações distintas. No Brasil, não há distinção. Lá fora, o pesquisador tem que receber alta re-muneração e se dedicar em tempo integral para realmente pesquisar. O país que mais valoriza a pesquisa é a China. Enquanto estamos promo-vendo e aplaudindo jogadores de futebol, lá estão promovendo e aplau-dindo pesquisadores e cientistas. Os ídolos da China são os cientistas, os da Coreia são os professores. É tudo uma questão de mentalidade, que precisa ser alterada na base, no ensino fundamental. Na universidade brasileira, existem muitas pessoas que estão apenas fazendo bico. Há uma mudança muito grande entre aquele meu período de transição da escola particular – em que se ganhava muito pouco – para a Universi-dade. Em comparação ao momento atual, as diferenças são enormes. Hoje, ser professor exige formação acadêmica, carreira: não se pode chegar como freelance e simplesmente dar aulas.

Shirley Torres. Sim, houve essa mudança. Partilho essa condição de não ter feito a carreira hoje existente, necessária. Por isso, insisto em saber sobre o legado de sua experiência na Universidade.Juracy Neves. Como professor, transmiti experiência. Eu sempre dizia para meus alunos: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina. Então, vocês têm que fazer!”. Eu falava: “Vocês têm que aliar a teoria à prática, porque a formação é fundamental!”.

Paulo César Magella. Abordando um aspecto mais pessoal: o se-nhor tem 4 filhos trabalhando em suas empresas. Como o Juracy de Azevedo Neves, esse homem dinâmico que sempre trabalhou em tem-po integral, apesar de abrir janelas para o lazer, acompanha essa transi-ção dos negócios para os filhos?Juracy Neves. Isso tem uma longa história. Sempre bombardeei a mentalidade deles, dizendo todos os dias, na hora do almoço, religiosa-mente, que tinham que seguir alguma coisa: “Estou fazendo um patri-mônio. Vocês têm que dar continuidade!”. Era uma espécie de pregação quase pedagógica. Felizmente, os quatro seguiram minha orienta-ção. Penso que o empresário vitorioso precisa ser familiarmente vito-rioso. Considero minha família uma vitória. Consegui mantê-los todos

Page 97: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

95

unidos, com o mesmo espírito, com o mesmo princípio. Larguei a Me-dicina porque nenhum deles quis seguir. Então, construí uma trajetória a que cada um se adaptasse e o retorno foi muito bom. Estou realizado nesse sentido: o de estabelecer uma sucessão na empresa. Sempre disse: “Vou deixar para vocês ações, o que quer dizer que se não trabalharem vão passar fome. Vocês têm que tocar aquilo, porque se não o fizerem não vão herdar nada além de ações!”. Isso já mostrando para os 4 que a empresa é soberana, que acredito nela, que é um empreendimento com um grande papel social. Só o fato de gerar empregos, renda, já é um grande papel social, porque, para mim, seria muito mais tranqui-lo colocar o dinheiro na poupança e correr o mundo, dizendo: “Que se dane!”. Mas o fato é que, hoje, proporcionamos, entre empregos diretos e terceirizados, renda para cerca de mil funcionários, o que é gratificante. É um legado para a sociedade, que nos afasta da omissão. Acredito que construí uma empresa com força e desenvolvimento so-cial. E, atualmente, a empresa não tem mais empregados, tem parceiros de trabalho, participando ativamente.

Pinho Neves. O senhor acaba de usar o termo “parceiros”. Tendo como referência sua declaração a respeito da condução da família e do envolvimento da mesma em seus empreendimentos, gostaria de saber como é sua escolha de parceiros para os negócios? O que conta de fato?Juracy Neves. Temos 2 tipos de parceiros. Há o terceirizado, que é o do transporte – que inclui mais de 100 caminhões –, o da vigilância, o da limpeza etc., e há o que tem vínculos trabalhistas na empresa. Aqui, faço um aparte: acredito que, no Brasil, ainda há um ranço marxista. Parece que as pessoas esqueceram que o marxismo foi superado. Na época de Karl Marx, 20 operários faziam 30 alfinetes por dia; hoje, uma máquina faz milhões. Com isso, a teoria da mais-valia deixou de ter peso, não se aplica na empresa industrializada. Não existe mais esse conceito de o patrão explorar o empregado. É importante lembrar que o problema do mundo não é mais produzir, mas sim consumir. E se o problema é consumir, torna-se necessário que o empregado ganhe bem, tenha renda para poder comprar. Na época em que Marx viveu [1818 a 1883], a questão era a produção, então a teoria da mais-valia no trabalho era válida. Hoje não, isso está superado. Tem-se até que frear

Page 98: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

96

a produção. O mundo mudou, mas não o Brasil, onde permanecem os mesmos princípios trabalhistas dos tempos do getulismo [relativo a Getúlio Vargas, presidente da República entre 1930 e 1945], do mar-xismo. No Brasil, as estatísticas mostram 50% da população desempre-gada ou trabalhando na informalidade, e 50% da população empregada com carteira assinada; ou seja, 50% são informais. Imaginem: são 2 milhões de ações trabalhistas no Brasil, enquanto são mil no Japão em um mesmo período. Algo está errado, mas ninguém toma providências. É por isso que chamo o trabalhador de parceiro: acabou esse conceito de patrão e empregado. O brasileiro pensa: “Ah, como eu seria feliz se arrumasse um emprego!”. Aí, encontra trabalho e pensa: “Poxa, como eu seria feliz se não tivesse que trabalhar hoje!”. (risos) Esse é o brasi-leiro. Ir para a luta, na sua concepção, é enfrentar o trabalho escravo, sendo que, a meu ver, o trabalho é a realização do ser humano. É preciso trabalhar para ser feliz, ter prazer. Mas não há essa consciência; então, temos que mudar a mentalidade.

Paulo César Magella. Essa continuidade administrativa com seus 4 filhos também deu um impulso ao jornal, que recebeu uma nova im-pressora. Isso mostra que o foco não está somente na gráfica e que há preocupação de aprimoramento também do jornal?Juracy Neves. O jornal é minha paixão. O jornal e a rádio. São veí-culos de comunicação que temos como um compromisso com a cidade de manter os cidadãos bem informados. Vimos que era preciso moder-nizar o jornal, comprando um novo equipamento para a impressão. O jornal é um apêndice, que mantemos por dedicação, por amor e o fa-zemos porque Juiz de Fora precisa de informação. Não se trata mais do lado financeiro, mas do lado da obrigação que temos com a sociedade de transmitir, de informar. Quando entramos nisso, sabíamos que era preciso manter esse compromisso. Por isso, estamos sempre investindo no jornal e na rádio, a fim de ter um produto de qualidade.

Afonso Cruz. Sempre ouço do senhor que é um empregado da sua empresa, e que está cansado de ver empresários ricos e empre-sas pobres. O senhor sempre quis ter uma empresa próspera, apesar de ele mesmo não ser rico, o que posso testemunhar. Posto isso,

Page 99: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

97

digo que alguns o veem, equivocadamente, com um homem ego-cêntrico, totalitário. Não sei a extensão desse pensamento alheio, mas, como ele existe, queria que nos falasse a respeito. E vou re-formular a pergunta do seguinte modo: a maioria dos seus empre-endimentos traz a marca do sol: Solar, Sistema Solar, Rádio Solar. Até que ponto você se considera um sol, em torno do qual gravitam planetas e satélites? Juracy Neves. Não me considero um sol, mas gosto do conceito de que em torno do Sol giram todos os planetas, de que o Sol é luz – um dia, certamente vai se extinguir e o universo vai desaparecer –, mas foi baseado nisso que me veio a inspiração. Pensei no Rei Sol [Luís XIV, soberano na França entre 1643 e 1715], que era príncipe da sua música, a valsa, protagonizando a ópera do Rei Sol, e, depois se transformando em rei e se intitulando o próprio Rei Sol. Mas é exatamente por isso: o sol é iluminação, é força, é vida. O grande Van Gogh queria pintar o Sol antes que ficasse louco. O Sol provoca essa vibração, esse entusiasmo. O sentido do Sol é manter acesa essa chama.

Shirley Torres. Gostaria de retomar um importante momento seu na Universidade, em que tentou fazer o Museu do Homem.Juracy Neves. Cheguei a ir a Belo Horizonte e comprar o acervo de um professor que já estava começando a montar um museu semelhante, mas as dificuldades burocráticas da Universidade na época eram muitas, embora próprias da estrutura pública. Com isso, o sonho ficou para trás. Mas não me arrependi, pois fui até onde foi possível. Isso me faz lembrar uma frase de Confúcio, que me levou a pensar: “Todo ser hu-mano necessita de serenidade para aceitar o que não pode ser mudado, coragem para mudar o que é preciso e sabedoria para conviver com os contrastes”. Esse é o princípio que utilizei em minha vida.

Afonso Cruz. O professor Saul Martins, dono do acervo, que-ria, em troca de todo o material, que era extremamente valioso, apenas um carro de segunda mão, que a Universidade não pôde se dispor a pagar.Juracy Neves. A Academia de Comércio acabou comprando esse acervo.

Page 100: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

98

Pinho Neves. O senhor passou por diversos ramos de empreendi-mento. Gostaria de saber que espaço ocuparia o futebol em sua vida pessoal e se o senhor nunca pensou em estabelecer uma relação de em-preendedorismo com esse esporte. Juracy Neves. Minha infância foi tão sofrida que não tive tempo de praticar nenhum esporte. Nem nadar eu sei. O tempo que eu dispunha era para trabalhar ou estudar. Como não tive essa chance quando crian-ça, cresci sem estar ligado a futebol. Não sou muito fã de esporte.

Paulo César Magella. Mas o senhor é flamenguista.Juracy Neves. De fato, é uma paixão entre os brasileiros. E se é preciso torcer por algum time, torço pelo Flamengo, por comodidade, por ser o time do povo – aí vem o povo, a vibração –. A razão é que o Flamengo é o time do povo.

Pinho Neves. O senhor é uma pessoa firme em suas convicções. Quais são os homens que o senhor teria como referência de grandeza em contribuição para a humanidade?Juracy Neves. Na música, Amadeus Mozart. Na dramaturgia, William Shakespeare. Até hoje, o mundo ocidental deve muito a Shakespeare; aliás, todo estudante de Comunicação deveria ler o traba-lho desse homem que penetrou na alma humana, escrevendo sobre dor, paixão, ódio, rancor, amor. Sou fã de Shakespeare, sobretudo de Ham-let. Na literatura brasileira, Machado de Assis, que escreveu uma obra e tanto, imortal. Seus escritos até hoje são lidos e permanecem atuais, a ponto de atraírem leitores como o cineasta americano Wood Allen. Memórias póstumas de Brás Cubas é uma obra de arte. Eu queria ser Brás Cubas, gozar todo mundo que estivesse em meu velório.

Pinho Neves. Acho que poderíamos passar também para um livro de referência para o senhor. Juracy Neves. O bom livro é aquele que queremos reler. Reler chega a ser melhor do que ler, embora a leitura seja condição para a releitura. Se um livro nos instiga a uma nova leitura, é porque é bom. Penso que o ambiente mais lindo do mundo é uma biblioteca. Quando

Page 101: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

99

entramos em uma biblioteca e vemos todos aqueles livros, muitos dos autores já mortos, de repente, ao abrirmos um livro, lendo-o, damos vida àquele autor, àqueles personagens.

Pinho Neves. Esse raciocínio se aplicaria a filmes também? Juracy Neves. Sim, só que o filme é muito dinâmico, é muita imagem; então, não dá para assistir muitas vezes, ao passo que o livro oferece essa possibilidade, o que é interessante porque o bom autor, quando escreve, o faz de tal forma que o leitor começa a se ver acrescentando elementos, e quanto mais relê mais amplia essa perspectiva. Escrever é difícil. A maioria dos autores não sabe escrever. Penso que é o ato de um artista, que precisa saber usar as palavras artesanalmente e conferir um sentido que agrade ao leitor. Um bom autor não escreve para si mesmo, mas para o leitor. Se não for assim, é um mau escritor. Para fazer um bom trabalho, é preciso burilar o texto, tirar uma palavra, acrescentar outra. É, de fato, um trabalho de artesão, de tal forma que o leitor se sente instigado a reler. Esse é o grande escritor, o que é difícil, pois a maioria não pensa em quem vai ler. É só pen-sando no releitor que se consegue um texto maravilhoso.

Cesar Romero. O senhor é um homem que investe em tecnologia de ponta em seus empreendimentos, como é o caso do jornal, da rádio e da gráfica, mas não tem muito prazer com as possibilidades que essa tecnologia é capaz de trazer no âmbito pessoal, como no caso do celular e do computador. Poderia comentar isso?Juracy Neves. Quando a era digital chegou, eu já estava em uma idade mais avançada para o uso pessoal de suas possibilidades, mas reco-nhecia a importância do uso da tecnologia para o trabalho. Particular-mente, entendo que é perda de tempo ficar na frente de um computa-dor, que é importantíssimo em certos aspectos, como o da informação, mas traz um excesso que precisa ser filtrado. Estamos diante da socie-dade digital, que tem muita informação e pouco conhecimento, o que é o inverso da sabedoria contida em Santo Agostinho, com o espírito de leitura, memorização e reflexão. Trata-se de um trio: se não lermos, não somos informados, se não memorizamos, não pensamos a respeito. A geração que está aí é a da informação que o computador oferece ins-tantaneamente. Então, ao invés de perder tempo com o computador,

Page 102: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

100

prefiro ler um livro e fazer a terapia da memorização. Neurônio é igual músculo, temos que fazer exercícios para não deixá-lo fraco. Para que o neurônio não morra, temos que reforçar, dar estímulo, ler memorizan-do, o que é uma leitura mais demorada – não é essa leitura dinâmica –. Não abro mão da sensação gostosa de pegar um livro e folheá-lo. Sinto o mesmo em relação ao jornal. Minha geração não aceita estar longe desses prazeres.

Afonso Cruz. Tendo em conta que todo homem é necessariamente político, e considerando que o senhor é um espírito voltado para a ação e para a transcendência dessa ação, certamente deve ter um projeto para Juiz de Fora. Poderia nos apresentar alguns pontos fundamentais desse projeto?Juracy Neves. Na atual conjuntura de Juiz de Fora, o fundamental é o que já deixei claro: o desenvolvimento da cidade passa pelo de-senvolvimento regional. Essa é a fórmula contra a estagnação. Quando abrimos um supermercado, geramos emprego, mas não geramos cres-cimento, pois o dinheiro circula de forma restrita. O crescimento é ge-rado quando trazemos dinheiro de fora. Um exemplo: a Universidade de Juiz de Fora cresce porque traz recursos de fora. Outro exemplo: na Esdeva, vendemos tudo para fora, e isso acrescenta. As empresas que trabalham aqui e que são de fora geram crescimento, mas não investi-mento. A economia local é uma economia que circula, mas não é uma economia de crescimento. O contingente de estudantes daqui não traz crescimento, mas movimentação. As empresas que vêm de fora, como a Casas Bahia, chegam aqui para emprestar dinheiro. Conclusão: geram um serviço de baixo valor agregado, e, se é assim, o funcionário ganha pouco e, como consequência, consome pouco. Temos que ativar a eco-nomia para fazer circular o recurso de valor agregado mais alto, a fim de que as pessoas passem a ganhar mais e possam melhorar o padrão de vida. Esse é o problema de Juiz de Fora, temos que promover o desen-volvimento, pensando nesse sentido.

Paulo César Magella. Se o senhor fosse convidado a disputar a prefeitura de novo, o senhor aceitaria?Juracy Neves. De jeito nenhum. (risos)

Page 103: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

101

Paulo César Magella. Foi só uma provocação.Juracy Neves. Não tem jeito. É como falei há pouco, citando Con-fúcio: “Serenidade para aceitar o que não pode ser mudado!”. Sou se-reno, se não posso mudar, então tenho que aceitar. Não vou mudar o sistema que está aí de administração pública local.

Afonso Cruz. No setor habitacional, o que poderia ser feito?Juracy Neves. Até que, em Juiz de Fora, não tem muita favela. Digo isso porque o erro da favela vem do poder público permitir a formação inicial sem regularização. Se o prefeito fosse inteligente, no caso de uma ocupação, mandaria um topógrafo para marcar as ruas, os lotes etc. O erro está na ocupação desordenada. A meu ver, a ordenação implicaria em um controle e aí haveria uma solução, com a urbanização. Todos os problemas de favelas em Juiz de Fora são por conta da irresponsabilida-de do poder público em não organizar a ocupação. O prefeito não tem coragem de assumir a questão e resolvê-la. Esse é um problema de Juiz de Fora e de todo Brasil.

Pinho Neves. Nessa linha de raciocínio, como o senhor vê o atual quadro da saúde municipal? Baseado em sua experiência que reergueu a Santa Casa de Misericórdia, o senhor vislumbraria alguma fórmula?Juracy Neves. O grande problema da saúde no Brasil está em 2 fa-tores: o mais grave é o gerenciamento, o segundo é o recurso.

Pinho Neves. Nessa ordem?Juracy Neves. Sim, porque o pouco recurso bem administra-do se multiplica. O gerenciamento é fundamental. E, no Brasil, os recursos para investir em saúde são pequenos. A continuar esse modelo, não há solução. Podem nomear o secretário de saúde que quiserem, no Brasil todo, que não vai adiantar. O caminho que vejo é a criação de empresas públicas com modelagem privada, como o Hospital Sarah Kubitschek [Brasília, Belém, Belo Horizonte, For-taleza, Macapá, Rio de Janeiro, Macapá, São Luís do Maranhão], uma fundação que é modelo brasileiro. É contrato de gestão, é de primeiro mundo e funciona perfeitamente bem. O poder público

Page 104: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

102

não tem condição de explorar a assistência hospitalar em função da burocracia do sistema. Os dados apontam que 70% dos exames em Juiz de Fora são negativos, ou seja, o médico não examina, o paciente diz que tem uma dor no estômago e a indicação é um raio X. Um total de 20 % nem busca o resultado. Ou seja, é puramente uma questão de gerenciamento. O ministro da saúde está querendo aprovar no Congresso um projeto de lei que permite a criação das fundações públicas de modelo privado, mas não passa, não conse-gue. Esse seria um caminho, pois transformaria toda a assistência hospitalar em fundações públicas.

Paulo César Magella. Por que não passa?Juracy Neves. Interesse. O lobby dos deputados, dos donos de hospital, dos donos de serviço. Já disse aqui: 70% do Congresso Nacional são eleitos por analfabetos funcionais, a democracia repre-sentativa que tanto se lutou por ela, e, como disse o ex-presidente Fernando Collor de Melo, os deputados não sabem ler. (risos) Essa é a dificuldade, não tem jeito. E não tem nenhum político corajoso para acabar com isso, pois seria o fim do empreguismo, o que limi-taria o poder político. O dirigente tem que ser político, o que cria uma série de compromissos.Paulo César Magella. Gostaria de fazer uma pergunta de cunho bem pessoal. Como é a vida do senhor? Quais os seus hábitos, tendo em vista que o senhor se disse uma pessoa muito disciplinada e observadora das suas ações.Juracy Neves. Minha primeira atividade é a corpolatria. Todo ser humano tem que amar seu corpo; então, me levanto às 5h30min – te-nho uma academia em casa – e faço exercícios durante 2 horas. É a luta do “eu contra eu mesmo”. Às vezes, penso: “Não vou me levantar da cama!”. Mas tenho um relógio biológico que me permite levantar à hora que quero e nessa luta nunca cedo. Acredito que se ceder uma vez, acaba cedendo sempre; então, luto comigo mesmo e vou fazer ginásti-ca. Outra atividade que fiz durante minha infância, por muito tempo, foi mexer com animais, aves, algo que remete ao meu pai. No sítio, permaneço com esse hábito. Tenho criação de tudo quanto é bicho. Sou ruralista nos fins de semana. Lá, sento para conversar com os empre-

Page 105: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

103

gados, que falam aquele português errado, gostoso, e isso é um lazer. É uma sensação de satisfação imensa passar meus sábados e meus domin-gos no sítio. Não tenho mais nenhum lazer, só esse. E quanto à leitura, sou um aficionado: leio até bula de remédio.

Paulo César Magella. E quanto às viagens? Juracy Neves. Viajo de vez em quando; mas, atualmente, não tenho gostado muito de viajar, talvez em função da idade. A última que fiz foi para a Itália e a Grécia, em setembro [2008].

Pinho Neves. Passo a palavra ao doutor Juracy Neves para as consi-derações finais que julgar oportunas. Juracy Neves. Antes de terminar, gostaria de fazer um relato que considero interessante. Quando falamos do passado, começamos a re-gistrar, no vídeo da mente, fatos que foram gravados há muitos anos. E há muito de interessante a ser repassado para o jovem atual. Quando eu tinha em torno de 6, 7 anos, uma bonita senhora foi visitar minha mãe. Naquela ocasião, não conhecíamos nada sobre o corpo feminino. Não havia fotografias, nenhuma referência. Então, olhando no buraco da fechadura, vi aquela mulher nua e tive uma emoção que não soube explicar. Anos depois, lendo a Evocação do Recife do poeta Manuel Ban-deira, estava lá: “[...] Um dia eu vi uma mulher nuinha no banho. Fiquei parado o coração batendo. Ela se riu. Foi o meu primeiro alumbramen-to [...]”. Pois bem, esse foi também o meu primeiro alumbramento. Agora, sei que é, mas não naquela época. Como iria saber que tivera um alumbramento? Aquela emoção... Isso me faz dizer que estou muito feliz de poder vir aqui e falar um pouco da minha vida, do que fiz, da minha experiência. Espero que haja um efeito multiplicativo nos jovens que aqui estiveram. Que eles sigam a experiência de quem viveu mais, como exemplo de vida, como forma de vencer os obstáculos, sempre com convicção.

Hoje, o jovem é meio desestimulado, falta-lhe tesão, que é essa vi-bração que o leva a fazer as coisas, a seguir em frente. Falta, na juven-tude, essa vontade de fazer, essa determinação: “Eu vou fazer, eu vou conseguir!”. Eu pediria que os jovens pensassem sobre isso e transmi-tissem essa mensagem. Por outro lado, é preciso dizer que todo ser

Page 106: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

104

humano tem que ser ele mesmo, tem que amar a si mesmo, tem que se sentir a pessoa mais bonita do mundo, a mais importante do planeta. É uma batalha dele consigo mesmo, a partir da formação do seu próprio eu. Como vivemos em sociedade, temos que viver com o outro, mas a convivência com o outro é sempre dentro da convivência consigo mes-mo. Se você não se ama, não ama mais ninguém. Se você não se admira, não admira mais ninguém. A consciência humana é sempre uma proje-ção, é olhar no espelho. O outro é sua própria imagem no espelho e se você não formar sua imagem, sua felicidade, sua alegria, sua vontade de viver, não vai ver o outro. Isso é fundamental para o ser humano: formar o seu eu. Nada de tristeza, nada de depressão, só alegria e feli-cidade. Felicidade é um estado de espírito, um estado de satisfação que se tem. Então, procure ficar sempre alegre com você mesmo, admirar a si mesmo, se tem algum defeito que possa corrigir, faça cirurgia plás-tica, aceite a si mesmo, passe a se admirar. Tem que gostar de si mesmo, tem que se amar para aí crescer interiormente de tal forma que saiba se relacionar com o outro entendendo o outro do jeito que é. Não queria modificar ninguém. O relacionamento é difícil por isso, é um exercício de paciência, sem o qual não há como conviver. Tem que ver o outro do jeito que ele é e não do jeito que você quer que seja. “Ah, se eu fosse você, eu faria diferente!”. Mas não é, então não tem jeito. É importante que cada ser humano se conscientize disso. Minha experiência de vida diz: elimine o passado e o futuro, não se deixe ser atropelado pelo gri-lhão. O passado não existe mais e o futuro ainda não aconteceu. O que conta é o presente, o agora, cada dia bem vivido. Não me arrependo de nada que fiz, embora tenha feito muita coisa errada. Faria tudo de novo, pensando exatamente da forma que pensava. Não se arrependa. Quer fazer? Pense racionalmente, use a razão. Pensou? Ponderou? Então faz, se der errado, passa. Viver é difícil, mas por isso que é bom viver. Estou muito feliz de ter vindo aqui e poder falar alguma coisa para a histó-ria. Olho para o público aqui e vejo avidez de conhecimento. Vejo pelo olhar das pessoas. Os olhos são a janela pela qual o homem vê o mundo. Olho cada um e percebo que todos estão felizes por estar aqui, o que é recíproco. Muito obrigado.

Page 107: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

105

Entrevista concedida ao projeto Diálogos Abertos, em 14 de abril de 2009, no Museu de Arte Murilo Mendes. Entrevistadores: Afonso Ribeiro da Cruz; Cesar Romero Giovanini Corrêa; José Alberto Pinho Neves; Paulo César Magella; Shirley Torres.

Page 108: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 109: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Nasceu em 8 de fevereiro de 1954, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Filho de Antônio Marinho e Cleonésia Íris Marinho, ainda jovem ingressou no Seminário Santo An-tônio, em Juiz de Fora, e, em seguida, no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro. A experiência religiosa, apesar de não ter se tornado uma vocação, levou à gra-duação em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, proporcionando um pensamento crítico que agu-çou sua curiosidade pela vida e despertou seu interesse pelas artes. Influenciado pela infância no bairro Grama, onde vivenciou as idas e vindas de inúmeros circos, se fez presente na cena teatral de Juiz de Fora a partir de 1981, trabalhando em diversas áreas do espetáculo teatral, seja como ator, figurinista, cenógrafo, diretor, iluminador e preparador físico.

Artista de muitas faces, como a do palhaço Zé Boléo, coordenou incontáveis projetos, entre eles o da peça Meu dia perfeito, que visitou países como Chile e Equador, além de cidades de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Fundou o grupo Navegar e integrou outros tantos, como o Corpo-en-cena, marco das artes cênicas da cidade. Ao refazer a trajetória de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, Marcos Marinho conviveu com Manuel Nardi, o Manuelzão, experiência que resultou no espetáculo Depois das águas. Teve como mestres personalidades como Márcio Libar, Amir Haddad, Gerald Thomas e Denise Stoklos, além de ter estudado commedia dell’arte, na Itália, e se dedicado à dramaturgia contemporâ-nea latino-americana, em Cuba, levando-o à concretização do Espaço Mezcla.

MA

RC

OS

MA

RIN

HO

Page 110: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

No site da centenária Academia de Comércio – Colégio Cristo Re-dentor –, à qual se integra o Teatro Academia, construído em 1926, Marcos Marinho é reverenciado como um artista múltiplo: “[...] Ator e diretor teatral, também tem atuação como figurinista, assistente e roteirista. Marinho canta, dança, desenha e escreve”. O fato de ter idea-lizado e mantido a pleno vapor, por 12 anos, o Espaço Mezcla, com uma programação pautada no ecletismo, também é ressaltado pelo comple-xo de ensino Verbita, que prioriza as artes cênicas, mantendo-as como extensão de conhecimento e prática para seus alunos.

Page 111: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

109

José Alberto Pinho Neves. Antes de passar a palavra, gostaria de situar a sua origem, se é de Juiz de Fora e quem foram seus pais. Poderia nos descrever um pouco de sua vida familiar da infância até os tempos como adulto? Marcos Marinho. Boa noite a todos. Sou de Juiz de Fora, da re-gião do Largo do Cruzeiro. Minha família toda é dessa área, principal-mente, o pessoal da minha mãe, Cleonésia Íris Marinho. Minha pri-meira residência, na rua Olegário Maciel, acabou de ser demolida. Por esses dias, passei por lá e senti uma dorzinha no peito ao ver que a casa não existia mais. Chamávamos de “casa de bico”, porque ficava numa esquina e tinha uma ponta bicuda. Minha mãe vem de uma família de operárias, mulheres que trabalharam na Fábrica de Estojos Malet. A fa-mília do meu pai, Antônio Marinho, veio da região de Sarandira. Gente mais ligada à agricultura, à granja, à roça. Morei nessa região de Juiz de Fora até os 8 anos. Comecei a estudar nos Grupos Centrais, lindo prédio da avenida Rio Branco [Palacete Santa Mafalda]. Depois disso, moramos numa granja, no bairro Grama, à época em que ele era rural. Morávamos todos em pequenos sítios, granjas, com hortas e pomares, e colhíamos peras, uvas. Nada era cercado. E não tem tanto tempo assim, o que demonstra como Juiz de Fora muda rápido, ou melhor, como as cidades mudam rápido.

Meu interesse pelas artes começou nessa região. Embora meu pai nunca tenha sido uma pessoa estudada, muito menos um intelectual, tenho lembranças de, ainda criança, ouvi-lo dizer: “Essa é a Nathalia Timberg, uma grande atriz. Quando vocês crescerem um pouco mais, vão poder vê-la no teatro”. Então, esse tipo de informação me veio ain-da na infância, dentro de casa. Além disso, o ambiente foi propício. Tive a sorte de estudar em escolas que sempre me apresentaram saraus, tea-tros, músicas, declamação de poesia. Nos Grupos Centrais, meu apeli-do era Passarinho por conta de uma poesia que recitei na primeira série e que falava de um pássaro. Esse apelido ficou durante um bom tempo na minha vida, e já foi em função desse meu gosto por recitar, por fazer teatrinho. E lá em Grama, além de a escola nos apresentar essa ques-tão cultural, tínhamos a Hora Cívica, que era também artística, porque cantávamos, recitávamos poemas, apresentávamos nossos cartazes de cartolina desenhados com lápis de cor. Então, era um momento de es-

Page 112: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

110

tímulo para as artes, para a vida humanizada. Lembro também da che-gada de muitos circos, daqueles que um bairro de subúrbio comporta e que traziam peças de teatro. Então, minha infância foi muito rica. Sem-pre brincava de trapézio, de rola-rola, de fazer mágica, de sumir atrás das moitas, das cercas: “Agora, sou eu que vou sumir”, e sumia. Cresci assim, nessa atmosfera mágica.

Morávamos numa granja que tinha muitas variedades de frutas. Vivia na lama, pisando no barro. Comia muitas frutas e ajudava a colhê-las. Na época do feriado de Finados, catávamos flor no mato e fazíamos buquês para vender na porta do cemitério de Grama, que era próximo à nossa casa. São lembranças muito agradáveis, porque envolviam certa competição de quem faz o buquê mais bonito. “Achei flor amarela, você não achou.” Coisas ingênuas assim.

Pinho Neves. Antes de passar a palavra para André Pires, gostaria de continuar com esse raciocínio. Você fala de uma vocação para a cena desde pequeno. Mas, essa vocação para cena vai se consolidar de fato em que época? A partir de um grupo, ou como um trabalho autoral?Marcos Marinho. Meu primeiro grande encontro com o teatro foi com o Grupo Sensorial, do ator e diretor Henrique Simões, que está aqui presente. A montagem era Missa leiga, escrita por Chico de Assis. Eu tinha 16 ou 17 anos e fiquei muito impressionado com aquela forma de fazer teatro. A trilha sonora, os atores seminus, as propostas eram muito fortes para mim. Fiquei tão chocado, tão impressionado com aquilo, que comecei a despertar para essa área. Era como se quisesse comer e beber dessa fonte. Quem me levou para assistir à peça foi o primeiro marido da Marisa Timponi, o João Rodrigues, que era nosso vizinho, e, como ela, foi professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Acredito que ele me via brincando de cantar, tocar e fazer teatro junto com os amigos. Eu tinha um bongô, outro tinha um violão e nos reuníamos por diversão. Preparávamos uma roupa diferente, convidá-vamos os vizinhos e João, que via tudo isso, entendeu que era oportuno um convite para assistir à Missa leiga. Esse foi um momento muito forte para eu desconfiar de que queria me dedicar a essa arte. Mas creio que essa vocação, como acontece com a maioria das pessoas, começa muito antes. No meu caso, acredito que teve início lá na infância, em função

Page 113: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

111

do circo que me encantava, por causa das coisas que a minha família falava, por conta de minha tia que tocava um lindo acordeom branco. Esse tipo de coisa nos alimenta muito antes de uma decisão, ou de um interesse já na juventude, na adolescência ou na vida adulta.

André Pires. Quando vim para Juiz de Fora, em 1984, de imediato o conheci e verifiquei que seu trabalho estava emparelhado com o que, naquele tempo, eram as vanguardas de Paris, Nova York, Berlim. E sua encenação de Navegar deveria ser conhecida por todos – aconselho a gravação em DVD, fantástica –. Era um trabalho de ponta. Na época, me perguntei qual seria a ligação, o link entre aquele rapaz e tudo o que vinha construindo com sua arte. De onde vem essa sintonia, essa comunhão com a primeira linha da linguagem estética? Sempre tive essa curiosidade e, em 30 anos de amizade, nunca lhe perguntei isso, o que faço agora, publicamente. Tenho certeza que essa curiosidade não é só minha. O passarinho voou altíssimo, é um falcão. O que o levou a voar tão alto?Marcos Marinho. Muitas coisas. Não havia internet, é verdade. Até certo momento da minha vida, nem telefone eu tinha. Essa era a realidade de muitos de nós. Mas havia a influência positiva de tudo o que falei sobre a infância, a família, com a adição de questões mais específicas como a Missa leiga. Um pouco depois do Grupo Sensorial, tive outro arrebatamento com o Grupo Divulgação, mais especifica-mente com Robson Terra, não só atuando no teatro, mas atuando no carnaval de Juiz de Fora. Quando me deparei, no final dos anos 1970, com a figura de Robson Terra, magro daquele jeito, pelado na avenida Rio Branco, só com uns cipós pendurados no corpo [fantasiado de Eva], desfilando na Banda Daki, aquilo também me impulsionou.

Mas especificamente sobre a sua pergunta, tem uma coisa mais es-pecífica, mais concreta que é a minha convivência com o padre Paulo Finet, que veio da França e foi para Grama nos anos 1970. Em sua terra natal, esse padre trabalhava com o que podemos chamar de audiovisual, com recursos que continuam sendo destacados em grandes exposições de arte pelo mundo afora. Eram grandiosas projeções em fachadas de prédios com trilha sonora, com autores aparecendo na janela, com queimas de fogos de artifício. Era um craque nessa arte lá na França, e

Page 114: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

112

trouxe isso para cá. Na época, eu era vizinho do pintor Renato Stehling, e vivia na varanda de sua casa, vendo-o fazer seus quadros, e aí pegava suas tintas e pintava também. Hoje, vejo que tive muita sorte de ter tanta gente estimulante por perto. Então, padre Paulo ficou sabendo que eu era vizinho do Stehling, que eu vivia pintando, e me chamou para ajudá-lo na igreja. O que fazíamos? Recortávamos figuras enormes de compensado, de papelão, bidimensionais, pintávamos e colocáva-mos ao redor da igreja com altos jogos de luz e de projeção, gravan-do uma espécie de radionovela com aquilo. Esses foram os primeiros contatos mais concretos para a criação de personagens através da voz, das emoções que a voz pode produzir. Padre Paulo escalava pessoas e gravávamos radionovelas baseadas no Evangelho. Era um trabalho muito mais preocupado com os personagens, com a vida social que o Evangelho trazia do que com a teologia propriamente dita. Claro que tinha uma preocupação teológica; afinal, se tratava da Igreja, mas havia uma preo-cupação estética e sociológica muito forte. Por conta disso, comecei a estudar francês com ele, que me apresentou vários livros, me indicou inúmeros filmes; ou seja, começou a me tirar de Grama para ver que o mundo era imenso. Talvez tenham sido essas as pessoas mais pró-ximas e a situação mais concreta que me fizeram ligar as minhas antenas para o mundo, esse vasto mundo, me tirando do subúrbio.

Raphaela Ramos. Gostaria de começar com uma questão incômoda para a maioria dos artistas. Você é um dos poucos atores locais que, de alguma forma, da sua forma particular, consegue viver de arte. Essa discussão sobre desejo e sobrevivência, em sua opinião, é mais intricada no interior?Você se sente satisfeito com a equação que encontrou para sua vida entre desejo e sobrevivência? Marcos Marinho. Interior que você diz é cidade do interior. Pare-ce que sim, mas aí é quando começamos a conversar com outros artistas que moram em capitais e vemos que é preciso matar um leão por dia ou 50 leões por dia do mesmo jeito. Então, essa situação de atender ao próprio desejo, às próprias necessidades e equilibrar isso com a neces-sidade de manter a sua vida material é algo difícil em qualquer lugar. Do mundo, não sei, mas do Brasil com certeza, em cidade grande ou pequena. O que muda são as proporções. Numa cidade como o Rio

Page 115: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

113

de Janeiro, por exemplo, o dinheiro que é preciso lá é maior do que o dinheiro necessário aqui em Juiz de Fora. Mas, lá, há mais oportunidade para ganhar esse dinheiro. E vai por aí afora. As dificuldades existem aqui e lá. Agora, confesso, sou meio bobo para certas coisas – hoje em dia nem tanto, já penso mais –. Assim, estou assumindo minha face capricorniana, estou aprendendo que tenho que pensar algumas vezes antes de agir, até porque não tenho mais 15 anos, ou melhor: tenho 15 anos multiplicados várias vezes. Mas, até certo momento da minha vida, fui realizando as coisas sem me preocupar se ia me dar dinheiro ou não, se ia pagar minhas contas. E acabou dando certo, porque nunca passei fome. Quando o dinheiro começava a acabar, aparecia mais. Só vim a me preocupar um pouco com isso de um tempo para cá. Sem-pre me preocupei em executar os trabalhos de arte que apareciam na minha vida como oportunidade. Nunca pensei: “Sou um artista, quero ser artista”. Era muito bom poder executar aquilo que a vida ia me apresentado para a área artística. Em alguns momentos, isso dava algum trocado, ou dava um dinheiro a mais, ou não dava nada e eu tinha que tirar do meu bolso, mas nunca me fixei nisso. Estou muito satisfeito. Penso que sou privilegiado, que tenho tido muita sorte. Tenho muitos amigos que trabalham na mesma área e se dedicam com intensidade, acreditando totalmente na arte que fazem. Isso me permite continuar “bobo”, no sentido de me jogar para a arte e seja o que Deus quiser. Quero viver assim.

Aqui, entra a questão do Mezcla, que é uma casa, algo concreto, um empreendimento que precisa de contador, porteiro, gera dinheiro, consome dinheiro. Chega a ser um trabalho braçal, pois tenho que pe-gar engradado de cerveja, que ver uma parede e providenciar uma mão de tinta, que saber se o estabelecimento está dando lucro ou prejuízo. Tenho que me inteirar de todas essas coisas, mas, em última ou primei-ra instância, é saber que o Mezcla pode ser um espaço que gera arte, um lugar por onde passam artistas. É o que mais me interessa. Se o Mezcla não conseguir vender cerveja, não tem problema; mas, se não conse-guir fazer circular arte, aí estou ferrado, porque esse é o meu interesse de vida. Sei que preciso tomar cuidado para o concreto continuar acon-tecendo. O dinheiro existe, o tijolo existe, a folha de pagamento existe, então, sei que devo estar atento. Tenho a sorte de ter sócios que são a

Page 116: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

114

minha família. Minhas irmãs Vânia e Tereza são minhas sócias no Mezcla. Minha sobrinha Heloísa Marinho é a produtora. Isso quer dizer que posso fechar os olhos e deixá-las trabalhar nessas partes que não domi-no. Não sei fazer conta, ficar medindo. Se deixasse tudo por minha con-ta, teria que fechar o Mezcla, ficaria sem camisa para vestir. Não tenho habilidade para isso. É claro que me esforço, que pergunto como está o caixa; mas não é a minha área, assim como não é a área delas estar aqui dando esse depoimento. Peça para uma das minhas irmãs para dar uma entrevista e elas não querem. Então, isso me tranquiliza de certa forma.

José Eduardo Arcuri. Você passou pelo Seminário Santo Antônio e, depois, pelo Mosteiro de São Bento. Poderia nos falar a respeito? Imagino que isso teria influenciado seu trabalho de ator, de ritual. Até que ponto isso foi um caminho para chegar até esse rito do teatro, da interpretação? Ou seria, de fato, uma vocação?Marcos Marinho. Pois é, as religiões lidam, antes de mais nada, com rituais. Todas elas. Então, vamos voltar um pouco ao padre Paulo Finet. Eu, entusiasmado, muito jovem, inexperiente, ainda desinforma-do; enfim, muito sensível, como se fosse uma antena parabólica. Sem-pre fui muito captador. Eu olho assim e aquilo já me pega. Às vezes, tento escapar e não consigo. A vida me pega. E, aos 16 anos, a vida me pegava muito mais. Agora, já tenho casca, tenho calos. Mas, imagina como a vida nos pega na adolescência. Eu, não, todo mundo. E o padre Paulo Finet era um furacão. Tinha crises renais que o incitavam a ser um furacão maior ainda. Lembro-me dele falando: “Temos que acabar isso hoje, tem que ficar pronto agora. Não podemos perder tempo. A arte não pode ficar esperando esse tempo todo, essa lentidão de vocês. Tem que ser para já, senão a arte não acontece”. Esse é um dos rituais que aprendi. Se você ficar cozinhando demais, a arte não acontece. É igual fazer bala. Se aquilo passar do ponto, joga fora e começa a fazer outro. Então, apreendi esse rito lá atrás, com padre Paulo. Não é ques-tão de acelerar e queimar etapas, é questão de cozinhar com vontade porque alguém quer comer aquilo daqui a pouco. Não pode ficar toda a vida, não pode ficar esticando por muito tempo ou simplesmente não acontece. Fiquei muito entusiasmado com esse homem que era muito inteligente, tinha muita informação para dar e me apresentou músicas

Page 117: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

115

maravilhosas, livros maravilhosos, além da língua francesa e muito mais, como a leitura dos evangelhos de uma maneira que eu nem desconfiava que pudesse existir. Aprendi outras formas de ler os livros sagrados, sejam de qual religião for. Entusiasmado com isso, eu disse: “Quero ver isso mais de perto. Quero ir para o seminário”. Foi tudo muito louco, porque cheguei um dia, ele estava pintando o rosto de Nossa Senhora recortado, e, para não dar tempo de desistir, ou ficar com vergonha, cheguei falando assim: “Padre Paulo, quero ser seminarista”. Sem virar para trás, ele disse: “Eu já sabia que você, um dia, ia querer ir para lá. Vai sim!”. E as providências foram tomadas. Então, fui e fiquei um ano no Seminário Santo Antônio. Foram fantásticos os estudos de filosofia, de teologia.

É incrível como certas coisas jogam o preconceito por água abaixo. Vivemos falando que as religiões são fechadas, são isso, são aquilo, mas os lugares onde mais aprendi a respeitar a diferença de opinião foram, exatamente, no Seminário Santo Antônio e no Mosteiro de São Bento, principalmente no tocante à opinião religiosa, aos credos religiosos. Embora aprendêssemos a teologia cristã católica, os professores faziam questão de ensinar diversas outras religiões de uma maneira muito dig-na e respeitosa. Esse foi outro ritual que aprendi. E, lá dentro, tínha-mos as cerimônias religiosas, que nada mais são do que rituais esté-ticos. Acordávamos às 5 horas da manhã em silêncio. Ninguém podia conversar. Às cinco e meia todos tínhamos que estar na capela e, por 15 minutos, ficávamos rezando, até que a missa começava. O primeiro som que ouvíamos era a bênção do padre. Era um ritual forte e bo-nito. Se quisermos tirar fora a questão religiosa porque se é de outra religião, ou de religião nenhuma, ainda assim essas sequências de ações são muito teatrais, belíssimas. E nós, artistas, temos que aprender com essas coisas. Participávamos desses rituais 3 vezes por dia: ficar em si-lêncio e depois rezar, em sequência, começar a falar mais alto e, logo em seguida, cantar, tocar instrumentos, e finalmente sair para estudar. Para completar o dia, tomar um banho de piscina, cuidar de porcos, do pomar, jogar futebol e tratar de dentes. Ao contrário do que muitos pensam, fazíamos, inclusive, festa no seminário, com caipirinha e tudo mais. Colocávamos música e dançávamos, porque a vida acontece lá dentro em todos os seus matizes, em todos os sentidos. As disputas, as

Page 118: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

116

fragilidades humanas, tudo isso existe lá dentro. É fato que esses rituais foram e ainda são muito presentes na minha vida.

No Mosteiro de São Bento, fiquei por um tempo menor. Na verda-de, saí do seminário quando percebi que iam me mandar embora. Aí, pulei antes. Eu e minha turma, quando percebemos que não cabíamos ali, falamos: “Vamos sair antes que nos mandem embora”. Isso porque é muito feio ser mandado embora... É muito chato: “Saia da minha casa!”. Não dá. Começamos a perceber isso porque, na época, o arcebispo D. Geraldo Maria de Morais Penido era muito conservador. E estávamos descobrindo a Teologia da Libertação e a pedagogia de Paulo Freire. Isso não cabia em Juiz de Fora. Eu e minha turma estávamos interes-sados em trabalhar nas Comunidades Eclesiais de Base, que existiam muito antes de nós, nos anos 1960. Inclusive, uma das questões fortes da ditadura militar no Brasil [1964-1985], foi perseguir os padres, os religiosos que trabalhavam nessas comunidades eclesiais. Estávamos no final dos anos 1970 e as comunidades existiam desde 1962. Mas D. Ge-raldo não permitia que os seminaristas de sua diocese se encantassem com a Teologia da Libertação ou com Paulo Freire, muito menos com Augusto Boal. E estávamos descobrindo essa gente. D. Geraldo chegou a falar comigo com todas as palavras: “Você veio aqui para se formar como religioso, não como artista”. Ele disse isso no dia em que me fla-grou pintando um quadro no corredor do seminário. Foi quando pedi licença para sair. Aí um bispo de Friburgo, que era da outra linha, da Teologia da Libertação, me acolheu, em Niterói, e me enviou para es-tudar no Mosteiro de São Bento, onde fique por 6 meses. Não cheguei a ser noviço e nem a morar no mosteiro. Morávamos numa casa, em Niterói, eu e mais 4. E íamos para o mosteiro todos os dias, passando o dia inteiro lá. Acabávamos participando das atividades que esses lugares propõem e que nos colocam no nosso devido lugar: esfregamos chão, lavamos cocô de porco, limpamos a oficina, amassamos massa para fa-zer pão, colhemos uva, pintamos parede, varremos quintal, servimos as mesas um do outro e lavamos pratos, esse tipo de trabalho manual, braçal, que é tão importante para a vida de qualquer pessoa e que, infe-lizmente, nossa vida urbana, burguesa, rouba isso de nós.

A educação burguesa priva muita gente de lavar seu próprio prato, de arrumar a sua própria cama, de varrer a sujeira que você mesmo

Page 119: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

117

colocou no meio do seu quarto. Isso é importante, e somos privados desse aprendizado. No ambiente religioso, pelo menos no que tive a chance de experimentar, isso foi nos apresentado como uma dádiva, como um presente, como uma oportunidade de ser bem na vida, de cuidar de si mesmo, o que inclui saber lavar a própria roupa e ajudar a fazer a comida que se come. São cuidados que o seminário e o mostei-ro me ensinaram com muita eficiência. Claro que, muito antes, houve essa aprendizagem em família. Lembro de dizer em casa: “Não gosto de couve, não”. E a resposta era sempre: “Come assim mesmo”. Apren-díamos a valorizar a comida que nos era dada. Quando alguém dizia “não gosto disso, não”, a resposta era: “hoje, é o que temos para comer. Vamos comer, sim, e agradecer a Deus”. Meus familiares me ensinaram isso, mas o mosteiro me ensinou como ritual, tanto que alguns desses ritos uso até hoje como trabalho mesmo.

Quando ensaiamos Pela noite, coloquei 2 rapazes para limpar o chão do Espaço Mascarenhas [Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, aveni-da Getúlio Vargas] todos os dias antes do espetáculo começar, e era abai-xadinho no chão, esfregando com o pano molhado, para aquecer, para alongar, para criar uma energia diferente daquela do dia a dia. E tam-bém para dizer: “Você é ator, coloque-se no seu lugar, vai para o chão. Você não é nada mais do que isso”. Nós, artistas, não somos mais nada do que isso, pessoas que precisam fazer comida e lavar o chão, porque isso é fazer o mundo ficar mais bonito. Não é isso que queremos? Fazer o mundo ficar mais bonito? Então, vamos limpá-lo. Catar a sujeira que as pessoas jogam na calçada do Museu de Arte Murilo Mendes. Ir lá, ca-tar e botar na lixeira. Não é essa a nossa função? Acredito que esse tipo de ritual me foi ensinado pelo seminário. Isso é literal. É catar mesmo o pedaço de papel no chão e colocar no lixo. Isso não é metáfora, não. É fazer isso mesmo. É claro que não aprendi isso o tempo inteiro. Não faço isso todos os dias e todos os segundos da minha vida, mas aprendi que isso é importante. Estou tentando fazer, algumas vezes consigo, outras não. Mas, os rituais são mesmo muito fortes e muito bonitos de serem vistos. Amassar o pão é algo lindo, cortar a verdura também. Quando vemos uma pessoa colocando uma tábua para cortar os legu-mes, com todas aquelas cores, pensamos: “Qual artista plástico conse-gue retratar isso?”. Muitos pintam belissimamente, mas é bom ver isso

Page 120: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

118

na vida real. A cenoura alaranjada picada ao lado do pimentão verde. Aí vem o Renato Stehling, ou seja quem for, e reproduz, ou transforma, essas cores e essas formas.

Ricardo Martins. Este ano [2012], em novembro, fazem 20 anos que nos conhecemos, que trabalhamos juntos. André Pires estava fa-lando, no início, dessa conexão que você tinha, há 30 anos, com a van-guarda internacional. E, ao mesmo tempo, você sempre esteve muito ligado ao homem, à cultura do interior do Brasil. Como isso o alimenta muito, queria que você falasse um pouco a respeito. Algo sobre essa relação do local que acaba virando universal. Queria também que nos falasse do contato com Manuelzão quando montamos Depois das águas, que remete a uma época muito bonita, de muitos acontecimentos. Marcos Marinho. Sobre a questão do interior, posso acrescentar que sou da roça em todos os sentidos. Ia acampar em Coronel Pacheco, viajava para Tocantins, perto de Ubá, ia à praia em Niterói. Nas férias de adolescente, ia à praia num cantinho chamado Piratininga, onde tam-bém havia uma lagoa e 2 ou 3 casas. Então, sempre estive no meio do mato, em praia deserta, em cidade pequena. Desde cedo, convivi com pessoas dessas regiões. Então, isso acaba ficando. Depois de certo tem-po, passei a revisitar esses lugares até pelo interesse estético de ver a cor do rio São Francisco comparada com a do rio Paraibuna aqui perto da rua Halfeld e lá na nascente. O rio Paraibuna não é de uma cor só, nenhum rio, nenhum córrego é. Na granja onde cresci, tinha meia dú-zia de córregos. Um tinha girino, outro não. Outro tinha florzinha na beirada, outro não. Tive que aprender a ver essas coisas. Estava ali, de graça, para mim. E junto com isso, com a natureza propriamente dita, observei como as pessoas dessas áreas vivem, com seus bailinhos de roça, com as procissões de igreja. Coroei Nossa Senhora várias vezes. Vesti aquela roupinha marrom e fui São Francisco várias vezes. Aprendi a soltar foguete, em Chácara, em Filgueiras. Aquelas procissões longas, com todo mundo de branco e os menininhos de marrom, vestidos de São Francisco. Essas cores ficam eternizadas na memória. O branco, o azul e o marrom são cores que me pegam sempre. Então, comecei a procurar, isso quando comecei a ver que estava trabalhando e vivendo no meio artístico, essas cores, essas formas, essas músicas. “Oh minha

Page 121: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

119

mãe estarei...”. Esse timbre não sai da minha cabeça, não tem jeito. Assim como outros timbres permanecem. E aí, é claro, aproveito essas vivências para meu trabalho como ator. Tem o Zé Boléo, meu palhaço, que fala de uma maneira que aproveita um timbre vivenciado lá atrás.

A partir de certo momento, comecei a procurar as cores e os sons do passado e comecei a viajar para revisitar tudo isso. A questão do Manuel-zão [personagem de Guimarães Rosa a partir de Grande sertão: veredas] foi isso. Em 1994, montamos o espetáculo Depois das águas, em que Ricardo Martins e Markito [Marco Antônio Souza] estavam. A Lígia Brasil era uma mãe mitológica que amassava um barro e nascia um homem-bicho de suas entranhas. Nessa época, estava muito cismado com Guimarães Rosa, devorando seus escritos, embora já conhecesse sua obra anteriormente. E aí, me deparei com Epopeia de Gilgamesh, uma das primeiras obras da literatura mundial. Um poema épico do Oriente Médio, onde hoje está o Iraque, e que antes era a Mesopotâmia. E aí falei assim: “Gente, dá para comparar uma coisa com a outra”. Esse antigo poema fala de coisas simi-lares ao sertão de Guimarães Rosa. Inclusive, os 2 usam palavras estra-nhas, pessoas misturadas com bicho, águas que correm para cima. Parece que beberam na mesma fonte, porque Epopeia de Gilgamesh reúne diver-sas lendas e poemas sumérios sobre um mitológico herói, que não foram escritas por um só autor. Não sou bom em literatura, mas sei que se trata de uma epopeia da Mesopotâmia. Comecei a desconfiar que Guimarães Rosa apresentava similaridades em relação à Epopeia de Gilgamesh. Lem-bro-me de haver dito: “Mas isso é tão teatral. Podíamos fazer uma peça de teatro, aproveitando alguns desses mitos”. E não deu outra. O Grupo Navegar já existia, com pessoas muito interessadas nesse tema, nessa for-ma de fazer teatro não linear, de início, meio e fim. Não se tratava de uma estética pura, era algo muito interiorano, no sentido de, literalmente, lidar com barro, com terra, com água, com fogo, com ar; enfim, com os elementos primordiais da natureza.

Encaramos essa empreitada e resolvemos viver essa Epopeia de Gil-gamesh. Aí, pensei: “Bom, já que estou desconfiado, vou lá ver se isso é verdade”. Refiz o trajeto que Guimarães Rosa fez para escrever Grande sertão: veredas. Fiz essa viagem a partir de Belo Horizonte, indo para Sete Lagoas, Cordisburgo, Corinto, Três Marias, Araçuaí, São Romão. Não sei se vou me lembrar de todas as cidades agora. Fiz o percurso com

Page 122: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

120

Doroti Enira. E, a princípio, fomos só para dar uma olhada, para ver se era aquilo mesmo. Comecei a ficar louco com o seguinte: na Epopeia de Gilgamesh falava-se em balaios, em cestarias. E não é que encontramos muito disso nessa área? Falei: “Oba, então vamos levar para o cenário”. O poema fala em pedras e cristais, e aquela região é rica em cristais – são exportadores, inclusive –. Achamos, principalmente em Cordis-burgo e Corinto, cristais sendo vendidos em biroscas, nos lugares de turismo e tal. E nossa peça utilizava muitos cristais, espalhados pelo chão, costurados nas roupas e tal. E o terreno era árido de fato. Então, essa comparação foi constatada. Ela deixou de ser uma constatação da literatura, do Guimarães Rosa e da Epopeia de Gilgamesh, para uma cons-tatação, ali, de elementos da natureza e de mitos também. Certos mitos do sertão mineiro, do sertão brasileiro são muito próximos dos mitos da Mesopotâmia. A aridez é uma constante.

E aí nos deparamos com a casa de Manuelzão. Para quem não sabe, Manuelzão [Manuel Nardi] era um boiadeiro, mais precisamente um cozinheiro de boiada. Guimarães Rosa o conheceu e conviveu com ele. Enfim, viajou com aqueles homens para levar uma imensa boiada de uma fazenda para outra nas Minas Gerais. Manuelzão era uma pessoa muito sensível, um boiadeiro muito atento à poesia que o mundo nos oferece, às cores das flores, ao tamanho das pedras, ao chiado dos carros de boi. Via e ouvia isso tudo como poesia. Não foi à toa que Guimarães Rosa se aproximou muito mais dele do que dos outros boiadeiros e começou a perguntar aquilo que viria a ser importante para sua litera-tura. “Que pedra é essa? E esse bicho, essa planta?” E quem respondia era Manuelzão. E assim ficaram muito próximos. Quanto a mim e a Doroti, queríamos chegar a Andrequicé, distrito de Três Marias, onde Manuelzão morava. A sorte, a dádiva, foi que nos hospedamos na casa dele. A primeira imagem que guardo de Manuelzão, ao vivo – porque, é claro, já tinha visto algumas fotos –, foi linda. Chegamos de ônibus, depois de percorrer aquelas cidades todas, dormir aqui e ali, sentir ca-lor de dia e frio à noite, comer coisas de botequim de beira de estrada. Fizemos questão de ver isso tudo. Então, essa é a imagem que gravei – Doroti ri de mim porque vou ficando emocionado; mas deixo para lá. Se estou emocionado, estou; se tiver que chorar, choro; se tiver gritar, grito. Fazer o quê? –. Estávamos dentro do ônibus e Manuelzão estava

Page 123: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

121

do lado de fora de uma venda, trajando calça branca e camisa azul clara, com aquele cabelo branquinho, aquela barba branca imensa... Foi lindo de ver, porque estávamos nos deparando com um mito. Um homem comum como todos os outros, mas com a grandeza de um personagem imortalizado nos livros de Guimarães Rosa, em especial Manuelzão e Miguilim. Tivemos a bênção de conviver com ele, ficar hospedados em sua casa. O fato é que nos passou muitas informações concretas para a montagem do espetáculo Depois das águas, com o grupo Navegar.

Na época da estreia, trouxemos o Manuelzão a Juiz de Fora, inclu-sive para ministrar uma palestra no anfiteatro do Instituto de Ciências Humanas e Letras, o ICHL, atual ICH, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Quem fez a ponte para foi a professora Marisa Timponi. De-pois disso, voltei 3 vezes a Andrequicé. Uma delas, justamente através de uma parceria com a UFJF, que providenciou o traslado, com um motorista para buscar e levar Manuelzão. Viajamos eu, Manuelzão e o motorista, que também ficou louco com ele. Todo mundo ficava. Era um homem muito impressionante, pelo que nos contava e pela própria figura em si. Chegando no arraial, fez questão de nos hospedar em sua casa. Ficamos mais 3 dias por lá. Depois, retornei a Andrequicé com um amigo. Mais tarde, fiz mais uma viagem, desta vez sozinho. Fui até Governador Valadares, onde morava Tiago Salomé, um amigo, e onde já dirigi e participei de festivais de teatro. De lá, atravessei Minas Ge-rais de Leste a Oeste até chegar a Montes Claros, indo para o rio São Francisco de uma margem a outra. São Romão, Pirapora, Vale da Onça, muitas cidades que o Guimarães Rosa fez questão de conhecer para sen-tir esse interior. Quis fazer esse caminho sozinho para sentir na pele a experiência de não ter a quem pedir socorro, passando medo se tivesse que passar, pedindo a companhia de alguém se tivesse que pedir. Tinha a certeza de que sozinho – claro que encontrei companheiros também – esse interior ia entrar forte em mim. Era o que eu queria. Essa últi-ma viagem [1998] foi muito boa porque era janeiro, época de folias de reis. A beira do São Francisco com folia de reis é uma aventura ímpar, para nunca mais esquecer, com as cores, as danças, as cantorias, as rou-pas bordadas de lantejoulas. A folia de reis começa quando a primeira estrela aparece no céu e acaba quando a última estrela some. Vai do surgimento da estrela Dalva até quando começa a amanhecer. Os inte-

Page 124: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

122

grantes da folia tiram o sapato para entrar nas casas e tomam uma dose de cachaça. Alguns tomam muitas doses, mas o mote para entrar numa daquelas casas é tomar uma dose de cachaça. Esse é um dos rituais na região do rio São Francisco. Rezam, cantam, comem e convivem com as pessoas a noite inteira até o raiar do dia. É muito bonito, porque não tem diferença entre estar rezando, estar convivendo, estar dançando e estar comendo. Tudo é reza e tudo não é reza. Esse interior é muito forte na minha vida. Primeiro, por acidente e, depois, procurando. E continuo procurando. Sempre que posso, estou lá.

Mas esse interior está também nas grandes cidades. Domingo pas-sado, fui dançar forró na feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. No centro do Rio de Janeiro, que é uma grande cidade. Aquilo é um bailão do interior. É lindo, quem nunca foi, tem que ver a beleza que é os nordestinos matando saudade do Nordeste. Para mim, é o que basta naquele lugar. Pode ser folclórico, pode ser turístico, mas o mais importante é o fato de que é forte. É bonito ver as pessoas matando a saudade da sua terra, de Dom Pedrito, de Grama, de São João del--Rei, de Chácara, de Barbacena – Barbacena é longe –; enfim, do seu interior. Então, essa “Barbacena é longe” é do conto Soroco, sua mãe, sua filha, de Guimarães Rosa, que foi a minha primeira cara de pau para me aproximar de Guimarães Rosa e me apropriar daquilo para colocar no teatro. Somos mesmo loucos quando jovens. Veja isso: achar que está podendo ficar junto com Guimarães Rosa. Mas temos que aproveitar a juventude para cometer essas loucuras. Na verdade, alguns de nós têm a vida inteira para cometer essas loucuras. É preciso cometer a loucura de ler Guimarães Rosa e dizer: “Quero filmar um conto de Guimarães Rosa”, e fazer esse filme. No que isso vai dar depois, é o que menos importa. Às vezes, essas obras de arte dão certo. “Barbacena é longe” foi lindo, não é mesmo, André Pires? André foi meu companheiro nessa viagem, porque compôs a música-tema de Navegar a partir de uma letra que escrevi. Márcia Carneiro, Miriam Mota e eu fizemos essa peça e a abertura era com Soroco, sua mãe, sua filha. A letra da música-tema foi resgatada da minha infância e da minha juventude em Grama. Tinha uma senhora que via borboleta no ombro das pessoas. Dona Inês. Era uma mulher muito bonita, muito branquinha, sempre com uma trança vermelha. Ela olhava para a pessoa e dizia: “Olhe, tem uma borbole-

Page 125: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

123

ta no seu ombro. Fique quietinho, olhe a borboleta. Voou”. Isso já era uma poesia pronta, prontíssima. Só me apropriei desse poema da vida, organizei de alguma forma e André musicou lindamente. Depois, essa música foi cantada pelo grupo De Baixo do Céu, do Teatro Sesiminas. Fazíamos cantigas de roda nas ruas de Juiz de Fora e Minas Gerais afora, agregando quem quisesse. De novo, íamos para o interior. Ganhávamos prêmios em festivais de teatro com cantigas de roda. Coisa deliciosa. Brincávamos de roda na rua e essa música era uma delas. Havia outras que todo mundo conhece e que são mais um tesouro da literatura e da cultura oral que o Brasil tem, que o mundo tem e que não podem ser esquecidas. Não temos o direito de deixar isso de lado.

Pinho Neves. Vou usar uma frase que nos disse momentos atrás, “nenhum rio é de uma cor só”, e vou fazer um elo com o próprio tea-tro. Gostaria de conduzir a pergunta especificamente para juiz de Fora. Então, tomando essa referência e transformando-a em metáfora, como analisa o teatro na cidade?Marcos Marinho. É um teatro que não é de uma cor só. Que bom!

Pinho Neves. Sem querer causar nenhum constrangimento, acredi-to que é um propósito dessa entrevista saber o pensamento do entre-vistado sobre o campo onde ele se insere. Se por acaso não se sentir à vontade, diga: “passo”.Marcos Marinho. Não, não. Penso que não há problemas em falar sobre algo que é muito rico em nossa cidade. O teatro em Juiz de Fora é rico na proporção que a cidade oferece. O tamanho populacional, o dinheiro que se investe, a política que se faz aqui, proporcionalmente a isso, até que fazemos um teatro bastante rico. Se fôssemos acompa-nhar o que Juiz de Fora oferece de fato, era para estarmos fazendo um teatro até menor em quantidade e em qualidade. Se fôssemos pensar no retorno concreto que a cidade nos proporciona, talvez estivéssemos fazendo menos teatro. Mas não. Estamos fazendo muito teatro e algum teatro de qualidade. Qualidade que não tem nenhum critério de “esse é bom” e “aquele é ruim”. Qualidade, para mim, significa aquele teatro que impacta de certa forma. A arte deve causar problemas, deve ins-tigar as pessoas, deve tirar o espectador de sua cadeira confortável. E

Page 126: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

124

penso que, ao longo dessas décadas que tenho presenciado, o teatro tem criado problemas.

O teatro de Henrique Simões causou muito problema, para mim inclusive. O teatro que o José Luiz Ribeiro faz causa muitos problemas de todas as espécies. Tenho muitas imagens do teatro que se fez. Não vou falar do que se faz, porque há algum tempo que não assisto às peças do Grupo Divulgação. Mas tenho certeza que, ali, se faz um teatro que causa algum tipo de problema. E aqui, nesta sala, tem um monte de gente que continua fazendo teatro, e de cores diferentes. Sempre desconfio que falta, para nós, artistas de teatro em Juiz de Fora, estudar mais. Penso que sou meio CDF. Sempre fico achando que temos obrigação de estudar mais, seja lá qual for a forma de estudo: ler um livro, frequentar cursos, fazer faculdade, conversar com o colega. Entretanto, isso não tem impedido de os grupos e de os artistas avulsos estarem produzindo. Vemos, por exemplo, o Festival de Cenas Curtas em que algumas cenas acabam virando peças depois. No próprio Mezcla, tem a Mostra de Curtas Performances que coincide com o festival propriamente dito de teatro de Juiz de Fora. Tenho visto coisas incríveis acontecendo por lá, não é mesmo Raphaela Ramos? Coisas miúdas em tamanho, de 2 ou 3 minutos, mas incríveis. Dignas de qualquer centro, de qualquer tama-nho, de qualquer país. Então, em Juiz de Fora, esse pipocar de coisas, às vezes rápidas, tem trazido pérolas, joias, diamantes que merecem ser lapidados. Algumas coisas que começam e, por muitos motivos – um deles é o econômico –, param no meio do caminho, não conseguem ir adiante. Depois tem que voltar quase do zero, principalmente por conta dos chamados patrocinadores que a cidade não tem, que a cidade esconde, que são difíceis de aparecer. Apesar disso, temos visto obras fortes que causam problemas. Não sei se é o caso de citar algumas delas, mas que tenho visto, tenho. E muito coloridas, de estilos diferentes, de propostas diferentes do fazer convencional. A forma teatral é infinita, a forma artística é infinita. As cores são muitas. Temos visto dramas, comédias, palhaços, teatro gestual, teatro com textos já consagrados ou com textos que ninguém ouviu falar. Tem acontecido. O empecilho é a questão econômica, que atrapalha, freia as pessoas.

Às vezes, penso em como sou velho, no sentido de já ter feito muito teatro, não no sentido de estar acabado. E então penso no Mezcla, que

Page 127: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

125

é uma coisa concreta, uma casa que envolve a questão econômica e fica até muito fácil ficar falando isso aqui. Mas o fato é que nunca parei de fazer teatro por falta de dinheiro. Está aí uma cobrança aos outros artis-tas da cidade. Desde 1981, não fiquei sequer um mês sem fazer teatro. Acredito que a falta de recursos não é justificativa para não fazer. Enten-do que a ausência de dinheiro bloqueia as pessoas, as impede de prosse-guir, as desestimula. Se vou bater na porta de uma empresa milionária, multinacional, para pedir a merreca de um dinheirinho para comprar um figurino, e ela fala que está em crise sem estar, essa resposta é uma banheira de água fria em mim. Ainda assim, não entendo um artista que para por conta disso.

Pinho Neves. Robson Terra foi mencionado por você no início des-se depoimento e gostaria de dizer que ambos jamais se intimidaram diante da ausência de recursos. Continuaram produzindo, se reinven-tando e fazendo teatro em Juiz de Fora. Considerando as diferenças en-tre uma produção e outra, qual seria o recurso mínimo para se montar um espetáculo teatral?Marcos Marinho. Deixe-me pensar, já que é você quem está per-guntando.

Pinho Neves: Isso não quer dizer que eu queira produzir. Deixe-me explicar por quê. Em 8 anos como superintendente da Funalfa [Funda-ção Cultural Alfredo Ferreira Lage], observei que uma das coisas que mais angustiava a pessoa que está à frente de um processo cultural é administrar o dinheiro e, ao mesmo tempo, satisfazer a todos de uma maneira que isso possa impulsionar aquela área. Apesar de a Lei Muri-lo Mendes, naquela época, ter recursos limitados, vi coisas realmente fantásticas, de grande qualidade, que poderiam estar sendo encenadas em São Paulo, Rio de Janeiro, como você mesmo colocou aqui. Não é porque estou na sua presença ou do próprio Ricardo Martins, mas o es-petáculo Pela noite, de Caio Fernando Abreu, era para qualquer cidade. Como você fez o registro do Grupo Divulgação, lembrei da montagem de Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello, em Juiz de Fora, muito mais impactante que a realizada por um outro grupo no Rio de Janeiro, no teatro Copacabana Palace, com um elenco de estre-las. Era marcante a altíssima qualidade desse teatro amador que estava

Page 128: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

126

sendo feito em Juiz de Fora. Então, penso que o recurso que Juiz de Fora disponibiliza para isso é pouco, o que, concordo com você, não é impedimento para que coisas possam acontecer. Claro que, sem verbas, limita-se o número de atores, o figurino, mas entendo que aí entra o que você tanto frisou: a criatividade e o compromisso com a arte cêni-ca. Minha pergunta sobre recursos é nesse sentido.Marcos Marinho. Como quantificar o teatro? Acredito que você já tocou num dos pontos fundamentais, que é o fato de cada produção exigir um volume de dinheiro diferente. Para as coisas concretas, como cenário, figurino, passagens de ônibus, avião ou carro, há como quan-tificar, o que não é possível quanto ao que determinada pessoa precisa ou merece ganhar por ter ensaiado, ininterruptamente, durante anos. Quanto eu deveria pagar ao Ricardo Martins por haver escrito Meu dia perfeito e ter me dirigido, por um ano e meio, e muito antes já estar pensando nessa peça? Como se mede isso? Como se paga isso? Não tem como. O que eu estava falando quando mencionei o banho de água fria é, antes de mais nada, a questão da postura. Se alguém inscreve um pro-jeto na Lei Murilo Mendes, ou vai para a Mercedes-Benz pedir patro-cínio, ou entra no edital do Banco do Brasil, quer resultados positivos. Se a pessoa não consegue aprovar seu projeto, a tendência é desanimar. Se estiver desprovido de algumas convicções, o desânimo é grande e acaba por levar a uma inatividade. Se a pessoa é muito jovem – seja de pensa-mento, de convicções ou de idade propriamente dita –, acaba por ficar um tempo sem fazer nada. Em termos de número, creio que cada coisa é cada coisa mesmo. Até posso exemplificar com Meu dia perfeito, que Ricardo Martins e eu produzimos. Custou uma merreca. R$ 3 mil, R$ 500? Não sei. Mas, enfim, custou muito pouco.

Pinho Neves. Vamos quantificar. Menos ou mais que R$ 10 mil?Marcos Marinho. Olha, monto uma peça ótima com R$ 10 mil. A questão é a seguinte: desenho um cenário de tecido e penso que deve ser feito com nylon de aeronáutica. Isso vai me custar R$ 10 mil. Se esse é todo o dinheiro de que disponho, então qual a razão de usar um nylon de aeronáutica se consigo contar a mesma história com o cetim das Lojas Americanas? O teatro tem essa força. Posso, inclusive, não fazer cenário de tecido nenhum, porque, como diretor, vou exigir ou-

Page 129: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

127

tros recursos do ator, para cobrir a falta da lona de aeronáutica que não pude comprar. Esse é o espírito do artista. É acreditar que, depois, vou ganhar esses R$ 10 mil na bilheteria, como tem acontecido com Meu dia perfeito. De início, tiramos dinheiro do nosso bolso e já há algum tempo que essa peça está retornando esse dinheiro para o nosso bolso. Isso é raro. Tem que acreditar muito e, mesmo acreditando, nem sempre acontece. Mas essa é uma das maneiras de trabalhar. Ainda assim, acre-dito que é preciso, sempre, bater na porta das empresas, se inscrever na Lei Murilo Mendes. É um direito do artista concorrer a essas verbas. É um dinheiro nosso. E nós somos muito mal pagos. No Brasil, ainda somos muito mal pagos. Tem gente que acha que está com a vida ganha, comprando isso e mais aquilo; mentira, não está nada. Tem que correr muito atrás, porque é um dinheiro incerto. Às vezes, entra R$ 10 mil, mas depois fica meses ou anos sem entrar nada. E aí, como faz? É um dinheiro inseguro. É, antes de mais nada, inconstante. Então, é difícil de quantificar por causa disso, porque os recursos entram numa época e não em outra, entram numa produção e não em outra. E a grande questão é ser meio bobo nesse ponto, no seguinte sentido: “Gosto do que eu faço, quero e vou continuar fazendo”.

André Pires. Gostaria de perguntar algo sobre a letra “z” do Mezcla. Poderia ser também um “s” de “mistura”. Coincidiu desse Mezcla com “z” proporcionar a Juiz de Fora um espaço hispano-americano, ibero--americano. E há peças de autores que eu não conhecia, mas que ouvi e me deleitei, assim como tantas outras pessoas. É um espaço onde há lei-tura de textos latino-americanos. O que o levou a caminhar nessa dire-ção? Quais são os frutos que pretende colher e que, efetivamente, está colhendo, no âmbito pessoal e no da comunidade cultural onde atua?Marcos Marinho. Durante meu período de Rio de Janeiro [1979-1981], tinha aulas pela manhã no Mosteiro de São Bento e, à tarde, na PUC [Pontifícia Universidade Católica]. Fiz a faculdade de Educação Artística junto com a de Filosofia, sem me formar em Educação Artís-tica. Fazia porque era uma oportunidade que a PUC dava – e parece que ainda hoje mantém essas bolsas para estudantes de outros países latino-americanos –. Foi nessa época que comecei a conviver muito de perto com peruanos, uruguaios, argentinos etc. Vem daí meu interesse

Page 130: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

128

pela cultura hispano-americana, que se fortaleceu, inclusive pela língua espanhola. Quando abri o Mezcla, em 2002 – comecei a pensar nesse projeto em 2001, quando o Sesiminas anunciou que acabaria com o teatro em dezembro de 2001 –, o grupo De Baixo do Céu precisava de um lugar. Eu era contratado pelo Sesi desde dezembro de 1989. Não é pouca coisa estar num grupo de 10 anos, que formou tantos artistas. Então, em 2001, decidi: “Com o Sesiminas me demitindo, vou apro-veitar o dinheiro para construir alguma coisa que tenha uma finalidade maior. Que não sirva só para mim, Marcos, mas que sirva para outras pessoas também”. E o que seria? Ter uma casa onde eu pudesse trabalhar como artista. Foi como o Mezcla surgiu.

Interessado que sempre fui nos países vizinhos, viajei a Cuba. E aí foi um “Deus nos acuda” porque aquele país é a diferença, faz a diferença para o bem ou para o mal, mas faz a diferença em todos os sentidos. Fui para lá, a princípio, só com o interesse de conhecer um país dife-rente, mas sabendo que muita coisa que a mídia apresenta pode ser falso, uma campanha contra o país. Sempre desconfiei disso e constatei que é verdade. Muito do que se fala no Brasil e no mundo sobre Cuba é mentira. Lá não é o paraíso, como nenhum lugar do planeta é. Mas fui para lá imbuído desse espírito de ver, de passear, de conhecer um país diferente, e tive a sorte de conhecer a diretora do Departamen-to de Teatro de La Casa de Las Américas, Vivian Martinez Tavares, que se transformou numa amiga. Sempre que é possível, nos falamos por e-mail ou telefone. Vivian já veio ao Mezcla para ministrar uma pales-tra. Já nos encontramos em Belo Horizonte também. Ao me apresentar a biblioteca de teatro de La Casa de Las Américas, Vivian ficou, meio que informalmente, como minha orientadora para assuntos de drama-turgia contemporânea da América Latina. E é justamente ela quem mais manda textos de Teatro Lido para o Mezcla, uma modalidade conhecida em 15 países da América Latina graças ao seu trabalho. Por 3 vezes, houve resenhas sobre o Mezcla na revista de teatro de La Casa de Las Américas. Ela mesma se encarrega da divulgação nos países latino-ame-ricanos, para os dramaturgos de sua relação.

Então, o “z” do Mezcla é em função do meu interesse em trazer es-ses assuntos para Juiz de Fora, onde, até então, se falava pouco sobre as questões hispano-americanas, exatamente como no resto do Brasil.

Page 131: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

129

Isso tem ficado forte de um tempo para cá, mas, há 10 anos, se falava pouco a respeito. O Mezcla veio propositalmente latino-americano não só em função de eu ter ido a Cuba, mas pelo meu interesse por nossos vizinhos que já vinha de longa data. O que se chama de música brega latino-americana sempre me encantou. Nos circos da infância lá em Grama, e depois em outros lugares, sempre tinha: “Y ahora con ustedes la gran cantante nacional...”. Que nada! Era daqui mesmo, só que, cantan-do em castelhano e com um maiô cavado bordado de lantejoula, tinha muito mais graça. Muitos acham que isso é brega. Para mim, é divino, é fantástico. O circo brasileiro é muito isso. E, por que não? As procis-sões de Outro Preto são muito isso: os bordados, as coroas, aqueles santos de peruca.

Raphaela Ramos. Gosto muito de ouvi-lo falar sobre o processo de descoberta do Zé Boléo. Sei que foi um desafio que envolveu certo sofrimento. O que foi mais dolorido? O que menos gostou de encon-trar quando começou a tirar as cascas e precisou exacerbar para dar vida a esse personagem?Marcos Marinho. O Zé Boléo me pegou já velho, mais sem ver-gonha, mais desprotegido. Acho que, se eu fosse mais novo, teria sido complicado. É dolorido, mas para quem não sabe o que é isso, não chega a tirar pedaço de ninguém, não. É dolorido num ótimo sentido: o de encontrar a nós mesmos, de nos aceitarmos, embora nunca nos aceitemos totalmente. Estamos sempre querendo algo a mais, achando que tudo podia ser melhor: ter uma ruga a menos, ou a mais, estar um pouco mais gordo, ou mais magro, ter outro timbre de voz, pintar o cabelo, sei lá, essas coisas que são próprias do ser humano. Faz parte de-sejar ser diferente, estar de outro jeito, de outra forma. Considero essa busca muito bonita em todos nós. Mas a dor do palhaço é querer colo-car para fora, deixar que as pessoas vejam nele aquilo que todo mundo já está careca de ver e que só ele achava que não. Márcio Libar foi o meu mestre nesse período de busca mais recente do palhaço pessoal, do palhaço Marquinhos, do palhaço “eu”, uma vez que eu já trabalhava isso tudo de outra forma: o palhaço teatral, o palhaço personagem. Sou palhaço e tenho que deixar claro para as pessoas quem sou. Nesse pro-cesso doloroso, o Márcio Libar falava assim: “Senhor Marcos Marinho,

Page 132: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

130

o senhor tem rugas nos olhos, tem cabelos grisalhos, não é mesmo? O senhor já perdeu muito?”. Claro que sim. Perdi pai, perdi amigos no sentido literal, de morrer. Perdi empregos, perdi dinheiro, perdi amo-res. Depois de vários exercícios físicos, corporais, de desconstrução da minha casca, da pessoa que tem que se comportar bem, já estava ficando doido, sem saber se podia tropeçar ou não, espirrar ou não. É quando se perde aquela casca do bom comportamento. No momento em que Márcio Libar pergunta se já perdi muito e respondo “não”, a reação de todo mundo é: “Ah, já sim”. Então, isso dói. Foi o que me fez lembrar que sou órfão de pai. São dores – físicas e emocionais – que começam a vir do palhaço. Inicialmente, é difícil mesmo, mas são dores que nos libertam, que nos colocam em contato com a verdade interior. Esse é um dos processos do palhaço: rir de nós mesmos. O palhaço nada mais é do que aquele que consegue rir de si. Muitos não gostam de palhaços porque não conseguem rir de si mesmos. Penso que o sofrimento que vem com o processo do palhaço é esse mesmo.

Lembro de um episódio protagonizado por André Pires, que me proporcionou esse tipo de dor, até física mesmo, ao liberar o palhaço que vive em mim. Esse foi um dos presentes que recebi ao cantar no Unicoro. Quando entrei para o grupo, o principal motivo era porque eu já era de teatro. Eu não tinha uma bela voz, mas minha contribuição era cênica, teatral mesmo. E aí estamos lá fazendo os exercícios, técnica de voz, e, num determinado dia, André disse uma coisa que, talvez, seja corriqueira para ele como maestro, mas que, para mim, naquele mo-mento, pesou: “Está muito bom, mas agora você tem que cantar para os outros, para fora. Você está cantando, está afinado, está tudo certo. Agora canta para os outros, canta para fora”. Aquilo chegou a me dar dor no peito. Dor física, porque teria que cantar para fora, para o pú-blico. Algumas pessoas vão provocando isso no nosso caminho: André Pires, Márcio Libar, Henrique Simões. Várias pessoas abriram minhas chaves. Então, o processo do palhaço é dolorido nesse sentido. Entre-tanto, a forma com que trabalhei o palhaço até chegar ao Zé Boléo é bem mais recente na minha vida, é do final de 2006, eu já calejado em algumas coisas. Talvez por isso tenha sido mais fácil, tenha doído menos, porque outros já tinham me tocado antes. Mas temos que passar por esse processo. Ontem mesmo, durante uma oficina, a Ana Júlia Tole-

Page 133: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

131

do estava falando que sempre foi guerreira, forte e até prepotente, e que, quando teve que baixar a crista para ser palhaço, foi um Deus nos acuda, um sofrimento. Precisou fazer muitas oficinas para começar a brotar seu palhaço. Comigo aconteceu de, logo na primeira oficina feita com Márcio Libar, ver brotar o Zé Boléo, com nome e tudo. Muitos têm que fazer muitas oficinas para conseguir dar nome a seu palhaço. Nome significa quem é esse palhaço, que caráter ele tem. Não tem sido fácil para mim. Ainda é difícil quando o Zé Boléo vai entrar em cena: é uma geladeira na mão, e tudo mais. Faço, mas é difícil do mesmo jei-to. O processo propriamente dito, para uns é mais longo, para outros não. Para uns é mais doído, para outros menos. Mas é sempre o mesmo processo, pelo menos em relação a esse tipo de palhaço, que não tem família circense, não foi criado em circo e tem que chegar a um ponto crucial, que é a exposição de si mesmo.

José Eduardo Arcuri. Gostaria que nos falasse do Marcos Mari-nho diretor. Sempre observei a importância do espaço cênico em seu trabalho, desde a época de Barca do inferno, Castelo de cartas e Depois das águas. Senti que, em Pela noite, feito numa arena, a questão não era sim-plesmente a de ser uma arena: o próprio espetáculo era circular. O pú-blico não tinha como fugir. Não havia aquele elemento que se escondia na última cadeira para se proteger. Isso era capital. Vejo isso em todos os espetáculos que Marcos dirige. Queria que nos falasse a respeito. Trata--se de uma característica interessante, além de outras mil.Marcos Marinho. Isso é muito importante para mim, porque aprendi a fazer teatro dessa forma. Quando falo da primeira peça de peso que vi, na adolescência, dirigida por Henrique Simões, e que aqui-lo me impactou, já foi, entre tantas outras questões, por conta de ser um teatro despido de bastidores. Os atores estavam muito próximos da pla-teia, e iam além, invadindo o espaço do público, chegando nas pessoas, fazendo o espetáculo para e com a plateia. Isso, sem necessariamente sentar no colo, pedir opinião, mas acreditando no público, sabendo que está com ele, que teatro não é passar um recado para a plateia, mas é es-tar com ela. O que mais fica nas peças não é o texto dito, não é a beleza do ator, não é a roupa que foi vestida, é o fato de estarmos todos juntos. É um momento de celebração, um ritual partilhado por todos. Acredi-

Page 134: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

132

to totalmente no teatro, pois é um momento para estarmos realmente unidos. Esse depoimento que acontece agora é uma forma de teatro porque estamos juntos, concordando e discordando em várias ques-tões, sentindo o mesmo cheiro, sob a mesma atmosfera. Fico pensando que, ao voltarmos para casa, hoje, tudo que estamos vivenciando, aqui, permanecerá. Não é à toa que há uma câmera nos gravando. Estarmos juntos é importante, e isso aí norteia a escolha do cenário, do espaço cênico. Acreditar nisso, no meu caso, norteia o espaço cênico, que tipo de construção cênica vai ser feita, a que distância o público estará de mim, a quantos metros, a quantos centímetros.

No espetáculo Castelo de cartas, havia a questão do olfato. Tinha um momento em que lavávamos os pés das pessoas em água morna com er-vas aromáticas, porque o cheiro era fundamental. Então, acreditar que o importante é estarmos juntos é a primeira questão e norteia todo o resto. O macarrão que era servido em Pela noite tinha a função de fazer com que a plateia sentisse vontade de comer ou, ao contrário, tivesse nojo daquilo. Era tão visceral que muitos dos que assistiram ao espetá-culo levaram isso para casa: aquele prato com molho de macarrão que o Ricardo Martins lambia na frente de todo mundo enquanto falava de suas entranhas. Então, creio nessa visceralidade do teatro, que significa estar junto com alguém e poder sentir a temperatura de sua pele. Isso acaba norteando o espaço cênico. Fizemos Castelo de cartas dentro de uma casa, como a história da peça exigia, mas poderíamos ter construído um cenário como qualquer outro, ter usado uma sala e fingir que es-távamos andando numa casa. Mas não gostamos de fingimento. Estou falando nós porque muitos de meus companheiros de teatro estão aqui. Não se trata de uma retórica. Não sou candidato a vereador para falar “nós”, não. Não sou majestade, não sou esquizofrênico a esse ponto. Mas estamos aqui, somos colegas de teatro e acreditamos que o teatro é estarmos juntos, pensando e sentindo coisas afins.

Às vezes, nem estamos pensando em alguma coisa, mas queremos pensar, descobrir, sentir algo. Isso nos dá uma direção. Poderíamos fin-gir, mas não queremos fingir. Acreditamos num teatro que não finge, que quer descobrir as nossas verdades e vivenciá-las. Fingir que finge é a técnica. Não podemos esquecer ou abandonar a técnica, os métodos, mas temos que continuar a aprender sempre, estudar, exercitar. Isso é

Page 135: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

133

a verdadeira técnica. Na arte, não dá para ficar contando com a sorte, porque, mesmo com a técnica, o imprevisto acontece. O pessoal de TV sabe disso: eles estudam, limpam a câmera, veem se o fio está direito, e, mesmo assim, têm que contar com a casualidade, isso falando de uma técnica que é concreta, que é mecânica. Imagine uma técnica que é quase invisível, que somos nós, o corpo, a voz, o pensamento, o tem-po. Como se mede a técnica do tempo? Como se exercita a técnica do tempo? Quem tem essa fórmula? Cada cena, cada espetáculo, cada ator, cada diretor, cada bailarino é sempre algo diferente. Já dançamos mui-to também. Essa é outra questão sobre a qual gosto de falar. Não sou bailarino, mas não abri mão, até onde posso, de fazer aulas de dança, de técnicas corporais, porque não acredito num teatro que só fala da boca para fora. Não convence ninguém. Para isso, pegamos um livro e lemos em casa: muito mais rico. Então, a técnica de suar é necessária, e a dança é uma das possibilidades de suar artisticamente, uma das ricas possibilidades. Subir no trapézio de 8 metros de altura, balançar nele e cair na rede também é essencial para o ator. Não estou defendendo que todo ator tem que passar por isso, não. Mas, já que passei por isso, é bom citar. É importante cair de uma perna de pau, pelo menos uma vez, se queimar com uma tocha de fogo, pelo menos uma vez. São ris-cos bonitos de correr porque a vida impõe outros ainda mais perigosos. Esses que citei são programados, os outros não.

Ricardo Martins. Já o conheço há 20 anos e sempre o cito muito por conta dessa sua visão de mundo encantadora: a forma como vê a vida, como se integra nas coisas, como se emociona. Acho realmente admirá-vel esse ser político que você é, essa pessoa atuante, que transforma tudo em que põe a mão. Gostaria de saber se, depois de um tempo, essa sua percepção de mundo o fez se sentir mais integrado ou mais excluído do que vê ao seu redor? Como percebe a evolução da humanidade no seu en-torno? Isso porque o mundo mudou muito rapidamente, e vejo que seu olhar continua poético, generoso para com a vida e as pessoas em geral. Marcos Marinho. Trata-se de um exercício comigo mesmo. Nem sempre consigo, mas sempre faço o exercício de dar a minha cara, de deixar claro o que quero, o que penso e no que acredito politicamente sobre a vida. Só que isso é muito difícil.

Page 136: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

134

Pinho Neves. Eu gostaria de me manter na direção do que o Ricar-do coloca sobre o mundo atual, tão cheio de tecnologias em contraste a um passado até recente. Isso porque tem algo de Guimarães Rosa nas passagens que nos narrou sobre seu início em Grama. É tudo mui-to “roseano”, porque Guimarães Rosa faz essa cadernetinha de viagem da boiada, que é um trabalho de “observância”. Recentemente, numa aula, lembrei-me disso ao escrever um texto sobre esse grande escritor. Entretanto, vejo que não é uma viagem de observação que você faz da vida. É de “observância” mesmo, associando observação com vivência. Isso transforma o seu depoimento – quer falando do palhaço, quer fa-lando da direção – numa questão poética muito própria, talvez por con-ta de algumas imagens, como a do rio que não é de uma só cor, os ramos de flores diversas colhidas para vender na porta do cemitério. Então, isso tem uma poesia que pode fazer parte daquilo que Ricardo Martins quis evidenciar. E minha pergunta é precisamente sobre essa poesia que você carrega consigo, que você ainda hoje vivencia, como ator, sem se deixar contaminar pelos excessos da tecnologia. Marcos Marinho. Como não me deixo contaminar? Não sei. É difícil falar a respeito, porque acredito que a poesia vem com um “não quero ser poeta”, “não quero ser poético”. Não tenho ideia de como se dá. É que nem escolher um amor: não posso olhar para a pessoa e dizer “quero amar essa pessoa”. Penso que é a mesma coisa. Não sei falar a respeito, porque se trata de algo que está sendo atribuído a mim, como ser poético, por ser o que enxergam em mim. E, para mim, isso é viver naturalmente. Apenas desconfio ser a minha retribuição às oportuni-dades que a vida deu a mim – e ainda dá –, à minha família, às escolas onde estudei, aos artistas com os quais trabalhei e trabalho, às viagens que pude fazer. Como minha sensibilidade – minha antena parabólica – é muito aberta, muito bisbilhoteira, tenho a sorte de receber essas informações, essas emoções, essa poesia que a vida tem. Mas é a vida que tem essa poesia, não eu. Gosto sempre de falar da minha família, porque é uma das grandes bênçãos que tenho. Não estou falando só de pai e mãe, não, mas da minha ampla família, cuja maior parte está aqui, hoje. Meu mundo-família. Sei que sou sortudo. Consigo enxergar po-sitivamente até o fato de um cavalo ter me dado um coice e quebrado meu dente, porque depois de um tempo serviu como experiência. Se

Page 137: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

135

conseguimos elaborar essas coisas, levar isso para a vida e para a arte, acaba se transformando em sorte também. Azar do cavalo que quis me dar esse coice. Continuo aqui. Acho que a resposta tem a ver com essas oportunidades. A vida é uma poesia só.

Raphaela Ramos. Queria voltar num ponto em que nos falou so-bre o pensamento aristotélico, quando buscou quebrá-lo um pouco. Hoje, como entende o papel da palavra no seu trabalho? Marcos Marinho. Eu nem quis, exatamente, quebrar o pensa-mento aristotélico. Apenas fui aprendendo, aos poucos, que ele não é o pensamento único. Claro que a nossa informação é predominante-mente aristotélica. Nosso pensamento, nossa filosofia, nosso modo de organizar a sociedade, a cidade, o cidadão, tudo é muito aristotélico. Mas o que aprendi, aos poucos, é que não precisamos viver só aristote-licamente. Podemos viver fragmentadamente. Vivemos muito no frag-mento. E vivemos muito também na não palavra. Precisamos aprender a não palavra, o silenciar, a expressão caótica, a palavra que atira para todos os lados, que vem de todos os lados. Isso exige esforço, é difícil, tem um custo. É algo que não vem fácil, porque a organização da nossa sociedade, da nossa cidade, é predominantemente aristotélica até onde posso alcançar. Mas é preciso um esforço muito grande para apren-der as outras linguagens, as outras palavras, as outras formas de viver a palavra. Exige mais esforço do que a palavra e a organização mental e concreta de Aristóteles. Mas você está falando da palavra propriamente dita, do texto?

Raphaela Ramos. Do texto como caminho para levar as outras questões teatrais. Marcos Marinho. Nunca achei que o texto fosse desimportan-te no teatro. Tanto que trabalhamos Guimarães Rosa numa ou noutra peça, Ítalo Calvino no Castelo de cartas, Caio Fernando Abreu no Pela noite; enfim, as cantigas de roda que são palavras cantadas e passadas de geração em geração. Jamais desacreditei do texto. Acredito que a pala-vra falada, organizada, poetizada é importante e não escapamos dela. A questão não é achar importante ou não; é ter consciência de que não escapamos da palavra. Não estou, aqui, falando há um tempão? Até

Page 138: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

136

perdi a noção da hora. No teatro, a palavra é importante como uma das técnicas, como um dos elementos organizadores para centrar o artista, organizá-lo, fazendo-o voltar a si mesmo e ir ao outro. Um texto lite-rário dramatúrgico tem que servir, no mínimo, para me proporcionar inúmeras perguntas antes de sair falando. O que é isso? Quero falar esse texto? Preciso falar esse texto? Mereço falar esse texto? Para quem vou falar? Em que país, em que cidade e em que época eu vivo para falar esse texto? Das respostas vem a forma como vou retraduzir a palavra. A função do ator, do diretor e de quem está montando uma peça de teatro é essa: retraduzir o texto de outros. Se estiver trabalhando com o seu próprio, é outra história, é outra técnica, é outro tempo de trabalho, são outras perguntas. Mas, se o texto for literário e dramatúrgico, tem essa enchente de perguntas. E aí entra outra questão: a humildade. O artista tem que estar sempre aprendendo. Não se trata de abaixar as calças, de abaixar a cabeça, de ser subserviente. Falo da humildade de perguntar para aquele texto o que ele é e o que quer de mim. Temos que fazer essa pergunta. Não estou sozinho, não sou o único, não estou acima nem abaixo, não sou melhor nem pior. As perguntas são para me situar, mesmo que não as leve para a cena depois. Agora, como é bom ouvir um ator falar um texto bem falado... Temos que ouvir a música que a palavra textual pode nos trazer. O teatro não é só para sentir, é para entender também, no sentido de compreender o mundo, percebê--lo de forma organizada. A palavra é exercício para o artista levar – ou não – para o palco, para o público, porque também é deleite. A palavra, escrita ou falada, nos dá a possibilidade de cantar, produzir timbres, rit-mos, notas musicais. Isso é lindo. Mesmo quando falamos uma palavra que não traz um entendimento, há certa musicalidade.

André Pires. A música sempre esteve muito presente nos seus tra-balhos. Em Navegar, durante uns 3 minutos, você usou um LP [Long Play] de Pierre Henry em que uma porta rangia e aquele som virou uma gargalhada que durou 3 minutos no palco e na plateia. Você falou da importância de ficar bobo. E, no dia em que você ficou bobo, você cantou, não foi isso? Marcos Marinho. Isso foi outra provocação do Márcio Libar. Não sei. Ele identificou alguma coisa na minha voz e cobrou que eu cantasse

Page 139: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

137

em público. Eu já tinha cantado com você, com o Unicoro, com o Co-ral do CES [Centro de Ensino Superior]. No próprio Mosteiro de São Bento, o tal do cantochão era o tempo inteiro. E aquilo de o cantochão não terminar nunca era treinamento, era ritual e era oração. Então, isso vem do mosteiro, embora seja ainda bem anterior.

André Pires. Qual o papel da música que você escreve, monta, di-rige e atua? E mesmo, se você estiver a fim de falar, sobre essa relação palavra e música fora do seu trabalho seria muito interessante porque a música está muito ligada ao teatro. Marcos Marinho. No caso da canção, vem de dentro de casa. Mi-nha mãe, embora nunca tenha cantado profissionalmente, muito menos em público, é afinadíssima. Até hoje – está com 79 anos –, costura à máquina cantando. Fico lá da cozinha escutando, e é lindo. Como esca-par disso? Não tem como, vem de dentro de casa. Depois, tem o fato de ter ouvido Roberto Carlos nos circos de Grama. Lembro-me de músicas mais antigas, como Eu sou terrível..., do LP Roberto Carlos em rit-mo de aventura, que tocava no autofalante do circo. Ainda existe isso no Brasil. Aqui, em Juiz de Fora, temos que falar dessas coisas que temos visto pouco nos últimos anos. Entretanto, há muito dessa cultura mam-bembe no interior do Brasil e na América Latina em geral. Em minha última viagem ao Chile – fiz questão de fotografar –, vi várias vezes pequenos circos e circos teatros na estrada. Aqui mesmo, no norte de Minas, vemos muito isso. E o autofalante desses circos, na minha ado-lescência, também tocava músicas de Orlando Silva, Vicente Celestino e Dalva de Oliveira. É muito palhaço, é muito teatral e é muito todos nós naquele momento em que sentimos que a vida dói. Hoje ainda te-mos cantores assim. Adriana Calcanhoto é um exemplo. Temos Titãs. Os novos são mais difíceis. Vamos ficando mais velhos e nossa tendência é lembrar os mais antigos. Enfim, a música faz isso comigo por conta dessas vivências anteriores.

Agora, no teatro, fiz muitas aulas de dança, durante longos anos. To-das elas com fundo musical ou com a música em primeiro plano. Eis outro elemento que nos força a estarmos inteiramente presentes. Essa coisa da família, da infância que já contei: vi alguns grandes atores cantando. E houve o estudo do teatro propriamente dito. Alguns professores de tea-

Page 140: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

138

tro, alguns livros que li, sempre colocaram a música como fundamental na dramaturgia. Amir Haddad foi um grande mestre, que tem todo o meu respeito. Para quem não conhece, ainda é muito jovem, é preciso lembrar que Amir Haddad é um ícone do teatro de rua do Brasil [grupo Tá na Rua], principalmente nos anos 1970 e até certo momento dos anos 1980, embora seja atuante até hoje. Seu trabalho é muito musical. As pessoas sempre fazem batucadas e cantam. Amir Haddad foi um dos meus professores queridos. Então, isso ficou. Gerald Thomas, que muita gen-te detesta, também foi meu professor, mas por pouquíssimo tempo. Foi uma oficina muito curta. Gerald Thomas é inclusive um grande diretor de ópera, criticado e até vaiado no Brasil, mas respeitado lá fora. Denise Stoklos foi outra professora por um tempo curto, mas que deixou suas marcas por ser uma mulher entranhada de música.

André Pires. Uma vez me pediram que apontasse o nome de um ator e de uma atriz. Marcos Marinho e Denise Stoklos foram os que citei. Lembro-me de você haver comentado: “Me colocou ao lado da Denise Stoklos?”. É claro que sim. Acredito que estão emparelhados. Agora, ouço que foi aluno dela. Nunca imaginei.Marcos Marinho. Você me mata de vergonha. Denise Stoklos é tão intensa e sou um fã tão ardoroso, que aquele pouco tempo em que fui seu aluno na oficina Solos do Brasil me transformou... Imagine o que uma artista daquelas não faz com a gente. O Ricardo Martins também foi aluno por um tempinho. Tem alguns professores, como os que citei, que são muito fortes. E, às vezes, é uma aula só. Não importa quantas aulas são, mas essas pessoas costumam ser definitivas. E carregamos o que aprendemos com muita força. Aprendi, acreditei, experimentei e vi que dava certo. As pessoas falam, informam e cabe botar a mão na massa para ver se aquilo nos serve. Nem todos os alunos que fizeram aula com o Amir Haddad e com a Denise Stoklos foram para esse ca-minho de colocar a música como fundamental no teatro. No meu caso, eu já vinha de outros sentimentos, de outras oportunidades, de outras pessoas com quem convivi e ouvi.

José Eduardo Arcuri. Muita gente que está aqui trabalhou com Marcos, seja com ele ator ou diretor. E há algo fantástico em seu fazer

Page 141: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

139

teatral, principalmente como diretor e como colega de trabalho. Mar-cos chega quietinho, de mansinho e, quando menos se espera, vai viran-do-o pelo avesso, arrumando algo que parecia impossível. E com uma calma, com uma tranquilidade... Nunca o vi se estressar. Pode estar acontecendo uma situação de impasse e ele parece não se abalar. Talvez, por dentro, esteja, mas não passa isso para ninguém. Então, o que nos passa é uma certeza, o que é maravilhoso. Marcos Marinho. Só tenho uma certeza: não preciso bater em ninguém, não preciso ofender ninguém. Agora, estressado eu fico e até brigo. Quando precisa, saio dos meus limites, mas, repito, sem ofender e nem bater em ninguém. Isso sempre. Acredito que estamos aqui para construir alguma coisa juntos. Essa certeza é preciso ter.

Pinho Neves. Como o depoimento está terminando, deve haver algo que você se preparou para responder e não chegou a ser aventado aqui. Então, para encerrar, o que gostaria de acrescentar?Marcos Marinho. De fato, houve essa vontade de me preparar um pouco mais para estar diante de vocês porque quero dar o me-lhor de mim e corresponder às expectativas dos presentes, responden-do da melhor forma o possível. Mas existem vários assuntos que não queremos responder. Quero apenas acrescentar que estou nervosíssi-mo desde o dia em que o jornalista Gabriel Miranda me fez o convite para esse projeto lindo que é o Diálogos Abertos. Eu já havia participado na plateia e saí com a certeza de que é um projeto necessário para Juiz de Fora. Tomara que outras cidades tenham essa ideia. A importância de estar aqui, onde tantas personalidades já estiveram, me deixou ansioso. É muita responsabilidade. Quando Gabriel perguntou se eu toparia, já estava topado. Não quis me furtar a esse momento, não quis me negar essa oportunidade em nenhum momento. Estou emocionado, sou emo-cional, choro à toa. E é isso. Obrigado.

Pinho Neves. Gostaria de agradecer por você ter aceitado o convi-te, assim como aos entrevistadores por estarem aqui. Na verdade, havia mais pessoas indicadas, que não foram chamadas em função da própria limitação do projeto, que tem tempo determinado e número certo de entrevistadores. Em geral, temos um número maior de sugestões

Page 142: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

140

de pessoas para apresentar as perguntas, mas acredito que acertamos, hoje, ao escolher esse elenco, que representa todos os que não puderam ser trazidos à mesa. Marcos Marinho. A lista que fiz era bem grande, já sabendo que não podia ter todos os nomes que listei.

Pinho Neves. A título de informação, sempre pedimos ao entre-vistado que nos apresente alguns nomes. E a própria produção do projeto acrescenta outras pessoas. No caso de Marcos Marinho, não buscamos além de sua lista inicial, porque já havia um número maior de indicados do que era possível. Assim, quero agradecer a todos os que se dispuseram a participar dessa entrevista. Em nome da Univer-sidade Federal de Juiz de Fora, gostaria de agradecer ainda ao nosso amigo Alexandre Dornelas, fotógrafo oficial do Diálogos Abertos, que vai proceder às fotografias de praxe, que são fundamentais para a edi-ção em livro. Boa noite.

Page 143: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

141

Entrevista concedida ao projeto Diálogos Abertos, em 19 de junho de 2012, no Museu de Arte Murilo Mendes. Entrevistadores: André Pires; José Alberto Pinho Neves; José Eduardo Arcuri; Raphaela Ramos; Ricardo Martins.

Page 144: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES
Page 145: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 8 de novem-bro de 1930. Filho do contador e flautista Augusto de Castro Côrtes e de Cornélia Villani Côrtes, cresceu em um ambien-te musical, influenciado pelos pais, pelo irmão mais velho, Augusto, e pelo rádio. Aos 8 anos, já sabia tocar cavaquinho, instrumento que foi trocado pelo violão e, mais tarde, pelo piano, à medida que suas composições se tornavam mais com-plexas e difíceis de se executar. Casou-se com Dona Efigênia, cantora do Teatro Experimental de Ópera. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 22 anos, em busca de formação convencio-nal no curso de piano do Conservatório Brasileiro de Música. Paralelamente aos estudos, começou a atuar como pianista na Orquestra Tamoio, do maestro Orlando Costa, conhecido como Cipó. Retornou a Juiz de Fora em 1954, onde residiu até 1959. Nesse período, estreou seu primeiro concerto para piano e orquestra, bacharelou-se em Direito e foi diretor do Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano. Na década de 1960, em São Paulo, estudou composição com o maestro Camargo Guarnieri. Na TV, integrou a orquestra da extinta TV Tupi, realizou trilhas sonoras e mais de mil arranjos musicais para diversas emissoras, além de ter atuado na ilus-tração musical do programa Jô Soares onze e meia, na época em que era veiculado pelo SBT. Com o filho Ed, compôs a trilha dos filmes Matita Pereira e Saci, além de trabalhar para produ-tores de Hollywood, nos Estados Unidos.

Entre as distinções que colecionou durante a carreira, estão o primeiro lugar no concurso Noneto de Munique, do Instituto Goethe do Brasil (1978), e na Feira Livre de MPB, (1981). Villani-Côrtes foi premiado 2 vezes pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), com as peças Ciclo Ce- ED

MU

ND

O V

ILLA

NI-C

ÔRT

ES

Page 146: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

cília Meirelles (1990) e Postais paulistanos (1995). Em 1992, foi escolhi-do pela Escola de Música Arte Livre como Compositor do Ano. Entre 1982 e 1999, foi professor do Departamento de Música da Universida-de Estadual Paulista (Unesp), instituição pela qual obteve seu Doutora-do em Música.

O nome de Villani-Côrtes é um dos verbetes do Dicionário Cravo Albin de música popular brasileira, no qual é destacada sua extensa obra como compositor. Em entrevista para a revista Unespciência, de maio de 2011, o maestro João Carlos Martins ressaltou a contribuição do composi-tor para a criação de um repertório marcado pela brasilidade. “Uma das coisas que me dá orgulho de ser brasileiro é que neste país nasceu Edmundo Villani-Côrtes. Ele conhece a tradição e tem um talento in-crível, conseguindo traduzir na sua música a essência da alma brasileira. Escreve para todos os instrumentos com imaginação e criatividade na composição.”

Page 147: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

145

Beto Campos. Como e onde tudo começou? Gostaríamos que tra-çasse um perfil de Juiz de Fora, falasse de seu começo na cidade e sua ida para o Rio de Janeiro. Villani-Côrtes. Antes de qualquer coisa, é um prazer imenso estar aqui, uma honra. Há um ditado muito conhecido que diz: “santo de casa não faz milagre”. Portanto, estou me sentindo milagroso. Não esperava o que acontece em Juiz de Fora em relação a mim. A consideração que recebo das pessoas que militam pela arte na cidade é maravilhosa. A presença dos representantes do Centro Cultural Pró-Música [Maria Isa-bel e Hermínio de Sousa Santos] nesta noite é um atestado disso. Tive a oportunidade de escrever um Te Deum para Juiz de Fora, comemorando os 150 anos da cidade. Não sei se alguém sabe, mas a Academia Brasilei-ra de Música (ABM) mostrou interesse por essa obra, com possibilidade de uma edição específica para divulgá-la internacionalmente. No ano passado, recebi um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pelo Te Deum. Apesar de a obra ter sido apresentada original-mente em 2000, o reconhecimento dessa instituição só veio em 2007. Isso me deixou muito feliz, assim como a oportunidade de vir aqui. Também estive no Conservatório [Estadual de Música Haidée França Americano], do qual fui o primeiro diretor. Pude assistir a uma apre-sentação maravilhosa, além de ser convidado para presidir a banca de um concurso de piano. Enfim, há muita coisa, incluindo a presença de um quadro meu pintado pela Wany Alvim em uma exposição [Destaques da cultura em Juiz de Fora] no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas. Não esperava que, algum dia, uma pintora fizesse um quadro meu. Isso, para mim, já é suficiente, sinto-me satisfeito.

O pouco tempo de vida que tive em Juiz de Fora foi uma vida riquís-sima, até os 29 anos de idade. Depois, fui para São Paulo. Digo que foi pouco porque estou com 78. Então, depois vivi muito mais. Mas meu tempo de vida em Juiz de Fora é, praticamente, a essência do que faço na música. Na verdade, fico entristecido, pois a cidade cresceu demais. Morei em Juiz de Fora em várias casas; meu pai mudava muito. Quando via uma casa diferente, ele dizia: “Vamos mudar!”. Era muito entusias-mado com isso. Assim, morei em vários lugares, uns 10 diferentes. Sabe o que sobrou dessas 10 casas? Nada! Juiz de Fora cresceu muito, princi-palmente na região em que vivi, próximo ao bairro São Mateus e à rua

Page 148: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

146

Doutor Romualdo. Foi tudo destruído, construíram edifícios enormes. Quando chego na cidade, tento enxergar a Juiz de Fora que conheci. Mas descobri que ela só existe na minha memória, porque tudo mudou demais. Entretanto, essa cidade que persiste na minha memória é um dos principais motivos de minha inspiração musical. Então, tenho que fechar os olhos e imaginar Juiz de Fora como era.

Uma coisa que me deixa sumamente entristecido é a avenida Rio Branco, pois suas muitas árvores foram destruídas. Não gosto de falar dos meus planos, mas pretendo fazer um concerto para violão e or-questra cujo segundo movimento se chamará Réquiem para cem árvores. Quer dizer, um funeral para as árvores que existiam na Rio Branco, aquela coisa maravilhosa, espetacular, que desapareceu. Foi um desastre ecológico. Esses fatos me deixam triste, mas a tristeza também é fonte de inspiração, algo que faz com que a gente se disponha a trabalhar. O tempo é sempre muito pouco para mim. Para contar minha vida em Juiz de Fora teria que falar uns 2 dias seguidos, e seria pouco.

Jorge Sanglard. O senhor tocou em um ponto central. Ao recor-dar as pessoas que fazem a cidade, que têm uma contribuição para a área da cultura, discutimos o que é a essência da cidade, sua alma. Julgo que a maioria dos que aqui estão, hoje, não conheceram essa Juiz de Fora à qual se refere: a cidade dos bondes, das árvores, que tinha um ciclo diário de chuva e sol, esquenta e esfria. Essa cidade que tinha uma Rio Branco que era uma “Avenida Paulistinha”. Isso acabou, pois houve uma opção pela modernização, uma escolha extremamente complicada e que deu no que estamos vendo. A rua que o senhor citou está irre-conhecível, assim como o bairro São Mateus. Juiz de Fora está em um processo de autodestruição devastador. Gostaria que falasse sobre essa ambiência da música em sua formação. Murilo Mendes escreveu que Juiz de Fora era “um trecho de terra cercado de pianos por todos os lados”. Mas isso foi substituído com o tempo, e a cidade passou a ser a cidade dos violões, um instrumento que é mais fácil de carregar. Conte mais sobre a Juiz de Fora musical que o senhor conheceu. Villani-Côrtes. Esse assunto é incrível, renderia uma entrevista in-teira, pois é algo de capital importância. Quando vivia em Juiz de Fora, havia uma espécie de magia na cidade. Saía de casa para dar uma volta e parava no Salvaterra, um bar na rua Halfeld, próximo ao Cine-Theatro

Page 149: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

147

Central, onde assentava para tomar um cafezinho e ficar conversando. Era uma turma que gostava de conversar assuntos culturais, falava-se sobre o significado de uma determinada palavra ou a respeito dos poe-tas. De vez em quando, encontrava com “Zoquinha” [Cesário Brandt], que já faleceu. Havia também o Ademar [Ademar Ribeiro da Silva], que sabia de cor várias poesias. Um recitava versos para o outro, e assim eram nossas conversas. Certas vezes, chegava depois de 2 horas da ma-nhã em casa, debaixo de lua cheia e o céu coalhado de estrelas. Isso me emociona. Medo de ficar à noite na rua? Perigo de ser assaltado? Isso nem passava por nossa cabeça.

Havia um sujeito chamado Genaro. Quando queríamos encontrá-lo, bastava ficar parado em uma esquina qualquer de Juiz de Fora. Poderia ser no bairro Poço Rico, no extremo da cidade, qualquer lugar. Basta-va ficar parado e, de repente, ele aparecia. Ficava andando pela rua de madrugada, não sei fazendo o quê. Se alguém, por acaso, estava com um violão em mãos, ele pegava e ficava mexendo, fazendo uns acordes lindos, era bonito, mágico. Não sei nem o sobrenome de Genaro, era simplesmente um cara que existia... Hoje, fico triste, porque as pessoas perguntam: “A composição que você fez é tonal ou atonal? Que escola você segue, a do minimalismo ou a do dodecafonismo?”. É algo que não consigo entender. Antes, era um ambiente completamente diferente.

Foi tudo isso que me fez gostar de música. Quando era criança, meu pai tinha um conjunto e brincava de fazer concursos conosco. Ele tocava uma música e eu, com meus 2 irmãos, tínhamos que adivinhar o nome. Sou o mais novo, Augusto é o mais velho, e José, o do meio. Minha educação musical teórica só teve início depois dos 17 anos, quando comecei a estudar piano na casa de uma tia. Foi nessa época que descobri o que era aquele acorde de intensidade menor, que já reconhecia de ouvido: “Ah, essa músi-ca é menor, essa é maior...”. Até então, era pela sonoridade, sem saber por quê. Depois, descobri que era assim porque a tríade tinha a terça do acorde em intervalo de terça menor. E, no outro, a terça do acorde era maior. Co-nheci isso depois. Antes, sabia que era maior ou menor pela sensação.

Fico pensando sobre a educação musical. A pessoa que se acostuma a sofisticar muito, falando os nomes das notas e sabendo demais o que está acontecendo cientificamente, esquece que é um ser humano e que tem coração. A relação fica entre ouvido e cérebro. Quando não

Page 150: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

148

sabemos nada de teoria, a música vem direto da alma. Portanto, a pos-tura que foi criada dentro de mim pelas vivências que tive faz com que eu reflita até hoje. Quando vou compor ou tocar, e tento descobrir o que quero da música; paro e falo: “Espere um instante, por que quis ser músico? Ah, é porque quando era menino, ouvia uma música e achava bonito”. Aquela música me levava a entender fenômenos inexplicáveis, como a sensação que temos diante de uma noite de luar, do vento ba-tendo nas árvores, com as folhas mexendo. A beleza que vemos em uma moça bonita, com aquele olhar de esperança, parecendo uma flor de-sabrochando. Isso tudo não conseguimos descrever com palavras. Com música, entretanto, podemos nos aproximar muito. Sempre penso as-sim: “Por que me dediquei à música? Por causa disso... Então, vamos fazer música com esse sentido”. Pelo menos, tento agir assim. Quem quiser que faça de outra maneira.

Não significa que estudar, aprender, conhecer pelo lado científico não ajude em nada, pelo contrário. Mas penso que, antes de ter esse co-nhecimento, devemos ter um objetivo interno, uma vontade de querer expressar alguma coisa tendo a música como caminho.

Júlio César Santos. O senhor falou de magia na sua infância e na adolescência, mas vou trazer para mais próximo, especificamente o Te Deum, porque foi também um momento de grande magia em Juiz de Fora. Poucas cidades no país poderão experimentar o que foi vivido naquela apresentação. A vocação cultural do município foi explicitada e consensualmente validada por muitos entendidos do assunto. Em um momento em que se comemorava uma data expressiva [o aniversário de 150 anos da cidade], apresentamos uma obra composta por um ci-dadão de Juiz de Fora e executada por músicos nascidos aqui, no Cine--Theatro Central completamente repleto de espectadores.

Poucas pessoas sabem que esse projeto não nasceu 2 dias antes, pois não se compõe um Te Deum com uma antecedência sequer de meses. Aqui, então, creditamos, por justiça, que a ideia nasceu de um companheiro, amigo nosso em comum, doutor Samir Rahme. Ao que me parece, ele es-tudava composição com o senhor, em São Paulo. Dois anos antes, ele nos disse: “Olha, precisamos homenagear o Edmundo. Quem sabe vocês não elaboram um projeto para o aniversário de Juiz de Fora?”. Daí veio o nosso contato e a aproximação com o senhor. Até então, nos conhecíamos

Page 151: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

149

de nome, de fama, mas não havia uma convivência pessoal. A primeira “varinha de condão” foi instigá-lo a fazer essa obra. Como boa notícia, sabemos que ela está sendo agraciada com prêmios.

Naquela noite, sentimos que o Pró-Música cumpria sua missão, jun-to com o brilhantismo e a capacidade do compositor. Mais do que isso, diria que praticamos uma magia. Por tradição, a instituição é bastante ligada ao passado, a começar pelo seu carro-chefe, a música antiga. En-tão, o encanto desse momento foi podermos nos reportar ao tempo em que Juiz de Fora tinha árvores na avenida Rio Branco. Ao mesmo tempo, estávamos comprando uma obra de um autor que ficou desconcertado ao saber que deveria dar um preço para a sua obra. Encomendamos e, com sinceridade, foi mágico. Naquela ocasião, me senti no século XVIII. Enfim, executou-se o Te Deum naquele dia com músicos de Juiz de Fora, como atestado incontestável de que a cidade realmente tem um potencial cultural inestimável. Para o senhor, esse episódio também teve a magia de um reencontro com a sua Juiz de Fora? Villani-Côrtes. Tenho tanto a dizer sobre isso. Nunca achei que ti-vesse algo diferente de ninguém, alguma possibilidade acima de outras pessoas. Não tenho uma percepção extrassensorial. Sou comum, vivo em função das coisas que posso fazer. Se não posso, não faço. Tento ser o melhor possível em tudo que faço. Se uma mocinha ou um rapazinho que acabou de entrar na Faculdade de Música me encontra pelos cor-redores da Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) e me pergunta se tenho uma música para determinado instru-mento, ou me convida para compor e tocar em algum lugar, respondo: “Perfeitamente”. Componho dando o melhor de mim, como se tivesse recebido uma encomenda da Filarmônica de Berlim. Não faço distinção nenhuma. Através dessa postura, acabei ficando com um repertório de composição extenso. As pessoas me perguntam as coisas mais absurdas para saber se tenho a música e, quando vejo, tenho.

Na minha vida, em tudo que fiz, aconteceu coisa semelhante, inclusive no Te Deum. Na época, dava aulas para uma moça muito talentosa [Ama-rílis Coev], que fez o teste para regente do Coral da Unesp e foi a melhor classificada. Ela trabalhava em uma igreja protestante e, certo dia, me falou: “O diretor da igreja me convidou para fazer um Te Deum. Como se faz uma obra dessas?”. Respondi que não conhecia bem o assunto. Mas a moça era muito caprichosa, detalhista, e decidiu ir a um convento para

Page 152: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

150

pesquisar. Conseguiu pegar os escritos sobre um dos primeiros Te Deums, feito com aquela maneira antiga de escrever, por vezes com apenas 3 pau-tas. Ela me deu esse material para que eu a ajudasse. Coincidentemente, o doutor Samir veio conversar comigo sobre a composição de um Te Deum em homenagem ao aniversário de Juiz de Fora. Argumentei que não sa-bia como era. Contudo, ele arrumou umas 4 ou 5 gravações do gênero para que eu ouvisse. Era cada um mais bonito do que o outro, o Te Deum de Zoltán Kodály, de Giuseppe Verdi, de Anton Bruckner. Ouvia aquelas obras e me perguntava: “Como vou fazer um Te Deum diante de obras tão maravilhosas? Como saio dessa?”.

Comecei a pesquisar e pensei: “Vou fazer o Te Deum para Juiz de Fora, mas não vou pegar uma orquestra de cordas pequena e um coro, para fazer um ‘Te Deumzinho’, como muitos que existem. Não! Se há composições maravilhosas nesse gênero, assim tenho que fazer. Como? Sou um ser humano comum. Mas esse ínfimo ser humano vai fazer das tripas coração para ser o melhor possível”. Mandei a proposta para o Pró-Música; pedi um coro, 4 solistas, uma orquestra sinfônica com-pleta, igual aos Te Deums de grandes dimensões. Lancei a proposta de quanto queria ganhar pelo trabalho e me comprometi a mandar, de tantos em tantos meses, as partituras de piano e de orquestração. Mais tarde, pensei: “Ora, não vou fazer Te Deum parecido com ninguém. Não quero saber do pessoal que ouvi. Eles são espetaculares, mas vou fazer o que achar melhor”. Comecei a pegar os temas. O Rex Gloriae Christie foi incrível, porque comecei a ter as ideias do que realmente queria. Mas a questão da composição é um problema sério, pois imaginamos, mais ou menos, o que queremos, mas temos que encontrar a nota certa para concretizar. Desandei a descobrir o tema e a chorar, era uma coisa “inteira”... Borrava até a partitura, foi incrível! Eu me emociono muito facilmente, portanto, quando estou compondo, fico muito sensível.

Júlio César Santos. Não testemunhei o registro que vou fazer, pois estava na plateia. Porém, todos que estavam no palco testemunha-ram que, do início ao fim da apresentação, o senhor chorou, e que essa emoção contagiou todo mundo. Por isso mesmo foi uma ocasião espe-cial, uma oportunidade singular de materializar toda uma filosofia do Pró-Música em uma noite, que é a valorização do músico da terra. Foi

Page 153: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

151

essa formação que permitiu que uma obra desse porte fosse realizada com músicos da cidade.

Parece que a percepção da importância da música na sociedade está voltando e essa atividade está sendo mais incentivada e percebida, por um motivo ou por outro. Mas sabemos que o músico, o intérprete, está associado à performance, seja um violinista, um pianista, um fagotista. Trata-se de um desempenho cerebral e também físico. Com a idade, há um comprometimento natural dessa segunda parte e da execução, pois, quando não há a percepção da música cerebral que está sendo feita, só se vê o mecânico. O músico sofre esse tipo de avaliação. Um composi-tor deve ter uma vida muito difícil também, não deve ser diferente. No entanto, para ele, essa percepção deve ser mais confortável, porque é uma atividade cerebral, não está associada à performance. O tempo de vivência, ao contrário, vai maturando, dando mais experiência. Com o tempo fica mais fácil compor? Villani-Côrtes. O intérprete compete com as pessoas vivas, con-temporâneas a ele. O Eduardo Tagliatti, esse nosso querido e talentoso pianista que temos, sabe disso [Tagliatti faleceu prematuramente em 2010]. Já o compositor, concorre com a história da música inteira. Na hora que um intérprete vai escolher uma peça para interpretar, ele tem a história da música inteira para escolher: Bach, Mozart, Beethoven, Chopin etc. Tudo! É um repertório imenso de recursos. Quando vi-viam, esses gênios também tinham rivais, pessoas que, algumas vezes, eram até mais favorecidas politicamente, mais conhecidas e requisita-das. Contudo, eles resistiram e passaram pela peneira do tempo, por-que foram músicos de altíssimo nível.

O que fazer? Como concorrer com Bach ou Mozart? Sabe como faço? Penso que Beethoven foi Beethoven; Mozart foi Mozart e eu sou eu. Tento passar aquilo que sinto, fazer o que posso. Se isso agrada aos outros, faz sucesso ou não, é problema dos outros. Meu problema con-siste em fazer a música que acho que devo. Assim, posso dizer que cada peça que escrevo tem sua história, seu porquê, sua origem, seus moti-vos diante do que espero com aquilo. Não há como me comparar com esses gênios, porque eles não viveram a vida que eu vivi, não sofreram, nem tiveram as alegrias que tive. Tento transmitir em minha música as dúvidas e as verdades que achei necessário encarar.

Page 154: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

152

Em relação a sua pergunta, não sei se a idade é vantagem para o com-positor. Penso que não seria o caso de dizer sim ou não. Seria a mesma situação de um intérprete que toca mil vezes uma música em casa, per-feitamente, mas, no dia da apresentação, por um motivo qualquer, ele tem uma falha. É por isso que a música é considerada a arte do tempo. Na hora, não adianta pedir desculpas. Se errarmos uma nota em uma situação dessas, não podemos simplesmente dizer: “Desculpe, vamos voltar, porque a nota não é essa”. Ficaria meio desajeitado. Portanto, o intérprete realmente enfrenta esse problema de uma maneira muito séria. Acho que são posturas e problemas diferentes.

Jorge Sanglard. O que o seduz mais: compor, arranjar ou executar?Villani-Côrtes. Indubitavelmente, é compor. Trabalhei muito tem-po como arranjador para televisão e rádio. Tinha família para sustentar e essa era uma atividade mais rentável e fácil. Se um produtor musical convidá-lo para fazer os arranjos de um projeto para reviver a memória de Pixinguinha, por exemplo, é possível negociar o valor do pagamento. Há condições de resolver a questão monetária. Por outro lado, quando estamos fazendo um arranjo, seja quem for o compositor, nos tornamos seus escravos. Muitas vezes, tinha que fazer um arranjo e a música era “qualquer coisa”. Pensava: “Puxa, mas esse cara fez isso?”. Mas ele era o compositor e eu era obrigado a fazer. Tentava dar uma “melhoradinha”, mas não podia mudar muito para que a música não perdesse o caráter. Às vezes, gostaria de mudar uma frase, uma harmonia, mas tinha que me submeter àquilo que o compositor fez. Na composição é diferente, pois posso criar as frases. De repente, estou andando na rua e me per-gunto: “Aquela frase está legal? Talvez pudesse desenvolver mais, mo-dificar uma modulação”. Chegando em casa, mudo. Como a música é minha, posso fazer. Enfim, eu me sinto mais à vontade compondo.

Conheço muita gente que prefere fazer arranjos, mas penso que es-tão perdendo tempo. Falo isso aos meus alunos: “Componham porque, quando fazemos um arranjo muito bom, o maestro que está regendo a orquestra não comenta nada, para todo mundo pensar que foi ele quem fez. Mas, quando o resultado não fica tão bom, faz questão de dizer que o trabalho não foi dele, mas seu”. Muitas vezes, uma música faz sucesso por causa do arranjo. E quando fazemos um arranjo muito bom, esta-

Page 155: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

153

mos melhorando a música de alguém muito menos competente do que nós. O que vai acontecer? O compositor pode ficar muito mais conhe-cido e respeitado por conta do trabalho que você fez. Mas ele não vai falar que é por isso.

Por esses motivos, adotei essa filosofia. Mas financeiramente é um desastre, porque o “povo” é igual rebanho. Quando todo mundo vai correndo para um lado, ele vai junto. As pessoas não têm segurança de ficarem sozinhas, querem ficar sempre com alguém. Quem se dispõe a ser um compositor e concorrer com esses “monstros sagrados” que citei, sabe que vai enfrentar uma concorrência difícil. No entanto, essa dificuldade não significa nada para mim, pois é uma concorrência para quem está de fora. Não estou competindo com ninguém, mas simples-mente fazendo uma música que tem significação. Se ninguém quiser tocar, chego em casa à noite e toco eu mesmo. Às vezes, quando estou sozinho, penso: “Vou tocar aquela música minha que gosto ‘pra chu-chu’, pois ela diz o que gostaria que uma música dissesse”.

Rosália Alvim. Desde criança, são sempre mágicos esses momen-tos de ouvir, tocar ou conversar com o senhor. Villani-Côrtes. Você é suspeita, pois é minha sobrinha querida.

Rosália Alvim. Mas é verdadeiro. Eu me lembro das histórias que papai contava quando eu era criança. Essas narrativas ficam na raiz de nossos trabalhos como artista, como parte de nossa expressão, sobretudo no meu caso, nas artes plásticas. Sei que, paralelamente, o senhor escreve sobre as músicas que compõe. Gostaria que falasse um pouco sobre isso e dissesse se o vovô também contava essas histórias para o senhor. Villani-Côrtes. Sim, de vez em quando, gosto de inventar umas histórias. Talvez isso venha da minha meninice. Quando era bem novo, criava narrativas e fazia uma espécie de história em quadrinhos. Dese-nhava o que vinha em minha cabeça e pedia para que as pessoas escre-vessem para mim o que um personagem falava para o outro, naqueles balõezinhos. Não vou dizer que sou poeta, mas tenho uma tendência a colocar letras nas músicas. Às vezes, a melodia vai sugerindo palavras. Vou mexendo com essas palavras e, vice-versa, elas insinuam a música.

Page 156: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

154

Rosália Alvim. Sei de uma grande relação do senhor com a nature-za. Acha que ela está dentro de sua música e dessas histórias?Villani-Côrtes. Tenho algumas paixões. Gosto, por exemplo, de tudo o que vem da água, como as ondas do mar e o rio. Acho bonito ver o rio, principalmente aqueles que têm cachoeira. Adoro árvore. Quan-do era menino, as casas tinham quintais e neles encontrávamos muitas árvores. Quando estava ameaçando chover, ventando e dando trovões – acho que em Juiz de Fora os trovões são mais fortes –, adorava subir em uma goiabeira e ficar balançando naquele vento. Mal sabia que arriscava atrair um raio. Felizmente, não caiu nenhum, pois ainda estou por aqui.

Domício Procópio. Maestro, o senhor é natural de Juiz de Fora, viveu aqui sua infância, sua meninice. Posteriormente, foi para o Rio de Janeiro desenvolver seus estudos. Voltou a Juiz de Fora e, em se-guida, ganhou o mundo, desenvolveu sua produção musical, foi pro-fessor e trilhou um caminho maravilhoso como compositor. Há pou-co, foi mencionado o Te Deum, que foi composto em homenagem aos 150 anos de Juiz de Fora. Onde o senhor vê o reflexo da cidade em sua produção musical?Villani-Côrtes. Ao que me parece, quando o psicólogo quer desco-brir por que o paciente agiu de determinada maneira, ele tenta fazê-lo retroagir para contar o que aconteceu desde a infância. Nunca fui a um psicólogo, mas acredito que seja mais ou menos desse jeito. Tenho a im-pressão de que as lembranças da meninice nos marcam profundamente e, talvez, pelo resto de nossas vidas.

Fico pensando em como um ser humano conecta-se a outro através da admiração, do respeito, da dignidade, do carinho e de tudo isso a que chamamos amor. Essa procura é uma das coisas que me fazem buscar a música para me expressar, pois não saberia falar sobre isso com pala-vras. Na música ficam subentendidas muitas questões. Se surgir alguém que compreenda o que significa aquilo e que compartilhe o mesmo sen-timento, tudo bem. Mas, se passar batido por aquilo, não há o que fazer.

Por incrível que pareça, aconteceu muitas vezes de eu sentir um im-pacto emocional muito grande ao fazer uma música e isso ter se refleti-do em um determinado compasso, em uma frase ou em um acorde. Às vezes, algumas pessoas falam exatamente o que pensei no momento da

Page 157: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

155

composição: “Puxa, essa sua música, quando passa por esse pedacinho, sinto uma emoção, uma coisa diferente”. Fico quieto, sorrio e tudo bem. Pensamos que ninguém percebe, mas não é bem assim. Se bem que o contrário também é verdade; escrevo achando que todos vão no-tar, e nada acontece. Outras vezes, entrego a música para um maestro reger e penso: “Na hora que ele chegar aqui, vai descobrir que há uma exceção”, mas, na hora, passa batido. Uma terceira situação é comum: há pessoas que descobrem coisas que eu mesmo não percebi. Temos, portanto, que considerar essa troca de ideias.

André Pires. Gostaria de perguntar sobre uma composição chamada Três cantatas, que foi levada ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio de Janeiro, em 2000. Daqui a 4 dias (dia 13 de dezembro), serão comemorados os 40 anos da edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), pelo governo militar. A primeira cantata é baseada no texto do AI-5, que é um texto trágico; a segunda é sobre a carta de renúncia de Jânio Quadros, que pode ser considerada um “pré-64”; a terceira é sobre a carta-testamento de Getúlio Vargas, que, de alguma maneira, adiou o golpe militar por 10 anos. Há uma espécie de retrocesso histórico nessa escolha. É brilhante, inclusive, a seleção de 3 textos não poéticos para serem a base de uma composição musical. Fiquei curioso por 2 razões: primeiro, pela ordem histórica inversa. Qual teria sido sua intenção? A segunda é de ordem prática. Essa gravação está disponível para tentar-mos divulgá-la aqui em Juiz de Fora, no próximo dia 13 de dezembro, dos 40 anos? Villani-Côrtes. A data está próxima. Vamos conversar depois para resolvermos isso, pois temos que ser rápidos no gatilho. Vou contar exa-tamente o que se passou comigo. O Centro Cultural Banco do Brasil queria comemorar o ano 2000 fazendo uma retrospectiva de aconteci-mentos históricos do país. Convidaram, por exemplo, um dos partici-pantes para falar a respeito de Castro Alves, do Carnaval do Rio de Ja-neiro, das cartas de Dom Pedro I para Domitila de Castro [Marquesa de Santos] e outros assuntos. Sei que estavam meio adiantados no processo quando, de repente, me telefonaram do Rio de Janeiro perguntando se aceitaria participar desse projeto. Queriam que pegasse os textos, sem poder mexer em nada, musicasse e orquestrasse com um soprano e

Page 158: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

156

um quinteto de metais. Ora, orquestrar um quinteto de metais acom-panhando é um quebra-cabeça, é muito difícil. Quando lidamos com cordas, por exemplo, simplesmente colocamos uma “cama de cordas”, um apoio na região grave dos instrumentos, e é possível sustentar esse apoio ao infinito, pelo tempo que quisermos. Com as cordas, temos desde o mais que pianíssimo até o fortíssimo. Temos, ainda, os pizzi-catos, que permitem colocar uma nota longa, que confere colorido e leveza. Em resumo, há mais facilidade de solucionarmos.

Há 2 questões muito sérias ao se trabalhar com sopro. Primeiro, há o problema do fôlego do músico. Não posso pegar uma nota e colocar para o trompetista tocar por muito tempo, ou mantê-lo dando notas longas por um período prolongado. Nesse trabalho, eram 2 trompe-tes, um trombone, uma trompa e uma tuba. Além do mais, o sopro dos trompetes tem uma potência de sonoridade muito maior em uma região mais aguda. Se colocarmos um cantor na região mais grave, os trompetes o superam. Não podemos manter, por exemplo, um trom-petista dando uma nota aguda muitas vezes, porque ele cansa os lábios e não consegue repetir, e não é possível escrever para ele em uma região muito aguda, porque é difícil manter aquela nota afinada durante muito tempo. Portanto, há uma série de problemas completamente diferentes em um quinteto de metais. Fiquei supondo que os coordenadores do projeto haviam convidado várias pessoas para fazer e ninguém topou e, então, resolveram me procurar.

Sempre que me chamam para escrever alguma coisa, respondo que sim. E depois eu me arranjo. Em uma ocasião, por exemplo, eu me en-contrei compondo às 4 da manhã, morto de sono, sendo que tinha de le-var o material pronto às 8 horas para ser gravado. Xingava a mim mesmo: “Seu burro! Idiota! Por que se comprometeu? Agora quero ver como vai se arrumar!”. Mas, até hoje, tenho conseguido me sair bem das situações, pois é o famoso caso da adrenalina. Parece que estou fugindo do assunto, mas isso é muito importante. Uma vez, Camargo Guarnieri, com quem estudava, falou uma coisa muito gozada, com sua voz meio fina: “Falei com um aluno meu que ele deveria melhorar a peça que exigi dele”. Se-gundo ele, o aluno ficou reclamando: “Professor, o senhor está exigindo demais”. Então, ele respondeu: “Quando você veio estudar comigo, con-siderei que você fosse um limão, agora estou espremendo para fazer uma

Page 159: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

157

limonada”. Enfim, quando a pessoa é pressionada, acaba tirando forças e ideias não sei de onde. Era obrigado a me virar, pois tinha família para sustentar, o colégio dos meninos para pagar.

O que aconteceu com a comemoração do ano 2000? Acabei solu-cionando o problema ao colocar o quinteto de metais com piano, pois esse instrumento é uma espécie de coringa. Depois que atacava com os metais, entrava com o piano para haver um descanso. O piano ajudava na hora de resolver determinados efeitos que exigem nota longa. No caso da carta de Getúlio, quando ele fala dos empecilhos, que a Petro-bras foi atacada, o piano faz aquele efeito: “tommm, tom tom tom...”. Se fizesse aquele efeito com os metais, ia gastar um sopro dos músicos e, no fim, eles não teriam gás para as outras coisas. Então, armei esse truque; coloquei o piano trabalhando junto.

Na carta de Getúlio, há um trecho que me deixou superemocionado quando estava compondo, porque é um momento em que ele fala do povo brasileiro. Ele diz que estava disposto a dar a vida pelo nosso povo, para que as pessoas conseguissem uma posição de dignidade, em relação a si mesmas e perante os outros. Já leram isso? Acho incrível! Dessa forma, enquanto Getúlio foi falando, fui colocando umas dicas do Hino Nacio-nal. Durante o discurso, foi entrando o Hino Nacional no meio, junto. Foi um momento emocionante. Quando tive essa ideia, custei a fazer, porque ficava emotivo na hora em que escrevia. A Regina Mesquita não conseguia cantar a música, pois, quando chegava nessa hora, desatava a chorar. Aqui-lo que fazemos com emoção acaba passando para as pessoas.

O AI-5 é uma maldição, algo terrível. Como era possível colocar mú-sica naquilo? Fiquei com aquele quebra-cabeça. Resolvi fazer uma espé-cie de marcha militar meio grotesca, com tom de zombaria: “tam tam trammm tatuntidon”. Uma marcha meio caricata, para criar um clima irônico, em que as pessoas pudessem entender o quão ridículo foi esse momento na história do país. Foi uma época terrível. Se alguém olhasse para sua fisionomia e achasse que estava com maus olhos, poderia ir à polícia e mandar prender, torturar, matar. Portanto, não havia desculpa, nem explicação. Havia sugerido a Regina que improvisasse nessa parte. Ela experimentou, mas achou preferível ler o texto de uma maneira bem irônica, jogando os papéis no chão, enquanto o grupo foi cantando cada um dos itens do AI-5 e tocando algo caricato, meio soturno por vezes.

Page 160: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

158

No início da década de 1960, quando trabalhava na noite de São Pau-lo, havia uma dupla chamada Hugo e Alan [Hugo Lander e Alan Gor-don], um baterista e um pianista, ambos judeus, que faziam uns shows brincando. Enquanto tocava piano, Alan fazia arpejos toda vida, até que levava um tombo e caía no chão. Depois, levantava-se com trejeitos de Carlitos. Fizeram muito sucesso e abriram uma casa noturna chamada Stardust. Eles me viram tocando em outro lugar e me convidaram para trabalhar nessa casa. Foi um sucesso incrível, ficava superlotado. Alan acabava de tocar às quatro e meia da manhã e, às 5, estava na feira com-prando coisas para levar para a cozinha. Quando a casa foi inaugurada, passou uns 8 dias sem dormir, trabalhando, tocando, fazendo shows... Um dia, perguntei: “Como faz para ter essa energia?”. Ele respondeu: “Sabe o que os cientistas descobriram que é impossível de se medir a capacidade? O cérebro humano!”. Pensei no que dizem os psicólogos e os neurologistas, que uma pessoa considerada inteligente usa apenas 10 por cento dos neurônios que possui.

As coisas que consegui foram através de um esforço muito grande. Pode até ser que as pessoas acreditem no talento, mas não há dom espe-cial nenhum. Eu me sinto bem em fazer aquilo a que me comprometi. Adoto esse princípio. Se for a última coisa que tiver de fazer antes da morte, não me incomodo de morrer, mas vou fazer, seja o que for. Pode ser a coisa mais simples ou a mais delicada, para a pessoa mais signifi-cante ou menos. Tudo na vida é significante.

André Pires. Isso faz a diferença, mas quero contestar a sua modéstia. Se sai limonada ao espremermos esse limão, é porque há um bom limão.Villani-Côrtes. Pois é, mas há muitos limões que ficam sem virar limonada, que poderiam ser, mas não são. Conheço muita gente de ta-lento excepcional, mas que ficam achando que as coisas têm que vir às suas mãos, talvez exatamente por serem muito talentosas. Enquanto ficam esperando, eu corro atrás e acabo conseguindo.

Eduardo Tagliatti. Tive a oportunidade de tocar com o senhor em várias peças, e uma delas foi o AI-5, que o senhor narrou e eu toquei. Foi muito emocionante para mim, uma experiência maravilhosa. Outro momento muito divertido foi Coração latino. Ao contrário do Te Deum,

Page 161: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

159

no qual o senhor se debruçou durante meses, essa obra foi resolvida em uma semana. Sei que a música já estava pronta, mas em poucos dias o senhor a pôs para 2 pianos e saímos tocando. Foi maravilhoso, havia aquele trecho em que tínhamos que percutir o corpo e trocar de piano. Resolvemos isso em cima da hora. Estava meio emocionado, mas fiz e ainda tive que resolver aquele final superemotivo. Mas demos conta, fizemos uma apresentação muito bonita. Como outras vezes, tocamos Beiráceas em Juiz de Fora, além de outras peças. Contudo, acho que essas 2 vezes – AI-5 e Coração latino, que o senhor escreveu para mim, para tocarmos juntos – foram as mais marcantes.

Estava passando um período em sua casa e tinha um recital para fazer na casa de uma senhora em São Paulo. Comentei que queria terminar a apresentação com uma peça de 2 pianos e que tinha gostado muito de uma obra para banda sinfônica, que, na época, nem se chamava Cora-ção latino, mas Brasejo. Gostaria de saber um pouco dessa época, do Te Deum, e que falasse sobre esse período que passamos juntos. Villani-Côrtes. Quando estavam ensaiando o Te Deum em Juiz de Fora, procurei o maestro Dario Sotelo, de Tatuí, e contei que estava confuso com o coro no final. “Cada hora entra um, entra tenor, depois soprano. Além disso, a orquestra tem várias entradas. Como vou solu-cionar isso?” Perguntei o que Dario estava achando da regência, e ele me deu umas dicas. Estudei a peça, porque uma coisa é escrever, ideali-zar, outra coisa é reger na hora, dirigir o coro. Repassei tudo em casa e perguntei novamente a opinião do Dario. Daí, ele respondeu: “Pode ir firme que está bom assim”. Bendito momento em que fiz aquilo.

Quando cheguei em Juiz de Fora, o coro estava tinindo. Às vezes, há problemas no material vocal, afinação. Mas não há como dominar isso, nem com os maiores cantores do mundo. Mas o conhecimento da música estava ali, e havia um rapaz, aqui de Juiz de Fora, que estava se preparando, um tal de Eduardo Tagliatti, que eu não conhecia. Viemos a nos conhecer quando ele estava ensaiando.

Conto isso para todo mundo. Ensaiamos em uma sala do Pró--Música, na rua Espírito Santo. Quando cheguei lá, o pessoal estava certo. Entretanto, se não tivesse estudado com o Dario Sotelo, estaria perdido, porque ficaria vendo todo mundo entrar e olhando a partitura para ver o que estava acontecendo. É necessário praticar muito: “Aqui, entra para cá, vai ali...”. As pessoas pensam: “Puxa, ele compôs e deve

Page 162: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

160

saber tudo da música”. Sei nada. Compus a música, mas é preciso me preparar para o momento de reger.

Enquanto passava com o coro, o Eduardo estava no piano e tudo cor-ria bem, soava certinho. No momento em que ele deu uma saída, fui me sentar ao piano. Comecei a tocar e não saía som nenhum. O Eduardo é que estava tirando a música, pois o instrumento não estava tão bom, tinha notas falhando. Costumo comentar isso com as pessoas, pois levei um susto. Fui tocar e tirar o mesmo som que ele estava fazendo, mas não deu.

Com Coração latino aconteceu algo que vou contar, mas é segredo de Estado. Quando fui fazer uma versão para 2 pianos, houve uma coisa que é comum de acontecer comigo. Achei que estava uma droga. Então, praticamente refiz toda a música, produzi uma “revisitação”.

Há um caso que o Jaques Morelenbaum me contou, quando fazia mestrado no Rio. Ele falou que havia uma orquestra de cordas, que tocava vários quartetos do Heitor Villa-Lobos. O grupo ensaiou muito uma determinada música e chamou o compositor para ver se estava bom e ele foi lá para ouvir. De repente, deu um pulo da cadeira e fa-lou: “O que vocês estão fazendo aí? Que negócio é esse?”. Então, eles perguntaram: “O que foi maestro?”. Ele respondeu: “Isso está escrito para pianíssimo e vocês estão tocando fortíssimo!”. Os músicos ficaram sem graça e responderam: “Mas maestro, está escrito na partitura que é fortíssimo”. Ele insistiu: “Então risca, pois é pianíssimo!”. Passou... O quarteto voltou a ensaiar e, depois de um tempo, resolveu chamar Villa-Lobos novamente. Quando chegou na mesma parte em que fize-ram a mudança para pianíssimo, o compositor deu um pulo da cadeira e gritou: “O que vocês estão fazendo? Isso é fortíssimo!”.

Essa história serve para entendermos que a música é como o vento nas árvores, como a chuva, como a água de uma cachoeira. A queda é a mesma, mas água é sempre diferente. As notas que escrevemos são a for-ma que temos para expressar o que queremos. Entretanto, dependendo do dia, manifestamos essa ideia com mais ou menos notas. Portanto, naqueles dias em que fiz a versão de Coração latino, tive uma mudança no meu humor. Mas trabalhei bastante, fiquei em claro, levantei cedi-nho. Me esforçava para escrever para o Tagliatti. Escrevi para 2 pianos e fiquei com o segundo, deixei o primeiro para ele. Quando entreguei a partitura, ele falou: “Mas Villani, você adiantou aí, a divisão aqui é essa”.

Page 163: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

161

Lendo de primeira vista, ele tocou melhor do que eu, que escrevi. Esse é o Tagliatti.

Jorge Sanglard. O que o senhor gosta de ouvir quando está em casa?Villani-Côrtes. Na verdade, tenho muito pouco tempo para ouvir música em casa. As pessoas cobram de mim, perguntando: “E o compo-sitor tal?”. Mas, para compor, temos que nos ligar em nós mesmos. Não posso ficar olhando muito os outros, senão acaba que admiramos muito e não fazemos. Contudo, tenho minhas preferências. Quando vou passar a limpo uma música, ou quando tenho que arrumar algo no escritório, costumo ligar a Rádio Cultura, de São Paulo, que toca música clássica. De vez em quando, eles também tocam coisas que acho enjoadas. Sem-pre que isso ocorre, coloco um CD. Gosto muito de Debussy e Ravel. Aprecio esses compositores de linha meio impressionista, como Gustav Theodore Rolst e Stravinsky. Considero as trilhas de John Williams para cinema verdadeiras obras-primas; deveriam ser tocadas em concertos, pois foram escritas com sabedoria maravilhosa.

Às vezes, ouço minhas próprias músicas. Gosto de colocar gravações minhas enquanto faço alguma atividade. Não é egocentrismo. Acredito que deva compor músicas que eu mesmo goste, como se fosse dá-las de presente para mim mesmo ou para outra pessoa. Por isso, componho ao meu gosto e gosto de escutar minhas músicas.

André Pires. De alguma maneira, sua resposta ao Sanglard explicou uma questão que tinha pensado em fazer. Uma das características fortes do século XX é que os compositores, às vezes, pareciam ter raiva do seu público. Bamberg, por exemplo, quando foi aplaudido de pé, na década de 1930, saiu chorando do palco de um teatro em Viena, per-guntando para si mesmo: “Onde eu errei?”. Quer dizer, o público não podia aplaudir de pé, senão havia algo errado. Felizmente, isso foi re-visto no final do mesmo século. Ao contrário, você sempre esteve bem com o seu público e com seus intérpretes. O que isso representou em sua vida? Acho que a resposta foi dada, pois o senhor disse que compõe como quem dá um presente. Isso significa que quer agradar a quem vai tocar a sua música e a quem vai ouvi-la?

Page 164: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

162

Villani-Côrtes. Acredito que haja determinados artistas que se sentem gênios e acham que as pessoas devem reverenciá-los sempre. Chegam ao ponto de se revoltarem quando o público aplaude. Since-ramente, não consigo entender. Seria o mesmo caso se convidasse uma pessoa para ir à minha casa e pedisse à minha esposa Efigênia para fazer a melhor comida. Vamos supor que o convidado gostasse muito de pei-xe. Então, é servido um peixe maravilhoso e, de repente, a pessoa sai revoltada comigo. Não sei se consigo entender quem age assim.

Essa atitude de Bamberg foi porque ele se julgava tão genial, que o aplauso do público tornou-se uma ofensa. Acho lamentável, tenho dó dele. Na verdade, prefiro não ser gênio. Se for necessário agir dessa maneira, não quero. Além do mais, penso que não devemos medir as pessoas pelo que têm, no sentido de qualidades – beleza, riqueza, ta-lento. Temos que interagir com todos, apreciando e respeitando o ser humano que cada um representa. Isto está acima de tudo.

Se puder agir de uma maneira legal, mesmo que forçada, para fazer uma pessoa se sentir feliz, recuperada de uma doença, de um trauma, de um problema, farei o que quiserem e ficarei feliz. Podem pedir pirueta, palhaçada ou brincadeira. Acredito que o objetivo do ser humano é ser feliz. Deveríamos desejar isso e mais nada. Há pessoas que se envolvem em determinados assuntos e se deixam levar por ideias que as desviam desse objetivo primordial. Minha intenção nunca foi a de ser aclamado o gênio do século, mas a de estar bem comigo mesmo, em paz com o mundo. Se me disserem que assim não posso ser genial, responderei: “Sinto pena de quem pensa assim”.

Júlio César Santos. Poderia fazer um panorama de como anda a composição no Brasil, como um todo? Temos uma safra boa? A área da cultura vem crescendo como um todo. Consegue perceber isso positi-vamente na área da composição?Villani-Côrtes. Na verdade, para poder ter certa tranquilidade de vida e não perder meu rumo, tento continuar trilhando meu caminho, fazendo minhas músicas da melhor maneira possível. Se for aceito ou não, tudo bem. Entretanto, muita gente pensa que tem que se filiar a uma escola da moda. Quem procede assim fica escravo de determina-das regras. Há quem use isso com a pretensão de se projetar como com-

Page 165: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

163

positor. “Vou seguir tal escola, porque tem mais gente usando. Fulano de tal fez assim e teve sucesso!”. Isso acontece. Mas, dentro dos com-positores vivos, existe um pessoal que eu classificaria como “oficial”. É desajeitado citar nomes, porque sempre há o risco de esquecer alguém, mas vou dizer alguns. Se deixar alguém para trás, gostaria que ficasse entendido como uma falha humana.

Considero importante que o compositor tenha uma marca. Não concordo com quem fica correndo de um lado para o outro; um dia faz a música de um jeito, depois faz de outro. O compositor, assim, fica sem referência; ora faz uma obra maravilhosa, ora cria algo estranho. Talvez seja culpa do temperamento, mas é difícil dizer. Enfim, citaria Edino Krieger, um compositor que poderíamos oficializar. Trata-se de alguém com um conhecimento muito grande. Algumas de suas obras são muito bem feitas. Se a assinatura dele está embaixo, podemos ouvir que vamos perceber certa estrutura. Outro compositor que admiro por essa continuidade de estrutura é Ronaldo Miranda.

Digo isso, mas não conheço muito as obras de todos eles. Não tenho tempo suficiente para ficar em casa ouvindo as novidades. Acabo pecan-do por isso. Mas citaria também Marlos Nobre, que considero muito bom. Poderia incluir Osvaldo Lacerda nessa lista, um compositor de São Paulo que respeito muito e que tem sua marca pessoal, a escola e o jeito característicos de escrever. Há, ainda, o João Guilherme Ripper, que foi Diretor da Escola Nacional de Música. Se prosseguisse falando, lembraria de mais, mas, genericamente, é esse o pessoal. Contudo, sin-to que os nomes que citei fazem parte da turma mais tradicional; são pessoas que já têm certo tempo de estrada.

Jorge Sanglard. Compositores como Almeida Prado, Sílvio Perei-ra, Amaral Vieira e Mario Ficarelli estariam nessa lista do senhor?Villani-Côrtes. Estariam sim. Bem lembrado, pois são composi-tores de grande qualidade, pessoas que trabalham com seriedade e que têm experiência.

Domício Procópio. O senhor desenvolveu uma dissertação de mestrado sobre a utilização do sintetizador na composição. Trabalhou também com música para filmes, fez trilha sonora para a animação

Page 166: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

164

Matita Pereira, utilizando música eletrônica. Gostaria que comentasse a respeito da utilização desses recursos tecnológicos na música erudita, que tradicionalmente é, ou era, realizada com instrumentos acústicos. Como o senhor vê o futuro da música?Villani-Côrtes. Aproveito a oportunidade para dizer que estou terminando outra trilha para o Departamento de Cultura do Rio de Janeiro, Saci, do mesmo seguimento de Matita Pereira. Nessas trilhas, trabalhei com meu filho, Ed Côrtes, que também é compositor e tem feito trabalhos para filmes em Hollywood. Nossa parceria funciona da seguinte maneira: começo a trilha no piano, vou ao estúdio e gravo no Proteus, uma espécie de piano, em que é possível gravar e colocar um timbre diferente. Pode passar para violino, flauta, um monte de opções. Depois, mandamos para o produtor do filme ouvir a ideia musical, pois ainda há chances de mudar nessa etapa. Ele faz seus comentários. “Não, aqui você fez crescente, mas acho que podemos mudar essa melodia, para que fique só em notas longas. Vamos dar mais efeito, deixar sem música aqui, pois só iremos colocar um efeito aparente...”. São coisas que o diretor do filme sugere. Esses recursos eletrônicos ajudam muito nesse sentido. Se gravássemos direto com a orquestra, teríamos que chamar os músicos novamente a cada modificação.

A trilha de Saci está nessa fase. Recebemos algumas observações dos produtores. Depois de tudo definido, muitos dos instrumentos só fun-cionam acústico: corda, trompa, flauta, acordeom e uma série de ou-tros com timbres muito característicos. Mesmo o trombone e o trom-pete, quando sintetizados, não dão muito certo. Quando voltar para São Paulo, definirei com meu filho como vamos orquestrar cada parte, que músicos vamos chamar para gravar etc. A tecnologia ajuda bastante. Se o Tagliatti ouvir a gravação da trilha de Saci, vai ficar humilhado na técnica dele, porque, com o Proteus, os artistas podem tocar devagar, e o equipamento acelera depois. Quando o músico dá uma esbarradinha em alguma nota, é possível corrigir. Esses recursos ajudam, mas tam-bém podem atrapalhar, pois um grande número de novos compositores escreve exclusivamente no computador. Como eles não têm muita ex-periência, acabam criando obras quase inexequíveis, que não funcio-nam para o instrumentista ou para uma orquestra tocar. Constato isso em algumas composições que os alunos mostram para mim. Quando

Page 167: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

165

vou ler no piano, vejo que não são possíveis. “Coloquei um som em um sintetizador que soa muito bonito”, eles dizem. Sai tudo perfeito, ape-sar de estar em uma velocidade absurda. Acho que, em parte, esse tipo de recurso prejudica o senso de relacionamento entre as pessoas e fica tudo um pouco desumano.

Júlio César Santos. Essa é a salvação dos intérpretes. Há uma corrente que afirma, justamente, que eles serão supervalorizados no futuro, porque a oportunidade de ver alguém tocar ao vivo será um privilégio raríssimo. A música de estúdio está fantasiando a execução a tal ponto, que o músico realmente competente, que tiver a técnica apu-rada para poder desempenhar certas composições, ou mesmo uma obra do passado, se tornará uma figura muito valiosa. Se for assim, será positivo para as pessoas que dedicam anos de suas vidas para simples-mente reproduzir as peças dos compositores. Aliás, sem esse esforço, essas obras não ganhariam vida.Villani-Côrtes. Isso é muito importante. Depois que comecei a le-cionar na Unesp, a partir de 1982, pude deixar de tocar muito em casas noturnas e de escrever arranjos. Consegui me dar ao luxo de me afastar um pouco disso. Na mesma época, comecei a participar de um grupo. Era só piano, baixo e cantora para tocar em uma happy hour em São Pau-lo. Nossa apresentação era das 19 às 21 horas. Apenas me defendo como pianista de música popular; conheço razoavelmente o repertório, mas não sou nenhuma barbaridade. Toco direitinho, harmonizo, dou umas improvisadas, mas estou muito longe de me aproximar de alguém como Oscar Peterson ou Bill Evans. O contrabaixista também era um cara que conhecia as músicas e tocava direitinho. Da mesma forma, a cantora não fazia feio, mas não era a melhor do mundo. Era uma cantora de música popular, que fazia umas melodias legais. Tocávamos meia hora e depois havia uma pausa. Quando parávamos, colocavam um som mecânico para nos substituir. Entravam com a gravação de Frank Sinatra, cantando com uma orquestra maravilhosa, com cordas; ou com Oscar Peterson. Só os tops, os melhores. Mas, na hora em que estava tocando essas músicas, todo mundo ria e conversava. Éramos apenas 3 músicos, não poderíamos nos comparar a eles. Entretanto, quando retornávamos ao palco, as pessoas ouviam, gostavam, aplaudiam e ficavam quietos. Sabe o que é isso? O

Page 168: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

166

valor do ser humano. A presença do ser humano é insubstituível. É o que você acabou de dizer. Não podemos subestimar a comunicação. Acho in-teressante comentar que, em 1939, aproximadamente, Pierre Schaeffer fez as primeiras experiências com música eletrônica na França. A grande vantagem que ele enxergava nessa tecnologia era o fato de que, daí em diante, os intérpretes seriam as gravações. Portanto, não haveria erro. A música seria tocada perfeita. Tudo gravado, tudo certinho, maravilhoso. No fim da vida, ele ficou reclamando que as pessoas não se interessavam por seu trabalho. Um cara desses não merece atenção mesmo, pois não consegue perceber o valor do ser humano. Esse camarada é um pobre coitado. Passou a vida inutilmente.

Rosália Alvin. É possível fazer um trabalho em conjunto no teatro, na dança e nas artes plásticas. Mas a música é, essencialmente, um trabalho cooperativo. E isso traz a convivência que o mundo tanto necessita. Acha que precisaria haver mais música nas escolas primárias e secundárias?Villani-Côrtes. Nesse caso, entra um problema que pode ser visto como uma questão política. Posso estar errado, mas tenho que relatar o que aconteceu comigo. Nasci em 1930. Vivi, estudei e tive minha ju-ventude sob a ditadura de Getúlio Vargas. Temos que olhar os defeitos e as qualidades. Durante o Estado Novo, que é tão criticado, Getúlio deu apoio para o maior compositor brasileiro que já existiu, e um dos maiores do mundo, Heitor Villa-Lobos, que lutou pela música brasileira. Quando foi para a Europa estudar, chegou e falou: “Não vim aqui para aprender, mas para mostrar o meu trabalho”. Era alguém de força, de personalidade excepcional. E trabalhou a vida inteira. Não dá para entender como um ser humano pode escrever tanta música, compor tanta coisa.

Durante essa época, vivi sob a orientação de Villa-Lobos, que criou o canto orfeônico nas escolas. Estudei na Escola Estadual Fernando Lobo. Havia um professor que sabia tocar piano e nos ensinou a cantar os hinos pátrios, as canções mais significativas do nosso conhecimento. Quando o professor encontrava um aluno com talento, ele o direcionava. O que acontece hoje? A pessoa entra para uma faculdade de música com idade avançada, mas zero quilômetro em conhecimento. Na Europa, não é assim. As pessoas têm formação musical na escola. Foi um crime terem

Page 169: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

167

acabado com uma coisa construída a duras penas, com toda sabedoria, com todo amor e dedicação, por Villa-Lobos, e apoiado por Getúlio Vargas. Então, tive a felicidade de viver em uma época em que havia música nas escolas.

Rosália Alvin. Sempre havia um piano na escola.Villani-Côrtes. Sem dúvida. Eram outros tempos. Agora, para ti-rarmos essa diferença será difícil. Vamos torcer para que nossos dirigen-tes atuais façam alguma coisa. Quem sabe eles não nos ouçam e criem um pouco de vergonha?

Entrevista concedida ao projeto Diálogos Abertos, em 9 de dezembro de 2008, no Museu de Arte Murilo Mendes. Entrevistadores: André Pires; Beto Campos; Ciro Tabet; Domício Procópio; Eduardo Tagliatti; Jorge Sanglard; Júlio César de Sousa Santos; Rosália Alvim Côrtes. Edição: Leonardo Toledo.

Page 170: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

diálogos abertos 4 foi composto na fonte Perpetua, o miolo impresso em Polen Bold 90g e a capa em Cartão Trucard 300g, sendo a impressão de 500 exemplares executada pela Gráfica Brasil para a Universidade Federal de Juiz de Fora, Pró-reitoria de Cultura e Museu de Arte Murilo Mendes, em fevereiro de 2016.

Page 171: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

VILLANI-CÔRTESMARINHOJUImportante registro memorial respaldado pela trajetória de persona-

lidades marcantes para a história da cidade e para a ampliação de seus hori-zontes, a série de entrevistas Diálogos Abertos chega ao livro de número 4, dis-tinguindo o trabalho de Eliardo França, Iacyr Freitas, Juracy Neves, Marcos Marinho e Edmundo Villani-Côrtes. Idealizado pela Pró-reitoria de Cul-tura e delineado entre os anos de 2007 e 2011, o projeto é guardião dos registros audiovisuais realizados no Museu de Arte Murilo Mendes nesse período. Seu caráter de continuidade testemunha a evolução dos fatos que envolvem a urbe, abrangendo os acontecimentos culturais, políticos, eco-nômicos e sociais, que se dão em moto-contínuo, ampliando o manancial de pesquisas para o público acadêmico e para a sociedade em geral.

Page 172: 1 EVESIACYRFREITASELIARDO - Museu de Arte Murilo Mendes · Vice-reitor em exercício da Reitoria Valéria de Faria Cristofaro Pró-reitora de Cultura ... MUSEU DE ARTE MURILO MENDES

REA

LIZ

ÃO