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Fé: experiência transformadora Há dois caminhos: crer ou amargurar-se. Dizemos, por exemplo, que alguém vive “descrente de tudo”, para descrever a pessoa que desdenha dos valores sublimes e se expressa com ironia, tristeza ou aspereza sobre os assuntos importantes da vida em sociedade. Quem se encontra em estado de amargura sente-se decepcionado com o mundo, traído pela vida e abandonado por seus irmãos. Quando encontramos, aliás, pessoas que dizem ter “perdido a fé” e perguntamos a elas o que aconteceu, a resposta sempre aponta na mesma direção. Contam-nos suas histórias, falam do que veem no dia-a-dia e recordam as notícias trágicas ou escandalosas dos jornais, da tevê ou das redes sociais. Talvez todos nós sintamos nossa fé abalar-se ao menos algumas vezes e nos tornemos, por isso, aqui e acolá, amargurados. Esta experiência é normalmente causada por traumas profundos. Recordo exemplos muito comuns: alguém que pensávamos ser nosso amigo nos abandona no momento em que mais precisávamos dele, e nos trai e fala mal de nós para outras pessoas. Ou: trabalhamos muito e encontramos soluções importantes para problemas de nossa comunidade, mas não somos reconhecidos e nosso projeto é desprezado. Ou ainda: confiamos em nossos políticos, dando-lhes nosso voto, mas eles se mostram desonestos, vendidos a interesses escusos e desejosos apenas de obter vantagens com o poder que deveriam usar para beneficiar a sociedade. Ou, finalmente: vemos o sofrimento deste mundo, sobretudo o sofrimento dos inocentes e das crianças, e não podemos aceitar que seja assim! A perda da fé na vida e na humanidade costuma fechar-nos em nosso pequeno mundo. Se a confiança em tudo ou quase tudo for solapada, sobra-nos apenas lutar para sobreviver no ambiente hostil, ou, no máximo, para defender família e negócios. Sem fé, não há esperança de futuro melhor. Apenas a amarga impressão de viver sob ameaça, cada dia. Descrença e desespero alimentam-se um do outro e, além de fechamento, geram também revolta e protesto violento. Quanto menos se crê, menos se espera. E quanto maior o desespero, maior também a reação destrutiva, voltada para os outros e para nós mesmos. Eis o que chamamos, com razão, de “desamor”. A revolta normalmente se expressa no projeto de destruição do mundo mau que nos rodeia. O “quebra-quebra”, o “homem-bomba”, a “caça às bruxas”, o “paredão” são alguns exemplos de comportamentos guiados pela revolta e o desamor.

4 Fe-experiencia Transformadora

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A Fé considerada como experiência transformadora, opção frente à amargura da vida, à qual temos acesso pela bondade dos que nos amam e, assim, abrem-nos à esperança.

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Fé: experiência transformadora

Há dois caminhos: crer ou amargurar-se.

Dizemos, por exemplo, que alguém vive “descrente de tudo”, para descrever a pessoa que desdenha dos valores sublimes e se expressa com ironia, tristeza ou aspereza sobre os assuntos importantes da vida em sociedade. Quem se encontra em estado de amargura sente-se decepcionado com o mundo, traído pela vida e abandonado por seus irmãos. Quando encontramos, aliás, pessoas que dizem ter “perdido a fé” e perguntamos a elas o que aconteceu, a resposta sempre aponta na mesma direção. Contam-nos suas histórias, falam do que veem no dia-a-dia e recordam as notícias trágicas ou escandalosas dos jornais, da tevê ou das redes sociais.

Talvez todos nós sintamos nossa fé abalar-se ao menos algumas vezes e nos tornemos, por isso, aqui e acolá, amargurados. Esta experiência é normalmente causada por traumas profundos. Recordo exemplos muito comuns: alguém que pensávamos ser nosso amigo nos abandona no momento em que mais precisávamos dele, e nos trai e fala mal de nós para outras pessoas. Ou: trabalhamos muito e encontramos soluções importantes para problemas de nossa comunidade, mas não somos reconhecidos e nosso projeto é desprezado. Ou ainda: confiamos em nossos políticos, dando-lhes nosso voto, mas eles se mostram desonestos, vendidos a interesses escusos e desejosos apenas de obter vantagens com o poder que deveriam usar para beneficiar a sociedade. Ou, finalmente: vemos o sofrimento deste mundo, sobretudo o sofrimento dos inocentes e das crianças, e não podemos aceitar que seja assim!

A perda da fé na vida e na humanidade costuma fechar-nos em nosso pequeno mundo. Se a confiança em tudo ou quase tudo for solapada, sobra-nos apenas lutar para sobreviver no ambiente hostil, ou, no máximo, para defender família e negócios. Sem fé, não há esperança de futuro melhor. Apenas a amarga impressão de viver sob ameaça, cada dia.

Descrença e desespero alimentam-se um do outro e, além de fechamento, geram também revolta e protesto violento. Quanto menos se crê, menos se espera. E quanto maior o desespero, maior também a reação destrutiva, voltada para os outros e para nós mesmos. Eis o que chamamos, com razão, de “desamor”. A revolta normalmente se expressa no projeto de destruição do mundo mau que nos rodeia. O “quebra-quebra”, o “homem-bomba”, a “caça às bruxas”, o “paredão” são alguns exemplos de comportamentos guiados pela revolta e o desamor.

Ora, este clima de desamor constitui o contexto perfeito para o surgimento de pretensos “heróis”, que se aproveitam da situação de caos para tomarem o poder, brandindo as bandeiras da ética e da justiça, mas sem a devida humildade e misericórdia dos verdadeiros santos e heróis da humanidade. Não raro, revelam-se heróis de araque, oportunistas sedentos de poder, tão ou mais corrompidos do que aqueles contra os quais lutaram. E há até os que promovem o caos, a dizer baixinho que “quanto pior melhor”, aguardando a primeira ocasião para subirem ao trono.

O novo despertar da fé

A descrição do estado de amargura, que apresentei acima, hoje tão comum em nossa sociedade, não diz, graças a Deus, a última palavra sobre o presente. O mal-estar do coração amargurado também encontra outras saídas. Se muitos fizeram a experiência de se sentirem decepcionados, traídos por seus irmãos, ou injustiçados pelas engrenagens do mundo, nem todos enveredaram pelo impasse do desamor. A revolta diante das injustiças desperta também o desejo de justiça. A decepção com a mentira nos ensina que é melhor buscar a verdade. O sentimento doloroso de termos sido traídos nos chama e guia para nos tornarmos mais fiéis aos que confiam em nós.

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O coração humano pode ser apertado e mesmo adoecer em contato com o mal, mas não pode deixar de ser o que é. E por isso sente a maldade como “privação” do que lhe é devido. Criado para amar, e não para “desamar”, não encontra paz na revolta e na violência. Somente a morte.

Mas a chama da Vida pode rebrotar a qualquer instante das cinzas que escondiam as brasas da fé. Basta-lhe para isso o encontro com alguém que manifeste a bondade. O coração, então, logo vibra, como a corda do violão diante do som afinado. Assim renasce a fé! Isto não ocorre necessariamente, porque a revolta pode mesmo abater-se contra a bondade. Mas ocorre muitas vezes, permitindo que o amor vença e a fé renasça.

De todas as partes, ouvimos hoje o apelo para crer no mistério da vida, crer que existe algo novo que vem a todo instante ao mundo e, portanto, crer que a história não nos condena a viver num “vale de lágrimas”, mas guarda surpresas que não saberíamos produzir. Crer, enfim, que alguém cuida de nós, que nos conduz, apesar de nossos enganos, e nos chama sem cessar, embora tantas vezes tapemos os ouvidos. Deus cuida de nós. Eis a fé fundamental, que brota como revelação na história de tantos povos. Deus é amor. Eis a profissão completa da fé, revelada na vida de Jesus para a humanidade.

Quem assim crê promove a justiça na sociedade e luta humildemente por transformação. Não é arrogante, colocando-se acima dos outros como perfeito e “salvador da pátria”. Mas propõe caminhos de mudança lá onde está. Pequenas e grandes soluções brotam da fé no amor, que é criativo ao infinito.

O desafio da fé consiste, justamente, em não poder ser destruída, embora tantas vezes se encontre encoberta pelas cinzas da amargura, da ironia, da aspereza e da tristeza de quem sofreu. Não nos deixemos paralisar pelo sofrimento da vida! Voltemos nosso olhar para a bondade que se expressa de mil modos no mundo. Desliguemos mais cedo nossas tevês e redes, quando estas insistam em mostrar apenas o que decepciona e escandaliza.

A fé precisa do anúncio da “Boa Nova”, em ações e palavras, mas a Boa Nova brota no silêncio, assim como a semente se desenvolve no seio da terra. A fé nasce do encontro com o amor e amadurece no silêncio, quando a ação de Deus se torna sensível ao coração. Deus não é um objeto ou uma coisa que podemos tocar ou ver. Mas nós O sentimos como apelo e impulso, que nos envolvem. Ele age em nós e confirma o que recebemos da tradição dos antigos. Ele nos chama e sustenta para tornar-nos colaboradores da obra divina. Quem crê ora, e conhece a Deus na oração.

A fé amadurecida, enfim, torna-nos mais constantes e simples no serviço de nossos irmãos e irmãs, para que todos tenham vida em abundância.

Álvaro Mendonça Pimentel, SJ.BH, 12/03/2015