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A Macroeconomia Da Divida Publica
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Jennifer Hermann IE/UFRJ
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A Macroeconomia da Dvida Pblica:Notas sobre o Debate Terico e a Experincia Brasileira Recente (1999-2002)
Jennifer Hermann
1. Introduo
A gesto da dvida pblica no Brasil tem sido, recorrentemente, objeto de debate e
inquietao, desde o incio da dcada de 1980. O cenrio de crnico desequilbrio fiscal que
tem caracterizado as contas pblicas brasileiras desde ento engendrou um perigoso crculo
vicioso, no qual: a) as dificuldades de financiamento do governo alimentam estimativas de
elevado risco de default da dvida pblica (por parte de seus detentores ou potenciais
compradores); b) estas, por sua vez, resultam em elevado custo de rolagem da dvida
vincenda, bem como para a colocao de novos ttulos no mercado, afetando negativamente a
capacidade de financiamento do governo; c) tal deteriorao, por fim, confirma o elevado
risco estimado, realimentando todo o processo.
O rompimento desse crculo vicioso o principal desafio a ser enfrentado pelo novo
governo que se inicia em 2003 no campo fiscal, porque condio essencial para a
recuperao da prpria capacidade do governo gerir as polticas fiscal e monetria de acordo
com seus objetivos macroeconmicos, sejam eles quais forem.
A partir de fins de 1998, diante do agravamento do problema fiscal e da crise cambial
que levou o pas a um acordo de emprstimo com o FMI (Fundo Monetrio Internacional), o
governo Fernando Henrique Cardoso deu incio a um programa de ajuste fiscal ortodoxo,
em linha com o modelo recomendado pelo Fundo, cujas bases tm sido: a) o controle da
relao dvida pblica/PIB (doravante D/Y), como objetivo principal, a curto e mdio prazo;
b) a gerao de supervits primrios em nveis adequados (de acordo com hipteses de
evoluo de Y e dos encargos financeiros de D), como objetivo intermedirio, isto , como
meio de controle da relao D/Y.
A julgar pela evoluo da relao D/Y no perodo 1999-2002, essa estratgia de ajuste
fiscal tem sido, claramente, mal sucedida at o momento. Embora o setor pblico consolidado
tenha cumprido a sua parte, gerando supervits primrios significativos e crescentes desde
1999, a relao D/Y elevou-se continuamente desde ento (Tabela 1). O que teria sado
errado? A grande maioria dos analistas, mesmo reconhecendo a importncia qualitativa e
quantitativa do ajuste fiscal implementado at agora, tem alegado que os supervits no
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teriam sido suficientemente elevados para permitir o controle de D/Y no cenrio
macroeconmico instvel do perodo (1999-2002), marcado pela transio do mercado
cambial brasileiro para o regime de flexibilidade e por choques externos (a crise financeira na
Argentina e a recesso nos EUA e mais recentemente, a ameaa de guerra deste pas com o
Iraque), que converteram a flexibilidade em volatilidade. Com base nessa interpretao tem-se
sugerido o aumento da meta de supervit primrio para, no mnimo, 5% do PIB nos prximos
anos.
Como anlise aritmtica e ex post, este argumento , obviamente, irrefutvel: basta
comparar os supervits primrios obtidos com as despesas relativas a juros nominais sobre a
dvida pblica para constatar o fato (Tabela 2). Mas, tal como um copo com lquido at a
metade pode ser, corretamente, descrito como um copo meio cheio ou meio vazio, a
comparao numrica entre os supervits e os juros nominais comporta tambm, do ponto de
vista lgico e aritmtico, uma interpretao oposta atualmente dominante: no seriam os
supervits que teriam se mostrado pequenos frente aos juros nominais, mas estes que se
mostraram muito grandes frente aos supervits obtidos. Vale lembrar, quanto a este aspecto,
que as metas iniciais de supervit primrio estabelecidas pelo governo, no mbito do acordo
com o FMI 2,6% do PIB em 1999 e 2,8% em 2000-01 foram, por diversas vezes, revistas
para maior (sendo de 3,88% do PIB a meta para 2002) e, ainda assim, foram sempre
cumpridas com folga. Diante disso, o argumento da insuficincia mostra-se parcial e
equivocado, no enxergando que a suficincia (ou no) de alguma coisa sempre uma
grandeza relativa e que, no caso em questo, a varivel rebelde tem sido o montante das
despesas financeiras do governo, que insiste em fugir s previses e aos clculos que
orientam a fixao de metas para o supervit primrio, bem como suas revises peridicas.
O bom desempenho das contas pblicas primrias sugere que o erro no est na
gesto fiscal propriamente dita, isto , no manejo do oramento pblico, mas sim no modelo
de ajuste ou na gesto da prpria dvida. Este artigo visa subsidiar o debate sobre esse tema,
com uma breve discusso sobre o modelo de gesto da poltica fiscal e da dvida pblica
adotado no Brasil no perodo 1998-2002. Este se inspira, em grande parte, no chamado
modelo da equivalncia ricardiana, de filiao novo-clssica, que condena a poltica de
dficit pblico, alegando ser este, bem como a dvida pblica que o financia, um fator de
ineficincia alocativa.
Visando contextualizar histrica e teoricamente a discusso, as duas primeiras sees
do artigo analisam, sumariamente, a evoluo da dvida pblica como instrumento de poltica
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econmica (seo 2) e o estado das artes do debate terico sobre o papel macroeconmico
deste instrumento, hoje polarizado pelos enfoques keynesiano e ricardiano (seo 3). A
seo 4 faz uma anlise crtica do modelo de gesto fiscal predominante a partir dos anos
1990. Este, que define uma fase de transio para o modelo ricardiano, o que vem sendo
seguido no Brasil no perodo 1999-2002. A seo 5 discute a experincia brasileira nesse
perodo. A seo 6 conclui o artigo com algumas consideraes finais sobre o tema.
2. A Dvida Pblica como Instrumento de Poltica Econmica
A dvida pblica uma instituio da vida econmica quase to antiga quanto o
prprio Estado, integrando o conjunto de instrumentos gradativamente criados para financiar
suas atividades. A emisso de moeda (ou a cunhagem de metais, nos sistemas de moeda-
mercadoria) , historicamente, a primeira forma de dvida pblica conhecida. A chamada
receita de senhoriagem da decorrente representa um dbito do Estado para com a
sociedade, porque, ao contrrio da receita de impostos, lhe permite apropriar-se de uma
parcela do produto gerado pelo esforo privado, sem qualquer contra-partida na forma de
prestao de servios. Trata-se de uma receita originada no simples fato do Estado ser, por
excelncia, o emissor da moeda oficial do pas.
Gradativamente, o endividamento formal do Estado junto a bancos privados, por meio
de contratos de emprstimo ou da emisso de dvida mobiliria (em ttulos), foi se tornando
uma prtica comum nos pases capitalistas. Essa forma de financiamento desenvolveu-se
especialmente a partir do sculo XVIII, medida que a prpria atividade bancria se expandia
rapidamente (Goodhart, 1987; Kregel, 1998).1
At meados dos anos 1940, o endividamento junto ao setor privado constitua uma
fonte excepcional de financiamento do Estado, que visava, basicamente, atender a despesas
governamentais extraordinrias (em tempos de guerra, por exemplo) e, portanto, imprevistas e
temporrias. Aps o trmino da segunda guerra mundial, a dvida pblica tornou-se uma
instituio regular das economias capitalistas, como parte integrante dos instrumentos de
poltica econmica utilizados desde ento.
1 Em alguns pases europeus, os bancos privados que atuavam mais freqentemente como financiadores doEstado, adquirindo por isso o direito exclusividade da emisso de notas bancrias, foram os predecessores dosbancos centrais, constitudos ao longo do sculo XIX (Goodhart, 1987).
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A expanso e importncia econmica da dvida pblica no ps-guerra, tanto nos pases
mais desenvolvidos quanto naqueles em desenvolvimento, refletiu, de um lado, o aumento
extraordinrio de gastos pblicos associado ao esforo de recuperao econmica e fsica (das
plantas produtivas e da infra-estrutura) dos pases diretamente envolvidos no conflito. De
outro, explica-se como contrapartida do modelo de poltica econmica que se tornou
hegemnico poca, inspirado na teoria macroeconmica formulada por J. M. Keynes em sua
obra mais conhecida A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (Keynes, 1985).
Embora esta tenha tido grande repercusso no meio acadmico desde sua publicao, em
1936, somente aps a segunda guerra mundial ela passa a influenciar, decisivamente, a
atuao do Estado na economia.
A obra de Keynes e as experincias concretas de poltica econmica keynesiana no
ps-guerra inauguraram um debate sobre poltica fiscal e dvida pblica que at, hoje, divide
opinies. No plano terico, a questo polarizada pelos enfoques keynesiano e novo-clssico.
O primeiro aponta o dficit fiscal planejado e, portanto, a dvida pblica como instrumentos
capazes de contribuir para o crescimento econmico. O segundo, sintetizado no modelo da
equivalncia ricardiana, surge nos anos 1970 e aponta a dvida pblica como fator de
ineficincia alocativa, capaz de reduzir a capacidade de crescimento da economia.
Recomenda-se, ento, a busca de permanente equilbrio oramentrio pelo governo. Os
principais argumentos que sustentam essas diferentes abordagens so sumariados a seguir.
3. Dois Enfoques Paradigmticos sobre a Dvida Pblica
3.1. O enfoque keynesiano
O ponto de partida da teoria macroeconmica de Keynes o princpio da demanda
efetiva, segundo o qual so as decises de gasto, em especial de gastos privados em
investimentos, que determinam o ritmo da atividade econmica. Reconhecendo a natureza
inerentemente instvel das expectativas de longo prazo que orientam essas decises de
investimento, Keynes concluiu, em primeiro lugar, que o nvel corrente de produo e
emprego em economias de mercado era, tambm inerentemente, sujeito a oscilaes, que
caracterizam perodos de super-emprego e, mais freqentemente, de desemprego involuntrio.
Em segundo lugar, observou que, quando as expectativas se tornavam desfavorveis ao
investimento, gerando desemprego, no havia qualquer tendncia endgena sua
recuperao. Ao contrrio, como o gasto determina a renda agregada, a retrao dos
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investimentos tende a penalizar a renda das prprias empresas, realimentando o pessimismo
das expectativas. Essa tendncia era ainda reforada pelo efeito multiplicador da queda dos
investimentos sobre a renda agregada, atravs da retrao induzida no consumo.
Com base nessa anlise, a teoria keynesiana atribui ao Estado um papel anticclico, de
carter permanente, nas economias de mercado. O gasto e, principalmente, o dficit do
governo so identificados como instrumentos anticclicos potentes que, aliados a uma poltica
monetria adequada, de juros baixos, so capazes de reverter situaes de desemprego,
comuns s economias de mercado. A administrao da dvida pblica , portanto, parte
integrante deste modelo.
Mais especificamente, nos perodos de recesso da atividade econmica, cabe ao
governo ampliar seus gastos em investimento, de modo a expandir a demanda agregada no
curto prazo e, no mdio prazo, contribuir para a melhora das expectativas de lucro das
empresas, motivando, assim, a recuperao dos investimentos privados (Carvalho, 1995).
Neste modelo, portanto, as recesses implicam a ocorrncia ou o aumento de dficits fiscais
atravs de dois canais distintos: endogenamente, devido queda da arrecadao de impostos
sobre a atividade econmica, e, exogenamente, devido ao emprego de polticas fiscais
anticclicas, apoiadas em aumento dos gastos pblicos. Os dficits, por sua vez, tm como
contrapartida a expanso da dvida pblica, seja sob a forma de emisso de moeda, de dvida
contratual (bancria) ou de dvida mobiliria.
Cabe, ento, autoridade monetria administrar o mix de emisso de moeda e de
ttulos de diferentes maturidades, de modo a manter o mais baixo possvel o custo do
financiamento do governo, sem prejuzo da estabilidade monetria da economia. A
coordenao entre as polticas fiscal e monetria torna-se fundamental, j que h um bvio
trade off envolvido neste processo. Admitindo-se uma yield curve (curva de rendimentos)
normal, ascendente taxas de juros crescentes em relao ao prazo dos ttulos o esquema
ideal de financiamento do governo seria, em princpio, baseado na emisso de moeda ou de
ttulos de curto prazo. Isto, no entanto, envolve o risco de inflao, no s pela monetizao
direta do dficit, mas pelas presses por monetizao que uma dvida concentrada no curto
prazo implica. O mix ideal exige, assim, uma atuao contnua do banco central no
mercado, visando adequar a estrutura de juros e a composio da dvida s preferncias dos
investidores em termos de ttulos de curto e de longo prazo (Okun, 1967). Para tanto,
necessria a criao de condies institucionais adequadas no mercado financeiro, ou seja, a
organizao de um mercado de dvida pblica, capaz de absorver os ttulos emitidos pelo
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governo, bem como as operaes de troca de ttulos curtos por longos pelo banco central.
Essa condio explica a tendncia mundial padronizao da dvida pblica sob a forma de
dvida mobiliria, isto , em ttulos renegociveis em mercados secundrios.
Por fim, admite-se que a solvncia do governo e, portanto, a garantia de pagamento da
dvida seriam preservadas, num horizonte de mdio prazo, pela prpria recuperao da
atividade econmica, que permite ampliar a receita tributria e, assim, sustentar os encargos
da dvida assumida no perodo recessivo.
O receiturio keynesiano de poltica econmica foi amplamente aplicado, entre pases
desenvolvidos e em desenvolvimento, do ps-guerra at fins dos anos 1960 ou at a dcada
de 1970, em alguns casos, como no Brasil. Tal perodo caracterizou-se, na maior parte desses
pases, por elevadas taxas de crescimento econmico e baixas taxas de inflao, o que parecia
atestar o acerto do modelo.
Na dcada de 1970, o cenrio econmico mundial de instabilidade, caracterizado pela
presena simultnea de inflao e desemprego, desafiou a hegemonia keynesiana, abrindo
espao para o desenvolvimento de enfoques tericos crticos, de inspirao neoclssica. No
plano da poltica fiscal, a mais difundida crtica abordagem keynesiana o modelo da
equivalncia ricardiana, proposto por R. Barro (1974), em linha com a escola novo-clssica.
Ancorado no modelo de expectativas racionais, este enfoque aponta o aumento do estoque da
dvida pblica como um fator de ineficincia alocativa e como uma das razes para a
ineficcia anticclica da poltica fiscal baseada na gerao de dficits oramentrios. Este
modelo descrito a seguir.
3.2. O modelo da equivalncia ricardiana
O argumento central do enfoque da equivalncia ricardiana o de que o financiamento
do gasto pblico com a emisso de dvida tem o mesmo efeito sobre a atividade econmica
que seu financiamento atravs de impostos. A equivalncia macroeconmica entre a dvida e
os impostos justificada com base em duas hipteses bsicas de comportamento dos agentes
privados:
a) Vale o modelo de expectativas racionais (Muth, 1961; Lucas e Sargent, 1978). Neste,
admite-se que os agentes formulam suas expectativas com relao a variveis econmicas
utilizando todas as informaes disponveis e interpretando essas informaes de acordo
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com modelos tericos, em geral, corretos o erro sistemtico de interpretao visto
como um sinal de irracionalidade.2
b) Vale o modelo do ciclo da vida (Modigliani e Brumberg, 1954), segundo o qual os
agentes definem a distribuio de sua renda entre consumo (C) e poupana (S) visando
manter um padro estvel de consumo ao longo da vida, apesar das variaes correntes da
renda disponvel.
Diante da informao sobre a ocorrncia de dficits governamentais e, portanto, do
aumento da dvida pblica, agentes racionais antecipariam a necessidade de aumento futuro
nos impostos, de modo a capacitar o governo a cumprir os encargos financeiros da dvida.
Admite-se, implicitamente, que, em suas decises econmicas, os contribuintes levam em
conta as condies de solvncia financeira do setor pblico, bem como seus efeitos sobre a
renda disponvel. Espera-se, assim que o aumento da renda disponvel e da capacidade de
consumo no presente seja compensado por uma reduo futura. Nessas condies, agentes
racionais tenderiam a reter o aumento atual da renda sob a forma de poupana, que financiar
o aumento futuro nas despesas com impostos: dS = dG (dG = variao nos gastos pblicos.
No haveria, assim, qualquer efeito multiplicador dos gastos governamentais sobre o
consumo (dC = 0), ao contrrio do que previa o modelo keynesiano, restando apenas o efeito
expansivo direto destes gastos sobre a renda agregada (Y): dY = dG. Ou seja, o efeito
macroeconmico seria exatamente o mesmo de uma poltica fiscal de oramento equilibrado,
em que dG = dT (dT = variao na arrecadao de impostos), cujo multiplicador igual a 1:
dY = dG + dC, sendo dC = c.dYD
(c = propenso marginal a consumir; YD = renda disponvel).
dYD = dY dT, sendo, de imediato, dY = dG
Se dT = dG, ento: dYD = 0 dC = 0 e dY = dG.O dficit pblico no traria, portanto, qualquer benefcio em termos de crescimento
econmico, tendo, ao contrrio, um impacto negativo sobre o bem estar da sociedade,
representado pelo nus da dvida a ser paga pelas geraes futuras. Da a recomendao de
uma poltica fiscal de permanente equilbrio oramentrio.
2 Essa corresponde chamada verso forte do modelo de expectativas racionais, na qual admite-se que a nicafonte de erro possvel, por parte de agentes racionais, a insuficincia de informao sobre as aes de polticaeconmica um problema exgeno, causado pelo governo.
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4. Poltica Fiscal e Dvida Pblica Ps-Anos 1990: uma anlise crtica
No que tange s experincias concretas de poltica fiscal e gesto da dvida pblica,
pode-se identificar, grosso modo, trs perodos distintos, de acordo com o modelo terico
dominante:
a) Do ps-guerra at fins dos anos 1970: neste perodo, de dominncia keynesiana, o
objetivo central da gesto da dvida pblica era o de obter uma boa administrao da
dvida e no sua eliminao de modo a manter baixo o custo de financiamento do
governo.
b) Dcada de 1980: caracteriza-se, em diversos pases desenvolvidos e em desenvolvimento,
por um esforo de ajuste fiscal de carter conjuntural, visando reduo do dficit
oramentrio no curto prazo, por meio de cortes nos gastos pblicos e/ou de aumentos nas
alquotas de impostos. Em termos de dvida pblica, isto implica a reduo de seu ritmo
de crescimento, em geral medido em relao ao PIB (ou seja, pela relao D/Y).
c) Da dcada de 1990 em diante: perodo de clara dominncia do enfoque novo-clssico,
marcado pela busca (nem sempre bem sucedida) de oramentos fiscais equilibrados ex
ante, visando eliminao do dficit pblico de forma estrutural e, portanto,
permanente. Quanto dvida pblica, o objetivo passa a ser, inicialmente, o de
estabilizao da relao D/Y (ou seja, crescimento nulo) e, posteriormente, dependendo
do ponto de partida, o de gradual reduo.
A transio para o modelo da equivalncia ricardiana tem se dado de forma lenta
quanto aos seus resultados em diversos pases3 e, em especial, nos pases em
desenvolvimento, como o Brasil, egressos de longo perodo de dficits fiscais. Nestes casos, o
ajuste fiscal tem envolvido a implementao de programas de reforma patrimonial e
institucional do Estado (privatizao e definio de regras fixas e padronizadas de gesto
fiscal, por exemplo). Enquanto o ajuste no se completa, isto , no se materializa em efetivo
equilbrio oramentrio (no conceito nominal, mais abrangente), a gesto fiscal de curto prazo
tem se pautado por metas de supervit primrio, que visam, inicialmente, ao controle da
relao D/Y e posteriormente sua reduo e no mais aos tradicionais objetivos
macroeconmicos da poltica fiscal, definidos em termos de taxas de crescimento do PIB e de
3 Na zona do euro, por exemplo, a transio para o modelo de equilbrio fiscal ainda incompleta, embora tenhase iniciado em 1992, com o Tratado de Maastrich que definiu o programa de reformas preparatrias para aadoo da moeda comum.
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taxas de inflao. Esses objetivos, supe-se, seriam alcanados indiretamente, medida que o
controle da relao D/Y sinalize ao mercado os detentores ou potenciais compradores de
ttulos pblicos a garantia de solvncia do setor pblico. Isto permitiria economia operar
com taxas de juros mais baixas, favorecendo o crescimento do produto agregado.
Em suma, no atual modelo de gesto fiscal h uma inverso da causalidade entre
dvida pblica e taxa de juros proposta no modelo keynesiano: neste, a poltica de juros
condiciona a evoluo do estoque (D) e a composio da dvida pblica, enquanto no modelo
atual, D torna-se a varivel exgena cujo comportamento, ditado pelos nveis de supervit
primrio, condiciona a taxa de juros (r).
Embora a solvncia do setor pblico seja, inegavelmente, uma condio essencial ao
bom funcionamento do mercado de ativos financeiros e, por conseguinte, prpria
sustentao da capacidade de crescimento da economia, o atual modelo de gesto fiscal no
parece ser o mais adequado para atingir estes objetivos. O modelo padece de dois erros de
diagnstico do problema:
a) identifica o supervit primrio do governo (em relao ao PIB, s = SP/Y) como um
potente instrumento de controle da relao D/Y, atravs do controle de D, negligenciando
seus efeitos sobre Y, bem como os efeitos da poltica de juros sobre D equvoco
decorrente da mencionada inverso de causalidade entre D e r;
b) identifica o estoque da dvida (em relao ao PIB) como indicador do grau de solvncia
do governo, quando, em verdade, o que mede esta condio, para o governo ou
qualquer outro devedor, a relao entre seus fluxos de receita e despesa financeira, que
no necessariamente acompanha a relao D/Y.
Essas questes so comentadas, separadamente, a seguir.
4.1. O supervit primrio como instrumento de ajuste da dvida pblica
A restrio oramentria do governo define-se por:
[1] G = T + NB , onde:
T = receita de impostos: T = t.Y, onde t = carga tributria mdia da economia;
NB = emisso de novos ttulos pelo governo.
[2] G = GP + GF , onde:
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GP = gastos primrios (no-financeiros) do governo (despesas de consumo e investimento);
GF = despesas financeiras do governo:
[3] GF = A + J, onde:
A = amortizaes da dvida pblica em ttulos (B): A = a.B, 0 < a < 1;
J = despesas com juros sobre B: J = r.B, onde r = taxa bsica de juros do mercado, utilizada
como proxy da taxa mdia de juros incidente sobre B. Portanto:
[4] GF = (a + r).B
[5] NB = NBm + NBbc, onde:
NBm = ttulos adquiridos pelo mercado (setor privado);
NBbc = ttulos adquiridos pelo banco central: NBbc = dH = variao da base monetria.
Dessas definies, tem-se:
GP + A + J = T + NBm + dH (GP T) + J = (NBm A) + dH.(GP T) + J = dficit nominal do governo (DN);
(GP T) = dficit primrio do governo: DP = SP;
(NBm A) = dB = variao lquida no estoque da dvida pblica em ttulos.
Ento:
[6] DN = J SP = dB + dH = dD = variao lquida na dvida total do governo.
Estabilizar a relao D/Y em um nvel k qualquer (k = D0/Y0) requer dD/D0 = dY/Y0.
De acordo com as condies acima:
dD/D0 = DN/D0 = (J SP)/(kY0) = (1/k).(j s), onde:
j = J/Y0 e s = SP/Y0.
Fazendo-se dY/Y0 = g (taxa de crescimento nominal do PIB), a condio de
estabilidade de k se cumpre quando:
[7] (1/k).(j s) = g k = (j s)/gNa expresso [7], de acordo com o enfoque convencional, tem-se: k = constante que
define o objetivo principal da gesto da dvida; j e g so variveis exgenas; s a varivel de
ajuste define o objetivo intermedirio da poltica. Para que k seja mantido constante, s deve
ser elevado para compensar, proporcionalmente, qualquer aumento em j ou reduo em g.
Sendo j = r.(B/Y), aumentos em j podem ocorrer em funo de aumentos em r ou em B, ou de
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queda em Y. Sendo B a dvida j em mercado, sua magnitude reflete decises passadas,
relativas s polticas fiscal e monetria. A primeira determina o dficit DN, da expresso [6],
a ser financiado por dB ou dH. A segunda determina a distribuio de DN entre dB e dH e,
atravs desta, determina o custo r, que ser maior, quanto maior for a parcela dB leia-se,
quanto mais restritiva for a poltica monetria no perodo o que torna B tambm maior, no
futuro prximo. Assim, na fase de ajuste fiscal, em que DN ainda positivo e deve ser
financiado no mercado monetrio, a magnitude necessria de s para estabilizar a relao k
depende da forma como vem sendo gerida a poltica monetria: s ser tanto maior, quanto
mais restritiva for esta poltica. Quanto Y e g, a taxa s requerida ser maior, quanto mais
recessivo for o ambiente macroeconmico.
Em suma, o modelo requer uma atuao pr-cclica da poltica fiscal, que aprofunda
as tendncias recessivas ou expansivas da economia. Alm disto ser a anttese do papel
estabilizador que, normalmente, se espera da atuao do governo na economia, sua eficcia
pode ser nula em relao ao objetivo que persegue, especialmente em ambientes econmicos
recessivos: lembrando que s depende da arrecadao T; que T acompanha os movimentos em
Y, j que T = tY; que, nas fases recessivas, a nica forma de aumentar T elevando t; e que Y
responde negativamente a aumentos em s, a medida pode tornar-se rapidamente incua para
reduzir D/Y, j que a reduo inicial em D tende a ser rapidamente acompanhada de reduo
em Y e, portanto, em s:
[8] s = SP/Y = (T GP)/Y = t GP/Y
O problema reside no fato de que, em [7], Y no independente de t e GP: tanto
aumentos em t, quanto cortes em GP implicam, ceteris paribus, reduo em Y, eliminando o
efeito inicial sobre s. O mesmo ocorre em relao a k, na expresso [6]: g no independente
de s; o aumento inicial em s pode implicar queda em g, anulando o esforo inicial de reduo
em k. Alm disso, se a poltica monetria no estiver coordenada com o esforo de ajuste
fiscal, este pode tornar-se uma luta inglria: como j = r.(B/Y), o aumento em s ser incuo
diante de uma poltica monetria restritiva que eleve r e/ou B.
Essa anlise demonstra que o caminho virtuoso para o controle ou mesmo a reduo
da relao k no o aumento ex ante do supervit primrio do governo, mas sim seu
aumento ex post, promovido pelo crescimento econmico. Isto, por sua vez, requer uma
poltica de juros baixos ou, pelo menos, descendentes, que tambm contribui, diretamente,
para o controle de k.
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4.2. A relao Dvida/PIB como indicador de solvncia do governo
Como demonstrou Minsky (1982) em seu conhecido modelo de fragilidade financeira,
inspirado na anlise de Keynes sobre as condies de financiamento de investimentos
(Keynes, 1937a e 1937b), a solvncia financeira de qualquer devedor depende de duas
condies bsicas: a) da relao entre o fluxo de despesas financeiras assumidas e seu fluxo
de receita lquida (aps os gastos no financeiros); b) de sua capacidade de refinanciamento
no mercado, isto , de obteno de novos crditos, em complemento ou em substituio
receita lquida, que lhe permitam manter os pagamentos devidos. Em outros termos, em
economias com sistemas de crdito bem organizados e desenvolvidos, o equilbrio financeiro
de um devedor no se define por sua capacidade de liquidar totalmente suas dvidas, mas sim
de honrar, sistematicamente, os compromissos financeiros assumidos, dentro dos prazos
previstos. Isto pode ser alcanado com recursos prprios ou de terceiros. Ou seja, a condio
requerida :
[9] GF (T GP) + dD A + J SP + dB + dH[10] (a + r).B SP + dB + dH
interessante notar que, na expresso [10], apenas um dos condicionantes da
solvncia do setor pblico depende da gesto da poltica fiscal: o termo SP. Todos os demais
so determinados pela poltica monetria, em geral (determinando dB, dH e r), e pela forma
de administrao da dvida pblica, em particular (que afeta r e a). Mesmo numa situao
limite, de total incapacidade de refinanciamento do governo junto ao mercado privado ou ao
banco central, que torne dB + dH = 0, a influncia da poltica monetria continua sendo
crucial. Neste caso, a condio de solvncia fica:
[11] (a + r).B SP ,ou, medido em proporo ao PIB,[12] (a + r).b s , onde b = B/Y.
Em [12], os termos a, r e b so determinados pela poltica monetria e apenas s pela
poltica fiscal. Tal como observado anteriormente, isto demonstra que a coordenao entre a
poltica monetria e a fiscal condio necessria boa administrao da dvida pblica: na
presena de juros ascendentes, por exemplo, o esforo de aumento em s pode tornar-se
incuo.
Essa abordagem de fluxos para a solvncia do governo traz vantagens analticas em
relao de estoque, que enfatiza a relao D/Y:
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a) mais realista, avaliando a questo a partir das variveis que realmente definem a
capacidade de pagamento da dvida pblica a cada perodo entre estas, vale notar, o
estoque total D substitudo pela parcela B, de dvida remunerada;
b) explicita mais claramente a influncia da poltica monetria neste processo;
c) permite estabelecer uma condio de solvncia sem ambigidades, porque no requer a
escolha arbitrria de um valor timo para as variveis envolvidas como o caso no
enfoque da relao D/Y: todas as variveis de [12] so passveis de quantificao,
permitindo uma avaliao tcnica da situao financeira do governo;
d) explicita uma varivel crucial, que omitida na relao D/Y: trata-se do prazo mdio da
dvida, inversamente relacionado ao coeficiente de amortizao a.
e) essa varivel traz (de volta) tona a importncia da administrao cotidiana da dvida,
enfatizada no modelo keynesiano, cuja funo administrar o trade off entre alongamento
do prazo, que reduz o coeficiente a, e aumento do custo da dvida, medido por r.
Levando-se em conta esse aspecto, conclui-se que a relao D/Y informa muito pouco
sobre a real capacidade de pagamento do governo, j que, dependo do mix de ttulos de
diferentes prazos que compem o estoque B, um mesmo estoque total D pode representar
graus distintos de solvncia do governo.
5. Notas sobre a Gesto Fiscal e a Dvida Pblica no Brasil: 1998-2002
A gesto fiscal no Brasil, grosso modo, seguiu aquela tendncia internacional rumo ao
modelo ricardiano, embora com algum atraso com relao terceira fase, de ajuste
estrutural. O perodo de ajuste conjuntural no Brasil teve incio em 1992, na gesto do
Ministro Marclio Marques Moreira frente do ento Ministrio da Economia, e se estendeu
at fins de 1993.
Em janeiro de 1994, j como preparao para a implementao do Plano Real, foi
criado o Fundo Social de Emergncia (FSE).4 O FSE foi formado, entre outras fontes de
menor importncia, pela reteno de 20% do oramento federal previsto em diversas rubricas
componentes da chamada despesa vinculada gastos constitucionalmente vinculados
receita da Unio em propores pr-estabelecidas. O objetivo dessa medida era dar incio a
uma ampla reforma estrutural do setor pblico, que passaria, no curto prazo, pelo
4 Para uma discusso sobre o papel do ajuste fiscal no Plano Real vide Castro (1999) e Carvalho (2001).
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desengessamento de parte do oramento da Unio e, no longo prazo, pela reforma
patrimonial (privatizao), administrativa (interna ao setor pblico), previdenciria (incluindo
a previdncia social, do funcionalismo pblico e a previdncia complementar) e tributria.
Devido lentido nas negociaes dessas reformas entre o executivo e o Congresso
todas ainda em curso, exceo da privatizao, que foi praticamente completada na esfera
federal o FSE, que tinha prazo de vigncia inicialmente previsto apenas para o binio 1994-
95, foi prorrogado por diversas vezes. Com algumas modificaes pontuais, o Fundo
permanece em vigor at hoje (fins de 2002), sob o nome de Fundo de Estabilizao Fiscal
(FEF) a partir de outubro de 1998.
Embora sem sucesso prtico at 1999, o fato que a poltica fiscal do Plano Real foi,
desde o incio, desenhada de modo a promover um ajuste estrutural das contas pblicas,
visando gerao de supervits primrios que permitissem a gradual eliminao do dficit
nominal do setor pblico consolidado. A partir de fins de 1998, diante do agravamento da
situao fiscal, expresso no visvel aumento do dficit pblico em 1997 nos conceitos
nominal, operacional e primrio (Tabela 2); de seus efeitos desfavorveis sobre as
expectativas dos investidores (domsticos e estrangeiros) com relao estabilidade
macroeconmica do pas; e das negociaes com o FMI, que resultaram na assinatura de um
acordo de emprstimo em dezembro do mesmo ano, o governo assumiu uma postura firme no
sentido de avanar no ajuste fiscal primrio, lanando mo de medidas emergenciais e
estruturais entre estas, vale ressaltar a edio da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada
pelo Congresso em maio de 2000.5 Esse conjunto de medidas e, como observa Giambiagi
(2002), a mudana de atitude do governo na questo fiscal, surtiram efeito rapidamente sobre
o saldo primrio do governo. Este passou de um dficit de 0,9% do PIB em 1997 para um
supervit de 3,2% do PIB j em 1999 (Tabela 2), apesar da estagnao econmica do perodo
(com crescimento mdio anual de 0,5% no binio 1998-99).
No perodo 1999-2002, os supervits primrios foram mantidos, inclusive em nveis
crescentes, a ponto de permitir a reduo do dficit nominal do governo (Tabela 2). A
despeito disso, a relao dvida/PIB (no conceito de dvida lquida) cresceu 15 pontos
percentuais ao longo do perodo, passando de 43,3% do PIB em 1998 para 58,3% em agosto
de 2002 (Tabela 1). Esse aumento, vale notar, foi quase que uniformemente distribudo entre a
5 Para um resumo das medidas de ajuste fiscal no Brasil aps 1998 vide Hermann (2002: Cap. 8, Quadros 8.10 a8.12). Para uma anlise detalhada da poltica fiscal nos dois mandatos do Presidente Fernando HenriqueCardoso, vide Giambiagi (2002). Para uma anlise crtica do mesmo tema, vide Carvalho (2001).
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dvida interna (mais 7,6 pontos percentuais) e externa (mais 7,4 pontos) e deve-se
exclusivamente parcela remunerada da dvida, j que a participao da base monetria na
dvida total at se reduziu no perodo. Em suma, a dvida cresceu em funo dos elevados
custos de rolagem da prpria dvida, e no de desequilbrios fiscais.
Esses dados, aliados s visveis dificuldades de financiamento enfrentadas pelo
governo ao longo de todo o ano de 2002, atestam, sem ambigidades, o fracasso da estratgia
de ajuste fiscal convencional adotada a partir de 1998 no Brasil. As razes para este
fracasso, como j observado, no podem ser debitadas gesto da poltica fiscal, mas sim
falta de coordenao entre o esforo de ajuste fiscal, de um lado, e a poltica monetria e a
administrao da dvida pblica, de outro.
Diante de uma poltica prolongada de juros altos, ditada pelas presses externas sobre
a taxa de cmbio, o esforo de gerao de supervits primrios crescentes tornou-se incuo
como instrumento de controle da relao k, que at elevou-se no perodo (Tabela 1). Mais que
isso, o problema foi agravado pela ineficcia dessa poltica no sentido de reduzir a taxa de
risco atribuda aos ativos brasileiros, em geral, e dvida pblica, em particular. sabido que
uma poltica prolongada de juros altos tende, a partir de certo tempo, a atuar de forma
perversa, aumentando o risco percebido pelos investidores (Bresser-Pereira e Nakano, 2002),
devido possibilidade de inadimplncia dos novos devedores e s dificuldades de
refinanciamento por parte dos antigos. Nesse contexto, eleva-se a preferncia dos agentes por
liquidez, mantendo a presso sobre a taxa de juros.
Finalmente, o prprio modelo de gesto da dvida pblica adotado no perodo, baseado
na sua indexao s variveis-foco de maior incerteza a taxa de juros e a taxa de cmbio
atuou tambm como fator de deteriorao das condies de solvncia financeira do governo.
A indexao de grande parte da dvida pblica taxa de juros bsica da economia (a taxa
Selic) criou uma armadilha para o Banco Central, agravando aquela tendncia ao aumento do
risco atribudo ao pas e ao setor pblico diante de uma poltica de juros altos. Diante do
elevado peso da dvida indexada taxa Selic (Tabela 3), mesmo um aumento temporrio desta
taxa pode elevar de forma significativa as despesas financeiras do governo. Este efeito pode
ser visto, claramente, no binio 1998-99, quando, a despeito do aumento surpreendente do
supervit primrio, de um dficit de 0,9% do PIB em 1997 para um saldo positivo de 3,2% em
1999, o dficit nominal do governo saltou de 6,0% para 10,0% do PIB no mesmo perodo,
puxado pelo aumento das despesas com juros reais e nominais (Tabela 2).
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A indexao de parcela crescente da dvida pblica taxa de cmbio (Tabela 3) impe
tambm um risco elevado de dificuldades financeiras para o governo. Em regime de
flexibilidade cambial e sob elevado grau de abertura financeira, amplia-se a volatilidade
potencial da conta de capital e, por conseguinte, da prpria taxa de cmbio. Alm disso,
nessas condies, a indexao cambial da dvida torna-se um cheque em branco para o
mercado, que pode forar uma desvalorizao cambial excessiva (frente s reais
necessidades de divisas) com operaes especulativas, como se tem visto no mercado
brasileiro no segundo semestre de 2002. Para evitar um agravamento ainda maior da situao
fiscal nesse perodo, o Banco Central passou a intervir de forma sistemtica no mercado
cambial, queimando reservas internacionais para conter a tendncia desvalorizao do
real. Com isto, a flexibilizao cambial no Brasil perdeu boa parte de sua funo
estabilizadora do balano de pagamentos, que, quanto conta de capital, se d justamente pela
preservao das reservas internacionais do pas. Nessas condies, a exigncia de supervits
comerciais para equilibrar o balano e o prprio mercado cambial torna-se maior. Como esses
supervits so parte da transferncia lquida de recursos reais do pas ao exterior, o resultado
macroeconmico dessa estratgia de indexao cambial da dvida pblica implica um grau de
empobrecimento da populao local que, certamente, seria menor na ausncia desta opo.
6. Consideraes Finais
Como advertiu Keynes em antigo debate com B. Ohlin sobre as condies requeridas
para o financiamento de investimentos (Keynes, 1937a e 1937b), bem como Minsky (1982)
em seu modelo de fragilidade financeira, o financiamento de qualquer agente deficitrio, seja
ele do setor privado ou pblico, , sempre, um problema monetrio, que depende de
disponibilidade de liquidez, e no um problema real, dependente da distribuio do produto
agregado entre formas alternativas de alocao. Compromissos financeiros no so pagos com
parcelas do produto, mas sim com liquidez. Mais especificamente, a solvncia de um devedor
determinada por seu grau de acesso a liquidez, comparado a sua demanda por recursos para
saldar compromissos financeiros. Essa liquidez pode ser gerada por recursos prprios do
devedor ou por recursos de terceiros SP e dD, respectivamente, no caso do governo. A
abordagem hoje dominante, que privilegia a relao k (estoque da dvida pblica/PIB) como
indicador de solvncia do setor pblico e a relao s (supervit primrio do governo/PIB)
como varivel de ajuste peca por negligenciar o papel da poltica monetria e do perfil que ela
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impe dvida pblica (em termos de prazos e custos) na definio das condies financeiras
do governo a cada perodo.
O supervit primrio , certamente, parte da soluo do problema, como mostra a
expresso [10]. Mas o contexto monetrio com que se defronta o governo o fator decisivo
para a definio de seu grau de solvncia financeira. Um mesmo nvel de supervit primrio
pode mostrar-se suficiente ou no para cobrir as necessidades de financiamento do governo,
dependendo da forma como gerida, a cada perodo, a poltica monetria e a prpria dvida
pblica.
A experincia brasileira no perodo 1998-2002 ilustra bem a situao aqui descrita. A
anlise desse perodo sugere que o resultado da estratgia de ajuste fiscal, certamente, teria
sido melhor em todos os sentidos para a solvncia do governo, para a relao dvida/PIB e
para o crescimento econmico se o mix de polticas adotado tivesse sido outro, qual seja,
uma combinao de metas fiscais e monetrias que envolvesse:
a) nveis de juros menores que os praticados desde 1995;
b) nveis de supervit primrio menores que os obtidos no perodo 1999-2002 estas duas
condies teriam favorecido em alguma medida o crescimento e, indiretamente, as contas
pblicas;
c) um regime cambial mais flexvel que o adotado desde 1998 (e mesmo depois da
flexibilizao), que segurou a taxa de cmbio s custas da manuteno de uma poltica
prolongada de juros altos e da perigosa indexao da dvida pblica a estes dois
indicadores;
d) um modelo de gesto da dvida pblica menos criativo, que evitasse a indexao,
especialmente a variveis to sujeitas instabilidade como as taxas de juros e cmbio,
ainda que isto implicasse um grau de risco maior, ou mesmo eventuais perdas para os
investidores em perodos de grande incerteza quanto aos juros e ao cmbio. No h
qualquer razo econmica ou poltica plausvel que justifique o uso da dvida pblica
como instrumento privilegiado (porque sem risco) de hedge para as incertezas comuns ao
mercado financeiro, como se tem feito no Brasil nos ltimos anos.
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Discriminao 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Dvida Total 29,2 30,5 33,3 34,5 43,3 49,4 49,4 53,3 58,3- Gov. Fed. e Bacen 12,6 13,2 15,9 18,8 21,5 25,7 26,8 28,9 33,4 Dv. Remunerada 9,2 10,0 13,5 15,2 17,1 21,1 22,6 24,6 29,3 Base Monetria 3,4 3,2 2,4 3,6 4,4 4,6 4,2 4,3 4,1- Estados e Municpios 9,7 10,6 11,5 13,0 14,7 16,4 16,2 18,5 18,8- Empresas Estatais 6,9 6,7 5,9 2,8 2,7 2,7 2,2 1,6 2,0
Dvida Interna 20,8 24,9 29,4 30,2 32,5 34,4 35,5 38,4 40,4- Gov. Fed. e Bacen 6,4 9,8 14,3 16,8 21,6 22,3 23,5 24,8 25,9- Estados e Municpios 9,4 10,3 11,2 12,5 14,0 15,5 15,3 17,5 17,5- Empresas Estatais 5,0 4,9 3,9 0,9 1,3 1,2 0,9 0,4 1,1
Dvida Externa 8,5 5,6 3,9 4,3 6,4 10,4 9,7 10,6 13,8- Gov. Fed. e Bacen 6,2 3,5 1,6 2,0 4,3 8,0 7,5 8,4 11,6- Estados e Municpios 0,3 0,3 0,4 0,5 0,7 0,9 0,9 1,0 1,3- Empresas Estatais 1,9 1,8 2,0 1,9 1,4 1,5 1,3 1,2 0,9
Fonte: Banco Central do Brasil, Boletim Mensal e Notas para Imprensa (vrios n).
Tabela 1Dvida Lquida do Setor Pblico - % do PIB
1994-2002 (at agosto)
AnoNominal Opera- Prim-
-cional rio Nom. Reais1994 26,97 -1,14 -5,21 32,18 4,071995 7,28 5,00 -0,27 7,54 5,261996 5,87 3,40 0,09 5,78 3,301997 6,04 4,25 0,87 5,16 3,381998 7,93 7,41 -0,01 7,94 7,421999 10,01 3,42 -3,24 13,24 6,662000 4,52 1,17 -3,50 8,02 4,672001 3,61 nd -3,68 7,30 nd2002 2,80 nd -4,48 7,28 nd
Fonte: Bacen, Boletim Mensal e Notas para Imprensa (vrios n). NFSP = Necessidade de Financiamento do Setor Pblico Consolidado. Sinais negativos indicam supervit.(1) Juros nominais de 2001 e 2002 sem efeitos da desvalorizao cambialsobre o estoque total da dvida, conforme metodologia adotada pelo Bace
Juros (1)NFSP - Saldos em % do PIB
Tabela 2Necessidades de Financiamento e Dvida Lquida
do Setor Pblico - 1994-2002 (at agosto)
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DPMF no Mercado:R$ milhes 108.473 176.211 255.509 323.860 414.901 510.698 624.084 622.794% do PIB 15,9 21,8 28,5 35,0 39,7 44,8 50,3 46,3
Composio %Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Pr-Fixada 42,7 61,0 40,9 1,7 9,2 14,8 7,8 7,8Indexada 57,3 39,0 59,1 98,3 90,8 85,2 92,2 92,2- Selic 37,8 18,6 34,8 71,0 61,1 52,2 52,8 55,8- Cmbio 5,3 9,4 15,4 20,9 24,2 22,3 28,6 24,6- ndices de Preos 5,3 1,8 0,3 0,4 2,4 5,9 7,0 9,9- Outros 9,0 9,3 8,6 6,1 3,1 4,8 3,8 1,9Fonte: Bacen, Nota para Imprensa (Fiscal), Agosto/2002.
Tabela 3Dvida Pblica Mobiliria Federal (DPMF): R$ milhes,% do PIB e
Composio % por Indexador - 1995-2002 (at agosto)
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