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4195 A DESCONSTRUÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO APLICÁVEL AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, PROPOSTO POR ROBERT ALEXY: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA FILOSOFIA DE JACQUES DERRIDA THE DESCONSTRUCCION THE BALANCING TECHNIQUE APPLICABLE TO THE CONSTITUCIONAL RIGHTS, PROPOSE BY ROBERT ALEXY: AN REFLECTION COME FROM JACQUES DERRIDA’S PHILOSOPHY. Isabelle de Baptista RESUMO Este artigo se propõe a analisar a teoria de Robert Alexy, especialmente a técnica da ponderação aplicável aos direitos fundamentais, a partir da leitura da filosófica de Jacques Derrida que propõe a desconstrução como método de trazer à tona aspectos contraditórios dos textos carregados de toda a tradição ocidental de pensamento. Também será analisada a utilização da teoria de Alexy no Brasil, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma interpretação desconstrutora. PALAVRAS-CHAVES: PONDERAÇÃO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. ARGUMENTAÇÃO. RACIONALIDADE. DESCONSTRUÇÃO. LOGOCENTRISMO. ABSTRACT This article aims to analyse Robert Alexy’s theory, specially the balancing technique applicable to the constitucional rights, from the reading of Jacques Derrida’s philosophy, that proposes desconstruction as a method of bringing up contradictory aspects of texts loaded with the whole Westhern tradicion of thought. There will also be analysed the use of Alexy’s theory in Brazil, principally by the Federal Supreme Court, in the perspective of desconstructive interpretation. KEYWORDS: BALANCING. CONSTITUCIONAL RIGHTS. PROPORTIONALITY PRINCIPLE. REASONING. RATIONALITY. DESCONSTRUCTION. LOGOCENTRISM. 1 INTRODUÇÃO A teoria elaborada por Robert Alexy é, atualmente, considerada uma referência para estudos na área da Filosofia do Direito, da Teoria da Constituição e para a própria

A DESCONSTRUÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO … · DIREITOS FUNDAMENTAIS, PROPOSTO POR ROBERT ALEXY: ... do balanceamento, verdadeiros direitos e ... a fala é associada à razão

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A DESCONSTRUÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO APLICÁVEL AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, PROPOSTO POR ROBERT ALEXY: UMA

REFLEXÃO A PARTIR DA FILOSOFIA DE JACQUES DERRIDA

THE DESCONSTRUCCION THE BALANCING TECHNIQUE APPLICABLE TO THE CONSTITUCIONAL RIGHTS, PROPOSE BY ROBERT ALEXY: AN

REFLECTION COME FROM JACQUES DERRIDA’S PHILOSOPHY.

Isabelle de Baptista

RESUMO

Este artigo se propõe a analisar a teoria de Robert Alexy, especialmente a técnica da ponderação aplicável aos direitos fundamentais, a partir da leitura da filosófica de Jacques Derrida que propõe a desconstrução como método de trazer à tona aspectos contraditórios dos textos carregados de toda a tradição ocidental de pensamento. Também será analisada a utilização da teoria de Alexy no Brasil, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma interpretação desconstrutora.

PALAVRAS-CHAVES: PONDERAÇÃO. DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. ARGUMENTAÇÃO. RACIONALIDADE. DESCONSTRUÇÃO. LOGOCENTRISMO.

ABSTRACT

This article aims to analyse Robert Alexy’s theory, specially the balancing technique applicable to the constitucional rights, from the reading of Jacques Derrida’s philosophy, that proposes desconstruction as a method of bringing up contradictory aspects of texts loaded with the whole Westhern tradicion of thought. There will also be analysed the use of Alexy’s theory in Brazil, principally by the Federal Supreme Court, in the perspective of desconstructive interpretation.

KEYWORDS: BALANCING. CONSTITUCIONAL RIGHTS. PROPORTIONALITY PRINCIPLE. REASONING. RATIONALITY. DESCONSTRUCTION. LOGOCENTRISM.

1 INTRODUÇÃO

A teoria elaborada por Robert Alexy é, atualmente, considerada uma referência para estudos na área da Filosofia do Direito, da Teoria da Constituição e para a própria

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aplicação prática do Direito, uma vez que o julgador, por diversas vezes, não consegue decidir com base, unicamente, nas regras postas pelo ordenamento jurídico. Em muitos casos, o julgador para implementar a melhor decisão, necessita interpretar e ponderar pela aplicação de princípios que, em determinado caso concreto, estão em conflito. Assim, na apreciação de casos difíceis o julgador deve ponderar ante a tensão permanente existente entre intereses constitucionalmente tutelados.

A construção teórica feita pelo filósofo do Direito alemão é considerada como verdadeiro divisor de águas para a moderna Ciência do Direito por permitir levar em consideração aspectos negligenciados e afastados pelo positivismo jurídico e que tanto prejudicou o alcance da finalidade precípua do Direito que é a satisfação da justiça, como o relevante valor dado aos princípios constitucionais.

Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão "racional" diante de conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade - que se subdivide em adequação, necessidade e proporcional idade em sentido estrito -, e fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível.

Nesse caso, para Alexy, estamos diante da "lei da ponderação" que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcional idade em sentido estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de argumentação.

No Brasil, a teoria de Alexy tem sido muito utilizada como referencial teórico para os muitos casos jurídicos (hard cases) em que o pano de fundo é a discussão e apreciação de causas que envolvam conflitos de princípios[1]. Todavia, uma das críticas que será travada neste artigo é demonstrar como teorias construídas sob determinado referencial jurídico, social e histórico é aplicado em outro ordenamento jurídico sem qualquer tipo de contextualização.

Para tanto, a reflexão crítica da teoria de Robert Alexy, principalmente no que tange à técnica da ponderação será feita a partir da leitura da filosofia de Jacques Derrida, essencialmente em relação à metodologia por ele denominada de desconstrução.

Derrida, ao longo de sua vasta obra, empreende algo aparentemente ambicioso: questionar os elementos tradicionais do pensamento ocidental, numa abordagem que não sugere a remoção ou a extinção dos elementos e paradoxos existentes, mas, tão-somente, revelá-los, trazer-los à tona. E é neste sentido que a presente investigação caminhará. Não se trata de condenar à morte a teoria desenvolvida por Alexy, mas em evidenciar os pontos incoerentes e controversos, acima de tudo se observados sob a perspectiva da incidência de uma teoria não ajustada propriamente à realidade brasileira. É preciso enfrentar tal temática, pois em nome da ponderação, do balanceamento, verdadeiros direitos e garantias fundamentais poderão, legitimamente, serem relativizados pelo Poder Judiciário.

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Este artigo se propõe a realizar um diálogo entre os contornos teóricos da filosofia de Jacques Derrida - enfocando seus aspectos fundamentais e a discussão desconstrutora que tece principalmente em relação ao direito e à lei, com base na obra Força de lei: fundamento místico da autoridade, juntamente com os pontos essenciais da teoria desenvolvida por Alexy, para, finalmente, realizar a tarefa de desconstruir pontos contraditórios e obscuros da teoria desse grande filósofo do Direito da atualidade. Derrida, ao efetuar a desconstrução da lei e do direito, demonstra que a força para a criação do direito compreende um ato de violência, uma vez que não há comprometimento com o justo, mas reflete um ato de autoridade.

Assim, apresentados os fundamentos teóricos imprescindíveis para a compreensão da discussão central do presente artigo, compete evidenciar, a partir de uma reflexão filosófica derridiana, como a teoria de Robert Alexy possui profundas deficiências. principalmente se analisadas e aplicadas ao sistema jurídico brasileiro sem qualquer tipo de contextualização.

2 DESCONSTRUIR A TEORIA DE ROBERT ALEXY

2.1 DESCONSTRUINDO A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Antes de adentrarmos ao tema deste capítulo, mister apresentar, sinteticamente, as bases da filosofia de Jacques Derrida (1930-2004). O filósofo argelino dedicou-se a efetuar severas críticas aos aspectos fundamentais do pensamento ocidental. Sua obra não compreende uma filosofia sistemática, com contornos metodológicos, conceitos e definições bem definidos. Ao contrário, tece sua abordagem filosófica através da identificação de aporias e neologismos próprios. Sua filosofia baseia-se num processo de leitura com outras obras ou de situações em que efetua um diálogo crítico.

O resgate do movimento e da criatividade são as grandes pretensões do filósofo, em contraposição às leis do pensamento ocidental, que são: a simplicidade, pois em tudo existe uma realidade essencial, desprovida de qualquer contradição; homogeneidade, ou melhor, tudo possui uma mesma substância ou ordem; e separada e distinta de qualquer complexidade que envolva a discussão sobre a origem e a consciência de si. Tudo o que está fora dessas "leis", tende a ser excluído. Dessa forma, exclui-se a complexidade, a mediação e a diferença, passando a serem tratados como "impureza".

Outro traço característico do pensamento moderno é a instituição de conceitos sempre voltados para significados apresentados de forma dual: sensível/inteligível; ideal! real;

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interno/externo; bem/mal; bom/ruim; ficção/verdade; natureza/cultura; fala/escrita; atividade/passividade etc. Para fazer a crítica a esse dualismo tão presente na metafísica ocidental, Derrida propõe a noção de differance, melhor traduzido para o português como diferência, que remete tanto às diferenças semânticas, genéricas, históricas, étnicas, culturais como também à prorrogação do sentido final, da verdade estabelecida, de forma que não há uma verdade e sim sua construção permanente e infinita, diante da impossibilidade de deter a verdade em uma positivação. Há sempre movimento para re-introduzir a negatividade da dúvida, que propositadamente empurra a análise da verdade sempre para frente.

Toda noção de verdade, na concepção nascida do logos, que gera uma "racionalidade" hegemônica, simplista e homogênea que é o alvo da crítica de Derrida e que denominou de logocentrismo.

Derrida também contesta o papel da escritura como ocupante de um papel secundário em relação à fala. Comumente, a fala é associada à razão e à racionalidade (aqui utilizada com a noção grega de lagos) e a voz é aceita como a mais próxima da verdade, por refletir a consciência individual. A escritura, por sua vez, é considerada como secundária ou suplemento da voz por se tratar de uma tecnologia criada humanamente.

A importância desse movimento de desconstrução é a ampliação dos quadros de referência que normalmente moldam nossas concepções e são tidas como verdades e acabam por proporcionar uma restrição em nossa compreensão do mundo.

A separação entre o discurso e a escrita é insustentável para Derrida. O que está subjacente a este entendimento é incessante trabalho filosófico de trazer à tona situações que aparentemente são negligenciadas se vistas sob o olhar da simplicidade e da unidade. A escritura, em seu sentido mais estrito, é virtual (como aquilo que não se realizou, mas é possível de se realizar), e não um reflexo secundário e fenomenal. A escritura não apenas reflete o que foi produzido, numa visão simplesmente subsuntiva, mas o que torna a produção possível.

Essas considerações são essenciais para proceder à desconstrução da teoria proposta por Robert Alexy. Inicialmente, cabe contextualizar a produção teórica desse importante jurista da atualidade. Segundo o relato do próprio autor no Prefácio à obra Teoria da argumentação jurídica, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha exigiu, através da Resolução de 14 de fevereiro de 1973, que as decisões dos seus juízes deveriam basear-se em "argumentações racionais".

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Então, a questão foi saber o que é racional ou se a argumentação jurídica racional é algo que interessa não apenas aos juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão e, também, a toda a comunidade jurídica e ao cidadão ativo na seara política. Para Alexy, a possibilidade de uma argumentação jurídica racional depende não só para o caráter científico da Ciência do Direito, mas também para a legitimidade das decisões judiciais. Dessa forma, propõe na sua obra Teoria da Argumentação Jurídica de 1976, como deve ser entendida a argumentação jurídica, como se efetua e com que alcance ela é possível.

Também foi um marco para Alexy a questão do novo caráter assumido pelos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, em virtude da positivação desses direitos nas constituições modernas, com vigência imediata e, acima de tudo, o amplo controle feito através do Tribunal Constitucional Federal alemão.

Dessa forma, Alexy se preocupou em dar a devida interpretação racional a esses direitos e visualizou a necessidade de métodos específicos para interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, em razão da grande vagueza das formulações dos catálogos desses direitos. Nesse contexto, publica sua importante obra denominada Teoria dos Direitos Fundamentais em 1985.

Quanto a este aspecto, estamos diante da situação denominada por Derrida como logocêntrica, ou seja, por mais que haja contribuição para o Direito, a ânsia da fidelidade à racionalidade, importa na produção de uma simplicidade, homogeneidade e esgotamento da real complexidade dos fenômenos jurídicos, extremamente prejudicial, pois se trata, na verdade, de estarmos diante de uma nova roupagem à "camisa de força" conferida pelo positivismo ao Direito de completa vinculação à formalidade, mas, agora, com a utilização de um discurso de satisfação e efetivação da justiça.

É de se questionar até que ponto o juiz ao decidir com base na incidência de argumentos opta pela decisão mais "racional". Ora, a linguagem, como nos adverte Derrida, é composta de elementos que vão muito além dos aspectos externos que envolvem o significante[2] e o significado[3] dos signos, mas envolvem aspectos internos que são arquitetadamente ocultados. Dessa forma, é possível que o magistrado leve em consideração elementos internos que importem na opção de argumento em detrimento do outro, favorecendo a ocultação dos reais elementos que levaram ao seu convencimento.

O argumento envolve um aspecto pouco levado em consideração: a persuasão. Nesse sentido, o nível de questionamento se amplia ainda mais, diante da dúvida de se saber aferir com precisão até que ponto o magistrado não é persuadido por conta de uma carga

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de valorização de argumentos artificiosos capazes de interagir no processo de formulação da decisão jurídica.

Segundo Alexy, a argumentação jurídica leva em consideração os vetores deontológicos básicos das questões práticas: ordenar, proibir ou permitir, assim, a argumentação jurídica é um caso especial de argumentação prática em geral, mas se torna especial pelo fato de estar situada sob uma série de vínculos institucionais que se pode caracterizar como vinculação à lei, ao precedente e à dogmática, que se configuram como limites ao julgador.

Dessa forma, o magistrado para efetuar a argumentação prática em especial por ser limitado à lei, ao precedente e à dogmática para alcançar assim a "decisão mais racional". Mas a pergunta que se coloca: ser racional é ter coerência com a verdade? Derrida ao criticar o que denominou de logocentrismo, ou seja, o império do logos, demonstra que em nome da razão não há qualquer comprometimento com a verdade. A forma se torna mais relevante que a própria verdade. Nesse sentido, como aferir que o julgador não está diante de uma verdade racionalmente construída. Logo, a dúvida permanece: até que ponto a teoria de Alexy, de fato, é considerada um avanço em relação ao positivismo de Kelsen e Hart.

2.2 DESCONSTRUINDO A TEORIA DOS PRINCÍPIOS E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO

Alexy aperfeiçoa a construção teórica elaborada por Ronald Dworkin, filósofo do Direito de Oxford, que iniciou uma grande discussão jurídica a respeito do seguinte questionamento: para cada caso jurídico, há uma única resposta correta?

A tese de Dworkin contrapõe ao sistema de regras positivas de Kelsen e Hart em que o sistema jurídico é composto por regras, regras válidas e/ou eficazes. Se diante da vagueza da linguagem da norma e diante de casos não regulados por leis positivas, neste espaço vazio não cabe ao juiz agir de forma subjetiva, levando em consideração a utilização de métodos. É preciso buscar no sistema de regras a resposta, utilizando-se de critérios como o hierárquico, lex superior derogat lex inferiorem; o critério da especialidade, lex specialis derogat lex generalis; e o critério cronológico, lex posterior derogat lex priorem.

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Dworkin, contrapondo a esse modelo de regras do sistema jurídico, propõe um modelo de princípios. Por este modelo, o sistema jurídico é composto por regras e, também, por princípios jurídicos que devem permitir que o julgador encontre uma única resposta correta nos casos em que somente as regras não determinam a única resposta correta. Esse julgador, "Hércules", dever ser capaz de decidir com habilidade, sabedoria, paciência e com perspicácia, portanto, apto a encontrar a única resposta correta.

Para Alexy, a teoria de Dworkin estabelece uma grande quantidade de questionamentos e intenta aperfeiçoar tal teoria, propondo a (i) teoria dos princípios e a (ii) teoria da argumentação jurídica, que leva em consideração o critério de razão prática.

A teoria dos princípios é um dos principais aspectos da teoria de Robert Alexy. Segundo ela, as normas constitucionais que asseguram os direitos fundamentais são distinguidas entre dois tipos de normas: as regras e os princípios. Tanto as regras como os princípios devem ser compreendidos como normas porque ambos dizem o que deve ser. Isto é, ambos podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas de ordem (mandado), de permissão e de proibição.

Para ele, os princípios poderiam ser caracterizados como mandados ou ordens de otimização (Optimierungsgebote). Nas palavras de Alexy, "os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais/táticas existentes"[4]. Ou seja, os princípios são mandados de otimização que podem ser cumpridos em diferentes graus e na medida devida do seu cumprimento, dependente das possibilidades reais e concretas, como também das possibilidades jurídicas existentes no momento da aplicação efetiva do princípio.

Já em relação às regras, ocorre o contrário. As regras são normas que exigem um cumprimento pleno e que podem ou não ser cumpridas. Caso a regra seja válida, logo é obrigatório fazer exatamente o que ordena, nem mais nem menos, portanto, as regras contêm determinações no campo do fático e juridicamente possível.

Por todo o exposto, conclui-se que se a norma a ser aplicada exige a maior medida possível de cumprimento em relação às possibilidades jurídicas e fáticas, estamos diante de um princípio. Todavia, se a norma exige somente uma determinada medida de cumprimento, trata-se de uma regra. Sobre essa temática, esclarece Alexy:

A base do argumento de princípio forma a distinção entre regras e princípios. Regras são normas que ordenam, proíbem ou permitem algo definitivamente ou autorizam algo definitivamente. Elas contêm um dever definitivo. Quanto os seus pressupostos estão

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cumpridos, produz-se a conseqüência jurídica. Se não se quer aceitar esta, deve ou declarar-se a regra como inválida e, com isso, despedi-Ia do ordenamento jurídico, ou, então, inserir-se uma exceção na regra e, nesse sentido, criar uma nova regra. A forma da aplicação da regra é a da subsunção. Princípios contêm, pelo contrário, um dever ideal. Eles são mandamentos a serem otimizados. [...] A forma de aplicação para eles típica é, por isso, a ponderação[5].

O critério empregado por Robert Alexy afirma que entre regras e princípios existe não somente uma diferença de grau, quantitativa, mas uma diferença de natureza qualitativa.

Os princípios não possuem um caráter de definitividade e subsunção como as regras, mas ordenam que algo deve ser realizado na maior medida possível, levando em consideração possibilidades jurídicas e fáticas postas no caso concreto. Assim, os princípios não são mandatos definitivos, mas apenas um dever prima facie. Os princípios representam razões que podem ser desprezadas ou assimiladas por outras razões opostas, não apresentando, de imediato, uma solução para resolver a problemática existente na relação entre uma razão e sua oposição. Por isso, os princípios carecem de conteúdo de determinação com relação aos princípios contrapostos e às possibilidades do mundo fático.

De forma diversa é o caso das regras. Como exigem que se haja exatamente o que se ordena, contêm uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode fracassar, o que pode conduzir a invalidez da regra; mas se não for o caso, vale definitivamente, cumpre exatamente o seu comando deôntico.

Por isso, em um primeiro momento é possível deduzir que os princípios possuem um caráter prima facie e as regras um caráter definitivo. Todavia, Alexy propõe um modelo diferenciado do defendido por Dworkin, quando diz que as regras, quando válidas, são aplicadas de uma maneira do tudo-ou-nada (all or nothing fashion) e os princípios contêm uma razão que indica uma direção da decisão, de acordo com a dimensão de peso.

Em relação às regras, a necessidade de um modelo diferenciado resulta do fato de que é possível, com motivo da decisão de um caso, introduzir nas regras uma cláusula de exceção, assim, a regra perde seu caráter definitivo para a decisão do caso. E a regra de exceção pode levar a discussão para a base de um princípio.

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Ademais, o caráter prima facie dos princípios pode ser reforçado se forem introduzidas uma carga de argumentação em favor de determinados princípios ou de determinados tipos de princípios, especialmente se tratarem de direitos fundamentais[6].

De todo o apresentado, verifica-se que as regras e os princípios são razões de tipos diferentes. Os princípios sempre são razões prima facie; as regras, a menos que tenha uma exceção, são razões definitivas.

Para identificar o ponto forte da teoria dos princípios é preciso fixar a semelhança dos princípios com o "valor", já que "toda colisão de princípios pode expressar como uma colisão entre valores e vice-versa"[7] e que o problema identificado por ocasião da colisão corresponde também a um problema de hierarquia de valores. Para Alexy, é possível uma teoria dos princípios que seja mais que um catálogo e que consista de três elementos:

(I) um sistema de condições de prioridade: por ocasião de colisão entre princípios, deve-se resolver mediante a aplicação da ponderação no caso concreto, sendo possível, também, estabelecer relações de prioridade com a decisão de outros casos. As condições de prioridade estabelecidas até o momento num sistema jurídico e as regras que se correspondem proporcionam informação sobre o peso relativo dos princípios. Dessa forma, ao elencar prioridades, permite-se a possibilidade de um procedimento de argumentação jurídica, de forma a eleger o princípio que será aplicado ao caso concreto.

(II) um sistema de estruturas de ponderação[8]: os princípios, enquanto mandatos de otimização, exigem uma realização a mais completa possível, em relação com as possibilidades jurídicas e fáticas. Quanto às possibilidades fáticas leva aos conhecidos princípios de adequação e necessidade. Quanto às possibilidades jurídicas implica numa "lei da ponderação" que pode ser formulada da seguinte forma: quanto mais alto o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro (proporcional idade em sentido estrito). Isso significa que uma teoria dos princípios conduz a estruturas de argumentação racional, o que não significa a disposição deles num simples catálogo.

(III) um sistema de prioridades prima facíe: estabelecem cargas de argumentação e criam certa ordem no campo de princípios. Assim, não contém uma determinação definitiva e sim uma determinação mais forte dos argumentos em favor de uma prioridade de um princípio que julga em sentido contrário. Com isso, a ordem depende de uma argumentação.

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Tecidas tais considerações relevantes para a observância mais aprimorada da teoria dos princípios e da técnica da ponderação. Sobre esta análise, serão utilizadas as reflexões tecidas por Jacques Derrida em sua obra Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, em que fomenta a tarefa de desconstruir questões como a justiça e o direito.

Derrida deixa às claras que o direito possui, comumente, o que denominou de "enforceability", melhor traduzido como "aplicabilidade". Segundo o filósofo argelino, não há direito sem força, o direito se torna justiça na medida em que se transforma em lei para, em seguida, ser aplicado justamente com a utilização da força. Nesse sentido, "[...] o direito é sempre uma força autorizada, uma força que justifica ou tem aplicação justificada, mesmo que essa justificação possa ser julgada, por outro lado, injusta ou injustificável"[9].

A força para criar o direito compreende um ato de violência, pois o direito é observado não porque ele é justo, mas sim porque reflete a imposição de uma autoridade. Daí a necessidade de desconstrução. Ao reconhecer o direito como algo criado, e não como um direito natural, é possível a direção do direito para aquilo socialmente reconhecido como justiça. Assim, a força do direito não se dá por um direito natural, mas por sua força simbólica.

Nesse sentido, por mais que a técnica de ponderação proposta por Robert Alexy seja um meio, argumentativamente construído, que forneça caminhos a fim de que o julgador tenha em suas mãos um método para efetivar a escolha do princípio aplicável ao caso concreto, caso estejam em conflito, observa-se que o Direito é implementado e imposto pelo magistrado não como um fato natural, mas é artificialmente construído para que, no caso sob análise, a melhor opção seja a escolhida e o melhor princípio cumpra, de fato, seu mandado de otimização. Dessa forma, em razão do cumprimento de um método, estamos diante de um Direito que se impõe de forma legítima, por refletir, necessariamente, a imposição de uma autoridade e, consequentemente, revestindo-se de violência.

Diante de conflitos entre princípios constitucionais, que traduzem direitos e garantias fundamentais, a aplicabilidade de um deles em detrimento de um outro, baseado em Derrida, sempre será um ato de força, de incidência necessária da violência da autoridade envolvida neste caso. Dessa forma, muito se distancia da justiça tão proclamada e almejada.

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Ao efetuar a desconstrução da lei e do Direito, Derrida identifica três aporias em relação à justiça e ao direito, consideradas como verdadeiros axiomas pela sociedade ocidental.

A primeira refere-se a "epokhé da regra". É comum acreditarmos na liberdade de tal modo que, para ser justo ou até mesmo injusto, cada indivíduo deve ser responsável por sua decisão, sendo que essa esfera de liberdade ou escolha da decisão do justo deve haver simetria com uma lei, uma prescrição ou uma regra. Se houver margem para a realização de decisões, esta deverá ser conforme o direito e, consequentemente, justa. Nesse caso, por exemplo, o juiz quando decide não deve apenas seguir uma lei geral, mas aprová-Ia, esclarecer seu valor, interpretá-Ia em cada novo caso, pois o sentido do texto da lei está sempre aberto, a espera de nova interpretação.

Acredita-se que para cada caso deverá existir uma decisão justa, diferente e interpretada de forma única, nesse sentido Derrida chega a identificar a tarefa do julgador como uma verdadeira "máquina de calcular". Assim, a justiça enquanto aporia, compreende a imposição de um sistema, tido como justo, como algo que nunca é aqui e agora, no presente, mas que continua sendo válido, pois traz em si a possibilidade de ser aquilo a que se predispõe, mas em outro caso, ou seja, no futuro. Dessa forma, além de "justo", para Derrida o melhor seria dizer legal ou legítimo, em conformidade com um direito, regras ou convenções que "autorizam o cálculo". Pelo exposto, verifica-se que, no direito, a questão da justiça é, estrategicamente, enterrada e dissimulada.

Nesse caso, o julgador, ao implementar a técnica da ponderação, nada mais está do que reproduzindo a "máquina de calcular", como nos adverte Derrida. O alcance do justo está muito distante dessa tarefa, quiçá mecânica, de cálculo, já que a ponderação será efetivada através da utilização do princípio da proporcional idade que importa na observância de três sub-princípios: primeiro, a análise da adequação; segundo, a necessidade; e terceiro, a proporcionalidade em sentido estrito. É a verificação, matematizada, desses três critérios que importará na aplicação racional da técnica da ponderação.

Pela adequação, o julgador deve apreciar para que a restrição de um princípio seja idônea o suficiente para garantir a sobrevivência do outro, apesar de afastado; pela necessidade, o julgador irá cuidar para que a restrição de um princípio deva ser a menor possível para a proteção do interesse contrário. Já a proporcionalidade em seu sentido estrito impõe a observância de que a restrição a um interesse deva compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico.

Como bem se observa dessa fórmula "perfeitamente" matemática, o sacrifício, o ato de violência, a imposição do entendimento de uma autoridade é o cerne de um discurso

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argumentativamente construído para a efetivação de uma dissimulada justiça que terá que conviver com essas contradições.

A ponderação leva a uma visão simplista dos conflitos envolvidos, a partir do momento em que o sacrifício de relevar um princípio constitucionalmente tutelado sempre será um ato de violência da autoridade. Ademais, os limites para o uso da argumentação são, segundo Alexy, a lei, a dogmática e os precedentes. Dessa forma, um entendimento alcançado através da ponderação e aplicado a um caso concreto, servirá de limite para demais casos concretos, e o questionamento que se coloca é até que ponto um caso difícil é igual a outro que permita a aplicação, quase subjuntiva, de um entendimento "ponderado" anteriormente. Será que os princípios que se determinam a ser um mandato de otimização não serão paulatinamente colocados ao patamar de regras que se predispõe a serem aplicadas de forma subjuntiva?

Dessas reflexões, passemos à análise da segunda aporia identificada por Derrida que denominou de "assombração do indecidível". Esta aporia, na verdade, trata-se de uma variante da primeira, pois o filósofo apresenta o entendimento comum de que só há o consenso de aplicação da justiça se houver uma decisão indecidível, ou seja, se houver dúvida na escolha entre as várias interpretações possíveis. Se não houver essa dúvida, trata-se de aplicação programável e calculada da lei - "Ela seria, talvez, legal, mas não seria justa”[10].

Derrida, ao revelar esta aporia, nos alerta da tendência de identificar o alcance da justiça se o julgador teve que fazer opções e teve, em suas mãos, um caso concreto aparentemente indecidível. É a força de sua autoridade que impõe a justiça.

Mais uma vez não como fazer uma conexão com a técnica da ponderação. Nossa tradição de matematizar os conflitos, leva-nos a uma concordância, quase mitológica, pelas decisões que foram arduamente sopesadas e balanceadas pela autoridade. Derrida nos leva a compreender que a concepção de justiça está diretamente ligada à noção de ética para com o outro, todavia, a decisão escolhida jamais consegue atender inteiramente a singularidade do outro. Jamais um ato de violência pelo uso "racional" da força conseguirá de fato promover a justiça. Eis o simulacro, eis a dependência imposta à sociedade de que a substituição estatal na resolução dos conflitos, sob o argumento da jurisdição única, é a forma de se garantir o legítimo alcance da justiça.

O julgador, segundo Alexy, ao ponderar, deve levar em consideração os resultados concretos que surtirão da decisão, já que para a solução dos casos difíceis importará em certa discricionariedade para o julgador que poderá levar em consideração possíveis resultados concretos. Ou seja, quanto maior o grau de abordagem da subjetividade

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envolvida na análise feita pelo julgador, melhor a motivação pela escolha de um princípio em detrimento do outro.

Segundo Derrida, eis um grande "fundamento místico da autoridade", pois jamais o julgador conseguirá inteiramente compreender a singularidade do outro e, dessa forma, a justiça que acredita implementar trata-se, tão-somente, da imposição de sua força. A justiça, nesse caso, configura como um espectro que sempre fica alojado, independente da opção feita, já que

[...] se há desconstrução de toda presunção à certeza determinante de uma justiça presente, ela mesma opera a partir de uma "idéia de justiça" infinita, infinita porque é irredutível, irredutíveI porque devida ao outro devida ao outro, antes de qualquer contrato, porque ela é vinda, a vinda do outro como singularidade sempre outra.[11]

Finalmente, a terceira aporia identificada por Derrida leva em consideração que a justiça se relaciona com a "urgência que barra o horizonte do saber', ou seja, diante do entendimento reiterado de que a justiça é algo que tem estar no presente, dar conta de problemas atuais, pois "[...] a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. [...] Uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível”.[12] Por ser dessa forma, a justiça não poder ser tratada como um ideal que pode ser alcançado, aprofundada a sua análise e reflexão.

Todavia, a justiça se apresenta como aporia para Derrida, não se realiza no presente, tampouco é refletida para se realizar no futuro. Na verdade ela nunca se efetiva, pois considerando que a justiça reflete a responsabilidade com o outro, essa postura de alteridade é inalcançável.

Comumente somos convencidos do discurso de que quanto mais célere for a satisfação dos conflitos, mais se alcança a justiça. O problema que se coloca é que quanto mais célere, mais o julgador terá que se pautar na observância dos precedentes, da dogmática, da legislação posta - e como visto é imposta pelo uso da coerção - fazendo de cada caso concreto mais diante de tantos, banalizando a complexidade dos conflitos humanos envolvidos em cada caso, simplificando o que é, por sua natureza, complexo.

A técnica da ponderação pode muito contribuir para a "urgência que barra o horizonte do saber", como identificou Derrida, pois a partir do momento que em nome de uma celeridade, capaz de proporcionar a satisfação da justiça, entendimentos anteriores são praticamente subsumidos a novos casos difíceis, tornando o Direito cada vez mais imparcial, injusto e fruto do exercício da violência pela autoridade.

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Segundo o filósofo, a justiça não se refere somente a um conceito jurídico ou político, diante da possibilidade de se abrir à transformação, à refundição ou refundação do próprio direito e da política e, a cada avanço, é preciso, novamente, reconsiderar e reinventar os próprios fundamentos do direito.

“[...] "Talvez", é preciso sempre dizer talvez quanto à justiça. Há um porvir para a justiça, e só há justiça na medida em que seja possível o acontecimento que, como acontecimento, excede ao cálculo, às regras, aos programas, às antecipações etc. A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história. [...] Esse excesso da justiça sobre o direito e sobre o cálculo, esse transbordamento do inapresentável sobre o determinável, não pode e não deve servir de álibi para ausentar-se das lutas jurídicopolíticas, no interior de uma instituição ou de um Estado, entre instituições e entre Estados. Abandonada a si mesma, a idéia incalculável e doadora da justiça está mais perto do mal, ou do pior, pois ela pode sempre ser reapropriada pelo mais perverso dos cálculos. [...] Uma garantia absoluta contra esse risco só pode saturar ou suturar a abertura do apelo à justiça".[13]

Essas três contradições existentes e aceitas axiomaticamente são reveladas por Derrida e demonstram a sua ânsia pela justiça, capaz de desconstruí-Ia e almejar a construção de um direito para além dos limites por ele mesmo definidos. É preciso ter comprometimento e consciência do que está porvir, do que está para acontecer, a fim de ser possível a reflexão, o repensar, o reanalisar das construções previamente estabelecidas e fomentar o movimento, o diálogo, a mudança e, porque não, a justiça.

A intenção deste trabalho não é condenar a teoria de Alexy à sua própria sorte. Ao contrário, é trazer à luz incoerências que se não forem observadas pela autoridade, importará muito mais no implemento da violência do que propriamente o alcance da justiça.

Nesse sentido que nos adverte Derrida, a autoridade deve estar comprometida não apenas com a formalidade, com as normas que refletem a imposição de atos de violência, com a matematização da busca de soluções para os casos concretos, mas deve ter um total apego com o outro, com os interesses realmente relevantes para sujeitos envolvidos no conflito, ao revés, em nome da celeridade, da formalidade e da pretensa racionalidade, o julgador pode fazer a opção pela violência que se coloca, nesse caso, implícita ao seu dever profissional.

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2.3 DESCONSTRUINDO A TRADUÇÃO

Na obra Torres de BabeI, Derrida enfrenta aquilo que é a sua pedra de toque: o processo de tradução, já que, num primeiro olhar, promove a abertura e o reconhecimento de outras línguas, culturas, contextos e sujeitos.

Assim, a tradução destina-se a cumprir a sua vocação de confluir todas as línguas, diante do reconhecimento do seu passado supra-histórico, babélico[14], reconciliando o que fora dispersado. Derrida intervém nesta obra, dialogando com Walter Benjamin, e nos alerta que, em razão das diferenças existentes, qualquer tentativa de plenitude e centralização se torna inviável. Diante do reconhecimento desse fato, eis que se torna imprescindível a tarefa do tradutor.

A tradução coloca-se como forma suplementar de promover a aproximação entre as línguas, contudo, essa intenção de aproximação por si só não é capaz de apagar as diferenças existentes. Além disso, é mister valorar o endividamento da tradução em relação ao original J as repercussões da obra traduzida e sua inserção em contextos que, por sua natureza e gênese, são essencialmente diferentes. O problema que se coloca é que como obras traduzidas são assimiladas, não no sentido e contexto no qual foram escritos, mas segundo as necessidades de quem as interpreta, capazes de promover verdadeiras adaptações convenientes.

Esse raciocínio é fundamental para as conclusões que se almeja alcançar ao final deste artigo. Pretende-se demonstrar que a tarefa de traduzir não é imparcial, não consegue trazer consigo toda a complexidade de uma realidade para a qual uma teoria foi elaborada. Simultaneamente, o original torna-se tributário do seu tradutor que impregna, naturalmente, suas próprias marcas no texto traduzido.

Conforme entrevista concedida ao Jornal Valor Econômico de 09/06/2008, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, manifestou-se no sentido de que o Tribunal é competente para suprir as deficiências do Poder Legislativo, em razão dos Poderes do Estado devem ser harmônicos entre si, devendo, portanto, trabalhar de maneira ativa para a melhor elaboração das leis na sociedade.

Para o Ministro, os parlamentares representam a população pelo voto que recebem e o Supremo Tribunal Federal faz a "representação argumentativa" da sociedade. A base teórica que fundamenta tal pensamento é a tese do filósofo alemão Robert Alexy para quem os tribunais corrigem distorções do Legislativo.

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Para tanto, o STF vem fomentando um ambiente mais democrático com a participação como, por exemplo, de amicus curie, fazendo do Tribunal um espaço para a argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições públicas, conferindo, dessa forma, mais legitimidade às suas decisões.

Ora, a tese acima descrita foi pensada e formulada para um contexto jurídico, para um modelo de organização social, bem diversa que a realidade brasileira. Robert Alexy desenvolveu essa teoria diante do agigantamento que os direitos e garantias fundamentais passaram a ter nas Constituições modernas. No Hemisfério Sul, estamos, ainda, formando nossa tradição política, fortemente influenciada pela colonização, em nosso caso, a portuguesa. Estamos praticamente num processo de existencialismo constitucional, reconhecendo que somos tutelados por uma ordem constitucional, repleta de garantias, e, aos poucos, vamos nos reconhecendo como integrantes do processo político, legitimadores da vigente Carta Constitucional e destinatários de diversos direitos e garantias.

Atualmente, os Poderes do Estado passam por uma crise de identidade justamente porque se encontram num processo de auto-conhecimento. E, nesse processo, a influência da sociedade é primordial.

Quanto à manifestação do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, acima reproduzida, é preciso, nesse caso, efetivar o maior legado de Derrida. É preciso realizar a tarefa de desconstrução.

Observa-se que se trata de um ato de imposição de um entendimento construído argumentativamente e que pode muito pouco refletir os reais interesses da sociedade como legitimadora das decisões estatais. Trata-se, portanto, de um espectro do Poder Moderador de outrora, pois a solução das deficiências do Legislativo brasileiro não se resolve pela efetiva participação do Poder Judiciário, mas com o fomento das práticas realmente democráticas e no desenvolvimento de uma cultura política, que a esmagadora maioria da população brasileira jamais possuiu.

Não se está diante da nobre tarefa de reunir o que babelicamente foi separado, ou seja, a tradução aqui não se refere à simples inserção de uma teoria em um ordenamento jurídico diverso para o qual foi, inicialmente, formulada.

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Com a utilização descontextualizada dessa teoria, corremos o risco de observar a mitigação e a relativização de direitos e princípios constitucionais, em nome de uma pretensa racionalidade, alcançada através da argumentação. Eis o grande legado da filosofia de Derrida: através da desconstrução trazer à luz as próprias contradições do objeto analisado.

O caso notório citado pela imprensa nacional traduz, em sua essência, a redução a função do Legislativo no Brasil, ampliando sobremaneira o papel do Judiciário, tudo isso através da utilização de discursos carregados de fortes valores argumentativos[15]. Por argumentos, persuade-se, convence-se da necessidade de determinada decisão em detrimento de outra. Dessa forma, não há propriamente o fomento das instituições democráticas, pois se existe o Judiciário com poder para atuar como órgão responsável por suprir todas as lacunas legislativas[16], não há que se falar no fomento de uma cultura política na população brasileira que capacite, a longo prazo, a conscientização e a melhoria da atuação do Legislativo no Brasil.

Derrida nos adverte que o tradutor implementa sua marca na tradução e, portanto, não há que se falar em uma tradução totalmente descompromissada com o original. As línguas foram, divinamente, separadas e, agora, não há como obter o perdão de Deus pela pretensão humana de construir a Torre de BabeI. Assim, o original tornase tributário da tradução. Eis um grande risco. No caso do Supremo Tribunal Federal, um grande risco à própria democracia.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção teórica de Robert Alexy possui grande relevância para a afirmação e consolidação de uma cultura jurídica pautada na valoração de elementos negligenciados pelo positivismo jurídico como a moral, os valores e os princípios constitucionais.

Todavia, o julgador ao implementar a tarefa da ponderação entre princípios constitucionais conflitantes pode estar exercendo um legítimo ato de violência se sua atuação se pautar, apenas, num cálculo matemático. É preciso muito mais que isso. Derrida nos adverte que o compromisso deve ser, de fato, com o justo, com os interesses das partes envolvidas e que buscam no Direito a melhor solução para seus conflitos.

É preciso avançar em relação ao dogma da racional idade, pois decisões formuladas com base em argumentações podem ocultar os reais interesses que, de fato,

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influenciaram na tomada da decisão. O apego à racional idade pode importar na aplicação legítima de uma violência por parte da autoridade. Convencer-se de que por meio de uma argumentação tida como racional fornece a base para que o julgador faça a decisão mais justa, trata-se de verdadeiro simulacro e aporia. Eis, portanto, a importância do diálogo com a filosofia. E mais/com a filosofia de um dos pensadores mais criticados da chamada pós-modernidade.

Derrida nos aguça o prazer de penetrar no texto. Fazer o texto falar por si. Instigar até que seus espectros se revelem. Para os grandes lingüistas, que aqui cito o seu maior representante, Ferdinand de Saussure, a língua falada é a que mais se aproxima da verdade. Eis uma grande ilusão da modernidade, já que a língua escrita traz em si muito mais do que está propriamente está escrito. Derrida nos adverte disso e daí a necessidade desse tipo de leitura para o Direito. É preciso trazer à luz o que, de fato, está dissimulado nas decisões judiciais, é preciso que julgadores tenham compromissos com as pessoas envolvidas no caso. É para elas que o Judiciário existe e não para outros interesses que, discursivamente e argumentativamente (ou melhor, "racionalmente"), convencem e persuadem o julgador.

Os fenômenos jurídicos são, por natureza, complexos, todavia a modernidade imprimiu a árdua tarefa de torná-Ios simples, homogêneos e desprovidos de toda a inerente complexidade. Mister resgatar e reconhecê-Ios como tal. É preciso avançar em relação à mera "máquina de calcular" como nos advertiu Derrida.

A técnica da ponderação reflete, incontestavelmente, uma nova fase do Direito. Contudo, direitos fundamentais não podem ser relativizados em nome da racional idade e do cálculo promovido na apreciação de seus elementos como a necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

______. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

______. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2005.

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______. Derecho y razón práctica. México: Biblioteca de Ética, Filosofia del Derecho y Política, 2002.

______. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Ratio Juris. vol. 16, n. 2, jun 2003, p. 131-140.

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Mirian Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

______. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla

Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

______. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 20. ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2000.

SILVA, Vírgílio Afonso da Silva. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. p. 607-630, 2003.

[1] Cite-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes julgados: ADI 2716-6/RO, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 07/03/2008; ADI 3070-1/RN, Relator Ministro Eras Grau, DJ de 19/12/2007; ADI 3305-1/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 24/11/2006; ADI 3112-1/DF, Relatar Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 26/10/2007; ADI 3689-1/PA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 29/06/2007; ADI 2240-7/BA, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 03/08/2007; ADI 3489-8/SC, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 03/08/2007; ADI 3316-6/MT, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 29/06/2007; AC0 876-MC-AgR/BA, Relator Ministro Menezes Direito, DJ de 01/08/2008.

[2] A imagem acústica, ou seja, a impressão psíquica do som na reprodução de um signo.

[3] O conceito da representação do signo.

[4] ALEXY, Robert. Derecho y razón práctica. México: Biblioteca de Ética, Filosofia del Derecho y Política, 2002. p. 13 (tradução nossa).

[5] ______. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 37.

[6] Segundo Alexy, os direitos fundamentais são considerados como o núcleo de todo o constitucionalismo discursivo e propõe que os direitos do homem e os direitos fundamentais possuem uma relação estreita. Os direitos do homem possuem como características os seguintes aspectos: são (i) universais, (ii) fundamentais, (iii) preferenciais, (iv) abstratos e (v) morais. Já os direitos fundamentais, por outro lado, são

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os direitos que foram acolhidos em uma constituição com o intuito de positivar os direitos do homem. A positivação não anula os direitos do homem, mas confere validade jurídica a eles. ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático. In: ______. Constitucionalismo discursivo. 2. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 10.

[7] ALEXY, op. cit., p. 16 (tradução nossa).

[8] Conforme leciona Alexy, “o princípio da proporcionalidade consiste de três princípios: os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três princípios expressam a ideia de otimização. Os direitos constitucionais enquanto princípios são comandos de otimização. Enquanto comandos de otimização, princípios são normas que requerem que algo seja realizado na maior medida possível, das possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios da adequabilidade e da necessidade dizem respeito ao que é fática ou factualmente possível. O princípio da adequação exclui a adoção de meios que obstruam a realização de pelo menos um princípio sem promover qualquer princípio ou finalidade para a qual eles foram adotados. [...] O balanceamento sujeita-se a um terceiro sub-princípio da proporcionalidade, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Esse princípio expressa o que significa a otimização relativa às possibilidades jurídicas (legal). ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Tradução de Menelick de Carvalho Neto. Ratio Juris. Vol. 16. n. 2. jun 2003, p. 135-136.

[9] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 07-08.

[10] DERRIDA, op. cit. P. 47.

[11] DERRIDA, op. cit., p. 49 (grifo do autor).

[12] DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).

[13] DERRIDA, op. cit., p. 51 (grifo do autor).

[14] Trata-se de uma referência que Derrida utiliza a respeito da passagem bíblica, constante no livro de Gênesis que relata a revolta organizada pelo líder tirano, cujo intento era construir a Torre de Babel para unir a terra ao céu, a fim de centralizar o poder e os povos até então reunidos. Em sua ira, Deus dispersa os povos, dando-lhes línguas diferentes, frustrando, dessa forma, o intento contralizador do tirano.

[15] Ingeborg Maus, em excelente artigo intitulado Judiciário como superego da sociedade, a partir da experiência do Tribunal Constitucional alemão e utilizando elementos da psicanálise, apresenta uma relevante crítica à atividade de controle normativo judicial que acaba por contribuir para a perda da racionalidade jurídica ou mesmo para racionalizações autoritárias, quando assim se manifesta "Legibus solutus": assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decido na Constituição "corretamente interpretada", podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma "ordem de valores" submetida à Constituição". ( ... ) A prática judiciária quase religiosa

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corresponde uma veneração popular da Justiça, como superego constitucional assume traços imperceptíveis, coincidindo com formações "naturais" da consciência e tornando-se portador da tradição no sentido atribuído por Freud. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. Novos Rumos, Centro Brasileiro de Análises e Planejamento-CEBRAP, n. 58, p. 184-202, novo 2000. p. 192.

[16] Atualmente, a grande crítica tecida em relação à posição tomada pelo STF é em relação à Súmula Vinculante n° 13 que trata da vedação ao nepotismo em todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ora, o fundamento da Súmula deve-se eminentemente pela omissão legislativa a respeito do tema. Nesse caso, trata-se de total interferência nas decisões administrativas pelo Poder Judiciário como meio de impor o respeito e à observância ao princípio da moralidade contido no caput do artigo 37 da Constituição Federal. Além de configurada intervenção de um Poder sobre o outro, o artigo 103-A da Constituição Federal exige que para a edição de súmulas vinculantes baseiem-se em reiteradas decisões. Apesar da Constituição não fixar o número preciso de decisões que sirvam como parâmetro preciso, ocorre que o STF editou a referida Súmula Vinculante após apenas dois pronunciamentos sobre o tema e levando em consideração alguns poucos precedentes. Verifica-se que tal decisão fundamentou-se muito mais na observação da reiterada tradição de nepotismo em todos os Poderes constituídos no Brasil, do que propriamente uma análise aprofundada, fortemente discutida, de precedentes judiciais que, por força do artigo 103A da CF/88, permitem a edição de súmulas vinculantes. Ademais, fazendo, nesta ocasião, uma leitura desconstrutora, fomentar a simplicidade, o esgotamento da complexidade é uma situação que se torna mais "adequada" às autoridades comprometidas em se utilizar do Direito para impor a violência, uma vez que impor uma decisão dessa natureza é muito mais simples, do que enfrentar e fomentar o profundo diálogo social, capaz de trazer à tona a tradição patrimonialista e clientelista tão presente na formação política brasileira e, dessa forma, culturalmente promover uma mudança de entendimento em relação à coisa pública. Sobre a tradição política brasileira, " ... poder definir o coronelismo como umas instituições imaginárias centrais da sociedade brasileira. Foi a instituição imaginária que permitiu durante longo tempo a existência histórica dos mais diversos personagens políticos, dotando-os de significação. A sobrevivência do coronelismo até hoje é devida à profunda impregnação das práticas sócio-políticas brasileiras pelo imaginário do coronel. ( ... ) Os coronéis são, de fato, criadores de códigos de comportamento social bem brasileiros, numa sociedade fechada à cidadania e centrada nas grandes famílias oligárquicas". GUALBERTO, João. A invenção do coronel: ensaio sobre as raízes do imaginário político brasileiro. Vitória: SPDC/UFES, 1995. p. 15.