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Competências básicas do bebé e da mãe Actualmente, admite-se a ideia de que a imaturidade do bebé é um conceito altamente discutível. A criança deixou de ser vista como ser "insuficiente" e passivo, a viver durante meses na mais completa indiferença a tudo o que a rodeia, para passar a considerar-se como um ser dotado de natureza activa, desperto para o mundo envolvente. Actualmente, julga-se que a criança é portadora de necessidades que exigem ser satisfeitas e capacidades que requerem ser desenvolvidas. Que competências apresenta a criança aquando do nascimento? Que competências são necessárias à mãe para cuidar do seu bebé? Competências básicas do bebé Logo após o nascimento, os órgãos sensoriais do bebé são bombardeados por uma catadupa de estímulos que lhe provocam um sem-número de impressões. A criança nasce equipada com esquemas de reacção a essa quantidade de estímulos com que se vê confrontada: luzes, sons, gostos, odores, pressão atmosférica, diferentes temperaturas, etc. Qualquer criança nasce provida de actos reflexos que contribuem para a sua sobrevivência e adaptação à vida. Um dos mais importantes é o reflexo de sucção, permitindo-lhe alimentar-se e, assim, sobreviver. Todas as coisas ao seu alcance são para meter à boca e chupar, e, quando algum objecto lhe toca no rosto, volta imediatamente a cabeça e faz movimentos com os lábios, na tentativa de o agarrar com a boca. O acto de sucção envolve já movimentos coordenados: ao mamar, a criança executa movimentos em que intervêm lábios e língua, tendo simultaneamente de salivar, deglutir e respirar. De igual modo, as crianças estão aptas a afastar a mão para fugir à dor. Se um pano lhes cai sobre a cara e interfere com a respiração, são capazes de movimentar a cabeça de um lado para o outro, fazendo esforços com as mãos no sentido de o retirar. Apesar da sua simplicidade, os reflexos constituem uma bagagem comportamental inata, imprescindível à criança para os primeiros impactos defensivos em relação ao mundo. O bebé dispõe de múltiplas necessidades que não se confinam ao comer, dormir, estar limpo e agasalhado. A estas, de cariz fisiológico, juntam-se outras, de natureza psicológica e social. Do seu equipamento natural faz parte a predisposição para competências relacionais. O choro, forma de se relacionar altamente eficaz, é o esquema de que o bebé se serve para dizer à mãe ou à pessoa que o trata que tem fome ou que tem dores. Apesar de ser um meio natural e simples de comunicação, não é agradável para os pais verem o bebé constantemente a chorar, o que leva muitos deles a tentar reprimir a criança. Outrora, considerava-se que, se os pais atendessem o bebé sempre que este cho- rasse, estariam a reforçar essa conduta, ensinando-lhe que vale a pena servir-se dele como forma de conseguir o que pretende. A partir de investigações levadas a cabo por vários especialistas, deixou de se pensar assim, passando a considerar-se o choro uma forma de chamamento importante, capaz de surgir em períodos apropriados. Segundo observações da antropologia, nas sociedades agrícolas que habitavam as savanas, as crianças ficavam sós, enquanto os adultos se entregavam às suas tarefas. O choro constituía a forma da criança assinalar, de longe, a presença de perigos iminentes.

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Competências básicas do bebé e da mãe

Actualmente, admite-se a ideia de que a imaturidade do bebé é um conceito altamente discutível. A criança deixou de ser vista como ser "insuficiente" e passivo, a viver durante meses na mais completa indiferença a tudo o que a rodeia, para passar a considerar-se como um ser dotado de natureza activa, desperto para o mundo envolvente. Actualmente, julga-se que a criança é portadora de necessidades que exigem ser satisfeitas e capacidades que requerem ser desenvolvidas.Que competências apresenta a criança aquando do nascimento? Que competências são necessárias à mãe para cuidar do seu bebé?

Competências básicas do bebé

Logo após o nascimento, os órgãos sensoriais do bebé são bombardeados por uma catadupa de estímulos que lhe provocam um sem-número de impressões. A criança nasce equipada com esquemas de reacção a essa quantidade de estímulos com que se vê confrontada: luzes, sons, gostos, odores, pressão atmosférica, diferentes temperaturas, etc.

• Qualquer criança nasce provida de actos reflexos que contribuem para a sua sobrevivência e adaptação à vida. Um dos mais importantes é o reflexo de sucção, permitindo-lhe alimentar-se e, assim, sobreviver. Todas as coisas ao seu alcance são para meter à boca e chupar, e, quando algum objecto lhe toca no rosto, volta imediatamente a cabeça e faz movimentos com os lábios, na tentativa de o agarrar com a boca. O acto de sucção envolve já movimentos coordenados: ao mamar, a criança executa movimentos em que intervêm lábios e língua, tendo simultaneamente de salivar, deglutir e respirar.De igual modo, as crianças estão aptas a afastar a mão para fugir à dor. Se um pano lhes cai sobre a cara e interfere com a respiração, são capazes de movimentar a cabeça de um lado para o outro, fazendo esforços com as mãos no sentido de o retirar.Apesar da sua simplicidade, os reflexos constituem uma bagagem comportamental inata, imprescindível à criança para os primeiros impactos defensivos em relação ao mundo.

• O bebé dispõe de múltiplas necessidades que não se confinam ao comer, dormir, estar limpo e agasalhado. A estas, de cariz fisiológico, juntam-se outras, de natureza psicológica e social. Do seu equipamento natural faz parte a predisposição para competências relacionais.O choro, forma de se relacionar altamente eficaz, é o esquema de que o bebé se serve para dizer à mãe ou à pessoa que o trata que tem fome ou que tem dores. Apesar de ser um meio natural e simples de comunicação, não é agradável para os pais verem o bebé constantemente a chorar, o que leva muitos deles a tentar reprimir a criança.Outrora, considerava-se que, se os pais atendessem o bebé sempre que este cho-rasse, estariam a reforçar essa conduta, ensinando-lhe que vale a pena servir-se dele como forma de conseguir o que pretende. A partir de investigações levadas a cabo por vários especialistas, deixou de se pensar assim, passando a considerar-se o choro uma forma de chamamento importante, capaz de surgir em períodos apropriados. Segundo observações da antropologia, nas sociedades agrícolas que habitavam as savanas, as crianças ficavam sós, enquanto os adultos se entregavam às suas tarefas. O choro constituía a forma da criança assinalar, de longe, a presença de perigos iminentes.

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Sílvia Bell e Mary Ainsworth acompanharam, com observações continuadas, o comportamento de muitos pares mãe-bebé da classe média norte-americana, e concluíram que as crianças cujas mães não respondem pronta e imediatamente aos apelos tendem a chorar com frequência durante o primeiro ano de vida, e, pelo contrário, as crianças cujas mães são solícitas no atendimento ao choro tendem a chorar com menos frequência, desenvolvendo outras formas de fazer apelo. Estas investigadoras são de opinião que a reacção pronta e carinhosa ao chamamento dos bebés é capaz de induzir neles um estado de segurança, um sentimento de ser capaz de lidar com as pessoas em redor. O sentir-se capaz está na origem de outras formas de comunicação, como o balbúcio, a mímica, o riso, o acenar com as mãos e outras reacções fisionómicas que constituem uma espécie de "pré-palavras" a preceder a linguagem articulada. Logo, estas formas de expressão substitutas do choro desenvolvem-se mais rapidamente nas crianças atendidas.O sorriso é outra competência relacional. Segundo Spitz, entre as três e as seis semanas, o bebé sorri para outras pessoas e ao ouvir a voz humana. Trata-se, segundo ele, da primeira manifestação de sociabilidade do bebé. Muito cedo também a criança acena com a mão para dizer adeus, o que manifesta a sua tendência inata para comunicar com os adultos.Com a comunicação, o bebé abre-se e vai em direcção à sociedade. O choro, o sorriso, a imitação de sons e os gestos em direcção às coisas são formas incipientes de interacção com o universo social, inicialmente concentrado e reduzido à figura da mãe.

• Outra habilidade que parece fazer parte dos meios genéticos da criança é a capacidade de imitar expressões faciais: faz caretas, franze os olhos, deita a língua de fora. Trata-se de sintomas que prenunciam as enormes capacidades de aprendizagem que se virão a manifestar no futuro.Deste modo, a criança apresenta uma série de formas de se relacionar e comunicar com os adultos. A questão é que estes estejam preparados para a interpelar e saber interpretar os seus códigos. Para isso, têm que estar por dentro daquilo que o bebé sabe fazer.E para já, sabe fazer muitas coisas. Sabe executar movimentos e distinguir sensações, ou seja, move-se num contexto de experiências sensoriais e motoras. Sabe olhar, ouvir, cheirar e agarrar objectos. É também sensível ao prazer e à dor, à fome e à sede, ao confortável e ao desconfortável. Tem liberdade de movimentos, o que contribui para o desenvolvimento das suas habilidades motoras.

Estrutura da relação do bebé com a mãe

Quase todos os pais se espantam ao aperceber-se como foi possível que aquele "pedacinho de gente" com dois quilogramas e meio, incapaz de segurar a cabeça e olhar direito as pessoas, a mexer ao acaso as pernas e os braços e a emitir ruídos incompreensíveis e irritantes, fosse capaz de os mobilizar, de os conquistar, de os ocupar, de ser o centro das suas vidas. Espantam-se ainda com o facto de ser capaz de amar, exigir ser amado e se ter tornado alguém que, com o decorrer do tempo, se mostra apto a falar, a correr, a escrever, a desenhar, a atender o telefone, a saber vestir-se, a andar de bicicleta, a fazer amigos, a abraçar espontaneamente a avó e a zangar-se quando o mandam para a cama ou lhe desligam o televisor.

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Importância da relação de vinculaçãoNa cultura ocidental, o universo social do recém-nascido centra-se na figura da mãe, estabelecendo-se entre ambos uma relação que merece ser considerada de modo particular. Na comunicação recíproca gerada entre ambos desenha-se uma empatia especial, uma vivência emotiva geradora de um vínculo afectivo consistente e decisivo para o futuro equilíbrio intelectual, emocional e social do bebé.

VINCULAÇÃO - Tendência dos bebés permanecerem junto da mãe durante os pri-meiros tempos de vida, estabelecendo com ela, ou com o adulto de que dependem, Laços positivos de afecto.

O desejo do filho estar junto da mãe, os sinais de conforto que manifesta na sua presença, os sintomas de segurança e de prazer ao ouvir-lhe a voz e ao sentir o seu contacto são manifestações emocionais visíveis da ligação da criança à mãe.Mas o estabelecimento da vinculação não é exclusivo do ser humano, manifestando-se também em outras espécies: os

macaquinhos comprimem-se contra o corpo da mãe, os pintainhos seguem e andam à volta da galinha, os cordeiros correm atrás da ovelha e os gatinhos e os cachorros manifestam idênticas condutas. Só depois de crescidas, é que as crias se aventuram, sozinhas, em actividades exploratórias, e, mesmo assim, as mães continuam a ser o porto seguro onde se acolhem ao regressar.

Uma manifestação da sociabilidadeO relacionamento com a mãe é vivido por todos os bebés de forma gratificante, Ao invés, o afastamento da mãe mostra-se penoso, tendo muitas crianças passado por sentimentos desagradáveis que os psicólogos designam por "ansiedade da separação".Pensava-se que a ligação do bebé à mãe era uma reacção à satisfação das necessidades básicas, tais como a fome, a sede ou a ausência de dor.Assim, segundo Freud, o desassossego do bebé quando a mãe está ausente é motivado pelo medo de que as suas necessidades fiquem por satisfazer. Na mesma linha interpretativa, John Bowlby reduz a vinculação ao apego pelo bico do seio ou do biberão, primeiro objecto de amor do bebé.Contudo, esta hipótese explicativa terá que ser abandonada, dado que se constata que os bebés muitas vezes se ligam mais fortemente a pessoas que nada têm a ver com a alimentação do que a pessoas que lhes dão de comer.Observações realizadas em seres humanos vieram revelar que a vinculação está muito para além da satisfação das necessidades elementares, prendendo-se com a tendência natural para a sociabilidade, predisposição de raízes inatas ou biológicas. A criança tende naturalmente para a socialização, processo que se inicia com a criação dos primeiros laços

afectivos em direcção à mãe.Experiências com primatas

O divórcio entre vinculação e satisfação das necessidades alimentares foi confirmado com uma série de experiências que Harlow realizou com

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macacos.Entre elas, contam-se as que fez com macacos criados por duas mães artificiais: uma, feita de arame, com uma espécie de biberão onde os bebés se alimentavam; outra, revestida de material felpudo, que proporcionava contacto macio e agradável aos macaquinhos.Harlow verificou que os jovens animais estabeleciam facilmente um vínculo com a "mãe de veludo", permanecendo a maior parte do tempo abraçados a ela e procurando o conforto que a "mãe de arame" não lhes podia dar. Mesmo quando sentiam fome ou queriam explorar objectos das imediações, tentavam uma posição que lhes permitisse não perder o contacto com a mãe mais confortável.Quando se apercebiam da presença de objectos estranhos, corriam para ela, agarrando-se-lhe fortemente. Acalmavam-se no seu colo e, pouco depois, é que iam observar os objectos. Parecia viverem um conflito entre o medo que o "estranho" lhes provocava e a curiosidade que sentiam pela "novidade". Progressivamente, iam explorando os objectos, usando a mãe como base de apoio: corriam a tocar num objecto e regressavam rapidamente; voltavam mais calmamente aos objectos e, alguns, transportavam-nos para junto dela.Harlow concluiu que, após estabelecido o vínculo com a mãe, esta funcionava comosímbolo de protecção, capaz de evitar o sentimento de medo face a situaçõesestranhas. A "mãe de veludo" era proporcionadora de sentimentos de segurança, um valioso contributo para a conquista de autonomia e para a perda de receio em relação a aventuras exploratórias.

Jacques-Philippe Leyens interpreta esta ligação da seguinte forma:

Bastante paradoxalmente à primeira vista, verifica-se que só a ligação permite a independência; é na medida em que um macaquinho se liga a uma mãe e se sente em segurança junto dela que dela se pode libertar para explorar o ambiente que o cerca.Jacques-Philippe Leyens, Psicologia Social, Ed. 70

As experiências de Harlow foram mais longe, permitindo conclusões com alcance mais vasto.Os macaquinhos que entre os três e os seis meses foram deixados por Harlow a viver em isolamento com as "mães de veludo" pareciam saudáveis e normais, o que o levou a pensar que o conforto das "mães felpudas" satisfazia as necessidades emocionais dos macacos-bebés. Porém, veio futuramente a aperceber-se de que os jovens macacos, ao chegarem à adolescência e à idade adulta, manifestavam irregularidades no relacionamento social e emocional, não se comportando como os seus semelhantes.A razão de tais perturbações foi atribuída à privação ou défice de estimulação sensorial, perceptiva e social por que os macacos passaram na situação de isolamento. Apesar de se ligarem afectivamente à mãe substituta, esta não interagia com eles, não havendo intercâmbio de sinais. Em suma, as mães substitutas não lhes ensinaram a "comportar-se em sociedade".Os resultados das experiências de Harlow não podem ser alargados ao ser humano, em virtude das diferenças existentes entre homem e macaco e entre os seus respectivos modos de organização social. Todavia, é permitido concluir que, tal como os macacos, os bebés humanos necessitam de criar laços afectivos com alguém, de viver num meio social estimulante onde possam interagir com os outros e aprender a viver em grupos sociais.

Observações com bebés humanos

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Muitos psicólogos se têm dedicado ao estudo de distúrbios no comportamento social e emocional das crianças, partindo da observação dos efeitos da privação de afecto materno em recém-nascidos.A este respeito, são impressionantes as observações da psicanalista Ana Freud, efectuadas em infantários fundados no tempo da guerra para acolher os filhos de mães trabalhadoras cujos maridos se tinham alistado em combate.Apesar de bem cuidadas em termos de alimentação e higiene, quase todas as crianças apresentavam perturbações emocionais e atraso no desenvolvimento, cujas causas foram atribuídas à ausência de afecto materno.

A relação continente/conteúdo

Wilfred Bion evidenciou o papel gratificante das vivências estabelecidas entre a criança e a mãe em termos de continente e conteúdo.Inicialmente, a vida processa-se centrada na figura da “mãe”, que segundo Bion, funciona como continente em que a criança vive e onde capta os primeiros conteúdos, uma espécie de representações do mundo que interioriza como benéficas ou ameaçadoras.

A nossa história pessoal começa, pois, a ser decidida desde muito cedo, com tragos esboçados no interior do contexto social que, logo após o nascimento, nos é muito próximo — a família —, onde a figura da mãe desempenha o papel mais relevante. Da natureza da vinculação que se estabelece entre ela e a criança depende, em grande parte, o equilíbrio das relações sociais que vierem a ser desenvolvidas pela vida fora.

A confiança ou desconfiança da criança em relação ao mundo são, nesta perspectiva, geradas na relação com a mãe, pois é através dela que a criança o conhece. A sua experiência das coisas é mediada pela mãe.A confiança que o bebé deposita na mãe como continente e protectora cria condições para que o ego infantil se lance no mundo e o enfrente com optimismo. O equilíbrio emocional da criança é, deste modo, precocemente marcado pela relação que a "mãe-continente" estabelece com os conteúdos, a qual é interiorizada pelo filho em desenvolvimento.Uma relacionação deficiente da criança com a mãe, transmissora das primeiras noções e impressões, compromete a sua evolução psicoafectiva, como bem demonstraram Ana Freud com as crianças dos infantários, Bowlby com as crianças afastadas da família e Spitz com as vítimas do hospitalismo.

Muita coisa se decide na infância, é verdade. A investigação psicossocial tem demonstrado que os três primeiros anos de vida são essenciais para o desenvolvimento da personalidade e que uma relação precoce fiável, com figuras adultas seguras e estáveis, é o primeiro passo para assegurar um futuro com menos dificuldades. (...) Quando nos cruzamos com crianças e jovens e detectamos problemas no seu comportamento, por exemplo os anti-sociais ou abandono precoce da escola, encontramos muitas vezes uma história de perturbação na infância, como violência intrafamiliar, alcoolismo ou abuso sexual.(...) Se não formos capazes de, precocemente, proteger e ajudar a crescer as crianças, não seremos capazes de ter escolas a funcionar, por mais formação que dermos aos professores; continuaremos a ter os tribunais de crianças e jovens a abarrotar de

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processos de difícil resolução; e os serviços de saúde continuarão a ter mais casos de mau prognóstico, afinal susceptíveis de terem sido prevenidos.Daniel Sampaio,in XIS, revista do jornal Público, de 15/01/05

Consequências no desenvolvimento da perturbação nas relações precoces

Freud defendia que as experiências vividas na primeira etapa da vida fora do útero materno se repercutiam no desenvolvimento futuro.Com efeito, se a relação de vinculação à mãe for de carácter gratificante, a criança será optimista e estará predisposta a estabelecer novas vinculações. Uma boa vinculação tende a repetir-se em outras relações e confere elevada tendência para evocar aspectos positivos da vida, o que se reflecte numa optimização de expectativas relativamente ao que a pessoa espera de si e dos outros. Se, pelo contrário, o primeiro contacto humano tiver um travo amargo, a criança evitará novos relacionamentos ou partirá

receosa, pessimista e hesitante em relação aos futuros encontros sociais.

A ausência de vinculaçãoAs consequências de uma má vinculação ou da sua ausência são perturbações que se fazem notar a nível social, emocional, linguístico e intelectual, afectando necessariamente os aspectos comportamentais.

As observações de HarlowNuma situação experimental criada por Harlow, os macaquinhos-bebés foram forçados a viver em completo isolamento numa jaula vazia, sem contacto visual com nenhum ser vivo, nem sequer com o tratador, sendo o período de prova variável: de três meses a um ano.O isolamento de três meses não se mostrou muito significativo no que respeita a consequências nefastas. Porém, quando superior, os animais tornaram-se socialmente inadaptados, com acentuados problemas emocionais. Encostados a um canto, abraçavam-se ou mordiam-se a si próprios, como que autopunindo-se, ou efectuavam movimentos oscilantes, à semelhança de autistas ou como se estivessem num baloiço. Colocados em contacto com macacos criados normalmente, não brincavam com eles, não os perseguiam e, se eram atacados, não respondiam à sua agressividade.Esta inadaptação social dos animais de cativeiro persistiu em Idades futuras, mostrando-se inábeis nas relações sexuais e parentais. Os machos permaneciam sexualmente indiferentes e os que eventualmente tentavam acasalar, agarravam-se sem jeito e indiscriminadamente a macacos de qualquer sexo, não conseguindo qualquer tipo de relacionamento. As fêmeas resistiam às solicitações sexuais dos machos e, quando fecundadas artificialmente, não mostravam amor pelos filhos, maltratando-os, mordendo-os e comprimindo-lhes a cabeça contra o chão.

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Harlow concluiu que a privação de convívio precoce era a causa dos danos sociais e emocionais posteriormente ocorridos.

Os estudos de SpitzHá razões suficientes para suspeitar que nos seres humanos se verificam aspectos semelhantes. Recordemos a síndroma do hospitalismo e as consequências observadas por Spitz em crianças acolhidas em instituições.Numa das instituições, os bebés estavam separados, per-manecendo em celas individuais, como precaução contra doenças infecto-contagiosas. Por escassez de pessoal, o contacto com adultos quase se Limitava à mudança das fraldas, sendo a alimentação fornecida por biberões montados em suportes ligados às camas.As consequências da ausência de estimulação humana foram negativas, muito análogas às dos macacos de Harlow: distúr-bios no desenvolvimento social e emocional, desde a procura obsessiva e doentia de afecto à indiferença em relação ao adulto. Esta última era a conduta mais generalizada, sendo muitos os casos de isolamento, de evitação das pessoas, de alheamento e de apatia, em que os bebés permaneciam hirtos, agarrados contra a barra da cama ou baloiçando-se, de rosto inexpressivo.Observações futuras mostraram a existência de muitos casos de défice intelectual a nível da linguagem e do raciocínio abs-tracto e de perturbações sociais e emocionais, como indife-rença aos outros, agressividade e sintomas de delinquência.

A resiliênciaAs consequências negativas das perturbações nas relações precoces que acabámos de referir ocorreram porque, nas idades precoces, os indivíduos carecem ou apresentam baixos índices de resiliência,Resiliência é um termo que na área das relações humanas diz respeito à capacidade do indivíduo lidar com problemas ou situações adversas, superando com facilidade os obstáculos, sem se deixar abater com as dificuldades que lhe surgem pela frente. A resiliência pressupõe, pois, que as adversidades tenham o efeito de vacinas, isto é, ampliem as capacidades da pessoa, fortalecendo-a em relação a futuros impactos.

RESILIÊNCIA - Capacidade para enfrentar e vencer experiências adversas, delas saindo fortalecido.

A resiliência permite ao ser humano pensar e agir de modo equilibrado, não "fervendo em pouca água" em face das adversidades quotidianas. Isto significa que a resiliência lhe

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permite enfrentar racional e emocionalmente as situações difíceis, sem que elas o afectem na sua identidade ou nos seus comportamentos, que devem decorrer sem desajustes significativos.

OS ESTÁDIOS DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

Se, por um lado, há uma continuidade funcional no processo de desenvolvimento cognitivo — a adaptação é um processo contínuo — por outro lado verificam-se mudanças qualitativas importantes que marcam a sua descontinuidade estrutural. Quando a criança domina a linguagem, ou o adolescente o pensamento hipotético-dedutivo, a sua forma de compreender o mundo e os seus padrões de comportamento modificam-se completamente. A estes novos padrões de comportamento correspondem igualmente novas estruturas cognitivas ou esquemas que caracterizam os diferentes estádios de desenvolvimento.

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Piaget distinguiu duas grandes etapas no desenvolvimento, que dizem respeito a dois tipos de inteligência:— a inteligência prática ou sensório-motora, que é anterior à linguagem, até cerca dos 2 anos de idade, a que chamou o período da inteligência sensório-motora;— e a inteligência interiorizada, verbal ou reflectida, a partir da linguagem e que se desenvolve durante toda a vida, ao longo de 3 estádios: estádio pré--operatório, estádio das operações concretas e estádio das operações formais.

O Período Sensório-Motor Durante a infância, a actividade do bebé centra-se na coordenação das suas percepções sensoriais e da sua acção motora; coordenar a visão e a preensão, ou afastar um obstáculo, para obter um objecto desejado são algumas das grandes realizações adaptativas deste período. É uma inteligência que se realiza na acção, directamente sobre os objectos à sua volta.Uma parte importante do desenvolvimento da criança nesta idade diz respeito à sua capacidade crescente de reproduzir situações que lhe causam interesse e que inicialmente foram descobertas por acaso: ao bater com um boneco na borda do berço, o bebé descobre um ruído diferente do habitual e que lhe desperta interesse, torna a bater, mas desta vez só para obter o som desejado. Mais tarde, cerca do ano e meio, o bebé começa a experimentar formas diferentes de agir sobre os objectos e observa os seus efeitos: atira vários objectos ao chão para ver o efeito, faz variar a força com que os atira, uns saltam, outros deslizam, outros ficam no mesmo sítio e outros... partem-se. E assim vai conhecendo cada vez mais o mundo que o rodeia e as suas capacidades para agir sobre ele.Uma aquisição importante durante esta fase do desenvolvimento diz respeito à noção de permanência do objecto. Enquanto adultos, acreditamos que os objectos têm substância, são exteriores a nós, conservam a identidade quando mudam de lugar, são vistos de outra perspectiva ou desaparecem do nosso espaço visual. Piaget refere-se a este entendimento como a noção de permanência do objecto. Para o bebé, de início, esta noção de permanência dos objectos não existe. O mundo é feito de objectos que deixam de existir a partir do momento em que deixam de ser vistos. As observações mostram que, de facto, até cerca dos seis meses os bebés parecem comportar-se desta forma.

Se dermos um brinquedo a um bebé de 4 ou 5 meses, ele agarra-o. Se, no entanto, lho retirarmos das mãos enquanto se mantém interessado em explorá-lo, e o escondermos debaixo de um pano à sua frente, o bebé pode fazer tentativas para o alcançar, mas não fará qualquer tentativa para afastar o pano e retomar o brinquedo, passando a interessar-se por outras coisas. Mas se o objecto estiver só parcialmente escondido o bebé é capaz de o ir buscar.Só a partir de cerca dos 8 meses, o bebé começa a procurar activamente os objectos quando estes desaparecem do seu campo visual. Contudo, esta procura ainda não é completa: se o objecto for escondido segunda vez mas num local diferente da primeira, o bebé irá procurá-lo onde o encontrou inicialmente e não onde viu colocar da segunda vez.Cerca dos 18 meses, o bebé será capaz de procurar os objectos desaparecidos, não apenas onde os viu desaparecer, mas também se forem deslocados de um lado para o outro sem que ele tenha observado essa deslocação. É como se pensasse «Bem, não está aqui onde eu estava à espera, mas pode estar noutro sítio» e, portanto, persiste na procura até o

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encontrar. A partir de agora, a criança é capaz de representar objectos e situações e de antecipar as trajectórias dos objectos em movimento. Quando uma bola rebola para debaixo da cama, é capaz de dar a volta e ir apanhá-la, sem precisar de espreitar primeiro.A capacidade de representação da criança manifesta-se também noutras actividades como a imitação, o jogo e a linguagem. A capacidade de imitar situações passadas é evidente no jogo simbólico, ou faz de conta.As primeiras palavras da criança, não directamente imitadas, são igualmente um indício de que ela é capaz de representar mentalmente objectos e situações não directamente percepcionados. Com cerca de um ano, os bebés já respondem de forma selectiva ao nome próprio e são capazes de parar, ou hesitar, se alguém lhes diz «Não!». Entre os 18 meses e os 2 anos, aprendem a nomear e a mostrar uma grande quantidade de objectos, são capazes de os identificar em gravuras e compreendem instruções verbais relativamente complicadas.A capacidade de representação mental, ou função simbólica, marca o final do período da inteligência sensório-motora e o acesso à inteligência simbólica, interiorizada ou reflectida. Para resolver situações problemáticas, como abrir uma caixa, as crianças já não se limitam a estratégias de tentativa e erro. O seu sistema simbólico permite-lhes começar a pensar acerca dos acontecimentos, e das suas causas, e a antecipar mentalmente as suas consequências, sem o recurso sistemático à acção prática. É a primeira grande mudança qualitativa na natureza da inteligência.

Estádio Pré-OperatórioUm símbolo é uma representação mental a que atribuímos um significado. Os símbolos permitem-nos pensar acerca das coisas sem que estas estejam presentes. Um objecto ou uma imagem podem ser um símbolo. Mas os símbolos mais comuns são as palavras, primeiro faladas e depois escritas. As palavras são uma categoria especial dos símbolos e formam um sistema simbólico partilhado pela comunidade linguística, através do qual é possível a troca de ideias e de experiências, ou seja, a comunicação e o pensamento.