2012 Livro Como Expressoes Referenciais Referem

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    Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN

    COMO

    EXPRESSESREFERENCIAIS

    REFEREM?

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    A filosofia perene, mas tambm efmera. Est constantemente sendoconfundida e destruda e transformada em algo que no ela mesma, de modo

    que se desejamos filosofar estaremos continuamente fazendo face tarefa deredescobri-la e restaur-la.ThomasProffen

    A filosofia fantasmolgica triunfa porque mundos possveis elegantementeestruturados so to mais agradveis de explorar do que a realidade de carne esangue que nos cerca aqui na terra... Uma tradio filosfica que sofreendemicamente do vcio do horror mundi condena-se futilidade.

    Kevin Mulligan, Peter Simons, Barry Smith

    No se deve confundir a importncia com a dificuldade. Um conhecimento podeser difcil sem ser importante. Por isso a dificuldade no decide nem pr nemcontra o valor de um conhecimento. Esta depende da magnitude e pluralidade desuas conseqncias.

    Immanuel Kant

    No existe uma qualidade refinada de conhecimento que se possa obter dofilsofo.

    Bertrand RussellTudo est bem como est.Wittgenstein

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    PREFCIO

    Meu primeiro encontro com as teorias filosficas dos nomes prprios aconteceu

    h mais de vinte anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese

    sobre a concepo de significado na ltima filosofia de Wittgenstein. Como erade se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descries,

    tal como fora defendida por Wittgenstein na seo 79 de suas Investigaes

    Filosficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na poca sobre a concepo

    causal-histrica da referncia dos nomes prprios proposta por Kripke me

    deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e s cadeias causais soava-me

    como uma explicao mgica da referncia. No que eu me sentisse vontadecom a teoria do feixe. Minha opinio era a de que seria necessrio impor uma

    ordem ao apanhado arbitrrio de descries constitutivas do feixe, e que isso s

    poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrio de ordem superior, capaz

    de estabelecer o papel e a fora das regras-descries a ele pertencentes. Mas

    logo me esqueci do assunto.

    S voltei a me interessar pela questo dos nomes prprios em 2006, por

    razes acidentais. Lembrei-me ento de meu antigo projeto. Escrevi um breve

    esboo no qual propunha a existncia de uma regra cognitiva meta-descritiva

    para nomes prprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de

    descrio pertencente aos feixes de descries a eles associados a partir de uma

    demanda fundamentadora de localizao e/ou caracterizao. Apresentei esse

    esboo em vrias ocasies, sempre surpreso com a forte reao de rejeio dos

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    ouvintes. Contudo, como ningum me apontava um erro de princpio e como um

    pouco de reflexo me mostrava que as objees seriam facilmente refutveis,

    prossegui. A teoria resultante o metadescritivismo causal encontra-seexposta no captulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais

    interessante. Embora ela seja uma teoria mista, incorporando inovaes

    provenientes da concepo causal-histrica, ela s condiciona s categorias

    descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar

    como uma refinada elaborao da velha teoria do feixe de descries. Embora

    inevitavelmente mais complexo, o metadescritivismo causal possui maior poder

    explicativo do que as teorias anteriores, sendo capaz de vrios feitos que o

    recomendam: ele capaz de explicar melhor a maneira como o contedo

    cognitivo (sentido) do nome prprio contribui para a identificao do seu

    portador (referncia), de gerar a idia de que nomes prprios so designadores

    rgidos do prprio interior do descritivismo, de explicar de dentro do prprio

    descritivismo porque se d o contraste entre a rigidez dos nomes prprios e a

    flacidez das descries definidas e, finalmente, de responder mais eficazmente

    aos contra-exemplos apresentados teoria do feixe.

    Uma vez que me encontrava investigando a funo dos nomes prprios, meu

    interesse alargou-se para a histria das teorias descritivistas e tambm para a

    necessidade de alcanar um entendimento crtico da concepo causal-histrica

    que fizesse justia ao trabalho genial de Kripke. Disso resultaram os captulos 7

    e 8 desse livro.

    A investigao do funcionamento dos nomes prprios inevitavelmente me

    levou a considerar outras expresses referenciais, como descries definidas,

    termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre

    cognitivismo e referencialismo se repete. Minha pergunta foi irreprimvel. Se

    havia obtido to bons resultados defendendo uma espcie de cognitivismo

    metadescritivista para o caso dos nomes prprios, por que semelhante maneira

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    de ver no poderia produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada

    s outras expresses referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuio

    era boa, de modo que decidi considerar tambm essas questes. O objetivo eraduplo. De um lado, queria demonstrar as limitaes das teorias referencialistas

    aplicadas s outras expresses referenciais; de outro, considerando as objees,

    queria desenvolver melhores explicaes cognitivistas (neo-descritivistas ou

    neo-fregeanas) para os modos como descries definidas, indexicais e termos

    gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos captulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse

    livro. Alguns resultados me parecem memorveis. Entre eles est a

    compatibilizao do descritivismo de Russell como de Frege, a defesa da

    irrelevncia das incongruncias parciais no resgate descritivista do contedo dos

    indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crtica ao externalismo

    semntico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente

    anlogas s dos termos singulares na constituio de regras de aplicao dos

    termos gerais. Muito do que escrevi, porm, no passa de esboos rudimentares,

    que lano na expectativa de que venham a ser mais adequadamente

    desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que a filosofia work in

    progresspor definio.

    Finalmente, senti a necessidade de esclarecer as assunes filosficas que me

    conduziram a abordar as expresses referenciais da maneira como fiz. Meus

    heris so Frege e Wittgenstein. A meu ver no h nada na filosofia da

    linguagem contempornea comparvel obra desses dois filsofos. Ombreados

    por Russell, eles foram at o osso das questes filosficasno que concerne

    amplitude e profundidade de seus insights, longe de permanecerem na

    exterioridade dos problemas, ou na discusso de hipteses sobre hipteses, to

    comum filosofia contempornea (uma razo para tal seria que a filosofia um

    produto cultural e porque as filosofias de Frege e Wittgenstein foram produzidas

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    em um tempo no qual a cultura ainda era a principal fonte de valor, ao invs da

    cincia, como veio a se tornar o caso).

    Escrevi os captulos 1, 2 e 3 desse livro com o objetivo de aclararpressupostos geralmente motivados pelas concepes semnticas desses dois

    grandes filsofos. Foi luz de meu entendimento de Frege que procurei definir,

    nos trs primeiros captulos desse livro, o meu desiderato como sendo o de fazer

    uma defesa sustentada de uma concepo que pelo menos to antiga quanto a

    doutrina aristotlica dos conceitos e a doutrina estica das lekta: o ponto de vista

    de senso comum, segundo o qual uma expresso referencial s capaz de referir

    devido a um elo intermedirio, que no pertence nem a ela mesma nem ao que

    ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermedirio

    em termos de sentidos (modos de apresentao), que s diferem dos sentidos

    fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciaes cognitivas.

    Esses sentidos, por sua vez, so analisveis em termos de regras e/ou

    combinaes de regras semntico-cognitivas, determinadoras dos usos

    referenciais das expresses correspondentes uma idia de inspirao

    wittgensteiniana.

    Ao fazer isso percebi, em retrospecto, que aquilo que eu estava tentando

    fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa deixado

    inconcluso por Ernst Tugendhat em seu livro de 1976. Esse programa poderia a

    meu ver ser fregeanamente concebido como sendo, para o caso fundamental da

    frase predicativa singular, o de analisar o sentido epistmico (Erkenntniswert)

    do termo singular como a sua regra de identificao, do termo geral como a sua

    regra de aplicao e da frase predicativa completa como a sua regra de

    verificao. Essa ltima regra seria a resultante da aplicao combinada das

    duas primeiras, o que foi visto por Tugendhat como uma forma analiticamente

    aprofundada de se falar da condio de verdade identificada ao significado. Por

    conseguinte, meu desiderato nesse livro deixa-se tambm explicar como sendo o

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    de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua

    natureza, subdivises e relaes, alm de esclarecer atributos a elas

    relacionados, como os de existncia e verdade.Reconheo que a minha tentativa de produzir uma elaborao geral dessas

    assunes nos trs primeiros captulos permaneceu inevitavelmente esquemtica

    e em alguns momentos selvagemente especulativa. Mas o prprio sucesso do

    tratamento posterior das expresses referenciaisque depende apenas do que h

    de mais bem fundado nessas assunesem certa medida tambm as vindica.

    Essas so as estaes do presente texto, que foi escrito na inteno de ser

    entendido por leitores sem conhecimento especializado de filosofia da

    linguagem, pois como a entendo ela deve servir antes de tudo aos que se

    interessam pela filosofia em geral.

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    AGRADECIMENTOS

    Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de ps-doutorado na Universidade de

    Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no perodo de

    2009/2 a 2010/1 e onde pude desenvolver uma primeira verso completa do

    presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especialgostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo

    verses em ingls e em alemo de minhas idias sobre nomes prprios e termos

    gerais. Tambm gostaria de agradecer ao professor Joo Branquinho pelas

    discusses sobre nomes prprios e verificacionismo em seus colquios na

    Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato so ao professor

    Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar incio a essapesquisa, assim como aos professores Nelson Gomes, Andr Leclerc e Daniel

    Durante, por objees e estmulos. Devo tambm agradecimentos ao professor

    John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley em 1999 e que em

    termos de metodologia e idias , junto com Ernst Tugendhat, o filsofo vivo

    que mais me influenciou no desenvolvimento das idias aqui expostas.

    Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antnio

    de Almeida por me terem, h muitos anos, tornado consciente da importncia de

    uma aproximao sistemtica das questes filosficas atravs do exemplo

    incomparvel dos grandes clssicos.

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    SUMRIO

    PREFCIO

    PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA

    1.

    INTRODUO2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA3. FREGE: PARFRASES SEMNTICAS

    PARTE II: TERMOS SINGULARES

    4.

    CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES5.

    A SEMNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS6.

    A SEMNTICA DAS DESCRIES DEFINIDAS7.

    NOMES PRPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS8.

    NOMES PRPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-HISTRICAS

    9.

    NOMES PRPRIOS (III): META-DESCRITIVISMOCAUSAL

    PARTE III: TERMOS GERAIS

    10.INTRODUO: DESCRITIVISMO VERSUSCAUSALISMO11.PUTNAM, A TERRA GMEA E A FALCIA

    EXTERNALISTA12.AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL

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    PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA

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    1. INTRODUO

    Explicar os mecanismos pelos quais as expresses referenciais referem tem sido

    o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o

    que so expresses referenciais? Ora, elas so todas as expresses (palavras,combinaes de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Tais expresses

    so chamadas de categoremticas, distinguindo-se das expresses

    sincategoremticas, de palavras como e, no, se... ento, alguns, cuja

    funo na linguagem meramente estrutural.

    Em frases h duas espcies mais gerais de expresso referencial: os termos

    singulares e os termos gerais. Os assim chamados termos singulares soexpresses cuja funo a de especificar um objeto (um particular)especfico,

    ao indicar qual ele dentre todos. Eles referem no sentido mais estrito da

    palavra, sendo a forma mais distintiva a dos nomes prprios. Os termos gerais,

    por sua vez, so expresses que designampropriedades de objetos ou relaes

    entre eles, podendo por isso serem predicados de maisdeumobjeto. Nas frases

    predicativas singulares os termos singulares comparecem como sujeitos e os

    termos gerais como predicados. Tais frases so tipicamente capazes de ser

    verdadeiras ou falsas. caracterstico dos termos gerais que eles possam se

    aplicar a uma variedade indefinida de objetos, identificados pelos termos

    singulares aos quais se associam. Assim, o termo geral planeta se aplica ao

    objeto Vnus, mas tambm se aplica a Marte e a Saturno, enquanto o termo

    singular Vnus s pode ser aplicado ao planeta Vnus. O tema desse livro

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    sero os termos singulares e gerais em suas vrias formas e os variados

    mecanismos atravs dos quais eles so capazes de alcanar as suas referncias.

    A metafsica da referncia

    Uma grande parte do contedo desse livro ser, todavia, crtico. Em minha

    opinio, a filosofia da linguagem contempornea se encontra assolada pelo que

    eu gostaria de chamar de metafsica da referncia. So idias primafacie

    contra-intuitivas, como o caso da sugesto de Saul Kripke, Keith Donnellan,

    Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas

    ligando o objeto ao seu nome possa bastar para explicar a sua funo referencial,

    independente do que possamos ter em mente com esses nomes, ou da tese de

    Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os

    significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as

    prprias mentes, possam existir no mundo externo (fsico ou social) fora de

    nossas cabeas, ou ainda, da posio de David Kaplan, John Perry, Nathan

    Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenas contm elementos

    do prprio mundo como constituintes daquilo que esto a dizer. No obstante o

    fato de semelhantes idias ofenderem as mais elementares intuies semnticas

    de qualquer pessoa que no tenha sido filosoficamente iniciada, elas so hoje

    vistas por muitos especialistas como resultados slidos da reflexo filosfica.

    Quero nesse livro tornar plausvel o insucesso das doutrinas mais

    propriamente metafsicas desses filsofos. Isso no o mesmo que rejeitar o

    interesse filosfico de muitos dos argumentos por eles desenvolvidos. Se tal

    interesse no existisse, no haveria porque perder tempo com a sua discusso.

    Pois insights filosficos equvocos, na medida em que forem sugestivos, so

    indicadores de alguma coisa importante, possuindo um potencial esclarecedor

    em filosofia, onde o progresso costuma ser dialtico. Sem o criativo e ousado

    revisionismo desses filsofos, sem os desafios e problemas por eles criados,

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    idias concorrentes dificilmente seriam providas do combustvel intelectual

    necessrio para levantarem vo.

    O primado do saber comum

    Para combater a metafsica da referncia so necessrias algumas armas. A

    primeira delas diz respeito deciso metodolgica de levar a srio o um tanto

    esquecido princpio fundamental da filosofia da linguagem ordinria admitido

    por filsofos como J.L. Austin e G.E. Moore, segundo o qual ao menos o ponto

    de partida de nossas investigaes deve residir em nossas intuies pr-

    filosficas de senso comum, refletidas nos usos das expresses em nossa

    linguagem corrente. A idia subjacente a isso conhecida: os usos correntes das

    palavras sedimentam a experincia milenar das comunidades humanas, e uma

    ateno excrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distines categoriais

    importantes e prevenir confuses. Exemplos de princpios do senso comum que

    foram selecionados por filsofos como Moore so Sabemos com certeza que

    existe um mundo externo, Sabemos que existem outras pessoas, Sabemos

    que o mundo tem um passado, Sabemos que o preto no branco e ainda

    Sabemos que uma coisa ela mesma.1

    O problema que parece claro que ao menos alguns dos princpios do senso

    comum foram falseados, quer pela cincia, quer por alteraes em nossa prpria

    concepo de mundo (Weltanschauung). Para exemplificarmos o primeiro caso,

    basta nos lembrarmos que crenas de senso comum de que o sol gira em torno

    da terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram refutadas por

    Galileu. E para exemplificarmos o segundo caso basta nos lembrarmos das

    crenas de que um Deus pessoal existe e de que temos uma alma que pode

    1 Ver G.E. Moore: A Defense of Common Sense.

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    existir fora do corpo. Houve tempo em que essas crenas poderiam ser

    consideradas verdades de senso comum.

    Uma resposta a essa dificuldade consiste na alternativa de muitos dosfilsofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoo do assim

    chamadosensismo comum crtico(criticalcommonsensism)1,segundo o qual os

    princpios de senso comum so altamente confiveis, mas no so indubitveis.

    Contudo, essa opo enfraquece a prpria posio de quem defende o senso

    comum como ponto de partida, pois se os princpios do senso comum podem ser

    falsos, ento parece que precisamos de um critrio para distinguir os princpios

    verdadeiros dos falsos. Esse critrio, porm, no pode se basear no senso

    comum, sob pena de circularidade.

    No pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princpios do senso

    comum contra toda e qualquer objeo. Mas quero demonstrar que a fora das

    objees contra a confiabilidade dos princpios de senso comum advindas do

    progresso da cincia e das mudanas de concepo do mundo como as recm-

    consideradas aparente e deriva da confuso entre formas de senso comum

    inautnticas com a forma mais autntica, que gostaria de chamar de forma

    modesta.

    Comecemos com as objees vindas da cincia. Quanto cincia emprica,

    considere os enunciados

    (a)

    O sol circunda a terra diariamente,(b)Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a

    resistncia do ar,(c)O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a

    velocidades prximas s da luz.

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    C.S. Peirce: Critical-Commonsensism; ver tambm Roderick Chisholm: Theory ofKnowledge, p. 64.

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    Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela

    cincia. Galileu demonstrou que (a) e (b) so enunciados falsos, o primeiro

    porque a terra que circunda o sol e o segundo porque no vcuo todos os corposcaem com a mesma acelerao. E Einstein demonstrou que (c) falso, pois a

    passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta conforme o corpo se

    aproxima da velocidade da luz. O filsofo Bertrand Russell, por exemplo,

    procurou tornar claro que a teoria da relatividade veio a demonstrar que no s

    essa, mas vrias outras crenas de senso comum no resistem a uma

    considerao mais acurada.1

    Meu ponto, porm, que nenhum dos enunciados acima legitimamente

    pertencente ao senso comum no sentido prprio da expresso, que chamei de

    modesto. Esses enunciados so na verdade extrapolaes radicadas nos

    enunciados do senso comum mais modesto, feitos no interesse da cincia por

    cientistas e mesmo por filsofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum,

    dos quais (a), (b) e (c) so extrapolaes, podem ser versados respectivamente

    como se segue:

    (d)O sol cruza os cus diariamente,(e)A pedra cai mais rpido do que a pluma,(f)O tempo flui igualmente para todos ns, estejamos em movimento ou

    parados.

    Vemos que o senso comum cientificamente ou especulativamente motivadohistoricamente interpretou esses enunciados de senso comum como implicando

    respectivamente (a), (b) e (c). No obstante, os enunciados que foram

    efetivamente originados de nossas prticas lingsticas ordinrias so como (d)

    (e) e (f), os quais continuam perfeitamente confiveis, mesmo aps Galileu e

    1 Ver Bertrand Russell:ABC of Relativity, cap. 1

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    Einstein. Afinal, bvio que (d) um enunciado verdadeiro, pois ele anterior

    distino entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma que

    aquele crculo luminoso cruza o cu a cada dia, o que ningum discutiria.

    1

    Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no

    vcuo (e) tambm um enunciado indiscutvel, pois tudo o que ele diz que a

    pluma cai mais lentamente do que a pedra em circunstncias normais.

    Finalmente, mesmo tendo sido demonstrado que a passagem do tempo se torna

    mais lenta com o aumento da velocidade, o enunciado (f) correto, pois ele no

    foi pensado sob a considerao de medidas impossivelmente acuradas da

    passagem do tempo, uma vez que para as diferenas de velocidade dos corpos ao

    nosso redor a dilatao do tempo to insignificante que seria absurdo no

    desprez-la.2O que esses exemplos demonstram que no foram as verdades do

    senso comum modesto, radicadas em nossa forma de vida cotidiana que foram

    refutadas pela cincia, mas extrapolaes do senso comum fora de seu lugar

    prprio, produzidas por cientistas e filsofos. Fora isso no h nenhum conflito

    entre as descobertas da cincia e as afirmaes do homem comum.

    Esse mesmo raciocnio se aplica ao conhecimento a priori do senso comum,

    como o de que um enunciado no pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo,

    de que o branco no preto ou de que no existem frases sem verbos. Considere

    o caso de enunciados como (g) O bem admirvel, que gramaticalmente

    idntico a enunciados como (h) Scrates sbio. Ambos tm a mesma forma

    gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito no designa

    nenhum objeto visvel, Plato teria concludo que esse sujeito precisa designar O

    1 Esse um enunciado como o de Herclito, que notou que o sol tem o tamanho de um phumano. Como notou um intrprete, basta que nos deitemos no cho e levantemos o p contrao sol para nos certificamos da verdade desse enunciado.2

    Mesmo para as misses espaciais a fsica usada a newtoniana. Como ento supor que taispreocupaes pudessem pertencer ao campo semntico do senso comum modesto.

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    Bem em si mesmo, a idia do bem, existente apenas no reino inteligvel das

    idias eternas e imutveis.

    Para chegar a sua concluso, Plato se baseou em intuies da linguagemordinria concernentes distino gramatical entre sujeito e predicado. Todavia,

    a introduo da lgica quantificacional por Frege no final do sculo XIX

    demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o

    que bom admirvel ou Para todox, sex bom, entox admirvel, onde a

    palavra bem passa funo dopredicado bom, deixando de se referir a um

    objeto, o que diminui a presso para a aceitao da idia platnica do bem.

    Contudo, a sugesto de que o sujeito O Bem se refere a um objeto abstrato, a

    idia, no pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem

    ordinria. Embora ela seja uma extrapolao especulativa feita por filsofos por

    apelo implcito gramtica da linguagem ordinria, seria injusto responsabilizar

    esta ltima por isso. Afinal, o advento da lgica quantificacional no refutou a

    gramtica da linguagem ordinria, mas adicionou a essa linguagem uma nova e

    fundamentalmente diversa dimenso de anlise.

    O que todos esses exemplos demonstram a falsidade da freqente afirmao

    de que o desenvolvimento da cincia veio a contradizer o senso comum. O que o

    desenvolvimento da cincia veio a contradizer foram extrapolaes

    especulativas que cientistas e filsofos fizeram com base no senso comum e na

    linguagem ordinria, como a sugesto de que o sol gira em torno da terra e a de

    que existe um outro mundo formado por objetos abstratos. Pois nada disso tem a

    ver com a aplicao do senso comum modesto e da linguagem ordinria no

    contexto em que essas intuies emergiram.1

    Consideremos agora alteraes do senso comum que foram colocadas em

    questo por alteraes em nossa concepo do mundo, como a crena de que

    1Ver C.F. Costa:Filosofia da Mente, pp. 22-23.

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    Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos.

    Praticamente em todas as culturas humanas a crena em Deus e na alma foi

    admitida inquestionvel, mesmo na cultura europia, at dois ou trs sculosatrs. Mas hoje no se pode dizer que essas crenas sejam mais universalmente

    obtidas. Assim, parece que o senso comum pode se alterar com a alterao de

    nossa concepo do mundo.

    Minha reao a essa objeo no difere muito da que tenho para a objeo

    proveniente do progresso da cincia. Essas crenas no pertenceram

    propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Elas resultaram do

    senso comum modesto adicionado ao wishfulthinking. Era certamente mais fcil

    acreditar na existncia de um Deus pessoal ou de uma alma independente do

    corpo h dois mil anos atrs, na falta de informaes divergentes produzidas

    pelo progresso cientfico; contudo, mesmo assim sempre foi aqui adicionado um

    elemento de f, de crena para alm dos fatos, ao que foram aduzidas razes.

    Isso se demonstra linguisticamente: uma pessoa comum geralmente no diz que

    sabeque uma alma independente do corpo ou que sabeque Deus existe:

    ela prefere dizer que acreditanessas coisas, enquanto ela mesma em momento

    algum recusa a admitir que sabe que existe um mundo externo, que o mundo

    existia antes de ela ter nascido etc., mas no que apenas acredita nisso.

    Espero ter com isso tornado plausvel a idia de que o mais alto tribunal da

    razo realmente o senso comum modesto. Afinal, como a prpria cincia s

    pode ser construda sob a assuno de conhecimentos de senso comum modesto,

    no parece ser sequer em princpio possvel destruir o senso comum sem que

    com isso se destrua os prprios fundamentos da racionalidade. No pretendo,

    contudo, considerar sequer o senso comum modesto necessariamente constitudo

    de princpios indubitveis, mas apenas mostrar que nem a cincia nem as

    alteraes em nossa concepo do mundo foram suficientes para desfazer a

    fora dos princpios do senso comum adequadamente considerado.

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    Uma concluso resultante da comparao entre senso comum e cincia que

    quando consideramos a razo natural dentro de seus despretenciosos limites

    prprios, a cincia no se revela como oposio, mas como extensodo sensocomum. Essa concluso refora nossa confiana em que no comeo de tudo se

    encontram as verdades do senso comum, adequadamente escolhidas e

    interpretadas. (Com isso no estou defendendo que elas sejam suficientes contra

    os argumentos filosficos que as contestam, como pretendia um filsofo como

    Reid. O que quero dizer que elas servem como pontos de apoio confiveis.

    Assim, tomando um exemplo de P.M.S. Hacker concernente ao ponto de vista

    de Wittgenstein, embora a resposta de senso comum ao paradoxo de Zeno seja a

    de que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um p diante do outro no nos

    satisfaz, pois no pe descoberto a fonte de confuso apesar de ser uma

    indubitvel verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga1.

    Tambm um princpio de senso comum modesto, como o de que o mundo

    externo existe, pode a meu ver ser justificado contra argumentos filosficos2

    Contudo, nada disso pode ser feito sem base em outros princpios de senso

    comum.)

    Diversamente do que possa parecer, no acho que devamos nos restringir ao

    senso comum ingnuo e ao seu reflexo nas intuies da linguagem comum.

    Quero estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes

    diante das idias filosficas ao senso comum informado pela cincia o que

    gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a cincia formal

    quanto a emprica (o que inclui a fsica, a biologia, a psicologia, a lingstica...)

    so capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas

    verdades, como a de que o bem na frase O bem admirvel no deve ser

    interpretado como um sujeito lgico, ou de que a frase O sol atravessa o cu

    1

    G.H. Baker & P.M.S. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1, p. 303.2Ver minha prova do mundo externo no artigo Critrios de realidade.

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    diariamente no implica em que ele circunda a terra. O que chamo de saber

    comum , pois, a extenso daquilo que inclui o senso comum ingnuo e o

    conhecimento cientfico lhe foi adicionado. Esse saber comum no precisa,certamente, ser compartilhado por todas as pessoas. Mas ele comum no sentido

    de que passvel desse compartilhamento: ele aquele conhecimento com o

    qual qualquer pessoa razovel ir por-se de acordo, caso esteja habilitada a

    compreend-lo e avali-lo. Assim, minha proposta a de que aquilo que capaz

    de possibilitar um juzo adequado sobre a razoabilidade de nossas teses

    filosficas o senso comum cientificamente informado, nomeadamente, nosso

    saber comum. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:

    Teoria filosfica

    Princpios do senso Conhecimento cientfico

    comum modesto (saber comum)

    Os vetores sugerem que no a filosofia que corrige o senso comum modesto

    nem o conhecimento cientfico, mas, pelo contrrio, ela deve harmonizar-se a

    eles. No se trata, pois, de equilbrio reflexivo, mas de harmonizao com a base

    do saber comum. O ponto a ser acentuado o da necessidade de coerncia das

    teorias filosficas com o saber comum. As nossas teorias filosficas tornam-serazoveis quando alcanam essa espcie de coerncia. Quanto s teorias que no

    alcanam essa coerncia, elas podem ser admitidas como propostas interessantes

    e mesmo instigantes do ponto de vista especulativo, mas nem por isso merecem

    ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse , em meu juzo, o caso

    das metafsicas da referncia.

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    Essas consideraes tambm oferecem uma soluo para o problema que

    surge quando a razo (filosfica) e o senso comum colidem. Minha suspeita

    que a razo (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e osenso comum (em seu lugar prprio e devidamente reconciliado com o

    conhecimento cientfico) nunca colidem, a no ser na aparncia, uma vez que a

    prpria racionalidade da teoria filosfica decorre de seu equilbrio reflexivo com

    o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradio emerge, cabe ao

    filsofo trat-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que

    conciliem a teorizao filosfica com o senso comum e a informao cientfica.

    O filosofar por exemplos

    Quero complementar esse princpio do primado do saber comum com o que j

    foi chamado de mtodo de filosofar por exemplos preconizado por Avrum

    Stroll.1 Trata-se do mtodo wittgensteiniano de proceder atravs do exame

    minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma

    expresso lingstica, possivelmente imaginando novas situaes de uso, na

    inteno de elucidar os seus sentidos, o quanto isso nos for necessrio. Assim,

    com base na aplicao do princpio da priorizao do saber comum

    (nomeadamente, do senso comum informado pela cincia) e com o mtodo do

    filosofar por exemplos, pretendo exercitar aqui uma crtica da linguagem, cujo

    desiderato o de demonstrar que as teses positivas mais audaciosas da

    metafsica da referncia, mesmo que inovadoras e capazes de apontar para

    fenmenos de fundamental importncia, se tomadas apenas em sua face de valor

    no passam de sofisticadas iluses conceituais.

    A noo de uma crtica da linguagem teve proeminncia na filosofia

    teraputica do ltimo Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer

    1

    Este o mtodo preconizado por Avrum Stroll em seu livro Sketches of Landscapes:Philosophy by Examples, pp. x-xi.

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    a linguagem de suas frias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso era

    para ser feito mostrando, atravs de exemplos, os modos como realmente

    usamos as expresses, com o resultado de que os absurdos encobertos dametafsica acabariam por se demonstrar absurdos evidentes.1 Parece-me que

    disso que muito da presente metafsica da referncia e de resto muito da

    prpria filosofia contemporneanecessita.2

    Essa tarefa especialmente importante em um tempo como o nosso, em que

    o veio da filosofia do senso comum e da linguagem ordinria, que vem de

    Thomas Reid a G.E. Moore e do ltimo Wittgenstein a J.L. Austin, parece ter se

    extinguido, dando lugar ao cientismo e a filosofias compartimentadas, que

    servem curiosidade especulativa de especialistas nesse ou naquele domnio

    cientfico mesmo que ao preo de colocar entre parnteses o saber comum.

    Como conseqncia disso estamos a meu ver assistindo, na filosofia da

    linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas do

    que Wittgenstein chamou de castelosde areia conceituaisresultantes de ns

    do pensamento, bem urgidos equvocos semnticos resultantes do desejo de

    inovao acompanhado de uma desconsiderao das sutis diferenas de

    significao ganhas pelas expresses em seus diversos contextos de uso, o que

    conduz a uma sucesso de debates entre teorias cada uma mais implausvel do

    que a outra, em uma forma de escolasticismo filosfico.

    Contra a filosofia teraputica de Wittgenstein observou que no plausvel a

    idia de que a filosofia no possa nem deva ser tambm teortica e sistemtica,

    no sentido de conter generalizaes abrangentes e substantivas. Eu concordo

    1Ludwig Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, sec. 109, 111, 122, 125, 129.2 No h mais hoje quem concorde com a tese sugerida por certas passagens dos textos deWittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confuses lingsticas. Apesar disso, um fato que a prtica filosfica quase inevitavelmente produtora de confuses lingsticas,mesmo que contenha algum insightsubstancial por trs do que pretende sugerir. Da que uma

    ateno crtica prvia aos sentidos ordinrios dos conceitos usados propedeuticamentedesejvel e ser aqui metodologicamente empregada.

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    com isso. Mas discordo que essa tenha sido verdadeiramente a posio de

    Wittgenstein. Pois ele mesmo era consciente de que por trs das confuses

    conceituais, como explicao de seu carter de profundidade, h insightteortico legtimo para cuja expresso falta uma conceitologia adequada. Com

    efeito, qualquer que seja a crtica da linguagem que venhamos a fazer, a sua

    eficcia se deve ao fato de que ela se encontra inevitavelmente impregnada de

    pressupostos tericos, que podem ser ou no ser explicitamente trabalhados.

    Como o prprio Wittgenstein percebeu, possvel e mesmo necessrio o

    estabelecimento de apresentaes panormicas (bersichtliche Darstellungen)

    da estrutura lgico-gramatical dos conceitos constitutivos dos ncleos mais

    centrais de nosso entendimento. Como ele escreveu em uma famosa passagem:

    Uma fonte principal de nossa incompreenso que no temos uma visopanormica dos usos de nossas palavras falta carter panormico nossagramtica. A representao panormica permite a compreenso, que consiste

    justamente em ver as conexes. Da a importncia de encontrar e inventar

    articulaes intermedirias.1

    interessante notar que as articulaes intermedirias no precisam se encontrar

    j prontas. Aqui entra o elemento teortico. A articulao intermediria pode ser

    simplesmente a regra geral, o elo comum relacionando uma variedade de casos.

    Esse elo comum ser mais propriamente chamado de descritivo se ele j se

    encontrar manifesto na linguagem; mas ele ser melhor chamado de teortico se

    tiver de ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na

    diversidade daquilo que fazemos com a linguagem. verdade que ao propor

    1L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, I, sec. 122. Como notaram G.P. Baker eP.M.S. Hacker, Wittgenstein no rejeita o engajamento em teorizaes filosficas quando elasse fazem necessrias. Ver desses autores Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. 1,cap. XI. Alm disso, Wittgenstein tambm usa a palavra teoria para qualificar o seu prprio

    procedimento terico, no sentido de um sistema orgnico ao invs de arquitetnico. VerWittgenstein: Wittgensteins Lectures, Cambridge 1932-35, p. 43.

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    essas coisas, Wittgenstein tambm afirmava que a filosofia deve ser descritiva e

    no-teortica. Mas como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, o que

    Wittgenstein quis atravs disso foi rejeitar o cientismo, entendido como aassimilao do trabalho filosfico ao modelo de teoria da cincia particular e

    teoretizao metafsica que mimetiza a cincia1o cientismo, que hoje em dia

    redutivo no s no sentido de abandonar a mediao do senso comum, mas at

    mesmo do saber comum, quando se encontra comprometido com o que

    pensado em alguma rea especfica da cincia. Contra isso, o que desejamos

    encontrar e expor as regras que governam a aplicao de nossos termos

    filosoficamente relevantes, sem para tal comprometer o equilbrio reflexivo com

    o nosso saber comum.

    O conhecimento tcito do significado: a explicao tradicional

    Tambm assumimos o fato bvio de que uma linguagem um sistema de signos

    governados por regras e que essas regras so convencionais. Uma conveno

    lingustica uma regra que os participantes da comunidade lingustica

    geralmente seguem e esperam que os outros participantes tambm sigam,

    mesmo que lhes falte conscincia dessas regras.2 devido a esse carter

    compartilhado das convenes que governam a linguagem que somos capazes

    de us-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Uma das

    assunes mais conhecidas da filosofia da linguagem tradicional a de que no

    temos conscincia das regras semnticas que governam os usos que fazemos de

    expresses centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente

    automatizadas em ns, de modo que ao usarmos uma expresso no precisamos

    tomar conscincia do complexo entrelaado de acordos tcitos envolvidos. Uma

    razo disso encontra-se no prprio modo como as expresses geralmente so

    1

    G.P. Baker & P.M. Hacker: Wittgenstein: Understanding and Meaning, vol. II, p. 260.2David Lewis: Conventions, cap. 1.

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    aprendidas. Filsofos analticosde Wittgenstein a Gilbert Ryle, P.F. Strawson,

    Michael Dummett e Ernst Tugendhat sempre apontaram para o fato de que

    nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionaisque determinam os seus usos, no costuma se dar atravs de definies verbais,

    mas de modo no-reflexivo, atravs de exemplificaes positivas e negativas

    realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser

    confirmados ou desconfirmados e corrigidos por outros falantes.1

    Se considerarmos que esse aprendizado no-reflexivo inclui termos

    filosficos centrais como conhecimento, conscincia, causalidade, bem, e

    mesmo termos da filosofia da linguagem como significado, referncia e

    verdade, que por sua estrutura conceitual supostamente muito complexa so

    particularmente elusivos, torna-se claro que essa falta de conscincia semntica

    pode se tornar uma grande fonte de confuses quando o filsofo procura

    esclarecer o que esses termos queremdizer, especialmente se ele estiver sob a

    presso de alguma finalidade generalizadora extrnseca s demandas do prprio

    objeto de sua investigao. A amplitude e fora dessa idia foi aceita por

    Wittgenstein do incio ao fim de sua trajetria filosfica:

    A linguagem ordinria parte do organismo humano e no menoscomplicada do que este. (...) As convenes implcitas para o entendimentoda linguagem ordinria so enormemente complicadas.2

    Nosso esforo pela generalidade tem outra origem maior. Filsofos tm os

    mtodos da cincia natural sob os olhos e so inevitavelmente tentados aperguntar e responder questes ao modo da cincia. Essa tendncia aprpria fonte da metafsica e deixa o filsofo em completa escurido.3

    1Afora Wittgenstein, ver especialmente M. Dummett: What is a Theory of Meaning? (I) eWhat is a Theory of Meaning? (2).2

    Ludwig Wittgenstein: Tractatus Logico-Philosophicus, 4.002.3Wittgenstein: The Blue and Braun Books, p. 18

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    Os homens no se do conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas.A menos que uma vez tenham se dado conta disto.E isso significa: no nosdamos conta daquilo que, uma vez visto, o mais marcante e o mais forte.1

    A filosofia uma luta contra o enfeitiamento de nosso intelecto pelos meiosde nossa linguagem.2

    Muitos e talvez o prprio Wittgenstein, pensaram no procedimento de

    explicitao das convenes implcitas da linguagem ordinria como um

    procedimento revolucionrio. Mas parte artifcios como aquilo que Quine

    chamou de ascese semntica (semanticaccent) o uso de uma metalinguagem

    de maneira a descrever o contedo do que se encontra sob anlise3

    e acuidadosa considerao dos usos lingsticos demonstrando conscincia das

    sutis diferenciaes semnticas no h nada de verdadeiramente

    revolucionrio nesse procedimento. Pois a anlise do significado de termos

    filosoficamente relevantes dentro do escopo de uma metafsica descritiva

    (dedicada, como a definiu Strawson, a descrever a verdadeira estrutura de

    nosso pensamento sobre o mundo4

    ) no mais do que uma retomada, com aadio de novos mtodos de anlise e de uma mais rigorosa ateno s sutilezas

    da linguagem, de um projeto que perpassou toda a histria da filosofia ocidental

    e que j havia tomado a forma de anlise conceitual nos dilogos de Plato.

    Afinal, nesses dilogos Scrates tipicamente aparecia com uma questo do tipo

    O que X?, onde X estava no lugar de termos como conhecimento, justia,

    beleza, seguindo-se da as tentativas geralmente aporticas de se encontrar

    uma definio capaz de resistir a objees e contra-exemplos.

    Duas objees explicao tradicional

    1Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, seo 129.2Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, seo 109.3

    W.V.O. Quine: Word and Object, cap. VII, seo 56.4P.F. Strawson:Individuals: An Essay on Descriptive Metaphysics, p. 9.

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    A idia de que possumos cognies implcitas das convenes que determinam

    os significados de nossas expresses lingsticas foi desafiada por defensores do

    externalismo semntico. Segundo o externalismo, os significados das expressespodem residir fora do domnio do psicolgico, no mundo fsico e social,

    dependendo assim apenas de seus objetos de referncia, assim como,

    eventualmente, de processos neurofisiolgicos envolvendo mecanismos causais

    autnomos. Em apoio a essa idia pode ser aduzido o prprio carter no-

    reflexivo das regras semnticas que determinam nossos usos lingsticos: se no

    temos conscincia do significado, ento por que ele no pode ser simplesmente

    no-psicolgico, dependente apenas da maquinaria neuronal? Mas nesse caso

    no seria em princpio sequer necessrio o envolvimento de elementos

    cognitivos no significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais

    autnomos, irresgatveis para a conscincia. John McDowell ilustra essa

    posio ao observar contra Michael Dummett que

    Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto o portador de umnome familiar sem ter a menor idia de comoo reconhecemos. O presumvelmecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e no

    psicolgica] suas operaes sendo totalmente desconhecidas de quem aspossui.1

    Para McDowell a funo referencial dos nomes prprios no para ser

    explicada com base em regras cognitivas implcitas de identificao do objeto, a

    serem descritivamente resgatadas, pois:

    As opinies dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciaisdivergentes com respeito a nomes so produtos de auto-observao, tanto

    1John McDowell: On the Sense and Reference of a Proper Name, p. 178. O contedo entre

    colchetes repete as palavras do autor em sua nota de rodap sobre essa passagem. McDowellv na posio de Dummett uma recada no psicologismo justificadamente rejeitado por Frege.

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    quanto isso acessvel, de um ponto de vista externo. Elas no sointimaes vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamenteconhecida, uma receita para o discurso correto, que guia o comportamento do

    lingista competente. (grifo nosso)

    1

    Essas consideraes encontram-se em oposio ao que pretendo defender

    nesse livro. Quero vir a demonstrar que alguma instanciao de regra semntico-

    cognitiva interna acaba por ser indispensvel funo referencial, se esta for

    entendida em seu sentido prprio. Veremos que para haver referncia um

    elemento cognitivo geralmente no-consciente associado a nossas expresses

    deve precisar ser instanciado em alguma medida, em algum momento e em

    algum de seus usurios, ainda que isso no costuma ser necessrio em toda

    medida, a todo momento e para todo usurio.

    Eis como podemos argumentar contra McDowell. Uma diferena entre a

    opinio dos falantes resultante da auto-observao do ponto de vista externo

    sugerida por McDowell e a opinio resultante da auto-observao do ponto de

    vista interno pretendida por Dummett a de que o resultado da primeira deveriaser gradualmente reforado pela considerao de uma multiplicidade de

    exemplos, diversamente do resultado da segunda. Mas no parece que esse

    reforo indutivo acontea do modo esperado. Considere, por exemplo, o

    significado de uma palavra como cadeira. Todos ns sabemos o significado

    dessa palavra, mas normalmente no nos damos conta de qual seria a

    explicitao analtica atravs de uma definio. Assim, seguindo o mottowittgensteiniano de que o significado aquilo que a explicao do significado

    explica eis uma definio perfeitamente razovel a explicar o significado da

    palavra cadeira:

    1John McDowell: On the Sense and Reference of Proper Names, p. 190.

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    (C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto.1

    Quando ouvimos essa definio pela primeira vez ela se nos afiguraimediatamente como algo que parece ser correto. Depois que a ouvimos,

    podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto, percebendo que no

    conseguimos. Mas s isso j basta. No precisamos ir alm, imaginando toda

    sorte de cadeiras (cadeiras de balano, cadeiras de lona, cadeiras de rodas,

    poltronas...) de modo a irmos reforando indutivamente nossa crena na

    definio. Mas se McDowell estivesse certo, nosso conhecimento acerca do

    significado de um nome comum como cadeira fosse resultado da auto-

    observao de um ponto de vista externo, ento parece que ganharamos maior

    certeza de que cadeiras so bancos com encosto na medida em que isso fosse

    indutivamente confirmado pela considerao de um nmero de exemplos cada

    vez maior. Mas no isso o que acontece e a explicao bvia que a definio

    apenas recupera a conveno semntica resultante de um acordo tcito entre os

    falantes que governa o uso da palavra cadeira em identificaes de cadeiras.

    Mas se o que temos uma conveno, ento um elemento psicolgico precisa

    estar envolvido, mesmo que de modo no-consciente, mesmo que constitudo

    apenas do que poderia ser chamado de uma cognio no-reflexiva.

    Confirmando a explicao tradicional, a definio torna explcita uma

    conveno que se instancia em cognies implcitas, no-reflexivas, no-

    conscientes.

    1 difcil objetar contra. Podemos sempre imaginar casos limtrofes, como o banco com umencosto de apenas dois centmetros de altura ( banco ou cadeira?) ou a cadeira cujo encostofoi retirado por alguns minutos (ela se transformou em uma cadeira sem encosto ou

    provisoriamente virou um banco?). Casos limtrofes so inevitveis, posto que nossosconceitos empricos so inevitavelmente vagos. O que justifica um conceito a sua utilidade

    nas inmeras vezes nas quais ele pde ser aplicado sem dificuldades e no os poucos casosnos quais ele deixa de ser til.

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    Outro argumento que vai contra a idia de que temos acesso cognitivo

    implcito s convenes semnticas que governam nossas expresses foi

    desenvolvido por Gareth Evans, o filsofo que mais diretamente influenciouMcDowell. Evans pede-nos para contrastar a crena que um ser humano tem de

    que certa substncia venenosa com a disposio de um rato de evit-la. No

    caso do ser humano trata-se de uma cognio no sentido de uma crena genuna

    envolvendo conhecimento proposicional; j no caso do rato trata-se de uma

    simples disposio para reagir a certo odor, e no propriamente de uma crena.

    A diferena se mede no fato de que

    da essncia de um estado de crena que ele esteja a servio de muitosdistintos projetos, e que sua influncia sobre qualquer projeto seja mediada

    por outras crenas.1

    Assim, se temos a crena de que certa substncia venenosa podemos com

    ela tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o venenou ou,

    digamos, ingerir o veneno na inteno de nos suicidarmos. Ns relacionamos

    inferencialmente o contedo cognitivo-proposicional da crena de que algo seja

    venenoso a uma diversidade de outras crenas, como no caso de algum que

    acredita que se tornar imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena

    quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso

    conhecimento das regras semnticas no susceptvel de tais inferncias,

    raciocina Evans, ele no constitudo de estados de crena reais, mas de estados

    insulares, semelhantes disposio do rato. Eles no so, pois, estados

    psicolgicos propriamente cognitivos.2

    A caracterizao da crena proposta por Evans interessante e correta.

    Minha dificuldade com o seu argumento, porm, que ele nos fecha os olhos

    1

    Gareth Evans: Semantic Theory and Tacit Knowledge, p. 337.2Evans: ibid.p. 339.

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    para a imensa distncia que existe entre nosso conhecimento das regras

    semnticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno.

    Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras dagramtica portuguesa. Considere o caso simples das regras gramaticais de

    concordncia verbal. Uma criana as aplica sem conscincia do que faz. Mas

    tais regras j permitem criana realizar uma diversidade de aplicaes a verbos

    muito diferentes em contextos muito distintos. Noam Chomsky manteve, creio

    que corretamente, que mesmo no sendo consciente o conhecimento da

    gramtica envolve conhecimento proposicional e crena, tanto quanto o

    conhecimento ordinrio, sendo o conhecimento tcito que o falante tem da

    gramtica inferencialmente avalivel na interao com os seus outros sistemas

    de conhecimento e crena, sendo sempre capazes de ser trazidos para a

    conscincia quando sob circunstncias apropriadas.1

    A concluso clara que h uma gradao entre o estado mental inconsciente

    mais primitiva e outras mais sofisticadas, que incluem crenas e pensamentos. O

    problema o do status da regra semntica implcita. Contudo, se o que

    consideramos regras semnticas so aquelas que tm como exemplo mais

    simples o caso da regra semntico-criterial (C) para identificar cadeiras como

    bancos com encosto, ento devemos rejeitar posies como a de Evans e

    McDowell. Afinal, (C) tambm nos permite fazer inferncias simples, como a de

    que uma cadeira no um banco, tendo assim muito maior proximidade com as

    regras da gramtica portuguesa do que com a regularidade disposicional

    demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em

    tais casos, diversamente do caso da disposio do rato, inferncias implcitas

    para outras cognies encontram-se disponveis, ainda que elas sejam limitadas

    e que no se possua uma disponibilidade to ampla quanto aquilo que possui o

    1

    Noan Chomsky: Rules and Representations, pp. 92-93, ver tambm seu livro Knowledgeand Language, pp. 261-265.

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    carter de ser conscientemente colocado a servio de muitos e diferentes

    projetos, como pretende Evans.1A razo dessa confuso se encontra a meu ver

    no fato de que as regras semnticas em questo no tm sido nem seriamentenem suficientemente investigadas em si mesmas, diversamente do que espero

    fazer no curso da presente investigao.

    Cognies semnticas no-reflexivas

    Em apoio ao modo de ver recm-sugerido quero apelar para as teorias reflexivas

    da conscincia. A idia introduzida na discusso contempornea por D.M.

    Armstrong2 a de que existem basicamente dois sentidos da palavra

    conscincia. O primeiro o do que ele chama de conscincia perceptual, que

    consiste no organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao

    seu redor e a si mesmo. Esse nvel de conscincia compartilhado com espcies

    inferiores: dizemos que um hamster sedado com ter perdeu a conscincia

    porque ele deixou de perceber o mundo. Claro que nesse nvel j existe

    mentalidade e cognio! Mas ao perceber o mundo o organismo no percebe que

    percebe, no tem conscincia de sua percepo. O rato percebe o gato, mas

    discutvel se ele capaz de tomar conscincia disso no sentido prprio; quando

    ameaada, uma serpente deve sentir raiva, mas certamente no tem conscincia

    da raiva que tem, pois ela no possui autoconscincia... Quando ento temos

    conscincia de que percebemos, sentimos, pensamos? A resposta dada pela

    introduo de um segundo e verdadeiramente importante sentido da palavra

    1Freud distinguia a representao inconsciente, mas apta a associar-se a outras em processosde pensamento inconscientes, da representao inconsciente verdadeiramente insulada, noassocivel a outras, que para ele emergia em estados psicticos e cujo mecanismo derepresso ele chamou de excluso (Verwerfung). Evans trata o estado mental de domnio daregra semntica no melhor dos casos como se fosse um contedo excludo no sentidofreudiano. Ver S. Freud: Die Verneinung.2

    Ver o artigo clssico de D.M. Armstrong: What is Consciousness?, pp. 55-67. Vertambm seu livroMind and Body: An Opinionated Introduction, cap. 10.

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    conscincia, que Armstrong chamou de conscincia introspectiva e que ns,

    seguindo Locke, chamaremos de conscincia reflexiva (responsvel pela

    autocosncincia). A conscincia reflexiva nasce quando os estados mentais deprimeira ordem, incluindo os da prpria conscincia perceptual, se tornam

    objetos de cognies de ordem superior, a saber, de metacognies,as quais so

    reflexivas do que se processa no primeiro nvel (o que D.M. Rosenthal chamou

    de higher order thoughts1). S quando temos a conscincia reflexiva de um

    estado perceptual que podemos dizer que ele se tornou consciente (por isso,

    quando dizemos que uma sensao ou sentimento ou pensamento

    consciente, estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognies).

    Isso demonstra que a conscincia dita perceptual na verdade uma conscincia

    inconsciente, posto que sendo no-reflexiva, nada sabe de si mesma.

    Provavelmente s os seres humanos e alguns mamferos superiores so capazes

    de conscincia reflexiva.

    Frente ao que acabamos de considerar podemos distinguir entre duas formas

    de cognio:

    (i)cognio no-reflexiva: essa cognio prpria da conscinciaperceptual, ela uma cognio que enquanto tal inconsciente, nadasabendo de si mesma.(ii)cognio reflexiva: trata-se da metacognio de estados mentais deordem inferior, os quais se tornam por esse meio conscientes no sentidoimportante da palavra. Entre seus objetos esto cognies no-reflexivascomo as que ocorrem na prpria conscincia perceptual, que podem entoser chamadas de cogniesreflexivas, por serem objetos de reflexo.

    1 Mesmo Armstrong concordaria que h um elemento cognitivo na reflexo de estadosmentais de primeira ordem. Ver David Rosenthal: Consciousness and Mind, parte I. Para a

    origem da noo de conscincia reflexiva, ver John Locke: An Essay Concerning HumanUnderstanding, livro II, cap. 1, 19.

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    Podemos agora aplicar a distino proposta ao entendimento do status dos

    modos de uso de nossas expresses. Quando dizemos que as regras

    determinantes de nossos usos das expresses, inclusive as regras criteriaisdeterminantes de seus usos referenciais, no so em geral conscientes, no

    estamos querendo dizer que suas instanciaes so realmente no-cognitivas,

    que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram

    verdadeiramente insuladas ou excludas. O que queremos dizer apenas que as

    cognies que instanciam psicologicamente essas regras so de um tipo pr-

    reflexivo (ou seja, elas no aparecem na forma de cognies reflexivas, falta-

    lhes conscincia no sentido importante da palavra).1 Mais ainda: parece ser

    sempre em princpio possvel que essas cognies no-reflexivas envolvidas em

    nossos usos significativos das palavras se transformem para ns em cognies

    reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de

    metacognies reflexivas, e que isso nos sirva de base para a compreenso

    consciente e a explicao verbal de sua decomposio analtica. Proponho ser

    esse o caminho pelo qual nos tornamos conscientes das regras semnticas

    envolvidas nos usos das expresses lingsticas.

    Ainda preciso fazer uma observao a respeito da sugesto de que a

    conscincia de um estado mental possa ser o resultado da simples integrao

    inferencial desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do

    sistema. Sob essa perspectiva, uma cognio inconsciente seria aquela que

    permanecesse em maior ou menor medida dissociadade outros estados mentais

    (embora no insulada, no excluda). Isso pode ser correto. Contudo, por que

    pensar que essa maneira de ver incompatvel com uma teoria reflexiva da

    1Desconsidero aqui a idia tradicional de que os estados mentais de primeira ordem geramautomaticamente metacognies, o que tornaria impossvel termos conscincia perceptualsem o acompanhamento de conscincia introspectiva. No s essa idia retira muitas

    vantagens explicativas das teorias reflexivas da conscincia, como parece faltar a ela umabase intuitiva convincente.

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    conscincia? Afinal, parece razovel pensar que a propriedade de um estado

    mental de ser objeto de reflexo metacognitiva seja tambm uma condio

    talvez fundamental para que esse estado mental possa ser mais extensamente,claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos

    do sistema.

    Essas consideraes vm em apoio tese geral desse livro porque nos

    permitiro admitir a existncia de ocorrncias semntico-cognitivas, mesmo

    para os casos nos quais no temos conscincia das convenes semnticas que

    estamos seguindo. As regras criteriais envolvidas no uso referencial das

    expresses no precisam ser usadas de forma verdadeiramente no-cognitiva,

    como mecanismos causais irresgatveis para a conscincia reflexiva, como

    alguns pretenderam. Elas podem ser consideradas como sendo sempre, de um ou

    de outro modo, cognitivamente aplicadas. S que essas cognies, mesmo sendo

    eventos psicolgicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognies

    capazes de torn-las cognies reflexivas, no se fazem conscientes, por isso

    mesmo no se tornando facilmente integrveis a outros estados mentais

    constitutivos do sistema. Por isso, a falta de conscincia do que est envolvido

    no uso significativo das expresses no basta para fazer-nos rejeitar a eventual

    indispensabilidade semntica de um elemento psicolgico-cognitivo.

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    2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA

    Quero nesse captulo esboar uma apresentao panormica do conceito de

    significado em nossa linguagem representativa, com base principalmente em

    uma leitura reconstrutiva de sugestes feitas por Wittgenstein. No prximocaptulo irei aplicar os resultados dessa proposta semntica fregeana, no

    intento de produzir uma anlise filosoficamente esclarecedora de suas principais

    distines.

    1. O elo semntico-cognitivo

    O ponto de vista que pretendo sustentar nesse livro o de que uma expressoreferencial, seja ela qual for, s capaz de referir devido a algum elo

    intermedirio que a vincula a sua referncia. Quero defender que esse elo

    intermedirio de natureza semntico-cognitiva no sentido de que ele pode ser

    considerado sob duas perspectivas: umasemnticae outrapsicolgica. Sob uma

    perspectiva semntica ele chamado de sentido ou significado, uso, intenso,

    conotao, conceito, contedo informativo e ainda modo de uso, critrio ou

    regra semntico-criterial. J sob a perspectiva psicolgica esse memo elo pode

    ser chamado de idia, representao, inteno, concepo e cognio. Eis um

    esquema:

    ELO SEMNTICO-COGNITIVOa) sentido, significado, contedo,

    EXPRESSO intenso, modo de uso, critrio, REFERNCIA

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    LINGUSTICA regra criterial, proposio...b) idia, representao, pensamento,

    cognio, inteno, concepo...

    Quais so as denominaes mais adequadas? Quais as que devem ser

    excludas? Devemos excluir os tens psicolgicos, de modo a no confundir

    semntica com psicologia? Ou devemos abandonar as abstraes semnticas

    vazias em troca das concretudes empricas?

    Essas so maneiras comuns, mas em meu juzo incorretas, de se colocar as

    questes. Quero sugerir que as perspectivas semntica e psicolgica no so

    alternativas que se excluem, mas que se complementam. Isso assim pelo fato

    de que o elo intermedirio entre as palavras e as coisas pode ser aproximado de

    dois modos. Enquanto elo cognitivo ele possui natureza psicolgica, consistindo

    de elementos que devem ser no final remetidos a tokensmentais em indivduos

    concretos; mas enquanto o elo semntico de natureza semitica, devendo ser

    remetidos a typesconsiderados na abstrao de suas instanciaes em indivduos

    concretos, no sendo assim psicolgicos, mesmo no possuindo nenhuma

    realidade fora dessas instanciaes. Essa maneira de ver parece confirmar-se

    quando notamos a correspondncia aproximada que alguns sub-tens de (a) e (b)

    demonstram entre si. Eis algumas:

    Perspectiva semntica Perspectiva psicolgica:

    Sentido, significado idiaConceito concepo, idiaConfiguraes criteriais representaes, imagens mentaisdemandadas

    proposies ocorrncias de pensamento

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    No que se segue quero buscar alguma elucidao para esses sub-itens e para as

    relaes entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestes feitas por

    Wittgenstein.

    2. Porque o significado no pode ser a prpria referncia

    As palavras que mais facilmente nos ocorrem so sentido e significado (em

    geral usadas como sinnimas), alm de termos cognatos mais tcnicos como

    contedo ou intenso. O que o significado? Uma primeira resposta

    oferecida pelo referencialismo semntico, concepo segundo a qual o

    significado de uma expresso a sua prpria referncia ou extenso. Essa

    concepo nega a existncia ou a importncia de um elo intermedirio.

    Wittgenstein considerou essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, que

    ele chamou de teoria agostiniana da linguagem:

    As palavras da linguagem denominam objetos frases so ligaes de tais

    denominaes. Nessa imagem da linguagem encontramos as razes da idia:cada palavra tem um significado. O significado correlacionado palavra.Ele o objeto para o qual a palavra aponta.1

    O principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o

    seu prprio referencialismo semntico dos nomes de objetos simples defendido

    em seu primeiro livro, o Tractatus Logico-Philosophicus. Esse modo de ver tem

    um apelo natural. Afinal, comum que ao esclarecermos o significado de umapalavra ns apontemos para um objeto que exemplifique o que ela quer dizer.

    Explicamos o que queremos dizer com o nome Fido apontando para o co que

    leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o prprio

    objeto referido: aqui est o nome, l est o seu significado. Contudo, essa foi por

    1Ludwig Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen, parte 1, sec. 1.

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    muitos apontada como uma idia primitiva e enganosa, que tem sido apontada

    como uma sria fonte de equvocos em filosofia da linguagem1, ainda que a sua

    influncia at hoje perdure.

    2

    H uma variedade de argumentos que parecem tornar evidente a falsidade da

    concepo referencialista do significado. Um deles que muitos termos

    singulares tm a mesma referncia, mas sentidos (significados) claramente

    diversos: os termos singulares Scrates e o marido de Xantipa tm

    significados claramente diferentes, embora se refiram a um mesmo homem. E o

    oposto acontece usualmente com termos gerais: o predicado ... rpido na frase

    Bucfalo rpido se refere a uma propriedade de Bucfalo e na frase Silver

    rpido se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas embora se

    referindo a diferentes propriedades, o termo geral guarda certamente o mesmo

    significado ao ser aplicado a um e ao outro cavalo. Assim, parece que o

    significado no pode ser confundido com a referncia nem dos termos singulares

    nem dos termos gerais.

    O principal argumento contra a concepo referencialista do significado,

    contudo, mais bsico e em meu juzo o mais destrutivo: trata-se do fato de que

    quando uma expresso referencial no tem referncia, ela no parece perder

    nada do seu significado. O termo singular Eldorado e o termo geral flogisto

    no tm nenhuma referncia, mas nem por isso deixam de ser significativos.

    Consciente dessas dificuldades, Bertrand Russell decidiu defender a

    concepo referencialista do significado em uma forma minimalista,

    concernente apenas aos supostos elementos atmicos da linguagem e do mundo.

    Ele deu a entender que ao menos o significado de alguns termos designadores de

    1 Ver especialmente Gilbert Ryle em The Theory of Meaning.2 Ainda hoje existem defesas sofisticadas, embora pouco plausveis, do referencialismo

    semntico, a mais clara sendo talvez a apresentada por Nathan Salmon em seu livro FregesPuzzles.

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    objetos simples, por ele chamados de nomes prprios lgicos, seria o prprio

    objeto referido; essepoderia ser o caso de uma palavra como vermelho. Afinal,

    um cego no capaz de aprender o seu significado.

    1

    Contudo, um pouco de reflexo demonstra ser insustentvel a idia de que o

    significado de uma palavra possa em algum caso se reduzir a sua referncia tout

    court. Suponha que algum aplique demonstrativamente a palavra vermelho a

    uma ocorrnciado vermelho (seja ela uma ocorrncia no mundo externo, como

    no caso da propriedade espao-temporalmente singularizada de um objeto de ser

    vermelho (o tropo), seja ela uma ocorrncia interna, como seria o caso de

    perceptos (sense data) de vermelho presentemente experienciados, como queria

    Russell. Poderia ser essa ocorrncia o significado da palavra?

    H uma razo bvia para pensarmos que no, que a falta de critrios de

    identidade. Isso se nota quando consideramos que a ocorrncia de vermelho

    seja ela fisicamente ou fenomenalmente pensada ser sempre outra a cada

    nova experincia. Assim, se o significado de vermelho for apenas o vermelho -

    como-ocorrncia, cada nova ocorrncia de vermelho poder ser um novo e

    distinto significado.

    Russell tinha como se defender dessa acusao, mas s ao preo de cair em

    uma dificuldade muito pior. Ele sugeriu que o objeto-significado do nome

    prprio lgico fosse umsense datumreferido por um demonstrativo como isso

    apenas pelo tempo em que possussemos conscincia do sensedatum. Claro est

    que tal soluo conduz diretamente ao solipsismo. Como inserir um nome

    prprio assim pensado na linguagem? Que regras de correo poderiam ser

    1 Bertrand Russell: The Philosophy of Logical Atomism, pp. 194-5, 201-2. Como notouMark Sainsbury, a concepo referencialista do significado pelo menos implicada em certostextos de Russell. Ver M. Sainsbury:Russell, pp. 15-16. A mesma posio foi aceita de forma

    explcita pelo primeiro Wittgenstein: O nome significa seu objeto . O objeto seusignificado. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.203.

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    aplicadas ao seu uso se nem a sua prpria reutilizao no mesmo sentido pode

    ser considerada?1

    Com efeito, conhecer o significado de uma palavra como vermelho naverdade saber reconhecer uma ocorrncia do vermelho como sendo ao menos

    igual a outras ocorrncias do vermelho. Mas esse reconhecimento no est

    incluido na idia de que o significado da palavra se reduz prpria coisa a qual

    ela se refere. A noo de significado de um termo exige essencialmente que este

    unifique mltiplas ocorrncias daquilo a que se refere sob um mesmo

    significado. Mas essa unificao deixa de ser possvel para a palavra vermelho

    se o seu significado for reduzido a sua prpria ocorrncia.

    verdade que uma concepo realista do significado, segundo a qual o

    significado de uma palavra como vermelho seria um vermelho-type, entendido

    como uma entidade abstrata, comum a todas as ocorrncias (tokens), resolveria

    esse problema. Mas essa soluo nos comprometeria com alguma forma de

    platonismo, levantando a justificada suspeita de uma reificao ininteligvel do

    typeem um topos atopos.

    Uma alternativa seria considerar o vermelho-typeem questo como sendo o

    conjunto das ocorrncias idnticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo,

    mas no o elimina, pois conjuntos so entidades abstratas aparentemente

    irredutveis. Alm disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando

    ou diminuindo, enquanto o significado da palavra vermelho no tem tamanho e

    nem aumenta nem diminui.

    A seguinte alternativa parece ser mais vivel. Podemos considerar o

    significado de vermelho como sendo qualquer ocorrncia considerada igual a

    1 Ver objeo j na discusso de The Philosophy of Logical Atomism, p. 203. Tambm,como notou Ernst Tugendhat, um termo singular tem a funo de especificar um objeto, masse a conscincia se refere somente a um sensedatumpresente, a concluso que a palavra

    isso no tem mais nenhuma funo. Ver Vorlesungen zur Einfhrung in diesprachanalytische Philosophie, p. 382.

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    uma ocorrncia que estejamos usando como modelo. Assim, se reconheo aquilo

    que me est sendo atualmente dado como sendo uma ocorrncia de vermelho,

    pode ser porque percebo que essa ocorrncia igual a outra que j me foi dadaantes como vermelho o modelo do qual guardo memria o que me faz

    ganhar a conscincia de que se trata de uma cor igual a que experienciei da outra

    vez. Assim, chamando as diversas ocorrncias experienciadas de vermelho de

    {V1, V2... Vn} e a ocorrncia que serve de modelo de Vm, posso dizer que V1=

    Vm, que V2= Vm... e que Vn= Vm, e que por isso {V1= Vm= V2}, sem recorrer

    a uma entidade platnica ou sequer noo de conjunto. O que chamamos de

    significado da palavra vermelho pode, sob esseprisma, ser identificado com a

    conexo referencial, a saber, com a regracognitivaque relaciona a ocorrncia

    experienciada ocorrncia-modelo de maneira a produzir a conscincia do que

    est sendo experienciado como sendo uma cor vermelha. Como essa regra

    cognitiva requer modelos intersubjetivamente experienciados ou a memria

    desses modelos, fica explicado porque o significado da palavra vermelho no

    pode ser aprendido por um cego. Parece, pois, que o significado da palavra

    vermelho deve ser dado por uma regra semntico-cognitiva dependente de

    ocorrncias-modelos para a identificao de novas ocorrncias como sendo

    instncias de vermelho. Contudo, tal regra independente dessa ou daquela

    ocorrncia particular do vermelho. Enfim: ao refletirmos sobre a questo,

    mesmo para uma coisa to simples como a cor vermelha, acabamos por ir alm

    de uma concepo propriamente referencialista do significado.

    Mesmo que o referencialismo estrito jamais se sustente, h uma lio a ser

    aprendida. Nossa ltima sugesto de entendimento salva do referencialismo

    russelliano uma sugesto importante, que a da necessria existncia de algum

    objeto de referncia para os supostos nomes de objetos simples. Mesmo

    entendendo a expresso objeto simples em um sentido que no absoluto,

    restringindo-se a uma entidade no-decomponvel em certa prtica lingustica,

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    como bem poderia ser o caso de um percepto de vermelho ou do vermelho como

    uma propriedade singularizada dada experincia (um tropo), a concluso a

    de que para que tais nomes tenham significado eles precisam ter referncia. Eisporque, em um sentido importante, um cego no pode saber o significado da

    palavra vermelho. Pois no podendo ter contato sensorial com coisas

    vermelhas, ele no pode construir a regra semntico-cognitiva constitutiva do

    significado da palavra. Ao menos no caso de nomes de objetos simples,

    referidos por algum subrogado dos nomes prprios lgicos restrito a certa

    prtica lingustica, necessrio que exista alguma referncia. Mas isso no quer

    dizer que o significado do nome seja a prpria referncia. Isso quer dizer apenas

    que a referncia necessria constituio da regra semntica atravs da qual o

    nome do objeto admitido como simples ganha referncia.

    3. Significado, uso, regra semntica

    Passemos agora a outro candidato a elo semntico: o uso ou aplicao.

    Wittgenstein sugeriu que o significado de uma expresso lingstica o seu uso

    (Gebrauch) ou aplicao (Verwendung). Como ele escreve em uma famosa

    passagem dasInvestigaes Filosficas:

    Pode-se, para uma grande classe de casos de utilizao da palavrasignificado seno para todos os casos de sua utilizaoexplic-la assim:o significado de uma palavra o seu uso na linguagem.1

    Essa sugesto se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica

    claramente aos usos performativos das expresses, como o do verbo pedir em

    proferimentos do tipo Peo que p.Esses usos constituem tipos de interao

    entre o falante e o ouvinte chamadas de foras ilocucionrias.

    1Wittgenstein:Philosophische Untersuchungen,seo 43.

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    Contudo, a identificao do significado com o uso no se aplica to somente

    ao significado descritivo, representacional ou semntico-cognitivo das

    expresses, que aquele que est em causa quando tratamos da referncia. Osignificado da frase descritiva O cu est azul no parece se reduzir aos seus

    usos. Uma soluo consiste em se fazer uma extenso justificada do conceito de

    uso. Podemos dizer que aquilo que est em causa nesses casos o uso

    referencial de termos e frases: o uso envolvido no ato de tornar pblica uma

    descrio de como as coisas so. Podemos entender o uso referencial de

    expresses como aquele em que um falante comunica a cognio de como as

    coisas so ao ouvinte. Assim, no proferimento O cu est azul estou usando a

    assero de modo constatativo, para comunicar o contedo por ela descrito.1

    Contudo, o que dizer da compreenso de um proferimento pelo ouvinte? O

    ouvinte afinal no o est usando ao compreender o seu significado (quando leio

    um livro tenho acesso ao significado das frases, mas no as estou usando). Aqui

    precisamos recorrer a uma segunda extenso da palavra uso. Posso dizer que

    tambm uso as expresses em pensamento. Quando penso que o cu est azul,

    uso a linguagem no pensamento. E o pensamento , como o definiu Plato, um

    dilogo da alma consigo mesma.Se concordo com algo, se me pergunto algo,

    se constato algo para mim mesmo, trata-se de usos internalizados de expresses

    determinados por regras tambm envolvidas na comunicao.

    Tambm importante perceber que no se trata simplesmente de uso no

    sentido de uma mera ocorrncia espao-temporal (token) da expresso

    lingstica, pois uma ocorrncia difere sempre da outra em sua localizao

    espao-temporal. Se fosse assim o significado seria um outro a cada nova

    1A linguagem no possui apenas uma funo comunicacional, mas tambm organizativa, nosentido de que a usamos para pensar, para organizar nossas idias e planejar nossa ao. A

    primeira vista a identificao do significado com o uso no parece fazer juz funo

    organizativa. Mas isso no verdade. Se penso que a Torre Eiffel de metal, estou usandoesse nome referencialmente, em um dilogo comigo mesmo, ou seja, em pensamento.

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    ocorrncia, o que tornaria o nmero de significados de cada expresso ilimitado.

    A alternativa plausvel entender o uso no sentido de modo de uso

    (Gebrauchsweise) ou modode aplicao (Verwendungsweise), pois uma mesmapalavra pode ser usada muitas vezes do mesmo modo. Mas o que o modo de

    uso? Ora, ele no parece ser outra coisa seno algo do tipo de uma regra (etwas

    Regelartiges). O prprio Wittgenstein chegou a essa concluso em uma

    passagem menos quotada de Sobre a Certeza:

    Um significado de uma palavra um modo de sua aplicao (Art derVerwendung)... Da que existe uma correspondncia entre os conceitossignificado e regra.1

    Com efeito: usar uma expresso de modo significativo us-la de acordo

    com o seu modo de uso. us-la corretamente, a saber, segundo as regras de

    significao apropriadas. A correspondncia entre modo de uso e regra fica clara

    atravs de uma ilustrao: imagine que voc compre uma cmara de vdeo e que

    na embalagem encontre um livreto no qual est escrito modo de uso. O que

    vem a seguir so instrues que nada mais so do que regras para a correta

    utilizao do aparelho. O significado s pode ser aproximado do uso se for

    entendido no sentido de modo de uso, de algo do tipo de uma regra, que

    determina os usos-ocorrncias singulares. E o uso referencial uma forma

    particularmente importante de modo de uso.

    Mas por que ento no podemos identificar o significado de nossas

    expresses lingsticas com regras simpliciter? A resposta tambm foi

    aproximada por Wittgenstein com a sua analogia da linguagem com um

    clculo.2As expresses lingsticas em seu uso geralmente envolvem clculos,

    1Wittgenstein: ber Gewissheit, sees 61-62.2

    Ver Wittgenstein: Ludwig Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 168, ver tambmWittgensteins Lectures: Cambridge 1930-1932,pp. 96-97.

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    os quais nada mais so do que combinaes ou concatenaes de regras. E os

    significados que elas possuem parecem constituir-se dessas combinaes de

    regras que so convenes automatizadas, mais ou menos compartilhadas entreos falantes. isso o que justifica a comparao da linguagem com um clculo. A

    multiplicao 12 . 30 = 360, por exemplo, pode para certa pessoa resultar da

    combinao de trs regras, uma multiplicando 10 . 30, outra multiplicando 2 .

    30, e ainda outra somando os resultados 300 + 60, de modo a obter 360. O

    sentido epistmico da multiplicao 12 . 30 = 360 se encontraria ento dado por

    essa e por outras calculaes equivalentes, pois tal proposio no faria sentido

    se tais clculos no pudessem ser realizados. O que havamos chamado de algo

    do tipo de uma regra parece esclarecer-se, pois, como uma combinao de

    regras. O significado de uma expresso lingstica deve ser o mesmo que certas

    regras ou combinaes de regras que eventualmente determinam usos-

    ocorrncias corretos, quer pragmticos, quer referenciais, quer na linguagem

    falada, quer na linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo regra de

    maneira a incluir combinaes de regras, o que no final das contas uma

    extenso justificada do termo, posto que uma combinao de regras no mais

    do que uma regracomposta, que embora no seja ela prpria convencional (o

    seu compartilhamento pelos falantes no pressuposto), costuma ser

    convencionalmente fundada, a saber, constituda com base em convenes.

    H ao menos duas espcies de regras de significao que no podem deixar

    de ser distinguidas. A primeira a das regras cognitivo-criteriais responsveis

    pelo significado epistmico das sentenas declarativas. Critrios so, no dizer de

    Wittgenstein, aquilo que confere s nossas palavras os seus significados

    comuns.1 Para ele essas regras so baseadas em critrios, que so condies

    que precisam ser independentemente dadas para que tenhamos a cognio de

    1Ludwig Wittgenstein: The Blue and the Brown Booksp. 57.

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    que algo o caso. Usando um exemplo do prprio Wittgenstein, se algum

    afirma Est chovendo, isso envolve a aplicao de uma regra criterial, uma

    regra que demanda que sejam dadas certas condies, como a de gotas de guacaindo das nvens, para que haja a cognio, a tomada de conscincia do fato de

    que est chovendo. A segunda espcie de regras de significao a ser mencinada

    a das regras ilocucionrias, determinadoras do sentido ilocucionrio, ou seja,

    estabelecedoras da espcie de interao que deve ocorrer entre falante e ouvinte.

    Se ao fazer um pedido digo Por favor, feche a porta, essa frase no ser

    verdadeira ou falsa, mas bem sucedida ou no, sendo a regra ilocucionria

    aquilo que nela tematizado. As regras ilocucionrias esto fora do mbito de

    investigao desse livro, sendo mencionadas apenas no intuito de prevenir

    confuses.

    Contudo, se uma anlise do apelo ao uso termina por apontar para regras

    cognitivas semntico-criteriais, ento por que comear pelo uso? Por que no

    comear logo pela investigao dessas regras e de suas combinaes? A resposta

    que comear pelo uso tem para Wittgenstein uma importncia heurstica. As

    ocorrncias de uso correto, devidamente interpretadas, devem constituir-se nos

    hard data semnticos: evidncias pblicas e indiscutveis da aplicao das

    regras de significao, pois a linguagem primeiramente um instrumento de

    ao e as regras cognitivo-criteriais esto inevitavelmente associadas a funes

    ilocucionrias. Ademais, o apelo ocasies de uso torna patentes as sutis

    variaes semnticas que uma mesma expresso pode sofrer ao ocorrer em

    diferentes contextos (prticas, jogos de linguagem), o que permite desfazer

    equvocos surgidos de usos filosficos da linguagem, que venham a confundir

    essas variaes.

    4. Significados e prticas lingsticas

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    H mais a se dizer sobre o significado como funo do uso: que uma expresso

    lingstica normalmente usada dentro de um sistema de regras. Podemos

    comparar uma expresso lingstica com uma pea de um jogo de xadrez e o seuuso com um lance no jogo. Quando movemos a pea de xadrez, o significado do

    movimento no dado somente pela regra segundo a qual movemos a pea. Ele

    mais completamente dado pela estratgia, pelo clculo das combinaes

    possveis de regras na previso de possveis movimentos do adversrio e das

    respostas que poderiam se seguir. Esse clculo prprio para o jogo de xadrez e

    ser diferente, digamos, no jogo de damas. Algo semelhante se d com um

    proferimento lingstico. As regras lingstico-gramaticais de superfcie so

    como as que permitem os movimentos das peas de xadrez. No so elas