131

2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia
Page 2: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

2

Expediente

Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177

Vila Amélia – São Sebastião – SP CEP11600-00

www.unibrsaoseba.com.br Tel. (12) 3893-3100

Mantenedor

Profa. Maria Amélia Governo Merlin

Diretor Geral

Prof. Fábio Merlin

Diretor Acadêmico

Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto

Revista Acadêmica www.unibrsaoseba.com.br

ISNN 2175-4659

A Revista Acadêmica é uma publicação semestral, de caráter multidisciplinar.

Diretora:

Profa. Dra. Eliane de Alcântara Teixeira

Conselho Editorial

Prof. Dr. Álvaro Cardoso Gomes Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto

Prof. Dr. Silas D’Ávila Silva

Page 3: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

3

Apresentação

Como toda Instituição de Ensino que se preze, as Faculdades São Sebastião,

desde a sua fundação, procuraram acentuar seu compromisso com a educação superior,

com a divulgação da cultura e com a produção científica. Desse modo, a criação de um

órgão, que divulgasse trabalhos acadêmicos de seus docentes (e de docentes de outras

instituições nacionais e estrangeiras), veio se mostrando como algo imperioso, o que fez

que seus gestores investissem na criação de uma publicação on-line – a Revista

Acadêmica –, cujo fim seria o de apresentar o que de mais atual houvesse no plano da

pesquisa e da produção científica. Vem daí que a revista tenha sido planejada com um

caráter propositadamente multidisciplinar, reunindo, em todas as suas edições desde sua

inauguração, artigos de diferentes áreas.

São Sebastião, outono de 2010.

Profª. Drª. Eliane de Alcântara Teixeira

Diretora

Page 4: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

4

Sumário

ARTIGOS

1. A cegueira saramaguiana: uma alegoria da sátira grotesca, ou o grotesco satirizado e alegórico, p. 6. Maria José do CARMO

2. A presença da cultura caiçara e da mulher pescadora na cidade de São Sebastião, p. 23. Rita Ribeiro Pinheiro SALES

Marília G. Ghizzi GODOY

3. Evolução Estelar: da Formação à Morte de uma Estrela, p. 41 Rafael Teixeira TOFFOLI 4. Tá rindo de quê? - Reflexões em torno do uso do humor como recurso educativo, p. 51 Lucelmo LACERDA 5. O Imaginário Bélico em García Márquez, p. 83 Roseliane SALEME 6. Empreendedorismo no Brasil, p. 101 Giulianna FARDINI 7. Comunicação e cultura local: o alto falante (Senhora de Oliveira, Minas Gerais), p. 117 Vivíam Lacerda de SOUZA Marília G. Ghizzi GODOY NORMAS EDITORIAIS, p. 128

Page 5: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

5

ARTIGOS

Page 6: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

6

A cegueira saramaguiana: uma alegoria da sátira grotesca, ou o grotesco

satirizado e alegórico.

Maria José do CARMO*1

Resumo: O Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, é o romance estudado neste artigo do ponto de vista do sentido alegórico, assim como é estabelecido pela teoria de João Adolfo Hansen da “alegoria dos teólogos”. Tal alegoria carrega uma sátira, não somente do homem que habita e faz acontecer em sua trama ficcional, mas do homem real, do homem do século vinte, que vivencia cotidianamente o conflito do homem moderno, premido pelo tempo e pela velocidade. É a alegoria do social, da neurose das grandes cidades, da cegueira de princípios. O entendimento desta alegoria é a desumanização e a insensibilidade do homem do século XX. Palavras-chave: cegueira, alegoria, sociedade.

A Alegoria:

Num mundo em que todas as coisas podem significar todas as coisas devido às

correspondências secretas que mantêm entre si, tudo é fluido. O cosmos é uma vasta

sinfonia de correspondências nas quais cada nível de existência aponta para o nível

superior. A alegoria é instrumento para pôr a alma humana em estado de receptividade

poética da unidade invisível. Sua ação termina, portanto, quando a alma entra em

contato extático com Aquilo que deseja que esteja além do movimento e da própria

forma alegórica. O que pode significar, ainda, que a vida humana tem a estrutura

metafórica de um sonho: qualquer coisa que exista no mundo inferior se

encontrará também no superior, mas em forma mais elevada; e qualquer coisa do mundo

superior, por sua vez, poderá ser encontrada no inferior, mas em forma adulterada. O

fogo, por exemplo, que arde no mundo inferior, é metáfora do fogo seráfico do

intelecto. João Adolfo Hansen2

“ A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na

substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa

relação de semelhança, a esse mesmo pensamento”; assim redefine Lausberg ao retomar

1 Professora e Coordenadora dos cursos de Letras e Pedagogia da Faculdade São Sebastião. 2 Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986.

Page 7: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

7

Aristóteles, Cícero e Quintiliano, que, segundo a retórica antiga, constituíam-na como

modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso. A alegoria

(grego allós = outro; agorien = falar) diz b para significar a. No sentido empregado por

Lausberg3, ela é um procedimento construtivo, constituindo o que a Antiguidade

clássica e cristã, continuada pela Idade Média, chamou de “alegoria dos poetas”:

expressão alegórica, técnica metafórica de representar e personificar abstrações.

Segundo Hansen há outra alegoria diferenciada e que não se confunde com a dos poetas

épicos greco-romanos medievais nem com a dos autores hebraicos do Velho

Testamento. É a que se chamou “alegoria dos teólogos”, recebendo muitas vezes as

denominações de figura, figural, tipo, antítipo, tipologia, exemplo. Ela não é um modo

de expressão retórico-poética, mas de interpretação religiosa de textos sagrados.

A rigor, não se pode falar simplesmente de a alegoria, porque há duas: uma

alegoria construtiva ou retórica, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica. Embora

complementares, elas são simetricamente inversas: como expressão, alegoria dos poetas

é uma maneira de falar; como interpretação, alegoria dos teólogos é um modo de

entender. Alguns estudos revelam que a alegoria expressiva é intencionalmente tecida

na estrutura da própria obra de ficção - como é o caso de Dante -, analisado por C.S.

Singleton4, ou, como diz R. Hollander5, ela é “criativa”, ao passo que a de interpretação

é “crítica”. O verbo grego állegorein, por exemplo, significa tanto “falar

alegoricamente” quanto “interpretar alegoricamente”. É o que ocorre no romance de

José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, onde a metáfora da cegueira sugere essa

duplicidade alegórica. A cegueira escapa ao diagnóstico médico porque está além do

mal físico. É coletiva e condicionada socialmente:

Se o caso fosse de agnosia, o paciente estaria vendo agora o que sempre tinha visto, isto é, não teria ocorrido nele qualquer diminuição da acuidade visual, simplesmente o cérebro ter-se-ia tornado incapaz de reconhecer uma cadeira onde estivesse uma cadeira, quer dizer, continuaria a reagir correctamente aos estímulos encaminhados pelo nervo óptico, mas para usar uns termos comuns, ao alcance de gente pouco informada, teria perdido a capacidade de saber que sabia e, mais ainda, de dizê-lo. Quanto á amaurose, aí, nenhuma dúvida. Para que efectivamente o caso fosse esse, o

3 HEINRICH, Lamberg. Elementos de Retórica Literária. 2. Ed. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1967, p.32 4 P.34 5 P.26

Page 8: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

8

paciente teria de ver tudo negro, ressalvando-se, já se sabe, o uso de tal verbo, ver, quando de trevas absolutas se tratava. /.../ Uma amaurose branca, além de ser etimologicamente uma contradição, seria também uma impossibilidade neurológica... 6

Frye diz que um escritor está sendo alegórico sempre que fique claro que

está dizendo “por isto eu também (állos) quero dizer aquilo”7. Indicações no texto do

romance permitem perceber a alegoria:

A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a

esperança.8.

E mais:

“Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira.”9

“Os cegos estão sempre em guerra, sempre estiveram em guerra, Tornarás a

matar, Se tiver de ser, dessa cegueira já não me livrarei”10.

Ou, ainda:

“Há mil razões para que o cérebro se feche, só isto, e nada mais, como uma

visita tardia que encontrasse cerrados os seus próprios umbrais.”11

“[...] mas quem nos diz a nós que esta cegueira branca não será precisamente um

mal do espírito.”12

“[...] alguns cegos de espírito.”13

“[...] uma espécie de visão sem olhos.”14

“Como se esta cegueira é concreta e real, disse o médico. Não tenho a certeza,

disse a mulher, Nem eu, disse a rapariga dos óculos escuros.”15

E é, de certo modo, o que também faz Diderot em sua Carta sobre os cegos,

para uso dos que vêem. Ainda que tratando de cegos de nascença, fala também de um

outro tipo de cegueira, em séculos de trevas:

6 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 29-30. 7 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1957, p.153. 8 SARAMAGO, José. Opus cit., p.204. 9 Ibidem, p. 135. 10 Ibidem, p. 189. 11 Ibidem, p. 29. 12 Ibidem, p. 90. 13 Ibidem, p. 105. 14 Ibidem, p. 196. 15 Ibidem, p. 282.

Page 9: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

9

Se um homem que só enxergou durante um dia ou dois se visse confundido entre

um povo de cegos, deveria tomar o alvitre de calar-se ou de passar por louco. Anunciar-

lhes-ia todos os dias algum novo mistério, que seria mistério apenas para eles, e no qual

os espíritos fortes poderiam de bom grado não crer. Os defensores da religião não

poderiam tirar grande proveito de uma incredulidade tão obstinada, tão justa mesmo, em

certos aspectos, e, entretanto tão pouco fundada? Se vos prestardes por um instante a tal

suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as perseguições dos que

tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a imprudência de

revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam inimigos mais cruéis

do que aqueles que, por sua condição e sua educação pareciam dever estar menos

afastados dos seus sentimentos.

A respeito da Carta sobre cegos, de Diderot, diz ainda Rouanet16: “O exame da

cegueira física é um método para compreender a cegueira social.”

Num mundo saturado de imagens, em que “com zoom e sem zoom”, como diz

Saramago em seu diário, as mais terríveis imagens mostram-se “em tempo real” nas

telas das televisões, os olhos habituam-se a ver o horror – num “caminho para a

insensibilidade”, como também nota Saramago – ou recusam-se a vê-lo, como se

quedassem imobilizados, inertes, cegos – numa cegueira consentida – diante de uma tela

branca. Diz ainda Saramago: “Como evitar que fiquemos, nós, também, imersos numa

outra espécie de brancura, que é a ausência do sentir, a incapacidade de reagir, a

indiferença, o alheamento? E essa cegueira alegórica, que, representada ficcionalmente,

gera o “mal-branco”: Para esta cegueira tudo é branco”17.

“Não há estrelas no céu branco”18

“Hedionda maré branca”19.

“Perdia-se na esperança do nevoeiro branco”20

Frente a um texto que se supõe alegórico, o leitor tem dupla opção: analisar os

procedimentos formais que produzem a significação figurada, lendo-a apenas como

16 ROUANET, p. 134. 17 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 255. 18 Ibidem, p. 106. 19 Ibidem, p. 115. 20 Ibidem, p. 128.

Page 10: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

10

convenção linguística que ornamenta um discurso próprio, ou analisar a significação

figurada nela, pesquisando seu sentido primeiro, tido como preexistente nas coisas e,

assim, revelado pela alegoria, o que, genericamente compõe a alegoria dos poetas como

semântica de palavras, apenas. Na alegoria dos teólogos há uma semântica de

realidades, reveladas por coisas nomeadas por palavras.

A alegoria faz parte de um conjunto de preceitos técnicos que regulamentam as

situações em que o discurso pode ser ornamentado, se pensada como dispositivo

retórico para a expressão. As regras fornecem lugares-comuns (loci ou topoi) e o

vocabulário para a substituição figurada de determinado discurso, tido como simples ou

próprio, tratando de determinado campo temático. Dessa maneira, estática ou dinâmica,

descritiva ou narrativa, a alegoria é procedimento intencional do autor do discurso; sua

interpretação, ato do receptor, também está prevista por regras que estabelecem sua

maior ou menor clareza, de acordo com a circunstância do discurso: “/.../ Mortos em vez

de cegos não alteraria muito o quadro, estar cego não é estar morto, Sim, mas estar

morto é estar cego”21.

A “alegoria dos teólogos” , hermenêutica ou “crítica’, é cristã e medieval, tendo

por pressuposto algo estranho à Retórica da Antiguidade greco-romana, o

essencialismo, ou a crença nos dois livros escritos por Deus, o mundo e a Bíblia”.

Formando um conjunto de regras interpretativas, a alegorização cristã toma determinada

passagem do Velho Testamento – o êxodo dos hebreus do Egito guiados por Moisés, por

exemplo, - e propõe, numa passagem do Novo Testamento - seja a ressurreição de Cristo

– uma repetição. No caso, não se interpretam as palavras do texto, mas as coisas,

acontecimentos e seres históricos nomeados por elas.

Segundo os românticos, o símbolo – que a tradição antiga, greco-latina,

medieval e renascentista não distinguia da alegoria – é uma espécie de paradigma ou

classe da qual ele é o único elemento. Por isso, sua significação é sempre imediata: em

sua particularidade, ele contém ou expressa o geral. Por exemplo, a cruz e o

Cristianismo. Oposta a ele, a alegoria é teorizada como forma racionalista, mecânica,

árida e fria. Retoricamente, a alegoria diz b para dizer a, como já foi dito, observando-se

que os dois níveis são mantidos em correlação virtualmente aberta, que admite a

21 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 111.

Page 11: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

11

inclusão de novos significados. Além disso, ela pode funcionar por mera transposição: o

significado da designação b pode ser totalmente independente do significado da

abstração a.

Em outros termos, romanticamente o símbolo é o universal no particular; a

alegoria, o particular para o universal. Pode-se avançar aqui, afirmando que os

românticos introduziram, na análise da alegoria, a mesma definição da Retórica antiga,

voltando-a contra si mesma, pensando-a como um ato do discurso, para congelá-la

como estrutura ou fato de língua, generalizando sua conceituação para toda alegoria,

anacronicamente. Nesse esquema, o discurso clássico é mecânico e o do romântico é

orgânico: a forma é mecânica quando conferida a um material qualquer como adição

acidental, pois nela tudo pode significar tudo, uma vez que qualquer molde pode dar

forma à não importa qual abstração; é orgânica quando é inata, revelada a partir do

interior mais espiritual do artista em contato intuitivo com a Natureza.

Walter Benjamin22 demonstrou como Baudelaire lança mão da alegoria

justamente devido a seu caráter convencional, como destruição do orgânico e extinção

da aparência. Fazendo da alegoria a máquina-ferramenta da modernidade e pensando-a

como antídoto contra o mito, ao mesmo tempo em que a incorpora como método de

escrita e de crítica, Benjamin a propõe como o outro da História: Lendo no ‘outro’ da

alegoria o reprimido da História, ele não consegue encontrar sua expressão através dos

dominados, mas só através dos dominadores.

Com humor satírico, o narrador do Ensaio vai construindo a alegoria, utilizando

o “branco” que se estende a expressões como: Sim, tem carta branca do ministro,

quando se trata de isolar os que cegavam:

Agora falta decidir onde os iremos meter, senhor ministro, disse o presidente da comissão de logística e segurança...[...] Nesse caso resta o manicômio, Sim, senhor ministro, o manicômio.[...] Bem pensado, Obrigado, senhor ministro, podemos então mandar avançar, Sim, tem carta branca.23.

O “branco” aplica-se também a objetos de uso doméstico, situando a fantástica

cegueira na atualidade:

22 BENJAMIN, Walter. 1985, p. 36 23 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 46-47.

Page 12: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

12

O recheio do estabelecimento estava intacto, a mercadoria não era das de comer ou de vestir, havia frigoríficos, máquinas de lavar, tanto as de roupa como as de louça, fogões comuns e de micro-ondas, batedoras, espremedores, varinhas mágicas, as mil e uma invenções eletrodomésticas destinadas a tornar mais fácil a vida. A atmosfera estava carregada de maus cheiros, tornando absurda a brancura invariável dos objetos. 24

Talvez seja possível estabelecer um paralelo entre a brancura invariável dos

objetos e a fulgurante e irremediável cegueira presente na reflexão da mulher do

médico: “[...] e serenamente desejou estar cega também, atravessar a pele visível das

coisas e passar para o lado de dentro delas, para a sua fulgurante e irremediável

cegueira.” 25

O “eu vejo tudo branco”, do primeiro cego, não pode deixar de lembrar a

expressão popular corrente “deu um branco” – usada quando nos escapa o fio do

raciocínio – considerando-se que, no Ensaio sobre a cegueira, a dramaticidade do relato

não deixa de ser temperada com certo humor, como é próprio da sátira. Assim, é dito no

romance: “Acreditavam que o mal-branco se propagava por contacto visual, como o

mau-olhado.”26

Vale a pena citar aqui, uma observação de Lacan sobre o mau-olhado:

Há um apetite do olho naquele que olha. Esse apetite do olho, que se trata de alimentar, constitui o valor do encanto da pintura. Este valor é, para nós, a ser procurado num plano bem menos elevado do que se supõe, naquilo que é a verdadeira função do órgão do olho, o olho cheio de voracidade, que é o do mau-olhado.27

É surpreendente, se pensarmos na universalidade da função do mau-olhado, que

não há em lugar nenhum qualquer traço de um bom-olhado, de um olho que bendiz.

Que dizer? – senão que o olho leva consigo a função mortal de ser em si mesmo dotado

– permitam-me jogar aqui em vários registros – de um poder separativo. Mas este

separativo vai bem mais longe que a visão distinta. Os poderes que lhes são atribuídos,

de fazer secar o leite do animal sobre o qual ele cai – crença tão disseminada em nosso

24 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 217. 25 Ibidem, p. 65. 26 Ibidem, p. 125. 27 LACAN, p.

Page 13: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

13

tempo quanto em qualquer outro, e nos países mais civilizados – de trazer a doença, a

má sorte, esse poder, onde podemos melhor imaginá-lo senão na invidia?

Invidia vem de videre. [...] Todo mundo sabe que a inveja é provocada pela

possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos quais

nem mesmo ele suspeitava a verdadeira natureza.

Dessa maneira, o mal da cegueira branca vai conduzindo o expectador para uma

linha embrionária da leitura da alegoria; e pode então se perguntar: como o olho que

deixou de enxergar poderia ser capaz de um mau-olhado? Ou não é cego ou essa

cegueira é de outra ordem, remetendo à denegação e à alegoria, propriamente dita, como

afirma a frase da mulher do médico, no fim do romance: “Penso que não cegamos,

Penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo não vêem.”28.

A alegoria como procedimento de ornamentação pode ser vista mais

detidamente a partir de um poema do primeiro livro das Odes, de Horácio, onde a Ode

XIV – À República (Ad Rempublicam), alegoria do Estado, desenvolvem lugar-comum

alegórico, o da viagem por mar. Horácio compôs a ode depois da batalha de Filipes (42

a.C.). O navio alegoriza Roma, o mastro destruído designa Pompeu, assassinado no

Egito por ordens de Ptolomeu. A primeira forma resulta, sobretudo, de uma sequência

de metáforas: ‘Ó nave, levam-te ao mar novas/Ondas. Que fazes? Rápido entra/No

porto’ e em toda a passagem de Horácio em que o navio é o Estado, as ondas e

tempestades as guerras civis, o porto a paz e a concórdia, M. Fábio Quintiliano, retor

romano que viveu no primeiro século da era cristã, analisa a alegoria a partir da

consideração etimológica do nome. Assim, ela pode apresentar: a) uma coisa em

palavras e outra em sentido; b) algo totalmente diverso do sentido das palavras.

Como ornamento, Quintiliano filia a alegoria à metáfora – no caso, a relação

é também pensada enquanto extensão: a alegoria é quantitativa, ao passo que a metáfora

é tropo do léxico, valendo por um termo isolado que o substitui. O que aproxima

alegoria de metáfora é a estrutura comum das operações com tropos no enunciado. Os

retores antigos costumam escrever que a comparação atinge a imaginação do leitor

através do intelecto, ao passo que a metáfora o faz através da própria imaginação;

portanto, a metáfora deve funcionar por algum tipo de comparação, embora o inverso

28SARAMAGO, José. Op. Cit, p. 310.

Page 14: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

14

não seja válido sempre, pois, segundo a mesma codificação retórica, a comparação nem

sempre é metafórica.

Quintiliano pensa a metáfora e a alegoria como ornamentação – portanto, como

nomeação concretizante de uma significação própria. Ao definir alegoria como

“metáfora continuada”, Quintiliano indica que também é sintática, coisa menos

evidente. Sintaticamente, a alegoria é um diagrama. A alegoria torna evidente o

procedimento – pela operação sintática – e faz o significado dos termos presentes

passar para “dentro” de outro, ausente. Por isso, ainda, a alegoria do poema de Horácio

tem, efetivamente, três níveis: a) um sentido literal; b)um sentido figurado; c)um

sentido literal ausente.

Escreve Barthes29: “... compreendemos melhor como o figurado pode ser uma

linguagem natural e ao mesmo tempo segunda: é natural porque as paixões estão na

natureza; segunda, porque a moral exige que essas mesmas paixões, embora ‘naturais’,

sejam afastadas e colocadas na região do Erro; como para o clássico a ‘natureza’ é má,

as figuras de retórica têm fundamento, mas também são suspeitas”. Nesse mundo

concertado cujo saber é todo de experiência feito, a naturalidade da expressão efetuada é

sempre naturalidade relacional (pensando-se no recorte de uma forma no registro de um

gênero e, a este, no leque dos gêneros). Justamente devido a tal funcionalidade evidente

da relação, torna sempre óbvia e “natural’ a convencionalidade de sua efetuação. Se o

herói épico não pode e não deve agir como um histrião, se isso não é natural, é porque

isso é convencional, fazendo-se o percurso que vai da recepção do discurso particular ao

sistema prévio de convenções que ele atualiza. Em outros termos: é para que isso seja

natural que isso funciona de modo convencional, fazendo-se agora o percurso inverso,

dos gêneros e modelos para o engenho do poeta que inventa, dispõe e ornamenta a obra

e, desta para a recepção, que a julga. Assim, falar de retórica atualmente, implica em

evidenciar, para o leitor de textos críticos, um texto virtual passível de ser construído

imaginariamente por ele quando posto em contato com a página. Nesse, sentido a

desmontagem da alegoria se faz como remontagem de um ato de fala e de suas regras.

29 BARTHES, Roland. Aula. Trad. e Posfácio de Leyla Perrone – Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 218.

Page 15: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

15

A alegoria admite subdivisões retóricas, portanto, que a classificam conforme a

maior ou menor clareza da relação sentido figurado /sentido próprio. O critério do juízo

é a clareza, que é o critério central da classificação retórica dos tipos de alegoria. É a

clareza que determina os graus de maior ou menor aceitabilidade nas operações de

abstração seletiva das realidades, da combinação ou associação das partes do texto, da

ampliação ou engrandecimento de ações e objetos e, enfim, da metamorfose ou

produção de efeitos de “maravilhoso”. Assim, a alegoria pode ser classificada, segundo

o critério da clareza, em: tota allegoria, permixta apertis allegoria e mala affectatio.

a) Tota Allegoria ou Alegoria Perfeita ou Enigma: é a alegoria totalmente fechada

sobre si mesma, não se encontrando nela nenhuma marca lexical do sentido próprio

representado. Conforme a classificação retórica tradicional, chama-se também enigma,

constituindo o efeito de recepção chamado obscuritas (obscuridade, hermetismo) e, por

isso, também defeito, do ponto de vista da prescrição implícita de clareza. A alegoria é

ao mesmo tempo um fato natural, que se inscreve na ordem das coisas, e um fato

lingüístico, convenção ou regra. Os poemas são enigmáticos, assim, ou próximos do

enigma: evidenciam-se para o leitor como prática retórica letrista e também aguardam

decifração, sugerindo que neles se oculta um sentido sagrado “misterioso”.

b) Permixta Apertis Allegoria ou Allegoria Imperfeita: é a alegoria em que pelo

menos uma parte do enunciado se encontra lexicalmente ao nível do sentido próprio. É

talvez pensando nesse subgênero alegórico que Cícero observa – De oratore, 27 – que a

alegoria é uma transição do próprio ao figurado. Nela, como fica evidente, a mistura do

próprio e do figurado está a serviço da clareza e, por isso, é tida como mais didática.

c) Malla affectatio ou Inconsequentia Rerun ou Incoerência: é criticável a mescla de

metáforas que, por pertencerem a campos semânticos disparatados, não se ordenam num

único feixe de significações. Em outros termos, a malla affectatio é incongruência .

Lausberg cita como exemplo um trecho de Camões que, no verso “que apenas nos meus

olhos ponho freio” (Lus. IV, 87,8), teria sido incongruente19, uma vez que figurou

“olhos” através de prosopopéia, isto é, animação, atribuindo-lhes qualidade “ eqüina”

legível em “ponho freios” e, assim, produzindo um sentido pensado classicamente como

incompossível: “frear os olhos”. Na alegoria teorizada como malla affectatio, a Retórica

Page 16: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

16

antiga propôs o que significa pensar analogicamente: a analogia permite destacar um

concreto para colocá-lo em relação com campos cada vez mais dilatados de elementos,

terminando por colocá-lo em relação inadequada com objetos cada vez mais

“distantes”.

A alegoria como interpretação, ou hermenêutica, pode ser vista como uma

técnica de interpretação, propriamente dita. Decifra significações tidas como verdades

sagradas, ocultas na natureza sob a aparência das coisas e também na linguagem

figurada dos textos das Escrituras, que revelam um “sentido espiritual”. Segundo a

alegoria greco-romana e suas retomadas, o mundo é objeto de representação própria e

figurada pela poesia e prosa; segundo a alegoria hermenêutica, existe desde sempre uma

prosa do mundo a ser pesquisada no mundo da prosa bíblica. Se as coisas podem ser

consideradas signos na ordem da natureza, é porque são signos na ordem da revelação.

Assim como os termos empregados por uma ciência qualquer nomeiam coisas, os da

Escritura designam coisas e estas, por sua vez, designam verdades morais, místicas,

teológicas. Por isso, a prática interpretativa dos primeiros Padres da Igreja e da Idade

Média lê determinado signo como figura alegórica e nele pesquisa um sentido

espiritual; mais ainda: toma o acontecimento ou personalidade histórica nomeada pelo

signo como figura alegórica de outro sentido próprio. Pela prática retórica greco-latina,

o signo do texto seria considerado ornamento de outro discurso de sentido próprio pois,

como já se escreveu, a alegoria como procedimento ornamental é, tanto em sua

construção quanto em sua interpretação, uma técnica verbal em que o sentido próprio é

também discurso e pressuposto do figurado. A alegoria hermenêutica é uma

“semântica” de realidades reveladas na palavra, não importa que esta seja de sentido

próprio ou figurado.

Não há sentido prefixado ao discurso: o sentido é produzido sempre, numa

prática. Assim pensada, a alegoria deixa de ser uma forma redutível a uma mediação ou

a uma reprodução sensível em que vão ecoando as vozes da Ausência. Ela é, entre

outras, uma técnica de teatralizar uma idéia.

Medievalmente pensada, portanto, a alegorização funciona como a memória de

um saber que se ausentou: faz recordar esse vazio, figurando-o, valorizando a

anterioridade do que é Verdadeiro sobre o que é escrito, dito e vivido, quando a

Page 17: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

17

interpretação é feita, reescreve-se o livro do mundo. Assim, os teólogos medievais, ao

lerem as Escrituras, faziam-no pré-formados pelo Significado que buscavam no texto. A

interpretação se fazia como posfiguração, linguagem que cai depois, na ordem do

tempo, do Significado eterno já dado.

O instrumento principal de interpretação e de construção no Renascimento é a

alegoria. As releituras da tradição efetuadas pelos eruditos de Florença são retomadas,

por sua vez, do século XV até o XVII, por artistas plásticos e poetas muito diversos,

como Botticelli, Miguelângelo, Arcimboldo, Comanini, Tasso, Camões, Bembo,

Shakespeare, Spenser, Du Bellay, Calderón de la Barca, Donne, Gracián, El Greco etc.

– todos, ou quase todos, classificados hoje com a rubrica muito simpática de

“maneirismo”. A alegoria deixa de ser pensada como a antiga tradição retórica a

pensara: como tradução figurada de um sentido próprio. Deixa, também, de funcionar

como na hermenêutica medieval, que sob a letra da Escritura revelava a voz do Autor

nas coisas. Evidencia-se a questão da arte: a alegoria é dispositivo da invenção,

incluindo o que a Retórica antiga separava como elocução ou “ornamento”. Como ars

inveniendi, valoriza o engenho do sábio e do artista.

O método alegórico florentino baseia-se, pois, numa pressuposição: o ser divino

se revela de várias maneiras, tarefa do erudito-poeta é rastreá-la em todas as suas

manifestações demonstrando a unidade na diversidade. A arte é a tradução visível das

potências astrais invisíveis. É alegórica, como enigma: sua formulação mais apropriada

é o hieróglifo, cuja forma alegoriza, de modo simultâneo, a simplicidade e a unidade

divinas. A alegoria é, assim, possibilidade de outras e novas expressões e interpretações

aplicadas a objetos diversos para revelar um Além – que ela só expressa como

inexpresso e inexprimível. A arte se faz, portanto, convenção da expressão de mistérios

a serem interpretados.

Pode-se dizer, em síntese que:

a. O método de interpretação alegórica proposto pelos florentinos desloca as

Escrituras, objeto de análise na Idade Média, pois é o pensamento da Antiguidade

oriental e greco-romana que fornece a matéria para a interpretação. Essa unifica

mistérios pagãos e revelação cristã numa genealogia ideal, remontando a uma unidade.

Page 18: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

18

b. Os vários sentidos da interpretação medieval – histórico, alegórico, tropológico,

anagógico – são unificados como “alegóricos” devido à sua conveniência ou

correspondência simpática. Correspondem todos eles, simultaneamente, ao que Santo

Tomás chama de “sentido espiritual” ou allegoria in factis e ao que a Retórica antiga

classifica co “sentido figurado” ou tropo.

c. A interpretação florentina busca sempre um mesmo significado – o destino da alma

humana que “volta” para o mundo das essências. Tal significado pode ser figurado por

qualquer forma, assumindo aparências variadas. Trata-se de um método de redução da

multiplicidade sensível à unidade ideal. A alegoria é construída sobre a diferença entre o

visível e o legível e articula signos esotéricos (visíveis mais ilegíveis, enigmáticos)

sobre conhecimentos ocultos.

d. A alegoria não é necessariamente a tradução da obra interpretada em formas

concretizantes de abstrações, pois a interpretação aponta para o inefável, afirmando-se

que “as coisas elevadas” da ordem poética estão para além de qualquer conceituação.

Liga-se com tal pressuposto a hipervalorização do hieróglifo egípcio, também

alegoricamente teorizado. A simultaneidade da visão do hieróglifo alegoriza a

contemplação das essências eternas.

e. Não mais simples ornamentação do discurso, a alegoria é ars inveniendi ou

invenção, modo de construir da imaginação poética.

f. As operações assim efetuadas relêem textos históricos inscrevendo-os no paradigma

teológico da Queda. Ao postular o estatuto alegórico dos textos, elidem a questão do

próprio discurso metafórico, postulando uma transparência original que a linguagem

oculta.

Resta ainda, nas palavras de Hansen, a visão totalitária da alegoria: “A própria

vida é alegoria: sonho sensível do inteligível, espelho embaçado do inefável, teatro, pó,

sombra, nada.”30

30 HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986, p. 56.

Page 19: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

19

Referências bibliográficas

1. Obras de José Saramago SARAMAGO.José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia Das Letras, 1995. ________________.Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia Das Letras, 1997. ________________. Cadernos de Lanzarote. Diários I a III, São Paulo: Companhia da Letras, 1997. ________________.O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 2. Obras sobre José Saramago ARIAS, Juan. José Saramago. O amor possível. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. BERRINI, Beatriz. Ler Saramago: o romance. Lisboa: Editorial Caminho, 1998. CALBUCCI, Eduardo. Saramago: um roteiro para os romances. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. COSTA, Horácio. “Alegorias da desconstrução urbana: The memoirs of a survivor, de Doris Lessing, e Ensaio sobre a cegueira de José Saramago”. In: José Saramago: uma homenagem. Berrini, Beatriz (org.) São Paulo: Educ, 1999. ______________. “O despertar da palavra”. In: Cult, Revista Brasileira de Literatura. São Paulo, 17 dez, 1998. DÉCIO, João. “O romance em busca da pura ficção: Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago”. In: Academia Lusíada de ciência, Letras e Artes, Centro de Estudos Portugueses. FFLCH. Garciez, Maria Helena Nery & Rodrigues, Rodrigo Leal. (org). São Paulo: Green Forest do Brasil Editora, 1997. FERREIRA, Sandra Aparecida. Da estátua à Pedra (A fase universal de José Saramago). São Paulo: faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), 2004. GOMES, Álvaro Cardoso. A voz Itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. HALPERIN, Jorge. “Saramago: soy um comunista hormonal”, In: Lê monde Diplomatique., Capital Intelectual: Buenos Aires, 2003. LAUB, M. (et al ) “A palavra do Nobel” (entrevista). In: Bravo! São Paulo: 21 jun: 1999. LIMA, Isabel Pires de. Saramago pós-moderno ou talvez não. Centre de Recherche en Littérature de Langue Portugaise. Université Paul-Valery- Montpellier III, “Quadrant” n. 15, 1998. LOPONDO, Lílian (org.) Saramago segundo terceiros. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP, 1998. MADRUGA, Maria da Conceição. A paixão segundo Saramago. Porto: Campo das Letras, 1998. MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras, 1999. MARTINS, Adriana Alves de Paula. História e Ficção. Um diálogo. Lisboa: Fim de Século, 1994.

Page 20: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

20

MRECH, Leny Magalhães. “Faces e contrafaces: o diferente no escrito – uma leitura psicanalítica do livro – Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago”. In: Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Silva, Shirley & Vizim, Marli (org.), Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leituras do Brasil – ALB, 2001. OLIVEIRA, Rosa de Souza. “A força do olhar nos momentos de revelação”. In: revista do Centro de Estudos Portugueses. FFLCH/USP, nº 2. PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Saramago é um sobrevivente. Saramago, uma questão de fé. As artemages de Saramago”. In: Inútil poesia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000. PRAXEDES, Walter Lúcio de Alencar. Elucidação Pedagógica, história e identidade nos romances de José Saramago. São Paulo: Faculdade de Educação, 2001. Revista Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 3, 1998. REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998. SEIXO, Maria Alzira. Lugares da Ficção em José Saramago. Lisboa: Impr. Nac. – Casa da Moeda, 1999. SERENO, Maria Helena Sampaio. “Provérbios e ironia na narrativa de José Saramago”. In: Actas do encontro comemorativo dos 25 anos do Centro de Lingüística da Universidade do Porto. Duarte, Isabel: Barbosa, Joaquim: Matos, Sérgio e Hüsgen, Thomas (org). Porto: centro de Lingüística da Universidade do Porto, 2002, pp. 84-97. SILVA, Tereza Cristina. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999. ____________________. “De cegos e visionários: uma alegoria finissecular na obra de José Saramago”. In: José Saramago: uma homenagem. Berrini, Beatriz (org). São Paulo: Educ. 1999. 3. Artigos sobre José Saramago e sua obra em jornais e revistas ALFAYA, Javier – O compromisso moral e político na obra de José Saramago ou um leitor espanhol perante Saramago. Lisboa: Vértice 52 (Jan./Fev.93), pp.23-27. BARBOSA, João Alexandre – Até os limites da realidade. São Paulo, Folha de São Paulo, 6 dez. 98, Caderno Mais, p. 9. COELHO, Eduardo Prado – Um reino de palavras. Lisboa, Jornal de Letras, 21 de out. 1998, pp. 10-11. GIANETTI, Eduardo – Sonhos oceânicos, senso prático anêmico. São Paulo, Folha de São Paulo, 28 de jan. 99, Ilustrada p. 7. PICCHIO, Luciana Stegagno – A história e a parábola. Lisboa, Jornal de Letras, 21 out. 98, p. 13. SCHWARTZ, Adriano – O mito do cotidiano de Saramago, São Paulo, Folha de São Paulo, 18 nov. 2000, Ilustrada, p. 6. 4. Obras de Teoria e crítica literária ABDALA JR., B. De vôos e ilhas: literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ADORNO, T. W. Notas de literatura (1). São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003. ______________. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ALVES PINTO, Ciça. Livro dos provérbios, ditados, ditos populares e anexins. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2000. ARISTÓTELES, Arte poética. São Paulo: Difel, 1964.

Page 21: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

21

AUERBACH, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1994. BÍBLIA SAGRADA. Tad.: João Ferreira de Almeida. Santo André: Geográfica Editora, 2002. BACHELARD. Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ________________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – o contexto de François Rabelais. São Paulo: Ed. Hucitec, 1987. BARROS, Diana Pessoa & Fiorin, José Luis (org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. BARTHES, Roland. Aula. Trad. e Posfácio de Leyla Perrone – Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989. ________________. O Grau Zero da Escrita. Trad. de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. BOLLE, Willi. Físiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1976. ____________. O discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. COELHO, Eduardo Prado. O cálculo das Sombras. Lisboa: Ed. ASA, 1997. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, vol. 1. CHEVALIER, Jean et al. Dicionário de Símbolos. 18ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Ed. Mobilis in Móbile, 1991. FREUD, Sigmund. Toten e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1999. FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1957. GAGUEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP / Perspectiva, 1994. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986. HEINRICH, Lamberg. Elementos de Retórica Literária. 2. Ed. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1967. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1985. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo – A lógica Cultural do Capitalismo Tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco e Iná Camargo Costa. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. KAYSER, W. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armênio Armado, 1958. ___________. O Grotesco. Trad: J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1986. KOTHE, Flário R. A Alegoria. São Paulo: Editora Ática, 1986.

Page 22: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

22

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades, 2000. LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Dom Quixote, 1992. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Editora Cultrix, 1995. NUNES, Benedito. “Do monólogo ao diálogo”. In: O drama da linguagem (uma leitura de Clarice Lispector). São Paulo: Ática, 1989. PLATÃO. Diálogos: A República. Rio de Janeiro: Globo, 1964. PONTY, Merleau M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003. SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase & CIA. São Paulo: Editora Ática S.A., 1985. SEGOLIN, Fernando. Personagem e Anti-personagem. São Paulo: Cortez & Moraes Ltda., 1978.

Page 23: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

23

A presença da cultura caiçara da mulher pescadora na cidade de São Sebastião

Rita Ribeiro Pinheiro SALES*

Marília G. Ghizzi GODOY**

Resumo: Os valores tradicionais da cultura caiçara e os seus lugares de memória inseridos na cidade de São Sebastião e no bairro São Francisco expressam uma situação de identidade centralizada no valor que a pesca representa no contexto cultural. A análise encaminha-se para a compreensão da mulher pescadora. Configuram-se representações expressivas na Cooperativa de Pesca de São Sebastião, nos relatos das mulheres pescadoras. Entre elas destacam-se novos valores e dinâmicas da economia, ligadas ao espaço urbano, ao mercado e ao consumo. Palavras-chave: identidade, mulher pescadora, São Sebastião, cultura caiçara.

Desde os anos sessenta o conceito de identidade vem se projetando como um

tema central na representação dos fenômenos culturais. Compreende-se a criação de

sentidos de oposição e contrastes que se manifestam em situações de realidade social

com ênfase na caracterização de pertencimento dos sujeitos.

Criam-se referenciais de uma situação histórica onde um crescente movimento

de globalização e universalização dos valores ocorre ao lado de um enfraquecimento da

autonomia dos estados nação, conforme as colocações de Cuche31.

Ser diferente, ter identidade, tornou-se um tema que se expandiu em vários

campos do conhecimento. Ordenam-se também manifestações culturais, movimentos

sociais, com o propósito de defesa do patrimônio cultural e de tradições

particularizadas.

Uma situação de identidade cultural ordena-se entre as mulheres que vivem da

pesca e que apresentam uma condição de pertencimento a cultura caiçara. Os dados

referem-se à cidade de São Sebastião no litoral norte do Estado de São Paulo. Trata de

* Mestre em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Mestre em Antropologia Social (USP) e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP), Professora do Mestrado em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. 31

Page 24: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

24

um centro histórico e cultural que foi objeto de estudo sobre a cultura caiçara sendo

considerada um expoente de manifestações culturais dos homens do mar.

Encaminham-se as discussões para um dos bairros importantes na definição

pesqueira do local e ambiente social de um cultivo da tradição: o bairro São Francisco.

Aí, as mulheres pescadoras criaram uma situação de valorização do trabalho e definição

de suas condições de vida que sugerem um campo de realizações pessoais e coletivas.

Engendra-se um universo próprio de representações culturais cujas raízes com a cultura

caiçara exprimem o sentido real das experiências no âmbito da memória coletiva.

Destaca-se nos estudos da cultura caiçara a dimensão de vida ligada ao mar, a

natureza. São caiçaras aqueles que nasceram e vivem no litoral, compartilhando de um

passado histórico ligado à colonização portuguesa e possuem em graus diversos

influências indígenas e africanas. Afirma-se a este respeito:

Possuem um conhecimento da natureza que advém da experiência,

da observação e do aprendizado transmitido pelos mais velhos. Uma herança muito acentuada que os caiçaras trazem consigo é a indígena. Este fato nós verificamos no que diz respeito à pesca, ao conhecimento de plantas e instrumentos de pesca, à alimentação, etc. Além da indígena, possui também o caiçara ascendência portuguesa (européia – francesa, espanhola) e negra”32

. A representação do caiçara no universo simbólico da civilização ocidental foi

alvo para considerações discriminatórias e preconceituosas. Consideram como aquele

que não é capaz de acompanhar o progresso e dar respostas com desempenho racional e

abstrato. Uma dimensão de valor ocorre na definição registrada no dicionário:

Caiçara: s.m. Caipira asselvajado. 2. Caboclo sem préstimo. 3.

Pescador que vive na praia. 4. Indivíduo muito estúpido. 5. Vagabundo.

6. Malandro.

Caiçarada: s.f. De caiçara + Ada. Reunião de caiçaras. 2.

Ajuntamento de gente ordinária33.

32 DIEGUES, A.C. – O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Editora HUCITEC, NUPAUB/USP, p. 87. 33 FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre: Livraria José Olympio Editora. 2ª edição, volume II, p. 1154.

Page 25: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

25

No universo simbólico tradicional da cultura caiçara destaca-se o sentido da

organização social expressa na família, na economia da pesca e de plantios de

subsistência, na presença de um universo mágico-religioso fundamentado em crenças e

discursos míticos expressivos. As bases da economia estavam fundamentadas na pesca

artesanal onde imperava um sentido de trocas, reciprocidades.

Sabendo-se das transformações econômicas, influências do capitalismo, da

sociedade de consumo e do mercado sobre as tradições caiçaras é preciso interpretar a

sua cultura de forma dinâmica.

A valorização da cultura caiçara na atualidade ao expressar uma cultura

diferenciada ganha relevo com a projeção de conceito de auto-identidade. Significa,

conforme Diegues, um processo de construção de valores onde o pescador artesanal e a

cultura caiçara tornam-se reveladoras de um povo sob as influências dos processos de

modernização e recriação dos saberes tradicionais34.

Um processo de afirmação da identidade origina-se, conforme Alain Touraine,

em relação à sociedade abrangente e ao caráter de resistência da memória. Afirma

[...] Se admitirmos que a memória é uma força de resistência e uma ferramenta para a construção do ator como sujeito, é preciso dar um passo além e dizer que a memória está dirigida mais para o futuro do que para o passado. O fio que leva do passado ao futuro protege o ator contra as forças que tendem a moldá-lo segundo as normas e hierarquias dominantes35.

1. A cidade de São Sebastião e o bairro São Francisco

São Sebastião é uma cidade localizada no litoral Norte de São Paulo, com 69

mil habitantes (IBGE, censo 2007). Situada entre o verde da Mata Atlântica e o oceano

Atlântico, tão importante quanto a sua beleza natural é a relevância do seu patrimônio

histórico e cultural.

Foto 1 – Localização do Município de São Sebastião

34 DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e Mares: Simbolismo e imaginário. São Paulo: Hucitec, 1998. 35TOURAINE, A., apud DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Enciclopédia Caiçara Vol. IV, p. 36.

Page 26: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

26

Fonte: Wagner Bornal

Cidade histórica, seu descobrimento data de 1502 conforme nos relata a

historiadora Rosângela Ressurreição:

Apenas dois anos após o desembarque da esquadra de Cabral, uma

nova frota comandada por Américo Vespúcio tem a missão de reconhecimento daquela “terra à vista” que bem poderia ser uma ilha isolada no oceano ou, quem sabe, parte do novo continente recém-descoberto, a America como intuía o navegador. Com efeito, deslizando pelas águas do litoral, sentia Vespúcio que Deus o El Rei o escolheram na solução desse quebra-cabeça, e, tomado dessa crença, balizava feitio um João Batista os locais por onde passava. Em 20 de janeiro de 1702, ei-lo com sua esquadra no leito de um canal, tendo à sua direita a linha costeira que vinha perseguindo e á esquerda uma grande ilha costeira franjada de praias. Consulta o calendário santo. Era dia do guerreiro Sebastião, santo de cujo nome fez empréstimo36. A propósito, um documento faz a seguinte menção: “[...] Assim deu-se à ilha de São Sebastião o nome deste santo por isso que sua descoberta se fez a 20 de janeiro, assim como o rio de São Vicente, à embocadura formada pelas águas que cercam a ilha do mesmo nome, onde se fundou a vila de igual denominação, e depois a cidade de Santos, por isso que a frota ali chegara a 22 de janeiro de 1502 [...} 37.

Diante do contexto histórico e da dinâmica de ter centralizado um povoado de

prosperidade criou-se um valor próprio da memória, desenvolveu-se uma política de

preservação da história da cidade. A cidade além de ser considerada um Patrimônio

36 RESSURREIÇÃO, Rosângela Dias da. São Sebastião: Transformações de um povo caiçara, 2002, p. 21. Este livro inaugurou o projeto Memória dos Municípios Brasileiros, cujo objetivo principal foi a recuperação da história da cidade. 37 ALMEIDA, Antonio Paulino. Memória Histórica sobre São Sebastião. São Paulo. Coleção da Revista de História – Arquivo do Estado de São Paulo. Brasil, 1959, pp. 378, 385 e 386.

Page 27: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

27

Histórico desde 1969, data do seu tombamento em níveis Federal e Estadual, tem o

cuidado em preservar quadros, livros, fotografias e todos os elementos que documentam

a memória e os costumes de uma época, estabelecendo sempre relações entre o passado

e o presente.

São Sebastião recria-se historicamente no bairro de São Francisco. Abriga ele

um conjunto arquitetônico do século XVII erguido nas terras doadas por Antonio

Coelho de Abreu.

Em meados do século XVII, Antonio Coelho de Abreu recebeu sesmaria em

1640, possuindo em suas terras uma capelinha de Nossa Senhora dos Desamparados

dotada com 66 braças de patrimônio. Resolve ele doar a mesma para os religiosos da

ordem de São Francisco.

No entorno do Convento Franciscano de N. S. do Amparo, construído em

1664, com pedra e cal surge o povoado de São Francisco da Praia, núcleo ceramista e

pesqueiro. Em 1840, os moradores do bairro pedem que nele se crie uma freguesia, que

viria ser o primeiro passo legal para elevação à vila e possível independência em relação

à vila de São Sebastião; porém não havia Igreja que pudesse servir de Matriz, sendo

então a capela da Ordem Terceira, contigua à nave do convento utilizada para tal. A

ordem terceira é formada pelos leigos, uma irmandade criada para ajudar os mais

pobres, promove caridade. “Como era praxe, os Religiosos do Convento de São

Sebastião fundaram a Ordem Terceira da Penitência. Mas sem regimento interno e

guiando-se pela Ordem do Rio de Janeiro, extinguiu-se depois de ter causado muitos

desgostos aos Guardiões. A freguesia foi criada pela Lei nº 13, de 2 de abril de 1850,

pela Assembléia Legislativa da Província de São Paulo, mas extinta em 1859”38. O que

existia era uma disputa sobre o local em que seria considerado o centro da vila, entre o

centro de São Sebastião ou o bairro São Francisco, por motivos políticos prevaleceu a

primeira.

Hoje apenas três frades residem no local onde a sensação de paz está em toda

parte: no átrio, na sala de refeições com mobiliário antigo, nos corredores, na rica

biblioteca com volumes raros. Mas, principalmente na capela que é aberta ao público

onde é rezada a missa e celebrados os casamentos.

38 Idem.

Page 28: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

28

A distinção entre o bairro de São Francisco e as demais regiões do município

surge visivelmente no centro da vila. Ele se mantém com características muito próprias

nas questões culturais e políticas. É aqui que ocorre uma das mais fortes manifestações

culturais de São Sebastião: a Congada. Em homenagem a São Sebastião e São Benedito

este ritual envolve dança e um auto que representa a luta entre mouros e cristãos;

observam-se valores da cultura africana e européia.

Ganha destaque a ênfase na produção de cerâmica no núcleo ceramista, onde

destaca-se o trabalho da mulher. Excluídas dos cargos públicos, longe dos espaços

administrativos, elas, as mulheres de outrora, forjaram por necessidade de

sobrevivência, seu campo de trabalho. Muitas mulheres eram arrimos de famílias,

viúvas, separadas que fabricavam louças para auxiliar nas despesas. A fabricação deste

artesanato concentrava-se no bairro São Francisco, local e moradia das louceiras.

O bairro São Francisco abriga a Cooperartess (Cooperativa de Artesanato de

São Sebastião) onde a técnica de acordelamento e a história da produção de cerâmica é

repassada às novas gerações.

Pescadores e caiçaras que ainda hoje conservam o mesmo clima tranquilo do

passado compartilham do convívio nesse bairro. A rua principal localizada no entorno

do Convento Franciscano possui muitas casas de estilo colonial. Os moradores passeiam

pela calçada, sendo comum os pescadores andarem descalços, recém-saídos do mar;

com fieiras de peixes oferecem o produto de porta em porta.

2. Contexto histórico e tradição pesqueira

A pesca não só marca, uma tradição caiçara, é também expressão de uma

resistência histórica. Nesse sentido, é importante conhecer os ciclos econômicos de

estagnação e prosperidade, característica marcante da economia de São Sebastião, em

suas respostas diante das mudanças estruturais da economia brasileira. Pela história

observamos que essa alternância de ciclos tem relação direta com a pesca artesanal, a

qual sempre foi o principal meio de subsistência do caiçara e motivadora de sua

Page 29: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

29

produção cultural. Cada vez que um dos ciclos entrou em declínio, a pesca ressurgiu

com maior força.

Entende-se que independentemente de surgirem “novos ciclos” para se

dinamizar a economia norte litorânea, há uma economia de raiz cultural-econômica

ainda viva na contemporaneidade, e é justamente seu registro diante da memória

coletiva que a identidade vai sendo deflagrada.

Do ponto de vista econômico, a história do município registra que os primeiros

colonizadores desenvolviam plantios de subsistência (milho, mandioca, feijão) e

estabeleceram engenhos de aguardente. Em 1636, o povoado foi elevado à categoria de

vila. No século XVII destaca-se um período de relativa prosperidade em decorrência da

economia mineradora que escoava minérios pelo porto de São Sebastião.

Em consequência, a vila e as atividades inerentes a ela, como os ofícios

mecânicos, o comércio, armazéns, etc, se desenvolvem. Nas fazendas próximas ao

núcleo urbano se desenvolveram várias olarias, no início de telhas e potes, mais tarde,

de tijolos. No ano de 1788 sua população era estimada em 3500 habitantes, onde cerca

de 1000 eram escravos.

No século XVIII, com o desenvolvimento da nova rota que ligava Minas ao

Rio, inicia-se um declínio nas atividades agrícolas e portuárias. Nessa época

desenvolveu-se a pesca de baleias, atividade que permaneceu por mais de cem anos.

Nos fins do século XVIII e início do século XIX, após reaver sua liberdade de

comércio, a região viveu um período de grande prosperidade. Em meados do século

XIX centenas de propriedades agrícolas existentes na região e possuidoras de mais de 2

mil escravos dedicavam-se à cultura de cereais, fumo e à cana-de-açúcar, que voltou a

ter importância e levou a multiplicação dos engenhos. Esse ciclo de progresso e

projeção do porto local levou São Sebastião a uma posição de destaque e importância na

economia brasileira.

Os portugueses atraídos pela possibilidade de vender os produtos mais caros

aos mineiros instalam seus engenhos na região. Os engenhos eram caracterizados por

conter uma só cobertura para morada e engenho, como a Fazenda Santana, de 1743.

O comércio entre as cidades litorâneas do Rio de Janeiro às de Santos e às do

planalto era muito intenso, sendo feito o transporte das mercadorias por tropas de

Page 30: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

30

animais, através de precários caminhos. Era o caminho que hoje conhecemos como

rodovia Rio-Santos e Rodovia dos Tamoios que liga São Sebastião a São José dos

Campos. São Sebastião cresceu muito neste período, a população aumentou, novos e

suntuosos prédios foram construídos.

A primeira metade do século XIX foi um período de prosperidade no litoral

norte, devido, em grande parte, à produção e exportação do café, apesar das constantes

investidas dos piratas que ameaçavam a costa.

A segunda metade do século XIX significou, para as cidades do litoral norte de

São Paulo, um período de estagnação econômica. Tal fato se deve à instalação das vias

férreas que ligavam São Paulo a Santos, ao interior do estado e ao Rio de Janeiro,

desviando o transporte de mercadorias para longe das cidades desta região.

O deslocamento de eixo econômico da Província de São Paulo do litoral para o

interior, ocasionou o decrescimento populacional do primeiro. A exploração econômica

da região adaptou-se a situação; as populações voltaram-se para as atividades mais

diversificadas e que garantissem sua sobrevivência imediata, como a pesca artesanal

aliada a pequena lavoura de mantimentos, com destaque para a produção da banana. 39

No século XX destacou-se a criação do porto em 1935, mas, o isolamento da

região era considerável. Nos finais dos anos 60 surge a Petrobrás e com o

desenvolvimento das novas estradas o turismo alojou-se na área.

Diante do contexto histórico criou-se um valor próprio da memória,

desenvolveu-se uma política de preservação da história da cidade. A memória, segundo

o historiador Jacques Le Goff, é a capacidade que o homem possui de poder atualizar

impressões ou informações passadas. Todas as informações trazidas através da memória

servem para que se possa resgatar e salvar o passado. O homem sem passado e sem

memória não tem identidade.40

A cidade além de ser considerada um Patrimônio Histórico desde 1969, data

do tombamento em níveis Federal e Estadual, tem o cuidado em preservar quadros,

livros, fotografias e todos os elementos que documentam a memória e os costumes de

uma época, estabelecendo sempre relações entre o passado e o presente.

39 ALMEIDA , Antônio Paulino de, idem, p.149 e 150. 40 LE GOFF. Jacques. História e Memória. V. II. Lisboa: Edições70, 1982.

Page 31: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

31

Em 1985, quando foi criado o arquivo histórico, houve uma grande

preocupação e movimentação de historiadores, pesquisadores, da ONG “São Sebastião

tem Alma” e da Secretaria de Cultura em resgatar, preservar a memória e a cultura

caiçara.

Foto 2 – Casa de Câmara e Cadeia, Casa no Centro Histórico e Igreja Matriz

Fonte: Wagner Bornal

3. A economia pesqueira e a Cooperativa de Pesca

Estendendo-se por mais de cem quilômetros, da ponta da Enseada, ao Norte,

até a Praia de Boracéia, ao sul, o município de São Sebastião caracteriza-se por um

povoamento linear ao longo do litoral adjacente a Serra do Mar.

Na parte norte, nos bairros Enseada e São Francisco, a atividade principal é a

pesca do camarão, principalmente a do sete-barbas, praticada de duas maneiras. Na

primeira, com embarcações artesanais e com redes, principalmente nas proximidades da

ponta da Enseada, a segunda, com embarcações melhores equipadas e com rede de

arrasto, os pescadores encontram-se concentrados no bairro São Francisco. Em

depoimento, o diretor da cooperativa, Rafael Cliquet, faz a seguinte afirmação “Nosso

Page 32: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

32

carro chefe é o camarão”41. É também neste bairro que se situa a sede da Colônia de

Pesca, a Cooperativa de Pesca bem como a maior concentração de pescadores do

município, em parte originários de Santa Cataria. Eles daí emigraram há 35 anos em

virtude da diminuição dos cardumes de peixes em sua região de origem e devido à

industrialização da pesca que excluiu os pescadores artesanais. Destacaram que a nova

região oferece melhores condições de navegação, sendo também protegida dos ventos.

Sobre a relação dos pescadores de Santa Catarina com os caiçaras, segundo

Puertas, a contribuição dos catarinenses tornou-se marcante pela introdução da baleeira,

técnica da pesca que eles aprenderam com os portugueses. “Considero uma relação

onde agregou conhecimento, e muitos catarinenses hoje são casados com caiçaras e

constituíram famílias aqui em São Sebastião42.

Com relação ao aspecto rudimentar da pesca dos caiçaras, em meados da

década de 40, Gioconda Mussolini observara que em suas pescarias, o caiçara do

Município de São Sebastião dispunha apenas de aparelhos rudimentares, produzidos

artesanalmente por ele; inexistia, em seu universo, meios para a conservação do “peixe

fresco”, e a garantia de sua subsistência decorria da associação da pesca à pequena

lavoura de sua quadra43.

Segundo Diegues, apesar das características comuns a todas as comunidades

caiçaras, existem variações culturais importantes. As diferenças refletem nos tipos de

embarcações usadas bem como pelo aporte de outras culturas, como a baleeira trazida

pelos catarinenses açorianos44. A baleeira, como um dos principais barcos de pesca

utilizados pelos pescadores, tem capacidade para 2 toneladas e supera tanto o bote que

tem capacidade para 1 tonelada como a batera que tem capacidade aproximada de 600

Kg.

O governo federal, em 2001, liberou uma verba para incentivar a criação de

cooperativas e organização de reuniões e cursos com pescadores e pescadoras. Foram

ministrados cursos de manipulação de pescados e serviços administrativos em parceria

41 CLIQUET, Rafael: Depoimento Diretor administrativo e pescador na Cooperativa de pesca. 42 PUERTAS, Guilmer: Presidente da Colônia dos Pescadores. 43 MUSSOLINI, Gioconda. Ensaio de Antropologia indígena e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 263. Antropóloga e precursora dos estudos sobre cultura caiçara na década de 40. 44 DIEGUES, Antônio Carlos. Enciclopédia Caiçara. O Olhar do Pesquisador. V.1. São Paulo: NUPAUB, 2004, p. 25.

Page 33: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

33

com o SEBRAE. Assim, em 2002, foi fundada a Cooperativa de Pesca em São

Sebastião.

A maior contribuição da Cooperativa, portanto, foi no sentido de diminuir a

ação dos atravessadores e “equilibrar” o valor do peixe no mercado. O cooperado pode

adquirir o óleo mais barato, lubrificante, graxa, filtro, peças de embarcação, entre outras

coisas, e, passou a ter um estatuto próprio, onde reza os direitos e deveres de cada um.

Em entrevista com os pescadores não associados, os mesmos relataram a

grande dificuldade em conseguir crédito para melhorar ou adquirir novas embarcações

devido à impossibilidade de comprovar renda por serem autônomos. O pescador sente-

se muito desprotegido; todos concordam que a grande vantagem da Cooperativa foi

equilibrar o preço do peixe. Registra-se que ela compreende uma associação autônoma

de pessoas que se unem, voluntariosamente, para satisfazer aspirações e necessidades

econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de um empreendimento de

propriedade coletiva e democraticamente gerido.

Uma conquista da classe dos pescadores foi a criação da divisão de pesca no

município, cujo objetivo é agir conjuntamente com a polícia florestal e portuária no

sentido de impedir que embarcações maiores pratiquem a pesca de arrasto dentro do

limite proibido por lei, prática esta comum entre os pescadores industriais que invadem

este espaço do mar onde só é permitida a pesca artesanal.

A portaria de nº 054/84 prevê a regulamentação de proteção aos recursos

costeiros através da proibição da pesca de arrasto à distância inferiores a 1,5 milhas

náuticas, pois esta é extremamente danosa para o ambiente, com a destruição de filhotes

de peixes, que se encontram nas costeiras, e, por não possuírem proveito no mercado,

são devolvidos mortos ao mar. O número de associados na cooperativa, em 2007-8 eram

65, sendo que 8 eram mulheres.

A situação dos cooperados pode ser visualizada na tabela 1. Tabela 01 –

Caracterização cultural de pescadores cooperados. Bairro São Francisco

Page 34: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

34

Fonte: Cooperpescass (Cooperativa de Pesca de São Sebastião)

Foto 3 – Mulheres trabalhando na Cooperativa de Pesc

Fonte: Ana Maria Santana.- 2008

Cooperados Total 65

Homens: 57

Mulheres: 8

Religião 80% católicos

20% evangélico

(principalmente Sul da Ilha)

Origem Catarinense 50%

Sebastianense 50%

Casa Própria 70%

Carro 7%

Nível Escolar Fundamental Incompleto

98%

Nível Superior 2%

Nº de filhos 2 a 3

Page 35: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

35

4. Narrativas e cotidiano das mulheres pescadoras

Tradicionalmente, a função da mulher na sociedade caiçara era a da mãe de

família, dona de casa, trabalhadora do lar e da roça. Suas tarefas eram bem definidas:

preparo do alimento e criação dos filhos.45 Portanto a pesca sempre foi um universo de

domínio masculino.

O papel que a mulher desempenha na cooperativa tornou-se central. Destaca-

se: ajudar financeiramente a família, ter um conhecimento do mar, do vento, da lua,

respeitar o período de defeso, isto é, seu respeito com o ciclo da natureza, enfim,

apresenta-se o olhar feminino sobre esse trabalho tão próprio do universo masculino,

que é o mar, a pesca.

Referente às mulheres, segundo relato das cooperadas, há aquelas que

esporadicamente vão ao mar acompanhar de perto a rotina do pescador. Mas, é muito

comum, ouvir entre os pescadores do bairro São Francisco que suas esposas foram

tomando gosto pela pesca e hoje são suas parceiras também no mar. Neste contexto, a

pesca, atividade tradicionalmente desenvolvida por homens, atualmente também

absorve mulheres que tiram do mar o peixe para a sua sobrevivência.

Foto 4 – Pescadora Jandira em sua casa

Fonte: Arnaldo Klajn

45 PAES, Silvia Regina. Espaço da vida, espaço da morte, na trajetória caiçara. Dissertação de mestrado. UNESP. Araraquara. 1988, p.31

Page 36: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

36

Antes de ver a Cooperativa funcionando, as mulheres cooperadas participaram

de muitas reuniões e fizeram cursos promovidos pelo SEBRAE. As mulheres

pescadoras tiveram que tornar-se capacitadas na manipulação de pescados e serviços

administrativos. Na literatura sobre o mar constata-se que a mulher e os religiosos

sempre foram figuras difíceis de serem encontradas nas embarcações por simbolizarem

maus presságios. Neste sentido Diegues afirma:

Quando entram no mar, os pescadores, por exemplo, devem abandonar o que vem da terra para se proteger; quando chegam do mar devem abandonar o que receberam do mar para se reintegrar na sociedade dos continentais, sem os contaminar. Hoje, os rituais coletivos de proteção da gente do mar permanecem ainda certas práticas como evitar a presença, no barco, de certas categorias de pessoas (religiosos, mulheres), não proferir certas palavras e comportamentos enquanto navegam durante a noite.46

Com relação à situação da mulher na pesca, Gioconda Mussolini faz a seguinte

descrição: [...] E um dono de rede se queixava amargurado: toquei a tarde toda e

nenhum malvado apareceu. Havia tainha de se pegar com a mão na praia. Não sei o que me prende nesta ilha. E o desalento do homem chegava ao paroxismo quando me contava que tivera um dia que levar mulheres da casa para deitar rede. O fato de levar mulheres à pesca significava uma tão grande afronta aos costumes locais e aos brios masculinos, que era imperdoável. 47

No entanto, como já explicitado, no bairro São Francisco é comum ouvir entre

os pescadores que na atualidade suas companheiras também os ajudam na pesca e no

mar. Quando indagados sobre o fato da mulher situar nos livros históricos como

portadoras de maus presságios, os mesmos afirmaram que isso é lenda e que a mulher

também está conquistando seu espaço nesse universo masculino. Conforme

levantamento bibliográfico este fenômeno da mulher na pesca era invisível na literatura.

Os pescadores citam mulheres como Jandira de Oliveira, 63 anos, moradora do

bairro da Enseada que sempre viveu da pesca e de Laurinda Maria de Moraes, 48 anos,

cooperada que também enfrenta o mar todos os dias. Ambas são proprietárias de suas

embarcações.

46

DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e mares: Simbolismo e Imaginário, p.58 47 MUSSOLINI, Gioconda. In DIEGUES, A.C. – Enciclopédia Caiçara. Vol. 4, p. 193.

Page 37: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

37

Desde 2002, quando iniciou o funcionamento efetivo da cooperativa, as

mulheres que fizeram os cursos no SEBRAE passaram a compor o quadro dos

cooperados. Na rotina da cooperativa iniciam o trabalho às oito horas. Cuidam dos

peixes, limpam o camarão, pesam os pescados e mantêm a higiene da cooperativa.

Trabalham no caixa e realizam a venda dos pescados. Elas registram os cuidados que

envolvem a filetagem do peixe, cortá-los em postas, descabeçar o camarão para

armazenar durante o período de defeso. Compreende ele os meses de outubro a

dezembro para o camarão sete barbas e de março a maio para o camarão rosa. Nestes

períodos são proibidos por Lei a pesca desses crustáceos.

Na hora do almoço há o revezamento. Alternam horários para não fechar o

recinto. Aquelas que têm filhos pequenos os deixam na escola e no outro período com

alguém da família. São seis mulheres sebastianenses e duas catarinenses. Estas últimas

chegaram a São Sebastião ainda crianças acompanhando os pais, gostam do que fazem e

têm em comum o fato de terem passado a vida toda muito próxima ao mar.

Quando são perguntadas se gostariam que os filhos continuassem com a

tradição, falam que não querem esse futuro para os filhos, pois a vida de pescador é

muito difícil. Têm que enfrentar o mar, o sol, as intempéries da natureza e nem sempre

são reconhecidas, valorizadas. Reconhecem a importância da cooperativa; mas, mesmo

assim, ressentem-se elas do peso que as iniciativas exigem.

O assunto salário, ou quanto ganham como cooperadas, não é divulgado. As

mulheres não gostam de falar sobre o assunto, comentam das dificuldades de serem

cooperadas. Não podem faltar ao trabalho, pois o que recebem é proporcional a

produção e não têm um salário fixo. Caso venham a se desligar da Cooperativa recebem

o equivalente a um salário mínimo. Esse dinheiro quando o cooperado entra precisa

contribuir por 10 meses com 10% do salário mínimo, ou pagar esse montante à vista,

valor este que fica guardado como uma reserva. Quando o cooperado se desliga da

cooperativa o recebe.

As mulheres falam que na alta temporada, nos meses de dezembro a março é a

época em que mais trabalham e que ganham melhor. Neste período também é liberada a

pesca do camarão sete barbas que é o principal crustáceo comercializado na

Cooperativa. Este fato, agregado à presença de muitos turistas que estão na cidade,

Page 38: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

38

fazem com que aumente o trabalho e a renda da família. É nesse período também que

compram os eletrodomésticos para casa como fogão, geladeira, máquina de lavar e

pensam em realizar alguma reforma na casa.

No convívio com as mulheres pescadoras os valores mencionados destacam

também formas de sociabilidades encaminhadas para os festejos ligados aos rituais

religiosos e de manifestações tradicionais. Assim, compartilham elas das festas

religiosas de São Sebastião, São Pedro e das manifestações ligadas às Folias de Reis, às

Congadas (com destaque para a própria Congada de São Francisco).

O contexto das narrativas lendárias que compreende um repertório de saberes,

concepções e definição de um imaginário expressivo do litoral está enfatizado por

lendas, contos. O livro “Mitos e lendas de São Sebastião” tornou-se uma referência

sobre as tradições locais48.

Foto 5 – Festa de São Pedro Pescador – Junho 2007

Fonte: Arnaldo Klajn

48 VIVIANI, Patrícia (org.). Mitos e Lendas de São Sebastião. 2ª edição. São Sebastião. Vol. I, 2003.

Page 39: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

39

Considerações Finais

O universo simbólico que acompanha as mulheres inseridas na pesca

caracteriza-se pela definição de valores onde a vida tradicional caiçara recria-se pelo

significado social, econômico e cultural onde a pesca está situada com um centro da

vida social e da subsistência.

Projetam-se situações de modernidade onde os padrões de racionalidade e

conquista de melhores salários tornam-se inseridos no cotidiano da mulher pescadora e

da mulher cooperada.

Um novo mundo ligado ao consumo e a presença de valores da civilização

coexiste com o tradicional universo de valores religiosos, rituais e do meio ambiente

que passaram a caracterizar a auto-identidade caiçara, como discutimos. Nota-se uma

inserção individual na recriação do universo tradicional.

De forma estratégica o poder público ligado às políticas educacionais e

culturais do município vêm recriando os valores tradicionais dos caiçaras inserindo-os

na complexidade do espaço urbano. Torna-se um tema de estudo em várias situações de

letramento, educação e cultura presentes em São Sebastião. Desta forma destacou-se O

Congresso dos Povos do Mar (1992), Encontro das Ilhas (1990), o Seminário

Internacional dos Povos do Mar e Mata Atlântica (1994).

O passado permanece magicamente reinventando, tornando a memória

coletiva um investimento das experiências, dos contatos diretos e reais. Assim, o seu

sentido fluídico e de constante movimento permite que a cultura caiçara desenvolva-se

como um antigo centro de valor e identidade cultural na atualidade.

O reconhecimento recente, cada vez maior, do papel dessa população numa

nova visão da conservação ambiental em áreas naturais protegidas, como conservadores

da biodiversidade, portadores de profundo conhecimento sobre o mundo natural tem,

por outro lado, contribuído para uma maior valorização da cultura caiçara.

Page 40: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

40

Referências Bibliográficas

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002, pp. 176-177. DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Editora Hucitec, NUPAUB/USP. _____________________. Ilhas e mares: Simbolismo e imaginário. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. _____________________. Enciclopédia caiçara. V.1 O olhar do pesquisador. São Paulo: HUCITEC; NUPAUB, USP, 2004. _____________________. Enciclopédia caiçara. Vol. 4. História e Memória Caiçara. São Paulo: Editora HUCITEC: NUPAUB, 2005. LE GOFF. Jacques. História e Memória. V. II. Lisboa, Edições 70, 1982. MUSSOLINI, Gioconda. Ensaio de Antropologia indígena e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 263. Antropóloga e precursora dos estudos sobre cultura caiçara na década de 40. PAES, Sílvia Regina. Espaço da vida, espaço da morte na trajetória caiçara. Dissertação de Mestrado. UNESP. Araraquara, 1998. RESSURREIÇÃO, Rosângela Dias da. São Sebastião: transformações de um povo caiçara. São Sebastião. Prefeitura Municipal, 2002. VIVIANI, Patrícia (org.). Mitos e lendas de São Sebastião. 2ª edição. São Sebastião. Vol. I, 2003. Fontes ALMEIDA, Antônio Paulino de. Memória histórica sobre São Sebastião. Coleção da Revista de História. Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: 1959. CLIQUET, Rafael: Depoimento Diretor administrativo e pescador na Cooperativa de pesca. FREIRE, Laudelino. Grande eo Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre: Livraria José Olympio Editora. 2ª edição, volume II, p. 1154.

Page 41: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

41

Evolução Estelar: Da Formação à Morte de uma Estrela

Rafael Teixeira TOFFOLI∗

Resumo: Neste artigo escrevo sobre um assunto muito estudado, mas mesmo assim com muito a ser descoberto: Evolução Estelar. Cito um pouco da história, de modelos e algumas equações fundamentais para o estudo das estrelas. Sigo para a formação das estrelas no universo, a partir de gás e poeira, sua evolução até a fase mais estável de sua vida, a fase da Seqüência Principal, no diagrama HR, sua evolução após essa parte de sua vida rumando para os estágios finais e, por fim, como uma estrela morre. A vida de estrela começa quando as reações químicas começam no núcleo e a morte quando um evento extremamente raro e violento surge, fazendo a estrela seguir para outra parte de sua evolução. Palavras-chave: Estrelas, Evolução Estelar, Diagrama HR, Sequência Principal, Supernova.

As estrelas são estudadas desde as primeiras observações do céu, antes mesmo

de Galileu utilizar a luneta para observar os astros. O primeiro parâmetro a ser estudado

foi a magnitude, com valores inteiros variando de 1 a 6, onde a magnitude 1 é uma

estrela mais brilhante e a magnitude 6 menos brilhante. Esse conceito mudou bastante

com o invento dos telescópios, que conseguiam detectar estrelas mais fracas, e a

magnitude passou a ter um intervalo muito maior. A magnitude do Sol, por exemplo, é -

26,74.

Com o uso de telescópios cada vez mais potentes, melhor foi o estudo das

estrelas. Assim foi possível estudar com mais precisão estrelas mais distantes, além de

nossa melhor fonte de informação, o Sol.

As informações das estrelas são obtidas através da radiação emitida por elas e

captadas pelos nossos telescópios e modelos tentam descrever e predizer o que

acontecerá na estrela em questão, quanto mais próximos os valores, melhor o modelo.

∗ Aluno de Mestrado da Universidade Cruzeiro do Sul – São Paulo, bolsista da FAPESP.

Page 42: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

42

Esses modelos ajustam parâmetros como temperatura, densidade, luminosidade, massa,

composição química, entre outros.

Os modelos são ajustados com o auxílio de quatro equações básicas:

( ) ( )rrdr

rdM ρπ 24= (1)

( ) ( ) ( )2r

rrGM

dr

rdP ρ−= (2)

( ) ( ) ( )rrrdr

rdL ερπ 24= (3)

( ) ( ) ( )3216

3

Tacr

rLr

dr

rdT r

πρκ−= (4)

A equação 1 é a equação de Continuidade de Massa, a equação 2 é a equação de

Equilíbrio Hidrostático, a equação 3 é a equação de Equilíbrio Térmico e a equação 4 é

a equação do Equilíbrio Radiativo.

As variáveis nas equações são: r é o raio da estrela, M é a massa, ρ é a

densidade, P é a pressão, L é a luminosidade, ε é a taxa de produção de energia, T é a

temperatura e κr é o coeficiente de absorção médio. As constantes são: G = 6,67 x 10-8

din cm2 s-2 é a constante gravitacional universal, c é a velocidade da luz e a = 7,56 x 10-

15 erg cm-3 K-4 é a constante de Stefan-Boltzmann.

Para a evolução estelar, o principal parâmetro é a massa da estrela e, em seguida,

a composição química.

1. Formação Estelar

Estrelas formam-se em nuvens de gás e poeira, compostas principalmente de

Hidrogênio, no meio interestelar. Isto acontece quando em pontos da nuvem ocorrem

instabilidades gravitacionais e assim o gás e a poeira começam a se acumular em

algumas regiões. Com isso, a força gravitacional aumenta em cada ponto da nuvem, que

contrai. Assim, a pressão e a densidade aumentam e em algum ponto da nuvem, com

Page 43: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

43

temperatura maior, as reações termonucleares podem ocorrer. O processo de colapso de

matéria na formação da estrela é de aproximadamente 108 anos.

Esse colapso não acontece em apenas um ponto da nuvem e, por isso, outras

estrelas podem se formar bem próximas, compondo um sistema binário ou terciário.

Dependendo da massa que colapsa, planetas e outros corpos celestes também são

formados.

Figura 1: Nuvem de formação estelar Doradus 30

2. Protoestrelas

Levando em consideração apenas as estrelas, o colapso de matéria ocorre até que

a região central entre em equilíbrio hidrostático. Essa matéria que cai na região emite

radiação e assim podemos observar sua luminosidade apenas no infravermelho.

Quando finalmente a região central entra em equilíbrio hidrostático, damos o nome de

protoestrela, já que só podemos chamar de estrela quando no núcleo temos a ignição, ou

queima, de Hidrogênio, isto é, fundir átomos de Hidrogênio para a formação de Hélio.

Page 44: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

44

Na protoestrela, a temperatura central ainda não é suficiente para a fusão do Hidrogênio

e é de aproximadamente 103K.

Nessa fase, o caroço estelar é formado, a sua luminosidade aumenta e se

estabiliza, permanecendo assim até que a emissão de radiação faça com que sua

luminosidade diminua. A contração continua e, dependendo de sua massa, o núcleo da

estrela começa a queima do Hidrogênio. Se a massa M da estrela for M < 0,08Mo (Mo é

a massa Solar), ela é chamada de Anã Marrom e seu núcleo não tem temperatura

suficiente a fusão de Hidrogênio em Hélio.

Para estrelas com massa M > 0,08 Mo, a estrela alcança uma temperatura central

suficiente para a queima de Hidrogênio e assim a protoestrela passa a ser chamada de

estrela e entra na fase de sua evolução na qual passará o maior tempo, a Seqüência

Principal.

4. A Sequência Principal

Assim que o núcleo começa a queima do Hidrogênio em Hélio, a estrela entra na

Sequência Principal e fica nessa posição em um Diagrama HR (Hertzsprung-Russel). O

Diagrama HR é um gráfico onde no eixo x marca-se a Temperatura e no eixo y a

Luminosidade e cada região representa uma fase da estrela. Uma observação importante

é que a estrela não percorre o diagrama todo, quando entra na Sequência Principal,

permanece lá até que mudo seu estágio de evolução e assim por diante.

Page 45: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

45

Figura 2: O Diagrama HR

O tempo de permanência da estrela na Seqüência Principal depende de sua

massa. Para estrelas de massa próxima a do Sol, o tempo é de aproximadamente 1010

anos (10 bilhões de anos!) e se for mais massiva, com aproximadamente 7Mo, o tempo

cai para 107 anos. Assim, quanto mais massiva é a estrela, menor é o seu tempo de vida.

5. A Evolução Após a Seqüência Principal

Assim como em toda a sua evolução, a saída da estrela da Seqüência Principal

depende de sua massa.

Estrelas de baixa massa, próximas a do Sol, após a queima de quase todo o

Hidrogênio no núcleo, a força da gravidade supera a pressão de radiação, e assim o

núcleo torna-se mais denso e sua temperatura aumenta, sua luminosidade aumenta por

um rápido instante e a estrela expande, tornando-se uma Gigante.

No caso do Sol, quando tornar-se uma Gigante Vermelha, Mercúrio e Vênus

deixarão de existir e a Terra é uma forte candidata a também ser consumida e, se não

Page 46: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

46

for, não existirá vida por aqui. Marte pode ser destruído também, porém com uma

probabilidade menor.

Voltando para as Gigantes, a temperatura do núcleo é suficiente para a queima

do Hélio em Carbono, em um processo chamado Triplo-α, gerando o chamado Flash do

Hélio. Nessa fase, além do Hélio fundindo no núcleo, o Hidrogênio restante continua a

queima em uma camada vizinha. Terminando o Hélio no núcleo, a estrela contrai-se

novamente e esse processo dura aproximadamente 106 anos e termina com um vento

intenso, chamado de Nebulosa Planetária, expelindo grande parte de sua massa e

restando apenas o seu núcleo.

Figura 3: A Nebulosa Planetária de Helix

As estrelas mais massivas evoluem da mesma forma que uma de baixa massa no

início. A diferença começa quando o Hélio está terminando a queima. Como a estrela

tem mais massa, após a contração que terminaria em uma nebulosa, a gravidade da

estrela evita essa ejeção de matéria e faz com que o núcleo queime Carbono em

Nitrogênio, um processo chamado CNO, e queima Hélio e Hidrogênio em camadas

Page 47: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

47

vizinhas, levando a estrela para o ramo das Supergigantes no diagrama HR. Quanto

mais massiva a estrela, as fases de contração e expansão são mais freqüentes e outros

elementos químicos são queimados no núcleo, como o Nitrogênio e o Oxigênio, por

exemplo, chegando até o Ferro, elemento que o núcleo não pode fundir.

As estrelas de alta massa podem terminar de duas formas: em uma Supernova,

que deixa um remanescente da estrela ou em um Buraco Negro.

6. Estágios Finais das Estrelas

O fim da estrela depende da massa que sobra após todos os processos escritos

acima. Se M < 1,4 Mo, a estrela passará para uma Anã Branca, se 1,4 < M < 3 Mo, será

uma Estrela de Nêutrons e se M > 3 Mo, será um Buraco Negro.

No caso de M < 1,4 Mo, aproximadamente entre 1 e 8 Mo na Seqüência Principal, após a

Nebulosa Planetária, o núcleo se tornará uma estrela extremamente quente, com

aproximadamente 200000K, mas como nesse caso a estrela não tem nenhum tipo de

reação nuclear, sua temperatura e luminosidade diminuem, consumindo a energia

restante em aproximadamente 104 anos chegando assim em uma Anã Branca.

Page 48: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

48

Figura 4: As estrelas Sirius A, a mais brilhante no centro da imagem, que pertence à

Seqüência Principal e Sirius B, bem menor, um ponto no canto esquerdo inferior, uma

Anã Branca. Ambas pertencem à constelação de Canis Major (Cão Maior).

Uma Anã Branca tem aproximadamente 0,6 Mo e seu raio é 100 vezes menor

que o raio do Sol, o que torna a estrela extremamente densa. Seu resfriamento demora

em torno de alguns bilhões de anos, levando a formação de uma Anã Negra, um

conceito teórico já que ainda não foi detectada por nenhum telescópio.

No caso de 1,4 < M < 3 Mo, a força gravitacional é maior, comprimindo ainda

mais o gás da estrela fazendo com que seu núcleo seja formado por nêutrons. Como

colapsa rapidamente para o núcleo, uma ejeção violenta das camadas da estrela

acontece, em um fenômeno conhecido como Supernova.

Existem dois tipos de Supernova, tipos 1 e 2. As supernovas do tipo 1 ocorrem

em sistemas binários onde a gravidade de uma estrela atrai a matéria da outra e assim

acontece a explosão. As supernovas do tipo 2 ocorrem em estrelas mais massivas em

que o núcleo é formado por Ferro e explode devido à impossibilidade de fundir os

átomos de seu núcleo.

Figura 5: Supernova 1987A e remanescente

Após a supernova, o núcleo da estrela, com um raio de algumas dezenas de

quilômetros, fica muito denso e com uma rotação muito rápida, por originar-se de uma

Page 49: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

49

estrela com um raio gigantesco, surgindo assim a Estrela de Nêutrons, conhecida

também como Pulsares.

São conhecidos aproximadamente 500 Pulsares e sua rotação, isto é, tempo de

uma volta completa em torno de seu eixo, tem duração entre 10-3 s até 4s. Os Pulsares,

quando descobertos, devido a sua periodicidade regular, foram confundidos com sinais

extraterrestres, fazendo-se pensar que seria uma prova de vida em outros planetas. Esses

Pulsares são detectados por ondas eletromagnéticas da estrela.

No caso de M > 3 Mo, o final da estrela é o mais fascinante e misterioso objeto

do Universo: o Buraco Negro. Ele ocorre pois o colapso gravitacional é tão intenso que

a densidade no núcleo torna-se infinita, gerando essa singularidade.

Buracos Negros não podem ser observados, já que nenhum tipo de radiação sai

dele, inclusive a luz, mas pode ser detectado através de situações a sua volta. Por

exemplo, matéria de uma estrela próxima pode ser drenada pelo Buraco negro e

emissões em raios X dessa matéria podem ser detectados.

Figura 6: Concepção artística de um Buraco Negro drenando matéria de uma estrela. O

disco azul em torno do Buraco Negro chama-se Disco de Acreção. Nessa imagem são

mostrados também o Jato e o Contra-Jato ejetado do Buraco Negro.

7. Conclusão

Page 50: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

50

O estudo das estrelas depende de telescópios que possam receber radiação em

diferentes comprimentos de onda, desde os Raios Gama até o Rádio, e de tempo de

observação. A maior parte das estrelas está muito distante, o que faz com que os

modelos demorem certo tempo para serem comprovados, mas já existem muitos

modelos de estrelas específicas que já são aceitos, o modelo padrão do Sol é um deles.

A formação, evolução e morte de estrelas já foram muito bem estudados e

resumidos aqui, já que fatores específicos, como os cálculos de Temperatura Superficial

por exemplo, foram suprimidos para uma leitura interessante e um bom entendimento.

Referências bibliográficas

CLAYTON, D. D.. Principles of Stellar Evolution and Nucleosynthesis, 2nd ed.,

Chicago: University of Chicago Press, 1983.

MACIEL, W.J. Introdução à estrutura e evolução estelar , São Paulo: EDUSP, 1999.

GREGORIO-HETEM, Jane & PEREIA, Vera Jatenco. Apostila de Fundamentos de

Astronomia, 1° Semestre de 2000.

http://www.astronomynotes.com/evolutn/s1.htm, acessado em 13/08/2010.

Page 51: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

51

Tá rindo de quê? Reflexões em torno do uso do humor como recurso educativo

Lucelmo LACERDA*

Resumo: Muitos são os desafios do professor e a busca por recursos mais atraentes e eficientes é imperiosa. Nesse contexto nos esforçamos, primeiramente, por legitimar a busca do lúdico no processo de ensino, posteriormente, investimos em delimitar com o máximo de clareza o que se entende por humor e como ele funciona. Na sequência, exercitamos o confronto entre possibilidades positivas e negativas desse uso no processo de ensino da matemática, chegando à conclusão de que se trata de um artifício altamente profícuo, guardando, contudo, o perigo de reforçar estereótipos bloqueadores do processo de ensino aprendizagem, exigindo do docente um aprofundamento e um cuidado ao utilizar-se do humor em sala de aula. Como fio condutor, adotamos a perspectiva freireana, à qual nos remetemos continuamente. Palavras-chave: Humor, Educação, Matemática, Lúdico, Paulo Freire

Introdução

Atualmente vivemos uma crise do ensino público. Nos primórdios do século XX,

o Brasil conhecia uma escola pública restrita, elitista, cuja autoridade do professor era

inconteste, legitimada socialmente e aplicada por meio da violência na sala de aula e do

rigor na aplicação das avaliações e do grande número de retenções a mudança de série.

No entanto, no decorrer do século XX tal situação foi gradativamente se

modificando, até que no fim do século a educação já se encontrava, como hoje,

relativamente universalizada. No entanto, a qualidade do ensino degenerou-se a olhos

vistos, a quantidade de alunos que terminam mesmo o Ensino Médio sem que consigam

sequer superar a condição de analfabeto funcional é imensa.

A autoridade, como conceito, entrou em crise com o advento da pós-modernidade.

Todas as autoridades passaram a ser questionadas e tiveram que alargar imensamente

sua base de justificação para sobreviverem ao erosivo mundo pós-moderno. O

professor, que exercia sua autoridade por meio da violência, seja física (palmatória,

puxão de orelha) quanto simbólica (ofensas, retenções) se vê hoje sem esses recursos

* Mestre em História e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, Professor do Ensino Fundamental na rede pública em São Sebastião – SP;

Page 52: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

52

para operar na sala de aula e se debate em encontrar novas saídas pedagogicamente

eficazes e socialmente legítimas.

A legitimidade da autoridade do professor amparava-se na construção ideológica

de que o mesmo era detentor do conhecimento, em oposição ao aluno, que vivia na

ausência do conhecimento49. Assim, o professor era aquele que dispunha de seu

conhecimento a fim de que o aluno o absorvesse. Paulo Freire, ainda nos anos 60, em

concordância com o mundo de erosão das autoridades, veio denunciar tal proposta

pedagógica, que ele chamava de “bancária”, pois encarava a cabeça dos alunos como

cofres vazios e abertos, os quais o professor, com toda sua abundância de

moeda/conhecimento, deveria encher. Freire apontou que o professor é também aluno e

o aluno também professor, num processo de aprendizagem dialético. Sua teoria chama

atenção para o fato de que ninguém ensina ninguém e ninguém aprende sozinho, nos

ajudamos mutuamente num processo de aprendizagem coletiva50.

Não se trata, na teoria freireana, de descartar a pessoa do professor, que Freire

preferiu chamar educador, ou educador/educando, mas de repensar tal papel, não mais

aquele que despende seu conhecimento para assimilação dos alunos, mas aquele que

facilita o processo de aprendizagem por parte de cada aluno. Assim, Freire propôs, não

que o objeto cognoscitivo (a realidade) fosse digerido pelo educador e depois ofertado

ao educando, mas que o educador apresentasse o objeto cognoscitivo ao agente

cognoscente (o educando) para que o mesmo operasse o processo de cognição da

realidade e aprendesse ele mesmo a ver, compreender e julgar o mundo.

Diante dessas novas possibilidades teóricas e da crise da legitimidade da

autoridade do educador na sala de aula, urge pensar novas formas na relação educador e

educando, na sala de aula, que venha no sentido de aproximar o padrão de ensino da

excelência, fazendo com que os alunos aprendam melhor e também respondendo à crise

do papel do professor.

A autoridade do professor que antes residia na concepção bancária de educação e

se operava pela dupla violência, hoje deve se amparar na pedagogia do professor, em

sua capacidade de resolução de conflitos e de realmente levar os alunos a se envolverem

49 A palavra “aluno’ vem do latim “a” sem, “luno” luz, isto é a-luno, sem luz. 50 FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia, 39ªed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

Page 53: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

53

na aula, se apaixonarem pela escola. E se opera por meio de recursos mil, normalmente

mais ligados à criatividade do professor do que à estrutura da escola (pública), o que,

evidentemente, não exime a escola de intervir no combate à indisciplina e de

proporcionar uma estrutura que favoreça o processo de ensino aprendizagem.

Nesse sentido, muitos recursos são utilizados, professores cantores, que fazem

música das matérias, educadores atores, que fazem da aula um verdadeiro espetáculo, a

utilização imagética, que se utiliza de filmes principalmente, a ascensão dos jogos

educativos na sala de aula. E dentro dessa miríade de possibilidades, pensamos que o

humor pode ter seu papel no sentido de reinventar o ensino e o papel do professor na

sala de aula51.

Nossa pretensão, neste estudo, foi refletir sobre a utilização do humor no processo

educativo, entendido como um recurso que, em tese, poderia incrementar trabalho do

professor, trazendo um elemento atraente o circuito de aprendizagem.

Nesse intento, nos esforçamos primeiramente para compreender o fenômeno do

humor e o delimitarmos de modo o mais preciso possível. Contudo, não é possível tratar

desse tema de um modo meramente formal e abstrato, é preciso trabalhar hipóteses

concretas, trazer à análise peças de humor e, portanto, seria necessário escolher uma

disciplina. Para tanto, escolhemos a matemática, uma vez que encontramos melhores

recursos nesse campo.

Nosso intento foi o de relacionar essas representações com os recursos de humor

existentes e também refletir sobre como esse recurso ao humor opera no sentido de

aperfeiçoar ou qualificar o aprendizado da matemática na sala de aula.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, estipulam uma série de diretrizes

que devem orientar o ensino de matemática no ensino básico no Brasil. Dentro dessas

diretrizes é que trabalham os produtores de livros didáticos e os próprios educadores, e

um elemento presente nesses parâmetros é a questão do lúdico. É bem verdade que os

PCNs dizem até onde um livro didático pode ir mas não impõe, por exemplo, que se

passe pelo lúdico, mas muitos livros já acompanham esta orientação devido à vultuosa

51 SCOCUGLIA, Afonso Celso; A História das Idéias de Paulo Freire e a Atual Crise de Paradigmas; João Pessoa: Editora Universitária; 1999; p. 111 a 123;

Page 54: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

54

produção acadêmica que demonstra sua eficiência e estuda meios de sua praticabilidade

em sala de aula.

Dada a multiplicidade do lúdico, optamos por trabalhar apenas com algumas

formas específicas de representação de humor, verificando como se apresentam tais

representações. Assim, nosso trabalho se justifica em sua conformidade com os PCNs, e

tendo em vista que, ao contrário do tema geral do “lúdico”, é rarefeita a produção

acadêmica que hoje existe para analisar o recurso do humor no ensino de matemática,

praticamente restringindo-se à questão dos quadrinhos que, por um lado, vai muito além

do humor, pois o quadrinho pode ser dramático ou de qualquer outro gênero, e por outro

não açambarca todas as possibilidades do humor, que atinge também os cartuns,

narrativas, charges, chistes, etc.

Analisamos dois cartuns encontrados em um artigo de Márcia Castiglio da

Silveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, de título A produção

de significados sobre matemática nos cartuns (2007), esses cartuns, mais do que

oferecerem uma reflexão sobre como trabalhar com humor no ensino da matemática,

deu-nos mostra sobre como não trabalhar com tal gênero. Nessa perspectiva é que

trabalhamos com tais cartuns, com a idéia de que o humor não tem um conteúdo

valorativo positivo inerente, mas pode carregar consigo preconceitos perigosos a serem

evitados.

Não obstante, fomos à folha de São Paulo, na tira de quadrinhos produzida pelo

artista Laerte, denominada Piratas do Tietê e recortamos uma tira publicada no jornal

em 18/08/1999.

Também nos utilizamos de um portal de endereço

http://alexandramat.blogspot.com, denominado O Lado Divertido da Matemática: Ver

a Matemática com outros olhos em que estão presentes muitos elementos de

consideração da matemática a partir da lógica do divertimento. E por último, servimo-

nos de uma famosa passagem de Malba Tahan e constante no livro O Homem que

Calculava, de 1965, considerando a narrativa como gênero não pictórico de humor. .

Nosso foco exato são as charges, quadrinhos, narrativas, cartuns e chistes, mas

nossa reflexão perfaz o seguinte caminho, primeiramente fazemos uma defesa geral do

ludismo enquanto recurso de aprendizagem, apontando sua coerência com as fases de

Page 55: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

55

amadurecimento da cognição, logo depois apresentamos o que é o humor nas

perspectivas de alguns autores importantes que refletiram sobre o tema.

Em seguida elencamos os formatos de humor mais comumente presentes no

ensino de matemática e cuja viabilidade de veiculação em livros didáticos é notória e

logo após analisamos alguns casos concretos presentes nas fontes de informação

apresentadas. Todas as representações serão consideradas e as mais representativas

apresentadas no texto para uma análise minuciosa.

1. Importância do lúdico

Como já apresentado, a educação vive uma crise que se expressa em vários

elementos, entre eles, na perda de legitimidade da autoridade do Professor. Essa

autoridade é questionada tanto pelos alunos, na sala de aula, com a indisciplina, e

teoricamente, fundando experiências como a de Summerhill 52 e da Escola da Ponte53.

O ludismo não é um tema novo na história da educação, Carlos Magno (742-814)

já apontava que “deve-se ensinar divertindo”, apontando uma antiga percepção sobre a

questão do ludismo, em geral e particularmente da questão que nos interessa: o humor.

Refletindo, no entanto, o humor em todas as matérias e não somente na matemática.

Alguns problemas colocados à época são até hoje correntes no ensino de

matemática. No Disputatio entre o mestre Alcuíno e o Jovem Pepino (filho de Carlos

Magno), que tinham como fim “aguçar a inteligência” aparece um problema muito

semelhante a um outro que conhecemos:

Havia três homens, cada um tendo uma irmã solteira, que precisavam de atravessar um rio. Cada homem desejava as irmãs dos seus amigos. Ao chegar ao rio, encontraram um pequeno barco no qual, de cada vez, só

52 NEILL, A. S.; Liberdade sem medo; (Summerhill) Radical Transformação na Teoria e na Prática da Educação; São Paulo: IBRASA; 1973; Ed. 14; (Coleção Biblioteca de Temas Modernos); A escola de Summerhill completou há pouco 80 anos, é na Inglaterra e foi fundada sob inspiração da filosofia anárquica, tem por base principal a subversão da autoridade, tudo o que acontece na escola é decidido pelos próprios estudantes em assembléia, são eles que definem as regras e, eventualmente, punem os que não as seguem. A Escola da Ponte, fundada por José Pacheco é uma escola pública de Portugal que parte das premissas de Summerhill, mas também incorpora muitas reflexões de Foucault sobre a arquitetura da sala de aula (que não existe nesta escola) o disciplinamento fluido que não está expresso em regras, assim, a Escola da Ponte não tem salas, não tem séries, não tem alunos nem professores. 53 CANÁRIO, Rui; MATOS, Filomena; TRINDADE, Rui; (orgs) Escola da Ponte: um outro caminho para a educação; São Paulo: Editora Didática Supergraf; 2004;

Page 56: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

56

podiam atravessar o rio duas pessoas. Como é que atravessaram o rio, de tal forma que nenhuma das irmãs seja desonrada por um dos homens.

Resposta: Antes de mais eu e a minha irmã entramos no barco e atravessamos. Depois de ter atravessado o rio, eu deixo a minha irmã e volto a atravessar o rio. Depois as irmãs dos dois homens que ficam na margem entram no rio. Quando estas mulheres saem do barco, a minha irmã que já tinha atravessado, entra no barco e trás o barco até nós. Ela sai e os dois homens atravessam o rio. Depois um dos irmãos e a sua irmã atravessa o rio ao nosso encontro. Eu e o irmão que piloto o barco, atravessamos o rio para a outra margem, enquanto que a minha irmã ficou para trás. Quando ele foi transportado para o outro lado, uma das outras mulheres pegou no barco e atravessou para o outro lado, e a minha irmã veio, com ela, ao nosso encontro. Depois o homem cuja irmã tinha ficado na outra margem entrou no barco e trouxe-a até nos. Assim, a travessia estava completa, sem que nenhuma das irmãs fosse desonrada.54

Um outro problema utilizado ainda hoje no ensino básico é flagrantemente uma

variante daquele:

Um homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e uma couve. E não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa, toda a carga. Diga quem puder, como fez ele a travessia?55

O grande diferencial, no entanto, é que o ludismo na Idade Média aparece como

uma forma de atenção à religião, na medida em que a bíblia associa o brincar da

Sabedoria com o ato da criação “Ali estava Eu [Sabedoria Divina] com Ele como

artífice, brincando diante d’Ele o tempo todo; brincando sobre o globo terrestre, e

minhas delícias são estar com o filho dos homens” (Prov. 8, 30-31). Enquanto hoje o

ludismo é amparado cientificamente pelos estudos que trataram da questão da cognição,

sobretudo Piaget.

Piaget se postou contra o modo em que se pensava a questão da cognição em sua

época por várias correntes de pensamento. Com métodos científicos bastante

embasados, Piaget demonstrou que o ser humano passa por diversas fases no aparelho

54 HENRIQUES, Helena Castanheira; ALMEIDA, Conceição; O lúdico nas aritméticas do século XVI; Extraído do Portal da Sociedade Portuguesa de Ciência da Educação; em 18/06/2007, no endereço http://www.spce.org.pt/sem/9.pdf; 55 Idem;

Page 57: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

57

cognitivo e que vai desde o nascimento, ou mesmo antes dele, e se completa por volta

dos 17, 18 anos.

O Pedagogo/Psicólogo demonstrou esse processo em várias fases progressivas de

relacionamento entre o indivíduo e o meio, trabalhando a maneira com que esse

relacionamento se torna conhecimento: 1. Período Sensório-Motor 2. Período Simbólico

3. Período Intuitivo. 4. Período Operatório Concreto. e 5. Período Operatório Abstrato.

Diante das inúmeras correntes que propunham teses diferentes e adversas sobre a

maneira com que o indivíduo desenvolve sua inteligência, marcadamente daquelas que

pensavam a inteligência como algo inato ao indivíduo, maturada na vida adulta e

daquelas que pensavam o ser humano como mero veículo da vontade da estruturas,

totalmente condicionado pelo ambiente social, Piaget construiu seu aparato conceitual

por sobre a lógica do interacionismo, apontando que é na relação entre o ambiente e o

corpo que o indivíduo vai forjando sua inteligência.

De alguma forma, Piaget tem bastante a ver com a pedagogia de Paulo Freire.

Infelizmente, na atualidade, ainda não há uma difusão mais séria do pensamento de

Paulo Freire no Brasil. A esmagadora maioria dos Professores resume seu

conhecimento em Paulo Freire dizendo que “Ele foi um educador que pregava que

deveria ensinar o aluno usando a realidade dele”. Uma vulgarização simplista e

muitíssimo errônea do que defendia Paulo Reglus Freire.

Primeiramente jamais se acomodaria na teoria freireana a idéia de que alguém

ensina outrem, o princípio básico dessa filosofia é o conceito de que ninguém ensina

ninguém e ninguém aprende sozinho, mas os homens aprendem em comunhão. Desta

forma, os agentes do ensino se apropriam da teoria freireana, no sentido de participar de

seu prestígio como teórico, mas ressignificando sua fala que, ao invés de fala de

libertação, de rompimento com a educação bancária, dissimula-se como legitimadora da

mesma, isto é, o problema deixa de ser a forma da relação educador e educando e passa

a se localizar simplesmente no âmbito do conteúdo que é ensinado. Assim, basta

despejar conteúdo sobre a vizinhança do aluno em sua cabeça/cofre para que a mesma

se encha.

Essa leitura acerca de Paulo Freire também recorre a Piaget, na medida em que se

aponta a questão do conteúdo local como uma reflexão derivada da proposição da

Page 58: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

58

utilidade do lúdico pelas teorias piagetianas. Pois bem, como não queremos apresentar

nossa reflexão nesse sentido, cabe colocar em seu devido lugar a distância/proximidade

no pensamento de Paulo Freire, proponente da lógica que pretendemos participar.

O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a capacidade de pensá-las segunda as exigências lógicas do discurso abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer sua palavra56.

Pensamos que tal colocação é bastante esclarecedora do intento geral da teoria de

Freire, que acredita que na libertação de indivíduos através da educação libertadora, que

serão militantes da libertação real, concreta, da variadas formas e estruturas de

dominação. Entre elas está a dominação cultural. Para desvencilhar-se desta, é

fundamental que não se debata questões abstratas, genéricas, mas a partir da vida das

pessoas e das contradições presentes em seu dia-a-dia.

A dimensão cultural da dominação tem como um dos eixos centrais a negação da

palavra ao povo, a este é negada a palavra, a articulação crítica desta, o povo aprende

desde cedo que os “doutores” são os detentores do saber, do conhecimento e não há

diálogo entre a elite e o povo, mas uma relação desigual, de mando.

Quando a esquerda que “conscientizar” o povo, quer que ele aprenda as

contradições da realidade, que ele é explorado por um patrão, que o mundo é construído

para pobreza, que esta não é uma fatalidade, normalmente a relação com o povo

novamente é uma relação de dominação entre uma esquerda que “conhece” a realidade

e o povo que ainda não a sabe e “deve” aceitar o que a esquerda diz por que ela é sua

legítima defensora. Pois bem, Paulo Freire recusa tal metodologia denominando-a

“colonialismo de esquerda”, que seria, na verdade, uma prática de direita.

O educador propôs uma ação dialógica com as massas populares com a premissa

de que ninguém sabe mais do que ninguém, que na verdade há saberes paralelos, mas

tão complexos uns quanto os outros e que esse era um dos princípios básicos para o

respeito mútuo. Nessa ação dialógica não se deveria relacionar com o povo por sobre

sua posição, por sobre seu saber, mas construir “a partir” desta posição e “com” o povo

56 FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido; 17ªed. , Rio de Janeiro; Paz e Terra; 1987;

Page 59: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

59

uma nova posição crítica, isto é o educador deveria ajudar o educando a descobrir as

contradições de sua própria existência.

E partir de sua posição, é, sem dúvida, partir de seu mundo. Todos somos “seres-

no-mundo” e, como tal, temos uma posição no mundo, inexoravelmente, e é nessa

posição concreta com que nos relacionamos criticamente. Assim, a práxis, ação/reflexão

na realidade, se engendra a partir da vida real.

É a partir desse quadro que Freire propõe a escolha das palavras-chave e os temas-

geradores, de seu método, na realidade do educando. E considerava o envolvimento

emocional do aluno com o tema de estudo mais importante politicamente do que um

suposto de aumento da velocidade da aprendizagem da escrita57.

2. O que é humor

Humor é um termo notoriamente polissêmico. A enorme variedade de significados

dados à mesma palavra certamente nos exige um posicionamento que estabeleça em que

sentido a palavra aparece neste trabalho, de outra forma, o próprio objeto de estudo fica

descaracterizado face à sua fluidez e ausência de inteligibilidade.

Freud se debruçou extensivamente sobre essa questão, escrevendo, em 1905, o

trabalho O Chiste e suas relações com o inconsciente, em que ele trabalha

especificamente o chiste, dedicando os últimos capítulos ao humor e em 1927 vem a

obra O Humor, em que muitas teses são repetidas, ganhando apenas um refinamento

maior.

O fundador da psicanálise compreendeu o humor como um mecanismo de

economia psíquica, como instrumento catártico em que se “descarregava” energias

psíquicas negativamente acumuladas com a dor, sofrimento, etc., invertendo a lógica e

polarizando sentimentos. Para Freud:

O humor pode ser considerado uma das funções de defesa que, diferentemente da repressão, encontra um meio de despojar de energia a esperada produção de desprazer convertendo-a em prazer. Freud acredita que tal processo se torna possível pela sua conexão com o infantil . Ou seja, a comparação efetuada pelo sujeito de seu eu adulto com seu eu infantil, ao

57 FREIRE, P. Pedagogia da Esperança; São Paulo: Cortez; 1992;

Page 60: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

60

minimizar os sentimentos deste como se estivesse a dizer: ‘“sou mais forte, sou superior a essas adversidades!’58

Este estabelece, deveras, também uma distinção entre o humor, a ironia e o chiste,

embora todos provoquem o riso, os meandros estilísticos dos mesmos lidam com a

mesma realidade, mas de uma forma diferente. Para Freud, o humor se apresenta como

uma superação desdenhosa de uma situação difícil, crítica, se conforma a partir da

relação de contrários e a supera com traços de rebeldia. Neste último aspecto é que se

dissocia, por exemplo, do discurso de um sábio sobre a superação das adversidades, na

rebeldia, que não se diferencia necessariamente pelo conteúdo, mas pela forma, o

próprio ângulo com que o humor se aproxima da realidade é um ângulo distorcido.

É justamente na grandeza e na exaltação que o humor se distancia do chiste e do

cômico. Este se apresenta como tal, independentemente de um interlocutor mediador e

aquele, o chiste, aparece quando um interlocutor subverte a realidade em uma frase

normalmente de desdém, negativa, mas com tal efeito que não é tomada como ofensa,

mas como pilhéria, e quem ri, faz porque o sentimento em acordo com essa inversão já

estava presente em si mesmo e é liberado pelo efeito catártico do riso59.

Para Pirandello, o humor também se distingue do cômico, do burlesco, sátira,

caricatura, farsa, do grotesco e mesmo da ironia. Enquanto a contradição é elemento

essencial do humor, ela aparece de modo fictício na ironia, na narrativa em que se diz

algo para que o inteligido seja outra coisa que não o efetivamente dito, o significado real

da ironia se dá pelo tom e pelo contexto.

Mesmo Pirandello admite que não haja uma definição exata para humor, há

elementos humorísticos que se apresentam em alguns autores e não em outros, chega a

se perguntar se não há humor, mas tão somente humoristas. Mas não se centra nesse

tema, preferindo pensar o processo de criação do humor. O processo de criação

humorística é íntimo e característico, fundado no que Pirandello chama de “Sentimento

do contrário”, mas que não se firma por oposição a determinado ponto, mas

teimosamente contra e por sobre tudo.

58 LIMA, Denise Maria de Oliveira, op.cit.; p. 27; 59 Ibid;

Page 61: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

61

São três as características principais que Pirandello remete ao humor: 1) as “obras

humorísticas são descompostas, interrompidas, entremeadas por contíguas digressões e

despertam uma associação por contrários”; 2) a criticidade da obra de humor, o

humorista é um crítico sui generis, fantástico, no sentido estético da palavra; 3) a última

característica é a necessidade de intimidade de estilo, nesse sentido é que o humor se

contrapõe à retórica, cuja principal característica é a pomposidade na forma60.

Winnincott tem uma posição diferente acerca das dissociações no interior da

psiquê, ao invés de um ego, um id e um superego61, há, para este autor, um self e um

falso self, embora utilize algumas vezes as divisões clássicas de Freud com finalidade

instrumental. Winnicott descreve um fenômeno que tem o curioso nome de “Orgasmo

do Ego”, diferente do “Orgasmo do Id”, correspondente ao gozo sexual. O “Orgasmo do

Ego” corresponde um insuflamento do eu estimulado pelo ato de soma cultural, de

conhecimento. Assim aparece o humor, como algo que dá prazer, portanto, que

promove um “Orgasmo do Ego”62.

O último teórico cuja visão sobre o humor nos debruçamos é Bergson, autor do

clássico Le rire. A idéia básica de Bergson é a da vida como algo extremamente

dinâmico. O francês pensa a realidade com duas tendências paradoxais, uma tendência

ao movimento, à dinâmica, tendência em acordo com as necessidades da humanidade.

Mas há também uma tendência à fossilização, ao enrijecimento em determinado estágio

da realidade. Essa tendência ao conservadorismo, ao enraigamento é, para Bergson,

absolutamente inadequada. Nesse sentido é que Bergson pensa o humor. O pensador

francês atribui uma função social ao humor, qual seja a de escarnecer e

consequentemente inibir a tendência à fossilização, rimos do que é inadequado, do que

não serve para a humanidade como que para escarnecer do que apresenta um

comportamento não dinâmico para que o mesmo fique inibido a tornar a fazê-lo.

60 Ibid; 61 Na psicanálise clássica, elaborada por Freud, a psique aparece dividida em três entes, o Id, que representa nosso ser instintivo, ligado às pulsões humanas, sobretudo à sexualidade; O Ego é o eu, a consciência dividida entre as pulsões do Id e do controle do Superego, que é a figura introjetada do pai, da autoridade, que pressiona o Ego em prol do respeitos da regras sociais e morais; 62 BOGOMOLETZ, Davi Litman; Freud, Winnicott e o Humor; Publicado em Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 47; nº 1; Rio de Janeiro; 1995;

Page 62: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

62

Um exemplo dado pelo próprio autor de tal teoria é o de uma pessoa que tropeça

em uma pedra, a vida exige que, ao andar, haja cuidado com os obstáculos, que se drible

os mesmos. Andar, assim, não se constitui como um desenrolar mecânico de pernadas,

uma após a outra, mas um exercício dinâmico em que se exerçam os sentidos e se

estabeleça numa relação dinâmica e dialética com a trajetória a ser percorrida. Assim,

rimos do indivíduo que tropeçou, inibindo a repetir o mesmo comportamento rijo,

impelindo-o a um comportamento mais “adequado” socialmente63.

Depois de analisarmos alguns dos principais teóricos do humor, aproveitamos para

expor uma disposição geral que engloba as teorias sobre o humor em três grandes

grupos, que não são rigidamente separados, havendo autores que transitam em mais de

um desses grupos fazendo com que os mesmos apareçam mais como três vetores das

teses propostas para a explicação do fenômeno do humor do que como teorias

propriamente ditas, como aqui aparece grafado. Desta feita, apresentamos esses três

vetores como teorias abrangentes, servindo esta separação como ferramenta para o

pensamento, para clarificação de alguns dos principais argumentos que tangem a

questão do humor:

a. Teorias da Superioridade:

Teoria da qual provavelmente Thomas Hobbes (1588-1679) é fundador, o qual

dizia que o riso é um tipo de glória repentina, propondo o riso como atitude de escárnio,

que se tem por sobre os erros alheios ou de si, do próprio passado, ou como proposto

por alguns psicanalistas, no próprio interior da psiquê, o superego se relaciona com o

ego como uma criança que fez algo de errado, assim, a atitude de escárnio é do próprio

superego para com o ego.

Tal teoria tem interfaces com o pensamento de Freud e Bergson, que pensa o riso

como instrumento de defesa contra a tendência á rigidez humana, a defesa social contra

os excêntricos que se recusam a se adaptarem à sociedade.

b. Teorias da Incoerência:

63 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Page 63: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

63

Kant defendia que o humor surge da “transformação repentina de uma grande

expectativa para o nada”. Isso envolve a sugestão de que o humor consiste na dissolução

violenta de uma atitude emocional.

Esta teoria baseia-se na simples idéia de que o humor surge de dois elementos

incoerentes em sua relação, contraditórios. Na esteira dessa questão Spencer afirmou

que esse encontro de contraditórios que provoca o riso segue a fórmula da “Incoerência

descendente”, em que se passa de algo solene, respeitável, bruscamente, para uma

afirmativa trivial ou obscena, gerando uma frustração da energia nervosa acumulada

para a seqüência solene do falado e que, sem possibilidade de “adequada” utilização é

“descarregada” na forma do riso. Tese que se apropria do instrumental freudiano, no

que concerne á idéia do riso como catarse e indo para além e em outra direção do

mesmo.

c. Teorias do Alívio:

Como o humor questiona as exigências sociais convencionais, ele pode ser

encarado como um fornecedor de alívio da restrição que essas exigências impõem.

Assim, o pressuposto básico desta teoria, ou do conjunto de teorias que compõem este

grupo de teorias é a idéia de que a regulação moral societária, que se manifesta nos

níveis público e privado, gera uma opressão, uma restrição que se concretiza

socialmente nos códigos morais societários e em nível individual, no interior da psiquê,

através do superego, a figura relacionada ao pai, à autoridade interna que vive a

relembrar, de fazer ressoar na psiquê as exigências sociais.

Esta questão leva à conclusão de que nossa própria censura dificilmente permite

um comportamento que se oponha de modo frontal às exigências sociais. Mas tão

somente é possível fazê-lo obliquamente. Isto é, a censura só permite uma “resistência”,

oposição aos valores sociais vigentes de modo dissimulado, não se passando

necessariamente por sobre algo ou alguém, mas simplesmente burlando convenções e

aliviando-se da constante e onipresente opressão social64.

64 SILVA, Nilson Roberto Barros da; Um estudo sobre a recepção do humor traduzido; Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará; Fortaleza – Ceará; 2006;

Page 64: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

64

2.1. Conceituando humor

Pois bem, não se deve jamais esquecer que este é um trabalho científico e, como

tal, deve se submeter aos critérios de cientificidade. Não poderíamos trabalhar com o

conceito de humor a partir de definições de dicionário, muito distante da complexidade

aqui exigida. Sequer poderíamos passar desapercebidos face à milenar reflexão acerca

do humor. Foi fundamental a explanação do panorama histórico açambarcando as várias

concepções sobre o mesmo fenômeno, o humor, para que pudéssemos nos posicionar

criticamente nessa questão, fugindo às persistentes ambigüidades que povoam as

produções humanas, e encontrando uma definição para o conceito de humor que fosse

tanto precisa, fugindo às polissemias, quanto funcional para este exato trabalho aqui

apresentado.

Para análise de um fenômeno tão amplo quanto aquilo que leva ao riso, os autores

aqui estudados separaram a questão em diversos gêneros estilísticos, de montagens de

linguagem (escrita ou pictórica) para fins de análise. No trabalho que aqui propomos,

cabem os variados “tipos” de humor apresentados, fazendo-nos pensar em como se pode

enredar essas montagens em questionamentos matemáticos em esquemas que fazem rir.

Deste modo, quando nos referimos a humor, entenda-se por tudo aquilo que

provoca o riso, açambarcando os diversos formatos lingüísticos e com diversos

enquadramentos “metodológicos” da exposição de determinada situação humorística,

cujas subdivisões nos interessam, e seguem:

2.2. Formatos Humorísticos

Pensamos alguns formatos como possíveis de aparecer nos livros didáticos com

finalidade instrutiva no ensino de matemática. Esses formatos não são novos ou

originados para a didática, mas são formatos comuns, já utilizados para a construção

humorística usual e que são subvertidos por aqueles que se apropriam dos mesmos para

a didática.

O humor em si não se enquadra em nenhuma regulação de valores, se limita a

provocar o riso, que pode tanto ser encantamento com a ingenuidade infantil, quanto

escarnecimento do mórbido, como no assim chamado “humor negro”. O humor pode

ser instrumentalizado tanto para a reprodução de posições políticas específicas quanto

Page 65: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

65

na disseminação de preconceitos. De modo que devemos pensar o humor como um

veículo, mas que interfere também no conteúdo, na medida em que admitimos que a

forma seja forma do conteúdo e que o conteúdo é o conteúdo da forma, sabendo que

ambos se influenciam mutuamente.

Pensando na realidade de ausência de valores intrínsecos à representação do

humor, chegamos à conclusão de que podemos utilizá-lo de variadas formas, nos

servindo de diversos formatos para tal tarefa. Limitaremo-nos aos formatos mais

corriqueiros: o cartum, a charge, o chiste, os quadrinhos e a narrativa simples.

Para nos lançarmos à tarefa de pensar a utilização desses elementos no ensino de

matemática, cabe nos informarmos minimamente acerca dessas linguagens e suas

respectivas particularidades.

O cartum

Comecemos pelo cartum. A palavra original que designa a referida linguagem

cartoon, com o significado que hoje tem, nasceu em 1841, na revista inglesa Punch,

considerada a mais antiga revista de humor de todo o mundo e em muitos países

mantêm a grafia original do inglês. No Brasil, porém, Ziraldo, na revista Pererê, lançou

o neologismo cartum em 1964, que se consolidou.

Os cartuns são tira horizontais ou verticais, que se dividem em dois ou três

quadros, normalmente, mas que também pode aparecer em um só quadro ou mesmo

esticar-se a quatro e que contêm desenhos humorísticos, com ou sem falas, reforçando e

complexificando o conteúdo dos desenhos.

Os cartuns se referem a coisas genéricas, sem significação ligada a um fato

específico, mas tratam de situações reais ou imaginárias autônomas.

Os cartuns são os elementos, entre os listados, que mais aparecem em livros

didáticos, devido à sua brevidade, pois ocupam pouco espaço e são rapidamente

inteligíveis, além de sua complexidade, pois podem articular representações pictóricas

com uma mínima narrativa, enredando alguns poucos balões com falas dos personagens

e as significações dos desenhos. E ainda, por sua autonomia, que não requer

Page 66: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

66

conhecimento prévio dos alunos acerca de personagens ou acontecimentos anteriores

ligados à tira65.

A charge é muito semelhante ao cartum, também é uma tira de um, dois ou três

quadros humorísticos que podem, ou não, conter falas, cuja única diferença do cartum é

que a charge não guarda autonomia.

Na charge, os elementos constitutivos estão inexoravelmente ligados a um fato

real, histórico e, para sua adequada inteligibilidade, exige do sujeito da leitura, um

conhecimento prévio da realidade dissimulada. Para fortalecer os laços com a realidade

com que guarda vínculo, a charge se utiliza sobejamente de símbolos característicos de

determinado grupo ou pessoa, abusa nos estereótipos e lança mão da caricatura.

A caricatura é um desenho humorístico de uma pessoa, em que seus traços mais

salientes são maximizados, criando um desenho absolutamente diferente de qualquer ser

humano real, mas imediatamente vinculado a um personagem concreto.

Nos livros didáticos de história, esse recurso é de valia extraordinária, porém, no

ensino de matemática, sua utilização é limitada.

A charge, no ensino de matemática, pode remeter a situações de questionamentos

matemáticos, isto é, problemas, que se sucederam com personalidades históricas, mas

principalmente ilustrar fundadores de diversas teorias, fórmulas e quaisquer outras

propostas no campo da matemática e cujos dilemas fundamentais são importantes para a

compreensão das conclusões de seu pensamento66.

O chiste

O chiste é uma representação que aparece pontualmente no auxilio à didática e se

resume a uma frase que subverte a realidade, apreendendo um ângulo fora dos padrões

societários, mas cuja significação é, de antemão, compartilhada pelos pares, ainda que

inconscientemente. É esse a priori da significação subversiva latente que provoca o riso

quando desvelada pelo proponente do chiste. Não há chiste sem um intermediário, um

formulador.

65 SILVEIRA;Márcia Castiglio da; A produção de significados sobre matemática nos cartuns; Extraído no Portal da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED, em 05/06/2007, no endereço http://www.anped.org.br/reunioes/24/T1379507291582.doc. 66 Idem;

Page 67: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

67

Como Freud foi o principal formulador da teoria do chiste, apresentamos como

exemplo, uma situação que se conta ter acontecido com o próprio. Freud formulou a

teoria dos objetos fálicos, para ele, a atração das pessoas por objetos que se aproximam,

imageticamente e tatilmente ao formato de falo, ou seja, formato cilíndrico, tem relação

com os anelos infantis ligados diretamente à sexualidade.

Conta-se que alguns jovens de uma universidade alemã em que Freud dera uma

aula durante o dia sobre a teoria dos objetos fálicos saíram à noite e encontraram o

professor insone, na varanda, fumando um charuto, todos se entreolharam e Freud saiu-

se com essa:

“__ Tem momentos rapazes, em que um charuto é só um charuto.”

Os rapazes riram muito. Mesmo que a correlação não tivesse sido conscientemente

feita de antemão por quaisquer dos mesmos, seu significado era latente e desvelado pelo

proponente do chiste, provocando o riso.

Devido à falta de complexidade, o chiste é de difícil instrumentalização per se no

livro didático, pode surgir discursivamente de forma isolada em um balão para destacar-

se do desenrolar explicativo do livro didático ou mesmo com um travessão, indicando a

fala de um personagem e, possivelmente, em itálico, fugindo da tabulação convencional.

Entretanto, o chiste aparece mais como gênero, nos demais formatos aqui

elencados, por exemplo, uma charge pode representar dois personagens, sendo que o

recurso ao humor se dê pela proposição de um chiste por parte de um deles67.

O quadrinho

Os quadrinhos nasceram ligados ao gênero do humor, por isso receberam o nome

de comics no mundo anglófono. Porém, depois da década de 30 do século 20, ganhou

expressões policialescas, de aventura, romance, ganhando diversidade.

Os cartuns são tiras pequenas, uma seqüência mais extensa dessas mesmas tiras é

considerada uma peça de quadrinhos, mas uma peça de quadrinhos não pode ser

considerada como um cartum extenso. Isso porque o cartum é uma forma que pressupõe

de antemão um gênero, o do humor. “Já os quadrinhos são um formato, ‘história em

imagens”, “narração figurativa”, não há um termo conclusivo que açambarque a

67 LIMA, Denise Maria de Oliveira, op.cit.;

Page 68: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

68

complexidade de um roteiro icônico carregado de significado enredado com um roteiro

narrativo-discursivo em que se enlaçam personagens e, eventualmente, um narrador e

que pode conter trechos em 1ª e 3ª pessoas. Mas o fato é que, como já visto, os

quadrinhos não constituem um gênero, mas são utilizados como mecanismo

comunicacional pelos diversos gêneros, policial, aventura, ação, entre muitos outros,

além do humor68.

A narrativa simples

A narrativa simples é assim apresentada aqui, não porque não possua

complexidade, mas para se diferenciar daqueles formatos em que a complexidade é

especificamente garantida por meio da relação entre escrita e representação icônica.

Charges, cartuns e quadrinhos também apresentam narrativas, mas a narrativa da

qual neste momento tratamos se despe do mecanismo icônico e se arma da língua

“pura”, operando em níveis de complexidade altíssimos.

Na matemática brasileira, uma figura indubitavelmente proeminente nesse assunto

é o romancista Malba Tahan, autor do grande sucesso O Homem que Calculava,

romance que conta a história do calculista Beremiz, que se enreda em situações de

desenlace matemático.

Na medida em que o livro didático tem séria restrição de espaço, fica impedida

uma narrativa mais longa, aparecendo de modo resumidíssimo nos problemas, mas

quase nunca com humor. Pensamos ser possível a apresentação de problemas em

narrativas com humor, e que englobe os questionamentos ou mais de um problema e

utilizando menos de meia página.

3. Pensando concretamente a utilização do humor no ensino de matemática

A partir do começo da pesquisa, passamos a lidar com cartuns, charges, chistes,

quadrinhos e narrativas que aparecem em diversos veículos, alguns propriamente de

68 QUELLA-GUYOT, Didier; A história em quadrinhos; tradução de Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral; São Paulo: Unimarco Editora; São Paulo; Editora Loyola; 1994; (Coleção 50 Palavras), p. 70 – 71;

Page 69: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

69

ensino de matemática, ainda que não constituam um livro didático, mas também outros

tipos de veículos, como jornais e sítios que publicam charges e cartuns. De tal forma

que, para analisarmos, selecionamos um total de 4 cartuns assim como um trecho

narrativo de autoria de Malba Tahan, que consta no livro O Homem que Calculava, por

entendermos as referidas peças como as mais adequadas para tal tarefa.

Lembrando, porém, que nosso intuito no presente trabalho não é a produção de

representações de humor, de modo que o fato de não trazermos aqui quadrinhos,

charges e quaisquer chistes não nega que os mesmos sejam instrumentos interessantes

no ensino da matemática e nem sequer que escolhemos a esmo os objetos de análise.

Pelo contrário, demonstra que tivemos cuidado na escolha das representações

trazidas a esse artigo, mas diante da exigüidade de representações do tipo aqui

analisadas, foi impossível trazer uma peça de cada formato, ficando então as

considerações sobre o uso dos formatos que não aparecem na parte das análises no

limite do possível, isto é, no âmbito da reflexão teórica e derivada dos formatos

estudados, o que não torna inválida a reflexão.

Comecemos então por pensar o que não fazer ao trazer o humor para o ensino da

matemática. Para tal tarefa, convocamoso a ajuda de Márcia Castiglio da Silveira, da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, autora do artigo A produção de

significados sobre matemática nos cartuns, de 2007, em que são analisadas algumas

peças que reproduzem o senso comum acerca da matemática:

Figura 1. Cartum situação matemática; 69 Tradução: Quadro 1 – Chip, pode me ajudar com esta matemática? Peça para mãe

69 Apud SIVEIRA, op.cit. p. 13;

Page 70: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

70

Quadro 2 – Peça para seu pai Quadro 4 – Sim?70

A questão central do cartum acima apresentada é uma tensão vivida pela

menina que tem “algo” de matemática para resolver e que se agrava por não encontrar

quem lhe ajude. No quadro 1, a protagonista recorre ao irmão, visivelmente mais velho,

este grau de parentesco é sugerido por que o mesmo aconselha a protagonista a recorrer

à mãe. Pela posição do irmão mais velho, caneta na mão e a folha de papel sobre a

mesa, ele está ocupado, muito provavelmente estudando, sequer olha o papel

apresentado pela menina, sem tomar conhecimento de qual é sua deficiência. No quadro

2, a mãe olha o que tem na folha, diferentemente do irmão, e aconselha a filha a ir ao

pai. Assim, tendo a mãe examinado o conteúdo da folha, Silveira pensa que nos restam

duas alternativas, ou a mãe não sabia ajudar a filha naquela específica questão ou estava

ocupada demais para isso, entendemos que a primeira hipótese é a única válida, isto por

que o fato de olhar, analisar a questão, compreende uma disponibilidade da ajuda, a

mensagem dada pela análise é que a recusa se dá em função do conteúdo da folha.

No quadro 3, a menina fita o pai, que dorme no sofá enquanto o jornal está ao

chão — ficando claro que o mesmo dormiu enquanto lia — não chega a lhe pedir ajuda.

Aqui também destoamos de Silveira que entende que tal quadro “não nos permite

concluir se o pai teria como lhe ajudar”, pois embora reconheçamos a não

conclusividade da análise, o quadro sugere um indivíduo preguiçoso, físico e

mentalmente, pois enquanto estão todos acordados, somente ele está dormindo e mais, o

fez enquanto lia, demonstrando displicência com a leitura, atividade intelectual

presente.

No quadro 4, mostra a menina, já no período noturno que, sem encontrar

ajuda em casa recorre ao vizinho. O desenlace da situação é dado com o que diz o

vizinho: sim? Essa última pergunta encerra o argumento: a menina não consegue quem

lhe ajude, isto é, alguém que saiba matemática. Como o vizinho faz a pergunta usando

uma palavra afirmativa, podemos pensar que ele, enfim, vai lhe ajudar, embora nos falte

elementos para confirmar essa idéia.

70 Ibid;

Page 71: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

71

Silveira conclui afirmando que “De qualquer forma, sendo ou não resolvido o

problema pelo vizinho, na seqüência apresentada, fica dito que é difícil encontrar

alguém para ajudar com a tarefa de Matemática”. Diríamos ainda mais que ao encontrar

uma possível resolução de sua angústia no vizinho dá-se a produção do significado da

matemática como o extraordinário, no sentido mais estreito, isto é, como aquilo que só

pode ser encontrado fora do ordinário, da vida comum.

Para encerrar a parte “do que não fazer”, recorremos a um outro cartum

apresentado por Silveira:

Figura 2 – cartum situação matemática71;

Nesse outro cartum, vemos que o aluno tem conhecimentos e habilidades, alguns

deles citados e outros subentendidos pelas reticências ao final da lista. Na primeira

imagem, o menino com pasta na mão direita e um pé à frente indicando o movimento de

andar, enquanto caminha para a escola, tem sua expressão facial de satisfação ao pensar

71 Ibid, p. 14;

Page 72: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

72

sobre seus conhecimentos. Sua segunda imagem já o mostra posicionado em sua

carteira e com expressão facial séria. Neste momento, lhe é feita a pergunta: “você sabe

o que é uma SOMA?” (note-se a palavra soma em tamanho maior e mais espessa); ele

rebate: “uma soma?” Sua terceira imagem é de choque por não ter a resposta que sobre

ele parece pesar.

Na última imagem, o aluno aparece completamente oprimido sobre a carteira por

um balão em forma de martelo que contém a resposta à temida pergunta. No balão em

forma de martelo, as linhas verticais sobre ele indicam movimento nesse sentido e as

linhas curtas e curvas abaixo indicam impacto, como se a resposta fosse uma martelada

sobre ele. O formato desse balão mais a direita indica que quem está falando está

naquela direção. Pela posição do aluno e sua carteira só podemos concluir que a fala é

do/a professor/a. Nessa última fala, encontramos o vocábulo “bla” repetidas vezes, o

que nos dá a idéia de uma longa explicação, algo chato, fastidioso e incompreensível.

Há ainda um formalismo na explicação que pode ser notado se suprimirmos o vocábulo

“bla”: “uma soma é o resultado da operação de adição que do ponto de vista

matemático...”

Por que é atribuído aos conhecimentos matemáticos um valor maior do que aos

outros conhecimentos como os que o menino cita logo no início? Que relações de poder

e de saber existem entre professor/a e aluno para que a explicação sobre o que é uma

soma lhe pareça uma martelada? Por que ao ir para a escola o menino vai alterando sua

expressão facial, ficando mais sério, triste, assustado? Por que a matemática vai sendo

constituída como um saber complexo, tedioso, maçante e os/as alunos/as, se não são

incapazes, tem ao menos muitas dificuldades de aprendê-lo? Como isso reflete nas

ocasiões de prova?

O que temos observado nos momentos de exame de muitos cartuns são

personagens estressados, apavorados, desgastados, tendo delírios, alucinações,

pesadelos, dores... tudo muito marcado negativamente.

Isso é o senso comum sobre a matemática e, como senso comum, é muito difícil

de ser questionado, pois seu significado está arraigado e a predisposição negativa face à

disciplina por parte dos alunos é algo muito forte e dificulta qualquer aproximação que

Page 73: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

73

vise o conhecimento e que gere um conceito que se oponha ao pré-conceito

estabelecido.

3.1. Desconstruindo o Senso Comum

É exatamente nesse sentido que se apresenta nossa reflexão, como mecanismo de

aproximação do aluno dos conteúdos e da lógica matemática, num duplo processo. São

duas as estratégias básicas:

A primeira é a estratégia do interesse. Ao se apresentar os conteúdos de

matemática na linguagem do humor, utilizando recursos engraçados, normalmente

acompanhados de peças pictóricas, entendemos que nos aproximamos do interesse do

aluno.

Podemos pensar tal aproximação, como uma ação dialética em que observa o que

o aluno gosta para criar estratégias de diálogo, o humor é uma delas. Não é difícil

observar a proximidade do aluno com a linguagem humorística de abordar a realidade,

basta ficar junto aos mesmos ou observar as conversas em sala de aula para perceber

que a lógica do engraçado permeia decisivamente seu universo. Mas caso queiramos

uma demonstração mais objetiva, bem ao gosto dos mais científicos, basta recorrer á

lista de filmes infantis mais assistidos no ano, na semana, ou mesmo toda a lista de

filmes infantis lançados para perceber que o humor é o fio condutor de todos eles, ou

quase.

Isso nos leva a pensar no que propunha Paulo Freire, quando este apontou a

necessidade de se trabalhar com a realidade do educando, estimulando o mesmo a

realizar por si, o processo de cognoscência da realidade. Evidentemente o pensador

brasileiro estava se referindo a “realidade objetiva”, ligada ao universo de vida e

trabalho do educando.

Mas o mesmo educador insistentemente repetiu que não formulara um método,

mas antes uma filosofia da educação, que tinha como pressuposto a dúvida, a superação,

sua filosofia enquanto teoria era para ser superada, caso contrário haveria falhado

vergonhosamente.

Nessa perspectiva, recusando toda a pecha de arrogância teórica, entendemos que

a reflexão aqui presente alarga a compreensão freireana na forma em que pensa a

Page 74: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

74

questão da realidade do aluno, objeto central de sua própria educação. Em Freire, esta

realidade aparece como conteúdo, isto é, o conteúdo a ser trabalhado deve ser aquele

extraído da realidade do educando, formando temas geradores.

Nosso trabalho reflete não a aproximação com conteúdos presentes na realidade

do educando72 mas a aproximação com uma ótica mais próxima do universo infanto-

juvenil, cujo fio condutor é o humor, presente nos desenhos, filmes, programas e nos

diálogos dos alunos. Essa reflexão não é totalmente nova no universo freireano, uma

vez que Paulo Freire insiste que o educador não deve propor seu conhecimento por

sobre o educando, não deve partir de um ponto acima do mesmo, impondo-lhe uma

lógica para pensar sua própria realidade. Pelo contrário, o proposto por Freire é partir da

condição do educando superando com ele sua condição, em que há um jogo de

estímulo/reflexão crítica entre educador e educando.

No entanto, quando tratamos nosso objeto, não é possível aplicar mecanicamente a

afirmação anterior de Freire, mas dialogar as afirmações como as anteriores com a

possibilidade de utilização de um gênero mais apreciado pelos adolescentes no ensino

de matemática, o que necessita de uma análise mais atenta e uma reflexão sistemática.

Assim, nossa proposta se resume em aproximar-se mais da realidade subjetiva do

educando, através de uma ótica específica de encarar a realidade, a ótica do humor,

mediada pelos formatos apresentados anteriormente.

Nesse sentido é que nossa reflexão se faz válida, no encarar a matemática na ótica

do humor, mas com a vigilância crítica aguçada, pois não se pode trabalhar com

qualquer abordagem da matemática pelo humor. Como demonstramos, o humor não

comporta um valor específico, mas uma lógica que pode tanto nos servir de amparo,

como reproduzir pré-conceitos como o de que a matemática é uma disciplina para uns

poucos iluminados, não ordinária e aterrorizante.

Passemos então, de modelos negativos de representação da matemática, para os

exemplos positivos:

72 Não negamos a necessidade de a matemática se pautar em situações reais, práticas, do aluno. Porém, há muitos trabalhos nesse sentido e esse não é nosso foco;

Page 75: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

75

Figura 3 – tirinha matemática - Piratas do Tietê - Laerte73

O cartum publicado na folha de São Paulo é um exemplo de abordagem

humorística da matemática. Embora as aventuras dos personagens sejam seriadas, não

há necessidade de conhecer as tiras anteriores para compreender o humor na presente

tira. Como vimos, essa é uma das características principais do cartum, a autonomia, não

há necessidade de referenciais externos para a compreensão da mensagem de

determinado cartum

No primeiro quadro, o Gato pai, vestido com asas, como um herói ao estilo

Batman, reclama de ter sido feito de palhaço por Morpheus, que posteriormente será

esclarecido como vilão da trama. Como o Pai aponta que o vilão o fizera de palhaço

“outra vez”, o filho recorre à exatidão numérica afirmando que “em 39 duelos...” e

continua no quadro 2, classificando a maneira com que seu pai perdeu para o vilão e

mais, calculando o percentual representado por cada tipo de derrota. No terceiro quadro

o pai tenta extrair um sentido moral, característicos das histórias de heróis, em que o

vilão perde, da inversão dessa tabela, posto que nessa história o vilão sempre vence e se

pergunta “O que se espera que uma criança aprenda com isso??”, ao que é respondido

pelo filho no quadro 4: “Estatística”.

Essa contradição entre a formalidade percentual e as classificações esdrúxulas das

derrotas em que o pai foi feito “de palhaço”, “de bobo” e “de trouxa” provoca o riso.

Além de aplicar uma operação matemática a uma situação participante da realidade

subjetiva da criança, as histórias de heróis, tal coisa é feita a partir de uma ótica, uma

73 Folha de São Paulo 18/08/1999

Page 76: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

76

abordagem mais próxima da infanto-juvenil, o humor. O quadro 2 também permite que

o professor trabalhe com outras variações percentuais, isto é, propondo que se imagine

números diferentes de vezes em que o pai fora feito de “Palhaço”, “Bobo” e “Trouxa” e

solicitando recálculo percentual. Assim, o cartum pode também se apresentar como

problema e não somente como situação resoluta.

Nesse caso específico, em que se pode ver que a riqueza de detalhes do cartum é

desproporcional ao tamanho de sua publicação, isto é, para ser desenhado com tal

riqueza de detalhes, esse cartum deve ter sido feito em tamanho maior e depois reduzido

ao espaço disponibilizado pelo jornal. Isso nos leva a refletir sobre a possibilidade de

utilização do cartum em si, ou seja, não seu conteúdo narrativo-pictórico, mas sua

formatação, como elemento de reflexão na escola, o professor pode trabalhar com este

cartum, aproveitando-se da relação afetiva que os alunos desenvolvem com sua

significação para fazê-los se envolver com seu processo produtivo. A partir dessa

lógica, é possível considerar questões como escala, que se desdobra inexoravelmente à

questão da proporcionalidade, entre outros.

Figura 4. Texto no cartum: “Ei, ei! Mais devagarinho! A senhora ontem disse que X era

igual a 2!!”74

74 http://alexandramat.blogspot.com/, O Lado Divertido da Matemática: Ver a Matemática com outros olhos.

Page 77: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

77

O cartum explora a contradição entre X, letra, e sua relação com a matemática nas

várias equações. O aluno faz uma pergunta básica, que parte de um pressuposto da

matemática de que um número é sempre ele mesmo. Mas a pergunta não se dirige a um

número, mas uma letra que representa uma variável e que, dependendo dos termos do

problema, representa valores diferentes.

Decidimos trabalhar com o cartum acima porque ele apresenta uma dúvida básica,

comum, cujo entendimento deficitário pode trazer prejuízos adiante ao educando. Nesse

sentido, o cartum aparece como um elemento para chamar atenção à adequada resolução

de tal dúvida, atuando no educando, para que o mesmo dirija atenção à questão e ao

professor, que não pode projetar seu próprio grau de abstração no aluno, ainda em fase

de construção de sua capacidade de abstração, nos termos das fases cognitivas propostas

por Piaget e apresentadas no início deste trabalho.

Apresentamos em seguida uma narrativa, acima descrita como narrativa simples,

de Malba Tahan e constante no livro O Homem que Calculava75.

Encontramos perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos.

Por entre pragas e impropérios gritavam possessos, furiosos: - Não pode ser! - Isto é um roubo! - Não aceito! O inteligente Beremiz76 procurou informar-se do que se tratava. - Somos irmãos – esclareceu o mais velho – e recebemos como

herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e, ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos, e, a cada partilha proposta segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio. Como fazer a partilha se a terça e a nona parte de 35 também não são exatas?

- É muito simples – atalhou o Homem que Calculava. – Encarrego-me de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da

herança este belo animal que em boa hora aqui nos trouxe! Neste ponto, procurei intervir na questão:

75 TAHAN, Malba; O Homem que Calculava; São Paulo: Círculo do Livro; 1983; p. 11-12; 76 Nota nossa; Beremiz é um calculista, protagonista do livro de Malba Tahan, que estava viajando no deserto em um só camelo, juntamente com o narrador, Bagdali, quando encontrou os demais personagens da passagem;

Page 78: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

78

- Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viajem se ficássemos sem o camelo?

- Não te preocupes com o resultado, ó Bagdali! – replicou-me em voz baixa Beremiz – Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás no fim a que conclusão quero chegar.

Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.

- Vou, meus amigos – disse ele, dirigindo-se aos três irmãos -, fazer a divisão justa e exata dos camelos que são agora, como vêem em número de 36.

E, voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou: - Deverias receber meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio.

Receberás a metade de 36, portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.

E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou: - E tu, Hamed Namir, deverias receber um terço de 35, isto é 11 e

pouco. Vais receber um terço de 36, isto é 12. Não poderás protestar, pois tu também

saíste com visível lucro na transação. E disse por fim ao mais moço: E tu jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, deverias

receber uma nona parte de 35, isto é 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, isto é, 4 O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado!

E concluiu com a maior segurança e serenidade: - Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir – partilha em que

todos três saíram lucrando – couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um resultado (18+12+4) de 34 camelos. Dos 36 camelos, sobram, portanto, dois.

Um pertence como sabem ao Bagdáli, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança!

Dentre a inúmera quantidade de passagens constantes em O homem que calculava,

preferimos trazer essa à tona por dois motivos, o primeiro é o tamanho reduzido da

mesma, portanto, contando com a perfeita factibilidade de tal narrativa no interior de

um livro didático. O segundo motivo é por essa ser uma passagem famosa, que já

ganhou versões com linguagem coloquial e que muitos conhecem e, embora tal questão

pudesse aqui ser apresentada em linguagem mais acessível, não o quisemos fazer para

amparar tal representação em um autor ilustre, demonstrando seu vigor e validade.

Page 79: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

79

Quanto à narrativa, esta por um lado perde a informação icônica, que cumpre um

papel de clarificar e compor a narrativa, mas por outro lado complexifica o significado

na medida em que abre possibilidades de imaginação para a composição imagética que

cada educando opera em sua mente.

Nesta passagem, especificamente, o humor proposto é um humor instigante,

provocante. Beremiz viaja em um só camelo com seu parceiro, Bagdáli e se depara com

um desafio matemático cuja resolução culmina em um prêmio fabuloso, um camelo, que

lhe serve muito na situação em questão. Os irmãos que brigam na partilha aparecem

confusos, Beremiz vem os salvar, mesmo diante da incredulidade de seu parceiro.

Depois de ler a narrativa, fica uma curiosidade sobre como conseguiu o calculista

que sobrasse mais um camelo, uma impressão engraçada e de questionamento que faz

voltar ao texto, compreender seus meandros e debruçarmo-nos na matemática para

tentar resolver a questão.

Recorremos a uma passagem de Paulo Freire para pensarmos mais profundamente

sobre as possibilidades de utilização da narrativa apresentada, ajudando-nos a ver o

diferencial de sua postura em face da educação tradicional:

... sua tônica [da educação bancária] reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua ‘disciplina’ é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.

Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-la, terá respondido ao desafio.

Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda77.

Pretendemos nos inserir na corrente que Freire acima denomina crítica, que

estimula o educando em uma jornada compreensiva no texto. Desprovido do recurso

imagético, o educando se vê diante de uma situação problema em que a resolução não

está prontamente dada. Infelizmente, a matemática é vista como uma disciplina de

77 FREIRE, P. op.cit. 1992; p. 16.

Page 80: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

80

problemas prontos, cujas variáveis são sempre circunstancias, nunca estruturais, e que

para sua resolução há sempre uma estante cheia de fórmulas, cabendo ao educando

somente aplicá-las, ou talvez verificar qual é a mais adequada. Assim, temos uma

equação de 2º grau “clássica”, apenas com valores diferentes (aqui lembramos o cartum

anterior, que questiona a forma mecânica dessa relação) e ao fim da mesma, sacamos

Báskhara e tudo está resolvido.

Com o mergulho na narrativa descrita propomos uma relação em que se refaz o

caminho dos grandes mestres da matemática, guardadas as devidas proporções. A

situação em que o educando é posto quando lhe é apresentada a narrativa proposta é a

mesma, pois se encara uma situação-problema, sem uma fórmula mecânica a priori a

ser exercitada, mas um exercício mental de curiosidade para decifrar a questão.

Pretendemos estimular o que Freire denominou “curiosidade epistemológica”.

Uma atitude inquieta perante a vida, em que o ato de viver se torna ato de conhecer,

realizando um cognição permanente e crítica da realidade, desvelando-lhe as aparências.

Ao promover a experiência do enfrentamento de um texto, por parte do educando, que

venha com uma pitada de humor, cuja forma é largamente conhecida e apreciada pelas

crianças e adolescentes, e de instigante resolução, que nos faz buscar o porquê, o como

se resolveu de tal forma a situação-problema narrada, estimulamos a “curiosidade

epistemológica” da criança e adolescente que, entre a reticência de Bagdáli e a

segurança impávida de Beremiz, tem muito a aprender.

Conclusão

O caminho que percorremos nesse trabalho foi o do geral para o particular. O

desafio proposto foi pensar a educação em sala de aula à luz da queda dos paradigmas

modernos, mormente de as todas as autoridades supostamente invioláveis, entre elas, a

do professor.

O questionamento da autoridade do professor corroeu as bases da educação

bancária e trouxe um grave problema à educação brasileira, um problema duplo, por um

lado a tarefa do professor é multiplicada. Cada profissional em sala de aula conhece o

estresse e o desânimo latentes nessa categoria de profissionais da educação que se vê

Page 81: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

81

vilipendiada, as aulas são muitas vezes ignoradas pelos alunos, os professores

comumente ameaçados e quase sempre frustrados.

O outro lado desse problema é tão perverso quanto o primeiro. O sistema

educacional forma ano após ano, levas imensas de analfabetos funcionais e jovens sem

preparo algum para o enfrentamento do mercado de trabalho e, ainda pior, sem

nenhuma capacitação para o enfrentamento criativo da própria vida.

Diante de tal crise propomos um elemento para contribuir na procura de uma

saída, uma mudança qualitativa na pedagogia que pudesse trazer o aluno a participar

mais das aulas, isto deveria se dar fazendo-os se interessar pelas mesmas através da

utilização do lúdico.

Haja vista o tamanho do objeto que o lúdico representaria, recortamos ainda mais

nossa reflexão, indo ao humor. Mas não antes de um capítulo discorrendo brevemente

sobre o lúdico, sua função e sua conexão com os estudos da cognição das crianças e

adolescentes.

Depois dessa caminhada até nosso específico objeto, debruçamo-nos sobre o

humor, recorrendo a alguns autores que pensaram tal fenômeno a partir de várias

perspectivas, tais como a psicanálise e a filosofia e discorremos brevemente sobre

alguns formatos que compõem um conjunto de possibilidades de fácil

instrumentalização, portanto, passíveis de se prestarem a contribuir com o processo de

ensino/aprendizagem do ensino de matemática.

Por fim, analisamos quatro cartuns e uma narrativa, no sentido de procurar nos

mesmos um potencial de contribuição no ensino de matemática. Concluímos que o

humor é um instrumento excepcional para operacionalização do professor através do

livro didático.

No entanto, temos a clara consciência da que este artigo constitui-se em uma

reflexão teórica, não se trata de um relatório de pesquisa aplicada em sala de aula, mas

de uma análise de potencialidades, que só podem ser liberadas na prática. Porém, tal

liberação não pode se constituir como uma reprodução mecânica dos apontamentos aqui

constantes, mas uma ação crítica e criativa sobre a reflexão aqui proposta.

Caso constituíssemos um manual de ensino de matemática utilizando o humor,

estaríamos contradizendo os princípios freireanos que a todo momento reivindicamos

Page 82: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

82

participar. A sala de aula é um lugar de ação/reflexão na realidade, em que a dialética

ensinar/aprender é uma constante, não há verdadeira educação sem pesquisa, sem

reflexão curiosa. Tentar construir uma cartilha do ensino de matemática com humor

seria negar a base própria do que é nossa proposta.

Assim concluímos, certos do potencial do humor no ensino da matemática e

esperançosos de que os professores e produtores de livros didáticos participem dessa

nossa visão e esperando que este trabalho possa contribuir com a sociedade como uma

faísca para acender essa questão.

Page 83: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

83

O Imaginário Bélico em García Márquez

Roseliane Saleme*

Nacimos en la guerra Somos ruedas, tornillos, ejes,

piezas de carne, máquinas dispuestas siempre a desangrarnos.

Rafael Alberti

Resumo: No presente trabalho se visa analisar o imaginário bélico que paira em obras, aqui investigadas, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. A relevância desta análise deve-se a uma nova perspectiva, a de extrair de seus escritos esse imaginário, pois toda a obra está atrelada à conjunção: mágico, fantástico, e maravilhoso, que a permeiam. O que é pinçado de cada texto permanecerá metonímica e metaforicamente enlaçado aos demais fragmentos, ambíguos alguns, porém todos, imagens bélicas dos diferentes conflitos sulamericanos implícitos ou explícitos, nas obras do autor. O jogo do não-dito, aquele que margeia o dizer, fecunda na análise e permite que essa incompletude se converta em desejo de compreensão. Igualmente, o confronto entre os personagens e as imagens fotográficas fractais permitem a construção desse imaginário traduzido no conceito metafórico, assim como as representações presentes nas obras. Palavras -chave: García Márquez. Imaginário bélico. Não-dito. Conceito metafórico. 1. INTRODUÇÃO

Este artigo nasce de uma comunicação apresentada no IV Seminário Roa Bastos de

Literatura, na Universidade Federal de Santa Catarina em outubro de 2009. Uma das

grandes proposições do encontro quiçá tenha sido abrir e desvendar os nacionalismos

literários mostrando que o fluxo e refluxo das aspirações e teorias78 e entre as várias

diferenças estéticas subjaz uma função histórica evidenciando que o caminho a ser

trilhado seja o da ruptura e continuidade79.

*Mestre em Linguística Aplicada e professora na Faculdade São Sebastião 78 UREÑA, Pedro H. Los caminos de la historia literária. In: PIZARRO; PACHECO. Aprehender el movimiento de nuestro imaginario social. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. p.69. 79 FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: Gaps, 1994. p.35.

Page 84: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

84

A complexidade e a diversidade do continente americano foi o marco para a

elaboração de um projeto investigativo por críticos e historiadores, realizado em duas

etapas, no ano de 1983 e, a proposta principal era que, com a construção de uma história

da literatura da América, se superassem as visões fragmentadas que terminam por diluir

o que cada um dos países, que fazem parte dessa literatura considera, bem como ao

submeter-se aos parâmetros europeus por aqui, ou ainda ao assujeitamento à história

política de cada um dos países, que por vezes é assemelhada.80

Buscou-se nesta investigação da obra de García Márquez, a inserção de fragmentos

dessa diversidade literária sim, porém dentro de uma unidade para proporcionar um

melhor entendimento continental pelas reflexões e dinamismo, pois o tema do

imaginário bélico incita a uma tomada de consciência não só pela heterogeneidade na

qual estamos imersos como pela proximidade física e linguística dessas literaturas.

Para construir um corpus para essa investigação tomou-se algumas obras do autor

colombiano, um dos autores mais lidos e reconhecidos do nosso continente. Consabido

nos meios literários que alguns valores apresentados em suas obras adquirem uma

realidade diversa, pois o real e o irreal aparecem em dimensões outras, e os lugares

geográficos e a própria História, são o pano de fundo real para fatos sobejamente

produzidos pela imaginação do autor.81

A seleção aleatória parte do Nobel Cien años de soledad - 1967 (doravante CAS), e

prossegue atemporal para Crónica de una muerte anunciada - 1981 (doravante CMA) ,

El otoño del patriarca- 1975 (doravante EOP), Doce Cuentos peregrinos - 1992

(doravante DCP), El General en su Laberinto - 1980 (doravante EGL) , Del amor y

otros demonios - 1994 (doravante DAOD), e os contos Un señor muy viejo con unas

alas enormes - 1990 (doravante SMV), e Un día de estos- 1968 (doravante UDE).

O objetivo desta análise, que por breve não contempla todas as entradas nas

quais subjaz o bélico e sim apresenta apenas alguns recortes, é mostrar como se

80 CÂNDIDO, Antonio et.al. La Literatura Latinoamericana como proceso. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. 81 ALBOUKREK, A.; HERRERA, E. Diccionario de escritores hispanoamericanos. Buenos Aires: Larousse, 1992. p.113.

Page 85: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

85

organizam as metáforas, melhor, os conceitos metafóricos nos quais estão inseridas as

personagens, e as expressões que vocalizam, comprovadas nos excertos. Tais excertos

são categorizados com base na teoria de Lakoff & Jonhson (1980). Por outro lado,

lançou-se mão de outra base teórica, a dos fractais, como acepção de reconstrução

fotográfica. Para tanto a teoria dos fractais para a construção do arcabouço teórico fica

por conta dos experimentos de Mandelbrot82. Esses recortes das obras e evidenciados na

análise podem ser comparados aos fractais, do latim fragere, ou seja, fragmentos que

podem ser agrupados em novas categorias para construir a partir desse, outros

universos. Há que observar não tratar-se este estudo de pesquisa de cunho filológico ou

etimológico, e sim, da organização das metáforas no plano conceitual e mental, com as

repercussões no linguístico.83 O levantamento das pistas a serem seguidas na narrativa,

que permitem levantar o processo cognitivo do conceito metafórico, foram aventadas e

explicitadas pelo próprio García Márquez nos seguintes trechos:

...La parranda pública se dispersó em fragmentos ... (Crónica de una Muerte

Anunciada p.50) ...antes de que hubiera decidido rescatarla a pedazos de la

memoria ajena... (Crónica de una Muerte Anunciada p.48)

Por outro lado, coloca-se em relevo o Estado, como aparelho repressor, mais

precisamente, um todo imaginário bélico, com a plenitude de carga que isso possa

transparecer e exteriorizar a cada passo, a cada formação discursiva das obras, dos

diversos temas de onde foram pinçadas, muitas das quais estavam ali veladas, como se

passassem ao largo da narrativa e sua presença não modificasse a estrutura do romance

ou seu desfecho.

82 MANDELBROT,Benoit. Disponível em: http://mandelbrot.collettivamente.com/mandel.cgi?imgres=320&imgres=320&infx=0.26640624999999984&supx=0.6414062499999998&infy=-0.4687500000000002&supy=-0.09375000000000022&cmap=volcano.map&fractal.x=64&fractal.y=50. Acesso em 20 de julho de 2009. 83 LAKOFF & JOHNSON. Metaphors we live by. Disponível em: http://theliterarylink.com/metaphors.html. Acesso: 4 de agosto de 2009.

Page 86: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

86

O jogo do não-dito, que margeia o dizer, fecunda na análise e converte essa

incompletude em desejo de compreensão. O confronto entre as personagens e as

imagens fotográficas fractais permitem a construção desse imaginário traduzido nas

metáforas, passando pelas metonímias, para em seguida desembocar no conceito

metafórico.

Uma breve definição de metáfora e metonímia contribui para aclarar esta proposta de

análise baseada no conceito metafórico; assim sendo define-se metáfora84 como a

translação do sentido reto de uma palavra a outro figurado, e metonímia85 como o

procedimento estilístico que consiste em designar uma coisa com o nome de outra com

a qual tem certa relação.

1. Conceito metafórico é metáfora literária?

Como explicado no parágrafo acima a metáfora trata de explicar o sentido figurado

transposto de uma coisa a outra. Por outro lado, a construção da base conceitual

metafórica surge com as pesquisas de Lakoff & Johnson86 nos anos 80 do século

passado e uma de suas premissas é a de que a linguagem é constituída por ligações

diretas entre as estruturas conceitual e fonológica, que incorpora o sistema sensório-

motor e o sistema emocional, ligando-os. O conceito metafórico é, de acordo com esses

autores, o cruzamento de mapas mentais que permitem o domínio de conceitos abstratos

para importar a maior parte de sua estrutura de inferência a partir de conceitos com base

direta no sensório-motor; assim, a essência da metáfora é entender e experimentar um

tipo de coisa como se fosse outra em uma conceituação estrutural parcial, uma atividade

se estrutura metaforicamente e por isso a linguagem se estrutura metaforicamente. As

propriedades do sistema neural constituem a base de ambos os sistemas, o conceitual e o

fonológico, e o circuito conectado neles constitui a gramática, sendo que a unidade

básica gramatical pode ser comparada a um caleidoscópio, por suas diversas facetas e as

84 Tradução minha de: “Traslación del sentido recto de una palabra a otro figurado.” (LAROUSSE:1994) 85 Tradução minha de: “Procedimiento estilístico que consiste en designar una cosa con el nombre de otra con la cual tiene cierta relación (…)”(LAROUSSE:1994) 86 LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Estados Unidos: University Of Chicago Press, 1980. p.6

Page 87: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

87

possibilidades de construções diferenciadas nas estruturas que se pode expressar.87 Eis o

que ensina Lakoff:

As generalizações que governam as expressões metafóricas poéticas não acontecem na linguagem, mas no pensamento. O ‘locus’ da metáfora não é a linguagem, mas como se conceitualizam os termos de um domínio mental com outro.88

2. FRAGMENTOS BÉLICOS CAPTURADOS

A tentativa de compor fotografias com essas obras é o que conduz aos fractais e

permite expor nesses fragmentos literários uma colagem, formando outras figuras que

provavelmente estejam voejando no imaginário dos leitores de García Márquez, ao

mergulharem na leitura de suas obras. Assim essas duas ações conjuntas, os fractais e o

sistema conceitual metafórico aparecem interligados. Indo além das afirmações de

Ortega y Gasset de que “em toda metáfora há uma semelhança real entre seus

elementos” ou ainda “uma aproximação assimilatória de coisas muito distantes”89,

amplia-se o campo dessa visão, pois o conceito metafórico é um organizador cognitivo

da linguagem.

As figuras construídas a partir dos fractais e desse sistema mental organizam-se aqui,

nas seguintes categorias, que serão elicitadas na ordem abaixo e posteriormente

explicadas com os devidos excertos:

• O tempo não marcado: O Manto Bélico sobre o Tempo;

• O tempo marcado: O Tempo Marcado no Imaginário Bélico;

87 ALVAREZ , N .A.: Razonamiento metafórico del conocimiento científico. Acción Pedagógica, nº16/Enero -Diciembre, 2007 - pp.126-135. Disponível em: http://www.saber.ula.ve/bitstream/123456789/17282/2/articulo11.pdf. Acesso em 22/setembro/2009. LAKOFF, George. As advertised: A review of The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences Artificial Intelligence 130 (2001) pp.195–209. Disponível em: www.elsevier.com/locate/artint. Acesso em 5/Agosto/2009. 88 LAKOFF, George. The Contemporary Theory of Metaphor. Disponível em: http://uchcom.botik.ru/IHPCS/MET/WebLibrary/Lakoff/The-Contemporary-Theory-of-Metaphor.html. Acesso em: 31 de julho de 2009. 89 ORTEGA Y GASSET, J. La metáfora. Obras Completas VI. Madrid: Occidente, 1952. p.257.

Page 88: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

88

• A tortura liga-se diretamente à Inquisição Espanhola: As sombras

Bélicas da Inquisição;

• O corpo humano: Bélico Corporal;

• O linguístico: Bélico submerso no Linguístico;

• A santidade: Santidade Bélica;

• As personagens: Ecos Bélicos;

É central observar nas diversas categorias e nos excertos elencados que, a guerra, as

armas, o bélico, vêm camuflados, encobertos, metaforizados por outros eventos,

portanto plenos de contradição.

Para melhor compreensão do leitor insere-se ainda uma sinopse das obras analisadas:

CIEN AÑOS DE SOLEDAD – 1967 (CAS):

Sinopse: É a história dos Buendía, a estirpe que esteve condenada a viver cem anos

de solidão. Os Buendía puderam descansar em paz quando nasceu a primeira criatura

procriada no amor verdadeiro.

CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA - 1981 (CMA) Sinopse: A morte anunciada e efetivada de Santiago Nasar para vingar a honra de uma jovem é contada num tempo cíclico.

EL OTOÑO DEL PATRIARCA – 1975 (EOP) Sinopse: Relata a vida de um ditador que morre muito velho, chegando a conservar o poder durante mais de cem anos. EL VERANO FELIZ DE LA SEÑORA FORBES - Doce Cuentos Peregrinos - 1992

(DCP):

Sinopse: Crianças ficam no verão em companhia de uma preceptora alemã contratada pelos pais para acompanhá-los nesse período.

EL RASTRO DE TU SANGRE EN LA NIEVE - Doce Cuentos Peregrinos - 1992

(DCP):

Sinopse: Um casal viaja em lua de mel da Espanha para a França e entre encontros e desencontros, surge a tragédia, a partir de um simples ferimento no dedo da recém-casada. TRAMONTANA - Doce Cuentos Peregrinos - 1992 (DCP):

Page 89: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

89

Sinopse: Uma cidade, um porteiro e um vento terrível e temido, ingredientes para a morte e a destruição. DIECISIETE INGLESES ENVENENADOS - Doce Cuentos Peregrinos - 1992

(DCP):

Sinopse: Peripécias de uma senhora em viagem a Roma para ver o Sumo Pontífice. EL GENERAL EN SU LABERINTO - 1980 (EGL) Sinopse: José Antonio de la Santísima Trinidad Simón Bolívar y Palacios, o Simón Bolivar (1783-1830), sonhou um dia com uma nação unida e independente. O General em seu Labirinto, do autor colombiano Gabriel García Márquez, conta os últimos dias desse sonho e mostra que, apesar da tuberculose, a verdadeira causa da morte do Libertador foram as mesmas cegueiras que as elites latino-americanas insistem em manter. DEL AMOR Y OTROS DEMONIOS - 1994 (DAOD) Sinopse: Jovem marquesa supostamente possuída por demônios envolve-se com o padre espanhol encarregado de exorcizá-la. UN SEÑOR MUY VIEJO CON UNAS ALAS ENORMES - 1990 (SMV) Sinopse: A personagem central é uma espécie de ser celeste, dotado de um par de asas e que fala um dialeto incompreensível e as peripécias da família onde ele aterrissa inesperadamente. UN DÍA DE ESTOS- 1968 (UDE)

Sinopse: A tensão e o ódio no atendimento que um dentista faz ao prefeito que sofre há dias de dor de dentes. Como se pode observar nos excertos abaixo o tempo não é marcado pelos

mecanismos habituais de medição temporal, porém por fatos associados ao bélico, ou

seja, por formações discursivas associadas às memórias discursivas90. Tenta-se a partir

de então construir com os fragmentos (fractais) dos textos, ‘fotografias’ do imaginário

bélico.

2.1 O Manto Bélico sobre o Tempo Nos excertos abaixo as expressões ligadas à guerra, armamentos, invasões, são o

cronômetro, os ponteiros de um relógio invisível, metaforicamente ativado para marcar

90 Grifo do autor: PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. p.52

Page 90: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

90

o tempo. Tais palavras proferidas pelas personagens aparecem em negrito para

evidenciá-las e confirmar a proposta deste estudo, o de revelar o conceito metafórico no

qual estão imersas.

EL VERANO FELIZ DE LA SEÑORA FORBES

…Explorando con mi padre los fondos dormidos alrededor de la isla habíamos descubierto una ristra de torpedos amarillos encallados desde la última guerra… (DCP p.180)

EL RASTRO DE TU SANGRE EN LA NIEVE …retozaron desnudos bajo la mirada atónita de los retratos de guerreros civiles y abuelas insaciables… (DCP) TRAMONTANA

…en sus horas libres jugaba a la petanca en la plaza con veteranos de varias guerras perdidas…tenía la virtud de hacerse entender en cualquier lengua con su catalán de artillero… (DCP p.167)

DIECISIETE INGLESES ENVENENADOS

…y ella pensó que debían estar muy mal en Italia después de la guerra… (DCP p.157)

CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA

…cuando volvieron los hermanos Vicario con otros dos cuchillos envueltos en periódicos. Uno era de descuartizar, con una hoja oxidada y dura de doce pulgadas de largo por tres de ancho, que había sido fabricado por Pedro Vicario con el metal de una segueta, en una época en que no venían cuchillos alemanes por causa de la guerra… (CMA p.65)

...Cuando vino Ibrahim Nasar con los últimos árabes, al término de las

guerras civiles… (CMA p.16)

El animal contrajo la rabia durante el sitio naval de los ingleses,… (DAOD p.21)

…mientras se celebraba el tedéum por la derrota de la escuadra

inglesa… (DAOD p.22)

Page 91: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

91

CIEN AÑOS DE SOLEDAD

…tropezó (…) con un (…)San José de yeso que alguien había dejado en la casa en los últimos años de la guerra… (CAS p.223)

Muitas das palavras implícitas ou explícitas no texto e que nos remetem a esse

imaginário bélico, estão longe de pelo menos uma afirmativa de Foucault91, em sua aula

inaugural no College de France em 1970, quando discorre sobre a inquietação diante do

discurso e explica que, essa inquietação entre outras atribulações, supõe que se usem

palavras “cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades” elas, essas palavras que

constroem aqui o conceito metafórico, por mais que tenham rolado, sido fragmentadas,

cerceadas e veladas, reduzidas e traduzidas, escamoteadas e cochichadas, jogadas ou

resguardadas, proibidas e gritadas não perderam, nem esconderam gritos de dor, de

tortura, de excessos cometidos por aqueles que detinham ou se intitulavam donos do

poder.

2.2 O Tempo Marcado no Imaginário Bélico

Nos excertos abaixo o tempo aparece marcado, ou por calendário, ou no recorte das

horas, e as marcas metafóricas do bélico entram em ação, e se busca, ao mesmo tempo,

mostrar os efeitos de continuidade e de ruptura.

Sierva María nasceu a 7 de dezembro e na festa de seus 12 anos, dia de São Ambrósio

o bispo.... (DAOD)

A explicação para o excerto acima está na história de São Ambrósio, que foi contra

os arrianos e seus pensamentos sobre a não divindade de Jesus e a negação de sua

imortalidade. Arrio colocou o cristianismo em uma moldura judaica, o que resultou

para o ocidente em um Deus Supremo, secular e mais atraente. Anos mais tarde,

Constancio abraçou o arrianismo e os concílios por ele convocados exilaram aos líderes

ortodoxos. A data do nascimento de Sierva Maria é um enunciado marcado pelo exílio

91 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. p.12.

Page 92: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

92

que é o que sofre a personagem ao ser trancafiada em um convento, desvelando o bélico

nessa construção.

Nos dois excertos abaixo, os sons das horas, são metonimicamente substituídos

pelos golpes de metal ou martelo, contribuindo para os efeitos metafóricos bélicos.

...oyó los golpes de metal de las ocho…87 (ODP)

…con el último golpe de los martillos de la catedral….él solo era la patria…90 (ODP)

2.3 Sombras Bélicas da Inquisição Espanhola

O Santo Ofício é instaurado na América Espanhola por Felipe II, pelo decreto real de

25 de janeiro de 1569, sendo que o terceiro tribunal permanente foi estabelecido em

Cartagena de Índias em 1610.92 Em decorrência disso, as torturas inquisitoriais, armas

de dominação de um longo período, apresentam-se semanticamente como base de

marcas enunciativas polissêmicas, representadas como ‘espaços semânticos

muldimensionais’ 93 uma vez que as execuções eram realizadas na península94 e não no

território das Américas. Essas marcas enunciativas, nos excertos abaixo estão

sublinhadas, pois por seu grau de implicitude somente permitem o travejamento a partir

de inferências históricas e ideológicas. Assim, os dois primeiros excertos mostram

formas de matar naquele período da Inquisição:

Al desdichado saltimbanco lo mataron a garrote limpio…22 (DAOD) De acordo com Bethencourt95 essa era uma das formas de execução dos condenados

que queriam morrer como cristãos, pois eram colocados sobre a fogueira e morriam

sufocados pela fumaça, e não queimados.

...El aguacil mayor había hecho envenenar... (DAOD p.24)

…armado con su garrote de alguacil… (DAOD p.95)

92 TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1968. p.104. 93 Tradução e paráfrase minha de: (...)« Je dirai simplement que le sémantisme de base d’um marqueur énonciatif polysémique y est conçu comme un « potentiel » de sens, représentable comme un « espace sémantique » multidimensionnel (...) » FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: OPHRYS, 1994. p.115 94 SALVADOR, J.G. Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. p.201.

95 BETHENCOURT, F. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália –séc. XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.153.

Page 93: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

93

Ainda valendo das informações de Bethencourt96, aguazil era um funcionário

administrativo e judicial que precedia o cortejo dos condenados à morte quando da

publicação do édito de fé.

Outros atos condenados e violentos para a Santa Inquisição aparecem nos dois

excertos abaixo, e se referem à apostasia, o primeiro, e ao ato de judaizar, o segundo e

ambos estão sublinhados, pois a referência à guerra:

Abrenuncio, o médico, é assim descrito: - …Era idéntico al rey de bastos. Llevaba (…)

la capa negra de los libertos letrados… (DAOD p.27)

...antes que poner su honra en manos de un judío agazapado ... (DAOD p.40)

Essa vinda dos cristãos-novos não era bem vista como se pode constatar na

afirmativa:... “Carlos V recomenda (...) proibir a vinda de todo o reconciliado, filho ou

neto de queimado, de Mouro ou Judeu recentemente convertido.”97

Os excertos abaixo se referem ao termo ‘marrano’, utilizado para expor uma

“incerteza interpretativa, ambiguamente”98 , e explicado em seguida:

…se llevó a Poncio Daza al interior de los platanales y lo hizo tasajo en rebanadas tan

finas que fue imposible componer el cuerpo disperso por los marranos… (ODP

pp.127-128)

O marquês diz à filha, referindo-se à Bernarda, sua esposa: “Es una gorrina” (DAOD p.35) Em seguida pergunta à filha: “¿Sabes lo qué es una gorrina?” (DAOD p.35) Como definição dicionarizada: Gorrina- significa porquinho, filhote de marrano,

porém, em sentido familiar “marrano” significa porco e metaforicamente: judeu

converso que continuava judaizando em segredo. 99

O excerto abaixo se refere à língua falada pelos judeus espanhóis, sendo inclusive, o

termo ladino, carregado de conotações outras em língua portuguesa.

“El médico empezó a conversar consigo mismo en latín.” El marqués le salió al paso: “Dígamelo en ladino”… (DAOD p.41)

96 Ibidem 97 TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. p. 103. 98 FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: OPHRYS, 1994.p.114. 99 Tradução minha de: Cerdo pequeño que aun no llega a cuatro meses. Fig. y Fam. Cerdo, marrano. LAROUSSE: 1994.

Page 94: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

94

2.4 Bélico submerso no Linguístico Neste apartado destacam-se alguns excertos nos quais aparece o termo vaina,

recorrente no linguajar colombiano com múltiples significados, entre os quais,

contratempo, sorte, confusão, ou ainda referindo-se a pessoas como orgulhosas ou

idiotas. O bélico se insere na definição dicionarizada de estojo de certas armas100, um

objeto que se transforma pela fala em uma ‘grade mais cerrada pela interdição política’

e que escapa no ritual do dizer cotidiano, associando-se com ‘o poder’ e ‘regularizando

o desnivelamento entre os discursos’ para habitar os ‘curiosos textos’ chamados ‘de

literários’, como explica Foucault101 (1996).

…-No sabes la vaina en que te has metido conmigo -gritaba muerta de risa en la fiebre

del carnaval-… (ATC)

… “Nos pareció que eran vaina de mujeres”… 40 (CMA) …Dice, a través de la red metálica, que pasarle la cuenta a él o al municipio “es la misma vaina” 593 (UDE) Como se pode observar nos excertos abaixo, todos os termos sublinhados são

formações discursivas que ecoam a belicidade, pois se por um lado ‘época mansa’ ou

‘épocas más plácidas’ remetem ao implícito, a épocas contrárias, de guerras, lutas ou

batalhas, por outro, ‘tumbado boca abajo’ (tombado de bruços) é a posição na qual

caem muitos soldados na guerra após serem atingidos. Da mesma forma ‘duelo’,

‘medalla de valor’, ligadas diretamente ao bélico, ou ‘reguero’ (sulco na terra, rego)

que pode ser de sangue e ainda, ‘ceniza y lumbre’ (cinza e qualquer combustível aceso)

rescaldos de batalhas, que indiretamente nos inserem nesse imaginário bélico.

…una época mansa… (ODP p.85)

…asumiendo los riesgos del poder como no lo había hecho en épocas más plácidas… (ODP p.86) …que estaba tumbado boca abajo en el lodazal… (SMV p.594). ...todo el mundo se dio por sentado que entre él y Remedios, la bella, se había establecido un duelo callado… (CAS p.227) …y dejando un reguero de valses de pianola… (CMA p.50) …El cielo y el mar eran una misma cosa de ceniza, y las arenas de la playa que en marzo fulguraban como polvo de lumbre… (SMV p.594).

100 Tradução minha de: Estuche de ciertas armas o instrumentos. LAROUSSE: 1994. 101 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002.p.27

Page 95: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

95

…Llevaba la medalla del valor en la solapa y un bastón con el escudo nacional esculpido en el pomo… (CMA p.39) O excerto abaixo utiliza de uma voz corrente popular que encobre o bélico, pois para

dispersar a turba civil o tratamento linguístico é o militar.

…y tuvieron que llevar la tropa con bayonetas…(CMA p.39). Ou seja, espantar os curiosos. 2.5 Santidade Bélica Como se pode observar nos excertos abaixo além da referência bélica há uma ligação

com a religião, seja pelo espaço físico, pelas representações corporativas ou visuais.

…con el último golpe de los martillos de la catedral….él solo era la patria… (EOP

p.90)

…por el poder (…)[de] su padre, Caballero de la Orden de Santiago, negrero de horca

y cuchillo… (DAD p.45)

…la bala (…) pasó con un estruendo de guerra (…) y convirtió en polvo de yeso a un

santo de tamaño natural… (CMA p.11)

No excerto abaixo, o bélico emerge da história de Heráclito, que teria apostatado e

queria ser admitido novamente na comunhão da Igreja sem penitência nenhuma. Como

explica Foucault, (...) “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento a sua

volta.”102

…creíamos por el estruendo subterráneo que se sintió en la patria entera una noche del mártir San

Heraclio…(ODP p.85)103

2.6 Ecos Bélicos Nesta categoria expõem-se alguns excertos de obras que ecoam em outras, ou seja, o

autor cita personagens de uma obra em outra, e todos de alguma forma ligados ao

102 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. p.35. 103 Tradução minha de: “Un tal Heraclio y sus seguidores se opusieron al Pontífice; muy probablemente Heraclio era uno de los que habían apostatado y quería ser admitido nuevamente en la comunión de la Iglesia sin penitencia alguna.” San Heraclio- Disponível em: http://es.catholic.net/santoral/articulo.php?id=43199 acesso em 24 de setembro de 2009. Apostasía: acción de abandonar públicamente la religión que se profesa; fig. Deserción de un partido, cambio de opinión o doctrina.

Page 96: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

96

bélico, seja por relacionamento com outras personagens diretamente ligadas a guerras,

ditaduras, violências, ou por sua própria ação nas tramas.

Assim se apresenta o pai de Bayardo San Román: …el general Petronio San Román,

héroe de las guerras civiles del siglo anterior, y una de las glorias mayores del régimen

conservador por haber puesto en fuga al coronel Aureliano Buendía en el desastre de

Tucurinca… (CMA p.39)

…y otra [cosa] muy distinta era darle la mano a un hombre que ordenó

dispararle por la espalda a Gerineldo Márquez… (CMA p.39)

Como se observa nos excertos acima, as duas referências aos personagens de Cien

años de soledad aparecem claras, na voz do narrador de Crónica de una muerte

anunciada, ou seja, são [...]“formas de ‘heterogeneidade mostrada’ por inscreverem o

outro na sequência do discurso”[...]104

Nos excertos abaixo as referências entre obras é realizada pelos sobrenomes das

personagens ou por serem iguais, ou pela assonância como no par Sánchez-Sáenz

repercute nas Manuelas, amantes de ditadores, que por antonomásia eram coniventes

com as violências realizadas. Ou ainda as três Linero, ligadas indelevelmente ao bélico,

simbolicamente presente em suas vidas.

…se llevó a Poncio Daza al interior de los platanales y lo hizo tasajo en rebanadas tan

finas que fue imposible componer el cuerpo disperso por los marranos… (ODP

pp.127-128)

…En cambio Fermina Daza, su esposa, que entonces tenía setenta y dos años y había

perdido ya la andadura de venada de otros tiempos… (ATC p.12)

Manuela Sáenz (EGL p.58) – não é personagem fictícia e sim a companheira de

Simón Bolívar.

Manuela Sánchez (ODP p.124)

104 AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de Estudos Linguísticos, ORLANDI, E.; GERALDI, J.W. O discurso e suas análises. Campinas: UNICAMP, 1990.

Page 97: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

97

Prudencia Linero, 72 anos - ...o ambiente era de festa mas a ela lhe pareceu de

catástrofe...(DCP p.160)

Plácida Linero, mãe de Santiago Nasar, ...evocando 27 años

después... (CMA p.9)

Francisca Linero, provocativa... (ODP p.126).

A personagem do pirata que visita os Cien años de soledad e Crónica de una

muerte anunciada pode ser vista aqui como um ‘funcionamento das representações’105,

uma sinédoque de todos os piratas e corsários, que pela burla do Tratado de Tordesilhas

agiam em nome de suas majestades, e neste caso especificamente, a rainha da Inglaterra,

atacando, saqueando e pilhando galeões e cidades.

Sir Francis Drake (CAS p.29)

Sir Francis Drake (CMA p.105)

Importante salientar um trecho do conto Un señor muy viejo ... que ressalta essa ideia

de perseguidores e perseguidos, de um imaginário bélico que permeia a obra de García

Márquez, sobreviventes de quais guerras, fugindo de quais armas? Ou de torturas?

…los (… ) de estos tiempos eran sobrevivientes fugitivos…(SMV)

3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A intenção deste breve estudo de análise alguns recortes de obras de García

Márquez revelou que se pode ir além dos limites das análises intertextuais, incluindo-se

aí os fatores relativos a conteúdo, formas ou de tipologia textual, conforme ensina

105 PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. p.125.

Page 98: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

98

Koch106, e além ainda do romance polifônico bakthiniano107, pois que a pluralidade de

vozes retumbou em ecos presentes em outros universos, neste caso específico, alargou-

se infinita no imaginário bélico.

Vai daí que ler García Márquez por essa outra perspectiva passa a ser um exercício

diferenciado porque muda a essência de suas narrativas, é como se uma pedra de toque

fosse acionada para desvendar o essencial que paira e permeia sua obra, e cria corpo,

um corpo avantajado, agigantado permitindo que se observe a ação bélica repressora,

agindo às vezes velada e outras escancarada, mostrando que aquele “Estado definido

pelo aparelho de Estado como força de execução e de intervenção repressiva” 108(ALTHUSSER:63) esteja presente a cada quanto, nos atos, atitudes, pensamentos,

dos personagens, dos narradores, sutil, mas, sempre ali presente. Outras vezes nem tão

sutil, porém devastador, passando por cima, “tratoralmente” destrutivo, amesquinhando

o caráter, aguilhoando com suas pontas em brasas os que se atrevam a desafiá-lo ou dele

escarnece.

A escritura de García Márquez toca o essencial da repressão, mostrando como essa

máquina plena de tenazes e aguilhões que segue interferindo no cotidiano das

personagens, os faz sofrer, reprimindo-os até a última instância, e que abusando então,

da condição de dominador, o Estado como Instituição age sobre as classes menos

abastadas, proletárias, nativos da América ou criollos estabelecidos e enricados seja por

quais artimanhas forem. Não nos detivemos nesta breve análise nesse jogo de espelhos

que reflete e confronta literatura e realidade, mas sim na linguagem velada que pode

revelar um universo maior, o da cognição. Natural que se tenha analisado apenas um

aspecto, e que recortes tenham sido feitas na obra, que é extensa, sendo este um trabalho

aberto.

Pode-se afirmar que essas formações discursivas caracterizadas por palavras,

expressões e proposições literalmente diferentes109 (grifo do autor) cujo sentido se

modifica em cada narrativa aqui analisada mudam de sentido “ao passar de uma

106 KOCH, I.G.V.; TRAVAGLIA, L.C. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1997. p.88. 107 PERRONE-MOYSÉS, L. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1993. p. 60. 108 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad.: Walter José Evangelista; Maria Laura V. de Castro.São Paulo: Graal. p.63. 109 Grifo do autor: PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988. pp. 160-161.

Page 99: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

99

formação discursiva a outra”110, passando cada elemento, seja palavra, expressão ou

afirmativas a designarem o processo discursivo que permeia a obra do autor como se

pode observar nos recortes apresentados.

REFERÊNCIAS

ALBOUKREK, A.; HERRERA, E. Diccionario de escritores hispanoamericanos. Buenos Aires: Larousse, 1992. ALVAREZ , N .A.: Razonamiento metafórico del conocimiento científico. Acción Pedagógica, nº16/Enero -Diciembre, 2007 - pp.126-135. Disponível em: http://www.saber.ula.ve/bitstream/123456789/17282/2/articulo11.pdf. Acesso em 22/setembro/2009. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad.: Walter José Evangelista; Maria Laura V. de Castro.São Paulo: Graal. AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, ORLANDI, E.; GERALDI, J.W. O discurso e suas análises. Campinas: UNICAMP, 1990. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1977. BETHENCOURT, F. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália –séc. XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CÂNDIDO, Antonio et.al. La Literatura Latinoamericana como proceso. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: OPHRYS, 1994. MAINGUENEAU, D. Elementos de Linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Espanha: Alfaguara, 2007. ____. Crónica de una muerte anunciada. Barcelona: Mondadori, 1996. ____. Del amor y otros demonios. Barcelona: Plaza&Janés, 1998. ____ .Doce cuentos peregrinos. Colombia: Grupo E. 87, 1992. ____. El general en su laberinto. Buenos Aires: Debolsillo, 2003. ____. El otoño del patriarca. Barcelona: Bruguera, 1980. ____. Un día de estos. In: OVIEDO, J. M. Antología crítica del cuento hispanoamericano del siglo XX (1920-1980). Madrid: Alianza, 1999. _______________________. Un señor con unas alas enormes. In: OVIEDO, J. M. Antología crítica del cuento hispanoamericano del siglo XX (1920-1980). Madrid: Alianza, 1999. GARCÍA-PELAYO, R. y G. Larousse - diccionario usual. México: Larousse, 1994. KOCH, I.G.V.; TRAVAGLIA, L.C. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1997. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Estados Unidos, University Of Chicago Press, 1980.

110 Ibidem

Page 100: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

100

LAKOFF, George. As advertised: A review of The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences Artificial Intelligence 130 (2001) 195–209. Disponível em: www.elsevier.com/locate/artint. Acesso em 5 de Agosto de 2009. MAINGUENEAU, D. Elementos de Linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, s/d. MANDELBROT,Benoit. Disponível em: http://mandelbrot.collettivamente.com/mandel.cgi?imgres&cmap=volcano.map&fractal.x=64&fractal.y=50. Acesso em 20 de julho de 2009. ORTEGA Y GASSET, J. La metáfora. Obras Completas VI. Madrid: Occidente, 1952. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. PERRONE-MOYSÉS, L. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1993. SALVADOR, J.G. Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. San Ambrosio Disponível em: http://cristianismo-primitivo.pais-global.com.ar/ acesso em 22de setembro de 2009. San Heraclio- Disponível em: http://es.catholic.net/santoral/articulo.php?id=43199 acesso em 24 de setembro de 2009. TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1968.

Page 101: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

101

Empreendedorismo no Brasil

Giulianna FARDINI∗

Resumo: Seja por necessidade de obter uma fonte de renda ou pelo desejo de ser independente e ter seu próprio negócio, ou pelo imenso incentivo que existe por parte do Governo e de outras entidades de fomento econômico, o brasileiro é um povo bastante empreendedor. Pelo menos os números de abertura de empresas dizem isto. Todavia, do outro lado da mesma moeda, há uma realidade triste, grave, de alto índice de falência destas novas empresas abertas com tanto entusiasmo. Muitos são os fatores que contribuem para isto e é disto que tratamos neste trabalho. Palavras-chave: Empreendedorismo, Micro e Pequenas Empresas, Falência de Pequenas Empresas

Introdução

Dizem que o brasileiro é um povo empreendedor. Alguns estudiosos

argumentam que é por vocação, mas outros afirmam que é por necessidade.

O Sr. Vinícius Lummertz, diretor técnico do SEBRAE Nacional em 2001 disse,

na Revista SEBRAE de outubro/novembro 2001:

O impulso empreendedor no Brasil pode ser analisado sob diversos aspectos. O Estado já não é um grande empregador e as grandes empresas exigem um nível de escolaridade e de conhecimento que a maioria da população não possui. Além disso, fora das grandes corporações, os salários quase sempre são muito baixos, o que faz com que, para boa parte dos brasileiros, a saída seja montar seu próprio negócio, mesmo que ele não represente a principal atividade e sirva para complementar a renda familiar.

As revistas “Época Negócios”, “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”, para

citar dois exemplos mais conhecidos e respeitáveis, trazem casos felizes de

empreendedores que estão satisfeitos com seus próprios negócios, mesmo que a revista

não informe que eles estão trabalhando 14 horas por dia e vivendo com menos dinheiro

do que tinham quando eram empregados. ∗ Professora mestre em Administração da Faculdade São Sebastião.

Page 102: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

102

Mas realmente trabalhar 14 horas por dia para uma coisa que é sua compensa

bastante para muitos. De fato!

Semanalmente, estas revistas vêm recheadas de sorrisos e idéias para você abrir

seu próprio negócio. Mas cuidado! As revistas não voltam daí dois anos naqueles

mesmos casos para falar se deu certo ou errado, se aquelas pessoas continuam sorrindo

daquele jeito ou se estão atoladas até o pescoço de dívidas e vivendo de migalhas.

As estatísticas do SEBRAE mostram que a mortalidade de empresas paulistas é

a mostrada no gráfico a seguir, intitulado “Taxa de Mortalidade – Empresas constituídas

entre 2001 e 2005.

Seguindo a informação do gráfico, podemos concluir que metade fecha as portas

até o quarto ano de vida, em São Paulo.

A pesquisa mostra que 27% das empresas paulistas fecham em seu 1º ano de

atividade. Essa taxa de mortalidade empresarial é elevada, porém é a menor taxa de

fechamento de empresas em 10 anos de monitoramento por parte do SEBRAE-SP.

O estudo também identifica as principais causas que levam ao fechamento das

empresas:

- comportamento empreendedor pouco desenvolvido;

- falta de planejamento prévio;

- gestão deficiente do negócio;

- insuficiência de políticas de apoio;

- flutuações na conjuntura econômica;

- problemas pessoais dos proprietários.

Fonte: SEBRAE – 25/01/2010

Page 103: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

103

Repare que quatro das causas são intrínsecas ao empreendedor e duas são extrínsecas ao

empreendedor.

O próprio Sr. Vinícius Lummertz, diretor técnico do SEBRAE Nacional em

2001, já citado anteriormente, disse, na Revista SEBRAE de outubro/novembro de

2001:

Na medida em que é incapaz de gerar os empregos necessários para absorver uma mão de obra cada vez mais desajustada aos padrões tradicionais e às exigências de um mercado competitivo, a economia força o desempregado a virar empreendedor. Este empreendedor, despreparado, acaba aprendendo da maneira mais onerosa: pelo erro.

Altas taxas de impostos, custo elevado dos financiamentos e o baixo nível de educação são fatores que debilitam o sucesso da atividade empreendedora. Embora intenso, o empreendedorismo brasileiro carece de qualidade, o que, consequentemente, reduz a capacidade competitiva do País como um todo.

Outro estudo do próprio SEBRAE, só que agora abrangendo empresas de todo o

Brasil, mostra que para as empresas constituídas no triênio 2000 a 2002, 49,4%

morreram antes de completar dois anos de vida!

Neste mesmo estudo, foi constatado o aumento da taxa de sobrevivência das

empresas no triênio 2003-2005, atribuídos, especialmente, a dois fatores: maior

qualidade empresarial e melhoria do ambiente econômico.

Taxas de Mortalidade

Anos de existência

Ano de constituição

Taxa de Mortalidade

Até 2 anos 2002 49,4%

Até 3 anos 2001 56,4%

Até 4 anos 2000 59,9% Fonte: SEBRAE – 2003-2005

Maior qualidade empresarial é um fator válido ainda nos dias de hoje,

especialmente pelos esforços de capacitação empreendidos pelo SEBRAE e seus

parceiros.

Agora, melhoria do ambiente econômico, depois da crise que precipitou em

dezembro de 2008, já não é mais uma realidade. A taxa de mortalidade voltou a crescer.

A volta da recessão, o aumento da inadimplência, a restrição ao crédito, tudo contribui

para que as taxas de mortalidade cresçam novamente.

Page 104: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

104

E, desta vez, não só dentre as pequenas. Nos Estados Unidos não é diferente.

Segundo HISRICH, PETERS (2004), no Prefácio de seu “EMPREENDEDORISMO”

apontam com assustadora tranqüilidade:

Começar e operar um novo negócio envolve considerável risco e esforço para que seja superada a inércia contra a criação de algo novo. Ao criar e desenvolver uma nova empresa, o empreendedor assume a responsabilidade e os riscos por seu desenvolvimento e sobrevivência e usufrui das recompensas correspondentes. O interesse de consumidores, empresários e autoridades governamentais pelo empreendedorismo revela-se na crescente pesquisa sobre o assunto, no grande número de cursos universitários e seminários sobre o tópico, nos mais de dois milhões de novas empresas inauguradas a cada ano (apesar da taxa de fracasso de 70%), (negrito nosso) na significativa cobertura e foco da mídia e na compreensão de que esse é um tópico importante para as economias industrializadas, as que estão em desenvolvimento e as que eram anteriormente controladas.

Meu Deus! Será que entendemos certo? 70% de fracasso? A esta altura

você já deve ter desistido de qualquer idéia de montar seu próprio negócio. Não faça

isto! Não é esta a intenção. O que queremos é que você aprenda com os erros cometidos

por outros menos preparados, que, cheios do gás do seu entusiasmo, se precipitaram e

passaram a compor as estatísticas lamentáveis acima – como nós, apesar de todo o

conhecimento! Lembre-se que há os outros 50% de casos de sucesso, apesar de que há

poucas informações sobre isto também.

Queremos dizer o seguinte: se 50% falem em até 2,3,4 anos de vida, os outros

50% sobrevivem. Mas em que condições? Qual a saúde financeira delas? Estão

realmente operando com lucro ou só mantendo as portas abertas? Não há informações

satisfatórias a respeito disto.

Queremos também que compare, que reflita, se ser empregado é realmente uma

opção ruim pra você, um trabalhador formal brasileiro. Pois estamos seriamente

inclinados a te dizer que se trata de um ótimo negócio, se você gostar do faz.

No outro lado do espectro das ocupações dos brasileiros, vemos cerca de

200.000 (duzentas mil) vagas de emprego não preenchidas, isto se considerarmos

apenas as anunciadas no site de recrutamento denominado “Catho Online”.

Page 105: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

105

O que há de errado? Tantos desempregados e tantas empresas precisando de

empregados qualificados sem conseguir. O problema está exatamente nesta palavrinha:

QUALIFICADOS.

Há um descompasso enorme entre o que as empresas precisam e o que há

disponível no mercado de profissionais. Seja pelas qualificações técnicas, seja pelas

habilidades interpessoais, seja pela localidade, as peças não se encaixam.

Ao invés de incentivar a abertura de novos negócios, talvez devesse haver um esforço

de aproximar candidatos e vagas. Qualificar-se para um determinado perfil de vaga,

para ganhar um bom salário também pode ser uma forma de empreendedorismo mais

rentável do que montar um negócio próprio, com todos os seus riscos inerentes.

Todos os autores que escrevem sobre empreendedorismo listam uma série de qualidades

e características de um empreendedor.

Peter Hisrich (2004) apresentam o seguinte, na tabela intitulada “Tabela 1.5 –

Tipos de habilidades necessárias em empreendedorismo” (aqui modificada em sua

apresentação):

Habilidades técnicas

• Redação

• Expressão oral

• Monitoramento do ambiente

• Administração comercial técnica

• Tecnologia

• Interpessoal

• Capacidade de ouvir

• Capacidade de organizar

• Construção de rede de relacionamentos

• Estilo administrativo

• Treinamento

• Capacidade de trabalho em equipe

Habilidades administrativas

• Planejamento e estabelecimento de metas

• Capacidade de tomar decisões

Page 106: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

106

• Relações humanas

• Marketing

• Finanças

• Contabilidade

• Administração

• Controle

• Negociação

• Lançamento de empreendimento

• Administração do crescimento

Habilidades empreendedoras pessoais

• Controle interno e de disciplina

• Capacidade de correr riscos

• Inovação

• Orientação para mudanças

• Persistência

• Liderança visionária

• Habilidade para administrar mudanças

Parece até simples, não?! Uns poucos itens que o candidato a empreendedor teria

que ou memorizar, ou desenvolver ou pesquisar. Será?

Não, não é simples. Estamos falando de habilidades e comportamentos desenvolvidos

desde a infância, de conhecimentos adquiridos conforme a oportunidade de estudo,

conforme a dedicação aos estudos de cada um, conforme as experiências de vida e

profissionais de cada um, bem como do estado psico- emocional, familiar, social, etc.

Isto quer dizer que esta lista é falsa e inútil? De forma alguma. Ela é verdadeira

e útil. Porém, dentro de sua limitação de ser um referencial para auto-análise do

candidato a empreendedor ou de um grupo de amigos candidatos a empreendedores, que

farão uma avaliação de suas potencialidades.

Agora, não se engane. Mesmo que você tenha todas as habilidades ali listadas,

isto não será garantia de que seu empreendimento será um sucesso.

Page 107: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

107

Muitos outros fatores, alheios às características, habilidades e conhecimentos do

empreendedor, influenciam e, por vezes, definem o destino do negócio. Dentre eles,

podemos citar:

• Concorrentes;

• Clientes;

• Credores;

• Fornecedores;

• Empregados;

• Conjuntura econômica;

• Política de crédito no Brasil.

E estes fatores estão carregados de peculiaridades culturais do Brasil, como

veremos, por isto são tratados aqui.

Concorrentes

Dentre as forças no Mercado que atuam sobre o negócio da empresa, está a

resistência que os concorrentes que já estão instalados fazem à penetração de um novo

concorrente. Para tal intento, eles podem se valer de estratégias que vão desde a união

temporária entre eles para evitar que o outro ganhe mercado, até a venda abaixo do

custo para evitar que o novo negócio consiga clientes.

Dado o baixo nível de formação técnica dos empresários brasileiros,

significando que muitos nem sabem se estão tendo lucro ou prejuízo, é possível que os

preços sejam reduzidos a um nível de prejuízo sem o saber, só para não perder a

concorrência para o novato.

A concorrência intensifica-se quando uma ou mais empresas de um setor detectam a oportunidade de melhorar sua posição, ou sentem uma pressão competitiva das outras. Essa competição manifesta-se na forma de cortes de preços, batalhas publicitárias, introdução de novos produtos ou reformulação dos já existentes e melhorias no atendimento aos clientes e nas garantias. (GRAHAM, 1994, apud WRIGHT, KROLL & PARNELL, 2000)

Se o novo negócio for aberto em uma cidade pequena, então, cuidado redobrado!

Os negócios de compadre ainda existem e muito fortes. Novos empreendedores são

excluídos como “estrangeiros” ou “petulantes”, por incrível que possa parecer.

Page 108: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

108

Já na cidade grande, este tipo de pressão pode ser sentida no bairro onde mora o

empreendedor, se já tiver concorrentes instalados do seu negócio na vizinhança.

Na cidade grande, pode ser que o novo empresário tenha a sorte de não enfrentar

este tipo de resistência e/ou boicote, mas terá, por outro lado, um número infinitamente

maior de concorrentes atuando.

Isto nos traz a um conceito importante para vencer a concorrência: a inovação.

Que significa ser diferente de alguma forma, seja no atendimento, na entrega, na

embalagem, na simpatia, no uniforme. É isto mesmo! Reflita como você, enquanto

consumidor se sente atraído por coisas diferentes, mesmo que seja um tratamento

diferenciado. Seu cliente não vai ser diferente!

Muitos autores e o próprio SEBRAE têm desenvolvido um novo conceito para

evitar o canibalismo de pequenas empresas no mercado: a idéia da cooperação. Por esta

concepção, pequenos se juntariam para ganhar poder de barganha na hora das compras,

na hora da propaganda, na hora do frete, enfim, em diversas situações em que a união

literalmente faz a força.

Todavia, nossos empresários ainda não estão preparados para assimilar esta

idéia. A mentalidade ainda é de matar ou morrer. Diferentemente do que ocorre

comumente na Europa, por exemplo, onde já é comum a união de empresas em

cooperativas para melhor sobreviver num mercado dominado pelas grandes empresas.

Outro aspecto importante a ser tratado ao se falar em concorrência é o da

CONCORRÊNCIA DESLEAL. Aquela representada pelos informais, que não pagam

tributos, não pagam por um ponto de comércio, não têm empregados e conseguem, por

isto, vender a preços mais baixos do que os que estão tentando fazer tudo certinho.

Em alguns setores isto é facilmente visualizado, como é o caso de: marmitex

feitos em residências, roupas das sacoleiras, cosméticos das “consultoras”, dentre

outros.

Este é um problema social e econômico sério, pois, de um lado, há empresários

sendo prejudicados e, de outro lado, seres humanos tentando sobreviver.

Page 109: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

109

Clientes

Clientes (“Compradores”, no Gráfico de PORTER) são tudo que um novo

empresário deseja, certo? Mas, nem sempre tudo são flores com os tão esperados

visitantes.

Os há de todos os tipos. Os que:

• Entram por curiosidade e não compram nada; são comuns e são potenciais

clientes futuros;

• Entram para observar e contar para a amiga concorrente como você fez na sua

loja;

• Entram só para conferir se seus preços estão mais caros que os dele ou do amigo

dele;

• Entram para te jogar para baixo, seja por encomenda, ou porque o dia dela está

azedo e precisa descarregar a carga negativa em alguém;

• Não ficam satisfeitos nunca, nem que você consiga o produto exatamente como

pediram ou dêem o desconto que pediram;

• Forçam sua margem de lucro até seu limite, que você escolhe ter prejuízo, só pra

ficar livre dele;

• Ameaçam te denunciar por alguma coisa que ele imagina ser culpa sua ou do seu

produto, mas que você não faz idéia de como possa ter acontecido;

• Mentem dizendo que o preço ou o produto do concorrente é melhor, só pra te

forçar a negociar e eles saírem dizendo que sabem comprar e que “esses

vendedores são uns exploradores, contra quem se deve ficar esperto”;

• Têm medo de entrar na sua loja porque não te conhecem, ou ninguém conhecido

nunca entrou, nunca ouviu propaganda, etc;

• Não te pagam em dia (quando te pagam) e brigam com você quando você liga

educadamente para cobrar;

• Ameaçam te processar por constrangimento ilegal quando você manda uma

cartinha cobrando a fatura vencida há mais de três meses;

• Manda, na sua cara, você entrar na Justiça para receber os cheques sem fundo

que ele te passou e se nega a negociar, depois de seis meses de espera por uma

solução amigável.

Page 110: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

110

Infelizmente, quem abre porta para a rua não escolhe os clientes, mas pode se

precaver contra maus clientes e maus pagadores. Não é fácil. Dá trabalho e despesa.

Mas é o único jeito de não amargar prejuízos, ao ponto de comprometer a continuidade

do negócio.

Credores

Conceitualmente, credores são as pessoas que emprestam dinheiro para a

empresa trabalhar, dando-lhe algum tempo para pagar.

Entre os credores de um negócio podem estar os próprios sócios, familiares,

amigos, fornecedores, governo, empregados, dentre outros.

Mas os principais credores da maioria das empresas são os bancos. E quanto a

estes, meu caro empreendedor, enquanto você não precisar deles, eles vão te oferecer

recursos aos montes. Todavia, se - Deus o livre deste dia - você estiver em situação

financeira difícil, precisando de recursos para fazer frente ao Capital de Giro da sua

empresa, cobrir uns cheques, já que seu cliente falhou no pagamento com que você

estava contando, não se iluda: eles não vão te atender de bom grado.

Você, nem seu sócio, nem sua empresa poderá ter nenhum cheque devolvido,

nenhum protesto, nenhuma ocorrência no SERASA, nenhuma parcela de empréstimo

vencida. Até aí é até compreensível.

O que realmente vai te tirar do sério será a tal “análise da capacidade de

pagamento”. Você não tem nenhuma das ocorrências acima, porém, a “análise” do

banco dirá que você não é capaz de pagar pelo empréstimo que está pedindo, logo ELES

NÃO VÃO TE EMPRESTAR!

Há uma esperança! Você ter bens para dar em garantia e pessoas que estejam

dispostas a assinar como avalistas para você. Mas, mesmo assim, o crivo da “análise da

capacidade de pagamento” será novamente colocado à prova.

Então, meu caro empreendedor, não se iluda: banco empresta dinheiro para quem não

precisa de dinheiro.

Por mais que escutemos o blá-blá-blá do investimento em microempresas,

microcrédito, taxas especiais de juros às pequenas (3% ao mês – olha que bondade!), na

prática, nada é diferente do acima dito: se você tem dinheiro, você consegue dinheiro, se

Page 111: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

111

não tem, vai entrar no círculo vicioso que antecede a falência: deixa de pagar impostos,

depois atrasa com seus fornecedores, depois atrasa com seus empregados, vende seu

carro (se tiver) e, finalmente, fecha as portas.

Neste momento, você percebe que o sonho virou um pesadelo!

Então, meu caro, não se arrisque com pouco no bolso...

Fornecedores

Fornecedores devem ser parceiros do seu negócio. Eles têm o poder de te ajudar

ou de te atrapalhar.

Além da qualidade do produto que vai te oferecer, da garantia do fornecimento

no prazo necessário, são fundamentais os prazos negociados para pagamento das

compras.

Lembre-se que você vai demorar a produzir e vender ou comprar e revender seu

produto e que ainda vai ter que dar prazo para seus clientes.

Para não pressionar seu Caixa, é importante que seu fornecedor lhe dê prazos

compatíveis com o fluxo de recebimento de suas vendas.

Como o Mercado não é “bonzinho” pra ninguém, uma parceria sincera e baseada

na confiança mútua, poderá surtir bom efeito.

Os fornecedores podem, ainda, dar opinião de produtos alternativos para o seu

negócio, que poderão baixar seu custo, ou melhorar a qualidade do seu produto, por

exemplo.

Empregados

Está aí um dos grandes desafios que o novo empresário irá enfrentar. Ele pode

ser um escolado, um experimentado, um artista, um catedrático, mas nunca

estará preparado para lidar com a diversidade de problemas que a espécie humana

poderá lhe causar. Ou, melhor dizendo: poderá até estar preparado para lidar, poderá

lidar, mas não terá como se proteger dos prejuízos que as pessoas são capazes,

deliberadamente, de causar a um patrão.

Page 112: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

112

No início, tudo são flores: amizade, clima organizacional positivo, pessoas

motivadas, equipe envolvida e unida.

De repente, alguma coisa acontece no reino das maravilhas... Ninguém sabe

explicar nem como, nem por que, nem quem começou tamanho conflito, tamanho

desentendimento, tamanho boicote, que prejudica a produtividade, a qualidade do

produto, aumenta os desperdícios, provoca acidentes, etc.

O que parecia uma beleza, vira um inferno e a empresa torna-se o último lugar

onde o ex-animado empresário gostaria de estar.

Ah, o ser humano! Aí começam as tentativas infrutíferas de conciliação da

equipe. Depois da reunião, dois dias de paz. O empresário relaxa, mas o inferninho

volta. Não há saída: tem que demitir alguém para quebrar o ciclo vicioso. E agora?

Rescisão trabalhista a esta altura do ano? Não estava preparado para pagar férias e 13º

antecipadamente? E ainda a multa de 50% do FGTS, exame médico demissional, exame

médico admissional. Mas é isto ou “esta pessoa” contamina toda a sua equipe! Muito

bem, isto deve resolver! Doce ilusão...

A equipe fica chateada com a demissão do colega (o mesmo que até então

combatiam) e rejeitam o novato, que se sente mal na empresa e reclama com o chefe. O

chefe argumenta que é questão de tempo e por sorte será mesmo.

Mas logo, logo, a paz acaba novamente: um funcionário mais antigo um pouco

começa a “aprontar” para forçar uma demissão, pois já deixou claro nos bastidores que

não vai pedir demissão de jeito nenhum, pra não perder o FGTS e o Seguro

Desemprego.

O chefe resiste por um tempo, até que chama o dito cujo para conversar. Tenta

argumentar que ele sempre fora um bom funcionário, então por que estaria fazendo isto

agora? O infame, com cara de pobre-coitado, inventa uma mentira esfarrapada e pede ao

chefe para fazer “acordo” com ele, pois não dá mais para ele continuar na empresa e ele,

“em consideração ao chefe”, não quer fazer nada que o prejudique para ser mandado

embora...

Sentindo a ameaça no ar e a dor pré-cordial apontando, o chefe cede, para não

correr o risco de ser processado por assédio moral, por chamar o “coitadinho” de safado,

sem vergonha, nem ser preso por agressão física, por lhe dar um merecido soco na boca!

Page 113: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

113

Ah, mas isto é ilegal? Claro que é ilegal! É fraude contra o FGTS, contra a economia do

País! Você não pode fazer isto, viu? Mas prepare-se para comprar pneus novos, fazer

um seguro contra incêndio, instalar câmeras de segurança no seu estoque, enfim, tudo o

que você não tem dinheiro para fazer. Ou então, demita mais um empregado e pressione

mais ainda seu Caixa, que já está pra lá de estourado.

Conjuntura econômica

Depois de um período de estabilidade e crédito fácil, quem poderia contar com a

crise que se originou nos Estados Unidos no fim de 2008 e está castigando as empresas

de todo o mundo até hoje?

É, meu caro: quem está na chuva, está sujeito a se molhar. Uns têm guarda-

chuva, mas outros são pegos de surpresa e não escapam.

A gente tem por hábito, cultura, sei lá, achar que o que acontece no exterior não

nos afeta. Ledo engano. A globalização não é só tema de samba-enredo, não. Ela é real.

Política de crédito no Brasil

Quando falamos dos credores, nós já dissemos que banco empresta dinheiro para

quem não precisa dele.

Agora vamos mais fundo um pouco. Você se lembra quando precipitou a última

crise econômica, o caos que foi na Bolsa de Valores, um monte de empresas quebrando,

o desespero generalizado? O que o Governo Brasileiro fez? Liberou bilhões de reais

para salvar quem? Não se lembra? Os bancos e as grandes empresas!

E as pequenas? As pequenas que se explodam! Elas representam apenas 20% do

PIB, afinal...

E dá-lhe recessão! Mercado assustado, economia instável, inadimplência alta, e:

pequenas empresas sem dinheiro para trabalhar e renegociar suas dívidas.

Resultado? Falência!

Este é o retrato da política de crédito no Brasil, apesar dos discursos políticos.

Na hora que o “bicho pega”, os grandes se salvam e os pequenos se “estrumbicam”.

Page 114: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

114

Fala-se que há recursos de sobra no BDMG, BNDES; o que não há são projetos

bem elaborados.

Ora, você já tentou pegar algum recurso destes que dizem ser para pequenos

negócios? A burocracia é tanta, demora tanto, sai tão caro, que fica inviável ao

realmente pequeno.

E estes recursos estão parados, a espera de “projetos bem feitos”. É inacreditável

a incompetência para viabilizar uma política de crédito simples para os pequenos

negócios.

Aliás, não acreditamos que seja incompetência, não. E sim, falta de interesse,

mesmo, falta de vontade política. Não nos esqueçamos dos 20% do PIB...

O País das oportunidades

Empreender no Brasil significa lidar com todos estes aspectos. E ainda assim é

elogiado como o País das oportunidades!

E não deixa de ser verdade, se pensarmos o tanto que há para se fazer em termos

sociais, tecnológicos, ambientais, etc.

Conclusão

Há um grande estímulo por parte dos órgãos governamentais e instituições de

fomento econômico para que os brasileiros abram seu próprio negócio, que saiam da

informalidade, que tenham atitude EMPREENDEDORA.

Muitos cursos, palestras e livros são ofertados a respeito, e tal disciplina merece

destaque nas universidades brasileiras.

Todavia, a realidade mostra uma mortalidade brutal de cerca de 50% das

empresas abertas nos primeiros anos de vida. Algo está errado.

Pesquisas são feitas pelo SEBRAE, por exemplo, que apontam a falta de

conhecimento e preparo para gestão dos administradores destas empresas como a

principal causa da falência. Será que isto procede? Acreditamos que em muitos casos

sim. Mas e nos casos em que os administradores são formados e experientes?

Page 115: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

115

As queixas dos empreendedores, corajosos, passa pela tributação excessiva, pela

falta de acesso ao crédito, pela falta de apoio dos órgãos governamentais. E eles não

estão inventando desculpas para o insucesso do seu negócio.

O Governo argumenta que há crédito disponível, que a tributação é a mesma

para todas e que deve ser repassada aos preços dos produtos, que há organizações de

apoio às micro e pequenas empresas, etc.

Só que, na prática, o que se vê é um excesso de burocracia e exigências

impossíveis de serem atendidas para ter acesso ao crédito, como garantias, avais,

certidões, etc; o Mercado não absorve os tributos, se forem repassados para os preços,

porque simplesmente os clientes não compram o produto mais caro das pequenas, que

têm que concorrer com as grandes; e o “apoio” existente às micro e pequenas empresas

restringe-se a cursinhos de capacitação e livretos informativos, que, na prática, não vão

tirar o empresário do buraco em que se encontra por falta de Capital de Giro.

Ah, sim! Ele vai saber que o porquê da empresa estar mal das pernas, mas e daí?

Alguém vai emprestar dinheiro para ele, por ele estar mais informado e capacitado?

NÃO!!!!!

Este cenário gera um ciclo vicioso de abertura de empresas- falência de

empresas- abertura de novas empresas- falência de novas empresas, que pouco importa

ao Governo, pois, “no bolo” do PIB, a Economia Nacional está “rodando”.

Mas individualmente, há uma massa de empreendedores falidos e desanimados,

sem perspectiva de salvar seu negócio e retornar ao mercado de trabalho como

empregados.

Aí fica a pergunta: neste cenário, será que compensa empreender no Brasil?

Não estamos falando dos 2% das grandes empresas, que têm recursos de sobra

ou acesso fácil a eles. Estamos falando dos 98% das micro, pequenas e médias

empresas, que lutam uma batalha perdida dia a dia para a falta de políticas

governamentais que as apóiem, incentivem e socorram nos momentos críticos, como

fazem com os Bancos à beira da falência, como vimos recentemente na História do País.

Ah, é verdade! Os 2% correspondem a 80% do PIB...

Mas não desista facilmente! Só não dê um passo maior que sua perna. Continue

a pesquisar e só tome uma decisão no final de muita reflexão, estudos e cálculos!

Page 116: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

116

Referências Bibliográficas HISRICH, Robert D. PETERS, Michael P. Empreendedorismo. Ed. Bookman, 2004, 5ª edição. KOTLER, Philip. Marketing – Edição Compacta. Ed. Atlas, 1989. PINCHOT, Gifford. PELLMAN, Ron. Intra-empreendedorismo na prática. Ed. Campus, 2004, 2ª edição. WRIGHT, Peter. KROLL, Mark J. PARNELL, John. Administração Estratégica. E. Atlas, 2000. Sites: www.sebrae.org.br www.ipea.gov www.ibge.gov.br www.cathoonline.com.br Revistas: Revista SEBRAE de outubro/novembro 2001Pequenas Empresas, Grandes Negócios Época Negócios

Page 117: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

117

Comunicação e cultura local: o alto falante ( Senhora de Oliveira, Minas Gerais

Vivíam Lacerda de SOUZA* Marília G. Ghizzi GODOY**

Resumo: O alto falante paroquial inserido no cotidiano do município de Senhora de Oliveira – MG, é observado como principal veículo condutor da informação local, que através de linguagem própria e unificada, torna-se símbolo identitário da cultura e da comunidade. Sua trajetória histórica, marcada pela forma peculiar de oferecer entretenimento e com avanços tecnológicos, uma sintonia em rádio, passa a adquirir caráter de prestação de serviços de utilidade pública, como uma rádio comunitária. Palavras-Chave: Alto falante, Cultura local, Rádio Comunitária, Mineiridade

O município de Senhora de Oliveira, situado na região norte da Zona da

Mata Mineira, dispõe de um alto falante paroquial que se apresenta como sistema

monopolizador da comunicação local, onde se propagam informações de interesse

comunitário. Através da oralidade retratam-se as tradições da região. Trata-se de um

transmissor de mensagens de curto alcance sonoro, dependente da qualidade, potência e

estado de seus equipamentos, assim como de suas instalações geográficas. Sob forma

fixa ou móvel, os alto falantes são instalados em diversos locais. Dentre eles destaca,-se

os comunitários e religiosos, como em Senhora de Oliveira, o que elucida sua

característica de meio comunicacional de simples manejo para indivíduos não

especializados.

Como um meio de comunicação destaca-se o alto falante diante dos

valores compartilhados pelos membros da coletividade e suas identificações em comum.

Ordenam-se significados às vidas das pessoas num determinado local e num

determinado período.

As autoras consideram neste estudo o conceito de identidade cultural,

conforme Denys Cuche111. Ressalta-se a importância da formação social e do âmbito de

* Mestre em Administração, Educação e Comunicação pela Universidade São Marcos – SP. Professora do curso de Comunicação da Universidade Presidente Antonio Carlos - UNIPAC de Conselheiro Lafaiete, MG. ** Mestre em Antropologia Social (USP) e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP), Professora do Mestrado em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos.

Page 118: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

118

representação que ela suscita. Reconhecendo, conforme Barth, o caráter de oposição,

contraste que se projeta nas situações de identidade Cuche afirma:

A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição de agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais.

Os dados sobre o objeto de estudo deste trabalho, o alto falante, revelam-

se na formação da comunicação e do contexto coletivo expressivo da cultura local. Diz

respeito a sua participação como engendrador dos valores culturais tradicionais.

Nessa perspectiva, torna-se importante entender o enraizamento cultural

dos sujeitos na comunidade em questão e também situá-los diante do conceito de

mineiridade como núcleo significativo do tradicionalismo mineiro.

Na realidade oliveirense, as aplicabilidades do alto falante seguem

também as características propostas por Peruzzo:

1. o alto falante atua como um produto comunitário, administrado de forma voluntária e coletiva pelas organizações comunitárias e desenvolve uma programação direcionada à conscientização e mobilização, como também notícia, oferece entretenimento e presta serviço de utilidade pública.

2. possui características de interesse público, mas é dirigido por uma ou duas pessoas comprometidas com o bem-estar social local, pessoas que normalmente gostam do rádio e vêem nessas emissoras um canal para exercitarem sua voz e prestarem um serviço à comunidade112.

Em seguida, os autores discutem os aspectos de tradição cultural onde o

alto falante está inserido, seu alojamento, desempenho social e de comunicação local.

Finalmente será abordado o espaço de oralidade através do serviço radiofônico no

âmbito local e regional.

111 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru. EDUSC, 2002, pp. 175-202. 112 PERUZZO, Cecília M.K. apud FERNANDES, M. L.; SALVI, C. O sistema de alto falante como meio de comunicação em Santa Catarina. Revista Internacional de Folkcomunicação, 2007. Vol. 10 p. 12.

Page 119: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

119

1. Trânsitos históricos e identidade cultural

O município de Senhora de Oliveira encontra-se encravado entre as

montanhas da Zona da Mata, na região sudeste do estado de Minas Gerais e até o ano de

1953 este povoado pertencia à cidade de Piranga, a qual era chamada antigamente de

Guarapiranga e teve grande importância nos séculos XVIII e XIX para o estado, tendo

como marco identitário a mineração. A então freguesia de Guarapiranga era composta

por doze distritos, dentre eles Senhora de Oliveira, que, diante do caráter homogêneo

das sociabilidades, era conhecida como distrito de Oliveira do Piranga.

Deste 1750, com a decadência da exploração das jazidas minerais, a

região transformou-se em agrícola.

O povoado começa a crescer lentamente ao longo da estrada e no entorno

da capela, onde os homens da administração pública e os fazendeiros possuíam as

maiores e as mais importantes casas, usadas quase que somente aos domingos e

feriados, quando seus proprietários vinham das fazendas para as missas, casamentos,

batizados e festejos religiosos. Ao retornarem para suas fazendas, deixavam suas casas

na cidade fechadas durante a semana.

As terras adquiridas com o sistema de sesmarias pertenciam agora a

herdeiros de antigos proprietários que se casavam com descendentes de outras fazendas

e ficavam morando nas mesmas propriedades.

Nesta época, a atividade econômica privilegia o latifúndio, a monocultura

e o trabalho escravo. A cidade possuía uma população aproximada de 2.655 habitantes

na zona urbana e 3113 habitantes na zona rural113.

A atividade econômica básica é a agropecuária. Destacam-se as lavouras

de cana-de-açúcar e de café. Em menor escala registra-se o cultivo de eucalipto. O setor

industrial local consiste na transformação de produtos agrícolas. Salienta-se a presença

da Destilaria Junivan, desde o inicio da década de 90.

Pequenas indústrias de moda, derivados de leite, móveis, serralheria,

alambiques e artesanato também contribuem com a economia e absorvem parte da mão-

113 SIAB – Sistema de Informação de Atenção Básica – dados referentes a janeiro 2007, coletados na UBS de Senhora de Oliveira em 04 de abril de 2007.

Page 120: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

120

de-obra no município. No entanto, muitas dessas pequenas empresas vivem na

informalidade, sem registro na junta comercial, o que impossibilita a averiguação dos

dados de crescimento econômico nesse setor.

O comércio varejista oliveirense tem uma contribuição destacável muito

para toda a economia local e regional. Atualmente são mais de 55 estabelecimentos114

comerciais legalizados, mas sabe-se que também há muitos na informalidade dentro do

município, nos quais são comercializados os mais diversos itens de consumo.

Dentre os vários serviços prestados, podemos ressaltar os oferecidos pela

Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) que oferece na unidade de Senhora de

Oliveira os cursos a distância de bacharelado de Administração de Empresas e Ciências

Contábeis, Licenciatura em Física, Química, Biologia, Letras, Artes, História e

Matemática.

De acordo com o livro de tombo da prefeitura municipal há três bens

tombados. São: a Igreja Sagrado Coração de Jesus, a Imagem Nossa Senhora da

Conceição e a Praça São Sebastião. Faz-se necessário frisar que a nova igreja matriz não

se impõe como bem a ser tombado devido à sua arquitetura moderna, sem maiores

detalhes relevantes a tal titulação.

O potencial turístico compreende paisagens naturais, as antigas fazendas,

as igrejas. Os visitantes, através dos circuitos turísticos de Villas e Fazendas e o

Circuito Turístico da Estrada Real podem conhecer e conviver pontos da antiga cultura

local.

Há um ciclo de festas católicas que traduzem o ideário religioso

enraiazado na comunidade. São as festas de São Sebastião, Semana Santa, Festa da

Padroeira, Festa do Rosário, Capina do Cruzeiro.

O carnaval projeta-se como de grande importância sendo realizado

apenas nas ruas, como um meio de confraternização. Ele tem início uma semana antes

da data oficial com o bloco Zé Pereira e termina com a festa propriamente dita. Inclui o

desfile de carros alegóricos, de adultos e crianças, que arrastam multidões de

114 SIAT (Serviço Integrado de Apoio Tributário) da Prefeitura Municipal de Senhora de Oliveira. Dados referentes a dezembro de 2007.

Page 121: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

121

irreverentes foliões e seus blocos pelas ruas estreitas da cidade. Os eventos são

animados pela tradicional bandinha de música e suas marchinhas carnavalescas.

No contexto simbólico festivo, a quaresma é vivenciada como um

atraente recurso de ordenação dos habitantes. Muitos deles, desde a quarta-feira de

cinzas, abstêm-se de carnes vermelhas. Alguns, além disso, ficam esse período sem

ingerir qualquer bebida alcoólica e fumar cigarros, num gesto de penitência. Cada um

escolhe de que forma deve se recolher para refletir o sentido de quaresma. Também

durante esse tempo, mais especificamente às sextas-feiras, um grupo de devotos sai às

ruas da cidade durante a madrugada, com compridas vestes brancas, com capuzes que

cobrem também suas cabeças, entoando cantos e benditos. São os Encomendadores das

Almas que suplicam por pecadores que estão no purgatório e necessitam de orações.

Nesse momento, as portas e janelas das casas devem ser mantidas fechadas, luzes

apagadas e ninguém poderá vê-los.

Durante a Semana Santa, são apresentadas peças teatrais em praça

pública com a participação de moradores voluntários, numa encenação da morte e

ressurreição de Cristo, em representação aos passos da Via Sacra. Todos os rituais são

acompanhados com muita atenção e devoção pelos moradores da cidade no decorrer

dessa semana, quando até o sino tem no timbre o reflexo do sentimento da Paixão e o

alto falante propaga músicas suaves, sutis e dolorosas. Os fiéis seguem em procissões

silenciosas, no intuito de sentir os passos de Cristo, vagarosos e tristes, em lenta agonia

rumo ao calvário. Pelas ruas, desfilam soldados romanos, Barrabás, Pilatos, Marias,

muitas mães de Jesus, Martas, Madalenas, no sentimento católico do povo oliveirense,

expresso no emocional da tônica do vivido por Jesus Cristo.

O auge da festa acontece com a missa da ressurreição entre cantos,

muitas palmas e vivas, em que a alegria renasce por mais um ano: é a grande festa da

Páscoa. Neste dia há missa de Ressurreição de Cristo e a procissão do Santíssimo com o

“corpo de Cristo presente na hóstia sagrada”. A cidade se prepara num todo para a

procissão. Os moradores pintam as ruas com símbolos católicos, colocam bandeirolas

que se ligam de uma casa a outra, nos parapeitos das janelas abertas são expostas as

melhores colchas presas a vasos de plantas e jarros florais, com o objetivo de

Page 122: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

122

demonstrar alegria e respeito pela passagem da procissão, que segue com a banda de

música e seu repertório festivo religioso.

No mês de outubro a cidade abre-se para os festejos de origem africana,

lembrando-se a época da escravidão no local. Comemora-se a Festa do Rosário. Nela

são homenageados os santos: Benedito, Efigenia, Nossa Senhora Aparecida e Nossa

Senhora do Rosário. Cada santo é comemorado em dia especial com a presença da

alvorada (serenata matinal) ao som da banda de congo e da banda municipal. Destacam-

se os rituais de congado e de reinado.

O meio rural compartilha desses festejos embora possuem eles suas

próprias festividades.

No ambiente cultural descrito surge um fascínio próprio quando o

assunto é velório, é casamento.

O casamento, antigamente, só era divulgado no seu exato momento de

ocorrência; ao som da corneta os moradores ficavam sabendo dos acontecimentos

realizados na igreja central. Na atualidade há uma profunda consideração por alianças

que indicam os compromissos de castidade dos nubentes. As uniões entre pessoas das

elites formam jogos rotineiros e sempre gera muita polêmica o casamento de um

fazendeiro com uma trabalhadora rural. A cerimônia de casamento é seguida pelo

pagode que, nesse caso, não é um ritmo musical, significa festa, brincadeira e muita

gente reunida. Para alegrar o povo, sempre tocam o forró, música sertaneja e outros

ritmos.

A prática de velórios ainda acontece no interior das residências. Muitas

pessoas não aceitam a idéia do velório público recém-inaugurado em 2007, por acharem

um absurdo, uma falta de consideração. Têm em mente que é direito de quem morreu

ser velado em casa e ficar junto à família e no ambiente onde passou toda a vida ou

parte dela. As famílias velam seus mortos numa sala onde durante todo o tempo da

exposição do corpo, os familiares recebem condolências de parentes e amigos. Esses

vêm de onde estiverem e às vezes enfrentam longas horas de viagem, que, dependendo

da condição financeira, pode ser de avião, completando a viagem de carro até Senhora

de Oliveira, já que ainda não possui aeroporto. Quando o velório é noturno, os que

passam a noite em companhia da família têm sempre à disposição café em garrafas

Page 123: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

123

térmicas ou em chaleira ao fogão de lenha que mantém a bebida sempre quentinha,

acompanhado de biscoitos, pães e outras guloseimas. O Grupo de Oração do Sagrado

Coração de Jesus sempre está presente nos velórios e outros devotos convocam os

presentes a rezar o terço na intenção de que Nossa Senhora e seu filho Jesus recebam a

alma que segue.

Minutos antes da hora marcada para o enterro, o sino toca triste, solene,

anunciando que é hora de seguir para a igreja. As pessoas presentes, amigos e parentes

se unem numa última oração em casa. Logo após o cortejo a pé segue em trajeto de mais

fácil acesso à igreja. Durante o percurso, os comerciantes fecham suas lojas em sinal de

respeito para só reabri-las após a passagem do funeral, ao toque fúnebre do sino até a

introdução do caixão na igreja, onde será feita a encomendação da alma para todos os

católicos. Em seguida o corpo é carregado por amigos até o único cemitério do local.

2. Uma palavra sobre a mineiridade

O conceito de mineiridade115, considerado como uma construção

ideológico-tradicional, diz respeito ao modo de ser do mineiro e tornou-se um produto

comercializado politicamente e também para a indústria do turismo

A “mineiridade” é mais que uma naturalidade, é uma maneira de encarar

a vida, de valorizar as tradições e os costumes. De ser feliz com a maestria da natureza

em um pôr-do-sol na montanha, no vento brando ao entardecer, numa noite fria que

suplica pelo cobertor ou pelo calorzinho do fogão a lenha, em perceber a beleza na

simplicidade cotidiana, de valorizar e se orgulhar da terra natal.

O andamento do discurso surge eivado pela correspondência entre ambiente e emoção. Aquele com o poder de criar o fascínio sobre eles, esta enquanto resultado da capacidade de deixar-se enlevar por estímulos inusitados. Nesse encontro, individualizam também a natureza. Não é qualquer imagem, mas aquela singular, forte e imaginativa, que transita em direção aos

115 CAPARELLI, Márcia. Identidade e hospitalidade em questão: um olhar sobre Uberlândia, MG. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2005. p.76.

Page 124: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

124

espectadores e foge destes para ela, num movimento singular. No percurso, fusionam-se os homens e a realidade, ficando difícil distinguir limites claros e precisos entre o humano e o natural, ocorrendo, pois, o verdadeiro processo de identificação. A operação identificadora não obstante, prende-se aos fios da memória...116

Ser mineiro é ter a fala mansa, a prosa cadenciada, com muitos

provérbios, ditados populares que fazem parte da vida rotineira em grande parte da

comunicação, pois o mineiro usa com sabedoria os ensinamentos de gerações, diante da

tradição de aprender a cultura local, “antes tarde do que nunca!”.

O universo simbólico revela-se nas comunidades aglomeradas entre

montanhas que se acercam da Minas clássica do queijo, da manteiga e do leite, da

Minas rural e pastoril, da Minas católica, religiosa e crendeira, temente a Deus, das

igrejas, orações e procissões. Minas de gente conservadora de tradições, pois “a

autonomia relativa de Minas oitocentista, expressa no universo da fazenda mineira,

abriu espaço às invenções da tradição, vivendo-a como se fora eterna.”117 Minas de

hábitos, da cultura social e familiar: a Minas hospitaleira. Minas opositora ao

despotismo e aliada da ordem, batalhadora pela liberdade política, desconfiada, acima

de tudo prevenida; descriminação construída ao longo dos anos, disseminada. Nesse

aspecto, “a associação entre mentes cultas e Inconfidência e desta com o ideal de

liberdade, resultou numa construção que caracteriza Minas como depositária do saber e

da insubmissão da pátria e da nação.”118

É preciso também situar que esse conceito cooptou-se na dinâmica

cultural ligada a padrões de consumo e modernidade. Desta forma, ele transcreveu-se

para a culinária, pintura, escultura, artesanato, esporte, dança, administrações que se

tornaram marcas discursivas da memória e estão inseridas na cultura global.

116 ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990. p.51. 117 ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 137. 118 Idem. p. 76.

Page 125: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

125

3. O alto falante: a mensagem como realidade

O fascínio vivido pelos oliveirenses diante de sua vida cotidiana

comprometida com o mundo tradicional nos conduz à forma de comunicação regida

pelo alto falante. Trata-se de uma ação pela qual se relata ou descreve um estado de

“coisas”, em que os indivíduos interagem de forma passiva numa relação entre emissor,

receptor e mensagem.

Foi implantado aproximadamente em 1954, pelo pároco regente.

Instalado sob forma precária e experimental, foi afixado em um poste que se situava

frente à casa paroquial, com duas cornetas posicionadas lado a lado para a abrangência

sonora apenas de sua redondeza. Com o objetivo inicial de entretenimento, o sistema

oferecia à população músicas todas as tardes, com possibilidades de dedicatórias, exceto

no horário da missa realizada aos domingos. A trilha sonora era composta de músicas de

cantores consagrados como Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba, Nora

Ney, Marlene, Francisco Alves, Orlando Silva, Cauby Peixoto e outros.

Também em circunstância do Jubileu de Congonhas do Campo-MG,

muitos visitantes denominados Congonheiros, oriundos de cidades vizinhas, ao passar

pelo local, a caminho da festa católica, eram recebidos com música, visto que o intuito

era de mostrar a alegria e a hospitalidade do oliveirense.

Em 1955 o sistema foi transferido para a igreja Sagrado Coração de

Jesus, hoje tombada Patrimônio Histórico e Cultural da cidade. Nessa ocasião,

modificações foram realizadas com vistas em uma melhoria da qualidade sonora. Para

tanto, foi posicionada uma corneta grande na igreja projetando o som para a região

plana da cidade e outra afixada estrategicamente em local alto, conhecido como Morro

da Caixa D’água , que direcionava o som para área de desnível de relevo, conhecida

como comunidade São Geraldo. Além disso, compunha o sistema uma mesa de som

com inúmeros botões coloridos e muitas chaves em forma de alavanca.

Por quase um ano o alto falante manteve-se oferecendo os mesmos

serviços, com alguns avisos paroquiais, a partir de uma locução desenvolvida de forma

nítida, articulada e criativa, o que o valorizava.

Page 126: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

126

Aproximadamente em 1965, o padre adquiriu um disco de vinil do

Barnabé, comediante de casos da vida rotineira, e passou a tocá-lo freqüentemente

marcando um novo estilo do veículo.

Em decorrência da melhoria da qualidade sonora no sistema, sua

abrangência já atingia todo o município em aproximadamente 35 km2, devido a uma

freqüência modulada que fazia com que toda mensagem propagada pelo meio fosse

transmitida simultaneamente em rádio. Essa situação não planejada foi constatada por

um morador no exato momento em que sintonizando seu rádio pôde ouvir o anúncio do

alto falante no aparelho. Logo, a partir de denúncia anônima, a polícia federal se

notificou sobre a existência da rádio e quis averiguar. Alguém, ciente do que iria

acontecer, comunicou ao pároco que eles estavam a caminho de Senhora de Oliveira

com o objetivo de fechar a rádio e confiscar os equipamentos e assim, imediatamente, o

padre reuniu alguns fiéis de sua igreja, desligou e encaixotou toda a aparelhagem,

escondendo-a no mato. Quando a polícia chegou ao local, nada conseguiu encontrar e

diante disso não cobrou nenhuma espécie de multa, pois o padre negou a existência da

rádio e não havia nenhuma prova que esta estivesse funcionando. A partir de então,

cessou a sintonia em rádio devido ao receio de novas denúncias e a aparelhagem foi

vendida e o dinheiro empregado na paróquia.

Em 04 de fevereiro de 1968, houve uma infiltração de água na base

estrutural da usina hidrelétrica instalada no município, o que ocasionou em um

desmoronamento, deixando toda a população local sem energia elétrica durante um ano,

até a chegada da Companhia Energética de Minas Gerais-Cemig, em maio de 1969.

Nesse período sem luz, o alto falante também não funcionou, deixando os oliveirenses

sem entretenimento e informação por meio do veículo, restando apenas a comunicação

verbal, a transmissão de mensagens via boca-a-boca.

Em 1971, o equipamento sonoro foi transferido para a igreja matriz

Nossa Senhora de Oliveira, onde se encontra atualmente, com abrangência sonora que

se estende em quase toda a zona urbana, fazendo com que o repasse verbal seja um

complemento dessa comunicação, alastrando os anúncios também pela zona rural.

Novamente, mudanças no equipamento sonoro foram realizadas pelo pároco, uma vez

que com o crescimento populacional da cidade, não mais havia como atender a demanda

Page 127: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

127

de solicitações musicais, além do fato de que muitas pessoas já possuíam aparelho de

rádio. Para a transmissão das mensagens são disponibilizados: uma mesa de som com

oito canais de microfone; quatro amplificadores; um aparelho de sistema automático

que liga todos os equipamentos simultaneamente; um som de CD; um toca-discos e

cinco microfones.

4. No universo do noticiário

Para os oliveirenses a comunicação social e as transmissões do alto

falante ocorrem de forma a construir o cotidiano com uma dinâmica própria de

pertencer ao mundo. Ouve-se músicas sacras e marchinhas carnavalescas que

antecedem as missas como um convite às cerimônias religiosas. Também os dobrados e

outras músicas sacras notificam a população ouvinte sobre cada categoria de anúncio a

ser propagado no exato momento de sua transmissão: necrológicos, perdas e extravios,

utilidade pública, festivos, saúde pública, escolares, esportivos, religiosos, comerciais.

Normalmente, o alto falante não transmite missas, com exceção de ocasiões especiais,

como algumas cerimônias da Semana Santa.

Os anúncios propagados apresentam-se no contexto oliveirense como

redutos insubstituíveis no cenário das projeções simbólicas, visto que devido à história

impregnada de significados culturais desse serviço, adquiriu valor afetivo. Por estar ao

alcance de cada morador, desenvolveu uma democracia sem distinções de raça, classe

sócio-econômica ou etnia, formando uma identidade cultural. Desta forma, a

comunidade cultiva um sentimento coletivo frente aos anúncios. Eles traduzem um

cenário dos acontecimentos: agendas religiosas e festivas, campanhas e reuniões ligadas

à escola, aos atendimentos médicos. Várias notícias são dirigidas ao público como

solicitação de apoio e às vezes, socorro.

Um sentimento fortalecido pelo pertencimento e compromisso mútuo

produzem as experiências coletivas com acentuadas interdependências.

Page 128: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

128

Considerações Finais

O repertório dos temas significativos do sistema comunicacional no

reinado da oralidade, do simbólico e da cultura é expresso nos noticiários divulgados

pelo alto falante. Ao recriarem-se os valores comunitários esse instrumento tornou-se

um patrimônio público.

Embora não haja evidências claras da influência da igreja católica, a qual

sedia o aparato de comunicação, percebe-se um controle sutil na orientação da seleção

das mensagens de interesse comunitário e a mesma não exerce influência direta ou

censura sobre qualquer mensagem a ser propagada.

Todas as cidades que formam a microrregião deste estudo, onde está

inserido o município de Senhora de Oliveira, apresentam a mesma origem histórica,

com forte ligação ao ciclo da mineração. Esta microrregião apresenta no meio

comunitário um sistema simbólico de comunicação em comum, o alto falante.

Por fim, o sistema de alto falante é uma modalidade de linguagem

radiofônica, uma forma de mídia sonora, embora mais autoritária do que as demais, pois

geralmente tem ouvintes compulsórios, que não podem mudar de estação ou abaixar o

volume. No entanto, os oliveirenses gostam do sistema e não desejam identificar outro

veículo mais eficaz na região, pois este se mostra de uma forma engajada na própria

condição de vida desses moradores. Sobretudo, para os oliveirenses, seguir a tradição

local, significa colocar em ordem a vida no seu empenho de ser uma coletividade.

Como um auxiliar no desenvolvimento e na organização social ele tem se

destacado com efetiva preferência frente a outros meios como internet, televisão, rádio,

jornais, revistas, boletins informativos.

Um sistema de representação expressivo dos valores antigos projetados

no contexto de uma tradição mineira é considerado por sua eficácia simbólica na

coletividade.

Page 129: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

129

Referências Bibliográficas

ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990.

CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Mineiridade. São Paulo: Achiamé, 1980. poema n.34

CAPARELLI, Márcia. Identidade e hospitalidade em questão: um olhar sobre Uberlândia, MG. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2005.

COGO, Denise Maria. No ar...uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Universidade do Sagrado Coração, 2002. Tradução de Viviane Ribeiro.

FERNANDES, M. L.; SALVI, C. O sistema de alto falante como meio de comunicação em Santa Catarina. Revista Internacional de Folkcomunicação, 2007. Vol.10. p. 01-15.

LACERDA, Weber. Coisas do interior de Minas. 1ª ed. Juiz de Fora: Academia de Letras, 1986.

PERUZZO, Cecília M. K. Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UNB, Brasília: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2006.

_____________________. Comunicação nos movimentos populares. Petrópolis: Vozes, 1998.

Fontes

SIAB – Sistema de Informação de Atenção Básica – dados referentes a janeiro 2007, coletados na UBS de Senhora de Oliveira em 04 de abril de 2007. SIAT (Serviço Integrado de Apoio Tributário) da Prefeitura Municipal de Senhora de Oliveira. Dados referentes a dezembro de 2007.

Page 130: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

130

NORMAS EDITORIAIS

1. A Revista Acadêmica publica trabalhos originais de professores das Faculdades São

Sebastião e de outras instituições nacionais ou internacionais, na forma de artigos,

revisões, comunicações, notas prévias, resenhas e traduções e que tenham relevância

acadêmica.

2. Os trabalhos podem ser redigidos em português, espanhol, inglês, italiano ou francês.

3. Só serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil nos últimos três anos e, no

exterior, nos cinco últimos anos.

4. Os originais submetidos à apreciação da Comissão Editorial deverão ser acompa-

nhados de documento de transferência de direitos autorais.

5. Os artigos terão a extensão máxima de 30 páginas, digitadas em fonte Times New

Roman 12, espaço 1,5 e margens de 2,5 em.

6. As notas devem ser obrigatoriamente de rodapé, remetidas, portanto, ao pé da

página.

7. As imagens, quando houver, devem ser remetidas junto com os artigos, com extensão

jpg.

8. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de 10 linhas, no máximo, e de

palavras-chave, em português, no início, logo após o título.

9. As resenhas não devem exceder a sete páginas.

10. O título do trabalho deve vir centralizado, fonte Times, corpo 12, em negrito, caixa

baixa (usar maiúscula só com a primeira palavra ou com nomes próprios ou

patronímicos).

11. O nome do autor deve vir à direita, logo abaixo do título, com um asterisco

remetendo para o pé da página a titulação e a instituição à qual se vincula.

12. Caso o artigo seja resultante de uma pesquisa contemplada com auxílio financeiro, a

instituição responsável pelo auxílio deve ser mencionada.

13. Os trabalhos devem ser enviados por e-mail para o seguinte endereço:

[email protected] , em formatoWord for Windows 97.

14. Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas. No caso de divergências na

avaliação, a Comissão Editorial enviará o trabalho a um terceiro consultor.

Page 131: 2 Faculdades São Sebastião - fca.edu.brfca.edu.br/wp-content/uploads/2012/10/Revista3.pdf · 2 Expediente Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177 Vila Amélia

131

15. Cabe à Comissão Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das

contribuições recebidas.

16. Normatização das notas:

SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução, edição, Cidade:

Editora, ano, p. ou pp.

SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro em redondo. In: Título do

livro em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. x-y.

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade:

Editora, vol., fascículo, p. x-y, ano.

17. As notas explicativas devem ser reduzidas ao mínimo e remetidas ao rodapé por

números, situados na entrelinha superior.

19. “Anexos” ou “Apêndices” só serão incluídos se forem considerados absolutamente

imprescindíveis à compreensão do texto.

20. As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto

impresso de 10 x 17 cm. As legendas das ilustrações nos locais em que aparecerão as

figuras devem ser numeradas consecutivamente, em algarismos arábicos, e iniciadas

pelo termo “Figura”.

21. Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos são de inteira responsabilidade dos

autores.

22. Os trabalhos que não se enquadrarem nas normas da revista serão devolvidos aos

autores, ou serão solicitadas adaptações, indicadas em carta pessoal.

Profª. Drª. Eliane de Alcântara Teixeira

Diretora Responsável