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Expediente
Faculdades São Sebastião Rua Agripino José do Nascimento, 177
Vila Amélia – São Sebastião – SP CEP11600-00
www.unibrsaoseba.com.br Tel. (12) 3893-3100
Mantenedor
Profa. Maria Amélia Governo Merlin
Diretor Geral
Prof. Fábio Merlin
Diretor Acadêmico
Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto
Revista Acadêmica www.unibrsaoseba.com.br
ISNN 2175-4659
A Revista Acadêmica é uma publicação semestral, de caráter multidisciplinar.
Diretora:
Profa. Dra. Eliane de Alcântara Teixeira
Conselho Editorial
Prof. Dr. Álvaro Cardoso Gomes Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto
Prof. Dr. Silas D’Ávila Silva
3
Apresentação
Como toda Instituição de Ensino que se preze, as Faculdades São Sebastião,
desde a sua fundação, procuraram acentuar seu compromisso com a educação superior,
com a divulgação da cultura e com a produção científica. Desse modo, a criação de um
órgão, que divulgasse trabalhos acadêmicos de seus docentes (e de docentes de outras
instituições nacionais e estrangeiras), veio se mostrando como algo imperioso, o que fez
que seus gestores investissem na criação de uma publicação on-line – a Revista
Acadêmica –, cujo fim seria o de apresentar o que de mais atual houvesse no plano da
pesquisa e da produção científica. Vem daí que a revista tenha sido planejada com um
caráter propositadamente multidisciplinar, reunindo, em todas as suas edições desde sua
inauguração, artigos de diferentes áreas.
São Sebastião, outono de 2010.
Profª. Drª. Eliane de Alcântara Teixeira
Diretora
4
Sumário
ARTIGOS
1. A cegueira saramaguiana: uma alegoria da sátira grotesca, ou o grotesco satirizado e alegórico, p. 6. Maria José do CARMO
2. A presença da cultura caiçara e da mulher pescadora na cidade de São Sebastião, p. 23. Rita Ribeiro Pinheiro SALES
Marília G. Ghizzi GODOY
3. Evolução Estelar: da Formação à Morte de uma Estrela, p. 41 Rafael Teixeira TOFFOLI 4. Tá rindo de quê? - Reflexões em torno do uso do humor como recurso educativo, p. 51 Lucelmo LACERDA 5. O Imaginário Bélico em García Márquez, p. 83 Roseliane SALEME 6. Empreendedorismo no Brasil, p. 101 Giulianna FARDINI 7. Comunicação e cultura local: o alto falante (Senhora de Oliveira, Minas Gerais), p. 117 Vivíam Lacerda de SOUZA Marília G. Ghizzi GODOY NORMAS EDITORIAIS, p. 128
5
ARTIGOS
6
A cegueira saramaguiana: uma alegoria da sátira grotesca, ou o grotesco
satirizado e alegórico.
Maria José do CARMO*1
Resumo: O Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, é o romance estudado neste artigo do ponto de vista do sentido alegórico, assim como é estabelecido pela teoria de João Adolfo Hansen da “alegoria dos teólogos”. Tal alegoria carrega uma sátira, não somente do homem que habita e faz acontecer em sua trama ficcional, mas do homem real, do homem do século vinte, que vivencia cotidianamente o conflito do homem moderno, premido pelo tempo e pela velocidade. É a alegoria do social, da neurose das grandes cidades, da cegueira de princípios. O entendimento desta alegoria é a desumanização e a insensibilidade do homem do século XX. Palavras-chave: cegueira, alegoria, sociedade.
A Alegoria:
Num mundo em que todas as coisas podem significar todas as coisas devido às
correspondências secretas que mantêm entre si, tudo é fluido. O cosmos é uma vasta
sinfonia de correspondências nas quais cada nível de existência aponta para o nível
superior. A alegoria é instrumento para pôr a alma humana em estado de receptividade
poética da unidade invisível. Sua ação termina, portanto, quando a alma entra em
contato extático com Aquilo que deseja que esteja além do movimento e da própria
forma alegórica. O que pode significar, ainda, que a vida humana tem a estrutura
metafórica de um sonho: qualquer coisa que exista no mundo inferior se
encontrará também no superior, mas em forma mais elevada; e qualquer coisa do mundo
superior, por sua vez, poderá ser encontrada no inferior, mas em forma adulterada. O
fogo, por exemplo, que arde no mundo inferior, é metáfora do fogo seráfico do
intelecto. João Adolfo Hansen2
“ A alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na
substituição do pensamento em causa por outro pensamento, que está ligado, numa
relação de semelhança, a esse mesmo pensamento”; assim redefine Lausberg ao retomar
1 Professora e Coordenadora dos cursos de Letras e Pedagogia da Faculdade São Sebastião. 2 Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986.
7
Aristóteles, Cícero e Quintiliano, que, segundo a retórica antiga, constituíam-na como
modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso. A alegoria
(grego allós = outro; agorien = falar) diz b para significar a. No sentido empregado por
Lausberg3, ela é um procedimento construtivo, constituindo o que a Antiguidade
clássica e cristã, continuada pela Idade Média, chamou de “alegoria dos poetas”:
expressão alegórica, técnica metafórica de representar e personificar abstrações.
Segundo Hansen há outra alegoria diferenciada e que não se confunde com a dos poetas
épicos greco-romanos medievais nem com a dos autores hebraicos do Velho
Testamento. É a que se chamou “alegoria dos teólogos”, recebendo muitas vezes as
denominações de figura, figural, tipo, antítipo, tipologia, exemplo. Ela não é um modo
de expressão retórico-poética, mas de interpretação religiosa de textos sagrados.
A rigor, não se pode falar simplesmente de a alegoria, porque há duas: uma
alegoria construtiva ou retórica, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica. Embora
complementares, elas são simetricamente inversas: como expressão, alegoria dos poetas
é uma maneira de falar; como interpretação, alegoria dos teólogos é um modo de
entender. Alguns estudos revelam que a alegoria expressiva é intencionalmente tecida
na estrutura da própria obra de ficção - como é o caso de Dante -, analisado por C.S.
Singleton4, ou, como diz R. Hollander5, ela é “criativa”, ao passo que a de interpretação
é “crítica”. O verbo grego állegorein, por exemplo, significa tanto “falar
alegoricamente” quanto “interpretar alegoricamente”. É o que ocorre no romance de
José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, onde a metáfora da cegueira sugere essa
duplicidade alegórica. A cegueira escapa ao diagnóstico médico porque está além do
mal físico. É coletiva e condicionada socialmente:
Se o caso fosse de agnosia, o paciente estaria vendo agora o que sempre tinha visto, isto é, não teria ocorrido nele qualquer diminuição da acuidade visual, simplesmente o cérebro ter-se-ia tornado incapaz de reconhecer uma cadeira onde estivesse uma cadeira, quer dizer, continuaria a reagir correctamente aos estímulos encaminhados pelo nervo óptico, mas para usar uns termos comuns, ao alcance de gente pouco informada, teria perdido a capacidade de saber que sabia e, mais ainda, de dizê-lo. Quanto á amaurose, aí, nenhuma dúvida. Para que efectivamente o caso fosse esse, o
3 HEINRICH, Lamberg. Elementos de Retórica Literária. 2. Ed. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1967, p.32 4 P.34 5 P.26
8
paciente teria de ver tudo negro, ressalvando-se, já se sabe, o uso de tal verbo, ver, quando de trevas absolutas se tratava. /.../ Uma amaurose branca, além de ser etimologicamente uma contradição, seria também uma impossibilidade neurológica... 6
Frye diz que um escritor está sendo alegórico sempre que fique claro que
está dizendo “por isto eu também (állos) quero dizer aquilo”7. Indicações no texto do
romance permitem perceber a alegoria:
A cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a
esperança.8.
E mais:
“Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira.”9
“Os cegos estão sempre em guerra, sempre estiveram em guerra, Tornarás a
matar, Se tiver de ser, dessa cegueira já não me livrarei”10.
Ou, ainda:
“Há mil razões para que o cérebro se feche, só isto, e nada mais, como uma
visita tardia que encontrasse cerrados os seus próprios umbrais.”11
“[...] mas quem nos diz a nós que esta cegueira branca não será precisamente um
mal do espírito.”12
“[...] alguns cegos de espírito.”13
“[...] uma espécie de visão sem olhos.”14
“Como se esta cegueira é concreta e real, disse o médico. Não tenho a certeza,
disse a mulher, Nem eu, disse a rapariga dos óculos escuros.”15
E é, de certo modo, o que também faz Diderot em sua Carta sobre os cegos,
para uso dos que vêem. Ainda que tratando de cegos de nascença, fala também de um
outro tipo de cegueira, em séculos de trevas:
6 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 29-30. 7 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1957, p.153. 8 SARAMAGO, José. Opus cit., p.204. 9 Ibidem, p. 135. 10 Ibidem, p. 189. 11 Ibidem, p. 29. 12 Ibidem, p. 90. 13 Ibidem, p. 105. 14 Ibidem, p. 196. 15 Ibidem, p. 282.
9
Se um homem que só enxergou durante um dia ou dois se visse confundido entre
um povo de cegos, deveria tomar o alvitre de calar-se ou de passar por louco. Anunciar-
lhes-ia todos os dias algum novo mistério, que seria mistério apenas para eles, e no qual
os espíritos fortes poderiam de bom grado não crer. Os defensores da religião não
poderiam tirar grande proveito de uma incredulidade tão obstinada, tão justa mesmo, em
certos aspectos, e, entretanto tão pouco fundada? Se vos prestardes por um instante a tal
suposição, ela vos lembrará, sob traços supostos, a história e as perseguições dos que
tiveram a desgraça de encontrar a verdade em séculos de trevas, e a imprudência de
revelá-la aos cegos contemporâneos, entre os quais não deparavam inimigos mais cruéis
do que aqueles que, por sua condição e sua educação pareciam dever estar menos
afastados dos seus sentimentos.
A respeito da Carta sobre cegos, de Diderot, diz ainda Rouanet16: “O exame da
cegueira física é um método para compreender a cegueira social.”
Num mundo saturado de imagens, em que “com zoom e sem zoom”, como diz
Saramago em seu diário, as mais terríveis imagens mostram-se “em tempo real” nas
telas das televisões, os olhos habituam-se a ver o horror – num “caminho para a
insensibilidade”, como também nota Saramago – ou recusam-se a vê-lo, como se
quedassem imobilizados, inertes, cegos – numa cegueira consentida – diante de uma tela
branca. Diz ainda Saramago: “Como evitar que fiquemos, nós, também, imersos numa
outra espécie de brancura, que é a ausência do sentir, a incapacidade de reagir, a
indiferença, o alheamento? E essa cegueira alegórica, que, representada ficcionalmente,
gera o “mal-branco”: Para esta cegueira tudo é branco”17.
“Não há estrelas no céu branco”18
“Hedionda maré branca”19.
“Perdia-se na esperança do nevoeiro branco”20
Frente a um texto que se supõe alegórico, o leitor tem dupla opção: analisar os
procedimentos formais que produzem a significação figurada, lendo-a apenas como
16 ROUANET, p. 134. 17 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 255. 18 Ibidem, p. 106. 19 Ibidem, p. 115. 20 Ibidem, p. 128.
10
convenção linguística que ornamenta um discurso próprio, ou analisar a significação
figurada nela, pesquisando seu sentido primeiro, tido como preexistente nas coisas e,
assim, revelado pela alegoria, o que, genericamente compõe a alegoria dos poetas como
semântica de palavras, apenas. Na alegoria dos teólogos há uma semântica de
realidades, reveladas por coisas nomeadas por palavras.
A alegoria faz parte de um conjunto de preceitos técnicos que regulamentam as
situações em que o discurso pode ser ornamentado, se pensada como dispositivo
retórico para a expressão. As regras fornecem lugares-comuns (loci ou topoi) e o
vocabulário para a substituição figurada de determinado discurso, tido como simples ou
próprio, tratando de determinado campo temático. Dessa maneira, estática ou dinâmica,
descritiva ou narrativa, a alegoria é procedimento intencional do autor do discurso; sua
interpretação, ato do receptor, também está prevista por regras que estabelecem sua
maior ou menor clareza, de acordo com a circunstância do discurso: “/.../ Mortos em vez
de cegos não alteraria muito o quadro, estar cego não é estar morto, Sim, mas estar
morto é estar cego”21.
A “alegoria dos teólogos” , hermenêutica ou “crítica’, é cristã e medieval, tendo
por pressuposto algo estranho à Retórica da Antiguidade greco-romana, o
essencialismo, ou a crença nos dois livros escritos por Deus, o mundo e a Bíblia”.
Formando um conjunto de regras interpretativas, a alegorização cristã toma determinada
passagem do Velho Testamento – o êxodo dos hebreus do Egito guiados por Moisés, por
exemplo, - e propõe, numa passagem do Novo Testamento - seja a ressurreição de Cristo
– uma repetição. No caso, não se interpretam as palavras do texto, mas as coisas,
acontecimentos e seres históricos nomeados por elas.
Segundo os românticos, o símbolo – que a tradição antiga, greco-latina,
medieval e renascentista não distinguia da alegoria – é uma espécie de paradigma ou
classe da qual ele é o único elemento. Por isso, sua significação é sempre imediata: em
sua particularidade, ele contém ou expressa o geral. Por exemplo, a cruz e o
Cristianismo. Oposta a ele, a alegoria é teorizada como forma racionalista, mecânica,
árida e fria. Retoricamente, a alegoria diz b para dizer a, como já foi dito, observando-se
que os dois níveis são mantidos em correlação virtualmente aberta, que admite a
21 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 111.
11
inclusão de novos significados. Além disso, ela pode funcionar por mera transposição: o
significado da designação b pode ser totalmente independente do significado da
abstração a.
Em outros termos, romanticamente o símbolo é o universal no particular; a
alegoria, o particular para o universal. Pode-se avançar aqui, afirmando que os
românticos introduziram, na análise da alegoria, a mesma definição da Retórica antiga,
voltando-a contra si mesma, pensando-a como um ato do discurso, para congelá-la
como estrutura ou fato de língua, generalizando sua conceituação para toda alegoria,
anacronicamente. Nesse esquema, o discurso clássico é mecânico e o do romântico é
orgânico: a forma é mecânica quando conferida a um material qualquer como adição
acidental, pois nela tudo pode significar tudo, uma vez que qualquer molde pode dar
forma à não importa qual abstração; é orgânica quando é inata, revelada a partir do
interior mais espiritual do artista em contato intuitivo com a Natureza.
Walter Benjamin22 demonstrou como Baudelaire lança mão da alegoria
justamente devido a seu caráter convencional, como destruição do orgânico e extinção
da aparência. Fazendo da alegoria a máquina-ferramenta da modernidade e pensando-a
como antídoto contra o mito, ao mesmo tempo em que a incorpora como método de
escrita e de crítica, Benjamin a propõe como o outro da História: Lendo no ‘outro’ da
alegoria o reprimido da História, ele não consegue encontrar sua expressão através dos
dominados, mas só através dos dominadores.
Com humor satírico, o narrador do Ensaio vai construindo a alegoria, utilizando
o “branco” que se estende a expressões como: Sim, tem carta branca do ministro,
quando se trata de isolar os que cegavam:
Agora falta decidir onde os iremos meter, senhor ministro, disse o presidente da comissão de logística e segurança...[...] Nesse caso resta o manicômio, Sim, senhor ministro, o manicômio.[...] Bem pensado, Obrigado, senhor ministro, podemos então mandar avançar, Sim, tem carta branca.23.
O “branco” aplica-se também a objetos de uso doméstico, situando a fantástica
cegueira na atualidade:
22 BENJAMIN, Walter. 1985, p. 36 23 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 46-47.
12
O recheio do estabelecimento estava intacto, a mercadoria não era das de comer ou de vestir, havia frigoríficos, máquinas de lavar, tanto as de roupa como as de louça, fogões comuns e de micro-ondas, batedoras, espremedores, varinhas mágicas, as mil e uma invenções eletrodomésticas destinadas a tornar mais fácil a vida. A atmosfera estava carregada de maus cheiros, tornando absurda a brancura invariável dos objetos. 24
Talvez seja possível estabelecer um paralelo entre a brancura invariável dos
objetos e a fulgurante e irremediável cegueira presente na reflexão da mulher do
médico: “[...] e serenamente desejou estar cega também, atravessar a pele visível das
coisas e passar para o lado de dentro delas, para a sua fulgurante e irremediável
cegueira.” 25
O “eu vejo tudo branco”, do primeiro cego, não pode deixar de lembrar a
expressão popular corrente “deu um branco” – usada quando nos escapa o fio do
raciocínio – considerando-se que, no Ensaio sobre a cegueira, a dramaticidade do relato
não deixa de ser temperada com certo humor, como é próprio da sátira. Assim, é dito no
romance: “Acreditavam que o mal-branco se propagava por contacto visual, como o
mau-olhado.”26
Vale a pena citar aqui, uma observação de Lacan sobre o mau-olhado:
Há um apetite do olho naquele que olha. Esse apetite do olho, que se trata de alimentar, constitui o valor do encanto da pintura. Este valor é, para nós, a ser procurado num plano bem menos elevado do que se supõe, naquilo que é a verdadeira função do órgão do olho, o olho cheio de voracidade, que é o do mau-olhado.27
É surpreendente, se pensarmos na universalidade da função do mau-olhado, que
não há em lugar nenhum qualquer traço de um bom-olhado, de um olho que bendiz.
Que dizer? – senão que o olho leva consigo a função mortal de ser em si mesmo dotado
– permitam-me jogar aqui em vários registros – de um poder separativo. Mas este
separativo vai bem mais longe que a visão distinta. Os poderes que lhes são atribuídos,
de fazer secar o leite do animal sobre o qual ele cai – crença tão disseminada em nosso
24 SARAMAGO, José. Op. Cit., p. 217. 25 Ibidem, p. 65. 26 Ibidem, p. 125. 27 LACAN, p.
13
tempo quanto em qualquer outro, e nos países mais civilizados – de trazer a doença, a
má sorte, esse poder, onde podemos melhor imaginá-lo senão na invidia?
Invidia vem de videre. [...] Todo mundo sabe que a inveja é provocada pela
possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos quais
nem mesmo ele suspeitava a verdadeira natureza.
Dessa maneira, o mal da cegueira branca vai conduzindo o expectador para uma
linha embrionária da leitura da alegoria; e pode então se perguntar: como o olho que
deixou de enxergar poderia ser capaz de um mau-olhado? Ou não é cego ou essa
cegueira é de outra ordem, remetendo à denegação e à alegoria, propriamente dita, como
afirma a frase da mulher do médico, no fim do romance: “Penso que não cegamos,
Penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo não vêem.”28.
A alegoria como procedimento de ornamentação pode ser vista mais
detidamente a partir de um poema do primeiro livro das Odes, de Horácio, onde a Ode
XIV – À República (Ad Rempublicam), alegoria do Estado, desenvolvem lugar-comum
alegórico, o da viagem por mar. Horácio compôs a ode depois da batalha de Filipes (42
a.C.). O navio alegoriza Roma, o mastro destruído designa Pompeu, assassinado no
Egito por ordens de Ptolomeu. A primeira forma resulta, sobretudo, de uma sequência
de metáforas: ‘Ó nave, levam-te ao mar novas/Ondas. Que fazes? Rápido entra/No
porto’ e em toda a passagem de Horácio em que o navio é o Estado, as ondas e
tempestades as guerras civis, o porto a paz e a concórdia, M. Fábio Quintiliano, retor
romano que viveu no primeiro século da era cristã, analisa a alegoria a partir da
consideração etimológica do nome. Assim, ela pode apresentar: a) uma coisa em
palavras e outra em sentido; b) algo totalmente diverso do sentido das palavras.
Como ornamento, Quintiliano filia a alegoria à metáfora – no caso, a relação
é também pensada enquanto extensão: a alegoria é quantitativa, ao passo que a metáfora
é tropo do léxico, valendo por um termo isolado que o substitui. O que aproxima
alegoria de metáfora é a estrutura comum das operações com tropos no enunciado. Os
retores antigos costumam escrever que a comparação atinge a imaginação do leitor
através do intelecto, ao passo que a metáfora o faz através da própria imaginação;
portanto, a metáfora deve funcionar por algum tipo de comparação, embora o inverso
28SARAMAGO, José. Op. Cit, p. 310.
14
não seja válido sempre, pois, segundo a mesma codificação retórica, a comparação nem
sempre é metafórica.
Quintiliano pensa a metáfora e a alegoria como ornamentação – portanto, como
nomeação concretizante de uma significação própria. Ao definir alegoria como
“metáfora continuada”, Quintiliano indica que também é sintática, coisa menos
evidente. Sintaticamente, a alegoria é um diagrama. A alegoria torna evidente o
procedimento – pela operação sintática – e faz o significado dos termos presentes
passar para “dentro” de outro, ausente. Por isso, ainda, a alegoria do poema de Horácio
tem, efetivamente, três níveis: a) um sentido literal; b)um sentido figurado; c)um
sentido literal ausente.
Escreve Barthes29: “... compreendemos melhor como o figurado pode ser uma
linguagem natural e ao mesmo tempo segunda: é natural porque as paixões estão na
natureza; segunda, porque a moral exige que essas mesmas paixões, embora ‘naturais’,
sejam afastadas e colocadas na região do Erro; como para o clássico a ‘natureza’ é má,
as figuras de retórica têm fundamento, mas também são suspeitas”. Nesse mundo
concertado cujo saber é todo de experiência feito, a naturalidade da expressão efetuada é
sempre naturalidade relacional (pensando-se no recorte de uma forma no registro de um
gênero e, a este, no leque dos gêneros). Justamente devido a tal funcionalidade evidente
da relação, torna sempre óbvia e “natural’ a convencionalidade de sua efetuação. Se o
herói épico não pode e não deve agir como um histrião, se isso não é natural, é porque
isso é convencional, fazendo-se o percurso que vai da recepção do discurso particular ao
sistema prévio de convenções que ele atualiza. Em outros termos: é para que isso seja
natural que isso funciona de modo convencional, fazendo-se agora o percurso inverso,
dos gêneros e modelos para o engenho do poeta que inventa, dispõe e ornamenta a obra
e, desta para a recepção, que a julga. Assim, falar de retórica atualmente, implica em
evidenciar, para o leitor de textos críticos, um texto virtual passível de ser construído
imaginariamente por ele quando posto em contato com a página. Nesse, sentido a
desmontagem da alegoria se faz como remontagem de um ato de fala e de suas regras.
29 BARTHES, Roland. Aula. Trad. e Posfácio de Leyla Perrone – Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 218.
15
A alegoria admite subdivisões retóricas, portanto, que a classificam conforme a
maior ou menor clareza da relação sentido figurado /sentido próprio. O critério do juízo
é a clareza, que é o critério central da classificação retórica dos tipos de alegoria. É a
clareza que determina os graus de maior ou menor aceitabilidade nas operações de
abstração seletiva das realidades, da combinação ou associação das partes do texto, da
ampliação ou engrandecimento de ações e objetos e, enfim, da metamorfose ou
produção de efeitos de “maravilhoso”. Assim, a alegoria pode ser classificada, segundo
o critério da clareza, em: tota allegoria, permixta apertis allegoria e mala affectatio.
a) Tota Allegoria ou Alegoria Perfeita ou Enigma: é a alegoria totalmente fechada
sobre si mesma, não se encontrando nela nenhuma marca lexical do sentido próprio
representado. Conforme a classificação retórica tradicional, chama-se também enigma,
constituindo o efeito de recepção chamado obscuritas (obscuridade, hermetismo) e, por
isso, também defeito, do ponto de vista da prescrição implícita de clareza. A alegoria é
ao mesmo tempo um fato natural, que se inscreve na ordem das coisas, e um fato
lingüístico, convenção ou regra. Os poemas são enigmáticos, assim, ou próximos do
enigma: evidenciam-se para o leitor como prática retórica letrista e também aguardam
decifração, sugerindo que neles se oculta um sentido sagrado “misterioso”.
b) Permixta Apertis Allegoria ou Allegoria Imperfeita: é a alegoria em que pelo
menos uma parte do enunciado se encontra lexicalmente ao nível do sentido próprio. É
talvez pensando nesse subgênero alegórico que Cícero observa – De oratore, 27 – que a
alegoria é uma transição do próprio ao figurado. Nela, como fica evidente, a mistura do
próprio e do figurado está a serviço da clareza e, por isso, é tida como mais didática.
c) Malla affectatio ou Inconsequentia Rerun ou Incoerência: é criticável a mescla de
metáforas que, por pertencerem a campos semânticos disparatados, não se ordenam num
único feixe de significações. Em outros termos, a malla affectatio é incongruência .
Lausberg cita como exemplo um trecho de Camões que, no verso “que apenas nos meus
olhos ponho freio” (Lus. IV, 87,8), teria sido incongruente19, uma vez que figurou
“olhos” através de prosopopéia, isto é, animação, atribuindo-lhes qualidade “ eqüina”
legível em “ponho freios” e, assim, produzindo um sentido pensado classicamente como
incompossível: “frear os olhos”. Na alegoria teorizada como malla affectatio, a Retórica
16
antiga propôs o que significa pensar analogicamente: a analogia permite destacar um
concreto para colocá-lo em relação com campos cada vez mais dilatados de elementos,
terminando por colocá-lo em relação inadequada com objetos cada vez mais
“distantes”.
A alegoria como interpretação, ou hermenêutica, pode ser vista como uma
técnica de interpretação, propriamente dita. Decifra significações tidas como verdades
sagradas, ocultas na natureza sob a aparência das coisas e também na linguagem
figurada dos textos das Escrituras, que revelam um “sentido espiritual”. Segundo a
alegoria greco-romana e suas retomadas, o mundo é objeto de representação própria e
figurada pela poesia e prosa; segundo a alegoria hermenêutica, existe desde sempre uma
prosa do mundo a ser pesquisada no mundo da prosa bíblica. Se as coisas podem ser
consideradas signos na ordem da natureza, é porque são signos na ordem da revelação.
Assim como os termos empregados por uma ciência qualquer nomeiam coisas, os da
Escritura designam coisas e estas, por sua vez, designam verdades morais, místicas,
teológicas. Por isso, a prática interpretativa dos primeiros Padres da Igreja e da Idade
Média lê determinado signo como figura alegórica e nele pesquisa um sentido
espiritual; mais ainda: toma o acontecimento ou personalidade histórica nomeada pelo
signo como figura alegórica de outro sentido próprio. Pela prática retórica greco-latina,
o signo do texto seria considerado ornamento de outro discurso de sentido próprio pois,
como já se escreveu, a alegoria como procedimento ornamental é, tanto em sua
construção quanto em sua interpretação, uma técnica verbal em que o sentido próprio é
também discurso e pressuposto do figurado. A alegoria hermenêutica é uma
“semântica” de realidades reveladas na palavra, não importa que esta seja de sentido
próprio ou figurado.
Não há sentido prefixado ao discurso: o sentido é produzido sempre, numa
prática. Assim pensada, a alegoria deixa de ser uma forma redutível a uma mediação ou
a uma reprodução sensível em que vão ecoando as vozes da Ausência. Ela é, entre
outras, uma técnica de teatralizar uma idéia.
Medievalmente pensada, portanto, a alegorização funciona como a memória de
um saber que se ausentou: faz recordar esse vazio, figurando-o, valorizando a
anterioridade do que é Verdadeiro sobre o que é escrito, dito e vivido, quando a
17
interpretação é feita, reescreve-se o livro do mundo. Assim, os teólogos medievais, ao
lerem as Escrituras, faziam-no pré-formados pelo Significado que buscavam no texto. A
interpretação se fazia como posfiguração, linguagem que cai depois, na ordem do
tempo, do Significado eterno já dado.
O instrumento principal de interpretação e de construção no Renascimento é a
alegoria. As releituras da tradição efetuadas pelos eruditos de Florença são retomadas,
por sua vez, do século XV até o XVII, por artistas plásticos e poetas muito diversos,
como Botticelli, Miguelângelo, Arcimboldo, Comanini, Tasso, Camões, Bembo,
Shakespeare, Spenser, Du Bellay, Calderón de la Barca, Donne, Gracián, El Greco etc.
– todos, ou quase todos, classificados hoje com a rubrica muito simpática de
“maneirismo”. A alegoria deixa de ser pensada como a antiga tradição retórica a
pensara: como tradução figurada de um sentido próprio. Deixa, também, de funcionar
como na hermenêutica medieval, que sob a letra da Escritura revelava a voz do Autor
nas coisas. Evidencia-se a questão da arte: a alegoria é dispositivo da invenção,
incluindo o que a Retórica antiga separava como elocução ou “ornamento”. Como ars
inveniendi, valoriza o engenho do sábio e do artista.
O método alegórico florentino baseia-se, pois, numa pressuposição: o ser divino
se revela de várias maneiras, tarefa do erudito-poeta é rastreá-la em todas as suas
manifestações demonstrando a unidade na diversidade. A arte é a tradução visível das
potências astrais invisíveis. É alegórica, como enigma: sua formulação mais apropriada
é o hieróglifo, cuja forma alegoriza, de modo simultâneo, a simplicidade e a unidade
divinas. A alegoria é, assim, possibilidade de outras e novas expressões e interpretações
aplicadas a objetos diversos para revelar um Além – que ela só expressa como
inexpresso e inexprimível. A arte se faz, portanto, convenção da expressão de mistérios
a serem interpretados.
Pode-se dizer, em síntese que:
a. O método de interpretação alegórica proposto pelos florentinos desloca as
Escrituras, objeto de análise na Idade Média, pois é o pensamento da Antiguidade
oriental e greco-romana que fornece a matéria para a interpretação. Essa unifica
mistérios pagãos e revelação cristã numa genealogia ideal, remontando a uma unidade.
18
b. Os vários sentidos da interpretação medieval – histórico, alegórico, tropológico,
anagógico – são unificados como “alegóricos” devido à sua conveniência ou
correspondência simpática. Correspondem todos eles, simultaneamente, ao que Santo
Tomás chama de “sentido espiritual” ou allegoria in factis e ao que a Retórica antiga
classifica co “sentido figurado” ou tropo.
c. A interpretação florentina busca sempre um mesmo significado – o destino da alma
humana que “volta” para o mundo das essências. Tal significado pode ser figurado por
qualquer forma, assumindo aparências variadas. Trata-se de um método de redução da
multiplicidade sensível à unidade ideal. A alegoria é construída sobre a diferença entre o
visível e o legível e articula signos esotéricos (visíveis mais ilegíveis, enigmáticos)
sobre conhecimentos ocultos.
d. A alegoria não é necessariamente a tradução da obra interpretada em formas
concretizantes de abstrações, pois a interpretação aponta para o inefável, afirmando-se
que “as coisas elevadas” da ordem poética estão para além de qualquer conceituação.
Liga-se com tal pressuposto a hipervalorização do hieróglifo egípcio, também
alegoricamente teorizado. A simultaneidade da visão do hieróglifo alegoriza a
contemplação das essências eternas.
e. Não mais simples ornamentação do discurso, a alegoria é ars inveniendi ou
invenção, modo de construir da imaginação poética.
f. As operações assim efetuadas relêem textos históricos inscrevendo-os no paradigma
teológico da Queda. Ao postular o estatuto alegórico dos textos, elidem a questão do
próprio discurso metafórico, postulando uma transparência original que a linguagem
oculta.
Resta ainda, nas palavras de Hansen, a visão totalitária da alegoria: “A própria
vida é alegoria: sonho sensível do inteligível, espelho embaçado do inefável, teatro, pó,
sombra, nada.”30
30 HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual, 1986, p. 56.
19
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23
A presença da cultura caiçara da mulher pescadora na cidade de São Sebastião
Rita Ribeiro Pinheiro SALES*
Marília G. Ghizzi GODOY**
Resumo: Os valores tradicionais da cultura caiçara e os seus lugares de memória inseridos na cidade de São Sebastião e no bairro São Francisco expressam uma situação de identidade centralizada no valor que a pesca representa no contexto cultural. A análise encaminha-se para a compreensão da mulher pescadora. Configuram-se representações expressivas na Cooperativa de Pesca de São Sebastião, nos relatos das mulheres pescadoras. Entre elas destacam-se novos valores e dinâmicas da economia, ligadas ao espaço urbano, ao mercado e ao consumo. Palavras-chave: identidade, mulher pescadora, São Sebastião, cultura caiçara.
Desde os anos sessenta o conceito de identidade vem se projetando como um
tema central na representação dos fenômenos culturais. Compreende-se a criação de
sentidos de oposição e contrastes que se manifestam em situações de realidade social
com ênfase na caracterização de pertencimento dos sujeitos.
Criam-se referenciais de uma situação histórica onde um crescente movimento
de globalização e universalização dos valores ocorre ao lado de um enfraquecimento da
autonomia dos estados nação, conforme as colocações de Cuche31.
Ser diferente, ter identidade, tornou-se um tema que se expandiu em vários
campos do conhecimento. Ordenam-se também manifestações culturais, movimentos
sociais, com o propósito de defesa do patrimônio cultural e de tradições
particularizadas.
Uma situação de identidade cultural ordena-se entre as mulheres que vivem da
pesca e que apresentam uma condição de pertencimento a cultura caiçara. Os dados
referem-se à cidade de São Sebastião no litoral norte do Estado de São Paulo. Trata de
* Mestre em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. ** Mestre em Antropologia Social (USP) e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP), Professora do Mestrado em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos. 31
24
um centro histórico e cultural que foi objeto de estudo sobre a cultura caiçara sendo
considerada um expoente de manifestações culturais dos homens do mar.
Encaminham-se as discussões para um dos bairros importantes na definição
pesqueira do local e ambiente social de um cultivo da tradição: o bairro São Francisco.
Aí, as mulheres pescadoras criaram uma situação de valorização do trabalho e definição
de suas condições de vida que sugerem um campo de realizações pessoais e coletivas.
Engendra-se um universo próprio de representações culturais cujas raízes com a cultura
caiçara exprimem o sentido real das experiências no âmbito da memória coletiva.
Destaca-se nos estudos da cultura caiçara a dimensão de vida ligada ao mar, a
natureza. São caiçaras aqueles que nasceram e vivem no litoral, compartilhando de um
passado histórico ligado à colonização portuguesa e possuem em graus diversos
influências indígenas e africanas. Afirma-se a este respeito:
Possuem um conhecimento da natureza que advém da experiência,
da observação e do aprendizado transmitido pelos mais velhos. Uma herança muito acentuada que os caiçaras trazem consigo é a indígena. Este fato nós verificamos no que diz respeito à pesca, ao conhecimento de plantas e instrumentos de pesca, à alimentação, etc. Além da indígena, possui também o caiçara ascendência portuguesa (européia – francesa, espanhola) e negra”32
. A representação do caiçara no universo simbólico da civilização ocidental foi
alvo para considerações discriminatórias e preconceituosas. Consideram como aquele
que não é capaz de acompanhar o progresso e dar respostas com desempenho racional e
abstrato. Uma dimensão de valor ocorre na definição registrada no dicionário:
Caiçara: s.m. Caipira asselvajado. 2. Caboclo sem préstimo. 3.
Pescador que vive na praia. 4. Indivíduo muito estúpido. 5. Vagabundo.
6. Malandro.
Caiçarada: s.f. De caiçara + Ada. Reunião de caiçaras. 2.
Ajuntamento de gente ordinária33.
32 DIEGUES, A.C. – O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Editora HUCITEC, NUPAUB/USP, p. 87. 33 FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre: Livraria José Olympio Editora. 2ª edição, volume II, p. 1154.
25
No universo simbólico tradicional da cultura caiçara destaca-se o sentido da
organização social expressa na família, na economia da pesca e de plantios de
subsistência, na presença de um universo mágico-religioso fundamentado em crenças e
discursos míticos expressivos. As bases da economia estavam fundamentadas na pesca
artesanal onde imperava um sentido de trocas, reciprocidades.
Sabendo-se das transformações econômicas, influências do capitalismo, da
sociedade de consumo e do mercado sobre as tradições caiçaras é preciso interpretar a
sua cultura de forma dinâmica.
A valorização da cultura caiçara na atualidade ao expressar uma cultura
diferenciada ganha relevo com a projeção de conceito de auto-identidade. Significa,
conforme Diegues, um processo de construção de valores onde o pescador artesanal e a
cultura caiçara tornam-se reveladoras de um povo sob as influências dos processos de
modernização e recriação dos saberes tradicionais34.
Um processo de afirmação da identidade origina-se, conforme Alain Touraine,
em relação à sociedade abrangente e ao caráter de resistência da memória. Afirma
[...] Se admitirmos que a memória é uma força de resistência e uma ferramenta para a construção do ator como sujeito, é preciso dar um passo além e dizer que a memória está dirigida mais para o futuro do que para o passado. O fio que leva do passado ao futuro protege o ator contra as forças que tendem a moldá-lo segundo as normas e hierarquias dominantes35.
1. A cidade de São Sebastião e o bairro São Francisco
São Sebastião é uma cidade localizada no litoral Norte de São Paulo, com 69
mil habitantes (IBGE, censo 2007). Situada entre o verde da Mata Atlântica e o oceano
Atlântico, tão importante quanto a sua beleza natural é a relevância do seu patrimônio
histórico e cultural.
Foto 1 – Localização do Município de São Sebastião
34 DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e Mares: Simbolismo e imaginário. São Paulo: Hucitec, 1998. 35TOURAINE, A., apud DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Enciclopédia Caiçara Vol. IV, p. 36.
26
Fonte: Wagner Bornal
Cidade histórica, seu descobrimento data de 1502 conforme nos relata a
historiadora Rosângela Ressurreição:
Apenas dois anos após o desembarque da esquadra de Cabral, uma
nova frota comandada por Américo Vespúcio tem a missão de reconhecimento daquela “terra à vista” que bem poderia ser uma ilha isolada no oceano ou, quem sabe, parte do novo continente recém-descoberto, a America como intuía o navegador. Com efeito, deslizando pelas águas do litoral, sentia Vespúcio que Deus o El Rei o escolheram na solução desse quebra-cabeça, e, tomado dessa crença, balizava feitio um João Batista os locais por onde passava. Em 20 de janeiro de 1702, ei-lo com sua esquadra no leito de um canal, tendo à sua direita a linha costeira que vinha perseguindo e á esquerda uma grande ilha costeira franjada de praias. Consulta o calendário santo. Era dia do guerreiro Sebastião, santo de cujo nome fez empréstimo36. A propósito, um documento faz a seguinte menção: “[...] Assim deu-se à ilha de São Sebastião o nome deste santo por isso que sua descoberta se fez a 20 de janeiro, assim como o rio de São Vicente, à embocadura formada pelas águas que cercam a ilha do mesmo nome, onde se fundou a vila de igual denominação, e depois a cidade de Santos, por isso que a frota ali chegara a 22 de janeiro de 1502 [...} 37.
Diante do contexto histórico e da dinâmica de ter centralizado um povoado de
prosperidade criou-se um valor próprio da memória, desenvolveu-se uma política de
preservação da história da cidade. A cidade além de ser considerada um Patrimônio
36 RESSURREIÇÃO, Rosângela Dias da. São Sebastião: Transformações de um povo caiçara, 2002, p. 21. Este livro inaugurou o projeto Memória dos Municípios Brasileiros, cujo objetivo principal foi a recuperação da história da cidade. 37 ALMEIDA, Antonio Paulino. Memória Histórica sobre São Sebastião. São Paulo. Coleção da Revista de História – Arquivo do Estado de São Paulo. Brasil, 1959, pp. 378, 385 e 386.
27
Histórico desde 1969, data do seu tombamento em níveis Federal e Estadual, tem o
cuidado em preservar quadros, livros, fotografias e todos os elementos que documentam
a memória e os costumes de uma época, estabelecendo sempre relações entre o passado
e o presente.
São Sebastião recria-se historicamente no bairro de São Francisco. Abriga ele
um conjunto arquitetônico do século XVII erguido nas terras doadas por Antonio
Coelho de Abreu.
Em meados do século XVII, Antonio Coelho de Abreu recebeu sesmaria em
1640, possuindo em suas terras uma capelinha de Nossa Senhora dos Desamparados
dotada com 66 braças de patrimônio. Resolve ele doar a mesma para os religiosos da
ordem de São Francisco.
No entorno do Convento Franciscano de N. S. do Amparo, construído em
1664, com pedra e cal surge o povoado de São Francisco da Praia, núcleo ceramista e
pesqueiro. Em 1840, os moradores do bairro pedem que nele se crie uma freguesia, que
viria ser o primeiro passo legal para elevação à vila e possível independência em relação
à vila de São Sebastião; porém não havia Igreja que pudesse servir de Matriz, sendo
então a capela da Ordem Terceira, contigua à nave do convento utilizada para tal. A
ordem terceira é formada pelos leigos, uma irmandade criada para ajudar os mais
pobres, promove caridade. “Como era praxe, os Religiosos do Convento de São
Sebastião fundaram a Ordem Terceira da Penitência. Mas sem regimento interno e
guiando-se pela Ordem do Rio de Janeiro, extinguiu-se depois de ter causado muitos
desgostos aos Guardiões. A freguesia foi criada pela Lei nº 13, de 2 de abril de 1850,
pela Assembléia Legislativa da Província de São Paulo, mas extinta em 1859”38. O que
existia era uma disputa sobre o local em que seria considerado o centro da vila, entre o
centro de São Sebastião ou o bairro São Francisco, por motivos políticos prevaleceu a
primeira.
Hoje apenas três frades residem no local onde a sensação de paz está em toda
parte: no átrio, na sala de refeições com mobiliário antigo, nos corredores, na rica
biblioteca com volumes raros. Mas, principalmente na capela que é aberta ao público
onde é rezada a missa e celebrados os casamentos.
38 Idem.
28
A distinção entre o bairro de São Francisco e as demais regiões do município
surge visivelmente no centro da vila. Ele se mantém com características muito próprias
nas questões culturais e políticas. É aqui que ocorre uma das mais fortes manifestações
culturais de São Sebastião: a Congada. Em homenagem a São Sebastião e São Benedito
este ritual envolve dança e um auto que representa a luta entre mouros e cristãos;
observam-se valores da cultura africana e européia.
Ganha destaque a ênfase na produção de cerâmica no núcleo ceramista, onde
destaca-se o trabalho da mulher. Excluídas dos cargos públicos, longe dos espaços
administrativos, elas, as mulheres de outrora, forjaram por necessidade de
sobrevivência, seu campo de trabalho. Muitas mulheres eram arrimos de famílias,
viúvas, separadas que fabricavam louças para auxiliar nas despesas. A fabricação deste
artesanato concentrava-se no bairro São Francisco, local e moradia das louceiras.
O bairro São Francisco abriga a Cooperartess (Cooperativa de Artesanato de
São Sebastião) onde a técnica de acordelamento e a história da produção de cerâmica é
repassada às novas gerações.
Pescadores e caiçaras que ainda hoje conservam o mesmo clima tranquilo do
passado compartilham do convívio nesse bairro. A rua principal localizada no entorno
do Convento Franciscano possui muitas casas de estilo colonial. Os moradores passeiam
pela calçada, sendo comum os pescadores andarem descalços, recém-saídos do mar;
com fieiras de peixes oferecem o produto de porta em porta.
2. Contexto histórico e tradição pesqueira
A pesca não só marca, uma tradição caiçara, é também expressão de uma
resistência histórica. Nesse sentido, é importante conhecer os ciclos econômicos de
estagnação e prosperidade, característica marcante da economia de São Sebastião, em
suas respostas diante das mudanças estruturais da economia brasileira. Pela história
observamos que essa alternância de ciclos tem relação direta com a pesca artesanal, a
qual sempre foi o principal meio de subsistência do caiçara e motivadora de sua
29
produção cultural. Cada vez que um dos ciclos entrou em declínio, a pesca ressurgiu
com maior força.
Entende-se que independentemente de surgirem “novos ciclos” para se
dinamizar a economia norte litorânea, há uma economia de raiz cultural-econômica
ainda viva na contemporaneidade, e é justamente seu registro diante da memória
coletiva que a identidade vai sendo deflagrada.
Do ponto de vista econômico, a história do município registra que os primeiros
colonizadores desenvolviam plantios de subsistência (milho, mandioca, feijão) e
estabeleceram engenhos de aguardente. Em 1636, o povoado foi elevado à categoria de
vila. No século XVII destaca-se um período de relativa prosperidade em decorrência da
economia mineradora que escoava minérios pelo porto de São Sebastião.
Em consequência, a vila e as atividades inerentes a ela, como os ofícios
mecânicos, o comércio, armazéns, etc, se desenvolvem. Nas fazendas próximas ao
núcleo urbano se desenvolveram várias olarias, no início de telhas e potes, mais tarde,
de tijolos. No ano de 1788 sua população era estimada em 3500 habitantes, onde cerca
de 1000 eram escravos.
No século XVIII, com o desenvolvimento da nova rota que ligava Minas ao
Rio, inicia-se um declínio nas atividades agrícolas e portuárias. Nessa época
desenvolveu-se a pesca de baleias, atividade que permaneceu por mais de cem anos.
Nos fins do século XVIII e início do século XIX, após reaver sua liberdade de
comércio, a região viveu um período de grande prosperidade. Em meados do século
XIX centenas de propriedades agrícolas existentes na região e possuidoras de mais de 2
mil escravos dedicavam-se à cultura de cereais, fumo e à cana-de-açúcar, que voltou a
ter importância e levou a multiplicação dos engenhos. Esse ciclo de progresso e
projeção do porto local levou São Sebastião a uma posição de destaque e importância na
economia brasileira.
Os portugueses atraídos pela possibilidade de vender os produtos mais caros
aos mineiros instalam seus engenhos na região. Os engenhos eram caracterizados por
conter uma só cobertura para morada e engenho, como a Fazenda Santana, de 1743.
O comércio entre as cidades litorâneas do Rio de Janeiro às de Santos e às do
planalto era muito intenso, sendo feito o transporte das mercadorias por tropas de
30
animais, através de precários caminhos. Era o caminho que hoje conhecemos como
rodovia Rio-Santos e Rodovia dos Tamoios que liga São Sebastião a São José dos
Campos. São Sebastião cresceu muito neste período, a população aumentou, novos e
suntuosos prédios foram construídos.
A primeira metade do século XIX foi um período de prosperidade no litoral
norte, devido, em grande parte, à produção e exportação do café, apesar das constantes
investidas dos piratas que ameaçavam a costa.
A segunda metade do século XIX significou, para as cidades do litoral norte de
São Paulo, um período de estagnação econômica. Tal fato se deve à instalação das vias
férreas que ligavam São Paulo a Santos, ao interior do estado e ao Rio de Janeiro,
desviando o transporte de mercadorias para longe das cidades desta região.
O deslocamento de eixo econômico da Província de São Paulo do litoral para o
interior, ocasionou o decrescimento populacional do primeiro. A exploração econômica
da região adaptou-se a situação; as populações voltaram-se para as atividades mais
diversificadas e que garantissem sua sobrevivência imediata, como a pesca artesanal
aliada a pequena lavoura de mantimentos, com destaque para a produção da banana. 39
No século XX destacou-se a criação do porto em 1935, mas, o isolamento da
região era considerável. Nos finais dos anos 60 surge a Petrobrás e com o
desenvolvimento das novas estradas o turismo alojou-se na área.
Diante do contexto histórico criou-se um valor próprio da memória,
desenvolveu-se uma política de preservação da história da cidade. A memória, segundo
o historiador Jacques Le Goff, é a capacidade que o homem possui de poder atualizar
impressões ou informações passadas. Todas as informações trazidas através da memória
servem para que se possa resgatar e salvar o passado. O homem sem passado e sem
memória não tem identidade.40
A cidade além de ser considerada um Patrimônio Histórico desde 1969, data
do tombamento em níveis Federal e Estadual, tem o cuidado em preservar quadros,
livros, fotografias e todos os elementos que documentam a memória e os costumes de
uma época, estabelecendo sempre relações entre o passado e o presente.
39 ALMEIDA , Antônio Paulino de, idem, p.149 e 150. 40 LE GOFF. Jacques. História e Memória. V. II. Lisboa: Edições70, 1982.
31
Em 1985, quando foi criado o arquivo histórico, houve uma grande
preocupação e movimentação de historiadores, pesquisadores, da ONG “São Sebastião
tem Alma” e da Secretaria de Cultura em resgatar, preservar a memória e a cultura
caiçara.
Foto 2 – Casa de Câmara e Cadeia, Casa no Centro Histórico e Igreja Matriz
Fonte: Wagner Bornal
3. A economia pesqueira e a Cooperativa de Pesca
Estendendo-se por mais de cem quilômetros, da ponta da Enseada, ao Norte,
até a Praia de Boracéia, ao sul, o município de São Sebastião caracteriza-se por um
povoamento linear ao longo do litoral adjacente a Serra do Mar.
Na parte norte, nos bairros Enseada e São Francisco, a atividade principal é a
pesca do camarão, principalmente a do sete-barbas, praticada de duas maneiras. Na
primeira, com embarcações artesanais e com redes, principalmente nas proximidades da
ponta da Enseada, a segunda, com embarcações melhores equipadas e com rede de
arrasto, os pescadores encontram-se concentrados no bairro São Francisco. Em
depoimento, o diretor da cooperativa, Rafael Cliquet, faz a seguinte afirmação “Nosso
32
carro chefe é o camarão”41. É também neste bairro que se situa a sede da Colônia de
Pesca, a Cooperativa de Pesca bem como a maior concentração de pescadores do
município, em parte originários de Santa Cataria. Eles daí emigraram há 35 anos em
virtude da diminuição dos cardumes de peixes em sua região de origem e devido à
industrialização da pesca que excluiu os pescadores artesanais. Destacaram que a nova
região oferece melhores condições de navegação, sendo também protegida dos ventos.
Sobre a relação dos pescadores de Santa Catarina com os caiçaras, segundo
Puertas, a contribuição dos catarinenses tornou-se marcante pela introdução da baleeira,
técnica da pesca que eles aprenderam com os portugueses. “Considero uma relação
onde agregou conhecimento, e muitos catarinenses hoje são casados com caiçaras e
constituíram famílias aqui em São Sebastião42.
Com relação ao aspecto rudimentar da pesca dos caiçaras, em meados da
década de 40, Gioconda Mussolini observara que em suas pescarias, o caiçara do
Município de São Sebastião dispunha apenas de aparelhos rudimentares, produzidos
artesanalmente por ele; inexistia, em seu universo, meios para a conservação do “peixe
fresco”, e a garantia de sua subsistência decorria da associação da pesca à pequena
lavoura de sua quadra43.
Segundo Diegues, apesar das características comuns a todas as comunidades
caiçaras, existem variações culturais importantes. As diferenças refletem nos tipos de
embarcações usadas bem como pelo aporte de outras culturas, como a baleeira trazida
pelos catarinenses açorianos44. A baleeira, como um dos principais barcos de pesca
utilizados pelos pescadores, tem capacidade para 2 toneladas e supera tanto o bote que
tem capacidade para 1 tonelada como a batera que tem capacidade aproximada de 600
Kg.
O governo federal, em 2001, liberou uma verba para incentivar a criação de
cooperativas e organização de reuniões e cursos com pescadores e pescadoras. Foram
ministrados cursos de manipulação de pescados e serviços administrativos em parceria
41 CLIQUET, Rafael: Depoimento Diretor administrativo e pescador na Cooperativa de pesca. 42 PUERTAS, Guilmer: Presidente da Colônia dos Pescadores. 43 MUSSOLINI, Gioconda. Ensaio de Antropologia indígena e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 263. Antropóloga e precursora dos estudos sobre cultura caiçara na década de 40. 44 DIEGUES, Antônio Carlos. Enciclopédia Caiçara. O Olhar do Pesquisador. V.1. São Paulo: NUPAUB, 2004, p. 25.
33
com o SEBRAE. Assim, em 2002, foi fundada a Cooperativa de Pesca em São
Sebastião.
A maior contribuição da Cooperativa, portanto, foi no sentido de diminuir a
ação dos atravessadores e “equilibrar” o valor do peixe no mercado. O cooperado pode
adquirir o óleo mais barato, lubrificante, graxa, filtro, peças de embarcação, entre outras
coisas, e, passou a ter um estatuto próprio, onde reza os direitos e deveres de cada um.
Em entrevista com os pescadores não associados, os mesmos relataram a
grande dificuldade em conseguir crédito para melhorar ou adquirir novas embarcações
devido à impossibilidade de comprovar renda por serem autônomos. O pescador sente-
se muito desprotegido; todos concordam que a grande vantagem da Cooperativa foi
equilibrar o preço do peixe. Registra-se que ela compreende uma associação autônoma
de pessoas que se unem, voluntariosamente, para satisfazer aspirações e necessidades
econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de um empreendimento de
propriedade coletiva e democraticamente gerido.
Uma conquista da classe dos pescadores foi a criação da divisão de pesca no
município, cujo objetivo é agir conjuntamente com a polícia florestal e portuária no
sentido de impedir que embarcações maiores pratiquem a pesca de arrasto dentro do
limite proibido por lei, prática esta comum entre os pescadores industriais que invadem
este espaço do mar onde só é permitida a pesca artesanal.
A portaria de nº 054/84 prevê a regulamentação de proteção aos recursos
costeiros através da proibição da pesca de arrasto à distância inferiores a 1,5 milhas
náuticas, pois esta é extremamente danosa para o ambiente, com a destruição de filhotes
de peixes, que se encontram nas costeiras, e, por não possuírem proveito no mercado,
são devolvidos mortos ao mar. O número de associados na cooperativa, em 2007-8 eram
65, sendo que 8 eram mulheres.
A situação dos cooperados pode ser visualizada na tabela 1. Tabela 01 –
Caracterização cultural de pescadores cooperados. Bairro São Francisco
34
Fonte: Cooperpescass (Cooperativa de Pesca de São Sebastião)
Foto 3 – Mulheres trabalhando na Cooperativa de Pesc
Fonte: Ana Maria Santana.- 2008
Cooperados Total 65
Homens: 57
Mulheres: 8
Religião 80% católicos
20% evangélico
(principalmente Sul da Ilha)
Origem Catarinense 50%
Sebastianense 50%
Casa Própria 70%
Carro 7%
Nível Escolar Fundamental Incompleto
98%
Nível Superior 2%
Nº de filhos 2 a 3
35
4. Narrativas e cotidiano das mulheres pescadoras
Tradicionalmente, a função da mulher na sociedade caiçara era a da mãe de
família, dona de casa, trabalhadora do lar e da roça. Suas tarefas eram bem definidas:
preparo do alimento e criação dos filhos.45 Portanto a pesca sempre foi um universo de
domínio masculino.
O papel que a mulher desempenha na cooperativa tornou-se central. Destaca-
se: ajudar financeiramente a família, ter um conhecimento do mar, do vento, da lua,
respeitar o período de defeso, isto é, seu respeito com o ciclo da natureza, enfim,
apresenta-se o olhar feminino sobre esse trabalho tão próprio do universo masculino,
que é o mar, a pesca.
Referente às mulheres, segundo relato das cooperadas, há aquelas que
esporadicamente vão ao mar acompanhar de perto a rotina do pescador. Mas, é muito
comum, ouvir entre os pescadores do bairro São Francisco que suas esposas foram
tomando gosto pela pesca e hoje são suas parceiras também no mar. Neste contexto, a
pesca, atividade tradicionalmente desenvolvida por homens, atualmente também
absorve mulheres que tiram do mar o peixe para a sua sobrevivência.
Foto 4 – Pescadora Jandira em sua casa
Fonte: Arnaldo Klajn
45 PAES, Silvia Regina. Espaço da vida, espaço da morte, na trajetória caiçara. Dissertação de mestrado. UNESP. Araraquara. 1988, p.31
36
Antes de ver a Cooperativa funcionando, as mulheres cooperadas participaram
de muitas reuniões e fizeram cursos promovidos pelo SEBRAE. As mulheres
pescadoras tiveram que tornar-se capacitadas na manipulação de pescados e serviços
administrativos. Na literatura sobre o mar constata-se que a mulher e os religiosos
sempre foram figuras difíceis de serem encontradas nas embarcações por simbolizarem
maus presságios. Neste sentido Diegues afirma:
Quando entram no mar, os pescadores, por exemplo, devem abandonar o que vem da terra para se proteger; quando chegam do mar devem abandonar o que receberam do mar para se reintegrar na sociedade dos continentais, sem os contaminar. Hoje, os rituais coletivos de proteção da gente do mar permanecem ainda certas práticas como evitar a presença, no barco, de certas categorias de pessoas (religiosos, mulheres), não proferir certas palavras e comportamentos enquanto navegam durante a noite.46
Com relação à situação da mulher na pesca, Gioconda Mussolini faz a seguinte
descrição: [...] E um dono de rede se queixava amargurado: toquei a tarde toda e
nenhum malvado apareceu. Havia tainha de se pegar com a mão na praia. Não sei o que me prende nesta ilha. E o desalento do homem chegava ao paroxismo quando me contava que tivera um dia que levar mulheres da casa para deitar rede. O fato de levar mulheres à pesca significava uma tão grande afronta aos costumes locais e aos brios masculinos, que era imperdoável. 47
No entanto, como já explicitado, no bairro São Francisco é comum ouvir entre
os pescadores que na atualidade suas companheiras também os ajudam na pesca e no
mar. Quando indagados sobre o fato da mulher situar nos livros históricos como
portadoras de maus presságios, os mesmos afirmaram que isso é lenda e que a mulher
também está conquistando seu espaço nesse universo masculino. Conforme
levantamento bibliográfico este fenômeno da mulher na pesca era invisível na literatura.
Os pescadores citam mulheres como Jandira de Oliveira, 63 anos, moradora do
bairro da Enseada que sempre viveu da pesca e de Laurinda Maria de Moraes, 48 anos,
cooperada que também enfrenta o mar todos os dias. Ambas são proprietárias de suas
embarcações.
46
DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e mares: Simbolismo e Imaginário, p.58 47 MUSSOLINI, Gioconda. In DIEGUES, A.C. – Enciclopédia Caiçara. Vol. 4, p. 193.
37
Desde 2002, quando iniciou o funcionamento efetivo da cooperativa, as
mulheres que fizeram os cursos no SEBRAE passaram a compor o quadro dos
cooperados. Na rotina da cooperativa iniciam o trabalho às oito horas. Cuidam dos
peixes, limpam o camarão, pesam os pescados e mantêm a higiene da cooperativa.
Trabalham no caixa e realizam a venda dos pescados. Elas registram os cuidados que
envolvem a filetagem do peixe, cortá-los em postas, descabeçar o camarão para
armazenar durante o período de defeso. Compreende ele os meses de outubro a
dezembro para o camarão sete barbas e de março a maio para o camarão rosa. Nestes
períodos são proibidos por Lei a pesca desses crustáceos.
Na hora do almoço há o revezamento. Alternam horários para não fechar o
recinto. Aquelas que têm filhos pequenos os deixam na escola e no outro período com
alguém da família. São seis mulheres sebastianenses e duas catarinenses. Estas últimas
chegaram a São Sebastião ainda crianças acompanhando os pais, gostam do que fazem e
têm em comum o fato de terem passado a vida toda muito próxima ao mar.
Quando são perguntadas se gostariam que os filhos continuassem com a
tradição, falam que não querem esse futuro para os filhos, pois a vida de pescador é
muito difícil. Têm que enfrentar o mar, o sol, as intempéries da natureza e nem sempre
são reconhecidas, valorizadas. Reconhecem a importância da cooperativa; mas, mesmo
assim, ressentem-se elas do peso que as iniciativas exigem.
O assunto salário, ou quanto ganham como cooperadas, não é divulgado. As
mulheres não gostam de falar sobre o assunto, comentam das dificuldades de serem
cooperadas. Não podem faltar ao trabalho, pois o que recebem é proporcional a
produção e não têm um salário fixo. Caso venham a se desligar da Cooperativa recebem
o equivalente a um salário mínimo. Esse dinheiro quando o cooperado entra precisa
contribuir por 10 meses com 10% do salário mínimo, ou pagar esse montante à vista,
valor este que fica guardado como uma reserva. Quando o cooperado se desliga da
cooperativa o recebe.
As mulheres falam que na alta temporada, nos meses de dezembro a março é a
época em que mais trabalham e que ganham melhor. Neste período também é liberada a
pesca do camarão sete barbas que é o principal crustáceo comercializado na
Cooperativa. Este fato, agregado à presença de muitos turistas que estão na cidade,
38
fazem com que aumente o trabalho e a renda da família. É nesse período também que
compram os eletrodomésticos para casa como fogão, geladeira, máquina de lavar e
pensam em realizar alguma reforma na casa.
No convívio com as mulheres pescadoras os valores mencionados destacam
também formas de sociabilidades encaminhadas para os festejos ligados aos rituais
religiosos e de manifestações tradicionais. Assim, compartilham elas das festas
religiosas de São Sebastião, São Pedro e das manifestações ligadas às Folias de Reis, às
Congadas (com destaque para a própria Congada de São Francisco).
O contexto das narrativas lendárias que compreende um repertório de saberes,
concepções e definição de um imaginário expressivo do litoral está enfatizado por
lendas, contos. O livro “Mitos e lendas de São Sebastião” tornou-se uma referência
sobre as tradições locais48.
Foto 5 – Festa de São Pedro Pescador – Junho 2007
Fonte: Arnaldo Klajn
48 VIVIANI, Patrícia (org.). Mitos e Lendas de São Sebastião. 2ª edição. São Sebastião. Vol. I, 2003.
39
Considerações Finais
O universo simbólico que acompanha as mulheres inseridas na pesca
caracteriza-se pela definição de valores onde a vida tradicional caiçara recria-se pelo
significado social, econômico e cultural onde a pesca está situada com um centro da
vida social e da subsistência.
Projetam-se situações de modernidade onde os padrões de racionalidade e
conquista de melhores salários tornam-se inseridos no cotidiano da mulher pescadora e
da mulher cooperada.
Um novo mundo ligado ao consumo e a presença de valores da civilização
coexiste com o tradicional universo de valores religiosos, rituais e do meio ambiente
que passaram a caracterizar a auto-identidade caiçara, como discutimos. Nota-se uma
inserção individual na recriação do universo tradicional.
De forma estratégica o poder público ligado às políticas educacionais e
culturais do município vêm recriando os valores tradicionais dos caiçaras inserindo-os
na complexidade do espaço urbano. Torna-se um tema de estudo em várias situações de
letramento, educação e cultura presentes em São Sebastião. Desta forma destacou-se O
Congresso dos Povos do Mar (1992), Encontro das Ilhas (1990), o Seminário
Internacional dos Povos do Mar e Mata Atlântica (1994).
O passado permanece magicamente reinventando, tornando a memória
coletiva um investimento das experiências, dos contatos diretos e reais. Assim, o seu
sentido fluídico e de constante movimento permite que a cultura caiçara desenvolva-se
como um antigo centro de valor e identidade cultural na atualidade.
O reconhecimento recente, cada vez maior, do papel dessa população numa
nova visão da conservação ambiental em áreas naturais protegidas, como conservadores
da biodiversidade, portadores de profundo conhecimento sobre o mundo natural tem,
por outro lado, contribuído para uma maior valorização da cultura caiçara.
40
Referências Bibliográficas
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002, pp. 176-177. DIEGUES, Antonio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Editora Hucitec, NUPAUB/USP. _____________________. Ilhas e mares: Simbolismo e imaginário. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. _____________________. Enciclopédia caiçara. V.1 O olhar do pesquisador. São Paulo: HUCITEC; NUPAUB, USP, 2004. _____________________. Enciclopédia caiçara. Vol. 4. História e Memória Caiçara. São Paulo: Editora HUCITEC: NUPAUB, 2005. LE GOFF. Jacques. História e Memória. V. II. Lisboa, Edições 70, 1982. MUSSOLINI, Gioconda. Ensaio de Antropologia indígena e caiçara. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 263. Antropóloga e precursora dos estudos sobre cultura caiçara na década de 40. PAES, Sílvia Regina. Espaço da vida, espaço da morte na trajetória caiçara. Dissertação de Mestrado. UNESP. Araraquara, 1998. RESSURREIÇÃO, Rosângela Dias da. São Sebastião: transformações de um povo caiçara. São Sebastião. Prefeitura Municipal, 2002. VIVIANI, Patrícia (org.). Mitos e lendas de São Sebastião. 2ª edição. São Sebastião. Vol. I, 2003. Fontes ALMEIDA, Antônio Paulino de. Memória histórica sobre São Sebastião. Coleção da Revista de História. Arquivo do Estado de São Paulo. São Paulo: 1959. CLIQUET, Rafael: Depoimento Diretor administrativo e pescador na Cooperativa de pesca. FREIRE, Laudelino. Grande eo Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre: Livraria José Olympio Editora. 2ª edição, volume II, p. 1154.
41
Evolução Estelar: Da Formação à Morte de uma Estrela
Rafael Teixeira TOFFOLI∗
Resumo: Neste artigo escrevo sobre um assunto muito estudado, mas mesmo assim com muito a ser descoberto: Evolução Estelar. Cito um pouco da história, de modelos e algumas equações fundamentais para o estudo das estrelas. Sigo para a formação das estrelas no universo, a partir de gás e poeira, sua evolução até a fase mais estável de sua vida, a fase da Seqüência Principal, no diagrama HR, sua evolução após essa parte de sua vida rumando para os estágios finais e, por fim, como uma estrela morre. A vida de estrela começa quando as reações químicas começam no núcleo e a morte quando um evento extremamente raro e violento surge, fazendo a estrela seguir para outra parte de sua evolução. Palavras-chave: Estrelas, Evolução Estelar, Diagrama HR, Sequência Principal, Supernova.
As estrelas são estudadas desde as primeiras observações do céu, antes mesmo
de Galileu utilizar a luneta para observar os astros. O primeiro parâmetro a ser estudado
foi a magnitude, com valores inteiros variando de 1 a 6, onde a magnitude 1 é uma
estrela mais brilhante e a magnitude 6 menos brilhante. Esse conceito mudou bastante
com o invento dos telescópios, que conseguiam detectar estrelas mais fracas, e a
magnitude passou a ter um intervalo muito maior. A magnitude do Sol, por exemplo, é -
26,74.
Com o uso de telescópios cada vez mais potentes, melhor foi o estudo das
estrelas. Assim foi possível estudar com mais precisão estrelas mais distantes, além de
nossa melhor fonte de informação, o Sol.
As informações das estrelas são obtidas através da radiação emitida por elas e
captadas pelos nossos telescópios e modelos tentam descrever e predizer o que
acontecerá na estrela em questão, quanto mais próximos os valores, melhor o modelo.
∗ Aluno de Mestrado da Universidade Cruzeiro do Sul – São Paulo, bolsista da FAPESP.
42
Esses modelos ajustam parâmetros como temperatura, densidade, luminosidade, massa,
composição química, entre outros.
Os modelos são ajustados com o auxílio de quatro equações básicas:
( ) ( )rrdr
rdM ρπ 24= (1)
( ) ( ) ( )2r
rrGM
dr
rdP ρ−= (2)
( ) ( ) ( )rrrdr
rdL ερπ 24= (3)
( ) ( ) ( )3216
3
Tacr
rLr
dr
rdT r
πρκ−= (4)
A equação 1 é a equação de Continuidade de Massa, a equação 2 é a equação de
Equilíbrio Hidrostático, a equação 3 é a equação de Equilíbrio Térmico e a equação 4 é
a equação do Equilíbrio Radiativo.
As variáveis nas equações são: r é o raio da estrela, M é a massa, ρ é a
densidade, P é a pressão, L é a luminosidade, ε é a taxa de produção de energia, T é a
temperatura e κr é o coeficiente de absorção médio. As constantes são: G = 6,67 x 10-8
din cm2 s-2 é a constante gravitacional universal, c é a velocidade da luz e a = 7,56 x 10-
15 erg cm-3 K-4 é a constante de Stefan-Boltzmann.
Para a evolução estelar, o principal parâmetro é a massa da estrela e, em seguida,
a composição química.
1. Formação Estelar
Estrelas formam-se em nuvens de gás e poeira, compostas principalmente de
Hidrogênio, no meio interestelar. Isto acontece quando em pontos da nuvem ocorrem
instabilidades gravitacionais e assim o gás e a poeira começam a se acumular em
algumas regiões. Com isso, a força gravitacional aumenta em cada ponto da nuvem, que
contrai. Assim, a pressão e a densidade aumentam e em algum ponto da nuvem, com
43
temperatura maior, as reações termonucleares podem ocorrer. O processo de colapso de
matéria na formação da estrela é de aproximadamente 108 anos.
Esse colapso não acontece em apenas um ponto da nuvem e, por isso, outras
estrelas podem se formar bem próximas, compondo um sistema binário ou terciário.
Dependendo da massa que colapsa, planetas e outros corpos celestes também são
formados.
Figura 1: Nuvem de formação estelar Doradus 30
2. Protoestrelas
Levando em consideração apenas as estrelas, o colapso de matéria ocorre até que
a região central entre em equilíbrio hidrostático. Essa matéria que cai na região emite
radiação e assim podemos observar sua luminosidade apenas no infravermelho.
Quando finalmente a região central entra em equilíbrio hidrostático, damos o nome de
protoestrela, já que só podemos chamar de estrela quando no núcleo temos a ignição, ou
queima, de Hidrogênio, isto é, fundir átomos de Hidrogênio para a formação de Hélio.
44
Na protoestrela, a temperatura central ainda não é suficiente para a fusão do Hidrogênio
e é de aproximadamente 103K.
Nessa fase, o caroço estelar é formado, a sua luminosidade aumenta e se
estabiliza, permanecendo assim até que a emissão de radiação faça com que sua
luminosidade diminua. A contração continua e, dependendo de sua massa, o núcleo da
estrela começa a queima do Hidrogênio. Se a massa M da estrela for M < 0,08Mo (Mo é
a massa Solar), ela é chamada de Anã Marrom e seu núcleo não tem temperatura
suficiente a fusão de Hidrogênio em Hélio.
Para estrelas com massa M > 0,08 Mo, a estrela alcança uma temperatura central
suficiente para a queima de Hidrogênio e assim a protoestrela passa a ser chamada de
estrela e entra na fase de sua evolução na qual passará o maior tempo, a Seqüência
Principal.
4. A Sequência Principal
Assim que o núcleo começa a queima do Hidrogênio em Hélio, a estrela entra na
Sequência Principal e fica nessa posição em um Diagrama HR (Hertzsprung-Russel). O
Diagrama HR é um gráfico onde no eixo x marca-se a Temperatura e no eixo y a
Luminosidade e cada região representa uma fase da estrela. Uma observação importante
é que a estrela não percorre o diagrama todo, quando entra na Sequência Principal,
permanece lá até que mudo seu estágio de evolução e assim por diante.
45
Figura 2: O Diagrama HR
O tempo de permanência da estrela na Seqüência Principal depende de sua
massa. Para estrelas de massa próxima a do Sol, o tempo é de aproximadamente 1010
anos (10 bilhões de anos!) e se for mais massiva, com aproximadamente 7Mo, o tempo
cai para 107 anos. Assim, quanto mais massiva é a estrela, menor é o seu tempo de vida.
5. A Evolução Após a Seqüência Principal
Assim como em toda a sua evolução, a saída da estrela da Seqüência Principal
depende de sua massa.
Estrelas de baixa massa, próximas a do Sol, após a queima de quase todo o
Hidrogênio no núcleo, a força da gravidade supera a pressão de radiação, e assim o
núcleo torna-se mais denso e sua temperatura aumenta, sua luminosidade aumenta por
um rápido instante e a estrela expande, tornando-se uma Gigante.
No caso do Sol, quando tornar-se uma Gigante Vermelha, Mercúrio e Vênus
deixarão de existir e a Terra é uma forte candidata a também ser consumida e, se não
46
for, não existirá vida por aqui. Marte pode ser destruído também, porém com uma
probabilidade menor.
Voltando para as Gigantes, a temperatura do núcleo é suficiente para a queima
do Hélio em Carbono, em um processo chamado Triplo-α, gerando o chamado Flash do
Hélio. Nessa fase, além do Hélio fundindo no núcleo, o Hidrogênio restante continua a
queima em uma camada vizinha. Terminando o Hélio no núcleo, a estrela contrai-se
novamente e esse processo dura aproximadamente 106 anos e termina com um vento
intenso, chamado de Nebulosa Planetária, expelindo grande parte de sua massa e
restando apenas o seu núcleo.
Figura 3: A Nebulosa Planetária de Helix
As estrelas mais massivas evoluem da mesma forma que uma de baixa massa no
início. A diferença começa quando o Hélio está terminando a queima. Como a estrela
tem mais massa, após a contração que terminaria em uma nebulosa, a gravidade da
estrela evita essa ejeção de matéria e faz com que o núcleo queime Carbono em
Nitrogênio, um processo chamado CNO, e queima Hélio e Hidrogênio em camadas
47
vizinhas, levando a estrela para o ramo das Supergigantes no diagrama HR. Quanto
mais massiva a estrela, as fases de contração e expansão são mais freqüentes e outros
elementos químicos são queimados no núcleo, como o Nitrogênio e o Oxigênio, por
exemplo, chegando até o Ferro, elemento que o núcleo não pode fundir.
As estrelas de alta massa podem terminar de duas formas: em uma Supernova,
que deixa um remanescente da estrela ou em um Buraco Negro.
6. Estágios Finais das Estrelas
O fim da estrela depende da massa que sobra após todos os processos escritos
acima. Se M < 1,4 Mo, a estrela passará para uma Anã Branca, se 1,4 < M < 3 Mo, será
uma Estrela de Nêutrons e se M > 3 Mo, será um Buraco Negro.
No caso de M < 1,4 Mo, aproximadamente entre 1 e 8 Mo na Seqüência Principal, após a
Nebulosa Planetária, o núcleo se tornará uma estrela extremamente quente, com
aproximadamente 200000K, mas como nesse caso a estrela não tem nenhum tipo de
reação nuclear, sua temperatura e luminosidade diminuem, consumindo a energia
restante em aproximadamente 104 anos chegando assim em uma Anã Branca.
48
Figura 4: As estrelas Sirius A, a mais brilhante no centro da imagem, que pertence à
Seqüência Principal e Sirius B, bem menor, um ponto no canto esquerdo inferior, uma
Anã Branca. Ambas pertencem à constelação de Canis Major (Cão Maior).
Uma Anã Branca tem aproximadamente 0,6 Mo e seu raio é 100 vezes menor
que o raio do Sol, o que torna a estrela extremamente densa. Seu resfriamento demora
em torno de alguns bilhões de anos, levando a formação de uma Anã Negra, um
conceito teórico já que ainda não foi detectada por nenhum telescópio.
No caso de 1,4 < M < 3 Mo, a força gravitacional é maior, comprimindo ainda
mais o gás da estrela fazendo com que seu núcleo seja formado por nêutrons. Como
colapsa rapidamente para o núcleo, uma ejeção violenta das camadas da estrela
acontece, em um fenômeno conhecido como Supernova.
Existem dois tipos de Supernova, tipos 1 e 2. As supernovas do tipo 1 ocorrem
em sistemas binários onde a gravidade de uma estrela atrai a matéria da outra e assim
acontece a explosão. As supernovas do tipo 2 ocorrem em estrelas mais massivas em
que o núcleo é formado por Ferro e explode devido à impossibilidade de fundir os
átomos de seu núcleo.
Figura 5: Supernova 1987A e remanescente
Após a supernova, o núcleo da estrela, com um raio de algumas dezenas de
quilômetros, fica muito denso e com uma rotação muito rápida, por originar-se de uma
49
estrela com um raio gigantesco, surgindo assim a Estrela de Nêutrons, conhecida
também como Pulsares.
São conhecidos aproximadamente 500 Pulsares e sua rotação, isto é, tempo de
uma volta completa em torno de seu eixo, tem duração entre 10-3 s até 4s. Os Pulsares,
quando descobertos, devido a sua periodicidade regular, foram confundidos com sinais
extraterrestres, fazendo-se pensar que seria uma prova de vida em outros planetas. Esses
Pulsares são detectados por ondas eletromagnéticas da estrela.
No caso de M > 3 Mo, o final da estrela é o mais fascinante e misterioso objeto
do Universo: o Buraco Negro. Ele ocorre pois o colapso gravitacional é tão intenso que
a densidade no núcleo torna-se infinita, gerando essa singularidade.
Buracos Negros não podem ser observados, já que nenhum tipo de radiação sai
dele, inclusive a luz, mas pode ser detectado através de situações a sua volta. Por
exemplo, matéria de uma estrela próxima pode ser drenada pelo Buraco negro e
emissões em raios X dessa matéria podem ser detectados.
Figura 6: Concepção artística de um Buraco Negro drenando matéria de uma estrela. O
disco azul em torno do Buraco Negro chama-se Disco de Acreção. Nessa imagem são
mostrados também o Jato e o Contra-Jato ejetado do Buraco Negro.
7. Conclusão
50
O estudo das estrelas depende de telescópios que possam receber radiação em
diferentes comprimentos de onda, desde os Raios Gama até o Rádio, e de tempo de
observação. A maior parte das estrelas está muito distante, o que faz com que os
modelos demorem certo tempo para serem comprovados, mas já existem muitos
modelos de estrelas específicas que já são aceitos, o modelo padrão do Sol é um deles.
A formação, evolução e morte de estrelas já foram muito bem estudados e
resumidos aqui, já que fatores específicos, como os cálculos de Temperatura Superficial
por exemplo, foram suprimidos para uma leitura interessante e um bom entendimento.
Referências bibliográficas
CLAYTON, D. D.. Principles of Stellar Evolution and Nucleosynthesis, 2nd ed.,
Chicago: University of Chicago Press, 1983.
MACIEL, W.J. Introdução à estrutura e evolução estelar , São Paulo: EDUSP, 1999.
GREGORIO-HETEM, Jane & PEREIA, Vera Jatenco. Apostila de Fundamentos de
Astronomia, 1° Semestre de 2000.
http://www.astronomynotes.com/evolutn/s1.htm, acessado em 13/08/2010.
51
Tá rindo de quê? Reflexões em torno do uso do humor como recurso educativo
Lucelmo LACERDA*
Resumo: Muitos são os desafios do professor e a busca por recursos mais atraentes e eficientes é imperiosa. Nesse contexto nos esforçamos, primeiramente, por legitimar a busca do lúdico no processo de ensino, posteriormente, investimos em delimitar com o máximo de clareza o que se entende por humor e como ele funciona. Na sequência, exercitamos o confronto entre possibilidades positivas e negativas desse uso no processo de ensino da matemática, chegando à conclusão de que se trata de um artifício altamente profícuo, guardando, contudo, o perigo de reforçar estereótipos bloqueadores do processo de ensino aprendizagem, exigindo do docente um aprofundamento e um cuidado ao utilizar-se do humor em sala de aula. Como fio condutor, adotamos a perspectiva freireana, à qual nos remetemos continuamente. Palavras-chave: Humor, Educação, Matemática, Lúdico, Paulo Freire
Introdução
Atualmente vivemos uma crise do ensino público. Nos primórdios do século XX,
o Brasil conhecia uma escola pública restrita, elitista, cuja autoridade do professor era
inconteste, legitimada socialmente e aplicada por meio da violência na sala de aula e do
rigor na aplicação das avaliações e do grande número de retenções a mudança de série.
No entanto, no decorrer do século XX tal situação foi gradativamente se
modificando, até que no fim do século a educação já se encontrava, como hoje,
relativamente universalizada. No entanto, a qualidade do ensino degenerou-se a olhos
vistos, a quantidade de alunos que terminam mesmo o Ensino Médio sem que consigam
sequer superar a condição de analfabeto funcional é imensa.
A autoridade, como conceito, entrou em crise com o advento da pós-modernidade.
Todas as autoridades passaram a ser questionadas e tiveram que alargar imensamente
sua base de justificação para sobreviverem ao erosivo mundo pós-moderno. O
professor, que exercia sua autoridade por meio da violência, seja física (palmatória,
puxão de orelha) quanto simbólica (ofensas, retenções) se vê hoje sem esses recursos
* Mestre em História e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP, Professor do Ensino Fundamental na rede pública em São Sebastião – SP;
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para operar na sala de aula e se debate em encontrar novas saídas pedagogicamente
eficazes e socialmente legítimas.
A legitimidade da autoridade do professor amparava-se na construção ideológica
de que o mesmo era detentor do conhecimento, em oposição ao aluno, que vivia na
ausência do conhecimento49. Assim, o professor era aquele que dispunha de seu
conhecimento a fim de que o aluno o absorvesse. Paulo Freire, ainda nos anos 60, em
concordância com o mundo de erosão das autoridades, veio denunciar tal proposta
pedagógica, que ele chamava de “bancária”, pois encarava a cabeça dos alunos como
cofres vazios e abertos, os quais o professor, com toda sua abundância de
moeda/conhecimento, deveria encher. Freire apontou que o professor é também aluno e
o aluno também professor, num processo de aprendizagem dialético. Sua teoria chama
atenção para o fato de que ninguém ensina ninguém e ninguém aprende sozinho, nos
ajudamos mutuamente num processo de aprendizagem coletiva50.
Não se trata, na teoria freireana, de descartar a pessoa do professor, que Freire
preferiu chamar educador, ou educador/educando, mas de repensar tal papel, não mais
aquele que despende seu conhecimento para assimilação dos alunos, mas aquele que
facilita o processo de aprendizagem por parte de cada aluno. Assim, Freire propôs, não
que o objeto cognoscitivo (a realidade) fosse digerido pelo educador e depois ofertado
ao educando, mas que o educador apresentasse o objeto cognoscitivo ao agente
cognoscente (o educando) para que o mesmo operasse o processo de cognição da
realidade e aprendesse ele mesmo a ver, compreender e julgar o mundo.
Diante dessas novas possibilidades teóricas e da crise da legitimidade da
autoridade do educador na sala de aula, urge pensar novas formas na relação educador e
educando, na sala de aula, que venha no sentido de aproximar o padrão de ensino da
excelência, fazendo com que os alunos aprendam melhor e também respondendo à crise
do papel do professor.
A autoridade do professor que antes residia na concepção bancária de educação e
se operava pela dupla violência, hoje deve se amparar na pedagogia do professor, em
sua capacidade de resolução de conflitos e de realmente levar os alunos a se envolverem
49 A palavra “aluno’ vem do latim “a” sem, “luno” luz, isto é a-luno, sem luz. 50 FREIRE, Paulo, Pedagogia da Autonomia, 39ªed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
53
na aula, se apaixonarem pela escola. E se opera por meio de recursos mil, normalmente
mais ligados à criatividade do professor do que à estrutura da escola (pública), o que,
evidentemente, não exime a escola de intervir no combate à indisciplina e de
proporcionar uma estrutura que favoreça o processo de ensino aprendizagem.
Nesse sentido, muitos recursos são utilizados, professores cantores, que fazem
música das matérias, educadores atores, que fazem da aula um verdadeiro espetáculo, a
utilização imagética, que se utiliza de filmes principalmente, a ascensão dos jogos
educativos na sala de aula. E dentro dessa miríade de possibilidades, pensamos que o
humor pode ter seu papel no sentido de reinventar o ensino e o papel do professor na
sala de aula51.
Nossa pretensão, neste estudo, foi refletir sobre a utilização do humor no processo
educativo, entendido como um recurso que, em tese, poderia incrementar trabalho do
professor, trazendo um elemento atraente o circuito de aprendizagem.
Nesse intento, nos esforçamos primeiramente para compreender o fenômeno do
humor e o delimitarmos de modo o mais preciso possível. Contudo, não é possível tratar
desse tema de um modo meramente formal e abstrato, é preciso trabalhar hipóteses
concretas, trazer à análise peças de humor e, portanto, seria necessário escolher uma
disciplina. Para tanto, escolhemos a matemática, uma vez que encontramos melhores
recursos nesse campo.
Nosso intento foi o de relacionar essas representações com os recursos de humor
existentes e também refletir sobre como esse recurso ao humor opera no sentido de
aperfeiçoar ou qualificar o aprendizado da matemática na sala de aula.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, estipulam uma série de diretrizes
que devem orientar o ensino de matemática no ensino básico no Brasil. Dentro dessas
diretrizes é que trabalham os produtores de livros didáticos e os próprios educadores, e
um elemento presente nesses parâmetros é a questão do lúdico. É bem verdade que os
PCNs dizem até onde um livro didático pode ir mas não impõe, por exemplo, que se
passe pelo lúdico, mas muitos livros já acompanham esta orientação devido à vultuosa
51 SCOCUGLIA, Afonso Celso; A História das Idéias de Paulo Freire e a Atual Crise de Paradigmas; João Pessoa: Editora Universitária; 1999; p. 111 a 123;
54
produção acadêmica que demonstra sua eficiência e estuda meios de sua praticabilidade
em sala de aula.
Dada a multiplicidade do lúdico, optamos por trabalhar apenas com algumas
formas específicas de representação de humor, verificando como se apresentam tais
representações. Assim, nosso trabalho se justifica em sua conformidade com os PCNs, e
tendo em vista que, ao contrário do tema geral do “lúdico”, é rarefeita a produção
acadêmica que hoje existe para analisar o recurso do humor no ensino de matemática,
praticamente restringindo-se à questão dos quadrinhos que, por um lado, vai muito além
do humor, pois o quadrinho pode ser dramático ou de qualquer outro gênero, e por outro
não açambarca todas as possibilidades do humor, que atinge também os cartuns,
narrativas, charges, chistes, etc.
Analisamos dois cartuns encontrados em um artigo de Márcia Castiglio da
Silveira, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, de título A produção
de significados sobre matemática nos cartuns (2007), esses cartuns, mais do que
oferecerem uma reflexão sobre como trabalhar com humor no ensino da matemática,
deu-nos mostra sobre como não trabalhar com tal gênero. Nessa perspectiva é que
trabalhamos com tais cartuns, com a idéia de que o humor não tem um conteúdo
valorativo positivo inerente, mas pode carregar consigo preconceitos perigosos a serem
evitados.
Não obstante, fomos à folha de São Paulo, na tira de quadrinhos produzida pelo
artista Laerte, denominada Piratas do Tietê e recortamos uma tira publicada no jornal
em 18/08/1999.
Também nos utilizamos de um portal de endereço
http://alexandramat.blogspot.com, denominado O Lado Divertido da Matemática: Ver
a Matemática com outros olhos em que estão presentes muitos elementos de
consideração da matemática a partir da lógica do divertimento. E por último, servimo-
nos de uma famosa passagem de Malba Tahan e constante no livro O Homem que
Calculava, de 1965, considerando a narrativa como gênero não pictórico de humor. .
Nosso foco exato são as charges, quadrinhos, narrativas, cartuns e chistes, mas
nossa reflexão perfaz o seguinte caminho, primeiramente fazemos uma defesa geral do
ludismo enquanto recurso de aprendizagem, apontando sua coerência com as fases de
55
amadurecimento da cognição, logo depois apresentamos o que é o humor nas
perspectivas de alguns autores importantes que refletiram sobre o tema.
Em seguida elencamos os formatos de humor mais comumente presentes no
ensino de matemática e cuja viabilidade de veiculação em livros didáticos é notória e
logo após analisamos alguns casos concretos presentes nas fontes de informação
apresentadas. Todas as representações serão consideradas e as mais representativas
apresentadas no texto para uma análise minuciosa.
1. Importância do lúdico
Como já apresentado, a educação vive uma crise que se expressa em vários
elementos, entre eles, na perda de legitimidade da autoridade do Professor. Essa
autoridade é questionada tanto pelos alunos, na sala de aula, com a indisciplina, e
teoricamente, fundando experiências como a de Summerhill 52 e da Escola da Ponte53.
O ludismo não é um tema novo na história da educação, Carlos Magno (742-814)
já apontava que “deve-se ensinar divertindo”, apontando uma antiga percepção sobre a
questão do ludismo, em geral e particularmente da questão que nos interessa: o humor.
Refletindo, no entanto, o humor em todas as matérias e não somente na matemática.
Alguns problemas colocados à época são até hoje correntes no ensino de
matemática. No Disputatio entre o mestre Alcuíno e o Jovem Pepino (filho de Carlos
Magno), que tinham como fim “aguçar a inteligência” aparece um problema muito
semelhante a um outro que conhecemos:
Havia três homens, cada um tendo uma irmã solteira, que precisavam de atravessar um rio. Cada homem desejava as irmãs dos seus amigos. Ao chegar ao rio, encontraram um pequeno barco no qual, de cada vez, só
52 NEILL, A. S.; Liberdade sem medo; (Summerhill) Radical Transformação na Teoria e na Prática da Educação; São Paulo: IBRASA; 1973; Ed. 14; (Coleção Biblioteca de Temas Modernos); A escola de Summerhill completou há pouco 80 anos, é na Inglaterra e foi fundada sob inspiração da filosofia anárquica, tem por base principal a subversão da autoridade, tudo o que acontece na escola é decidido pelos próprios estudantes em assembléia, são eles que definem as regras e, eventualmente, punem os que não as seguem. A Escola da Ponte, fundada por José Pacheco é uma escola pública de Portugal que parte das premissas de Summerhill, mas também incorpora muitas reflexões de Foucault sobre a arquitetura da sala de aula (que não existe nesta escola) o disciplinamento fluido que não está expresso em regras, assim, a Escola da Ponte não tem salas, não tem séries, não tem alunos nem professores. 53 CANÁRIO, Rui; MATOS, Filomena; TRINDADE, Rui; (orgs) Escola da Ponte: um outro caminho para a educação; São Paulo: Editora Didática Supergraf; 2004;
56
podiam atravessar o rio duas pessoas. Como é que atravessaram o rio, de tal forma que nenhuma das irmãs seja desonrada por um dos homens.
Resposta: Antes de mais eu e a minha irmã entramos no barco e atravessamos. Depois de ter atravessado o rio, eu deixo a minha irmã e volto a atravessar o rio. Depois as irmãs dos dois homens que ficam na margem entram no rio. Quando estas mulheres saem do barco, a minha irmã que já tinha atravessado, entra no barco e trás o barco até nós. Ela sai e os dois homens atravessam o rio. Depois um dos irmãos e a sua irmã atravessa o rio ao nosso encontro. Eu e o irmão que piloto o barco, atravessamos o rio para a outra margem, enquanto que a minha irmã ficou para trás. Quando ele foi transportado para o outro lado, uma das outras mulheres pegou no barco e atravessou para o outro lado, e a minha irmã veio, com ela, ao nosso encontro. Depois o homem cuja irmã tinha ficado na outra margem entrou no barco e trouxe-a até nos. Assim, a travessia estava completa, sem que nenhuma das irmãs fosse desonrada.54
Um outro problema utilizado ainda hoje no ensino básico é flagrantemente uma
variante daquele:
Um homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e uma couve. E não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa, toda a carga. Diga quem puder, como fez ele a travessia?55
O grande diferencial, no entanto, é que o ludismo na Idade Média aparece como
uma forma de atenção à religião, na medida em que a bíblia associa o brincar da
Sabedoria com o ato da criação “Ali estava Eu [Sabedoria Divina] com Ele como
artífice, brincando diante d’Ele o tempo todo; brincando sobre o globo terrestre, e
minhas delícias são estar com o filho dos homens” (Prov. 8, 30-31). Enquanto hoje o
ludismo é amparado cientificamente pelos estudos que trataram da questão da cognição,
sobretudo Piaget.
Piaget se postou contra o modo em que se pensava a questão da cognição em sua
época por várias correntes de pensamento. Com métodos científicos bastante
embasados, Piaget demonstrou que o ser humano passa por diversas fases no aparelho
54 HENRIQUES, Helena Castanheira; ALMEIDA, Conceição; O lúdico nas aritméticas do século XVI; Extraído do Portal da Sociedade Portuguesa de Ciência da Educação; em 18/06/2007, no endereço http://www.spce.org.pt/sem/9.pdf; 55 Idem;
57
cognitivo e que vai desde o nascimento, ou mesmo antes dele, e se completa por volta
dos 17, 18 anos.
O Pedagogo/Psicólogo demonstrou esse processo em várias fases progressivas de
relacionamento entre o indivíduo e o meio, trabalhando a maneira com que esse
relacionamento se torna conhecimento: 1. Período Sensório-Motor 2. Período Simbólico
3. Período Intuitivo. 4. Período Operatório Concreto. e 5. Período Operatório Abstrato.
Diante das inúmeras correntes que propunham teses diferentes e adversas sobre a
maneira com que o indivíduo desenvolve sua inteligência, marcadamente daquelas que
pensavam a inteligência como algo inato ao indivíduo, maturada na vida adulta e
daquelas que pensavam o ser humano como mero veículo da vontade da estruturas,
totalmente condicionado pelo ambiente social, Piaget construiu seu aparato conceitual
por sobre a lógica do interacionismo, apontando que é na relação entre o ambiente e o
corpo que o indivíduo vai forjando sua inteligência.
De alguma forma, Piaget tem bastante a ver com a pedagogia de Paulo Freire.
Infelizmente, na atualidade, ainda não há uma difusão mais séria do pensamento de
Paulo Freire no Brasil. A esmagadora maioria dos Professores resume seu
conhecimento em Paulo Freire dizendo que “Ele foi um educador que pregava que
deveria ensinar o aluno usando a realidade dele”. Uma vulgarização simplista e
muitíssimo errônea do que defendia Paulo Reglus Freire.
Primeiramente jamais se acomodaria na teoria freireana a idéia de que alguém
ensina outrem, o princípio básico dessa filosofia é o conceito de que ninguém ensina
ninguém e ninguém aprende sozinho, mas os homens aprendem em comunhão. Desta
forma, os agentes do ensino se apropriam da teoria freireana, no sentido de participar de
seu prestígio como teórico, mas ressignificando sua fala que, ao invés de fala de
libertação, de rompimento com a educação bancária, dissimula-se como legitimadora da
mesma, isto é, o problema deixa de ser a forma da relação educador e educando e passa
a se localizar simplesmente no âmbito do conteúdo que é ensinado. Assim, basta
despejar conteúdo sobre a vizinhança do aluno em sua cabeça/cofre para que a mesma
se encha.
Essa leitura acerca de Paulo Freire também recorre a Piaget, na medida em que se
aponta a questão do conteúdo local como uma reflexão derivada da proposição da
58
utilidade do lúdico pelas teorias piagetianas. Pois bem, como não queremos apresentar
nossa reflexão nesse sentido, cabe colocar em seu devido lugar a distância/proximidade
no pensamento de Paulo Freire, proponente da lógica que pretendemos participar.
O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a capacidade de pensá-las segunda as exigências lógicas do discurso abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer sua palavra56.
Pensamos que tal colocação é bastante esclarecedora do intento geral da teoria de
Freire, que acredita que na libertação de indivíduos através da educação libertadora, que
serão militantes da libertação real, concreta, da variadas formas e estruturas de
dominação. Entre elas está a dominação cultural. Para desvencilhar-se desta, é
fundamental que não se debata questões abstratas, genéricas, mas a partir da vida das
pessoas e das contradições presentes em seu dia-a-dia.
A dimensão cultural da dominação tem como um dos eixos centrais a negação da
palavra ao povo, a este é negada a palavra, a articulação crítica desta, o povo aprende
desde cedo que os “doutores” são os detentores do saber, do conhecimento e não há
diálogo entre a elite e o povo, mas uma relação desigual, de mando.
Quando a esquerda que “conscientizar” o povo, quer que ele aprenda as
contradições da realidade, que ele é explorado por um patrão, que o mundo é construído
para pobreza, que esta não é uma fatalidade, normalmente a relação com o povo
novamente é uma relação de dominação entre uma esquerda que “conhece” a realidade
e o povo que ainda não a sabe e “deve” aceitar o que a esquerda diz por que ela é sua
legítima defensora. Pois bem, Paulo Freire recusa tal metodologia denominando-a
“colonialismo de esquerda”, que seria, na verdade, uma prática de direita.
O educador propôs uma ação dialógica com as massas populares com a premissa
de que ninguém sabe mais do que ninguém, que na verdade há saberes paralelos, mas
tão complexos uns quanto os outros e que esse era um dos princípios básicos para o
respeito mútuo. Nessa ação dialógica não se deveria relacionar com o povo por sobre
sua posição, por sobre seu saber, mas construir “a partir” desta posição e “com” o povo
56 FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido; 17ªed. , Rio de Janeiro; Paz e Terra; 1987;
59
uma nova posição crítica, isto é o educador deveria ajudar o educando a descobrir as
contradições de sua própria existência.
E partir de sua posição, é, sem dúvida, partir de seu mundo. Todos somos “seres-
no-mundo” e, como tal, temos uma posição no mundo, inexoravelmente, e é nessa
posição concreta com que nos relacionamos criticamente. Assim, a práxis, ação/reflexão
na realidade, se engendra a partir da vida real.
É a partir desse quadro que Freire propõe a escolha das palavras-chave e os temas-
geradores, de seu método, na realidade do educando. E considerava o envolvimento
emocional do aluno com o tema de estudo mais importante politicamente do que um
suposto de aumento da velocidade da aprendizagem da escrita57.
2. O que é humor
Humor é um termo notoriamente polissêmico. A enorme variedade de significados
dados à mesma palavra certamente nos exige um posicionamento que estabeleça em que
sentido a palavra aparece neste trabalho, de outra forma, o próprio objeto de estudo fica
descaracterizado face à sua fluidez e ausência de inteligibilidade.
Freud se debruçou extensivamente sobre essa questão, escrevendo, em 1905, o
trabalho O Chiste e suas relações com o inconsciente, em que ele trabalha
especificamente o chiste, dedicando os últimos capítulos ao humor e em 1927 vem a
obra O Humor, em que muitas teses são repetidas, ganhando apenas um refinamento
maior.
O fundador da psicanálise compreendeu o humor como um mecanismo de
economia psíquica, como instrumento catártico em que se “descarregava” energias
psíquicas negativamente acumuladas com a dor, sofrimento, etc., invertendo a lógica e
polarizando sentimentos. Para Freud:
O humor pode ser considerado uma das funções de defesa que, diferentemente da repressão, encontra um meio de despojar de energia a esperada produção de desprazer convertendo-a em prazer. Freud acredita que tal processo se torna possível pela sua conexão com o infantil . Ou seja, a comparação efetuada pelo sujeito de seu eu adulto com seu eu infantil, ao
57 FREIRE, P. Pedagogia da Esperança; São Paulo: Cortez; 1992;
60
minimizar os sentimentos deste como se estivesse a dizer: ‘“sou mais forte, sou superior a essas adversidades!’58
Este estabelece, deveras, também uma distinção entre o humor, a ironia e o chiste,
embora todos provoquem o riso, os meandros estilísticos dos mesmos lidam com a
mesma realidade, mas de uma forma diferente. Para Freud, o humor se apresenta como
uma superação desdenhosa de uma situação difícil, crítica, se conforma a partir da
relação de contrários e a supera com traços de rebeldia. Neste último aspecto é que se
dissocia, por exemplo, do discurso de um sábio sobre a superação das adversidades, na
rebeldia, que não se diferencia necessariamente pelo conteúdo, mas pela forma, o
próprio ângulo com que o humor se aproxima da realidade é um ângulo distorcido.
É justamente na grandeza e na exaltação que o humor se distancia do chiste e do
cômico. Este se apresenta como tal, independentemente de um interlocutor mediador e
aquele, o chiste, aparece quando um interlocutor subverte a realidade em uma frase
normalmente de desdém, negativa, mas com tal efeito que não é tomada como ofensa,
mas como pilhéria, e quem ri, faz porque o sentimento em acordo com essa inversão já
estava presente em si mesmo e é liberado pelo efeito catártico do riso59.
Para Pirandello, o humor também se distingue do cômico, do burlesco, sátira,
caricatura, farsa, do grotesco e mesmo da ironia. Enquanto a contradição é elemento
essencial do humor, ela aparece de modo fictício na ironia, na narrativa em que se diz
algo para que o inteligido seja outra coisa que não o efetivamente dito, o significado real
da ironia se dá pelo tom e pelo contexto.
Mesmo Pirandello admite que não haja uma definição exata para humor, há
elementos humorísticos que se apresentam em alguns autores e não em outros, chega a
se perguntar se não há humor, mas tão somente humoristas. Mas não se centra nesse
tema, preferindo pensar o processo de criação do humor. O processo de criação
humorística é íntimo e característico, fundado no que Pirandello chama de “Sentimento
do contrário”, mas que não se firma por oposição a determinado ponto, mas
teimosamente contra e por sobre tudo.
58 LIMA, Denise Maria de Oliveira, op.cit.; p. 27; 59 Ibid;
61
São três as características principais que Pirandello remete ao humor: 1) as “obras
humorísticas são descompostas, interrompidas, entremeadas por contíguas digressões e
despertam uma associação por contrários”; 2) a criticidade da obra de humor, o
humorista é um crítico sui generis, fantástico, no sentido estético da palavra; 3) a última
característica é a necessidade de intimidade de estilo, nesse sentido é que o humor se
contrapõe à retórica, cuja principal característica é a pomposidade na forma60.
Winnincott tem uma posição diferente acerca das dissociações no interior da
psiquê, ao invés de um ego, um id e um superego61, há, para este autor, um self e um
falso self, embora utilize algumas vezes as divisões clássicas de Freud com finalidade
instrumental. Winnicott descreve um fenômeno que tem o curioso nome de “Orgasmo
do Ego”, diferente do “Orgasmo do Id”, correspondente ao gozo sexual. O “Orgasmo do
Ego” corresponde um insuflamento do eu estimulado pelo ato de soma cultural, de
conhecimento. Assim aparece o humor, como algo que dá prazer, portanto, que
promove um “Orgasmo do Ego”62.
O último teórico cuja visão sobre o humor nos debruçamos é Bergson, autor do
clássico Le rire. A idéia básica de Bergson é a da vida como algo extremamente
dinâmico. O francês pensa a realidade com duas tendências paradoxais, uma tendência
ao movimento, à dinâmica, tendência em acordo com as necessidades da humanidade.
Mas há também uma tendência à fossilização, ao enrijecimento em determinado estágio
da realidade. Essa tendência ao conservadorismo, ao enraigamento é, para Bergson,
absolutamente inadequada. Nesse sentido é que Bergson pensa o humor. O pensador
francês atribui uma função social ao humor, qual seja a de escarnecer e
consequentemente inibir a tendência à fossilização, rimos do que é inadequado, do que
não serve para a humanidade como que para escarnecer do que apresenta um
comportamento não dinâmico para que o mesmo fique inibido a tornar a fazê-lo.
60 Ibid; 61 Na psicanálise clássica, elaborada por Freud, a psique aparece dividida em três entes, o Id, que representa nosso ser instintivo, ligado às pulsões humanas, sobretudo à sexualidade; O Ego é o eu, a consciência dividida entre as pulsões do Id e do controle do Superego, que é a figura introjetada do pai, da autoridade, que pressiona o Ego em prol do respeitos da regras sociais e morais; 62 BOGOMOLETZ, Davi Litman; Freud, Winnicott e o Humor; Publicado em Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 47; nº 1; Rio de Janeiro; 1995;
62
Um exemplo dado pelo próprio autor de tal teoria é o de uma pessoa que tropeça
em uma pedra, a vida exige que, ao andar, haja cuidado com os obstáculos, que se drible
os mesmos. Andar, assim, não se constitui como um desenrolar mecânico de pernadas,
uma após a outra, mas um exercício dinâmico em que se exerçam os sentidos e se
estabeleça numa relação dinâmica e dialética com a trajetória a ser percorrida. Assim,
rimos do indivíduo que tropeçou, inibindo a repetir o mesmo comportamento rijo,
impelindo-o a um comportamento mais “adequado” socialmente63.
Depois de analisarmos alguns dos principais teóricos do humor, aproveitamos para
expor uma disposição geral que engloba as teorias sobre o humor em três grandes
grupos, que não são rigidamente separados, havendo autores que transitam em mais de
um desses grupos fazendo com que os mesmos apareçam mais como três vetores das
teses propostas para a explicação do fenômeno do humor do que como teorias
propriamente ditas, como aqui aparece grafado. Desta feita, apresentamos esses três
vetores como teorias abrangentes, servindo esta separação como ferramenta para o
pensamento, para clarificação de alguns dos principais argumentos que tangem a
questão do humor:
a. Teorias da Superioridade:
Teoria da qual provavelmente Thomas Hobbes (1588-1679) é fundador, o qual
dizia que o riso é um tipo de glória repentina, propondo o riso como atitude de escárnio,
que se tem por sobre os erros alheios ou de si, do próprio passado, ou como proposto
por alguns psicanalistas, no próprio interior da psiquê, o superego se relaciona com o
ego como uma criança que fez algo de errado, assim, a atitude de escárnio é do próprio
superego para com o ego.
Tal teoria tem interfaces com o pensamento de Freud e Bergson, que pensa o riso
como instrumento de defesa contra a tendência á rigidez humana, a defesa social contra
os excêntricos que se recusam a se adaptarem à sociedade.
b. Teorias da Incoerência:
63 BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
63
Kant defendia que o humor surge da “transformação repentina de uma grande
expectativa para o nada”. Isso envolve a sugestão de que o humor consiste na dissolução
violenta de uma atitude emocional.
Esta teoria baseia-se na simples idéia de que o humor surge de dois elementos
incoerentes em sua relação, contraditórios. Na esteira dessa questão Spencer afirmou
que esse encontro de contraditórios que provoca o riso segue a fórmula da “Incoerência
descendente”, em que se passa de algo solene, respeitável, bruscamente, para uma
afirmativa trivial ou obscena, gerando uma frustração da energia nervosa acumulada
para a seqüência solene do falado e que, sem possibilidade de “adequada” utilização é
“descarregada” na forma do riso. Tese que se apropria do instrumental freudiano, no
que concerne á idéia do riso como catarse e indo para além e em outra direção do
mesmo.
c. Teorias do Alívio:
Como o humor questiona as exigências sociais convencionais, ele pode ser
encarado como um fornecedor de alívio da restrição que essas exigências impõem.
Assim, o pressuposto básico desta teoria, ou do conjunto de teorias que compõem este
grupo de teorias é a idéia de que a regulação moral societária, que se manifesta nos
níveis público e privado, gera uma opressão, uma restrição que se concretiza
socialmente nos códigos morais societários e em nível individual, no interior da psiquê,
através do superego, a figura relacionada ao pai, à autoridade interna que vive a
relembrar, de fazer ressoar na psiquê as exigências sociais.
Esta questão leva à conclusão de que nossa própria censura dificilmente permite
um comportamento que se oponha de modo frontal às exigências sociais. Mas tão
somente é possível fazê-lo obliquamente. Isto é, a censura só permite uma “resistência”,
oposição aos valores sociais vigentes de modo dissimulado, não se passando
necessariamente por sobre algo ou alguém, mas simplesmente burlando convenções e
aliviando-se da constante e onipresente opressão social64.
64 SILVA, Nilson Roberto Barros da; Um estudo sobre a recepção do humor traduzido; Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará; Fortaleza – Ceará; 2006;
64
2.1. Conceituando humor
Pois bem, não se deve jamais esquecer que este é um trabalho científico e, como
tal, deve se submeter aos critérios de cientificidade. Não poderíamos trabalhar com o
conceito de humor a partir de definições de dicionário, muito distante da complexidade
aqui exigida. Sequer poderíamos passar desapercebidos face à milenar reflexão acerca
do humor. Foi fundamental a explanação do panorama histórico açambarcando as várias
concepções sobre o mesmo fenômeno, o humor, para que pudéssemos nos posicionar
criticamente nessa questão, fugindo às persistentes ambigüidades que povoam as
produções humanas, e encontrando uma definição para o conceito de humor que fosse
tanto precisa, fugindo às polissemias, quanto funcional para este exato trabalho aqui
apresentado.
Para análise de um fenômeno tão amplo quanto aquilo que leva ao riso, os autores
aqui estudados separaram a questão em diversos gêneros estilísticos, de montagens de
linguagem (escrita ou pictórica) para fins de análise. No trabalho que aqui propomos,
cabem os variados “tipos” de humor apresentados, fazendo-nos pensar em como se pode
enredar essas montagens em questionamentos matemáticos em esquemas que fazem rir.
Deste modo, quando nos referimos a humor, entenda-se por tudo aquilo que
provoca o riso, açambarcando os diversos formatos lingüísticos e com diversos
enquadramentos “metodológicos” da exposição de determinada situação humorística,
cujas subdivisões nos interessam, e seguem:
2.2. Formatos Humorísticos
Pensamos alguns formatos como possíveis de aparecer nos livros didáticos com
finalidade instrutiva no ensino de matemática. Esses formatos não são novos ou
originados para a didática, mas são formatos comuns, já utilizados para a construção
humorística usual e que são subvertidos por aqueles que se apropriam dos mesmos para
a didática.
O humor em si não se enquadra em nenhuma regulação de valores, se limita a
provocar o riso, que pode tanto ser encantamento com a ingenuidade infantil, quanto
escarnecimento do mórbido, como no assim chamado “humor negro”. O humor pode
ser instrumentalizado tanto para a reprodução de posições políticas específicas quanto
65
na disseminação de preconceitos. De modo que devemos pensar o humor como um
veículo, mas que interfere também no conteúdo, na medida em que admitimos que a
forma seja forma do conteúdo e que o conteúdo é o conteúdo da forma, sabendo que
ambos se influenciam mutuamente.
Pensando na realidade de ausência de valores intrínsecos à representação do
humor, chegamos à conclusão de que podemos utilizá-lo de variadas formas, nos
servindo de diversos formatos para tal tarefa. Limitaremo-nos aos formatos mais
corriqueiros: o cartum, a charge, o chiste, os quadrinhos e a narrativa simples.
Para nos lançarmos à tarefa de pensar a utilização desses elementos no ensino de
matemática, cabe nos informarmos minimamente acerca dessas linguagens e suas
respectivas particularidades.
O cartum
Comecemos pelo cartum. A palavra original que designa a referida linguagem
cartoon, com o significado que hoje tem, nasceu em 1841, na revista inglesa Punch,
considerada a mais antiga revista de humor de todo o mundo e em muitos países
mantêm a grafia original do inglês. No Brasil, porém, Ziraldo, na revista Pererê, lançou
o neologismo cartum em 1964, que se consolidou.
Os cartuns são tira horizontais ou verticais, que se dividem em dois ou três
quadros, normalmente, mas que também pode aparecer em um só quadro ou mesmo
esticar-se a quatro e que contêm desenhos humorísticos, com ou sem falas, reforçando e
complexificando o conteúdo dos desenhos.
Os cartuns se referem a coisas genéricas, sem significação ligada a um fato
específico, mas tratam de situações reais ou imaginárias autônomas.
Os cartuns são os elementos, entre os listados, que mais aparecem em livros
didáticos, devido à sua brevidade, pois ocupam pouco espaço e são rapidamente
inteligíveis, além de sua complexidade, pois podem articular representações pictóricas
com uma mínima narrativa, enredando alguns poucos balões com falas dos personagens
e as significações dos desenhos. E ainda, por sua autonomia, que não requer
66
conhecimento prévio dos alunos acerca de personagens ou acontecimentos anteriores
ligados à tira65.
A charge é muito semelhante ao cartum, também é uma tira de um, dois ou três
quadros humorísticos que podem, ou não, conter falas, cuja única diferença do cartum é
que a charge não guarda autonomia.
Na charge, os elementos constitutivos estão inexoravelmente ligados a um fato
real, histórico e, para sua adequada inteligibilidade, exige do sujeito da leitura, um
conhecimento prévio da realidade dissimulada. Para fortalecer os laços com a realidade
com que guarda vínculo, a charge se utiliza sobejamente de símbolos característicos de
determinado grupo ou pessoa, abusa nos estereótipos e lança mão da caricatura.
A caricatura é um desenho humorístico de uma pessoa, em que seus traços mais
salientes são maximizados, criando um desenho absolutamente diferente de qualquer ser
humano real, mas imediatamente vinculado a um personagem concreto.
Nos livros didáticos de história, esse recurso é de valia extraordinária, porém, no
ensino de matemática, sua utilização é limitada.
A charge, no ensino de matemática, pode remeter a situações de questionamentos
matemáticos, isto é, problemas, que se sucederam com personalidades históricas, mas
principalmente ilustrar fundadores de diversas teorias, fórmulas e quaisquer outras
propostas no campo da matemática e cujos dilemas fundamentais são importantes para a
compreensão das conclusões de seu pensamento66.
O chiste
O chiste é uma representação que aparece pontualmente no auxilio à didática e se
resume a uma frase que subverte a realidade, apreendendo um ângulo fora dos padrões
societários, mas cuja significação é, de antemão, compartilhada pelos pares, ainda que
inconscientemente. É esse a priori da significação subversiva latente que provoca o riso
quando desvelada pelo proponente do chiste. Não há chiste sem um intermediário, um
formulador.
65 SILVEIRA;Márcia Castiglio da; A produção de significados sobre matemática nos cartuns; Extraído no Portal da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPED, em 05/06/2007, no endereço http://www.anped.org.br/reunioes/24/T1379507291582.doc. 66 Idem;
67
Como Freud foi o principal formulador da teoria do chiste, apresentamos como
exemplo, uma situação que se conta ter acontecido com o próprio. Freud formulou a
teoria dos objetos fálicos, para ele, a atração das pessoas por objetos que se aproximam,
imageticamente e tatilmente ao formato de falo, ou seja, formato cilíndrico, tem relação
com os anelos infantis ligados diretamente à sexualidade.
Conta-se que alguns jovens de uma universidade alemã em que Freud dera uma
aula durante o dia sobre a teoria dos objetos fálicos saíram à noite e encontraram o
professor insone, na varanda, fumando um charuto, todos se entreolharam e Freud saiu-
se com essa:
“__ Tem momentos rapazes, em que um charuto é só um charuto.”
Os rapazes riram muito. Mesmo que a correlação não tivesse sido conscientemente
feita de antemão por quaisquer dos mesmos, seu significado era latente e desvelado pelo
proponente do chiste, provocando o riso.
Devido à falta de complexidade, o chiste é de difícil instrumentalização per se no
livro didático, pode surgir discursivamente de forma isolada em um balão para destacar-
se do desenrolar explicativo do livro didático ou mesmo com um travessão, indicando a
fala de um personagem e, possivelmente, em itálico, fugindo da tabulação convencional.
Entretanto, o chiste aparece mais como gênero, nos demais formatos aqui
elencados, por exemplo, uma charge pode representar dois personagens, sendo que o
recurso ao humor se dê pela proposição de um chiste por parte de um deles67.
O quadrinho
Os quadrinhos nasceram ligados ao gênero do humor, por isso receberam o nome
de comics no mundo anglófono. Porém, depois da década de 30 do século 20, ganhou
expressões policialescas, de aventura, romance, ganhando diversidade.
Os cartuns são tiras pequenas, uma seqüência mais extensa dessas mesmas tiras é
considerada uma peça de quadrinhos, mas uma peça de quadrinhos não pode ser
considerada como um cartum extenso. Isso porque o cartum é uma forma que pressupõe
de antemão um gênero, o do humor. “Já os quadrinhos são um formato, ‘história em
imagens”, “narração figurativa”, não há um termo conclusivo que açambarque a
67 LIMA, Denise Maria de Oliveira, op.cit.;
68
complexidade de um roteiro icônico carregado de significado enredado com um roteiro
narrativo-discursivo em que se enlaçam personagens e, eventualmente, um narrador e
que pode conter trechos em 1ª e 3ª pessoas. Mas o fato é que, como já visto, os
quadrinhos não constituem um gênero, mas são utilizados como mecanismo
comunicacional pelos diversos gêneros, policial, aventura, ação, entre muitos outros,
além do humor68.
A narrativa simples
A narrativa simples é assim apresentada aqui, não porque não possua
complexidade, mas para se diferenciar daqueles formatos em que a complexidade é
especificamente garantida por meio da relação entre escrita e representação icônica.
Charges, cartuns e quadrinhos também apresentam narrativas, mas a narrativa da
qual neste momento tratamos se despe do mecanismo icônico e se arma da língua
“pura”, operando em níveis de complexidade altíssimos.
Na matemática brasileira, uma figura indubitavelmente proeminente nesse assunto
é o romancista Malba Tahan, autor do grande sucesso O Homem que Calculava,
romance que conta a história do calculista Beremiz, que se enreda em situações de
desenlace matemático.
Na medida em que o livro didático tem séria restrição de espaço, fica impedida
uma narrativa mais longa, aparecendo de modo resumidíssimo nos problemas, mas
quase nunca com humor. Pensamos ser possível a apresentação de problemas em
narrativas com humor, e que englobe os questionamentos ou mais de um problema e
utilizando menos de meia página.
3. Pensando concretamente a utilização do humor no ensino de matemática
A partir do começo da pesquisa, passamos a lidar com cartuns, charges, chistes,
quadrinhos e narrativas que aparecem em diversos veículos, alguns propriamente de
68 QUELLA-GUYOT, Didier; A história em quadrinhos; tradução de Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral; São Paulo: Unimarco Editora; São Paulo; Editora Loyola; 1994; (Coleção 50 Palavras), p. 70 – 71;
69
ensino de matemática, ainda que não constituam um livro didático, mas também outros
tipos de veículos, como jornais e sítios que publicam charges e cartuns. De tal forma
que, para analisarmos, selecionamos um total de 4 cartuns assim como um trecho
narrativo de autoria de Malba Tahan, que consta no livro O Homem que Calculava, por
entendermos as referidas peças como as mais adequadas para tal tarefa.
Lembrando, porém, que nosso intuito no presente trabalho não é a produção de
representações de humor, de modo que o fato de não trazermos aqui quadrinhos,
charges e quaisquer chistes não nega que os mesmos sejam instrumentos interessantes
no ensino da matemática e nem sequer que escolhemos a esmo os objetos de análise.
Pelo contrário, demonstra que tivemos cuidado na escolha das representações
trazidas a esse artigo, mas diante da exigüidade de representações do tipo aqui
analisadas, foi impossível trazer uma peça de cada formato, ficando então as
considerações sobre o uso dos formatos que não aparecem na parte das análises no
limite do possível, isto é, no âmbito da reflexão teórica e derivada dos formatos
estudados, o que não torna inválida a reflexão.
Comecemos então por pensar o que não fazer ao trazer o humor para o ensino da
matemática. Para tal tarefa, convocamoso a ajuda de Márcia Castiglio da Silveira, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, autora do artigo A produção de
significados sobre matemática nos cartuns, de 2007, em que são analisadas algumas
peças que reproduzem o senso comum acerca da matemática:
Figura 1. Cartum situação matemática; 69 Tradução: Quadro 1 – Chip, pode me ajudar com esta matemática? Peça para mãe
69 Apud SIVEIRA, op.cit. p. 13;
70
Quadro 2 – Peça para seu pai Quadro 4 – Sim?70
A questão central do cartum acima apresentada é uma tensão vivida pela
menina que tem “algo” de matemática para resolver e que se agrava por não encontrar
quem lhe ajude. No quadro 1, a protagonista recorre ao irmão, visivelmente mais velho,
este grau de parentesco é sugerido por que o mesmo aconselha a protagonista a recorrer
à mãe. Pela posição do irmão mais velho, caneta na mão e a folha de papel sobre a
mesa, ele está ocupado, muito provavelmente estudando, sequer olha o papel
apresentado pela menina, sem tomar conhecimento de qual é sua deficiência. No quadro
2, a mãe olha o que tem na folha, diferentemente do irmão, e aconselha a filha a ir ao
pai. Assim, tendo a mãe examinado o conteúdo da folha, Silveira pensa que nos restam
duas alternativas, ou a mãe não sabia ajudar a filha naquela específica questão ou estava
ocupada demais para isso, entendemos que a primeira hipótese é a única válida, isto por
que o fato de olhar, analisar a questão, compreende uma disponibilidade da ajuda, a
mensagem dada pela análise é que a recusa se dá em função do conteúdo da folha.
No quadro 3, a menina fita o pai, que dorme no sofá enquanto o jornal está ao
chão — ficando claro que o mesmo dormiu enquanto lia — não chega a lhe pedir ajuda.
Aqui também destoamos de Silveira que entende que tal quadro “não nos permite
concluir se o pai teria como lhe ajudar”, pois embora reconheçamos a não
conclusividade da análise, o quadro sugere um indivíduo preguiçoso, físico e
mentalmente, pois enquanto estão todos acordados, somente ele está dormindo e mais, o
fez enquanto lia, demonstrando displicência com a leitura, atividade intelectual
presente.
No quadro 4, mostra a menina, já no período noturno que, sem encontrar
ajuda em casa recorre ao vizinho. O desenlace da situação é dado com o que diz o
vizinho: sim? Essa última pergunta encerra o argumento: a menina não consegue quem
lhe ajude, isto é, alguém que saiba matemática. Como o vizinho faz a pergunta usando
uma palavra afirmativa, podemos pensar que ele, enfim, vai lhe ajudar, embora nos falte
elementos para confirmar essa idéia.
70 Ibid;
71
Silveira conclui afirmando que “De qualquer forma, sendo ou não resolvido o
problema pelo vizinho, na seqüência apresentada, fica dito que é difícil encontrar
alguém para ajudar com a tarefa de Matemática”. Diríamos ainda mais que ao encontrar
uma possível resolução de sua angústia no vizinho dá-se a produção do significado da
matemática como o extraordinário, no sentido mais estreito, isto é, como aquilo que só
pode ser encontrado fora do ordinário, da vida comum.
Para encerrar a parte “do que não fazer”, recorremos a um outro cartum
apresentado por Silveira:
Figura 2 – cartum situação matemática71;
Nesse outro cartum, vemos que o aluno tem conhecimentos e habilidades, alguns
deles citados e outros subentendidos pelas reticências ao final da lista. Na primeira
imagem, o menino com pasta na mão direita e um pé à frente indicando o movimento de
andar, enquanto caminha para a escola, tem sua expressão facial de satisfação ao pensar
71 Ibid, p. 14;
72
sobre seus conhecimentos. Sua segunda imagem já o mostra posicionado em sua
carteira e com expressão facial séria. Neste momento, lhe é feita a pergunta: “você sabe
o que é uma SOMA?” (note-se a palavra soma em tamanho maior e mais espessa); ele
rebate: “uma soma?” Sua terceira imagem é de choque por não ter a resposta que sobre
ele parece pesar.
Na última imagem, o aluno aparece completamente oprimido sobre a carteira por
um balão em forma de martelo que contém a resposta à temida pergunta. No balão em
forma de martelo, as linhas verticais sobre ele indicam movimento nesse sentido e as
linhas curtas e curvas abaixo indicam impacto, como se a resposta fosse uma martelada
sobre ele. O formato desse balão mais a direita indica que quem está falando está
naquela direção. Pela posição do aluno e sua carteira só podemos concluir que a fala é
do/a professor/a. Nessa última fala, encontramos o vocábulo “bla” repetidas vezes, o
que nos dá a idéia de uma longa explicação, algo chato, fastidioso e incompreensível.
Há ainda um formalismo na explicação que pode ser notado se suprimirmos o vocábulo
“bla”: “uma soma é o resultado da operação de adição que do ponto de vista
matemático...”
Por que é atribuído aos conhecimentos matemáticos um valor maior do que aos
outros conhecimentos como os que o menino cita logo no início? Que relações de poder
e de saber existem entre professor/a e aluno para que a explicação sobre o que é uma
soma lhe pareça uma martelada? Por que ao ir para a escola o menino vai alterando sua
expressão facial, ficando mais sério, triste, assustado? Por que a matemática vai sendo
constituída como um saber complexo, tedioso, maçante e os/as alunos/as, se não são
incapazes, tem ao menos muitas dificuldades de aprendê-lo? Como isso reflete nas
ocasiões de prova?
O que temos observado nos momentos de exame de muitos cartuns são
personagens estressados, apavorados, desgastados, tendo delírios, alucinações,
pesadelos, dores... tudo muito marcado negativamente.
Isso é o senso comum sobre a matemática e, como senso comum, é muito difícil
de ser questionado, pois seu significado está arraigado e a predisposição negativa face à
disciplina por parte dos alunos é algo muito forte e dificulta qualquer aproximação que
73
vise o conhecimento e que gere um conceito que se oponha ao pré-conceito
estabelecido.
3.1. Desconstruindo o Senso Comum
É exatamente nesse sentido que se apresenta nossa reflexão, como mecanismo de
aproximação do aluno dos conteúdos e da lógica matemática, num duplo processo. São
duas as estratégias básicas:
A primeira é a estratégia do interesse. Ao se apresentar os conteúdos de
matemática na linguagem do humor, utilizando recursos engraçados, normalmente
acompanhados de peças pictóricas, entendemos que nos aproximamos do interesse do
aluno.
Podemos pensar tal aproximação, como uma ação dialética em que observa o que
o aluno gosta para criar estratégias de diálogo, o humor é uma delas. Não é difícil
observar a proximidade do aluno com a linguagem humorística de abordar a realidade,
basta ficar junto aos mesmos ou observar as conversas em sala de aula para perceber
que a lógica do engraçado permeia decisivamente seu universo. Mas caso queiramos
uma demonstração mais objetiva, bem ao gosto dos mais científicos, basta recorrer á
lista de filmes infantis mais assistidos no ano, na semana, ou mesmo toda a lista de
filmes infantis lançados para perceber que o humor é o fio condutor de todos eles, ou
quase.
Isso nos leva a pensar no que propunha Paulo Freire, quando este apontou a
necessidade de se trabalhar com a realidade do educando, estimulando o mesmo a
realizar por si, o processo de cognoscência da realidade. Evidentemente o pensador
brasileiro estava se referindo a “realidade objetiva”, ligada ao universo de vida e
trabalho do educando.
Mas o mesmo educador insistentemente repetiu que não formulara um método,
mas antes uma filosofia da educação, que tinha como pressuposto a dúvida, a superação,
sua filosofia enquanto teoria era para ser superada, caso contrário haveria falhado
vergonhosamente.
Nessa perspectiva, recusando toda a pecha de arrogância teórica, entendemos que
a reflexão aqui presente alarga a compreensão freireana na forma em que pensa a
74
questão da realidade do aluno, objeto central de sua própria educação. Em Freire, esta
realidade aparece como conteúdo, isto é, o conteúdo a ser trabalhado deve ser aquele
extraído da realidade do educando, formando temas geradores.
Nosso trabalho reflete não a aproximação com conteúdos presentes na realidade
do educando72 mas a aproximação com uma ótica mais próxima do universo infanto-
juvenil, cujo fio condutor é o humor, presente nos desenhos, filmes, programas e nos
diálogos dos alunos. Essa reflexão não é totalmente nova no universo freireano, uma
vez que Paulo Freire insiste que o educador não deve propor seu conhecimento por
sobre o educando, não deve partir de um ponto acima do mesmo, impondo-lhe uma
lógica para pensar sua própria realidade. Pelo contrário, o proposto por Freire é partir da
condição do educando superando com ele sua condição, em que há um jogo de
estímulo/reflexão crítica entre educador e educando.
No entanto, quando tratamos nosso objeto, não é possível aplicar mecanicamente a
afirmação anterior de Freire, mas dialogar as afirmações como as anteriores com a
possibilidade de utilização de um gênero mais apreciado pelos adolescentes no ensino
de matemática, o que necessita de uma análise mais atenta e uma reflexão sistemática.
Assim, nossa proposta se resume em aproximar-se mais da realidade subjetiva do
educando, através de uma ótica específica de encarar a realidade, a ótica do humor,
mediada pelos formatos apresentados anteriormente.
Nesse sentido é que nossa reflexão se faz válida, no encarar a matemática na ótica
do humor, mas com a vigilância crítica aguçada, pois não se pode trabalhar com
qualquer abordagem da matemática pelo humor. Como demonstramos, o humor não
comporta um valor específico, mas uma lógica que pode tanto nos servir de amparo,
como reproduzir pré-conceitos como o de que a matemática é uma disciplina para uns
poucos iluminados, não ordinária e aterrorizante.
Passemos então, de modelos negativos de representação da matemática, para os
exemplos positivos:
72 Não negamos a necessidade de a matemática se pautar em situações reais, práticas, do aluno. Porém, há muitos trabalhos nesse sentido e esse não é nosso foco;
75
Figura 3 – tirinha matemática - Piratas do Tietê - Laerte73
O cartum publicado na folha de São Paulo é um exemplo de abordagem
humorística da matemática. Embora as aventuras dos personagens sejam seriadas, não
há necessidade de conhecer as tiras anteriores para compreender o humor na presente
tira. Como vimos, essa é uma das características principais do cartum, a autonomia, não
há necessidade de referenciais externos para a compreensão da mensagem de
determinado cartum
No primeiro quadro, o Gato pai, vestido com asas, como um herói ao estilo
Batman, reclama de ter sido feito de palhaço por Morpheus, que posteriormente será
esclarecido como vilão da trama. Como o Pai aponta que o vilão o fizera de palhaço
“outra vez”, o filho recorre à exatidão numérica afirmando que “em 39 duelos...” e
continua no quadro 2, classificando a maneira com que seu pai perdeu para o vilão e
mais, calculando o percentual representado por cada tipo de derrota. No terceiro quadro
o pai tenta extrair um sentido moral, característicos das histórias de heróis, em que o
vilão perde, da inversão dessa tabela, posto que nessa história o vilão sempre vence e se
pergunta “O que se espera que uma criança aprenda com isso??”, ao que é respondido
pelo filho no quadro 4: “Estatística”.
Essa contradição entre a formalidade percentual e as classificações esdrúxulas das
derrotas em que o pai foi feito “de palhaço”, “de bobo” e “de trouxa” provoca o riso.
Além de aplicar uma operação matemática a uma situação participante da realidade
subjetiva da criança, as histórias de heróis, tal coisa é feita a partir de uma ótica, uma
73 Folha de São Paulo 18/08/1999
76
abordagem mais próxima da infanto-juvenil, o humor. O quadro 2 também permite que
o professor trabalhe com outras variações percentuais, isto é, propondo que se imagine
números diferentes de vezes em que o pai fora feito de “Palhaço”, “Bobo” e “Trouxa” e
solicitando recálculo percentual. Assim, o cartum pode também se apresentar como
problema e não somente como situação resoluta.
Nesse caso específico, em que se pode ver que a riqueza de detalhes do cartum é
desproporcional ao tamanho de sua publicação, isto é, para ser desenhado com tal
riqueza de detalhes, esse cartum deve ter sido feito em tamanho maior e depois reduzido
ao espaço disponibilizado pelo jornal. Isso nos leva a refletir sobre a possibilidade de
utilização do cartum em si, ou seja, não seu conteúdo narrativo-pictórico, mas sua
formatação, como elemento de reflexão na escola, o professor pode trabalhar com este
cartum, aproveitando-se da relação afetiva que os alunos desenvolvem com sua
significação para fazê-los se envolver com seu processo produtivo. A partir dessa
lógica, é possível considerar questões como escala, que se desdobra inexoravelmente à
questão da proporcionalidade, entre outros.
Figura 4. Texto no cartum: “Ei, ei! Mais devagarinho! A senhora ontem disse que X era
igual a 2!!”74
74 http://alexandramat.blogspot.com/, O Lado Divertido da Matemática: Ver a Matemática com outros olhos.
77
O cartum explora a contradição entre X, letra, e sua relação com a matemática nas
várias equações. O aluno faz uma pergunta básica, que parte de um pressuposto da
matemática de que um número é sempre ele mesmo. Mas a pergunta não se dirige a um
número, mas uma letra que representa uma variável e que, dependendo dos termos do
problema, representa valores diferentes.
Decidimos trabalhar com o cartum acima porque ele apresenta uma dúvida básica,
comum, cujo entendimento deficitário pode trazer prejuízos adiante ao educando. Nesse
sentido, o cartum aparece como um elemento para chamar atenção à adequada resolução
de tal dúvida, atuando no educando, para que o mesmo dirija atenção à questão e ao
professor, que não pode projetar seu próprio grau de abstração no aluno, ainda em fase
de construção de sua capacidade de abstração, nos termos das fases cognitivas propostas
por Piaget e apresentadas no início deste trabalho.
Apresentamos em seguida uma narrativa, acima descrita como narrativa simples,
de Malba Tahan e constante no livro O Homem que Calculava75.
Encontramos perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos.
Por entre pragas e impropérios gritavam possessos, furiosos: - Não pode ser! - Isto é um roubo! - Não aceito! O inteligente Beremiz76 procurou informar-se do que se tratava. - Somos irmãos – esclareceu o mais velho – e recebemos como
herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e, ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos, e, a cada partilha proposta segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio. Como fazer a partilha se a terça e a nona parte de 35 também não são exatas?
- É muito simples – atalhou o Homem que Calculava. – Encarrego-me de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da
herança este belo animal que em boa hora aqui nos trouxe! Neste ponto, procurei intervir na questão:
75 TAHAN, Malba; O Homem que Calculava; São Paulo: Círculo do Livro; 1983; p. 11-12; 76 Nota nossa; Beremiz é um calculista, protagonista do livro de Malba Tahan, que estava viajando no deserto em um só camelo, juntamente com o narrador, Bagdali, quando encontrou os demais personagens da passagem;
78
- Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viajem se ficássemos sem o camelo?
- Não te preocupes com o resultado, ó Bagdali! – replicou-me em voz baixa Beremiz – Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás no fim a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
- Vou, meus amigos – disse ele, dirigindo-se aos três irmãos -, fazer a divisão justa e exata dos camelos que são agora, como vêem em número de 36.
E, voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou: - Deverias receber meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio.
Receberás a metade de 36, portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou: - E tu, Hamed Namir, deverias receber um terço de 35, isto é 11 e
pouco. Vais receber um terço de 36, isto é 12. Não poderás protestar, pois tu também
saíste com visível lucro na transação. E disse por fim ao mais moço: E tu jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, deverias
receber uma nona parte de 35, isto é 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, isto é, 4 O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado!
E concluiu com a maior segurança e serenidade: - Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir – partilha em que
todos três saíram lucrando – couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um resultado (18+12+4) de 34 camelos. Dos 36 camelos, sobram, portanto, dois.
Um pertence como sabem ao Bagdáli, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança!
Dentre a inúmera quantidade de passagens constantes em O homem que calculava,
preferimos trazer essa à tona por dois motivos, o primeiro é o tamanho reduzido da
mesma, portanto, contando com a perfeita factibilidade de tal narrativa no interior de
um livro didático. O segundo motivo é por essa ser uma passagem famosa, que já
ganhou versões com linguagem coloquial e que muitos conhecem e, embora tal questão
pudesse aqui ser apresentada em linguagem mais acessível, não o quisemos fazer para
amparar tal representação em um autor ilustre, demonstrando seu vigor e validade.
79
Quanto à narrativa, esta por um lado perde a informação icônica, que cumpre um
papel de clarificar e compor a narrativa, mas por outro lado complexifica o significado
na medida em que abre possibilidades de imaginação para a composição imagética que
cada educando opera em sua mente.
Nesta passagem, especificamente, o humor proposto é um humor instigante,
provocante. Beremiz viaja em um só camelo com seu parceiro, Bagdáli e se depara com
um desafio matemático cuja resolução culmina em um prêmio fabuloso, um camelo, que
lhe serve muito na situação em questão. Os irmãos que brigam na partilha aparecem
confusos, Beremiz vem os salvar, mesmo diante da incredulidade de seu parceiro.
Depois de ler a narrativa, fica uma curiosidade sobre como conseguiu o calculista
que sobrasse mais um camelo, uma impressão engraçada e de questionamento que faz
voltar ao texto, compreender seus meandros e debruçarmo-nos na matemática para
tentar resolver a questão.
Recorremos a uma passagem de Paulo Freire para pensarmos mais profundamente
sobre as possibilidades de utilização da narrativa apresentada, ajudando-nos a ver o
diferencial de sua postura em face da educação tradicional:
... sua tônica [da educação bancária] reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua ‘disciplina’ é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-la, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda77.
Pretendemos nos inserir na corrente que Freire acima denomina crítica, que
estimula o educando em uma jornada compreensiva no texto. Desprovido do recurso
imagético, o educando se vê diante de uma situação problema em que a resolução não
está prontamente dada. Infelizmente, a matemática é vista como uma disciplina de
77 FREIRE, P. op.cit. 1992; p. 16.
80
problemas prontos, cujas variáveis são sempre circunstancias, nunca estruturais, e que
para sua resolução há sempre uma estante cheia de fórmulas, cabendo ao educando
somente aplicá-las, ou talvez verificar qual é a mais adequada. Assim, temos uma
equação de 2º grau “clássica”, apenas com valores diferentes (aqui lembramos o cartum
anterior, que questiona a forma mecânica dessa relação) e ao fim da mesma, sacamos
Báskhara e tudo está resolvido.
Com o mergulho na narrativa descrita propomos uma relação em que se refaz o
caminho dos grandes mestres da matemática, guardadas as devidas proporções. A
situação em que o educando é posto quando lhe é apresentada a narrativa proposta é a
mesma, pois se encara uma situação-problema, sem uma fórmula mecânica a priori a
ser exercitada, mas um exercício mental de curiosidade para decifrar a questão.
Pretendemos estimular o que Freire denominou “curiosidade epistemológica”.
Uma atitude inquieta perante a vida, em que o ato de viver se torna ato de conhecer,
realizando um cognição permanente e crítica da realidade, desvelando-lhe as aparências.
Ao promover a experiência do enfrentamento de um texto, por parte do educando, que
venha com uma pitada de humor, cuja forma é largamente conhecida e apreciada pelas
crianças e adolescentes, e de instigante resolução, que nos faz buscar o porquê, o como
se resolveu de tal forma a situação-problema narrada, estimulamos a “curiosidade
epistemológica” da criança e adolescente que, entre a reticência de Bagdáli e a
segurança impávida de Beremiz, tem muito a aprender.
Conclusão
O caminho que percorremos nesse trabalho foi o do geral para o particular. O
desafio proposto foi pensar a educação em sala de aula à luz da queda dos paradigmas
modernos, mormente de as todas as autoridades supostamente invioláveis, entre elas, a
do professor.
O questionamento da autoridade do professor corroeu as bases da educação
bancária e trouxe um grave problema à educação brasileira, um problema duplo, por um
lado a tarefa do professor é multiplicada. Cada profissional em sala de aula conhece o
estresse e o desânimo latentes nessa categoria de profissionais da educação que se vê
81
vilipendiada, as aulas são muitas vezes ignoradas pelos alunos, os professores
comumente ameaçados e quase sempre frustrados.
O outro lado desse problema é tão perverso quanto o primeiro. O sistema
educacional forma ano após ano, levas imensas de analfabetos funcionais e jovens sem
preparo algum para o enfrentamento do mercado de trabalho e, ainda pior, sem
nenhuma capacitação para o enfrentamento criativo da própria vida.
Diante de tal crise propomos um elemento para contribuir na procura de uma
saída, uma mudança qualitativa na pedagogia que pudesse trazer o aluno a participar
mais das aulas, isto deveria se dar fazendo-os se interessar pelas mesmas através da
utilização do lúdico.
Haja vista o tamanho do objeto que o lúdico representaria, recortamos ainda mais
nossa reflexão, indo ao humor. Mas não antes de um capítulo discorrendo brevemente
sobre o lúdico, sua função e sua conexão com os estudos da cognição das crianças e
adolescentes.
Depois dessa caminhada até nosso específico objeto, debruçamo-nos sobre o
humor, recorrendo a alguns autores que pensaram tal fenômeno a partir de várias
perspectivas, tais como a psicanálise e a filosofia e discorremos brevemente sobre
alguns formatos que compõem um conjunto de possibilidades de fácil
instrumentalização, portanto, passíveis de se prestarem a contribuir com o processo de
ensino/aprendizagem do ensino de matemática.
Por fim, analisamos quatro cartuns e uma narrativa, no sentido de procurar nos
mesmos um potencial de contribuição no ensino de matemática. Concluímos que o
humor é um instrumento excepcional para operacionalização do professor através do
livro didático.
No entanto, temos a clara consciência da que este artigo constitui-se em uma
reflexão teórica, não se trata de um relatório de pesquisa aplicada em sala de aula, mas
de uma análise de potencialidades, que só podem ser liberadas na prática. Porém, tal
liberação não pode se constituir como uma reprodução mecânica dos apontamentos aqui
constantes, mas uma ação crítica e criativa sobre a reflexão aqui proposta.
Caso constituíssemos um manual de ensino de matemática utilizando o humor,
estaríamos contradizendo os princípios freireanos que a todo momento reivindicamos
82
participar. A sala de aula é um lugar de ação/reflexão na realidade, em que a dialética
ensinar/aprender é uma constante, não há verdadeira educação sem pesquisa, sem
reflexão curiosa. Tentar construir uma cartilha do ensino de matemática com humor
seria negar a base própria do que é nossa proposta.
Assim concluímos, certos do potencial do humor no ensino da matemática e
esperançosos de que os professores e produtores de livros didáticos participem dessa
nossa visão e esperando que este trabalho possa contribuir com a sociedade como uma
faísca para acender essa questão.
83
O Imaginário Bélico em García Márquez
Roseliane Saleme*
Nacimos en la guerra Somos ruedas, tornillos, ejes,
piezas de carne, máquinas dispuestas siempre a desangrarnos.
Rafael Alberti
Resumo: No presente trabalho se visa analisar o imaginário bélico que paira em obras, aqui investigadas, do escritor colombiano Gabriel García Márquez. A relevância desta análise deve-se a uma nova perspectiva, a de extrair de seus escritos esse imaginário, pois toda a obra está atrelada à conjunção: mágico, fantástico, e maravilhoso, que a permeiam. O que é pinçado de cada texto permanecerá metonímica e metaforicamente enlaçado aos demais fragmentos, ambíguos alguns, porém todos, imagens bélicas dos diferentes conflitos sulamericanos implícitos ou explícitos, nas obras do autor. O jogo do não-dito, aquele que margeia o dizer, fecunda na análise e permite que essa incompletude se converta em desejo de compreensão. Igualmente, o confronto entre os personagens e as imagens fotográficas fractais permitem a construção desse imaginário traduzido no conceito metafórico, assim como as representações presentes nas obras. Palavras -chave: García Márquez. Imaginário bélico. Não-dito. Conceito metafórico. 1. INTRODUÇÃO
Este artigo nasce de uma comunicação apresentada no IV Seminário Roa Bastos de
Literatura, na Universidade Federal de Santa Catarina em outubro de 2009. Uma das
grandes proposições do encontro quiçá tenha sido abrir e desvendar os nacionalismos
literários mostrando que o fluxo e refluxo das aspirações e teorias78 e entre as várias
diferenças estéticas subjaz uma função histórica evidenciando que o caminho a ser
trilhado seja o da ruptura e continuidade79.
*Mestre em Linguística Aplicada e professora na Faculdade São Sebastião 78 UREÑA, Pedro H. Los caminos de la historia literária. In: PIZARRO; PACHECO. Aprehender el movimiento de nuestro imaginario social. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. p.69. 79 FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: Gaps, 1994. p.35.
84
A complexidade e a diversidade do continente americano foi o marco para a
elaboração de um projeto investigativo por críticos e historiadores, realizado em duas
etapas, no ano de 1983 e, a proposta principal era que, com a construção de uma história
da literatura da América, se superassem as visões fragmentadas que terminam por diluir
o que cada um dos países, que fazem parte dessa literatura considera, bem como ao
submeter-se aos parâmetros europeus por aqui, ou ainda ao assujeitamento à história
política de cada um dos países, que por vezes é assemelhada.80
Buscou-se nesta investigação da obra de García Márquez, a inserção de fragmentos
dessa diversidade literária sim, porém dentro de uma unidade para proporcionar um
melhor entendimento continental pelas reflexões e dinamismo, pois o tema do
imaginário bélico incita a uma tomada de consciência não só pela heterogeneidade na
qual estamos imersos como pela proximidade física e linguística dessas literaturas.
Para construir um corpus para essa investigação tomou-se algumas obras do autor
colombiano, um dos autores mais lidos e reconhecidos do nosso continente. Consabido
nos meios literários que alguns valores apresentados em suas obras adquirem uma
realidade diversa, pois o real e o irreal aparecem em dimensões outras, e os lugares
geográficos e a própria História, são o pano de fundo real para fatos sobejamente
produzidos pela imaginação do autor.81
A seleção aleatória parte do Nobel Cien años de soledad - 1967 (doravante CAS), e
prossegue atemporal para Crónica de una muerte anunciada - 1981 (doravante CMA) ,
El otoño del patriarca- 1975 (doravante EOP), Doce Cuentos peregrinos - 1992
(doravante DCP), El General en su Laberinto - 1980 (doravante EGL) , Del amor y
otros demonios - 1994 (doravante DAOD), e os contos Un señor muy viejo con unas
alas enormes - 1990 (doravante SMV), e Un día de estos- 1968 (doravante UDE).
O objetivo desta análise, que por breve não contempla todas as entradas nas
quais subjaz o bélico e sim apresenta apenas alguns recortes, é mostrar como se
80 CÂNDIDO, Antonio et.al. La Literatura Latinoamericana como proceso. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. 81 ALBOUKREK, A.; HERRERA, E. Diccionario de escritores hispanoamericanos. Buenos Aires: Larousse, 1992. p.113.
85
organizam as metáforas, melhor, os conceitos metafóricos nos quais estão inseridas as
personagens, e as expressões que vocalizam, comprovadas nos excertos. Tais excertos
são categorizados com base na teoria de Lakoff & Jonhson (1980). Por outro lado,
lançou-se mão de outra base teórica, a dos fractais, como acepção de reconstrução
fotográfica. Para tanto a teoria dos fractais para a construção do arcabouço teórico fica
por conta dos experimentos de Mandelbrot82. Esses recortes das obras e evidenciados na
análise podem ser comparados aos fractais, do latim fragere, ou seja, fragmentos que
podem ser agrupados em novas categorias para construir a partir desse, outros
universos. Há que observar não tratar-se este estudo de pesquisa de cunho filológico ou
etimológico, e sim, da organização das metáforas no plano conceitual e mental, com as
repercussões no linguístico.83 O levantamento das pistas a serem seguidas na narrativa,
que permitem levantar o processo cognitivo do conceito metafórico, foram aventadas e
explicitadas pelo próprio García Márquez nos seguintes trechos:
...La parranda pública se dispersó em fragmentos ... (Crónica de una Muerte
Anunciada p.50) ...antes de que hubiera decidido rescatarla a pedazos de la
memoria ajena... (Crónica de una Muerte Anunciada p.48)
Por outro lado, coloca-se em relevo o Estado, como aparelho repressor, mais
precisamente, um todo imaginário bélico, com a plenitude de carga que isso possa
transparecer e exteriorizar a cada passo, a cada formação discursiva das obras, dos
diversos temas de onde foram pinçadas, muitas das quais estavam ali veladas, como se
passassem ao largo da narrativa e sua presença não modificasse a estrutura do romance
ou seu desfecho.
82 MANDELBROT,Benoit. Disponível em: http://mandelbrot.collettivamente.com/mandel.cgi?imgres=320&imgres=320&infx=0.26640624999999984&supx=0.6414062499999998&infy=-0.4687500000000002&supy=-0.09375000000000022&cmap=volcano.map&fractal.x=64&fractal.y=50. Acesso em 20 de julho de 2009. 83 LAKOFF & JOHNSON. Metaphors we live by. Disponível em: http://theliterarylink.com/metaphors.html. Acesso: 4 de agosto de 2009.
86
O jogo do não-dito, que margeia o dizer, fecunda na análise e converte essa
incompletude em desejo de compreensão. O confronto entre as personagens e as
imagens fotográficas fractais permitem a construção desse imaginário traduzido nas
metáforas, passando pelas metonímias, para em seguida desembocar no conceito
metafórico.
Uma breve definição de metáfora e metonímia contribui para aclarar esta proposta de
análise baseada no conceito metafórico; assim sendo define-se metáfora84 como a
translação do sentido reto de uma palavra a outro figurado, e metonímia85 como o
procedimento estilístico que consiste em designar uma coisa com o nome de outra com
a qual tem certa relação.
1. Conceito metafórico é metáfora literária?
Como explicado no parágrafo acima a metáfora trata de explicar o sentido figurado
transposto de uma coisa a outra. Por outro lado, a construção da base conceitual
metafórica surge com as pesquisas de Lakoff & Johnson86 nos anos 80 do século
passado e uma de suas premissas é a de que a linguagem é constituída por ligações
diretas entre as estruturas conceitual e fonológica, que incorpora o sistema sensório-
motor e o sistema emocional, ligando-os. O conceito metafórico é, de acordo com esses
autores, o cruzamento de mapas mentais que permitem o domínio de conceitos abstratos
para importar a maior parte de sua estrutura de inferência a partir de conceitos com base
direta no sensório-motor; assim, a essência da metáfora é entender e experimentar um
tipo de coisa como se fosse outra em uma conceituação estrutural parcial, uma atividade
se estrutura metaforicamente e por isso a linguagem se estrutura metaforicamente. As
propriedades do sistema neural constituem a base de ambos os sistemas, o conceitual e o
fonológico, e o circuito conectado neles constitui a gramática, sendo que a unidade
básica gramatical pode ser comparada a um caleidoscópio, por suas diversas facetas e as
84 Tradução minha de: “Traslación del sentido recto de una palabra a otro figurado.” (LAROUSSE:1994) 85 Tradução minha de: “Procedimiento estilístico que consiste en designar una cosa con el nombre de otra con la cual tiene cierta relación (…)”(LAROUSSE:1994) 86 LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors We Live By. Estados Unidos: University Of Chicago Press, 1980. p.6
87
possibilidades de construções diferenciadas nas estruturas que se pode expressar.87 Eis o
que ensina Lakoff:
As generalizações que governam as expressões metafóricas poéticas não acontecem na linguagem, mas no pensamento. O ‘locus’ da metáfora não é a linguagem, mas como se conceitualizam os termos de um domínio mental com outro.88
2. FRAGMENTOS BÉLICOS CAPTURADOS
A tentativa de compor fotografias com essas obras é o que conduz aos fractais e
permite expor nesses fragmentos literários uma colagem, formando outras figuras que
provavelmente estejam voejando no imaginário dos leitores de García Márquez, ao
mergulharem na leitura de suas obras. Assim essas duas ações conjuntas, os fractais e o
sistema conceitual metafórico aparecem interligados. Indo além das afirmações de
Ortega y Gasset de que “em toda metáfora há uma semelhança real entre seus
elementos” ou ainda “uma aproximação assimilatória de coisas muito distantes”89,
amplia-se o campo dessa visão, pois o conceito metafórico é um organizador cognitivo
da linguagem.
As figuras construídas a partir dos fractais e desse sistema mental organizam-se aqui,
nas seguintes categorias, que serão elicitadas na ordem abaixo e posteriormente
explicadas com os devidos excertos:
• O tempo não marcado: O Manto Bélico sobre o Tempo;
• O tempo marcado: O Tempo Marcado no Imaginário Bélico;
87 ALVAREZ , N .A.: Razonamiento metafórico del conocimiento científico. Acción Pedagógica, nº16/Enero -Diciembre, 2007 - pp.126-135. Disponível em: http://www.saber.ula.ve/bitstream/123456789/17282/2/articulo11.pdf. Acesso em 22/setembro/2009. LAKOFF, George. As advertised: A review of The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences Artificial Intelligence 130 (2001) pp.195–209. Disponível em: www.elsevier.com/locate/artint. Acesso em 5/Agosto/2009. 88 LAKOFF, George. The Contemporary Theory of Metaphor. Disponível em: http://uchcom.botik.ru/IHPCS/MET/WebLibrary/Lakoff/The-Contemporary-Theory-of-Metaphor.html. Acesso em: 31 de julho de 2009. 89 ORTEGA Y GASSET, J. La metáfora. Obras Completas VI. Madrid: Occidente, 1952. p.257.
88
• A tortura liga-se diretamente à Inquisição Espanhola: As sombras
Bélicas da Inquisição;
• O corpo humano: Bélico Corporal;
• O linguístico: Bélico submerso no Linguístico;
• A santidade: Santidade Bélica;
• As personagens: Ecos Bélicos;
É central observar nas diversas categorias e nos excertos elencados que, a guerra, as
armas, o bélico, vêm camuflados, encobertos, metaforizados por outros eventos,
portanto plenos de contradição.
Para melhor compreensão do leitor insere-se ainda uma sinopse das obras analisadas:
CIEN AÑOS DE SOLEDAD – 1967 (CAS):
Sinopse: É a história dos Buendía, a estirpe que esteve condenada a viver cem anos
de solidão. Os Buendía puderam descansar em paz quando nasceu a primeira criatura
procriada no amor verdadeiro.
CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA - 1981 (CMA) Sinopse: A morte anunciada e efetivada de Santiago Nasar para vingar a honra de uma jovem é contada num tempo cíclico.
EL OTOÑO DEL PATRIARCA – 1975 (EOP) Sinopse: Relata a vida de um ditador que morre muito velho, chegando a conservar o poder durante mais de cem anos. EL VERANO FELIZ DE LA SEÑORA FORBES - Doce Cuentos Peregrinos - 1992
(DCP):
Sinopse: Crianças ficam no verão em companhia de uma preceptora alemã contratada pelos pais para acompanhá-los nesse período.
EL RASTRO DE TU SANGRE EN LA NIEVE - Doce Cuentos Peregrinos - 1992
(DCP):
Sinopse: Um casal viaja em lua de mel da Espanha para a França e entre encontros e desencontros, surge a tragédia, a partir de um simples ferimento no dedo da recém-casada. TRAMONTANA - Doce Cuentos Peregrinos - 1992 (DCP):
89
Sinopse: Uma cidade, um porteiro e um vento terrível e temido, ingredientes para a morte e a destruição. DIECISIETE INGLESES ENVENENADOS - Doce Cuentos Peregrinos - 1992
(DCP):
Sinopse: Peripécias de uma senhora em viagem a Roma para ver o Sumo Pontífice. EL GENERAL EN SU LABERINTO - 1980 (EGL) Sinopse: José Antonio de la Santísima Trinidad Simón Bolívar y Palacios, o Simón Bolivar (1783-1830), sonhou um dia com uma nação unida e independente. O General em seu Labirinto, do autor colombiano Gabriel García Márquez, conta os últimos dias desse sonho e mostra que, apesar da tuberculose, a verdadeira causa da morte do Libertador foram as mesmas cegueiras que as elites latino-americanas insistem em manter. DEL AMOR Y OTROS DEMONIOS - 1994 (DAOD) Sinopse: Jovem marquesa supostamente possuída por demônios envolve-se com o padre espanhol encarregado de exorcizá-la. UN SEÑOR MUY VIEJO CON UNAS ALAS ENORMES - 1990 (SMV) Sinopse: A personagem central é uma espécie de ser celeste, dotado de um par de asas e que fala um dialeto incompreensível e as peripécias da família onde ele aterrissa inesperadamente. UN DÍA DE ESTOS- 1968 (UDE)
Sinopse: A tensão e o ódio no atendimento que um dentista faz ao prefeito que sofre há dias de dor de dentes. Como se pode observar nos excertos abaixo o tempo não é marcado pelos
mecanismos habituais de medição temporal, porém por fatos associados ao bélico, ou
seja, por formações discursivas associadas às memórias discursivas90. Tenta-se a partir
de então construir com os fragmentos (fractais) dos textos, ‘fotografias’ do imaginário
bélico.
2.1 O Manto Bélico sobre o Tempo Nos excertos abaixo as expressões ligadas à guerra, armamentos, invasões, são o
cronômetro, os ponteiros de um relógio invisível, metaforicamente ativado para marcar
90 Grifo do autor: PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. p.52
90
o tempo. Tais palavras proferidas pelas personagens aparecem em negrito para
evidenciá-las e confirmar a proposta deste estudo, o de revelar o conceito metafórico no
qual estão imersas.
EL VERANO FELIZ DE LA SEÑORA FORBES
…Explorando con mi padre los fondos dormidos alrededor de la isla habíamos descubierto una ristra de torpedos amarillos encallados desde la última guerra… (DCP p.180)
EL RASTRO DE TU SANGRE EN LA NIEVE …retozaron desnudos bajo la mirada atónita de los retratos de guerreros civiles y abuelas insaciables… (DCP) TRAMONTANA
…en sus horas libres jugaba a la petanca en la plaza con veteranos de varias guerras perdidas…tenía la virtud de hacerse entender en cualquier lengua con su catalán de artillero… (DCP p.167)
DIECISIETE INGLESES ENVENENADOS
…y ella pensó que debían estar muy mal en Italia después de la guerra… (DCP p.157)
CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA
…cuando volvieron los hermanos Vicario con otros dos cuchillos envueltos en periódicos. Uno era de descuartizar, con una hoja oxidada y dura de doce pulgadas de largo por tres de ancho, que había sido fabricado por Pedro Vicario con el metal de una segueta, en una época en que no venían cuchillos alemanes por causa de la guerra… (CMA p.65)
...Cuando vino Ibrahim Nasar con los últimos árabes, al término de las
guerras civiles… (CMA p.16)
El animal contrajo la rabia durante el sitio naval de los ingleses,… (DAOD p.21)
…mientras se celebraba el tedéum por la derrota de la escuadra
inglesa… (DAOD p.22)
91
CIEN AÑOS DE SOLEDAD
…tropezó (…) con un (…)San José de yeso que alguien había dejado en la casa en los últimos años de la guerra… (CAS p.223)
Muitas das palavras implícitas ou explícitas no texto e que nos remetem a esse
imaginário bélico, estão longe de pelo menos uma afirmativa de Foucault91, em sua aula
inaugural no College de France em 1970, quando discorre sobre a inquietação diante do
discurso e explica que, essa inquietação entre outras atribulações, supõe que se usem
palavras “cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades” elas, essas palavras que
constroem aqui o conceito metafórico, por mais que tenham rolado, sido fragmentadas,
cerceadas e veladas, reduzidas e traduzidas, escamoteadas e cochichadas, jogadas ou
resguardadas, proibidas e gritadas não perderam, nem esconderam gritos de dor, de
tortura, de excessos cometidos por aqueles que detinham ou se intitulavam donos do
poder.
2.2 O Tempo Marcado no Imaginário Bélico
Nos excertos abaixo o tempo aparece marcado, ou por calendário, ou no recorte das
horas, e as marcas metafóricas do bélico entram em ação, e se busca, ao mesmo tempo,
mostrar os efeitos de continuidade e de ruptura.
Sierva María nasceu a 7 de dezembro e na festa de seus 12 anos, dia de São Ambrósio
o bispo.... (DAOD)
A explicação para o excerto acima está na história de São Ambrósio, que foi contra
os arrianos e seus pensamentos sobre a não divindade de Jesus e a negação de sua
imortalidade. Arrio colocou o cristianismo em uma moldura judaica, o que resultou
para o ocidente em um Deus Supremo, secular e mais atraente. Anos mais tarde,
Constancio abraçou o arrianismo e os concílios por ele convocados exilaram aos líderes
ortodoxos. A data do nascimento de Sierva Maria é um enunciado marcado pelo exílio
91 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. p.12.
92
que é o que sofre a personagem ao ser trancafiada em um convento, desvelando o bélico
nessa construção.
Nos dois excertos abaixo, os sons das horas, são metonimicamente substituídos
pelos golpes de metal ou martelo, contribuindo para os efeitos metafóricos bélicos.
...oyó los golpes de metal de las ocho…87 (ODP)
…con el último golpe de los martillos de la catedral….él solo era la patria…90 (ODP)
2.3 Sombras Bélicas da Inquisição Espanhola
O Santo Ofício é instaurado na América Espanhola por Felipe II, pelo decreto real de
25 de janeiro de 1569, sendo que o terceiro tribunal permanente foi estabelecido em
Cartagena de Índias em 1610.92 Em decorrência disso, as torturas inquisitoriais, armas
de dominação de um longo período, apresentam-se semanticamente como base de
marcas enunciativas polissêmicas, representadas como ‘espaços semânticos
muldimensionais’ 93 uma vez que as execuções eram realizadas na península94 e não no
território das Américas. Essas marcas enunciativas, nos excertos abaixo estão
sublinhadas, pois por seu grau de implicitude somente permitem o travejamento a partir
de inferências históricas e ideológicas. Assim, os dois primeiros excertos mostram
formas de matar naquele período da Inquisição:
Al desdichado saltimbanco lo mataron a garrote limpio…22 (DAOD) De acordo com Bethencourt95 essa era uma das formas de execução dos condenados
que queriam morrer como cristãos, pois eram colocados sobre a fogueira e morriam
sufocados pela fumaça, e não queimados.
...El aguacil mayor había hecho envenenar... (DAOD p.24)
…armado con su garrote de alguacil… (DAOD p.95)
92 TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1968. p.104. 93 Tradução e paráfrase minha de: (...)« Je dirai simplement que le sémantisme de base d’um marqueur énonciatif polysémique y est conçu comme un « potentiel » de sens, représentable comme un « espace sémantique » multidimensionnel (...) » FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: OPHRYS, 1994. p.115 94 SALVADOR, J.G. Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. p.201.
95 BETHENCOURT, F. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália –séc. XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.153.
93
Ainda valendo das informações de Bethencourt96, aguazil era um funcionário
administrativo e judicial que precedia o cortejo dos condenados à morte quando da
publicação do édito de fé.
Outros atos condenados e violentos para a Santa Inquisição aparecem nos dois
excertos abaixo, e se referem à apostasia, o primeiro, e ao ato de judaizar, o segundo e
ambos estão sublinhados, pois a referência à guerra:
Abrenuncio, o médico, é assim descrito: - …Era idéntico al rey de bastos. Llevaba (…)
la capa negra de los libertos letrados… (DAOD p.27)
...antes que poner su honra en manos de un judío agazapado ... (DAOD p.40)
Essa vinda dos cristãos-novos não era bem vista como se pode constatar na
afirmativa:... “Carlos V recomenda (...) proibir a vinda de todo o reconciliado, filho ou
neto de queimado, de Mouro ou Judeu recentemente convertido.”97
Os excertos abaixo se referem ao termo ‘marrano’, utilizado para expor uma
“incerteza interpretativa, ambiguamente”98 , e explicado em seguida:
…se llevó a Poncio Daza al interior de los platanales y lo hizo tasajo en rebanadas tan
finas que fue imposible componer el cuerpo disperso por los marranos… (ODP
pp.127-128)
O marquês diz à filha, referindo-se à Bernarda, sua esposa: “Es una gorrina” (DAOD p.35) Em seguida pergunta à filha: “¿Sabes lo qué es una gorrina?” (DAOD p.35) Como definição dicionarizada: Gorrina- significa porquinho, filhote de marrano,
porém, em sentido familiar “marrano” significa porco e metaforicamente: judeu
converso que continuava judaizando em segredo. 99
O excerto abaixo se refere à língua falada pelos judeus espanhóis, sendo inclusive, o
termo ladino, carregado de conotações outras em língua portuguesa.
“El médico empezó a conversar consigo mismo en latín.” El marqués le salió al paso: “Dígamelo en ladino”… (DAOD p.41)
96 Ibidem 97 TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. p. 103. 98 FUCHS, Catherine. Paraphrase et énonciation. Paris: OPHRYS, 1994.p.114. 99 Tradução minha de: Cerdo pequeño que aun no llega a cuatro meses. Fig. y Fam. Cerdo, marrano. LAROUSSE: 1994.
94
2.4 Bélico submerso no Linguístico Neste apartado destacam-se alguns excertos nos quais aparece o termo vaina,
recorrente no linguajar colombiano com múltiples significados, entre os quais,
contratempo, sorte, confusão, ou ainda referindo-se a pessoas como orgulhosas ou
idiotas. O bélico se insere na definição dicionarizada de estojo de certas armas100, um
objeto que se transforma pela fala em uma ‘grade mais cerrada pela interdição política’
e que escapa no ritual do dizer cotidiano, associando-se com ‘o poder’ e ‘regularizando
o desnivelamento entre os discursos’ para habitar os ‘curiosos textos’ chamados ‘de
literários’, como explica Foucault101 (1996).
…-No sabes la vaina en que te has metido conmigo -gritaba muerta de risa en la fiebre
del carnaval-… (ATC)
… “Nos pareció que eran vaina de mujeres”… 40 (CMA) …Dice, a través de la red metálica, que pasarle la cuenta a él o al municipio “es la misma vaina” 593 (UDE) Como se pode observar nos excertos abaixo, todos os termos sublinhados são
formações discursivas que ecoam a belicidade, pois se por um lado ‘época mansa’ ou
‘épocas más plácidas’ remetem ao implícito, a épocas contrárias, de guerras, lutas ou
batalhas, por outro, ‘tumbado boca abajo’ (tombado de bruços) é a posição na qual
caem muitos soldados na guerra após serem atingidos. Da mesma forma ‘duelo’,
‘medalla de valor’, ligadas diretamente ao bélico, ou ‘reguero’ (sulco na terra, rego)
que pode ser de sangue e ainda, ‘ceniza y lumbre’ (cinza e qualquer combustível aceso)
rescaldos de batalhas, que indiretamente nos inserem nesse imaginário bélico.
…una época mansa… (ODP p.85)
…asumiendo los riesgos del poder como no lo había hecho en épocas más plácidas… (ODP p.86) …que estaba tumbado boca abajo en el lodazal… (SMV p.594). ...todo el mundo se dio por sentado que entre él y Remedios, la bella, se había establecido un duelo callado… (CAS p.227) …y dejando un reguero de valses de pianola… (CMA p.50) …El cielo y el mar eran una misma cosa de ceniza, y las arenas de la playa que en marzo fulguraban como polvo de lumbre… (SMV p.594).
100 Tradução minha de: Estuche de ciertas armas o instrumentos. LAROUSSE: 1994. 101 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002.p.27
95
…Llevaba la medalla del valor en la solapa y un bastón con el escudo nacional esculpido en el pomo… (CMA p.39) O excerto abaixo utiliza de uma voz corrente popular que encobre o bélico, pois para
dispersar a turba civil o tratamento linguístico é o militar.
…y tuvieron que llevar la tropa con bayonetas…(CMA p.39). Ou seja, espantar os curiosos. 2.5 Santidade Bélica Como se pode observar nos excertos abaixo além da referência bélica há uma ligação
com a religião, seja pelo espaço físico, pelas representações corporativas ou visuais.
…con el último golpe de los martillos de la catedral….él solo era la patria… (EOP
p.90)
…por el poder (…)[de] su padre, Caballero de la Orden de Santiago, negrero de horca
y cuchillo… (DAD p.45)
…la bala (…) pasó con un estruendo de guerra (…) y convirtió en polvo de yeso a un
santo de tamaño natural… (CMA p.11)
No excerto abaixo, o bélico emerge da história de Heráclito, que teria apostatado e
queria ser admitido novamente na comunhão da Igreja sem penitência nenhuma. Como
explica Foucault, (...) “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento a sua
volta.”102
…creíamos por el estruendo subterráneo que se sintió en la patria entera una noche del mártir San
Heraclio…(ODP p.85)103
2.6 Ecos Bélicos Nesta categoria expõem-se alguns excertos de obras que ecoam em outras, ou seja, o
autor cita personagens de uma obra em outra, e todos de alguma forma ligados ao
102 FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2002. p.35. 103 Tradução minha de: “Un tal Heraclio y sus seguidores se opusieron al Pontífice; muy probablemente Heraclio era uno de los que habían apostatado y quería ser admitido nuevamente en la comunión de la Iglesia sin penitencia alguna.” San Heraclio- Disponível em: http://es.catholic.net/santoral/articulo.php?id=43199 acesso em 24 de setembro de 2009. Apostasía: acción de abandonar públicamente la religión que se profesa; fig. Deserción de un partido, cambio de opinión o doctrina.
96
bélico, seja por relacionamento com outras personagens diretamente ligadas a guerras,
ditaduras, violências, ou por sua própria ação nas tramas.
Assim se apresenta o pai de Bayardo San Román: …el general Petronio San Román,
héroe de las guerras civiles del siglo anterior, y una de las glorias mayores del régimen
conservador por haber puesto en fuga al coronel Aureliano Buendía en el desastre de
Tucurinca… (CMA p.39)
…y otra [cosa] muy distinta era darle la mano a un hombre que ordenó
dispararle por la espalda a Gerineldo Márquez… (CMA p.39)
Como se observa nos excertos acima, as duas referências aos personagens de Cien
años de soledad aparecem claras, na voz do narrador de Crónica de una muerte
anunciada, ou seja, são [...]“formas de ‘heterogeneidade mostrada’ por inscreverem o
outro na sequência do discurso”[...]104
Nos excertos abaixo as referências entre obras é realizada pelos sobrenomes das
personagens ou por serem iguais, ou pela assonância como no par Sánchez-Sáenz
repercute nas Manuelas, amantes de ditadores, que por antonomásia eram coniventes
com as violências realizadas. Ou ainda as três Linero, ligadas indelevelmente ao bélico,
simbolicamente presente em suas vidas.
…se llevó a Poncio Daza al interior de los platanales y lo hizo tasajo en rebanadas tan
finas que fue imposible componer el cuerpo disperso por los marranos… (ODP
pp.127-128)
…En cambio Fermina Daza, su esposa, que entonces tenía setenta y dos años y había
perdido ya la andadura de venada de otros tiempos… (ATC p.12)
Manuela Sáenz (EGL p.58) – não é personagem fictícia e sim a companheira de
Simón Bolívar.
Manuela Sánchez (ODP p.124)
104 AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de Estudos Linguísticos, ORLANDI, E.; GERALDI, J.W. O discurso e suas análises. Campinas: UNICAMP, 1990.
97
Prudencia Linero, 72 anos - ...o ambiente era de festa mas a ela lhe pareceu de
catástrofe...(DCP p.160)
Plácida Linero, mãe de Santiago Nasar, ...evocando 27 años
después... (CMA p.9)
Francisca Linero, provocativa... (ODP p.126).
A personagem do pirata que visita os Cien años de soledad e Crónica de una
muerte anunciada pode ser vista aqui como um ‘funcionamento das representações’105,
uma sinédoque de todos os piratas e corsários, que pela burla do Tratado de Tordesilhas
agiam em nome de suas majestades, e neste caso especificamente, a rainha da Inglaterra,
atacando, saqueando e pilhando galeões e cidades.
Sir Francis Drake (CAS p.29)
Sir Francis Drake (CMA p.105)
Importante salientar um trecho do conto Un señor muy viejo ... que ressalta essa ideia
de perseguidores e perseguidos, de um imaginário bélico que permeia a obra de García
Márquez, sobreviventes de quais guerras, fugindo de quais armas? Ou de torturas?
…los (… ) de estos tiempos eran sobrevivientes fugitivos…(SMV)
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A intenção deste breve estudo de análise alguns recortes de obras de García
Márquez revelou que se pode ir além dos limites das análises intertextuais, incluindo-se
aí os fatores relativos a conteúdo, formas ou de tipologia textual, conforme ensina
105 PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. p.125.
98
Koch106, e além ainda do romance polifônico bakthiniano107, pois que a pluralidade de
vozes retumbou em ecos presentes em outros universos, neste caso específico, alargou-
se infinita no imaginário bélico.
Vai daí que ler García Márquez por essa outra perspectiva passa a ser um exercício
diferenciado porque muda a essência de suas narrativas, é como se uma pedra de toque
fosse acionada para desvendar o essencial que paira e permeia sua obra, e cria corpo,
um corpo avantajado, agigantado permitindo que se observe a ação bélica repressora,
agindo às vezes velada e outras escancarada, mostrando que aquele “Estado definido
pelo aparelho de Estado como força de execução e de intervenção repressiva” 108(ALTHUSSER:63) esteja presente a cada quanto, nos atos, atitudes, pensamentos,
dos personagens, dos narradores, sutil, mas, sempre ali presente. Outras vezes nem tão
sutil, porém devastador, passando por cima, “tratoralmente” destrutivo, amesquinhando
o caráter, aguilhoando com suas pontas em brasas os que se atrevam a desafiá-lo ou dele
escarnece.
A escritura de García Márquez toca o essencial da repressão, mostrando como essa
máquina plena de tenazes e aguilhões que segue interferindo no cotidiano das
personagens, os faz sofrer, reprimindo-os até a última instância, e que abusando então,
da condição de dominador, o Estado como Instituição age sobre as classes menos
abastadas, proletárias, nativos da América ou criollos estabelecidos e enricados seja por
quais artimanhas forem. Não nos detivemos nesta breve análise nesse jogo de espelhos
que reflete e confronta literatura e realidade, mas sim na linguagem velada que pode
revelar um universo maior, o da cognição. Natural que se tenha analisado apenas um
aspecto, e que recortes tenham sido feitas na obra, que é extensa, sendo este um trabalho
aberto.
Pode-se afirmar que essas formações discursivas caracterizadas por palavras,
expressões e proposições literalmente diferentes109 (grifo do autor) cujo sentido se
modifica em cada narrativa aqui analisada mudam de sentido “ao passar de uma
106 KOCH, I.G.V.; TRAVAGLIA, L.C. Texto e coerência. São Paulo: Cortez, 1997. p.88. 107 PERRONE-MOYSÉS, L. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1993. p. 60. 108 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad.: Walter José Evangelista; Maria Laura V. de Castro.São Paulo: Graal. p.63. 109 Grifo do autor: PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1988. pp. 160-161.
99
formação discursiva a outra”110, passando cada elemento, seja palavra, expressão ou
afirmativas a designarem o processo discursivo que permeia a obra do autor como se
pode observar nos recortes apresentados.
REFERÊNCIAS
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110 Ibidem
100
LAKOFF, George. As advertised: A review of The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences Artificial Intelligence 130 (2001) 195–209. Disponível em: www.elsevier.com/locate/artint. Acesso em 5 de Agosto de 2009. MAINGUENEAU, D. Elementos de Linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, s/d. MANDELBROT,Benoit. Disponível em: http://mandelbrot.collettivamente.com/mandel.cgi?imgres&cmap=volcano.map&fractal.x=64&fractal.y=50. Acesso em 20 de julho de 2009. ORTEGA Y GASSET, J. La metáfora. Obras Completas VI. Madrid: Occidente, 1952. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988. PERRONE-MOYSÉS, L. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1993. SALVADOR, J.G. Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1969. San Ambrosio Disponível em: http://cristianismo-primitivo.pais-global.com.ar/ acesso em 22de setembro de 2009. San Heraclio- Disponível em: http://es.catholic.net/santoral/articulo.php?id=43199 acesso em 24 de setembro de 2009. TESTAS, G.; TESTAS, J. A Inquisição. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1968.
101
Empreendedorismo no Brasil
Giulianna FARDINI∗
Resumo: Seja por necessidade de obter uma fonte de renda ou pelo desejo de ser independente e ter seu próprio negócio, ou pelo imenso incentivo que existe por parte do Governo e de outras entidades de fomento econômico, o brasileiro é um povo bastante empreendedor. Pelo menos os números de abertura de empresas dizem isto. Todavia, do outro lado da mesma moeda, há uma realidade triste, grave, de alto índice de falência destas novas empresas abertas com tanto entusiasmo. Muitos são os fatores que contribuem para isto e é disto que tratamos neste trabalho. Palavras-chave: Empreendedorismo, Micro e Pequenas Empresas, Falência de Pequenas Empresas
Introdução
Dizem que o brasileiro é um povo empreendedor. Alguns estudiosos
argumentam que é por vocação, mas outros afirmam que é por necessidade.
O Sr. Vinícius Lummertz, diretor técnico do SEBRAE Nacional em 2001 disse,
na Revista SEBRAE de outubro/novembro 2001:
O impulso empreendedor no Brasil pode ser analisado sob diversos aspectos. O Estado já não é um grande empregador e as grandes empresas exigem um nível de escolaridade e de conhecimento que a maioria da população não possui. Além disso, fora das grandes corporações, os salários quase sempre são muito baixos, o que faz com que, para boa parte dos brasileiros, a saída seja montar seu próprio negócio, mesmo que ele não represente a principal atividade e sirva para complementar a renda familiar.
As revistas “Época Negócios”, “Pequenas Empresas, Grandes Negócios”, para
citar dois exemplos mais conhecidos e respeitáveis, trazem casos felizes de
empreendedores que estão satisfeitos com seus próprios negócios, mesmo que a revista
não informe que eles estão trabalhando 14 horas por dia e vivendo com menos dinheiro
do que tinham quando eram empregados. ∗ Professora mestre em Administração da Faculdade São Sebastião.
102
Mas realmente trabalhar 14 horas por dia para uma coisa que é sua compensa
bastante para muitos. De fato!
Semanalmente, estas revistas vêm recheadas de sorrisos e idéias para você abrir
seu próprio negócio. Mas cuidado! As revistas não voltam daí dois anos naqueles
mesmos casos para falar se deu certo ou errado, se aquelas pessoas continuam sorrindo
daquele jeito ou se estão atoladas até o pescoço de dívidas e vivendo de migalhas.
As estatísticas do SEBRAE mostram que a mortalidade de empresas paulistas é
a mostrada no gráfico a seguir, intitulado “Taxa de Mortalidade – Empresas constituídas
entre 2001 e 2005.
Seguindo a informação do gráfico, podemos concluir que metade fecha as portas
até o quarto ano de vida, em São Paulo.
A pesquisa mostra que 27% das empresas paulistas fecham em seu 1º ano de
atividade. Essa taxa de mortalidade empresarial é elevada, porém é a menor taxa de
fechamento de empresas em 10 anos de monitoramento por parte do SEBRAE-SP.
O estudo também identifica as principais causas que levam ao fechamento das
empresas:
- comportamento empreendedor pouco desenvolvido;
- falta de planejamento prévio;
- gestão deficiente do negócio;
- insuficiência de políticas de apoio;
- flutuações na conjuntura econômica;
- problemas pessoais dos proprietários.
Fonte: SEBRAE – 25/01/2010
103
Repare que quatro das causas são intrínsecas ao empreendedor e duas são extrínsecas ao
empreendedor.
O próprio Sr. Vinícius Lummertz, diretor técnico do SEBRAE Nacional em
2001, já citado anteriormente, disse, na Revista SEBRAE de outubro/novembro de
2001:
Na medida em que é incapaz de gerar os empregos necessários para absorver uma mão de obra cada vez mais desajustada aos padrões tradicionais e às exigências de um mercado competitivo, a economia força o desempregado a virar empreendedor. Este empreendedor, despreparado, acaba aprendendo da maneira mais onerosa: pelo erro.
Altas taxas de impostos, custo elevado dos financiamentos e o baixo nível de educação são fatores que debilitam o sucesso da atividade empreendedora. Embora intenso, o empreendedorismo brasileiro carece de qualidade, o que, consequentemente, reduz a capacidade competitiva do País como um todo.
Outro estudo do próprio SEBRAE, só que agora abrangendo empresas de todo o
Brasil, mostra que para as empresas constituídas no triênio 2000 a 2002, 49,4%
morreram antes de completar dois anos de vida!
Neste mesmo estudo, foi constatado o aumento da taxa de sobrevivência das
empresas no triênio 2003-2005, atribuídos, especialmente, a dois fatores: maior
qualidade empresarial e melhoria do ambiente econômico.
Taxas de Mortalidade
Anos de existência
Ano de constituição
Taxa de Mortalidade
Até 2 anos 2002 49,4%
Até 3 anos 2001 56,4%
Até 4 anos 2000 59,9% Fonte: SEBRAE – 2003-2005
Maior qualidade empresarial é um fator válido ainda nos dias de hoje,
especialmente pelos esforços de capacitação empreendidos pelo SEBRAE e seus
parceiros.
Agora, melhoria do ambiente econômico, depois da crise que precipitou em
dezembro de 2008, já não é mais uma realidade. A taxa de mortalidade voltou a crescer.
A volta da recessão, o aumento da inadimplência, a restrição ao crédito, tudo contribui
para que as taxas de mortalidade cresçam novamente.
104
E, desta vez, não só dentre as pequenas. Nos Estados Unidos não é diferente.
Segundo HISRICH, PETERS (2004), no Prefácio de seu “EMPREENDEDORISMO”
apontam com assustadora tranqüilidade:
Começar e operar um novo negócio envolve considerável risco e esforço para que seja superada a inércia contra a criação de algo novo. Ao criar e desenvolver uma nova empresa, o empreendedor assume a responsabilidade e os riscos por seu desenvolvimento e sobrevivência e usufrui das recompensas correspondentes. O interesse de consumidores, empresários e autoridades governamentais pelo empreendedorismo revela-se na crescente pesquisa sobre o assunto, no grande número de cursos universitários e seminários sobre o tópico, nos mais de dois milhões de novas empresas inauguradas a cada ano (apesar da taxa de fracasso de 70%), (negrito nosso) na significativa cobertura e foco da mídia e na compreensão de que esse é um tópico importante para as economias industrializadas, as que estão em desenvolvimento e as que eram anteriormente controladas.
Meu Deus! Será que entendemos certo? 70% de fracasso? A esta altura
você já deve ter desistido de qualquer idéia de montar seu próprio negócio. Não faça
isto! Não é esta a intenção. O que queremos é que você aprenda com os erros cometidos
por outros menos preparados, que, cheios do gás do seu entusiasmo, se precipitaram e
passaram a compor as estatísticas lamentáveis acima – como nós, apesar de todo o
conhecimento! Lembre-se que há os outros 50% de casos de sucesso, apesar de que há
poucas informações sobre isto também.
Queremos dizer o seguinte: se 50% falem em até 2,3,4 anos de vida, os outros
50% sobrevivem. Mas em que condições? Qual a saúde financeira delas? Estão
realmente operando com lucro ou só mantendo as portas abertas? Não há informações
satisfatórias a respeito disto.
Queremos também que compare, que reflita, se ser empregado é realmente uma
opção ruim pra você, um trabalhador formal brasileiro. Pois estamos seriamente
inclinados a te dizer que se trata de um ótimo negócio, se você gostar do faz.
No outro lado do espectro das ocupações dos brasileiros, vemos cerca de
200.000 (duzentas mil) vagas de emprego não preenchidas, isto se considerarmos
apenas as anunciadas no site de recrutamento denominado “Catho Online”.
105
O que há de errado? Tantos desempregados e tantas empresas precisando de
empregados qualificados sem conseguir. O problema está exatamente nesta palavrinha:
QUALIFICADOS.
Há um descompasso enorme entre o que as empresas precisam e o que há
disponível no mercado de profissionais. Seja pelas qualificações técnicas, seja pelas
habilidades interpessoais, seja pela localidade, as peças não se encaixam.
Ao invés de incentivar a abertura de novos negócios, talvez devesse haver um esforço
de aproximar candidatos e vagas. Qualificar-se para um determinado perfil de vaga,
para ganhar um bom salário também pode ser uma forma de empreendedorismo mais
rentável do que montar um negócio próprio, com todos os seus riscos inerentes.
Todos os autores que escrevem sobre empreendedorismo listam uma série de qualidades
e características de um empreendedor.
Peter Hisrich (2004) apresentam o seguinte, na tabela intitulada “Tabela 1.5 –
Tipos de habilidades necessárias em empreendedorismo” (aqui modificada em sua
apresentação):
Habilidades técnicas
• Redação
• Expressão oral
• Monitoramento do ambiente
• Administração comercial técnica
• Tecnologia
• Interpessoal
• Capacidade de ouvir
• Capacidade de organizar
• Construção de rede de relacionamentos
• Estilo administrativo
• Treinamento
• Capacidade de trabalho em equipe
Habilidades administrativas
• Planejamento e estabelecimento de metas
• Capacidade de tomar decisões
106
• Relações humanas
• Marketing
• Finanças
• Contabilidade
• Administração
• Controle
• Negociação
• Lançamento de empreendimento
• Administração do crescimento
Habilidades empreendedoras pessoais
• Controle interno e de disciplina
• Capacidade de correr riscos
• Inovação
• Orientação para mudanças
• Persistência
• Liderança visionária
• Habilidade para administrar mudanças
Parece até simples, não?! Uns poucos itens que o candidato a empreendedor teria
que ou memorizar, ou desenvolver ou pesquisar. Será?
Não, não é simples. Estamos falando de habilidades e comportamentos desenvolvidos
desde a infância, de conhecimentos adquiridos conforme a oportunidade de estudo,
conforme a dedicação aos estudos de cada um, conforme as experiências de vida e
profissionais de cada um, bem como do estado psico- emocional, familiar, social, etc.
Isto quer dizer que esta lista é falsa e inútil? De forma alguma. Ela é verdadeira
e útil. Porém, dentro de sua limitação de ser um referencial para auto-análise do
candidato a empreendedor ou de um grupo de amigos candidatos a empreendedores, que
farão uma avaliação de suas potencialidades.
Agora, não se engane. Mesmo que você tenha todas as habilidades ali listadas,
isto não será garantia de que seu empreendimento será um sucesso.
107
Muitos outros fatores, alheios às características, habilidades e conhecimentos do
empreendedor, influenciam e, por vezes, definem o destino do negócio. Dentre eles,
podemos citar:
• Concorrentes;
• Clientes;
• Credores;
• Fornecedores;
• Empregados;
• Conjuntura econômica;
• Política de crédito no Brasil.
E estes fatores estão carregados de peculiaridades culturais do Brasil, como
veremos, por isto são tratados aqui.
Concorrentes
Dentre as forças no Mercado que atuam sobre o negócio da empresa, está a
resistência que os concorrentes que já estão instalados fazem à penetração de um novo
concorrente. Para tal intento, eles podem se valer de estratégias que vão desde a união
temporária entre eles para evitar que o outro ganhe mercado, até a venda abaixo do
custo para evitar que o novo negócio consiga clientes.
Dado o baixo nível de formação técnica dos empresários brasileiros,
significando que muitos nem sabem se estão tendo lucro ou prejuízo, é possível que os
preços sejam reduzidos a um nível de prejuízo sem o saber, só para não perder a
concorrência para o novato.
A concorrência intensifica-se quando uma ou mais empresas de um setor detectam a oportunidade de melhorar sua posição, ou sentem uma pressão competitiva das outras. Essa competição manifesta-se na forma de cortes de preços, batalhas publicitárias, introdução de novos produtos ou reformulação dos já existentes e melhorias no atendimento aos clientes e nas garantias. (GRAHAM, 1994, apud WRIGHT, KROLL & PARNELL, 2000)
Se o novo negócio for aberto em uma cidade pequena, então, cuidado redobrado!
Os negócios de compadre ainda existem e muito fortes. Novos empreendedores são
excluídos como “estrangeiros” ou “petulantes”, por incrível que possa parecer.
108
Já na cidade grande, este tipo de pressão pode ser sentida no bairro onde mora o
empreendedor, se já tiver concorrentes instalados do seu negócio na vizinhança.
Na cidade grande, pode ser que o novo empresário tenha a sorte de não enfrentar
este tipo de resistência e/ou boicote, mas terá, por outro lado, um número infinitamente
maior de concorrentes atuando.
Isto nos traz a um conceito importante para vencer a concorrência: a inovação.
Que significa ser diferente de alguma forma, seja no atendimento, na entrega, na
embalagem, na simpatia, no uniforme. É isto mesmo! Reflita como você, enquanto
consumidor se sente atraído por coisas diferentes, mesmo que seja um tratamento
diferenciado. Seu cliente não vai ser diferente!
Muitos autores e o próprio SEBRAE têm desenvolvido um novo conceito para
evitar o canibalismo de pequenas empresas no mercado: a idéia da cooperação. Por esta
concepção, pequenos se juntariam para ganhar poder de barganha na hora das compras,
na hora da propaganda, na hora do frete, enfim, em diversas situações em que a união
literalmente faz a força.
Todavia, nossos empresários ainda não estão preparados para assimilar esta
idéia. A mentalidade ainda é de matar ou morrer. Diferentemente do que ocorre
comumente na Europa, por exemplo, onde já é comum a união de empresas em
cooperativas para melhor sobreviver num mercado dominado pelas grandes empresas.
Outro aspecto importante a ser tratado ao se falar em concorrência é o da
CONCORRÊNCIA DESLEAL. Aquela representada pelos informais, que não pagam
tributos, não pagam por um ponto de comércio, não têm empregados e conseguem, por
isto, vender a preços mais baixos do que os que estão tentando fazer tudo certinho.
Em alguns setores isto é facilmente visualizado, como é o caso de: marmitex
feitos em residências, roupas das sacoleiras, cosméticos das “consultoras”, dentre
outros.
Este é um problema social e econômico sério, pois, de um lado, há empresários
sendo prejudicados e, de outro lado, seres humanos tentando sobreviver.
109
Clientes
Clientes (“Compradores”, no Gráfico de PORTER) são tudo que um novo
empresário deseja, certo? Mas, nem sempre tudo são flores com os tão esperados
visitantes.
Os há de todos os tipos. Os que:
• Entram por curiosidade e não compram nada; são comuns e são potenciais
clientes futuros;
• Entram para observar e contar para a amiga concorrente como você fez na sua
loja;
• Entram só para conferir se seus preços estão mais caros que os dele ou do amigo
dele;
• Entram para te jogar para baixo, seja por encomenda, ou porque o dia dela está
azedo e precisa descarregar a carga negativa em alguém;
• Não ficam satisfeitos nunca, nem que você consiga o produto exatamente como
pediram ou dêem o desconto que pediram;
• Forçam sua margem de lucro até seu limite, que você escolhe ter prejuízo, só pra
ficar livre dele;
• Ameaçam te denunciar por alguma coisa que ele imagina ser culpa sua ou do seu
produto, mas que você não faz idéia de como possa ter acontecido;
• Mentem dizendo que o preço ou o produto do concorrente é melhor, só pra te
forçar a negociar e eles saírem dizendo que sabem comprar e que “esses
vendedores são uns exploradores, contra quem se deve ficar esperto”;
• Têm medo de entrar na sua loja porque não te conhecem, ou ninguém conhecido
nunca entrou, nunca ouviu propaganda, etc;
• Não te pagam em dia (quando te pagam) e brigam com você quando você liga
educadamente para cobrar;
• Ameaçam te processar por constrangimento ilegal quando você manda uma
cartinha cobrando a fatura vencida há mais de três meses;
• Manda, na sua cara, você entrar na Justiça para receber os cheques sem fundo
que ele te passou e se nega a negociar, depois de seis meses de espera por uma
solução amigável.
110
Infelizmente, quem abre porta para a rua não escolhe os clientes, mas pode se
precaver contra maus clientes e maus pagadores. Não é fácil. Dá trabalho e despesa.
Mas é o único jeito de não amargar prejuízos, ao ponto de comprometer a continuidade
do negócio.
Credores
Conceitualmente, credores são as pessoas que emprestam dinheiro para a
empresa trabalhar, dando-lhe algum tempo para pagar.
Entre os credores de um negócio podem estar os próprios sócios, familiares,
amigos, fornecedores, governo, empregados, dentre outros.
Mas os principais credores da maioria das empresas são os bancos. E quanto a
estes, meu caro empreendedor, enquanto você não precisar deles, eles vão te oferecer
recursos aos montes. Todavia, se - Deus o livre deste dia - você estiver em situação
financeira difícil, precisando de recursos para fazer frente ao Capital de Giro da sua
empresa, cobrir uns cheques, já que seu cliente falhou no pagamento com que você
estava contando, não se iluda: eles não vão te atender de bom grado.
Você, nem seu sócio, nem sua empresa poderá ter nenhum cheque devolvido,
nenhum protesto, nenhuma ocorrência no SERASA, nenhuma parcela de empréstimo
vencida. Até aí é até compreensível.
O que realmente vai te tirar do sério será a tal “análise da capacidade de
pagamento”. Você não tem nenhuma das ocorrências acima, porém, a “análise” do
banco dirá que você não é capaz de pagar pelo empréstimo que está pedindo, logo ELES
NÃO VÃO TE EMPRESTAR!
Há uma esperança! Você ter bens para dar em garantia e pessoas que estejam
dispostas a assinar como avalistas para você. Mas, mesmo assim, o crivo da “análise da
capacidade de pagamento” será novamente colocado à prova.
Então, meu caro empreendedor, não se iluda: banco empresta dinheiro para quem não
precisa de dinheiro.
Por mais que escutemos o blá-blá-blá do investimento em microempresas,
microcrédito, taxas especiais de juros às pequenas (3% ao mês – olha que bondade!), na
prática, nada é diferente do acima dito: se você tem dinheiro, você consegue dinheiro, se
111
não tem, vai entrar no círculo vicioso que antecede a falência: deixa de pagar impostos,
depois atrasa com seus fornecedores, depois atrasa com seus empregados, vende seu
carro (se tiver) e, finalmente, fecha as portas.
Neste momento, você percebe que o sonho virou um pesadelo!
Então, meu caro, não se arrisque com pouco no bolso...
Fornecedores
Fornecedores devem ser parceiros do seu negócio. Eles têm o poder de te ajudar
ou de te atrapalhar.
Além da qualidade do produto que vai te oferecer, da garantia do fornecimento
no prazo necessário, são fundamentais os prazos negociados para pagamento das
compras.
Lembre-se que você vai demorar a produzir e vender ou comprar e revender seu
produto e que ainda vai ter que dar prazo para seus clientes.
Para não pressionar seu Caixa, é importante que seu fornecedor lhe dê prazos
compatíveis com o fluxo de recebimento de suas vendas.
Como o Mercado não é “bonzinho” pra ninguém, uma parceria sincera e baseada
na confiança mútua, poderá surtir bom efeito.
Os fornecedores podem, ainda, dar opinião de produtos alternativos para o seu
negócio, que poderão baixar seu custo, ou melhorar a qualidade do seu produto, por
exemplo.
Empregados
Está aí um dos grandes desafios que o novo empresário irá enfrentar. Ele pode
ser um escolado, um experimentado, um artista, um catedrático, mas nunca
estará preparado para lidar com a diversidade de problemas que a espécie humana
poderá lhe causar. Ou, melhor dizendo: poderá até estar preparado para lidar, poderá
lidar, mas não terá como se proteger dos prejuízos que as pessoas são capazes,
deliberadamente, de causar a um patrão.
112
No início, tudo são flores: amizade, clima organizacional positivo, pessoas
motivadas, equipe envolvida e unida.
De repente, alguma coisa acontece no reino das maravilhas... Ninguém sabe
explicar nem como, nem por que, nem quem começou tamanho conflito, tamanho
desentendimento, tamanho boicote, que prejudica a produtividade, a qualidade do
produto, aumenta os desperdícios, provoca acidentes, etc.
O que parecia uma beleza, vira um inferno e a empresa torna-se o último lugar
onde o ex-animado empresário gostaria de estar.
Ah, o ser humano! Aí começam as tentativas infrutíferas de conciliação da
equipe. Depois da reunião, dois dias de paz. O empresário relaxa, mas o inferninho
volta. Não há saída: tem que demitir alguém para quebrar o ciclo vicioso. E agora?
Rescisão trabalhista a esta altura do ano? Não estava preparado para pagar férias e 13º
antecipadamente? E ainda a multa de 50% do FGTS, exame médico demissional, exame
médico admissional. Mas é isto ou “esta pessoa” contamina toda a sua equipe! Muito
bem, isto deve resolver! Doce ilusão...
A equipe fica chateada com a demissão do colega (o mesmo que até então
combatiam) e rejeitam o novato, que se sente mal na empresa e reclama com o chefe. O
chefe argumenta que é questão de tempo e por sorte será mesmo.
Mas logo, logo, a paz acaba novamente: um funcionário mais antigo um pouco
começa a “aprontar” para forçar uma demissão, pois já deixou claro nos bastidores que
não vai pedir demissão de jeito nenhum, pra não perder o FGTS e o Seguro
Desemprego.
O chefe resiste por um tempo, até que chama o dito cujo para conversar. Tenta
argumentar que ele sempre fora um bom funcionário, então por que estaria fazendo isto
agora? O infame, com cara de pobre-coitado, inventa uma mentira esfarrapada e pede ao
chefe para fazer “acordo” com ele, pois não dá mais para ele continuar na empresa e ele,
“em consideração ao chefe”, não quer fazer nada que o prejudique para ser mandado
embora...
Sentindo a ameaça no ar e a dor pré-cordial apontando, o chefe cede, para não
correr o risco de ser processado por assédio moral, por chamar o “coitadinho” de safado,
sem vergonha, nem ser preso por agressão física, por lhe dar um merecido soco na boca!
113
Ah, mas isto é ilegal? Claro que é ilegal! É fraude contra o FGTS, contra a economia do
País! Você não pode fazer isto, viu? Mas prepare-se para comprar pneus novos, fazer
um seguro contra incêndio, instalar câmeras de segurança no seu estoque, enfim, tudo o
que você não tem dinheiro para fazer. Ou então, demita mais um empregado e pressione
mais ainda seu Caixa, que já está pra lá de estourado.
Conjuntura econômica
Depois de um período de estabilidade e crédito fácil, quem poderia contar com a
crise que se originou nos Estados Unidos no fim de 2008 e está castigando as empresas
de todo o mundo até hoje?
É, meu caro: quem está na chuva, está sujeito a se molhar. Uns têm guarda-
chuva, mas outros são pegos de surpresa e não escapam.
A gente tem por hábito, cultura, sei lá, achar que o que acontece no exterior não
nos afeta. Ledo engano. A globalização não é só tema de samba-enredo, não. Ela é real.
Política de crédito no Brasil
Quando falamos dos credores, nós já dissemos que banco empresta dinheiro para
quem não precisa dele.
Agora vamos mais fundo um pouco. Você se lembra quando precipitou a última
crise econômica, o caos que foi na Bolsa de Valores, um monte de empresas quebrando,
o desespero generalizado? O que o Governo Brasileiro fez? Liberou bilhões de reais
para salvar quem? Não se lembra? Os bancos e as grandes empresas!
E as pequenas? As pequenas que se explodam! Elas representam apenas 20% do
PIB, afinal...
E dá-lhe recessão! Mercado assustado, economia instável, inadimplência alta, e:
pequenas empresas sem dinheiro para trabalhar e renegociar suas dívidas.
Resultado? Falência!
Este é o retrato da política de crédito no Brasil, apesar dos discursos políticos.
Na hora que o “bicho pega”, os grandes se salvam e os pequenos se “estrumbicam”.
114
Fala-se que há recursos de sobra no BDMG, BNDES; o que não há são projetos
bem elaborados.
Ora, você já tentou pegar algum recurso destes que dizem ser para pequenos
negócios? A burocracia é tanta, demora tanto, sai tão caro, que fica inviável ao
realmente pequeno.
E estes recursos estão parados, a espera de “projetos bem feitos”. É inacreditável
a incompetência para viabilizar uma política de crédito simples para os pequenos
negócios.
Aliás, não acreditamos que seja incompetência, não. E sim, falta de interesse,
mesmo, falta de vontade política. Não nos esqueçamos dos 20% do PIB...
O País das oportunidades
Empreender no Brasil significa lidar com todos estes aspectos. E ainda assim é
elogiado como o País das oportunidades!
E não deixa de ser verdade, se pensarmos o tanto que há para se fazer em termos
sociais, tecnológicos, ambientais, etc.
Conclusão
Há um grande estímulo por parte dos órgãos governamentais e instituições de
fomento econômico para que os brasileiros abram seu próprio negócio, que saiam da
informalidade, que tenham atitude EMPREENDEDORA.
Muitos cursos, palestras e livros são ofertados a respeito, e tal disciplina merece
destaque nas universidades brasileiras.
Todavia, a realidade mostra uma mortalidade brutal de cerca de 50% das
empresas abertas nos primeiros anos de vida. Algo está errado.
Pesquisas são feitas pelo SEBRAE, por exemplo, que apontam a falta de
conhecimento e preparo para gestão dos administradores destas empresas como a
principal causa da falência. Será que isto procede? Acreditamos que em muitos casos
sim. Mas e nos casos em que os administradores são formados e experientes?
115
As queixas dos empreendedores, corajosos, passa pela tributação excessiva, pela
falta de acesso ao crédito, pela falta de apoio dos órgãos governamentais. E eles não
estão inventando desculpas para o insucesso do seu negócio.
O Governo argumenta que há crédito disponível, que a tributação é a mesma
para todas e que deve ser repassada aos preços dos produtos, que há organizações de
apoio às micro e pequenas empresas, etc.
Só que, na prática, o que se vê é um excesso de burocracia e exigências
impossíveis de serem atendidas para ter acesso ao crédito, como garantias, avais,
certidões, etc; o Mercado não absorve os tributos, se forem repassados para os preços,
porque simplesmente os clientes não compram o produto mais caro das pequenas, que
têm que concorrer com as grandes; e o “apoio” existente às micro e pequenas empresas
restringe-se a cursinhos de capacitação e livretos informativos, que, na prática, não vão
tirar o empresário do buraco em que se encontra por falta de Capital de Giro.
Ah, sim! Ele vai saber que o porquê da empresa estar mal das pernas, mas e daí?
Alguém vai emprestar dinheiro para ele, por ele estar mais informado e capacitado?
NÃO!!!!!
Este cenário gera um ciclo vicioso de abertura de empresas- falência de
empresas- abertura de novas empresas- falência de novas empresas, que pouco importa
ao Governo, pois, “no bolo” do PIB, a Economia Nacional está “rodando”.
Mas individualmente, há uma massa de empreendedores falidos e desanimados,
sem perspectiva de salvar seu negócio e retornar ao mercado de trabalho como
empregados.
Aí fica a pergunta: neste cenário, será que compensa empreender no Brasil?
Não estamos falando dos 2% das grandes empresas, que têm recursos de sobra
ou acesso fácil a eles. Estamos falando dos 98% das micro, pequenas e médias
empresas, que lutam uma batalha perdida dia a dia para a falta de políticas
governamentais que as apóiem, incentivem e socorram nos momentos críticos, como
fazem com os Bancos à beira da falência, como vimos recentemente na História do País.
Ah, é verdade! Os 2% correspondem a 80% do PIB...
Mas não desista facilmente! Só não dê um passo maior que sua perna. Continue
a pesquisar e só tome uma decisão no final de muita reflexão, estudos e cálculos!
116
Referências Bibliográficas HISRICH, Robert D. PETERS, Michael P. Empreendedorismo. Ed. Bookman, 2004, 5ª edição. KOTLER, Philip. Marketing – Edição Compacta. Ed. Atlas, 1989. PINCHOT, Gifford. PELLMAN, Ron. Intra-empreendedorismo na prática. Ed. Campus, 2004, 2ª edição. WRIGHT, Peter. KROLL, Mark J. PARNELL, John. Administração Estratégica. E. Atlas, 2000. Sites: www.sebrae.org.br www.ipea.gov www.ibge.gov.br www.cathoonline.com.br Revistas: Revista SEBRAE de outubro/novembro 2001Pequenas Empresas, Grandes Negócios Época Negócios
117
Comunicação e cultura local: o alto falante ( Senhora de Oliveira, Minas Gerais
Vivíam Lacerda de SOUZA* Marília G. Ghizzi GODOY**
Resumo: O alto falante paroquial inserido no cotidiano do município de Senhora de Oliveira – MG, é observado como principal veículo condutor da informação local, que através de linguagem própria e unificada, torna-se símbolo identitário da cultura e da comunidade. Sua trajetória histórica, marcada pela forma peculiar de oferecer entretenimento e com avanços tecnológicos, uma sintonia em rádio, passa a adquirir caráter de prestação de serviços de utilidade pública, como uma rádio comunitária. Palavras-Chave: Alto falante, Cultura local, Rádio Comunitária, Mineiridade
O município de Senhora de Oliveira, situado na região norte da Zona da
Mata Mineira, dispõe de um alto falante paroquial que se apresenta como sistema
monopolizador da comunicação local, onde se propagam informações de interesse
comunitário. Através da oralidade retratam-se as tradições da região. Trata-se de um
transmissor de mensagens de curto alcance sonoro, dependente da qualidade, potência e
estado de seus equipamentos, assim como de suas instalações geográficas. Sob forma
fixa ou móvel, os alto falantes são instalados em diversos locais. Dentre eles destaca,-se
os comunitários e religiosos, como em Senhora de Oliveira, o que elucida sua
característica de meio comunicacional de simples manejo para indivíduos não
especializados.
Como um meio de comunicação destaca-se o alto falante diante dos
valores compartilhados pelos membros da coletividade e suas identificações em comum.
Ordenam-se significados às vidas das pessoas num determinado local e num
determinado período.
As autoras consideram neste estudo o conceito de identidade cultural,
conforme Denys Cuche111. Ressalta-se a importância da formação social e do âmbito de
* Mestre em Administração, Educação e Comunicação pela Universidade São Marcos – SP. Professora do curso de Comunicação da Universidade Presidente Antonio Carlos - UNIPAC de Conselheiro Lafaiete, MG. ** Mestre em Antropologia Social (USP) e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP), Professora do Mestrado em Educação, Administração e Comunicação da Universidade São Marcos.
118
representação que ela suscita. Reconhecendo, conforme Barth, o caráter de oposição,
contraste que se projeta nas situações de identidade Cuche afirma:
A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição de agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais.
Os dados sobre o objeto de estudo deste trabalho, o alto falante, revelam-
se na formação da comunicação e do contexto coletivo expressivo da cultura local. Diz
respeito a sua participação como engendrador dos valores culturais tradicionais.
Nessa perspectiva, torna-se importante entender o enraizamento cultural
dos sujeitos na comunidade em questão e também situá-los diante do conceito de
mineiridade como núcleo significativo do tradicionalismo mineiro.
Na realidade oliveirense, as aplicabilidades do alto falante seguem
também as características propostas por Peruzzo:
1. o alto falante atua como um produto comunitário, administrado de forma voluntária e coletiva pelas organizações comunitárias e desenvolve uma programação direcionada à conscientização e mobilização, como também notícia, oferece entretenimento e presta serviço de utilidade pública.
2. possui características de interesse público, mas é dirigido por uma ou duas pessoas comprometidas com o bem-estar social local, pessoas que normalmente gostam do rádio e vêem nessas emissoras um canal para exercitarem sua voz e prestarem um serviço à comunidade112.
Em seguida, os autores discutem os aspectos de tradição cultural onde o
alto falante está inserido, seu alojamento, desempenho social e de comunicação local.
Finalmente será abordado o espaço de oralidade através do serviço radiofônico no
âmbito local e regional.
111 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru. EDUSC, 2002, pp. 175-202. 112 PERUZZO, Cecília M.K. apud FERNANDES, M. L.; SALVI, C. O sistema de alto falante como meio de comunicação em Santa Catarina. Revista Internacional de Folkcomunicação, 2007. Vol. 10 p. 12.
119
1. Trânsitos históricos e identidade cultural
O município de Senhora de Oliveira encontra-se encravado entre as
montanhas da Zona da Mata, na região sudeste do estado de Minas Gerais e até o ano de
1953 este povoado pertencia à cidade de Piranga, a qual era chamada antigamente de
Guarapiranga e teve grande importância nos séculos XVIII e XIX para o estado, tendo
como marco identitário a mineração. A então freguesia de Guarapiranga era composta
por doze distritos, dentre eles Senhora de Oliveira, que, diante do caráter homogêneo
das sociabilidades, era conhecida como distrito de Oliveira do Piranga.
Deste 1750, com a decadência da exploração das jazidas minerais, a
região transformou-se em agrícola.
O povoado começa a crescer lentamente ao longo da estrada e no entorno
da capela, onde os homens da administração pública e os fazendeiros possuíam as
maiores e as mais importantes casas, usadas quase que somente aos domingos e
feriados, quando seus proprietários vinham das fazendas para as missas, casamentos,
batizados e festejos religiosos. Ao retornarem para suas fazendas, deixavam suas casas
na cidade fechadas durante a semana.
As terras adquiridas com o sistema de sesmarias pertenciam agora a
herdeiros de antigos proprietários que se casavam com descendentes de outras fazendas
e ficavam morando nas mesmas propriedades.
Nesta época, a atividade econômica privilegia o latifúndio, a monocultura
e o trabalho escravo. A cidade possuía uma população aproximada de 2.655 habitantes
na zona urbana e 3113 habitantes na zona rural113.
A atividade econômica básica é a agropecuária. Destacam-se as lavouras
de cana-de-açúcar e de café. Em menor escala registra-se o cultivo de eucalipto. O setor
industrial local consiste na transformação de produtos agrícolas. Salienta-se a presença
da Destilaria Junivan, desde o inicio da década de 90.
Pequenas indústrias de moda, derivados de leite, móveis, serralheria,
alambiques e artesanato também contribuem com a economia e absorvem parte da mão-
113 SIAB – Sistema de Informação de Atenção Básica – dados referentes a janeiro 2007, coletados na UBS de Senhora de Oliveira em 04 de abril de 2007.
120
de-obra no município. No entanto, muitas dessas pequenas empresas vivem na
informalidade, sem registro na junta comercial, o que impossibilita a averiguação dos
dados de crescimento econômico nesse setor.
O comércio varejista oliveirense tem uma contribuição destacável muito
para toda a economia local e regional. Atualmente são mais de 55 estabelecimentos114
comerciais legalizados, mas sabe-se que também há muitos na informalidade dentro do
município, nos quais são comercializados os mais diversos itens de consumo.
Dentre os vários serviços prestados, podemos ressaltar os oferecidos pela
Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) que oferece na unidade de Senhora de
Oliveira os cursos a distância de bacharelado de Administração de Empresas e Ciências
Contábeis, Licenciatura em Física, Química, Biologia, Letras, Artes, História e
Matemática.
De acordo com o livro de tombo da prefeitura municipal há três bens
tombados. São: a Igreja Sagrado Coração de Jesus, a Imagem Nossa Senhora da
Conceição e a Praça São Sebastião. Faz-se necessário frisar que a nova igreja matriz não
se impõe como bem a ser tombado devido à sua arquitetura moderna, sem maiores
detalhes relevantes a tal titulação.
O potencial turístico compreende paisagens naturais, as antigas fazendas,
as igrejas. Os visitantes, através dos circuitos turísticos de Villas e Fazendas e o
Circuito Turístico da Estrada Real podem conhecer e conviver pontos da antiga cultura
local.
Há um ciclo de festas católicas que traduzem o ideário religioso
enraiazado na comunidade. São as festas de São Sebastião, Semana Santa, Festa da
Padroeira, Festa do Rosário, Capina do Cruzeiro.
O carnaval projeta-se como de grande importância sendo realizado
apenas nas ruas, como um meio de confraternização. Ele tem início uma semana antes
da data oficial com o bloco Zé Pereira e termina com a festa propriamente dita. Inclui o
desfile de carros alegóricos, de adultos e crianças, que arrastam multidões de
114 SIAT (Serviço Integrado de Apoio Tributário) da Prefeitura Municipal de Senhora de Oliveira. Dados referentes a dezembro de 2007.
121
irreverentes foliões e seus blocos pelas ruas estreitas da cidade. Os eventos são
animados pela tradicional bandinha de música e suas marchinhas carnavalescas.
No contexto simbólico festivo, a quaresma é vivenciada como um
atraente recurso de ordenação dos habitantes. Muitos deles, desde a quarta-feira de
cinzas, abstêm-se de carnes vermelhas. Alguns, além disso, ficam esse período sem
ingerir qualquer bebida alcoólica e fumar cigarros, num gesto de penitência. Cada um
escolhe de que forma deve se recolher para refletir o sentido de quaresma. Também
durante esse tempo, mais especificamente às sextas-feiras, um grupo de devotos sai às
ruas da cidade durante a madrugada, com compridas vestes brancas, com capuzes que
cobrem também suas cabeças, entoando cantos e benditos. São os Encomendadores das
Almas que suplicam por pecadores que estão no purgatório e necessitam de orações.
Nesse momento, as portas e janelas das casas devem ser mantidas fechadas, luzes
apagadas e ninguém poderá vê-los.
Durante a Semana Santa, são apresentadas peças teatrais em praça
pública com a participação de moradores voluntários, numa encenação da morte e
ressurreição de Cristo, em representação aos passos da Via Sacra. Todos os rituais são
acompanhados com muita atenção e devoção pelos moradores da cidade no decorrer
dessa semana, quando até o sino tem no timbre o reflexo do sentimento da Paixão e o
alto falante propaga músicas suaves, sutis e dolorosas. Os fiéis seguem em procissões
silenciosas, no intuito de sentir os passos de Cristo, vagarosos e tristes, em lenta agonia
rumo ao calvário. Pelas ruas, desfilam soldados romanos, Barrabás, Pilatos, Marias,
muitas mães de Jesus, Martas, Madalenas, no sentimento católico do povo oliveirense,
expresso no emocional da tônica do vivido por Jesus Cristo.
O auge da festa acontece com a missa da ressurreição entre cantos,
muitas palmas e vivas, em que a alegria renasce por mais um ano: é a grande festa da
Páscoa. Neste dia há missa de Ressurreição de Cristo e a procissão do Santíssimo com o
“corpo de Cristo presente na hóstia sagrada”. A cidade se prepara num todo para a
procissão. Os moradores pintam as ruas com símbolos católicos, colocam bandeirolas
que se ligam de uma casa a outra, nos parapeitos das janelas abertas são expostas as
melhores colchas presas a vasos de plantas e jarros florais, com o objetivo de
122
demonstrar alegria e respeito pela passagem da procissão, que segue com a banda de
música e seu repertório festivo religioso.
No mês de outubro a cidade abre-se para os festejos de origem africana,
lembrando-se a época da escravidão no local. Comemora-se a Festa do Rosário. Nela
são homenageados os santos: Benedito, Efigenia, Nossa Senhora Aparecida e Nossa
Senhora do Rosário. Cada santo é comemorado em dia especial com a presença da
alvorada (serenata matinal) ao som da banda de congo e da banda municipal. Destacam-
se os rituais de congado e de reinado.
O meio rural compartilha desses festejos embora possuem eles suas
próprias festividades.
No ambiente cultural descrito surge um fascínio próprio quando o
assunto é velório, é casamento.
O casamento, antigamente, só era divulgado no seu exato momento de
ocorrência; ao som da corneta os moradores ficavam sabendo dos acontecimentos
realizados na igreja central. Na atualidade há uma profunda consideração por alianças
que indicam os compromissos de castidade dos nubentes. As uniões entre pessoas das
elites formam jogos rotineiros e sempre gera muita polêmica o casamento de um
fazendeiro com uma trabalhadora rural. A cerimônia de casamento é seguida pelo
pagode que, nesse caso, não é um ritmo musical, significa festa, brincadeira e muita
gente reunida. Para alegrar o povo, sempre tocam o forró, música sertaneja e outros
ritmos.
A prática de velórios ainda acontece no interior das residências. Muitas
pessoas não aceitam a idéia do velório público recém-inaugurado em 2007, por acharem
um absurdo, uma falta de consideração. Têm em mente que é direito de quem morreu
ser velado em casa e ficar junto à família e no ambiente onde passou toda a vida ou
parte dela. As famílias velam seus mortos numa sala onde durante todo o tempo da
exposição do corpo, os familiares recebem condolências de parentes e amigos. Esses
vêm de onde estiverem e às vezes enfrentam longas horas de viagem, que, dependendo
da condição financeira, pode ser de avião, completando a viagem de carro até Senhora
de Oliveira, já que ainda não possui aeroporto. Quando o velório é noturno, os que
passam a noite em companhia da família têm sempre à disposição café em garrafas
123
térmicas ou em chaleira ao fogão de lenha que mantém a bebida sempre quentinha,
acompanhado de biscoitos, pães e outras guloseimas. O Grupo de Oração do Sagrado
Coração de Jesus sempre está presente nos velórios e outros devotos convocam os
presentes a rezar o terço na intenção de que Nossa Senhora e seu filho Jesus recebam a
alma que segue.
Minutos antes da hora marcada para o enterro, o sino toca triste, solene,
anunciando que é hora de seguir para a igreja. As pessoas presentes, amigos e parentes
se unem numa última oração em casa. Logo após o cortejo a pé segue em trajeto de mais
fácil acesso à igreja. Durante o percurso, os comerciantes fecham suas lojas em sinal de
respeito para só reabri-las após a passagem do funeral, ao toque fúnebre do sino até a
introdução do caixão na igreja, onde será feita a encomendação da alma para todos os
católicos. Em seguida o corpo é carregado por amigos até o único cemitério do local.
2. Uma palavra sobre a mineiridade
O conceito de mineiridade115, considerado como uma construção
ideológico-tradicional, diz respeito ao modo de ser do mineiro e tornou-se um produto
comercializado politicamente e também para a indústria do turismo
A “mineiridade” é mais que uma naturalidade, é uma maneira de encarar
a vida, de valorizar as tradições e os costumes. De ser feliz com a maestria da natureza
em um pôr-do-sol na montanha, no vento brando ao entardecer, numa noite fria que
suplica pelo cobertor ou pelo calorzinho do fogão a lenha, em perceber a beleza na
simplicidade cotidiana, de valorizar e se orgulhar da terra natal.
O andamento do discurso surge eivado pela correspondência entre ambiente e emoção. Aquele com o poder de criar o fascínio sobre eles, esta enquanto resultado da capacidade de deixar-se enlevar por estímulos inusitados. Nesse encontro, individualizam também a natureza. Não é qualquer imagem, mas aquela singular, forte e imaginativa, que transita em direção aos
115 CAPARELLI, Márcia. Identidade e hospitalidade em questão: um olhar sobre Uberlândia, MG. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2005. p.76.
124
espectadores e foge destes para ela, num movimento singular. No percurso, fusionam-se os homens e a realidade, ficando difícil distinguir limites claros e precisos entre o humano e o natural, ocorrendo, pois, o verdadeiro processo de identificação. A operação identificadora não obstante, prende-se aos fios da memória...116
Ser mineiro é ter a fala mansa, a prosa cadenciada, com muitos
provérbios, ditados populares que fazem parte da vida rotineira em grande parte da
comunicação, pois o mineiro usa com sabedoria os ensinamentos de gerações, diante da
tradição de aprender a cultura local, “antes tarde do que nunca!”.
O universo simbólico revela-se nas comunidades aglomeradas entre
montanhas que se acercam da Minas clássica do queijo, da manteiga e do leite, da
Minas rural e pastoril, da Minas católica, religiosa e crendeira, temente a Deus, das
igrejas, orações e procissões. Minas de gente conservadora de tradições, pois “a
autonomia relativa de Minas oitocentista, expressa no universo da fazenda mineira,
abriu espaço às invenções da tradição, vivendo-a como se fora eterna.”117 Minas de
hábitos, da cultura social e familiar: a Minas hospitaleira. Minas opositora ao
despotismo e aliada da ordem, batalhadora pela liberdade política, desconfiada, acima
de tudo prevenida; descriminação construída ao longo dos anos, disseminada. Nesse
aspecto, “a associação entre mentes cultas e Inconfidência e desta com o ideal de
liberdade, resultou numa construção que caracteriza Minas como depositária do saber e
da insubmissão da pátria e da nação.”118
É preciso também situar que esse conceito cooptou-se na dinâmica
cultural ligada a padrões de consumo e modernidade. Desta forma, ele transcreveu-se
para a culinária, pintura, escultura, artesanato, esporte, dança, administrações que se
tornaram marcas discursivas da memória e estão inseridas na cultura global.
116 ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990. p.51. 117 ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 137. 118 Idem. p. 76.
125
3. O alto falante: a mensagem como realidade
O fascínio vivido pelos oliveirenses diante de sua vida cotidiana
comprometida com o mundo tradicional nos conduz à forma de comunicação regida
pelo alto falante. Trata-se de uma ação pela qual se relata ou descreve um estado de
“coisas”, em que os indivíduos interagem de forma passiva numa relação entre emissor,
receptor e mensagem.
Foi implantado aproximadamente em 1954, pelo pároco regente.
Instalado sob forma precária e experimental, foi afixado em um poste que se situava
frente à casa paroquial, com duas cornetas posicionadas lado a lado para a abrangência
sonora apenas de sua redondeza. Com o objetivo inicial de entretenimento, o sistema
oferecia à população músicas todas as tardes, com possibilidades de dedicatórias, exceto
no horário da missa realizada aos domingos. A trilha sonora era composta de músicas de
cantores consagrados como Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba, Nora
Ney, Marlene, Francisco Alves, Orlando Silva, Cauby Peixoto e outros.
Também em circunstância do Jubileu de Congonhas do Campo-MG,
muitos visitantes denominados Congonheiros, oriundos de cidades vizinhas, ao passar
pelo local, a caminho da festa católica, eram recebidos com música, visto que o intuito
era de mostrar a alegria e a hospitalidade do oliveirense.
Em 1955 o sistema foi transferido para a igreja Sagrado Coração de
Jesus, hoje tombada Patrimônio Histórico e Cultural da cidade. Nessa ocasião,
modificações foram realizadas com vistas em uma melhoria da qualidade sonora. Para
tanto, foi posicionada uma corneta grande na igreja projetando o som para a região
plana da cidade e outra afixada estrategicamente em local alto, conhecido como Morro
da Caixa D’água , que direcionava o som para área de desnível de relevo, conhecida
como comunidade São Geraldo. Além disso, compunha o sistema uma mesa de som
com inúmeros botões coloridos e muitas chaves em forma de alavanca.
Por quase um ano o alto falante manteve-se oferecendo os mesmos
serviços, com alguns avisos paroquiais, a partir de uma locução desenvolvida de forma
nítida, articulada e criativa, o que o valorizava.
126
Aproximadamente em 1965, o padre adquiriu um disco de vinil do
Barnabé, comediante de casos da vida rotineira, e passou a tocá-lo freqüentemente
marcando um novo estilo do veículo.
Em decorrência da melhoria da qualidade sonora no sistema, sua
abrangência já atingia todo o município em aproximadamente 35 km2, devido a uma
freqüência modulada que fazia com que toda mensagem propagada pelo meio fosse
transmitida simultaneamente em rádio. Essa situação não planejada foi constatada por
um morador no exato momento em que sintonizando seu rádio pôde ouvir o anúncio do
alto falante no aparelho. Logo, a partir de denúncia anônima, a polícia federal se
notificou sobre a existência da rádio e quis averiguar. Alguém, ciente do que iria
acontecer, comunicou ao pároco que eles estavam a caminho de Senhora de Oliveira
com o objetivo de fechar a rádio e confiscar os equipamentos e assim, imediatamente, o
padre reuniu alguns fiéis de sua igreja, desligou e encaixotou toda a aparelhagem,
escondendo-a no mato. Quando a polícia chegou ao local, nada conseguiu encontrar e
diante disso não cobrou nenhuma espécie de multa, pois o padre negou a existência da
rádio e não havia nenhuma prova que esta estivesse funcionando. A partir de então,
cessou a sintonia em rádio devido ao receio de novas denúncias e a aparelhagem foi
vendida e o dinheiro empregado na paróquia.
Em 04 de fevereiro de 1968, houve uma infiltração de água na base
estrutural da usina hidrelétrica instalada no município, o que ocasionou em um
desmoronamento, deixando toda a população local sem energia elétrica durante um ano,
até a chegada da Companhia Energética de Minas Gerais-Cemig, em maio de 1969.
Nesse período sem luz, o alto falante também não funcionou, deixando os oliveirenses
sem entretenimento e informação por meio do veículo, restando apenas a comunicação
verbal, a transmissão de mensagens via boca-a-boca.
Em 1971, o equipamento sonoro foi transferido para a igreja matriz
Nossa Senhora de Oliveira, onde se encontra atualmente, com abrangência sonora que
se estende em quase toda a zona urbana, fazendo com que o repasse verbal seja um
complemento dessa comunicação, alastrando os anúncios também pela zona rural.
Novamente, mudanças no equipamento sonoro foram realizadas pelo pároco, uma vez
que com o crescimento populacional da cidade, não mais havia como atender a demanda
127
de solicitações musicais, além do fato de que muitas pessoas já possuíam aparelho de
rádio. Para a transmissão das mensagens são disponibilizados: uma mesa de som com
oito canais de microfone; quatro amplificadores; um aparelho de sistema automático
que liga todos os equipamentos simultaneamente; um som de CD; um toca-discos e
cinco microfones.
4. No universo do noticiário
Para os oliveirenses a comunicação social e as transmissões do alto
falante ocorrem de forma a construir o cotidiano com uma dinâmica própria de
pertencer ao mundo. Ouve-se músicas sacras e marchinhas carnavalescas que
antecedem as missas como um convite às cerimônias religiosas. Também os dobrados e
outras músicas sacras notificam a população ouvinte sobre cada categoria de anúncio a
ser propagado no exato momento de sua transmissão: necrológicos, perdas e extravios,
utilidade pública, festivos, saúde pública, escolares, esportivos, religiosos, comerciais.
Normalmente, o alto falante não transmite missas, com exceção de ocasiões especiais,
como algumas cerimônias da Semana Santa.
Os anúncios propagados apresentam-se no contexto oliveirense como
redutos insubstituíveis no cenário das projeções simbólicas, visto que devido à história
impregnada de significados culturais desse serviço, adquiriu valor afetivo. Por estar ao
alcance de cada morador, desenvolveu uma democracia sem distinções de raça, classe
sócio-econômica ou etnia, formando uma identidade cultural. Desta forma, a
comunidade cultiva um sentimento coletivo frente aos anúncios. Eles traduzem um
cenário dos acontecimentos: agendas religiosas e festivas, campanhas e reuniões ligadas
à escola, aos atendimentos médicos. Várias notícias são dirigidas ao público como
solicitação de apoio e às vezes, socorro.
Um sentimento fortalecido pelo pertencimento e compromisso mútuo
produzem as experiências coletivas com acentuadas interdependências.
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Considerações Finais
O repertório dos temas significativos do sistema comunicacional no
reinado da oralidade, do simbólico e da cultura é expresso nos noticiários divulgados
pelo alto falante. Ao recriarem-se os valores comunitários esse instrumento tornou-se
um patrimônio público.
Embora não haja evidências claras da influência da igreja católica, a qual
sedia o aparato de comunicação, percebe-se um controle sutil na orientação da seleção
das mensagens de interesse comunitário e a mesma não exerce influência direta ou
censura sobre qualquer mensagem a ser propagada.
Todas as cidades que formam a microrregião deste estudo, onde está
inserido o município de Senhora de Oliveira, apresentam a mesma origem histórica,
com forte ligação ao ciclo da mineração. Esta microrregião apresenta no meio
comunitário um sistema simbólico de comunicação em comum, o alto falante.
Por fim, o sistema de alto falante é uma modalidade de linguagem
radiofônica, uma forma de mídia sonora, embora mais autoritária do que as demais, pois
geralmente tem ouvintes compulsórios, que não podem mudar de estação ou abaixar o
volume. No entanto, os oliveirenses gostam do sistema e não desejam identificar outro
veículo mais eficaz na região, pois este se mostra de uma forma engajada na própria
condição de vida desses moradores. Sobretudo, para os oliveirenses, seguir a tradição
local, significa colocar em ordem a vida no seu empenho de ser uma coletividade.
Como um auxiliar no desenvolvimento e na organização social ele tem se
destacado com efetiva preferência frente a outros meios como internet, televisão, rádio,
jornais, revistas, boletins informativos.
Um sistema de representação expressivo dos valores antigos projetados
no contexto de uma tradição mineira é considerado por sua eficácia simbólica na
coletividade.
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Referências Bibliográficas
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CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Mineiridade. São Paulo: Achiamé, 1980. poema n.34
CAPARELLI, Márcia. Identidade e hospitalidade em questão: um olhar sobre Uberlândia, MG. Dissertação de mestrado apresentada à Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2005.
COGO, Denise Maria. No ar...uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Universidade do Sagrado Coração, 2002. Tradução de Viviane Ribeiro.
FERNANDES, M. L.; SALVI, C. O sistema de alto falante como meio de comunicação em Santa Catarina. Revista Internacional de Folkcomunicação, 2007. Vol.10. p. 01-15.
LACERDA, Weber. Coisas do interior de Minas. 1ª ed. Juiz de Fora: Academia de Letras, 1986.
PERUZZO, Cecília M. K. Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UNB, Brasília: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2006.
_____________________. Comunicação nos movimentos populares. Petrópolis: Vozes, 1998.
Fontes
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NORMAS EDITORIAIS
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