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Jennifer Hermann – IE/UFRJ 1 A Macroeconomia da Dívida Pública: Notas sobre o Debate Teórico e a Experiência Brasileira Recente (1999-2002) Jennifer Hermann 1. Introdução A gestão da dívida pública no Brasil tem sido, recorrentemente, objeto de debate e inquietação, desde o início da década de 1980. O cenário de crônico desequilíbrio fiscal que tem caracterizado as contas públicas brasileiras desde então engendrou um perigoso círculo vicioso, no qual: a) as dificuldades de financiamento do governo alimentam estimativas de elevado risco de default da dívida pública (por parte de seus detentores ou potenciais compradores); b) estas, por sua vez, resultam em elevado custo de rolagem da dívida vincenda, bem como para a colocação de novos títulos no mercado, afetando negativamente a capacidade de financiamento do governo; c) tal deterioração, por fim, “confirma” o elevado risco estimado, realimentando todo o processo. O rompimento desse círculo vicioso é o principal desafio a ser enfrentado pelo novo governo que se inicia em 2003 no campo fiscal, porque é condição essencial para a recuperação da própria capacidade do governo gerir as políticas fiscal e monetária de acordo com seus objetivos macroeconômicos, sejam eles quais forem. A partir de fins de 1998, diante do agravamento do problema fiscal e da crise cambial que levou o país a um acordo de empréstimo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), o governo Fernando Henrique Cardoso deu início a um programa de ajuste fiscal “ortodoxo”, em linha com o modelo recomendado pelo Fundo, cujas bases têm sido: a) o controle da relação dívida pública/PIB (doravante D/Y), como objetivo principal, a curto e médio prazo; b) a geração de superávits primários em níveis adequados (de acordo com hipóteses de evolução de Y e dos encargos financeiros de D), como objetivo intermediário, isto é, como meio de controle da relação D/Y. A julgar pela evolução da relação D/Y no período 1999-2002, essa estratégia de ajuste fiscal tem sido, claramente, mal sucedida até o momento. Embora o setor público consolidado tenha cumprido a sua parte, gerando superávits primários significativos e crescentes desde 1999, a relação D/Y elevou-se continuamente desde então (Tabela 1). O que teria saído errado? A grande maioria dos analistas, mesmo reconhecendo a importância qualitativa e quantitativa do ajuste fiscal implementado até agora, tem alegado que os superávits não

A Macroeconomia Da Divida Publica

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A Macroeconomia Da Divida Publica

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    A Macroeconomia da Dvida Pblica:Notas sobre o Debate Terico e a Experincia Brasileira Recente (1999-2002)

    Jennifer Hermann

    1. Introduo

    A gesto da dvida pblica no Brasil tem sido, recorrentemente, objeto de debate e

    inquietao, desde o incio da dcada de 1980. O cenrio de crnico desequilbrio fiscal que

    tem caracterizado as contas pblicas brasileiras desde ento engendrou um perigoso crculo

    vicioso, no qual: a) as dificuldades de financiamento do governo alimentam estimativas de

    elevado risco de default da dvida pblica (por parte de seus detentores ou potenciais

    compradores); b) estas, por sua vez, resultam em elevado custo de rolagem da dvida

    vincenda, bem como para a colocao de novos ttulos no mercado, afetando negativamente a

    capacidade de financiamento do governo; c) tal deteriorao, por fim, confirma o elevado

    risco estimado, realimentando todo o processo.

    O rompimento desse crculo vicioso o principal desafio a ser enfrentado pelo novo

    governo que se inicia em 2003 no campo fiscal, porque condio essencial para a

    recuperao da prpria capacidade do governo gerir as polticas fiscal e monetria de acordo

    com seus objetivos macroeconmicos, sejam eles quais forem.

    A partir de fins de 1998, diante do agravamento do problema fiscal e da crise cambial

    que levou o pas a um acordo de emprstimo com o FMI (Fundo Monetrio Internacional), o

    governo Fernando Henrique Cardoso deu incio a um programa de ajuste fiscal ortodoxo,

    em linha com o modelo recomendado pelo Fundo, cujas bases tm sido: a) o controle da

    relao dvida pblica/PIB (doravante D/Y), como objetivo principal, a curto e mdio prazo;

    b) a gerao de supervits primrios em nveis adequados (de acordo com hipteses de

    evoluo de Y e dos encargos financeiros de D), como objetivo intermedirio, isto , como

    meio de controle da relao D/Y.

    A julgar pela evoluo da relao D/Y no perodo 1999-2002, essa estratgia de ajuste

    fiscal tem sido, claramente, mal sucedida at o momento. Embora o setor pblico consolidado

    tenha cumprido a sua parte, gerando supervits primrios significativos e crescentes desde

    1999, a relao D/Y elevou-se continuamente desde ento (Tabela 1). O que teria sado

    errado? A grande maioria dos analistas, mesmo reconhecendo a importncia qualitativa e

    quantitativa do ajuste fiscal implementado at agora, tem alegado que os supervits no

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    teriam sido suficientemente elevados para permitir o controle de D/Y no cenrio

    macroeconmico instvel do perodo (1999-2002), marcado pela transio do mercado

    cambial brasileiro para o regime de flexibilidade e por choques externos (a crise financeira na

    Argentina e a recesso nos EUA e mais recentemente, a ameaa de guerra deste pas com o

    Iraque), que converteram a flexibilidade em volatilidade. Com base nessa interpretao tem-se

    sugerido o aumento da meta de supervit primrio para, no mnimo, 5% do PIB nos prximos

    anos.

    Como anlise aritmtica e ex post, este argumento , obviamente, irrefutvel: basta

    comparar os supervits primrios obtidos com as despesas relativas a juros nominais sobre a

    dvida pblica para constatar o fato (Tabela 2). Mas, tal como um copo com lquido at a

    metade pode ser, corretamente, descrito como um copo meio cheio ou meio vazio, a

    comparao numrica entre os supervits e os juros nominais comporta tambm, do ponto de

    vista lgico e aritmtico, uma interpretao oposta atualmente dominante: no seriam os

    supervits que teriam se mostrado pequenos frente aos juros nominais, mas estes que se

    mostraram muito grandes frente aos supervits obtidos. Vale lembrar, quanto a este aspecto,

    que as metas iniciais de supervit primrio estabelecidas pelo governo, no mbito do acordo

    com o FMI 2,6% do PIB em 1999 e 2,8% em 2000-01 foram, por diversas vezes, revistas

    para maior (sendo de 3,88% do PIB a meta para 2002) e, ainda assim, foram sempre

    cumpridas com folga. Diante disso, o argumento da insuficincia mostra-se parcial e

    equivocado, no enxergando que a suficincia (ou no) de alguma coisa sempre uma

    grandeza relativa e que, no caso em questo, a varivel rebelde tem sido o montante das

    despesas financeiras do governo, que insiste em fugir s previses e aos clculos que

    orientam a fixao de metas para o supervit primrio, bem como suas revises peridicas.

    O bom desempenho das contas pblicas primrias sugere que o erro no est na

    gesto fiscal propriamente dita, isto , no manejo do oramento pblico, mas sim no modelo

    de ajuste ou na gesto da prpria dvida. Este artigo visa subsidiar o debate sobre esse tema,

    com uma breve discusso sobre o modelo de gesto da poltica fiscal e da dvida pblica

    adotado no Brasil no perodo 1998-2002. Este se inspira, em grande parte, no chamado

    modelo da equivalncia ricardiana, de filiao novo-clssica, que condena a poltica de

    dficit pblico, alegando ser este, bem como a dvida pblica que o financia, um fator de

    ineficincia alocativa.

    Visando contextualizar histrica e teoricamente a discusso, as duas primeiras sees

    do artigo analisam, sumariamente, a evoluo da dvida pblica como instrumento de poltica

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    econmica (seo 2) e o estado das artes do debate terico sobre o papel macroeconmico

    deste instrumento, hoje polarizado pelos enfoques keynesiano e ricardiano (seo 3). A

    seo 4 faz uma anlise crtica do modelo de gesto fiscal predominante a partir dos anos

    1990. Este, que define uma fase de transio para o modelo ricardiano, o que vem sendo

    seguido no Brasil no perodo 1999-2002. A seo 5 discute a experincia brasileira nesse

    perodo. A seo 6 conclui o artigo com algumas consideraes finais sobre o tema.

    2. A Dvida Pblica como Instrumento de Poltica Econmica

    A dvida pblica uma instituio da vida econmica quase to antiga quanto o

    prprio Estado, integrando o conjunto de instrumentos gradativamente criados para financiar

    suas atividades. A emisso de moeda (ou a cunhagem de metais, nos sistemas de moeda-

    mercadoria) , historicamente, a primeira forma de dvida pblica conhecida. A chamada

    receita de senhoriagem da decorrente representa um dbito do Estado para com a

    sociedade, porque, ao contrrio da receita de impostos, lhe permite apropriar-se de uma

    parcela do produto gerado pelo esforo privado, sem qualquer contra-partida na forma de

    prestao de servios. Trata-se de uma receita originada no simples fato do Estado ser, por

    excelncia, o emissor da moeda oficial do pas.

    Gradativamente, o endividamento formal do Estado junto a bancos privados, por meio

    de contratos de emprstimo ou da emisso de dvida mobiliria (em ttulos), foi se tornando

    uma prtica comum nos pases capitalistas. Essa forma de financiamento desenvolveu-se

    especialmente a partir do sculo XVIII, medida que a prpria atividade bancria se expandia

    rapidamente (Goodhart, 1987; Kregel, 1998).1

    At meados dos anos 1940, o endividamento junto ao setor privado constitua uma

    fonte excepcional de financiamento do Estado, que visava, basicamente, atender a despesas

    governamentais extraordinrias (em tempos de guerra, por exemplo) e, portanto, imprevistas e

    temporrias. Aps o trmino da segunda guerra mundial, a dvida pblica tornou-se uma

    instituio regular das economias capitalistas, como parte integrante dos instrumentos de

    poltica econmica utilizados desde ento.

    1 Em alguns pases europeus, os bancos privados que atuavam mais freqentemente como financiadores doEstado, adquirindo por isso o direito exclusividade da emisso de notas bancrias, foram os predecessores dosbancos centrais, constitudos ao longo do sculo XIX (Goodhart, 1987).

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    A expanso e importncia econmica da dvida pblica no ps-guerra, tanto nos pases

    mais desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento, refletiu, de um lado, o aumento

    extraordinrio de gastos pblicos associado ao esforo de recuperao econmica e fsica (das

    plantas produtivas e da infra-estrutura) dos pases diretamente envolvidos no conflito. De

    outro, explica-se como contrapartida do modelo de poltica econmica que se tornou

    hegemnico poca, inspirado na teoria macroeconmica formulada por J. M. Keynes em sua

    obra mais conhecida A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (Keynes, 1985).

    Embora esta tenha tido grande repercusso no meio acadmico desde sua publicao, em

    1936, somente aps a segunda guerra mundial ela passa a influenciar, decisivamente, a

    atuao do Estado na economia.

    A obra de Keynes e as experincias concretas de poltica econmica keynesiana no

    ps-guerra inauguraram um debate sobre poltica fiscal e dvida pblica que at, hoje, divide

    opinies. No plano terico, a questo polarizada pelos enfoques keynesiano e novo-clssico.

    O primeiro aponta o dficit fiscal planejado e, portanto, a dvida pblica como instrumentos

    capazes de contribuir para o crescimento econmico. O segundo, sintetizado no modelo da

    equivalncia ricardiana, surge nos anos 1970 e aponta a dvida pblica como fator de

    ineficincia alocativa, capaz de reduzir a capacidade de crescimento da economia.

    Recomenda-se, ento, a busca de permanente equilbrio oramentrio pelo governo. Os

    principais argumentos que sustentam essas diferentes abordagens so sumariados a seguir.

    3. Dois Enfoques Paradigmticos sobre a Dvida Pblica

    3.1. O enfoque keynesiano

    O ponto de partida da teoria macroeconmica de Keynes o princpio da demanda

    efetiva, segundo o qual so as decises de gasto, em especial de gastos privados em

    investimentos, que determinam o ritmo da atividade econmica. Reconhecendo a natureza

    inerentemente instvel das expectativas de longo prazo que orientam essas decises de

    investimento, Keynes concluiu, em primeiro lugar, que o nvel corrente de produo e

    emprego em economias de mercado era, tambm inerentemente, sujeito a oscilaes, que

    caracterizam perodos de super-emprego e, mais freqentemente, de desemprego involuntrio.

    Em segundo lugar, observou que, quando as expectativas se tornavam desfavorveis ao

    investimento, gerando desemprego, no havia qualquer tendncia endgena sua

    recuperao. Ao contrrio, como o gasto determina a renda agregada, a retrao dos

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    investimentos tende a penalizar a renda das prprias empresas, realimentando o pessimismo

    das expectativas. Essa tendncia era ainda reforada pelo efeito multiplicador da queda dos

    investimentos sobre a renda agregada, atravs da retrao induzida no consumo.

    Com base nessa anlise, a teoria keynesiana atribui ao Estado um papel anticclico, de

    carter permanente, nas economias de mercado. O gasto e, principalmente, o dficit do

    governo so identificados como instrumentos anticclicos potentes que, aliados a uma poltica

    monetria adequada, de juros baixos, so capazes de reverter situaes de desemprego,

    comuns s economias de mercado. A administrao da dvida pblica , portanto, parte

    integrante deste modelo.

    Mais especificamente, nos perodos de recesso da atividade econmica, cabe ao

    governo ampliar seus gastos em investimento, de modo a expandir a demanda agregada no

    curto prazo e, no mdio prazo, contribuir para a melhora das expectativas de lucro das

    empresas, motivando, assim, a recuperao dos investimentos privados (Carvalho, 1995).

    Neste modelo, portanto, as recesses implicam a ocorrncia ou o aumento de dficits fiscais

    atravs de dois canais distintos: endogenamente, devido queda da arrecadao de impostos

    sobre a atividade econmica, e, exogenamente, devido ao emprego de polticas fiscais

    anticclicas, apoiadas em aumento dos gastos pblicos. Os dficits, por sua vez, tm como

    contrapartida a expanso da dvida pblica, seja sob a forma de emisso de moeda, de dvida

    contratual (bancria) ou de dvida mobiliria.

    Cabe, ento, autoridade monetria administrar o mix de emisso de moeda e de

    ttulos de diferentes maturidades, de modo a manter o mais baixo possvel o custo do

    financiamento do governo, sem prejuzo da estabilidade monetria da economia. A

    coordenao entre as polticas fiscal e monetria torna-se fundamental, j que h um bvio

    trade off envolvido neste processo. Admitindo-se uma yield curve (curva de rendimentos)

    normal, ascendente taxas de juros crescentes em relao ao prazo dos ttulos o esquema

    ideal de financiamento do governo seria, em princpio, baseado na emisso de moeda ou de

    ttulos de curto prazo. Isto, no entanto, envolve o risco de inflao, no s pela monetizao

    direta do dficit, mas pelas presses por monetizao que uma dvida concentrada no curto

    prazo implica. O mix ideal exige, assim, uma atuao contnua do banco central no

    mercado, visando adequar a estrutura de juros e a composio da dvida s preferncias dos

    investidores em termos de ttulos de curto e de longo prazo (Okun, 1967). Para tanto,

    necessria a criao de condies institucionais adequadas no mercado financeiro, ou seja, a

    organizao de um mercado de dvida pblica, capaz de absorver os ttulos emitidos pelo

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    governo, bem como as operaes de troca de ttulos curtos por longos pelo banco central.

    Essa condio explica a tendncia mundial padronizao da dvida pblica sob a forma de

    dvida mobiliria, isto , em ttulos renegociveis em mercados secundrios.

    Por fim, admite-se que a solvncia do governo e, portanto, a garantia de pagamento da

    dvida seriam preservadas, num horizonte de mdio prazo, pela prpria recuperao da

    atividade econmica, que permite ampliar a receita tributria e, assim, sustentar os encargos

    da dvida assumida no perodo recessivo.

    O receiturio keynesiano de poltica econmica foi amplamente aplicado, entre pases

    desenvolvidos e em desenvolvimento, do ps-guerra at fins dos anos 1960 ou at a dcada

    de 1970, em alguns casos, como no Brasil. Tal perodo caracterizou-se, na maior parte desses

    pases, por elevadas taxas de crescimento econmico e baixas taxas de inflao, o que parecia

    atestar o acerto do modelo.

    Na dcada de 1970, o cenrio econmico mundial de instabilidade, caracterizado pela

    presena simultnea de inflao e desemprego, desafiou a hegemonia keynesiana, abrindo

    espao para o desenvolvimento de enfoques tericos crticos, de inspirao neoclssica. No

    plano da poltica fiscal, a mais difundida crtica abordagem keynesiana o modelo da

    equivalncia ricardiana, proposto por R. Barro (1974), em linha com a escola novo-clssica.

    Ancorado no modelo de expectativas racionais, este enfoque aponta o aumento do estoque da

    dvida pblica como um fator de ineficincia alocativa e como uma das razes para a

    ineficcia anticclica da poltica fiscal baseada na gerao de dficits oramentrios. Este

    modelo descrito a seguir.

    3.2. O modelo da equivalncia ricardiana

    O argumento central do enfoque da equivalncia ricardiana o de que o financiamento

    do gasto pblico com a emisso de dvida tem o mesmo efeito sobre a atividade econmica

    que seu financiamento atravs de impostos. A equivalncia macroeconmica entre a dvida e

    os impostos justificada com base em duas hipteses bsicas de comportamento dos agentes

    privados:

    a) Vale o modelo de expectativas racionais (Muth, 1961; Lucas e Sargent, 1978). Neste,

    admite-se que os agentes formulam suas expectativas com relao a variveis econmicas

    utilizando todas as informaes disponveis e interpretando essas informaes de acordo

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    com modelos tericos, em geral, corretos o erro sistemtico de interpretao visto

    como um sinal de irracionalidade.2

    b) Vale o modelo do ciclo da vida (Modigliani e Brumberg, 1954), segundo o qual os

    agentes definem a distribuio de sua renda entre consumo (C) e poupana (S) visando

    manter um padro estvel de consumo ao longo da vida, apesar das variaes correntes da

    renda disponvel.

    Diante da informao sobre a ocorrncia de dficits governamentais e, portanto, do

    aumento da dvida pblica, agentes racionais antecipariam a necessidade de aumento futuro

    nos impostos, de modo a capacitar o governo a cumprir os encargos financeiros da dvida.

    Admite-se, implicitamente, que, em suas decises econmicas, os contribuintes levam em

    conta as condies de solvncia financeira do setor pblico, bem como seus efeitos sobre a

    renda disponvel. Espera-se, assim que o aumento da renda disponvel e da capacidade de

    consumo no presente seja compensado por uma reduo futura. Nessas condies, agentes

    racionais tenderiam a reter o aumento atual da renda sob a forma de poupana, que financiar

    o aumento futuro nas despesas com impostos: dS = dG (dG = variao nos gastos pblicos.

    No haveria, assim, qualquer efeito multiplicador dos gastos governamentais sobre o

    consumo (dC = 0), ao contrrio do que previa o modelo keynesiano, restando apenas o efeito

    expansivo direto destes gastos sobre a renda agregada (Y): dY = dG. Ou seja, o efeito

    macroeconmico seria exatamente o mesmo de uma poltica fiscal de oramento equilibrado,

    em que dG = dT (dT = variao na arrecadao de impostos), cujo multiplicador igual a 1:

    dY = dG + dC, sendo dC = c.dYD

    (c = propenso marginal a consumir; YD = renda disponvel).

    dYD = dY dT, sendo, de imediato, dY = dG

    Se dT = dG, ento: dYD = 0 dC = 0 e dY = dG.O dficit pblico no traria, portanto, qualquer benefcio em termos de crescimento

    econmico, tendo, ao contrrio, um impacto negativo sobre o bem estar da sociedade,

    representado pelo nus da dvida a ser paga pelas geraes futuras. Da a recomendao de

    uma poltica fiscal de permanente equilbrio oramentrio.

    2 Essa corresponde chamada verso forte do modelo de expectativas racionais, na qual admite-se que a nicafonte de erro possvel, por parte de agentes racionais, a insuficincia de informao sobre as aes de polticaeconmica um problema exgeno, causado pelo governo.

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    4. Poltica Fiscal e Dvida Pblica Ps-Anos 1990: uma anlise crtica

    No que tange s experincias concretas de poltica fiscal e gesto da dvida pblica,

    pode-se identificar, grosso modo, trs perodos distintos, de acordo com o modelo terico

    dominante:

    a) Do ps-guerra at fins dos anos 1970: neste perodo, de dominncia keynesiana, o

    objetivo central da gesto da dvida pblica era o de obter uma boa administrao da

    dvida e no sua eliminao de modo a manter baixo o custo de financiamento do

    governo.

    b) Dcada de 1980: caracteriza-se, em diversos pases desenvolvidos e em desenvolvimento,

    por um esforo de ajuste fiscal de carter conjuntural, visando reduo do dficit

    oramentrio no curto prazo, por meio de cortes nos gastos pblicos e/ou de aumentos nas

    alquotas de impostos. Em termos de dvida pblica, isto implica a reduo de seu ritmo

    de crescimento, em geral medido em relao ao PIB (ou seja, pela relao D/Y).

    c) Da dcada de 1990 em diante: perodo de clara dominncia do enfoque novo-clssico,

    marcado pela busca (nem sempre bem sucedida) de oramentos fiscais equilibrados ex

    ante, visando eliminao do dficit pblico de forma estrutural e, portanto,

    permanente. Quanto dvida pblica, o objetivo passa a ser, inicialmente, o de

    estabilizao da relao D/Y (ou seja, crescimento nulo) e, posteriormente, dependendo

    do ponto de partida, o de gradual reduo.

    A transio para o modelo da equivalncia ricardiana tem se dado de forma lenta

    quanto aos seus resultados em diversos pases3 e, em especial, nos pases em

    desenvolvimento, como o Brasil, egressos de longo perodo de dficits fiscais. Nestes casos, o

    ajuste fiscal tem envolvido a implementao de programas de reforma patrimonial e

    institucional do Estado (privatizao e definio de regras fixas e padronizadas de gesto

    fiscal, por exemplo). Enquanto o ajuste no se completa, isto , no se materializa em efetivo

    equilbrio oramentrio (no conceito nominal, mais abrangente), a gesto fiscal de curto prazo

    tem se pautado por metas de supervit primrio, que visam, inicialmente, ao controle da

    relao D/Y e posteriormente sua reduo e no mais aos tradicionais objetivos

    macroeconmicos da poltica fiscal, definidos em termos de taxas de crescimento do PIB e de

    3 Na zona do euro, por exemplo, a transio para o modelo de equilbrio fiscal ainda incompleta, embora tenhase iniciado em 1992, com o Tratado de Maastrich que definiu o programa de reformas preparatrias para aadoo da moeda comum.

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    taxas de inflao. Esses objetivos, supe-se, seriam alcanados indiretamente, medida que o

    controle da relao D/Y sinalize ao mercado os detentores ou potenciais compradores de

    ttulos pblicos a garantia de solvncia do setor pblico. Isto permitiria economia operar

    com taxas de juros mais baixas, favorecendo o crescimento do produto agregado.

    Em suma, no atual modelo de gesto fiscal h uma inverso da causalidade entre

    dvida pblica e taxa de juros proposta no modelo keynesiano: neste, a poltica de juros

    condiciona a evoluo do estoque (D) e a composio da dvida pblica, enquanto no modelo

    atual, D torna-se a varivel exgena cujo comportamento, ditado pelos nveis de supervit

    primrio, condiciona a taxa de juros (r).

    Embora a solvncia do setor pblico seja, inegavelmente, uma condio essencial ao

    bom funcionamento do mercado de ativos financeiros e, por conseguinte, prpria

    sustentao da capacidade de crescimento da economia, o atual modelo de gesto fiscal no

    parece ser o mais adequado para atingir estes objetivos. O modelo padece de dois erros de

    diagnstico do problema:

    a) identifica o supervit primrio do governo (em relao ao PIB, s = SP/Y) como um

    potente instrumento de controle da relao D/Y, atravs do controle de D, negligenciando

    seus efeitos sobre Y, bem como os efeitos da poltica de juros sobre D equvoco

    decorrente da mencionada inverso de causalidade entre D e r;

    b) identifica o estoque da dvida (em relao ao PIB) como indicador do grau de solvncia

    do governo, quando, em verdade, o que mede esta condio, para o governo ou

    qualquer outro devedor, a relao entre seus fluxos de receita e despesa financeira, que

    no necessariamente acompanha a relao D/Y.

    Essas questes so comentadas, separadamente, a seguir.

    4.1. O supervit primrio como instrumento de ajuste da dvida pblica

    A restrio oramentria do governo define-se por:

    [1] G = T + NB , onde:

    T = receita de impostos: T = t.Y, onde t = carga tributria mdia da economia;

    NB = emisso de novos ttulos pelo governo.

    [2] G = GP + GF , onde:

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    GP = gastos primrios (no-financeiros) do governo (despesas de consumo e investimento);

    GF = despesas financeiras do governo:

    [3] GF = A + J, onde:

    A = amortizaes da dvida pblica em ttulos (B): A = a.B, 0 < a < 1;

    J = despesas com juros sobre B: J = r.B, onde r = taxa bsica de juros do mercado, utilizada

    como proxy da taxa mdia de juros incidente sobre B. Portanto:

    [4] GF = (a + r).B

    [5] NB = NBm + NBbc, onde:

    NBm = ttulos adquiridos pelo mercado (setor privado);

    NBbc = ttulos adquiridos pelo banco central: NBbc = dH = variao da base monetria.

    Dessas definies, tem-se:

    GP + A + J = T + NBm + dH (GP T) + J = (NBm A) + dH.(GP T) + J = dficit nominal do governo (DN);

    (GP T) = dficit primrio do governo: DP = SP;

    (NBm A) = dB = variao lquida no estoque da dvida pblica em ttulos.

    Ento:

    [6] DN = J SP = dB + dH = dD = variao lquida na dvida total do governo.

    Estabilizar a relao D/Y em um nvel k qualquer (k = D0/Y0) requer dD/D0 = dY/Y0.

    De acordo com as condies acima:

    dD/D0 = DN/D0 = (J SP)/(kY0) = (1/k).(j s), onde:

    j = J/Y0 e s = SP/Y0.

    Fazendo-se dY/Y0 = g (taxa de crescimento nominal do PIB), a condio de

    estabilidade de k se cumpre quando:

    [7] (1/k).(j s) = g k = (j s)/gNa expresso [7], de acordo com o enfoque convencional, tem-se: k = constante que

    define o objetivo principal da gesto da dvida; j e g so variveis exgenas; s a varivel de

    ajuste define o objetivo intermedirio da poltica. Para que k seja mantido constante, s deve

    ser elevado para compensar, proporcionalmente, qualquer aumento em j ou reduo em g.

    Sendo j = r.(B/Y), aumentos em j podem ocorrer em funo de aumentos em r ou em B, ou de

  • Jennifer Hermann IE/UFRJ

    11

    queda em Y. Sendo B a dvida j em mercado, sua magnitude reflete decises passadas,

    relativas s polticas fiscal e monetria. A primeira determina o dficit DN, da expresso [6],

    a ser financiado por dB ou dH. A segunda determina a distribuio de DN entre dB e dH e,

    atravs desta, determina o custo r, que ser maior, quanto maior for a parcela dB leia-se,

    quanto mais restritiva for a poltica monetria no perodo o que torna B tambm maior, no

    futuro prximo. Assim, na fase de ajuste fiscal, em que DN ainda positivo e deve ser

    financiado no mercado monetrio, a magnitude necessria de s para estabilizar a relao k

    depende da forma como vem sendo gerida a poltica monetria: s ser tanto maior, quanto

    mais restritiva for esta poltica. Quanto Y e g, a taxa s requerida ser maior, quanto mais

    recessivo for o ambiente macroeconmico.

    Em suma, o modelo requer uma atuao pr-cclica da poltica fiscal, que aprofunda

    as tendncias recessivas ou expansivas da economia. Alm disto ser a anttese do papel

    estabilizador que, normalmente, se espera da atuao do governo na economia, sua eficcia

    pode ser nula em relao ao objetivo que persegue, especialmente em ambientes econmicos

    recessivos: lembrando que s depende da arrecadao T; que T acompanha os movimentos em

    Y, j que T = tY; que, nas fases recessivas, a nica forma de aumentar T elevando t; e que Y

    responde negativamente a aumentos em s, a medida pode tornar-se rapidamente incua para

    reduzir D/Y, j que a reduo inicial em D tende a ser rapidamente acompanhada de reduo

    em Y e, portanto, em s:

    [8] s = SP/Y = (T GP)/Y = t GP/Y

    O problema reside no fato de que, em [7], Y no independente de t e GP: tanto

    aumentos em t, quanto cortes em GP implicam, ceteris paribus, reduo em Y, eliminando o

    efeito inicial sobre s. O mesmo ocorre em relao a k, na expresso [6]: g no independente

    de s; o aumento inicial em s pode implicar queda em g, anulando o esforo inicial de reduo

    em k. Alm disso, se a poltica monetria no estiver coordenada com o esforo de ajuste

    fiscal, este pode tornar-se uma luta inglria: como j = r.(B/Y), o aumento em s ser incuo

    diante de uma poltica monetria restritiva que eleve r e/ou B.

    Essa anlise demonstra que o caminho virtuoso para o controle ou mesmo a reduo

    da relao k no o aumento ex ante do supervit primrio do governo, mas sim seu

    aumento ex post, promovido pelo crescimento econmico. Isto, por sua vez, requer uma

    poltica de juros baixos ou, pelo menos, descendentes, que tambm contribui, diretamente,

    para o controle de k.

  • Jennifer Hermann IE/UFRJ

    12

    4.2. A relao Dvida/PIB como indicador de solvncia do governo

    Como demonstrou Minsky (1982) em seu conhecido modelo de fragilidade financeira,

    inspirado na anlise de Keynes sobre as condies de financiamento de investimentos

    (Keynes, 1937a e 1937b), a solvncia financeira de qualquer devedor depende de duas

    condies bsicas: a) da relao entre o fluxo de despesas financeiras assumidas e seu fluxo

    de receita lquida (aps os gastos no financeiros); b) de sua capacidade de refinanciamento

    no mercado, isto , de obteno de novos crditos, em complemento ou em substituio

    receita lquida, que lhe permitam manter os pagamentos devidos. Em outros termos, em

    economias com sistemas de crdito bem organizados e desenvolvidos, o equilbrio financeiro

    de um devedor no se define por sua capacidade de liquidar totalmente suas dvidas, mas sim

    de honrar, sistematicamente, os compromissos financeiros assumidos, dentro dos prazos

    previstos. Isto pode ser alcanado com recursos prprios ou de terceiros. Ou seja, a condio

    requerida :

    [9] GF (T GP) + dD A + J SP + dB + dH[10] (a + r).B SP + dB + dH

    interessante notar que, na expresso [10], apenas um dos condicionantes da

    solvncia do setor pblico depende da gesto da poltica fiscal: o termo SP. Todos os demais

    so determinados pela poltica monetria, em geral (determinando dB, dH e r), e pela forma

    de administrao da dvida pblica, em particular (que afeta r e a). Mesmo numa situao

    limite, de total incapacidade de refinanciamento do governo junto ao mercado privado ou ao

    banco central, que torne dB + dH = 0, a influncia da poltica monetria continua sendo

    crucial. Neste caso, a condio de solvncia fica:

    [11] (a + r).B SP ,ou, medido em proporo ao PIB,[12] (a + r).b s , onde b = B/Y.

    Em [12], os termos a, r e b so determinados pela poltica monetria e apenas s pela

    poltica fiscal. Tal como observado anteriormente, isto demonstra que a coordenao entre a

    poltica monetria e a fiscal condio necessria boa administrao da dvida pblica: na

    presena de juros ascendentes, por exemplo, o esforo de aumento em s pode tornar-se

    incuo.

    Essa abordagem de fluxos para a solvncia do governo traz vantagens analticas em

    relao de estoque, que enfatiza a relao D/Y:

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    13

    a) mais realista, avaliando a questo a partir das variveis que realmente definem a

    capacidade de pagamento da dvida pblica a cada perodo entre estas, vale notar, o

    estoque total D substitudo pela parcela B, de dvida remunerada;

    b) explicita mais claramente a influncia da poltica monetria neste processo;

    c) permite estabelecer uma condio de solvncia sem ambigidades, porque no requer a

    escolha arbitrria de um valor timo para as variveis envolvidas como o caso no

    enfoque da relao D/Y: todas as variveis de [12] so passveis de quantificao,

    permitindo uma avaliao tcnica da situao financeira do governo;

    d) explicita uma varivel crucial, que omitida na relao D/Y: trata-se do prazo mdio da

    dvida, inversamente relacionado ao coeficiente de amortizao a.

    e) essa varivel traz (de volta) tona a importncia da administrao cotidiana da dvida,

    enfatizada no modelo keynesiano, cuja funo administrar o trade off entre alongamento

    do prazo, que reduz o coeficiente a, e aumento do custo da dvida, medido por r.

    Levando-se em conta esse aspecto, conclui-se que a relao D/Y informa muito pouco

    sobre a real capacidade de pagamento do governo, j que, dependo do mix de ttulos de

    diferentes prazos que compem o estoque B, um mesmo estoque total D pode representar

    graus distintos de solvncia do governo.

    5. Notas sobre a Gesto Fiscal e a Dvida Pblica no Brasil: 1998-2002

    A gesto fiscal no Brasil, grosso modo, seguiu aquela tendncia internacional rumo ao

    modelo ricardiano, embora com algum atraso com relao terceira fase, de ajuste

    estrutural. O perodo de ajuste conjuntural no Brasil teve incio em 1992, na gesto do

    Ministro Marclio Marques Moreira frente do ento Ministrio da Economia, e se estendeu

    at fins de 1993.

    Em janeiro de 1994, j como preparao para a implementao do Plano Real, foi

    criado o Fundo Social de Emergncia (FSE).4 O FSE foi formado, entre outras fontes de

    menor importncia, pela reteno de 20% do oramento federal previsto em diversas rubricas

    componentes da chamada despesa vinculada gastos constitucionalmente vinculados

    receita da Unio em propores pr-estabelecidas. O objetivo dessa medida era dar incio a

    uma ampla reforma estrutural do setor pblico, que passaria, no curto prazo, pelo

    4 Para uma discusso sobre o papel do ajuste fiscal no Plano Real vide Castro (1999) e Carvalho (2001).

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    desengessamento de parte do oramento da Unio e, no longo prazo, pela reforma

    patrimonial (privatizao), administrativa (interna ao setor pblico), previdenciria (incluindo

    a previdncia social, do funcionalismo pblico e a previdncia complementar) e tributria.

    Devido lentido nas negociaes dessas reformas entre o executivo e o Congresso

    todas ainda em curso, exceo da privatizao, que foi praticamente completada na esfera

    federal o FSE, que tinha prazo de vigncia inicialmente previsto apenas para o binio 1994-

    95, foi prorrogado por diversas vezes. Com algumas modificaes pontuais, o Fundo

    permanece em vigor at hoje (fins de 2002), sob o nome de Fundo de Estabilizao Fiscal

    (FEF) a partir de outubro de 1998.

    Embora sem sucesso prtico at 1999, o fato que a poltica fiscal do Plano Real foi,

    desde o incio, desenhada de modo a promover um ajuste estrutural das contas pblicas,

    visando gerao de supervits primrios que permitissem a gradual eliminao do dficit

    nominal do setor pblico consolidado. A partir de fins de 1998, diante do agravamento da

    situao fiscal, expresso no visvel aumento do dficit pblico em 1997 nos conceitos

    nominal, operacional e primrio (Tabela 2); de seus efeitos desfavorveis sobre as

    expectativas dos investidores (domsticos e estrangeiros) com relao estabilidade

    macroeconmica do pas; e das negociaes com o FMI, que resultaram na assinatura de um

    acordo de emprstimo em dezembro do mesmo ano, o governo assumiu uma postura firme no

    sentido de avanar no ajuste fiscal primrio, lanando mo de medidas emergenciais e

    estruturais entre estas, vale ressaltar a edio da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada

    pelo Congresso em maio de 2000.5 Esse conjunto de medidas e, como observa Giambiagi

    (2002), a mudana de atitude do governo na questo fiscal, surtiram efeito rapidamente sobre

    o saldo primrio do governo. Este passou de um dficit de 0,9% do PIB em 1997 para um

    supervit de 3,2% do PIB j em 1999 (Tabela 2), apesar da estagnao econmica do perodo

    (com crescimento mdio anual de 0,5% no binio 1998-99).

    No perodo 1999-2002, os supervits primrios foram mantidos, inclusive em nveis

    crescentes, a ponto de permitir a reduo do dficit nominal do governo (Tabela 2). A

    despeito disso, a relao dvida/PIB (no conceito de dvida lquida) cresceu 15 pontos

    percentuais ao longo do perodo, passando de 43,3% do PIB em 1998 para 58,3% em agosto

    de 2002 (Tabela 1). Esse aumento, vale notar, foi quase que uniformemente distribudo entre a

    5 Para um resumo das medidas de ajuste fiscal no Brasil aps 1998 vide Hermann (2002: Cap. 8, Quadros 8.10 a8.12). Para uma anlise detalhada da poltica fiscal nos dois mandatos do Presidente Fernando HenriqueCardoso, vide Giambiagi (2002). Para uma anlise crtica do mesmo tema, vide Carvalho (2001).

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    dvida interna (mais 7,6 pontos percentuais) e externa (mais 7,4 pontos) e deve-se

    exclusivamente parcela remunerada da dvida, j que a participao da base monetria na

    dvida total at se reduziu no perodo. Em suma, a dvida cresceu em funo dos elevados

    custos de rolagem da prpria dvida, e no de desequilbrios fiscais.

    Esses dados, aliados s visveis dificuldades de financiamento enfrentadas pelo

    governo ao longo de todo o ano de 2002, atestam, sem ambigidades, o fracasso da estratgia

    de ajuste fiscal convencional adotada a partir de 1998 no Brasil. As razes para este

    fracasso, como j observado, no podem ser debitadas gesto da poltica fiscal, mas sim

    falta de coordenao entre o esforo de ajuste fiscal, de um lado, e a poltica monetria e a

    administrao da dvida pblica, de outro.

    Diante de uma poltica prolongada de juros altos, ditada pelas presses externas sobre

    a taxa de cmbio, o esforo de gerao de supervits primrios crescentes tornou-se incuo

    como instrumento de controle da relao k, que at elevou-se no perodo (Tabela 1). Mais que

    isso, o problema foi agravado pela ineficcia dessa poltica no sentido de reduzir a taxa de

    risco atribuda aos ativos brasileiros, em geral, e dvida pblica, em particular. sabido que

    uma poltica prolongada de juros altos tende, a partir de certo tempo, a atuar de forma

    perversa, aumentando o risco percebido pelos investidores (Bresser-Pereira e Nakano, 2002),

    devido possibilidade de inadimplncia dos novos devedores e s dificuldades de

    refinanciamento por parte dos antigos. Nesse contexto, eleva-se a preferncia dos agentes por

    liquidez, mantendo a presso sobre a taxa de juros.

    Finalmente, o prprio modelo de gesto da dvida pblica adotado no perodo, baseado

    na sua indexao s variveis-foco de maior incerteza a taxa de juros e a taxa de cmbio

    atuou tambm como fator de deteriorao das condies de solvncia financeira do governo.

    A indexao de grande parte da dvida pblica taxa de juros bsica da economia (a taxa

    Selic) criou uma armadilha para o Banco Central, agravando aquela tendncia ao aumento do

    risco atribudo ao pas e ao setor pblico diante de uma poltica de juros altos. Diante do

    elevado peso da dvida indexada taxa Selic (Tabela 3), mesmo um aumento temporrio desta

    taxa pode elevar de forma significativa as despesas financeiras do governo. Este efeito pode

    ser visto, claramente, no binio 1998-99, quando, a despeito do aumento surpreendente do

    supervit primrio, de um dficit de 0,9% do PIB em 1997 para um saldo positivo de 3,2% em

    1999, o dficit nominal do governo saltou de 6,0% para 10,0% do PIB no mesmo perodo,

    puxado pelo aumento das despesas com juros reais e nominais (Tabela 2).

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    A indexao de parcela crescente da dvida pblica taxa de cmbio (Tabela 3) impe

    tambm um risco elevado de dificuldades financeiras para o governo. Em regime de

    flexibilidade cambial e sob elevado grau de abertura financeira, amplia-se a volatilidade

    potencial da conta de capital e, por conseguinte, da prpria taxa de cmbio. Alm disso,

    nessas condies, a indexao cambial da dvida torna-se um cheque em branco para o

    mercado, que pode forar uma desvalorizao cambial excessiva (frente s reais

    necessidades de divisas) com operaes especulativas, como se tem visto no mercado

    brasileiro no segundo semestre de 2002. Para evitar um agravamento ainda maior da situao

    fiscal nesse perodo, o Banco Central passou a intervir de forma sistemtica no mercado

    cambial, queimando reservas internacionais para conter a tendncia desvalorizao do

    real. Com isto, a flexibilizao cambial no Brasil perdeu boa parte de sua funo

    estabilizadora do balano de pagamentos, que, quanto conta de capital, se d justamente pela

    preservao das reservas internacionais do pas. Nessas condies, a exigncia de supervits

    comerciais para equilibrar o balano e o prprio mercado cambial torna-se maior. Como esses

    supervits so parte da transferncia lquida de recursos reais do pas ao exterior, o resultado

    macroeconmico dessa estratgia de indexao cambial da dvida pblica implica um grau de

    empobrecimento da populao local que, certamente, seria menor na ausncia desta opo.

    6. Consideraes Finais

    Como advertiu Keynes em antigo debate com B. Ohlin sobre as condies requeridas

    para o financiamento de investimentos (Keynes, 1937a e 1937b), bem como Minsky (1982)

    em seu modelo de fragilidade financeira, o financiamento de qualquer agente deficitrio, seja

    ele do setor privado ou pblico, , sempre, um problema monetrio, que depende de

    disponibilidade de liquidez, e no um problema real, dependente da distribuio do produto

    agregado entre formas alternativas de alocao. Compromissos financeiros no so pagos com

    parcelas do produto, mas sim com liquidez. Mais especificamente, a solvncia de um devedor

    determinada por seu grau de acesso a liquidez, comparado a sua demanda por recursos para

    saldar compromissos financeiros. Essa liquidez pode ser gerada por recursos prprios do

    devedor ou por recursos de terceiros SP e dD, respectivamente, no caso do governo. A

    abordagem hoje dominante, que privilegia a relao k (estoque da dvida pblica/PIB) como

    indicador de solvncia do setor pblico e a relao s (supervit primrio do governo/PIB)

    como varivel de ajuste peca por negligenciar o papel da poltica monetria e do perfil que ela

  • Jennifer Hermann IE/UFRJ

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    impe dvida pblica (em termos de prazos e custos) na definio das condies financeiras

    do governo a cada perodo.

    O supervit primrio , certamente, parte da soluo do problema, como mostra a

    expresso [10]. Mas o contexto monetrio com que se defronta o governo o fator decisivo

    para a definio de seu grau de solvncia financeira. Um mesmo nvel de supervit primrio

    pode mostrar-se suficiente ou no para cobrir as necessidades de financiamento do governo,

    dependendo da forma como gerida, a cada perodo, a poltica monetria e a prpria dvida

    pblica.

    A experincia brasileira no perodo 1998-2002 ilustra bem a situao aqui descrita. A

    anlise desse perodo sugere que o resultado da estratgia de ajuste fiscal, certamente, teria

    sido melhor em todos os sentidos para a solvncia do governo, para a relao dvida/PIB e

    para o crescimento econmico se o mix de polticas adotado tivesse sido outro, qual seja,

    uma combinao de metas fiscais e monetrias que envolvesse:

    a) nveis de juros menores que os praticados desde 1995;

    b) nveis de supervit primrio menores que os obtidos no perodo 1999-2002 estas duas

    condies teriam favorecido em alguma medida o crescimento e, indiretamente, as contas

    pblicas;

    c) um regime cambial mais flexvel que o adotado desde 1998 (e mesmo depois da

    flexibilizao), que segurou a taxa de cmbio s custas da manuteno de uma poltica

    prolongada de juros altos e da perigosa indexao da dvida pblica a estes dois

    indicadores;

    d) um modelo de gesto da dvida pblica menos criativo, que evitasse a indexao,

    especialmente a variveis to sujeitas instabilidade como as taxas de juros e cmbio,

    ainda que isto implicasse um grau de risco maior, ou mesmo eventuais perdas para os

    investidores em perodos de grande incerteza quanto aos juros e ao cmbio. No h

    qualquer razo econmica ou poltica plausvel que justifique o uso da dvida pblica

    como instrumento privilegiado (porque sem risco) de hedge para as incertezas comuns ao

    mercado financeiro, como se tem feito no Brasil nos ltimos anos.

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    Discriminao 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

    Dvida Total 29,2 30,5 33,3 34,5 43,3 49,4 49,4 53,3 58,3- Gov. Fed. e Bacen 12,6 13,2 15,9 18,8 21,5 25,7 26,8 28,9 33,4 Dv. Remunerada 9,2 10,0 13,5 15,2 17,1 21,1 22,6 24,6 29,3 Base Monetria 3,4 3,2 2,4 3,6 4,4 4,6 4,2 4,3 4,1- Estados e Municpios 9,7 10,6 11,5 13,0 14,7 16,4 16,2 18,5 18,8- Empresas Estatais 6,9 6,7 5,9 2,8 2,7 2,7 2,2 1,6 2,0

    Dvida Interna 20,8 24,9 29,4 30,2 32,5 34,4 35,5 38,4 40,4- Gov. Fed. e Bacen 6,4 9,8 14,3 16,8 21,6 22,3 23,5 24,8 25,9- Estados e Municpios 9,4 10,3 11,2 12,5 14,0 15,5 15,3 17,5 17,5- Empresas Estatais 5,0 4,9 3,9 0,9 1,3 1,2 0,9 0,4 1,1

    Dvida Externa 8,5 5,6 3,9 4,3 6,4 10,4 9,7 10,6 13,8- Gov. Fed. e Bacen 6,2 3,5 1,6 2,0 4,3 8,0 7,5 8,4 11,6- Estados e Municpios 0,3 0,3 0,4 0,5 0,7 0,9 0,9 1,0 1,3- Empresas Estatais 1,9 1,8 2,0 1,9 1,4 1,5 1,3 1,2 0,9

    Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim Mensal e Notas para Imprensa (vrios n).

    Tabela 1Dvida Lquida do Setor Pblico - % do PIB

    1994-2002 (at agosto)

    AnoNominal Opera- Prim-

    -cional rio Nom. Reais1994 26,97 -1,14 -5,21 32,18 4,071995 7,28 5,00 -0,27 7,54 5,261996 5,87 3,40 0,09 5,78 3,301997 6,04 4,25 0,87 5,16 3,381998 7,93 7,41 -0,01 7,94 7,421999 10,01 3,42 -3,24 13,24 6,662000 4,52 1,17 -3,50 8,02 4,672001 3,61 nd -3,68 7,30 nd2002 2,80 nd -4,48 7,28 nd

    Fonte: Bacen, Boletim Mensal e Notas para Imprensa (vrios n). NFSP = Necessidade de Financiamento do Setor Pblico Consolidado. Sinais negativos indicam supervit.(1) Juros nominais de 2001 e 2002 sem efeitos da desvalorizao cambialsobre o estoque total da dvida, conforme metodologia adotada pelo Bace

    Juros (1)NFSP - Saldos em % do PIB

    Tabela 2Necessidades de Financiamento e Dvida Lquida

    do Setor Pblico - 1994-2002 (at agosto)

  • Jennifer Hermann IE/UFRJ

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    Referncias Bibliogrficas

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    Discriminao 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

    DPMF no Mercado:R$ milhes 108.473 176.211 255.509 323.860 414.901 510.698 624.084 622.794% do PIB 15,9 21,8 28,5 35,0 39,7 44,8 50,3 46,3

    Composio %Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Pr-Fixada 42,7 61,0 40,9 1,7 9,2 14,8 7,8 7,8Indexada 57,3 39,0 59,1 98,3 90,8 85,2 92,2 92,2- Selic 37,8 18,6 34,8 71,0 61,1 52,2 52,8 55,8- Cmbio 5,3 9,4 15,4 20,9 24,2 22,3 28,6 24,6- ndices de Preos 5,3 1,8 0,3 0,4 2,4 5,9 7,0 9,9- Outros 9,0 9,3 8,6 6,1 3,1 4,8 3,8 1,9Fonte: Bacen, Nota para Imprensa (Fiscal), Agosto/2002.

    Tabela 3Dvida Pblica Mobiliria Federal (DPMF): R$ milhes,% do PIB e

    Composio % por Indexador - 1995-2002 (at agosto)

  • Jennifer Hermann IE/UFRJ

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