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Núcleo Rural Pipiripau, Planaltina

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ra uma vez um professor de matemática muito inteligente que adora-va contar histórias. Ele vivia bem longe do Brasil, na Inglaterra, uma enorme ilha governada por reis e rainhas, e se chamava Charles Dodgson. Quando ele nasceu, em 1832, os livros eram lidos à luz de lamparinas de querosene. Naquela época, as coisas aconteciam muito mais devagar e ninguém pensa-va que dali a poucos anos o homem iria iluminar o interior das casas com as lâmpadas incandescentes que o físico americano Tomas Edison criaria naquele século – bastaria apenas apertar um botão. E o computador, então, quem poderia sonhar?

Um belo dia, o professor precisou viajar. Pegou um barco, que parecia não chegar nunca. Ele já estava começando a ficar entediado quando conheceu uma linda menina de sete anos de idade, chamada Alice Liddell. E aconte-ceu então uma grande amizade à primeira vista, que transformou a viagem

Biblioteca Mundo da Imaginação (1)Escola Classe Frigorífico Industrial – Núcleo Rural Pipiripau, Planaltina

O nome escolhido para a biblioteca sintetiza tudo o que as crianças querem encontrar ao atravessar a porta: possibilidades, aventuras,

criatividade, descobertas, conhecimento[ ]“Ilha onde tudo se esclarece.Aqui se pode pisar no sólido solo das provas.Não há estradas senão as de chegada.(...) Cresce aqui a árvore da Suposição Justade galhos desenredados desde antanho.A árvore do Entendimento, fascinantemente simplesjunto à fonte que se chama Ah, Então É Isso.”

(Utopia, Wislawa Szymborska)

E

Histórias sem fim

Atrativos da leitura: os livros são como

caminhos para novos universos

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em um divertido passeio para os dois. Charles passava o tempo contando histórias muito engraçadas para a menina. Inventava tudo na hora. Alice se encantava, claro, com as novidades que saíam da imaginação do professor, muito diferentes dos contos que os adultos liam para os pequenos.

Pois o professor, na volta para casa, resolveu escrever uma daquelas histórias que havia contado, para presentear a pequena companheira de viagem. E ali nasceu, para sempre, Alice no País das Maravilhas. Em pleno século 21, quando já começa a surgir gente interessada em comprar um pacote de viagem para Marte, o livro continua reinando nas estantes das livrarias e bibliotecas do mundo inteiro e inspirando belas adaptações para o cinema e o teatro. E segue contado e recontado, nas mais diversas línguas faladas no planeta.

“Bem, Alice não ia ficar sentada/ali o tempo todo, olhando/um coelho cheio de relógios./Ela precisava virar rainha. [...] Além disso, Alice precisa-va:/fazer a lição de casa,/almoçar na casa da vovó,/acordar em sua própria casa”, escreve a professora, poeta e jornalista Mônica Rodrigues da Costa em Alice entra no jogo de xadrez, um dos recontos reunidos no livro Vice-versa ao contrário, da Companhia das Letrinhas. “O País das Maravilhas era o país dos sonhos.” O famoso clássico assinado por Lewis Carroll – mais uma brincadeira do professor Charles, que decidiu criar também um pseudôni-mo – atravessa gerações seduzindo crianças e adultos de todas as idades, gostos e nacionalidades.

“É o meu livro preferido”, revela a pequena Eduarda Oliveira Xavier no meio de uma animada roda de conversa com outros alunos na Biblioteca Mundo da Imaginação, na Escola Classe Frigorífico Industrial, instalada na área rural de Planaltina. A cidade surgiu na rota dos bandeirantes que procuravam ouro em Goiás, em 1859, no mesmo século do professor Char-les, e foi incorporada ao quadrilátero do Distrito Federal cem anos depois. Com apenas sete anos de idade – a mesma de Alice Liddell quando inspirou o matemático inglês na criação do país dos sonhos – Eduarda lê com uma desenvoltura e uma pontuação impressionantes. “Também gosto muito de Rapunzel”, diz a menina do segundo ano, que toda semana escolhe cuidado-samente, naquele espaço, os livros que leva para ler em casa.

A senha para garantir que o livro escolhido estará disponível nas prate-leiras recheadas de títulos coloridos e atraentes é a campainha que avisa a hora do recreio. “As crianças entram e pedem para deixá-las escolher e pegar logo, antes que outras cheguem na frente”, entrega a professora Maria das Graças Goulart Neves Barreto, responsável pela acolhedora sala inaugurada no dia 6 de julho de 2012 pelo projeto Bibliotecas do Saber. “Os professores preparam os planos de atividades que vão desenvolver com os alunos na

biblioteca e reservamos os dias para a frequência de cada turma. Mesmo assim, eles sempre vêm espontaneamente nos intervalos das aulas.”

Na roda dos alunos, o critério para decidir o que levar é bastante variado. “Gosto de escolher pelas primeiras frases do livro. Se acho interessante, pego para ler”, diz Eduardo Moreira Pinheiro, dez anos. Os nomes dos autores também despertam a curiosidade do menino do quinto ano e costumam ser decisivos. A preferência dele é pela escritora e educadora carioca Cecília Meireles – “ela fala de coisas bonitas e também engraçadas” – e por Mon-teiro Lobato, que escreveu 26 livros para as crianças quando elas não eram ainda reconhecidas como um público importante. “Gosto quando ele fala de futebol e do Sítio do Picapau Amarelo.”

Para a pequena Sarah Helen Borges Vaz, sete anos, o critério é a beleza, o estilo gráfico da publicação. A menina calada de sorriso tímido sonha um futuro de artista. “De livros”, completa. “Quero fazer livros bem bonitos.” Marina Rodrigues de Oliveira, dez anos, colega de turma de Eduardo, é atraída pelo título e pelo formato. “Quando o título é interessante, pego.” Uma “falante” assumida, Marina também se considera “boa para ler” e aponta a Cinderela como a personagem preferida. “Amo os contos de fadas, as histórias me fascinam. Mas gosto mesmo é de pegar os livros grandes.”

Aos sete anos, várias meninas se identificaram

com a personagem de Alice no País das Maravilhas

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126 127Diferentes opções: acervo

prioriza os interesses da faixa etária do primeiro ao quinto ano

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“O acervo prioriza os interesses da faixa etária dos alunos do primeiro ao quinto ano e a preferência deles é mesmo pelos contos de fadas”, confir-ma o diretor Jefferson Soares da Rocha. “Os pequenos chegam com muita sede de leitura, mas os maiores são mais resistentes”, compara. O problema é atribuído à falta de exemplo e de estímulo em casa, que a escola tenta reverter com projetos especiais de leitura focados na motivação da família. Desde 2009 à frente da pequena escola rural, Jefferson constrói o projeto pedagógico com a equipe a partir dos ensinamentos do educador Paulo Freire, que definiu como principal meta da educação “criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, que sejam inventores, descobridores”.

Pedagogo admirado nos países desenvolvidos, Paulo Freire inovou a educação com um método revolucionário de descodificação da palavra, usada para alfabetizar e formar consciência crítica. O trabalho lhe rendeu respeito no exterior, onde é reconhecido como um dos mais importantes intelectuais brasileiros, e perseguição da ditadura militar que tomou o poder no Brasil, em 1964, e o obrigou a sair do país. Freire reuniu os fundamentos das suas propostas de educação libertadora no livro Pe-dagogia do oprimido, publicado em 1970, nos Estados Unidos, durante o exílio, quando deu aulas em Harvard e outras universidades. Na sua obra mais traduzida no mundo ocidental, Paulo Freire diz que “não há palavra verdadeira que não seja práxis, trabalho” e que “existir, humanamente, é transformar o mundo”.

Sem perder o foco no sentido da “palavra verdadeira”, o diretor Jefferson Soares da Rocha aponta a frase de Paulo Freire que abre o projeto pedagógico da escola – “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibi-lidades para a sua própria produção ou a sua construção” – para lembrar que essa transformação se põe em prática a partir da leitura. A parceria com o projeto Bibliotecas do Saber ampliou as oportunidades de formar cidadãos críticos e conscientes. “A instalação da nossa biblioteca foi um grande divisor de águas. O espaço organizado para a leitura agrega valores importantes, abre caminho para um aprendizado completo. Permite que as crianças ganhem noções de respeito, de cidadania, aprendam atitudes como falar baixo em atenção às outras pessoas.”

Até o Mundo da Imaginação abrir as portas, o único refúgio diferente da sala de aula para os alunos era o laboratório de informática. O novo espaço abriu outros horizontes. “Nossas crianças não têm muito acesso a livros. A biblioteca veio a calhar nessa realidade e elas estão tomando gosto. Já tem aluno dizendo que vai ser escritor”, observa a professora Silvana Pinto

de Sousa. “Estão se tornando íntimos dos livros e a gente percebe como a criatividade deles tem aumentado. É um ganho incomparável.”

As mudanças não passam despercebidas para as crianças. “Antes, eu não lia nada, não me interessava. A minha curiosidade só começou a des-pertar aqui na biblioteca”, conta Marina. A menina desembaraçada que se diz “falante” reconhece que os livros estão fazendo a diferença. “Eles me ajudaram a ler e a escrever melhor.” E, é claro, a falar melhor também. “Eu era muito ruim nos acentos e nas vírgulas, principalmente, e tinha sempre que ler várias vezes, até entender; agora não.”

Com a ajuda dos seus autores preferidos, o menino Eduardo Moreira Pinheiro aprendeu que uma palavra nunca pode ser deixada para trás. Quan-do tem dúvida sobre o significado, ele não se aperta: “Pergunto sempre.” O sufoco mesmo é quando ele quer trocar ideias sobre alguma história. Em casa, nada feito – ele virou uma exceção no meio da família, o único que gosta de ler. A saída é conversar com os colegas da sala, onde a preferência da maioria vai para a coleção O diário de um banana. “É muito engraçado, todo mundo gosta e comenta.”

Mas a falta que Eduardo sente do diálogo sobre os livros, em casa, tem tudo para estar com os dias contados. Desde a criação da biblioteca, as fa-mílias começaram a ser estimuladas por um projeto feito para envolvê-las no processo de leitura. Cada semana um menino e uma menina escolhem um livro e levam para casa, com uma tarefa especial para os pais: ler para os pequenos. “Depois, o aluno registra a história que ouviu em um caderno usado por toda a turma, em forma de texto ou desenho, de acordo com a ida-de e a inspiração da criança”, explica a professora Maria das Graças Barreto. “A motivação tem dado resultados animadores. Muitos pais já começaram a pedir aos meninos que peguem livros emprestados na biblioteca para eles.”

A escola percebe que o envolvimento da família enriquece com rapidez o aprendizado dos alunos. “Faz toda a diferença no desenvolvimento das crianças. Elas abrem caminho para novos conhecimentos, ganham fluência e vocabulário e reforçam a auto-estima.” É o caso da pequena Eduarda Oli-veira Xavier, que lê com uma surpreendente capacidade e segurança para sua curta idade graças ao estímulo permanente que tem em casa. “Lá, todo mundo sempre gostou de ler”, orgulha-se a menina nascida no Arapoanga, um bairro pobre da periferia de Planaltina, sem acesso à cultura, formado por uma ocupação irregular que cresceu sem planejamento nos anos 1990 e em 2010 já abrigava mais de 45 mil pessoas.

A expansão desordenada afetou a qualidade de vida dos moradores obrigados a conviver com a insegurança e a infra-estrutura precária das

Já tem aluno dizendo que vai ser escritor”, observa a pro-fessora Silvana Pinto de Sousa. “Estão se tornan-do íntimos dos livros e a gente percebe como a criatividade deles tem aumentado. É um ganho in-comparável”

Existir é transformar o mundo

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ruas estreitas e encurtou a distância entre a área urbana da histórica Pla-naltina e o Núcleo Rural do Pipiripau, onde a escola classe foi construída, em 1967, para atender os filhos dos trabalhadores de um grande frigorífico instalado na região e dos moradores das chácaras vizinhas. Com a pro-ximidade, a escola de ensino fundamental passou a acolher também as crianças do novo bairro, que crescem em meio à formação de pontos de tráfico de drogas e aos altos índices de violência da região.

A maioria delas não conta com o apoio que a pequena Eduarda en-contra em casa e que abre caminhos seguros para o seu aprendizado. A falta de acesso ao conhecimento ajuda a explicar a carência. A cidade registra índices baixos de renda familiar, com média em torno de quatro salários mínimos. Entre os responsáveis pelos domicílios, 97,19% não estudam e 41,77% têm apenas o ensino fundamental incompleto. A taxa de analfabetismo entre eles é de 5,11%, o dobro do índice registrado na região administrativa como um todo, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), em 2015.

Muitos pais reclamam quando a criança chega da escola com a pasta e a tarefa da leitura para eles. “Alegam falta de tempo e não querem ter a responsabilidade de cuidar do livro, que tem de ser protegido e devolvido intacto e sem rabiscos,” conta Maria das Graças. Mas os educadores, atentos ao cotidiano das crianças, entendem que o processo de transformação de valores é lento e exige cuidados. “A nossa linha mestra é ajustar os con-teúdos diários e as ações culturais à realidade vivida pelos alunos”, explica o vice-diretor Denilson Dutra Santanna.

A proposta é que eles sejam tratados com a mesma dignidade e justiça que deve ser conferida aos adultos, sem oprimir sua vontade nem forçar sua opinião. A biblioteca permitiu um salto seguro nessa direção traçada pelo projeto político pedagógico da escola com base na herança de Paulo Freire. Além de ser um espaço agradável e prazeroso, segundo Denilson, ela ajuda a incentivar a liberdade de escolha, o respeito ao pensamento e a busca pelo conhecimento.

“Percebemos, no dia a dia, a diferença na evolução do aprendizado dos alunos. Uma das principais é que a leitura estimula novas descobertas e aperfeiçoa também a escrita”, comemora o vice-diretor. “As mudanças de atitudes também saltam aos olhos. A forma como estão aprendendo a cuidar da biblioteca e a desenvolver o respeito eles vão levar para toda a vida. Estão criando valores, noções de solidariedade com as pessoas, com os colegas de escola.”

As crianças sentem o espaço como delas e isso se reflete no modo como cuidam do acervo e da limpeza do local e no carinho que demonstram pela “tia” da biblioteca, observa a professora Silvana Pinto de Souza, enquanto se prepara para transportar os alunos ao colorido mundo encantado criado pela escritora Sílvia Ortoff no livro Os bichos que eu já tive. Deitados no chão, de olhinhos fechados, eles aprendem a se concentrar para iniciar a viagem pelo caminho que já adivinham ser muito bom. “Apesar de pequenos, eles percorrem um mundo gigante na imaginação e vão a lugares inimagináveis, que nem nós conhecemos. Só os livros são capazes de proporcionar isso.”

A sintonia com o novo espaço surgiu antes mesmo da inauguração, quan-do os educadores começaram o processo para que todos participassem da escolha do nome. “O interesse dos alunos foi crescendo a partir daí, e eles começaram a formar o espírito de pertencimento em relação à biblioteca”, lembra o diretor Jefferson Soares da Rocha. O nome escolhido sintetiza tudo o que as crianças querem e encontram ao atravessar a porta para en-trar naquele “mundo da imaginação”. Um mundo tão infinito como querem dizer as palavras lembradas pelos educadores para descrevê-lo: descoberta, conhecimento. Mas também possibilidade, criatividade, imaginação.

A biblioteca per-mitiu um salto na direção traçada pelo projeto peda-gógico da escola. Além de ser um espaço agradável e prazeroso, ela ajuda a incentivar a liberdade de esco-lha, o respeito ao pensamento e a busca pelo conhecimento”

Espaço de aprendizado: entre outros benefícios, a leitura ajuda também a

aperfeiçoar a escrita

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Gerações de alunos passaram por aqui: a escola foi criada em 1967 para os filhos

de trabalhadores de um frigorífico

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134 135Contação de histórias: “Apesar de pequenos,

eles percorrem um mundo gigante na imaginação”