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A VARIAÇÃO TERMINOLÓGICA NA LÍNGUA DE ESPECIALIDADE DOS AGRICULTORES DE MANDIOCA NO MARANHÃO E NO RIO GRANDE DO SUL Luís Henrique Serra* Resumo: O léxico de uma língua natural é um importante depósito de informação sobre um grupo social; nele podem ser encontradas marcas culturais de um povo, ou de uma localidade. Dessa forma, o léxico da língua portuguesa apresenta variações graças aos diferentes contextos culturais e ambientais das diferentes localidades onde esse idioma é falado. Da mesma forma, nas línguas de especialidade, o termo vai apresentar variações fonéticas, fonológicas, semânticas e lexicais nos diferentes lugares onde uma atividade é exercida. Nesse sentido, este trabalho se volta para a linguagem especializada dos plantadores de mandioca no Maranhão e no Rio Grande do Sul, com o objetivo de examinar a variação no interior desses subsistemas linguísticos. Os dados apontam uma variação terminológica significativa nesses Estados. Palavras-chave: Léxico. Socioterminologia. Língua de especialidade. Mandioca. Abstract: The lexic of a natural language is an important place to have information about a social group, inside it can be found culture marks of a nation or a location. Thus, the lexic of the Portuguese language shows variation thanks to different ambiental and culture contexts where this language is spoken. In the same way, in specialized languages, the term shows phonetic, phonology, semantic and lexical variation in different places where this activity are exercised. In this context, this work examines the variation in specialized languages of manioc´s planters in Maranhão and in Rio Grande do Sul. The two states show a significant terminology variation between the them. KEY-WORD: Lexic. Socioteminology. Specialized languages. manioc *Graduando do Curso de Letras da UFMA/ Bolsista de iniciação cientifica CNPq – UFMA/ Auxiliar de pesquisa do Atlas Linguistico do Maranhão – ALiMA/ UFMA. E- mail:[email protected]

4. a Variação Terminológica Na Língua de Especialidade Dos Agricultores de Mandioca No Maranhão e No Rio Grande Do Sul

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Page 1: 4. a Variação Terminológica Na Língua de Especialidade Dos Agricultores de Mandioca No Maranhão e No Rio Grande Do Sul

A VARIAÇÃO TERMINOLÓGICA NA LÍNGUA DE ESPECIALIDADE DOS

AGRICULTORES DE MANDIOCA NO MARANHÃO E NO RIO GRANDE DO

SUL

Luís Henrique Serra*

Resumo: O léxico de uma língua natural é um importante depósito de informação sobre

um grupo social; nele podem ser encontradas marcas culturais de um povo, ou de uma

localidade. Dessa forma, o léxico da língua portuguesa apresenta variações graças aos

diferentes contextos culturais e ambientais das diferentes localidades onde esse idioma é

falado. Da mesma forma, nas línguas de especialidade, o termo vai apresentar variações

fonéticas, fonológicas, semânticas e lexicais nos diferentes lugares onde uma atividade é

exercida. Nesse sentido, este trabalho se volta para a linguagem especializada dos

plantadores de mandioca no Maranhão e no Rio Grande do Sul, com o objetivo de

examinar a variação no interior desses subsistemas linguísticos. Os dados apontam uma

variação terminológica significativa nesses Estados.

Palavras-chave: Léxico. Socioterminologia. Língua de especialidade. Mandioca.

Abstract: The lexic of a natural language is an important place to have information

about a social group, inside it can be found culture marks of a nation or a location.

Thus, the lexic of the Portuguese language shows variation thanks to different ambiental

and culture contexts where this language is spoken. In the same way, in specialized

languages, the term shows phonetic, phonology, semantic and lexical variation in

different places where this activity are exercised. In this context, this work examines the

variation in specialized languages of manioc´s planters in Maranhão and in Rio Grande

do Sul. The two states show a significant terminology variation between the them.

KEY-WORD: Lexic. Socioteminology. Specialized languages. manioc

*Graduando do Curso de Letras da UFMA/ Bolsista de iniciação cientifica CNPq – UFMA/ Auxiliar de pesquisa do Atlas Linguistico do Maranhão – ALiMA/ UFMA.

E- mail:[email protected]

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Língua e sociedade são duas entidades indissociáveis. Em todos os níveis da

língua, sobretudo no âmbito lexical, podemos encontrar indícios confiáveis da forma de

pensar e raciocinar de um povo, bem como de sua cultura. Para Labov (2008), qualquer

estudo sobre a língua que não leve em conta essa relação, acaba por cometer o mesmo

engano dos gramáticos normativistas: voltar-se para estudos muito abstratos, distantes

do uso real da língua, o que acaba por levar a verdades, por vezes, folclóricas.

Da mesma forma que na língua geral, nas línguas de especialidades, o contexto

social e físico de uma localidade vai provocar variações nos termos empregados pelos

usuários dessas línguas. Essa é a ideia principal da Socioterminologia, ciência

consideravelmente nova que questiona a negação da variação no interior das línguas de

especialidade: segundo a perspectiva normativista da terminologia tradicional, é

impensável qualquer variação em uma língua de especialidade. O princípio normativista

é uma ideia defendida pela Teoria Geral da Terminologia (TGT), teoria criada por

Eugen Wüster, no âmbito da escola de Viena.

Levando em consideração o pensamento socioterminológico, neste trabalho,

enfocamos a linguagem especializada de plantadores de mandioca de dois diferentes

estados brasileiros – Maranhão e Rio Grande do Sul – para examinar a variação

terminológica no que tange à variação diatópica, uma vez que entendemos que termos

de uma mesma atividade humana especializada apresentam variações em sua

distribuição espacial.

A seleção do locus da pesquisa levou em consideração nosso propósito –

confrontar dados do universo da mandioca recolhidos em dois estados que apresentam

características físicas, climáticas e culturais diferentes. Para a Socioterminologia, é

importante averiguar a estreita relação que se estabelece entre o universo linguístico e o

sociocultural (cf. BIDERMAN, 2001; FAULSTICH, 2006; CAMARA, 2010).

Esperamos, pois, com este trabalho, evidenciar mais uma vez que a variação

linguística é inerente a qualquer língua natural, seja sob a forma de uma língua geral ou

de uma língua de especialidade.

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A terminologia e as variações terminológicas

O homem é o animal mais frágil comparado com outros animais na natureza.

Para sobreviver a um mundo hostil e selecionador dos mais fortes, o conhecimento tem

sido uma ferramenta indispensável para sua sobrevivência.

Vale ressaltar que parte desse conhecimento acumulado pelo homem está

armazenado no léxico, pois este é o resultado do processo de nomeação desenvolvido

pelos seres humanos. Segundo Biderman (2001), ao nomear os seres e suas

experiências, o homem apropria-se do real para, assim, garantir sua existência em um

mundo onde ele é o menos hábil para vencer as adversidades.

Sapir (1961, p. 45), ao enfocar o léxico, afirma que:

O léxico da língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes. O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo inventário de todas as ideias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade; e, por isso, se houvesse à nossa disposição um tesouro assim cabal da língua de uma dada tribo, poderíamos daí inferir, em grande parte, o caráter do ambiente físico e as características culturais do povo considerado.

Graças à evolução da ciência, ao longo da história da humanidade, profundas

transformações têm se dado na sociedade. Os diferentes modos de viver, de agir e de

pensar, decorrentes dessa evolução na ciência, ocasionaram diferentes formas de

organização e novos sistemas de produção no seio da sociedade. Paralelamente a esse

processo, dá-se na língua, no âmbito do léxico, o surgimento de vocábulos

especializados decorrentes das novas atividades da produção. Vocábulos novos são

introduzidos no léxico, criando assim o que hoje os linguistas chamam de língua de

especialidadei, objeto principal da terminologia (cf. BARROS, 2004).

Uma língua de especialidade (ou linguagem especializada) constitui-se como

uma subárea do léxico em que fica mais evidente o caráter objetivo e cultural (etno-

terminologia) de um grupo. Elementos do léxico geral são ressemantizados para a

produção de vocábulos profissionais, isto é, vocábulos que terão seu valor semântico

acionados somente em um contexto específico, em um texto/discurso profissional e/ou

cultural. O processo de criação terminológica (neônimos) se dá tanto de forma artificial

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(normatização, padronização) e de forma natural (terminologização) (cf. BARBOSA,

2005; KRIEGER; FINATTO, 2005).

O surgimento desses novos elementos na língua fez aparecer um novo campo de

interesse no âmbito da Linguística, mais especificamente das ciências que estudam o

léxico, como a Lexicologia, a Lexicografia: a Terminologia, que, ao distanciar-se de

seus postulados clássicos e reconhecer a variação no interior das línguas de

especialidade, deu origem à Socioterminologia.

Na Socioterminologia o termo assume um papel similar ao da lexia no interior

da Lexicologia, ou seja, armazena informações culturais e sociais de uma dada

comunidade; no caso do termo, de uma atividade especializada. Um termo de uma

determinada atividade humana (agricultura, administração, web design) traz consigo

informações sobre o universo dessa atividade, bem como sobre suas relações sociais ao

longo da história. A carga semântica de um termo de uma língua de especialidade,

muitas vezes, só é conhecida por pessoas que pertencem àquele universo. Como

exemplo, podemos citar, no âmbito da administração, o termo “brainstorm”, que

designa uma reunião em que os participantes devem confrontar ideias. Esse termo é

desconhecido de grande parte da população; só quem estuda ou trabalha na área da

administração, ou de uma área que mantenha uma interface com ela, conhece-o.

Porém, a questão social do termo nem sempre foi considerada. Durante muito

tempo, a Terminologia foi uma ciência que deveria organizar o vocabulário das línguas

de especialidade e normalizá-lo, desfazendo qualquer relação com a variação que lhe é

inata.

Nos estudos teóricos da terminologia, norma, durante muito tempo, foi usada como um meio regulador da “boa expressão”, no sentido de conduzir o elaborador de dicionários terminológicos para o registro de termos “adequados” numa comunicação especializada eficiente. E, em assim sendo, a variação deveria ser regulada pela normalização terminológica. (FAULSTICH, 2006, p 27).

Antes da Socioterminologia, a Terminologia resumia-se em criar termos

normalizadores na elaboração de dicionários técnicos. Com o nascimento da

Socioterminologia, o conceito de Terminologia foi dividido em terminologia técnica e

linguística terminológica, para que dessa forma houvesse um campo da Linguística que

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desse conta das variações linguísticas que aparecem nas línguas de especialidade

(FAULSTICH, 2006).

Levando em consideração a variação no interior das linguagens de especialidade,

a Socioterminologia pretende investigar, nessas linguagens, as variações

socioterminológicas (diatópica, diageracional, diacrônica e diastrática). A

Socioterminologia é, assim, uma disciplina “(...) que desenvolve metodologia de análise

para termo e para descrição, segundo as características de variação no contexto social e

linguístico onde ele ocorre. (...)” (FAULSTICH, 2006, p 31)

A mandioca e sua importância social e econômica

A mandioca é um produto genuinamente brasileiro. Desde os índios, essa planta

da família das Euforbiáceas faz parte de nossa cultura, sendo considerada por alguns

como “o trigo brasileiro”, dada a sua grande utilidade na culinária. Não são poucos os

relatores de nossa história que registram esse produto em nossa cultura, mais

precisamente na culinária, por meio da presença da tapioca, do bolo de tapioca, de

mingaus e da popular farinha d´água ou seca (ou de guerra) ou, ainda, do substituto

direto do pão de trigo – o beiju – nas mesas brasileiras, especialmente nas regiões norte

do País. Outra grande utilidade da mandioca para o homem é a produção de

biocombustíveis.

Segundo recente relatório da EMBRAPA (CUENCA; MANDARINO, 2006.), o

Brasil é o segundo maior consumidor de mandioca do mundo, perdendo apenas para a

Nigéria. A cultura da mandioca é realizada em todo o território nacional: o País tem

cerca de 1,7 milhões de hectares plantados de pés de mandioca. Segundo Cuenca e

Mandarino (2006, p. 9):

Existem atualmente no Brasil 38 milhões de hectares plantados com lavouras anuais, dos quais aproximadamente 1,7 milhões de hectares são ocupados com mandioca, sendo um dos cultivos anuais com maior área cultivada no país. A cultura da mandioca é praticada em todo o território nacional, com a utilização das mais variadas tecnologias.

O nordeste é a região do País onde mais se planta mandioca, apesar de esse

plantio ser, quase predominantemente, feito em consórcio com outras culturas. O estado

do Pará é o maior produtor nacional, sendo responsável por 19% da produção do Brasil.

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Rio Grande do Sul e Maranhão ocupam juntos posição de destaque na cultura desse

produto: enquanto o Maranhão está no quinto lugar, respondendo por 6% da produção

nacional, o Rio Grande do Sul é o sexto, respondendo por 5% da produção (CUENCA;

MANDARINO, 2006).

Metodologia

Os dados deste trabalho foram selecionados de dois corpora diferentes. Em se

tratando do Maranhão, os dados são oriundos de um banco de dados terminológicos do

Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA, um projeto do Departamento de Letras da

Universidade Federal do Maranhão/UFMA, que, por meio da vertente Produtos

Extrativistas e Agroextrativistas Maranhenses, vem desenvolvendo um trabalho de

elaboração de glossários terminológicos de produtos significativos do ponto de vista

social e econômico para o Estado. Dentre esses produtos, destaca-se a mandioca, tema

deste artigo e de uma pesquisa de iniciação cientifica financiada pelo Conselho

Nacional de Pesquisa – CNPq e por nós desenvolvida.

No Maranhão, o corpus da pesquisa foi coletado por meio de aplicação de um

questionário semântico-lexical da mandioca, em sete importantes municípios

maranhenses na produção e cultivo da mandioca e de seus derivados: São Bento,

Pinheiro, Palmeirândia, São João dos Patos, Tuntum, Turiaçu e Pindaré-Mirim. O

questionário é aplicado a informantes selecionados de acordo com o seguinte perfil:

pessoas de ambos os sexos, com mais de dezoito anos, oriundas da localidade

pesquisada e que trabalhem com a mandioca há pelo menos cinco anos.

O questionário é constituído por cinquenta questões distribuídas em cinco

campos semânticos: plantação, colheita, instrumentos, beneficiamento e

comercialização da mandioca.

Os dados foram gravados por meio de um gravador digital Sony - ICD PX720 de

1GB. Depois de tratados, foram gravados em CD e, a seguir, transcritos

grafematicamente e armazenados no banco de dados terminológico do ALiMA.

Os dados do Rio Grande do Sul foram extraídos do artigo intitulado “A cultura

da mandioca no Rio Grande do Sul”. O artigo foi escrito e publicado por Dante de

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Laytano, em 1952, no livro O folclore do Rio Grande do Sul: tradições do ciclo agro-

pastoril. Nesse artigo, Laytano produz um glossário terminológico da mandioca,

relativo ao Estado, e o utiliza em um texto explicativo sobre o processo de produção de

farinha no Rio Grande do Sul.

Para esta pesquisa, organizamos uma amostra com os dados dos dois Estados.

Os dados estão distribuídos por campos semânticos, apresentados sob a forma de

quadros em que são registradas as lexias do Maranhão e as do Rio Grande do Sul com

seus respectivos significados. Tendo em vista que nossa proposta é estabelecer um

paralelo entre os dados do Maranhão e os do Rio Grande do Sul, e que Laytano, fonte

dos dados gaúchos que utilizamos, só registrou no artigo mencionado lexias

correspondentes ao plantio e ao beneficiamento da mandioca e à culinária relacionada

com o produto, enfocamos apenas esses três campos semânticos.

O léxico da mandioca no Maranhão e no Rio Grande do Sul: o que mostram os

dados

O quadro abaixo reúne as lexias de dois campos semânticos – o plantio e a

colheita.

Quadro 1 - Plantio e Colheita

MARANHÃO RIO GRANDE DO SUL

Termo Significado Termo Significado

Coivara Tocos de árvores que sobram depois da queima

da roça

Enxada Instrumento utilizado para fazer as covas em que será

plantada a mandioca

Enxada Instrumento utilizado para fazer as covas em que será

plantada a mandioca

Facão Instrumento utilizado na colheita da mandioca

Facão Instrumento utilizado na colheita da mandioca

Enxadeco Espécie de enxada pequena que serve para retirar a raiz

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da mandioca da terra, além de fazer a cova para o

plantio dos pés de mandioca

Escarrear Plantar os pés de mandioca em fileiras

Roço Limpeza feita no terreno onde estão plantados os pés de mandioca para eliminar

ervas daninhas

Suquia Nova florescência do pé da mandioca

Cova Buraco feito no chão, onde é colocado um pedaço do tronco da maniva para o

surgimento de um novo pé

Cova Buraco feito no chão, onde é colocado um pedaço do tronco da maniva para o

surgimento de um novo pé

Lêla Pés de mandioca plantados em fileira

Carreras Pés de mandioca plantados em fila

Rego Buraco feito para o plantio de vários pés de mandioca

juntos em fileiras

Tirar a muque Puxar a raiz da mandioca com as próprias mãos

Aceiros Vários pés de mandioca cobertos de palhas e terra

Nesse quadro, chamamos a atenção para os diferentes termos encontrados nos

dois Estados. Enxadeco, o primeiro deles, é espécie de enxada, que só difere da

convencional pelo tamanho do cabo e da “pá”, utilizada na colheita e no plantio da

mandioca no Maranhão; já no Rio Grande do Sul, como a colheita é feita por meio do

arranque com as mãos, a enxada é utilizada somente no plantio,e nesse caso os gaúchos

usam apenas a enxada convencional. É interessante, ainda, observar que a forma como a

colheita é feita no Rio Grande do Sul deu origem a um termo próprio, particular – tirar a

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muque – formado por um verbo bastante comum, tirar, e uma lexia peculiar, como

muque, que já está quase em desuso no português brasileiro.

Encontramos, contudo, nos dois Estados termos semelhantes como enxada,

coivara, facão, cova; outro aspecto que merece destaque é a variação terminológica

expressa nos termo lêla e carreras. No Rio Grande do Sul há um termo interessante que

demonstra bem a peculiaridade que há na cultura local da mandioca: aceiros – termo

que nomeia vários pés de mandioca cobertos por palhas e terra. Essa forma de guardar a

mandioca deve-se ao clima da localidade que é frio e propenso à umidade, o que pode

estragar os pés da planta (LAYTANO, 1952).

Quadro 2 – Culinária

MARANHÃO RIO GRANDE DO SUL

Termo Significado Termo Significado

Beiju Espécie de bolo feito de tapioca. É geralmente consumido no café da manhã ou no lanche da

tarde

Beiju Uma espécie de bolo feito de tapioca. É geralmente

consumido no café da manhã ou no lanche da

tarde

Pirão Farinha de mandioca cozida com o caldo de

algum alimento

Pirão Farinha de mandioca cozida com água

Pandu Espécie de pirão feito com café e leite

Jacuba Mistura de farinha de mandioca e café preto, ou leite, substitui o café da

manhã

Chibé Espécie de molho feito com pimenta, sal, farinha e

limão.

Farofa A farinha de mandioca temperada com gordura ou

carne

Farofa Farinha de mandioca torrada com gordura

Tapioca Farinha fina de mandioca própria para a produção de

mingaus, bolos e tortas

Page 10: 4. a Variação Terminológica Na Língua de Especialidade Dos Agricultores de Mandioca No Maranhão e No Rio Grande Do Sul

Broinhas Bolinho de polvilho

Rosquinhas de Polvilho Bolo de polvilho com a massa torcida em forma

de argola

Paçoca Carne assada ou desfiada ou charque, preparada

com farinha de mandioca

Os termos pandu/jacuba e chibé/pirão, registrados no campo culinária, apesar de

apresentarem formas diferenciadas, possuem a mesma carga semântica. A culinária dos

dois Estados é bem similar, no que concerne ao uso da mandioca. Termos como beiju,

farofa e pirão atestam essa realidade. Outro fato interessante é que alguns termos,

familiares aos nossos ouvidos, causam-nos estranhamento com relação a seu

significado, como é o caso de paçoca. No Maranhão, esse termo alude a uma espécie de

doce e broinha; no Rio Grande do Sul, a uma espécie de farofa salgada.

Quadro 3 – Beneficiamento

MARANHÃO RIO GRANDE DO SUL

Termo Significado Termo Significado

Aviamento, casa de farinha ou casa de

forno

Local onde é beneficiada a mandioca

Atafona ou tafona Casa onde é beneficiada a mandioca

Cofo Cesto traçado, com vime ou palha de plantas

nativas que servem para o armazenamento da

farinha

Cevar Ralar a raiz da mandioca Cevar Ralar a raiz da mandioca

Caititu Máquina que serve para ralar a mandioca

Cevador Máquina para cevar; o encarregado da ceva

Cruêra Partes mais grossa da massa da mandioca que

Crueira ou carolo Partes mais grossa da mandioca

Page 11: 4. a Variação Terminológica Na Língua de Especialidade Dos Agricultores de Mandioca No Maranhão e No Rio Grande Do Sul

não passam pela peneira que não passam pela peneira

Forneiro Pessoa que torra a farinha no forno

Farinhada O processo de fabricar farinha

Farinhada O processo de fabricar farinha

Fornada Quantidade de farinha que se separa uma vez no forno

Sarilho Pequenas serras que servem para raspar a mandioca no caititu

Sarilho Eixo provido de pás que serve para mexer a massa no forno

Peneira Triângulo de madeira com o fundo trançado com fios de metal, que serve para separar os restos da massa no processo de peneira

Peneira Triângulo de madeira com o fundo trançado com fios de

metal, que serve para separar os restos da massa no processo de

peneira

Ponto da farinha Estado ideal de secagem da farinha

Ponto da farinha Estado ideal de secagem da farinha

Prensa Armação de madeira para espremer a massa

Prensa Armação de madeira para espremer a massa

Raspa (fazer o capote) Ato de remover a película externa da raiz da mandioca

Tipiti ou tapiti Cesto de taquara trançado, usado na prensa da mandioca

Tipiti ou tupitim Cesto trançado de taquara, usado na prensa da massa da mandioca

Forno Construção de tijolos que se acende para secar

a massa depois de prensada

Forno Construção de tijolos que se acende para secar a massa depois

de prensada

Cocho Pedaço de tronco de árvore em forma de um caixa que serve como

vasilha para o esfriamento da farinha

ao sair do forno

Gamela Vasilha onde é colocada a massa logo após a prensa para extrair a

tapioca

Gamela Vasilha onde é colocada a massa logo após a prensa para extrair a

tapioca

Page 12: 4. a Variação Terminológica Na Língua de Especialidade Dos Agricultores de Mandioca No Maranhão e No Rio Grande Do Sul

Masseira da massa verde

Coxo onde cai a massa da mandioca depois de prensada

Esteio e dormente Paus que seguram o cevador

É interessante observar que, apesar da distância que há entre os dois Estados, e

de suas diferentes formas de colonização, os termos apresentados nesse campo são

muito semelhantes, o que confirma a cultura da mandioca como uma cultura

nacionalmente estabelecida pelo índio antes mesmo de qualquer outra cultura que tenha

vindo de fora para somar e formar a identidade do povo brasileiro. Para ilustrar nossa

hipótese, destacamos termos como cruêra, tipiti, prensa (instrumento mais moderno),

que foram registrados em regiões bem equidistantes no País. Contudo, apesar da

semelhança na cultura da mandioca nos dois Estados, encontramos, no campo

beneficiamento, diferenças características, como as encontradas nos outros campos

acima explicitados. A masseira de massa verde, na linguagem de especialidade gaucha,

é, no Maranhão, gamela, enquanto o cevador é conhecido no Maranhão como sarilho. É

interessante observar que sarilho no Maranhão são pequenas serras que servem para

raspar a mandioca no caititu.

Conclusão

É fato que a cultura da mandioca é de suma importância para o Brasil, tanto do

ponto de vista econômico com cultural. Esse produto, como foi visto aqui, alcança

números expressivos na alimentação e no cultivo em quase todos os estados.

Provavelmente não há no Brasil um estado que não cultive a mandioca ou que não tenha

algum alimento cujos ingredientes não sejam provenientes dessa raiz brasileira. Ela é,

sem dúvida alguma, a representação direta de nossos ancestrais no DNA de nossa

cultura.

O Maranhão e o Rio Grande do Sul são dois estados que deixam bem clara essa

ideia. No cultivo e na culinária nas duas localidades, a raiz tem presença forte,

sobretudo nas regiões menos favorecidas pelo poder público, porém não é só nelas que a

mandioca se faz presente.

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O universo da cultura da mandioca no Maranhão e no Rio Grande do Sul

apresenta semelhanças e diferenças que nos dão informações importantes para a análise:

as semelhanças atestam a cultura da mandioca como nacionalmente arraigada ao Brasil

e própria do País. As diferenças, por sua vez, nos mostram que, mesmo diante de um

elemento bastante popular e comum no âmbito nacional, cada comunidade dá a esse

elemento uma cor local e transforma, assim, a cultura por meio de suas peculiaridades.

A diversidade terminológica registrada nas localidades pesquisadas evidencia

que as linguagens de especialidade, assim como as línguas naturais em que estão

inseridas, são heterogêneas e variáveis, porque assim também são os homens que as

usam, em suas diversas atividades e contextos.

Referências

BARBOSA, Maria Aparecida. Terminologia e Lexicologia: plurissignificação e

tratamento transdiciplinar das unidades lexicais nos discursos etno-literários. Revista de

Letras. n. 27, v. 1/2, p. 103-107. jan./dez. 2005. Disponível em<

http://www.upf.edu/pdi/dtf/teresa.cabre/docums/ca03tgy.pdf> acesso em 10 maio de

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BARROS, Lidia Almeida. Curso básico de terminologia. São Paulo: EDUSP, 2004.

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. As ciências do léxico. In OLIVEIRA, Ana Maria

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CUENCA, Manuel de Alberto Gutiérrez; MANDARINO, Diego Costa. Aspectos

agroeconômicos da cultura da mandioca: características e evolução da cultura no

estado do Maranhão entre 1990 e 2004. Aracaju: EMBRAPA Tabuleiros Costeiros,

2006. Disponível em < www.cpatc.embrapa.br>. Acesso em: 13/ maio/ 2010.

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FAULSTICH, Enilde. A socioterminologia na comunicação científica e técnica. Cienc.

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http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v58n2/a12v58n2.pdf>. Acesso em: 10 maio 2010.

KRIEGER, Maria da Graça; FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à

terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004.

LABOV, Willian. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.

LAYTANO, Dante de. O folclore do Rio Grande do Sul: tradições do ciclo agro-

pastoril. Porto Alegre: Globo, 1952.

SAPIR, Edward. Linguística como ciência: ensaios. Rio de Janeiro: Livraria

Acadêmica, 1961.

i Há uma diversidade de nomenclaturas amplamente utilizadas no âmbito da Terminologia para aludir a

esse subsistema do léxico geral. Dentre elas, destacam-se: língua de especialidade, linguagem

especializada, tecnoleto, terminologia (escrito com inicial minúscula) e o popularmente conhecido

jargão (cf. BARROS, 2004; KRIEGER; FINATTO, 2004).