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A LIBERDADE É AZUL (1993) (Trois Couleurs: Bleu) Dirigido por Krzysztof Kieslowski. Elenco: Juliette Binoche, Benoít Régent, Floence Pernel, Charlotte Very, Hugues Quester, Philippe Volter, Héléne Vincent, Emmanuelle Riva e Claude Duneton – participação especial de Julie Delpy. Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, baseado em história de Agnieszka Holland, Slavomir Idziak, Edward Zebrowski, Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz. Produção: Marin Karmitz. [Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama]. Uma das sensações mais procuradas pelo ser humano é a liberdade. Mas, afinal de contas, o que significa ter liberdade? Será que de fato é possível alcançá-la em toda sua plenitude?

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A LIBERDADE É AZUL (1993)

(Trois Couleurs: Bleu)

Dirigido por Krzysztof Kieslowski.

Elenco: Juliette Binoche, Benoít Régent, Floence Pernel,

Charlotte Very, Hugues Quester, Philippe Volter, Héléne

Vincent, Emmanuelle Riva e Claude Duneton –

participação especial de Julie Delpy.

Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz,

baseado em história de Agnieszka Holland, Slavomir

Idziak, Edward Zebrowski, Krzysztof Kieslowski e

Krzysztof Piesiewicz.

Produção: Marin Karmitz.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica

se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais

detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Uma das sensações mais procuradas pelo ser humano é a

liberdade. Mas, afinal de contas, o que significa ter liberdade?

Será que de fato é possível alcançá-la em toda sua plenitude?

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Será que é possível viver sem manter vínculos? Segundo a

sensível visão do excelente Krzysztof Kieslowski, a liberdade total

e sem vínculos é também muito triste e isto fica evidente neste

belo “A Liberdade é Azul”, que narra à história de alguém que, na

busca por esquecer uma tragédia, decide livrar-se de todos os

vínculos com o passado, sejam eles bens materiais, amigos ou até

mesmo familiares.

A famosa modelo Julie (Juliette Binoche) decide deixar tudo que

tem para trás após perder o marido (Hugues Quester) e a filha

num trágico acidente de carro, numa tentativa desesperada de

amenizar seu sofrimento. Mas, com o tempo, ela percebe que a

vida sem ter o que ou quem se apegar pode se tornar ainda mais

triste e acaba se envolvendo com seu amigo Olivier (Benoít

Régent), que tenta terminar a obra inacabada de seu marido

Patrice, um músico famoso internacionalmente.

Tanto na Europa como nos EUA, a cor azul normalmente é

associada à tristeza, o que explica (sempre de acordo com a ótica

de Kieslowski) a escolha do filme “Blue” para tratar do tema

liberdade – além, é claro, da elegante combinação das cores da

bandeira da França com o lema da revolução francesa “Liberdade,

Igualdade e Fraternidade”, presente nesta belíssima trilogia das

cores (e vale ressaltar que, desta vez, a tradução do título em

português foi extremamente feliz, algo muito raro de acontecer).

Desta forma, a tão sonhada liberdade é mostrada aqui de maneira

radical, sob a ótica de alguém que de fato não tem mais ao que

se prender na vida. Mas, como bem diz o flautista que dorme nas

ruas de Paris (Jacek Ostaszewski), Julie logo descobrirá que “é

preciso agarrar-se a algo”. E, na realidade, ela até já sabia disto,

como fica evidente quando sua vizinha Lucille (Charlotte Very)

entra em seu apartamento e pergunta se o lustre azul é uma

recordação e ela responde que “sim”. Além disso, ainda que tente

se livrar de tudo, Julie mantém contato com a mãe (Emmanuelle

Riva), que parece ter problemas de memória e, talvez por isso,

seja a companhia ideal para a filha. E é justamente numa

conversa com a mãe que ela deixa claro sua desesperada

tentativa de evitar o sofrimento provocado pela perda de alguém,

quando diz: “Não quero bens, presentes, amigos, amor e vínculos.

Tudo isso são armadilhas”.

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Na pele de Julie, Juliette Binoche tem uma

atuação muito eficiente, com seu olhar gélido, sua tristeza

palpável e seu semblante fechado de quem evita qualquer contato

com o mundo e prefere sofrer calada. Após uma tentativa

frustrada de suicídio, Julie parece entender que a única saída para

aliviar seu sofrimento é livrar-se de tudo que a faz lembrar o

passado e, como forma de não voltar a sentir esta terrível dor,

evita se apegar a qualquer coisa, livrando-se de bens materiais e

evitando novos relacionamentos – sejam estes amorosos ou de

amizade. Após colocar a casa à venda e deixar os amigos antigos

pra trás, ela está totalmente livre, sem nada nem ninguém para

se apegar, mas esta liberdade se revelará igualmente triste. Só

que antes de deixar a casa, Julie dorme com o amigo Olivier, e,

no momento do beijo, a chuva que cai lá fora indica a sensação

de melancolia que a acompanharia dali em diante. No dia

seguinte, ela finalmente deixa tudo pra trás e vai embora, mas,

no caminho, provoca ferimentos na mão, numa tentativa de

aliviar a dor, que Binoche ilustra muito bem eu seu rosto sofrido.

Aliás, a atriz se destaca nestes momentos que exigem sutileza,

como na tocante cena em que Julie tenta acariciar o caixão de sua

filha através de uma televisão, de onde assistia o funeral. E até

mesmo quando parece imobilizada, como quando olha fixamente

para as pedras azuis do lustre lembrando tudo que perdeu, ela

consegue transmitir a dor da personagem, intensificada pela

fotografia azulada de Slavomir Idziak, que ganha mais força nos

momentos de maior tristeza dela, auxiliada pela trilha sonora

evocativa de Zbigniew Preisner.

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Mas a vida é feita da convivência entre as

pessoas e, por mais que tente evitar, Julie acaba se apegando

novamente a algumas pessoas, como sua vizinha Lucille,

interpretada por Charlotte Very e acusada de “receber homens”

por outra vizinha, que ouve um “não é da minha conta” de Julie

como resposta à tentativa de fazê-la assinar um abaixo assinado

que tentava expulsar a garota do prédio. Grata, Lucille procura

Julie e as duas acabam desenvolvendo uma amizade, ao ponto da

prostituta ligar desesperada para Julie quando mais precisa – e é

tocante o momento em que Julie pergunta por que ela faz o que

faz e Lucille responde: “Porque gosto”. É nesta conversa também

que ela descobrirá o caso entre seu falecido marido e uma

amante. Além de Lucille, Julie também acaba se envolvendo com

seu amigo Olivier, interpretado por Benoít Régent e

declaradamente apaixonado por ela, mas que foi incapaz de

contar o caso de Patrice, levando Julie a pensar que se ela tivesse

ficado com os papéis oferecidos por Olivier (que continham as

fotos do casal de amantes), ela poderia ter descoberto tudo, ou

então, queimado as fotos e passar o resto da vida sem saber do

caso entre eles. “Talvez tivesse sido melhor”, afirma ela,

confirmando o quanto sofre por isto também. Mas Julie é

determinada, e decide então conhecer a mulher que roubou o

coração de seu marido, partindo numa busca que a levará a um

tribunal onde, antes de encontrar a amante, ela vê uma cena de

julgamento, que refletirá no segundo filme da trilogia “A

Igualdade é Branca” (e estas rimas narrativas tornam a trilogia

ainda mais interessante). Após encontrar a amante, que se chama

Sandrine e é interpretada por Floence Pernel, ela têm uma

conversa muito franca num banheiro feminino e descobre que

Sandrine está grávida de seu marido, o que funciona

simultaneamente como um choque e um alívio para Julie, que

desmistifica um pouco a imagem de bom marido de Patrice.

Completando o elenco, Héléne Vincent vive a jornalista que não

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demonstra respeito pela dor da protagonista, tentando entrevistá-

la logo após o acidente e, algum tempo depois, ao divulgar o

trabalho de Patrice, dizendo que “ele era um grande artista e

pertence a todos nós”.

Além da boa condução do elenco,

Kieslowski demonstra um rigor estético impressionante, graças

também ao excelente trabalho de toda sua equipe técnica, a

começar pela fotografia azulada de Slavomir Idziak, que ilustra a

melancolia de Julie, especialmente nos momentos em que ela está

sozinha na piscina. O tom azul predomina em praticamente toda

a narrativa, seja através do filtro, seja através de objetos, como

os enfeites do quarto azul ou o lustre que ela carrega consigo,

confirmando também o bom trabalho de direção de arte de Claude

Lenoir. Quando não prioriza o azul, a fotografia de Idziak adota

cores sem vida, que também refletem a tristeza da protagonista,

reforçada pelos figurinos discretos de Naima Lagrange e Virginie

Viard. E nem mesmo a bela Paris parece tão bela, graças às

locações escolhidas por Kieslowski, que passam bem longe dos

belos pontos turísticos da capital francesa. Auxiliado pela

montagem de Jacques Witta, o diretor também emprega um ritmo

propositalmente lento a narrativa, refletindo como a vida passa

devagar para as pessoas que sofrem como Julie, e até mesmo a

trilha sonora evocativa de Zbigniew Preisner só aparece nos

momentos de profunda tristeza dela ou para ilustrar seu

pensamento enquanto lê uma partitura do marido, como

momentos antes de jogar o trabalho num caminhão de lixo (e

repare como a música é distorcida quando o caminhão começa a

amassar a partitura). Finalmente, o som (e a falta dele) também

exerce função narrativa, como quando um homem sobe as

escadas do prédio e bate nas portas, criando uma atmosfera

tensa, captada pelo close de Kieslowski no rosto de Binoche.

Assustada, ela decide sair e acaba ficando trancada pra fora do

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apartamento e, sentada na escada, vive outro momento de

solidão, ilustrado pela fotografia sombria.

Aliás, os muitos closes e momentos de

silêncio refletem muito bem as sensações da protagonista,

alguém vazia, sofrida e profundamente melancólica, o que é

reforçado ainda mais pelos fades que escurecem a tela

completamente por alguns segundos, deixando o espectador com

a mesma sensação de vazio de Julie. Kieslowski emprega closes

em objetos, como o pneu do carro antes do acidente ou o

brinquedo do garoto que corre para tentar socorrer a família, além

de constantemente destacar as reações de Julie, como no

momento da notícia da morte do marido e da filha e quando

destaca a boca e os olhos dela enquanto chora ao ouvir o enterro,

nos colocando dentro da cena e tornando o momento ainda mais

tocante – também por causa da ótima atuação de Binoche, que

transmite muita emoção nestas cenas. Fica evidente que o cinema

de Krzysztof Kieslowski é um cinema de sensações. Mas nem por

isso o diretor deixa de criar belos planos, como quando diminui o

carro e a árvore no horizonte momentos depois do acidente,

distanciando também o espectador e preparando o clima frio da

narrativa, ou através de seus planos subjetivos, que nos colocam

sob o ponto de vista de Julie, como quando o médico (Claude

Duneton) aparece pela primeira vez para visitá-la no hospital.

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Existe ainda um momento singelo em “A

Liberdade é Azul”, que refletirá nos outros dois filmes da trilogia

(em momentos muito parecidos dos protagonistas), quando uma

velinha tenta, com muito esforço, jogar uma garrafa de vidro no

lixo enquanto Julie fecha os olhos e sente o ar puro. Este tipo de

rima narrativa é que torna a trilogia das cores ainda mais

elegante, conectando os três filmes não através das histórias, mas

sim através de situações e sensações dos personagens. Após tudo

que sofreu e a descoberta do filho de Patrice que cresce em

Sandrine, Julie decide ajudar Olivier a terminar a partitura,

desistindo de vender a casa e, altruistamente, dando-a de

presente para a amante do marido. Em seguida, liga para Olivier

e se entrega sexualmente ao amigo. Mas o travelling que vem a

seguir, passando por todos os personagens do longa (o moço que

acompanha o acidente, Sandrine, Olivier, a mãe de Julie e Lucille),

se encerrará no plano em que Julie chora sentada, deixando claro

que, de qualquer maneira, só o tempo iria curar a sua dor.

Kieslowski entrega um filme diferente,

tocante e reflexivo neste “A Liberdade é Azul”, que com muita

sensibilidade e um visual marcante, questiona a eterna busca do

ser humano pela liberdade através da trágica história de Julie, que

descobriu da pior maneira o quanto esta sensação pode também

ser dolorida. Até que ponto queremos ser realmente livres? Que

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cada um encontre sua resposta sem a necessidade de sofrer como

ela.

Texto publicado em 21 de Março de 2011 por Roberto Siqueira