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A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS CULTURAIS A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE
19881
Ricardo Ferreira Bernardo2
Cristiane Menna Barreto Azambuja3
Resumo: Este artigo busca analisar o acesso aos direitos culturais conforme a Constituição Federal
de 1988 e as suas decorrências. Para tanto, se faz necessário compreender que tal questão é
relativamente nova, sendo lançada no mundo jurídico apenas a partir da metade do século XX.
Ademais, que se trata de uma temática intrínseca aos direitos humanos, haja vista sua forte ligação
com a educação e a livre manifestação do pensamento, que são essenciais para o fomento da cultura
e para estabelecer o respeito entre as diferenças existentes em uma sociedade heterogênea e
multicultural. Levando em conta, então, a atualidade e a importância do tema, um estudo sobre ele
está sempre justificado. O artigo pretende observar os avanços significativos apresentados a partir
da Constituição Federal de 1988 em matérias que até então não se constituíam como elementos
primordiais para o Estado, como por exemplo, o patrimônio cultural e suas infinitas possibilidades
de manifestação. Ainda, examinar os direitos culturais sob a ótica da Constituição Federal de 1988 e
demais legislações. Isso tudo, perpassando, sempre que relevante, pelos conceitos de cultura,
multiculturalismo e identidade cultural. Por fim, averiguar a consolidação dos direitos culturais.
Palavras-chave: Cultura, Direitos Humanos, Multiculturalismo, Patrimônio, Constituição.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar como os direitos culturais estão inseridos na
Constituição Federal de 1988, bem como sua contribuição para o desenvolvimento dos indivíduos,
na medida em que são de suma importância para a formação da identidade nacional. É a partir deles
que ocorre a preservação e a valorização de todas as manifestações culturais dos povos que
compõem a sociedade brasileira, garantindo segurança jurídica para que as mesmas sejam
respeitadas, permaneçam vivas na memória e possam ser perpassadas através das gerações.
Em um país de dimensões continentais como o Brasil, repleto de manifestações culturais das
mais diversas ordens, uma reflexão sobre essa temática é de grande valia. Para tanto, inicialmente
precisa-se estabelecer um conceito de cultura, com a finalidade de posteriormente poder
compreendê-la sob o ponto de vista da legislação. Dessa forma, se faz necessária uma abordagem
crítica e antropológica acerca do tema, destacando sua origem, acepções, signos e evolução ao
1Grupo de trabalho 06 – Direito, Cidadania e Cultura. 2Aluno do Curso de Direito da URI – São Luiz Gonzaga. [email protected] 3Professora do Curso de Direito da URI – São Luiz Gonzaga. Mestra em Direito pela UFRGS. Especialista em Direito
Público pela PUCRS. Graduada em Direito pela UNIFRA. [email protected]
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longo dos tempos. Sob essa ótica, destaca-se que não existe um tipo de cultura considerado certo,
pois ela resulta de diversas interações sociais, que podem ser completamente diferentes, levando-se
em conta a origem de cada povo, suas necessidades, anseios, modos de ver o mundo, entre outros
aspectos. Consequentemente, tal heterogeneidade acarreta a existência de inúmeras formas de
manifestações culturais, oriundas dos diversos grupos étnicos, identificados por um passado e
características comuns.
Já em se tratando de cultura no âmbito jurídico nacional, ela ganha destaque a partir da
promulgação da Constituição Federal de 1988. Baseado em várias diretrizes internacionais,
especialmente aquelas referentes aos direitos humanos, o Estado brasileiro passa a valorizá-la, ao
garantir a todos o acesso à cultura, assumindo também sua responsabilidade como agente protetor
das diversas manifestações culturais existentes em seu território. Da mesma forma, define o que
pode ser considerado como patrimônio cultural brasileiro, visando sempre focar na sua conservação
e preservação, além de destacar o legado dos inúmeros povos que contribuíram para sua construção
e solidificação.
Uma vez que valoriza o cidadão como parte integrante da sociedade, os direitos culturais
desempenham um importante papel para o desenvolvimento do país, bem como são responsáveis
pelo sentimento de pertencimento aos aspectos históricos, artísticos e sociais da nação. Por sua
relevância, são considerados como direitos humanos, uma vez que estão centrados nas
manifestações apresentadas pelos diversos grupos da sociedade, baseados também na liberdade de
expressão, onde cada indivíduo pode professar sua cultura sem sofrer qualquer tipo de censura. Ao
mesmo tempo, configuram-se como direitos sociais, pois a cultura é uma prestação positiva
proporcionada pelo próprio Estado para desenvolver os indivíduos e integrá-los à sociedade
nacional.
1. A cultura
Na sociedade globalizada e interativa do século XXI, é cada vez mais difícil determinar o
que significa “cultura”, ou ainda, defini-la através de um único princípio semântico. Qualquer
análise sobre o referido tema precisa ser bastante minuciosa, pois as populações do globo estão em
constantes e intensos contatos recíprocos, cada uma delas manifestando seus costumes, crenças e
pontos de vista. Notadamente, tais intercâmbios, por um lado, acabam por gerar certos conflitos,
uma vez que os indivíduos, baseados em princípios etnocêntricos, passam a tomar como erradas
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todas aquelas manifestações que lhes são estranhas. Por outro lado, essas trocas fazem com que a
sociedade se torne mais heterogênea, pois cada um tem direito a expor e praticar seus costumes,
permitindo assim que culturas diferentes ganhem mais espaço e se relacionem de forma
concomitante. Uma definição atual e interessante, que demonstra sua complexidade é apresentada
por Santos da seguinte maneira:
A palavra cultura, incorporada em várias línguas do mundo, é latina. Porém, nas raízes do
pensamento, há contribuição grega. Trata-se de um substantivo “actionis”, cuja raiz
encontra-se na palavra “cultus”. O sentido central pode ser traduzido por “curar” ou
“tratar”, isto é, um fazer contínuo do homem dirigido a um fim. (2007, p. 35).
Partindo deste princípio, torna-se necessário destacar que não existe uma cultura certa e
outra errada, sendo que, conforme Laraia (2004, p. 45), ela é oriunda das relações sociais
estabelecidas pelos homens ao longo dos tempos. Dessa forma, é preciso reconhecer e respeitar as
diferenças existentes entre comunidades, classes sociais, religiões, crenças, etnias, etc; e ver os
outros com igualdade de direitos, sem preconceitos ou exclusões, pois cada pessoa ou grupo social é
livre para fazer suas escolhas e externar seus costumes.
No mundo contemporâneo, não deveria haver mais espaço para qualquer tipo de
discriminação referente à cultura de um determinado grupo. Os povos mantêm estreito contato e
trocam conhecimentos, que ajudam a diversificar a sociedade, tornando-a mais interessante. Para
tanto, é preciso existir tolerância a fim de que haja respeito e valorização das diferentes
manifestações culturais.
É primordial que as discriminações entre os povos sejam superadas, porém muitos ainda são
excluídos da sociedade. Os considerados “diferentes” sofrem grandes preconceitos, sendo tratados,
muitas vezes, de maneira depreciativa pelos demais. Tudo isso porque o ser humano ainda tem a
falsa percepção de que aquela cultura na qual ele foi socializado é a única correta e deve ser seguida
pelos demais, sendo que quem pensa diferente é visto como uma espécie de ponto fora da curva.
Acerca dessa situação, Torres faz uma interessante reflexão:
Quem confere autenticidade a uma identidade autêntica? Quem está autorizado a emitir
carteira de filiação? Os limites mudam no tempo e no espaço. A semelhança depende da
cultura e dos objetivos de classificação. Para um transeunte ou um recenseador, eu sou um
branco. Para um anti-semita, sou simplesmente um judeu. Para um judeu alemão posso ser
um judeu do Leste; para um sefardim, um judeu ashkenazi; para um judeu israelense, um
americano; para um judeu religioso, um secular; para um sionista da direita, um apóstata,
ou nem sequer um judeu. (2001, p. 199).
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Dessa forma, justificam-se as diferenças partindo-se sempre dos princípios culturais dos
povos. Mas afinal, o que seria cultura, como ela surgiu e como caracterizá-la? A resposta é um tanto
complexa, uma vez que o termo é repleto de abstrações e subjetivismos, mas está centrado a partir
das relações sociais perpassadas através de inúmeras gerações. Acerca da origem do termo, Arendt
destaca:
A cultura – palavra e conceito – é de origem romana. A palavra “cultura” origina-se de
colere– cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar – e relaciona-se essencialmente com
o trato do homem com a natureza, no sentido do amanho e da preservação da natureza até
que ela se torne adequada à habitação humana. Como tal, a palavra indica uma atitude de
carinhoso cuidado e se coloca em aguda oposição a todo esforço de sujeitar a natureza à
dominação do homem. Em decorrência, não se aplica apenas ao amanho do solo, mas pode
designar outrossim o “culto” aos deuses, o cuidado com aquilo que lhes pertence. (1972, p.
265).
Pode-se perceber que a origem etimológica de cultura é bastante antiga, oriunda do latim, e
estava associada à relação que o homem estabelecia com a natureza, a fim de garantir sua
subsistência. Cultura, então, inicialmente, relacionava-se com a produção agrícola, tendo em vista
aquilo que deveria ser cultivado para saciar as necessidades dos povos durante certo período de
tempo. Na Grécia Antiga, a palavra cultura exprimiu o cultivo de coisas tão diversas quanto são um
campo agricultável e uma relação fraterna. (CARVALHO, 2007, p. 19).
É evidente que com o passar do tempo, o termo deixou de ser apenas relativo às práticas
agrícolas para abranger todo um emaranhado de manifestações dos mais variados tipos.
Estabeleceu-se uma analogia entre o trabalho rural e aquele desejo das populações em manter e
perpassar os seus costumes através das gerações, pois da mesma forma que para ter o alimento era
necessário produzi-lo, ou em outras palavras, cultivá-lo, se tornava necessário cultivar também
todas as manifestações dos grupos sociais, para que elas não se perdessem com o tempo.
No Império Romano, Cícero utilizou o termo cultura para designar um refinamento
espiritual pelo qual o homem aprimorava a sua relação com as coisas e com os demais homens.
Tratou-se de cultura como formação humana, como educação ou Paideia – no mundo grego, a
educação de homem enquanto homem. No final da Idade Moderna, com o Iluminismo Alemão,
cultura passou a significar o produto do aspecto educativo, organizando em modos específicos de
viver dos diferentes grupos humanos. Kant e Hegel trabalharam com tal conceito. A cultura foi tida
como uma criação humana, um produto que trouxe embutido o modo de ser de seu criador.
(CARVALHO, 2007, p. 19).
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Sobre a evolução do termo “cultura”, ao longo do tempo, Santos ressalta:
Até o século XVIII, “Kultur” era utilizado para representar todos os aspectos espirituais de
uma comunidade e “Civilisation” foi usada, principalmente, nas realizações materiais de
um povo. Esses termos foram sintetizados em “Culture”, que passou a ser um complexo de
conhecimento, crença, leis, moral, ou qualquer outra capacidade ou hábito adquirido pelo
homem como membro de uma sociedade. Essa síntese teve importância singular, pois
expurgou a possibilidade de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos, além
de abranger todas as possibilidades de realização humana. (2007, p. 37).
A separação entre o aspecto espiritual e o material foi determinante para construir um
conceito atual de cultura. É importante observar que ela se difere dos princípios biológicos, sendo
que aquisição cultural acontece por meio das relações que os indivíduos estabelecem com a
sociedade na qual estão inseridos, não havendo, em hipótese alguma, uma transmissão genética de
tais conhecimentos. (LARAIA, 2004, p. 28). A partir destas constatações, a cultura passa a ser
observada como uma matéria inerente à antropologia, uma vez que estava estreitamente relacionada
ao comportamento humano. Somente através dela explicam-se as diferenças existentes entre os
mais variados povos, suas manifestações, costumes e crenças, pois é notório que cada grupo, ao seu
tempo, estabelece relações diferentes entre si. Para justificar o aspecto antropológico da cultura,
Laraia baseia-se na seguinte constatação:
A primeira definição de cultura que foi formulada do ponto de vista antropológico pertence
a Edward Burnet Tylor, no primeiro parágrafo de seu livro Primitive Culture (1871). Tylor
procurou demonstrar que a cultura pode ser objeto de estudo sistemático, pois trata-se de
um fenômeno natural que possui causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e
uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e
evolução. (2004, p. 30).
A partir destas observações, destaca-se que o meio influencia diretamente na organização
cultural dos povos. Durante muito tempo, os indivíduos tinham como único objetivo a mera luta
pela sobrevivência em ambientes hostis. Ademais, com o crescimento da população, torna-se
necessário desenvolver técnicas para controlar um número tão grande de elementos, fossem elas de
ordem penal, mística ou religiosa. Tais fatores acabam por estabelecer e impulsionar as
manifestações culturais dos povos, pois a coletividade julga absolutamente normal essas regras e
crenças, que repassadas através de gerações, se misturam com outros e fomentam os hábitos
presentes atualmente, muitos deles resultantes de uma mescla de diversas culturas. Laraia, por sua
vez, enaltece o ser humano como oriundo de um processo social do meio no qual ele se encontra:
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O homem é resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um
longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas
numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse
patrimônio cultural permite as inovações e invenções. Estas não são, pois, o produto da
ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma humanidade. (2004, p.
45).
A vida em coletividade, além de ser responsável pelo desenvolvimento cultural, também
está associada à perpetuação da memória, ferramenta extremamente responsável por perpassar, ao
longo das gerações, a cultura dos povos. É através da memória que as manifestações culturais são
transmitidas, não deixando que as mesmas acabem no esquecimento ou sejam subjugadas por
outras. Além do mais, a memória é utilizada como um mecanismo para estruturar a identidade
cultural de um povo, o sentimento de pertencimento aquela cultura, sendo que todos os indivíduos
se identificam reciprocamente com seus princípios. Em suma, memória e identidade são elementos
importantes para o fomento da cultura, pois fazem que os indivíduos se sintam pertencentes à
sociedade política e estatal, além de propiciar que o passado não seja esquecido. Sobre a
importância da memória e da identidade para a cultura, Enriquez destaca:
Nesse sentido, memória e identidade assumem posições estruturais na sustentação do
debate. Tempo, espaço e movimento passam a compor expectativas essencialmente
existenciais, especialmente nos quadros de re-simbolização e revalorização dos sentidos e
das funções culturais. (2002, p. 112).
Percebe-se assim, que o conceito de cultura é extremamente amplo, estando relacionado a
todas as manifestações materiais e imateriais; crenças, rituais, senso comum, conhecimentos
científicos, memória coletiva, identidade, entre outras variáveis estabelecidas a partir de inúmeras
interações sociais que se tornam responsáveis por caracterizar um determinado grupo étnico.
Levando-se em conta que na atualidade o contato entre culturas diferentes é cada vez mais intenso e
a sociedade contemporânea resulta de um processo de aculturação, torna-se necessário que o
ordenamento jurídico atue para garantir que as diferentes formas de manifestações culturais sejam
respeitadas e protegidas, pois todas elas contribuíram com aspectos relevantes, e continuam
permanentemente contribuindo, para a formação e solidificação da identidade nacional.
Ultrapassada essa análise, ainda que breve, da questão da cultura e da dificuldade de uma
conceituação, importante que, agora, o estudo passe a um tópico que a delimita no âmbito do
ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase na Constituição Federal de 1988.
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2. Os direitos culturais no ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição Federal de 1988 apresenta inúmeras novidades, principalmente em questões
associadas aos direitos individuais e direitos sociais. Por esse motivo, a Carta Magna recebe a
alcunha de “cidadã”, sendo a primeira a valorizar os indivíduos e a garantir-lhes tais benesses.
Através desses princípios e direitos, consolida o estado brasileiro como uma sociedade política,
preocupada em garantir boas condições de vida para todos, de forma justa e igualitária. A partir
deste contexto, os direitos culturais passam a ganhar destaque, apesar da grande dificuldade em
estabelecer conceitos jurídicos acerca do tema, como apresenta Santos:
Um conceito de cultura, a princípio, deve ser abrangente e incluir toda diversidade humana,
isto é, a soma de todo fazer humano desde o passado até a modernidade. Apesar da difícil
operacionalização, em especial, quando se trata das políticas públicas culturais do Estado, é
importante essa consciência na busca do conceito abrangente, para que possamos chegar
mais perto da sua concretização por meio de uma política não-limitadora. (2007, p. 50).
A partir destas diretrizes, e “em virtude da sua essencialidade para a dignidade e
desenvolvimento da pessoa humana, o direito à cultura pode ser compreendido como direito
fundamental” (BAHIA, 2008, p. 398), sendo arrolado como um dos direitos sociais, também
conhecidos como de segunda geração4. Vale o registro de que, em sendo nossa Constituição
analítica, além desses dispositivos abarcados pelos direitos sociais, possível verificar outras
menções ao direito à cultura ao longo do texto constitucional, possuindo, ainda, elementos
implícitos. (NASCIMENTO, 2011, p. 194).
De acordo com Soares (2011, p. 801), tal questão é relativamente nova, sendo lançada no
mundo jurídico apenas a partir da metade do século XX, no pós Segunda Guerra Mundial, para
coibir abusos cometidos durante o conflito, destruição de patrimônios, violação de direitos humanos
e fomentar o respeito à diversidade cultural. Soares (2011, p. 804) destaca ainda que muitos
elementos que norteiam a política cultural brasileira são baseados em diversas normativas
internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), o Pacto Internacional dos Direitos
4Há quem entenda que a terminologia correta é “dimensão” e não “geração”. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet:
“Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um
processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações”
pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o
termo “dimensões”, dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais
moderna doutrina”. (2011, p. 45).
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Econômicos, Sociais e Culturais (1972) e o Pacto de São José da Costa Rica (1969). Na América, a
Organização dos Estados Americanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos assumem a
tarefa de tornar efetivo o direito cultural e o acesso aos bens culturais, numa perspectiva regional,
com a consideração das especificidades do continente americano.
A introdução desses princípios no campo jurídico, fomentada a partir dos anos 50 do século
passado e institucionalizada no Brasil desde 1988, gera um Estado de Cultura, onde os aspectos
culturais de relevância para a formação da identidade nacional são organizados e sistematizados,
com respaldo legal. Dessa maneira, o Estado de Cultura pode ser considerado uma decorrência do
Estado Social, pois tem a função de complementar os direitos dos indivíduos e da coletividade
apresentados por este último. Acerca dessa temática, Santos faz a seguinte ponderação:
O Estado de Cultura está relacionado, concretamente, a cláusulas de Estado de Direito,
Estado Democrático e Estado Social, que compreendem os grandes pilares que assentam o
atual Estado. Portanto, as manifestações culturais encontram-se suficientemente garantidas
nas cláusulas anteriores. (2007, p. 53).
Atualmente sabe-se que as diferentes etnias são pilares fundamentais para o
desenvolvimento cultural, juntamente como seus costumes, tradições e interação social. Assim, os
direitos culturais tomam uma magnitude destacada, pois um de seus objetivos é preservar e respeitar
a cultura de cada povo e sua contribuição social, estando em estreita ligação com os direitos
humanos. Por sua vez, o artigo 215 da Constituição Federal de 1988 destaca a importância do
direito à cultura para a sociedade brasileira:
Art. 215 – O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os
diferentes segmentos étnicos nacionais. (BRASIL, 1988).
Analisando o disposto no ordenamento jurídico, o Estado fica comprometido a facilitar o
acesso dos cidadãos à cultura e proteger as manifestações culturais dos povos que estão sob sua
tutela. A própria Constituição enaltece a existência de várias culturas e não apenas uma, no singular.
A partir dessa constatação, percebe-se que o documento prega o respeito à diversidade cultural e sua
livre manifestação, sendo essa miscelânea um fator de extrema importância para a valorização da
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cultura nacional. Sobre a liberdade das práticas culturais estabelecida pelo documento, Bahia faz a
seguinte observação:
Na dimensão de liberdade de ação cultural, assegura determinadas posições subjetivas do
indivíduo em face do Estado, que, neste caso, não pode impedir que o indivíduo viva de
acordo com os signos e com os valores de sua cultura. Sob este prisma, qualquer pessoa
pode expressar qualquer atividade cultural, intelectual, científica, artística ou de
comunicação, desde que não esteja vedada em lei. (2008, p. 398).
A Constituição Federal de 1988 não fica restrita apenas à normativa dos direitos culturais,
mas, por sua vez, procura elaborar um conceito jurídico de cultura e suas inúmeras possibilidades
de manifestação. Dessa maneira, delimita o patrimônio cultural brasileiro, constituído a partir da
contribuição de diversos povos, bem como determina as suas inúmeras formas de manifestação.
Sendo assim, o artigo 216 apresenta o seguinte teor:
Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (BRASIL, 1988)
Percebe-se a preocupação do legislador em oferecer “proteção jurídica aos aspectos que
estejam relacionados à identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”, (BAHIA, p. 397), pois esses são elementos primordiais para o
desenvolvimento cultural de uma comunidade. Levando-se em consideração a miscigenação étnica
da qual a população brasileira é resultado, o artigo 216 torna-se extremamente abrangente,
atingindo inúmeros grupos sociais e as mais variadas manifestações culturais.
A Constituição Federal, nos artigos 23 e 24 e em seus respectivos incisos, estabelece as
atribuições do poder público para a proteção e preservação do patrimônio cultural. O texto
constitucional, conforme artigo 5º, LXXIII, evidencia também que, além do Estado, todos os
cidadãos são responsáveis por esse processo, onde podem, inclusive, propor ações para evitar atos
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lesivos ao patrimônio histórico e cultural. Assim, nota-se que o cuidado com a cultura nacional é
desempenhado através de uma participação democrática, fazendo com que os indivíduos se sintam
parte desse processo de conservação e manutenção da memória e identidade, do qual eles
efetivamente são agentes ativos e fiscalizadores.
Dessa forma, a conservação dos bens culturais torna-se um dever da sociedade como um
todo. Outra disposição importante acerca da temática cultural encontra-se no artigo 5º, IX, da
Constituição Federal, no qual prega a liberdade como fator essencial para o desenvolvimento
intelectual, artístico e científico. Sem dúvidas, para manter a cultura nacional cada vez mais
valorizada é extremamente importante que não haja nenhum tipo de censura ou limites, pois todas
as formas, cada uma a sua maneira, são importantes ferramentas para difundir a cultura para os mais
variados públicos e segmentos da sociedade.
Apesar da dificuldade em definir um conceito de cultura, a Constituição Federal de 1988
assegura o direito a ela como fator primordial para o desenvolvimento social do povo brasileiro.
Evidente que os aspectos culturais são extremamente importantes para a formação de cidadãos
conscientes e identificados com os sentimentos nacionais, uma vez que todas as formas de
manifestação cultural são colocadas em patamar de igualdade pelo texto constitucional, sendo os
indivíduos livres para exteriorizá-los e dessa forma, enriquecer a cultura nacional como um todo.
Conclusão
Com base nos aspectos apresentados durante o desenvolvimento deste artigo, conclui-se que
cultura é uma construção humana materializada ao longo das gerações, através das relações
estabelecidas pelos indivíduos com o meio social no qual estão inseridos. Utilizado em seus
primórdios com a finalidade de fazer referência ao cultivo de alimentos para a subsistência, no
decorrer dos séculos o termo adquiriu novos significados, sendo associado às manifestações que os
povos consideravam importantes para sua memória coletiva, as quais deveriam ser preservadas e
cultivadas para não acabarem no ostracismo.
Dessa forma, a cultura não sofre qualquer tipo de influência genética, ou seja, são os
próprios indivíduos, por vontade própria e de acordo com o meio em que se encontram, os
responsáveis por estabelecerem valores considerados importantes e a partir dessa significação, eles
são transmitidos aos seus descendentes. Como não há hereditariedade biológica na sua estruturação,
inúmeras formas de manifestações culturais estão presentes na sociedade brasileira, originária a
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partir da herança de diversos povos, onde cada um, ao seu tempo, estabeleceu suas próprias formas
de se relacionar entre si e com os demais.
Em virtude da sua importância para o desenvolvimento do ser humano, bem como por se
constituir como elo de fortalecimento da identidade, ainda mais em um país continental como o
Brasil, onde estão presentes manifestações culturais dos mais diversos tipos, o direito à cultura
desperta interesse do ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988 procura regulamentá-
lo, definindo o papel do Estado como essencial para garantir a todos o acesso à cultura nacional, da
mesma forma que delimita o patrimônio cultural brasileiro, seja ele material ou imaterial,
destacando todos os povos que colaboraram para a formação social do país. Ainda, estabelece o
poder público, em comunhão com os cidadãos, como responsável pela proteção e preservação das
manifestações culturais existentes no território nacional, a fim de evitar quaisquer tipos de
preconceitos e deturpações.
O texto constitucional sustenta-se em conceitos antropológicos, ao considerar a cultura
brasileira oriunda da herança dos mais diversos grupos étnicos. Ao mesmo tempo, valoriza a
importância de cada um deles para que este processo seja realizado, tratando todos de maneira
igualitária. Além do mais, prega a liberdade como item essencial, pois assegura a todos a livre
manifestação cultural, desde que não vedada em lei.
Sendo assim, é extremamente importante que em um país com uma gama muito variada de
manifestações culturais, o direito à cultura seja positivado e protegido pelo ordenamento jurídico.
Essa medida demonstra preocupação do legislador em assegurar tais benesses aos cidadãos, ao
mesmo tempo evita que importantes legados da memória e identidade nacional se percam, pois
valoriza todos os aspectos relevantes da formação da sociedade brasileira, garantindo que os
mesmos sejam lembrados, respeitados e difundidos.
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