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Felipe Leal Barquete é bacharel em Imagem e Som pela UFSCar/SP e mestre em educação
pela UFPB/PB. Trabalha com cinema desde 2005, com foco na prática cineclubista, na
formação de coletivos de criação e no uso educativo do cinema. Atualmente vive em João
Pessoa, onde ministra aulas de cinema no Pronatec/CEARTE, e coordena o grupo Semente
Cinematográfica, que germinou após as ações do Inventar com a Diferença na Paraíba.
A MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA E A EDUCABILIDADE CRÍTICA DO OLHAR1
Resumo O presente artigo investiga as possibilidades pedagógicas emergentes da apropriação da
montagem cinematográfica no contexto educativo. A partir dessa perspectiva, faz uma
análise dos modos como o real é construído em algumas das principais vertentes teóricas
do cinema, com o objetivo de identificar, entre os achados, elementos que indicam as
possibilidades de apropriação da montagem em práticas educativas críticas e
emancipadoras. O saber sobre a montagem cinematográfica constitui a base para a análise
de dois filmes-carta produzidos no Conde/PB no contexto do projeto Inventar com a
Diferença, realizado em 2014. Palavras chave: Uso educativo do cinema. Montagem cinematográfica. Aprendizagem
escolar
1. Introdução
A inserção do cinema na escola institui um lugar de interlocução entre os campos
das artes e da educação no interior do espaço físico, das propostas pedagógicas e das
relações interpessoais estabelecidas no cotidiano escolar. Esse território de aprendizagem
se singulariza pela posição que a imagem cinematográfica ocupa na relação com outras
linguagens e processos comunicativos na prática da construção do conhecimento pelos
estudantes de modo ativo e colaborativo; e na aquisição de saberes, sensibilidades,
habilidades e valores éticos.
É no horizonte de uma educabilidade crítica do olhar que o cinema é mobilizado na
escola como um dispositivo que media a aprendizagem do saber escolar, o
1 O presente artigo é uma adaptação do artigo intitulado A apropriação crítica da montagem cinematográfica no uso pedagógico da imagem fílmica como mediação da aprendizagem do saber escolar, publicado originalmente na Revista e Discurso Visual em Educação, v.1, n.1, em 2016.
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desenvolvimento da criatividade, a construção do conhecimento, a investigação do território
e a ação transformadora da realidade social. Trata-se de uma ação educativa inscrita no
cenário da cultura visual contemporânea, em que a presença recorrente da imagem fílmica
nos diversos meios e dispositivos de comunicação evidenciam seu potencial de influir nos
processos de subjetivação dos indivíduos, constituindo-se em um objeto de interesse de
educadores, cineastas e pesquisadores.
A montagem é o aspecto que define a especificidade da linguagem do cinema, uma
vez que um filme se caracteriza pelo encadeamento de imagens e sons no processo de
construção de narrativas audiovisuais, visando impactar o espectador emocionalmente e
produzir sentidos e significados que põem em circulação perspectivas de mundo,
representações da realidade social, valores e ideologias; que ora legitimam padrões
estéticos e de comportamento, ora provocam reflexões, rupturas e deslocamentos.
A apropriação dos saberes e habilidades relacionados ao processo de construção
de um filme se configura, para os educadores, como uma via de capacitação para a uso do
cinema na mediação de aprendizagens, e para os estudantes como uma via de expansão
das capacidades expressivas e do cultivo de uma sensibilidade e uma racionalidade crítica
e problematizadora. É nesse contexto que apresentamos uma reflexão sobre as
contribuições que o saber da montagem cinematográfica pode dar aos debates e usos do
cinema na educação.
2. O cinema na escola
A presença do cinema na escola se inscreve no marco do uso didático-pedagógico,
documental e artístico da linguagem visual, e configura-se, de acordo com Carlos (2008),
como uma alternativa viável e necessária ao processo de apropriação do conhecimento
regido pelo paradigma da escrita. Para o autor, “[…] a racionalidade própria do signo
linguístico, apesar da sua relevância no contexto das sociedades grafocêntricas, não dá
conta das outras múltiplas linguagens presentes no cotidiano da cultura visual e midiática
contemporânea […]” (Ibidem, p.21).
A profileração de uma multiplicidade de linguagens na mediação da sociabilidade
contemporânea contribuiu para relativizar a hegemonia do signo linguístico como recurso
de acesso, compreensão e expressão dos saberes e conhecimentos. A popularização dos
meios de produção audiovisual e a emergência de um novo regime comunicacional
baseado nas redes sociais reconfiguraram a forma como as imagens fílmicas são
acionadas, organizadas e difundidas na sociedade. O indivíduo, gradualmente, deixou de
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ser apenas um consumidor dessas imagens e se tornou um produtor-consumidor-
retransmissor delas.
Tal movimento histórico criou condições para a emergência de diversas propostas
pedagógicas voltadas para a educação do olhar, tais como a alfabetização audiovisual, a
leitura crítica da imagem fílmica, a expressão artística individual e/ou coletiva e a
investigação da realidade social através do cinema. O signo visual é posicionado nesse
contexto como uma modalidade específica de acesso, organização e transmissão do saber,
e como um dispositivo de interação com o território e com a comunidade escolar, em que
as experiências estéticas, afetivas e cognitivas se entrelaçam na efetivação de um processo
de ensino-aprendizagem transdisciplinar.
Com base no pensamento de Bergala (2008), reconhecemos que a introdução do
cinema na educação pode ser abordada de dois modos distintos: como linguagem e como
arte. A abordagem do cinema como linguagem dá ênfase aos elementos técnicos que a
caracterizam e à sintaxe que lhe confere inteligibilidade e expressividade próprias,
elucidando os modos de articulação entre a forma e o conteúdo de um filme. A abordagem
do cinema como arte dá ênfase ao gesto artístico, em que o conhecimento e o domínio da
linguagem mediam a experiência do olhar e a expressão de uma perspectiva individual e/ou
coletiva do mundo. Desse modo, uma obra é apreciada e analisada a partir do viés da
criação, levando em consideração não apenas os efeitos de um filme sobre espectador,
mas também as questões que atravessam as escolhas dos realizadores.
É evidente que tal distinção não acarreta em uma incompatibilidade entre essas duas
formas de abordar o cinema na escola, pois que toda prática realizada pressupõe a
articulação entre a dimensão da linguagem cinematográfica e a natureza artística que a
caracteriza. No entanto, a constatação dessas diferentes abordagens possibilita identificar
os modos específicos de inserir o cinema no contexto escolar, reconhecendo seus
potenciais e limites enquanto dispositivo de mediação de aprendizagens.
Dentre as possibilidades de uso do cinema na escola, identificamos a existência de
práticas vinculadas aos atos de ver e de fazer filmes. Enquanto o ato de ver filmes está
associado à formação de repertório cultural e à decodificação dos códigos de sua
linguagem, o ato de produzi-los pressupõe um processo de codificação de uma obra
audiovisual por meio do domínio das técnicas de produção da imagem e da narrativa
fílmica. Tais práticas são mobilizadas nos contextos estabelecidos pelas diferentes
concepções de educação, conferindo ao cinema ora o status de um instrumento secundário,
ora o de elemento central no processo de ensino-aprendizagem.
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O uso do cinema como recurso secundário em sala de aula interdita a singularidade
artística da sua linguagem, reduz os efeitos resultantes do impacto estético e emocional da
experiência cinematográfica e relega seu potencial de mediar aprendizagens a um papel
ilustrativo do saber organizado pelo currículo escolar e formatado nos livros didáticos com
a centralidade no signo linguístico. Desse modo, a potência estético-expressiva e ético-
política do cinema fica em segundo plano, o que minimiza as possibilidades do uso do signo
visual como um dispositivo de produção do conhecimento.
Embora tal prática se configure como uma possibilidade de uso do cinema para
mediar aprendizagens, o horizonte da nossa reflexão é a mobilização de práticas que
posicionem o cinema como o elemento central das estratégias pedagógicas acionadas na
escola, conferindo visibilidade à presença da arte na educação, à problemática do sensível
e da criatividade no processo de ensino-aprendizagem e à conscientização crítica do
estudante acerca da sua realidade.
Nesse horizonte, a imaginação, a intuição e a sensibilidade estão presentes como
elementos constituintes de uma prática intencional de educação crítica do olhar – que
envolve a desnaturalização e o deslocamento de formas hegemônicas de ver e perceber o
mundo – vinculada a uma concepção de educação comprometida tanto com a formação do
gosto e da criatividade quanto com a emancipação intelectual dos estudantes.
3. A montagem e a questão do real no cinema
A construção de um saber pedagógico sobre as contribuições que a montagem
cinematográfica pode conferir aos processos educativos críticos demanda a investigação
da especificidade da linguagem do cinema – seus códigos, modos de existência, contextos
de utilização e efeitos produzidos – o que elucida as maneira através da qual um filme
estabelece diferentes relações com a realidade concreta, tanto no plano empírico do
registro do real quanto no plano abstrato das percepções e construções simbólicas sobre
ele.
Segundo Cabrera (2006), a especificidade da linguagem cinematográfica reside na
sua temporalidade e espacialidade singulares, gerando uma impressão de realidade
envolvente que provoca a imersão do espectador no espaço-tempo da narrativa
apresentada e na percepção do mundo proposta pelos criadores do filme. A relação do
espectador com a realidade apresentada pelo filme é, portanto, produto direto da
intervenção da montagem.
Em sua investigação sobre a montagem como ato criativo, Mourão (2006) apresenta
duas vertentes principais do desenvolvimento histórico da linguagem cinematográfica: a
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representação da realidade e a construção do artifício. Associada a essas vertentes,
constatamos a emergência de duas propostas complementares do uso da montagem: a
estruturação da narrativa e a produção de sentido.
A vocação do cinema para representar a realidade tem suas raízes no caráter
figurativo do aparato tecnológico cinematográfico, que é um desenvolvimento da câmera
fotográfica. A possibilidade de registrar o real, fixando na película fotossensível um
fragmento do tempo e do espaço, consolidou um modo de fazer cinema vinculado ao
referente apresentado pela realidade empírica.
A vertente do cinema científico é uma expressão desse modo de se pensar e de
produzir filmes, que valoriza o aspecto empírico da imagem técnica, possibilitando, no início
do século, a apropriação das técnicas de filmagem e montagem com a finalidade de
produzir conhecimentos científicos. Duarte e Tavares (2011) ressaltam como a emergência
desse modo de uso do cinema se vinculou a uma perspectiva filosófica da educação que
legitimou o seu uso na “[...] experimentação e a observação dos fenômenos naturais como
importantes medidas pedagógicas a serem utilizadas no ensino de ciências[...]” (Ibidem,
p.35). De acordo com os autores, a impressão de realidade, o largo alcance promovido
pelas imagens, bem como a universalidade da sua linguagem legitimaram a implementação
do cinema educativo no contexto dos projetos nacionais civilizadores do período.
A representação da realidade marca também as primeiras experiências com o
cinema realizadas pelos irmãos Lumière no início do Século XX, em que registram
situações cotidianas da sociedade francesa, como a chegada de um trem à estação, a saída
dos operários de uma fábrica, o almoço de uma família etc. Embora se saiba, atualmente,
que muitas dessas filmagens foram previamente combinadas, ensaiadas e refeitas, a
ênfase dessas produções é o registro do real, que prevalece em relação à possibilidade de
intervir na linguagem para a construção do artifício. A montagem, nesse caso, é inexistente
ou rudimentar, dado que cada plano constitui a totalidade do filme, devido as possibilidades
técnicas da época.
A possibilidade de combinar planos produzidos em contextos distintos criou
condições para a elaboração de narrativas mais complexas, constituídas a partir da ruptura
com a imagem técnica voltada para o registro ou a representação do real. No universo do
cinema ficcional clássico, dois diretores norte-americanos são reconhecidos por suas
contribuições para a consolidação da narrativa do cinema: Edwin Porter e David W. Griffith.
Os dois diretores foram responsáveis pelo desenvolvimento de articulações
audiovisuais com o objetivo de constituir uma narrativa propriamente cinematográfica que
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explorasse as possibilidades estéticas emergentes dos recursos técnicos da época,
marcando a superação da influência da linguagem e a afirmação da singularidade artística
do cinema. Desse modo, a construção do espaço narrativo fílmico passou a incluir a
sobreposição de pontos de vista, sequenciados de modo a encobrir o efeito de ruptura
espaço-temporal provocado pelo corte dos planos, preservando a impressão de realidade
do filme e a coesão da narrativa, conferindo densidade psicológica aos personagens e uma
carga dramática à história contada.
A partir da análise de Canelas (2010) sobre os contributos da escola norte-americana
para a consolidação dos fundamentos da montagem, constatamos que foi nesse momento
histórico em que se desenvolveram os códigos de linguagem visando promover a união dos
elementos lógicos de um filme, conferindo uma identidade narrativa através do efeito de
continuidade temporal, espacial e emocional. Essas regras de codificação definiram as
chamadas convenções da linguagem clássica do cinema, com o objetivo de narrar, de modo
compreensível e envolvente, uma história através de um filme. Dentre as convenções,
destacamos: a definição dos tipos de enquadramento e de movimentos de câmera, a noção
de eixo, de campo e de contracampo, a câmera subjetiva, o uso da montagem paralela, as
concordâncias de entradas e saídas de quadros, as digressões temporais e as variações
no ritmo das imagens.
No universo do documentário clássico, a vocação do cinema para o registro ou a
respresentação do real foi desenvolvida pelo trabalho de diretores como Robert Flaherty,
que utilizou a sintaxe do cinema ficcional para a elaboração da narrativa documental de
seus filmes; pelo movimento documentarista britânico, liderado pelo diretor John Grierson,
que estabeleceu as bases estéticas e narrativas que prevalecem até hoje nas reportagens
jornalísticas televisivas; e pelo cinema direto norte-americano, marcado pela proposta da
não-intervenção na realidade registrada.
Com esses exemplos, fica evidente que a possibilidade de usar o cinema para refletir
o real criou condições para o desenvolvimento de uma proposta de montagem que
valorizasse tanto o registro do real, para fins científicos e documentais, quanto a
representação do real, com a construção de narrativas que produzissem uma impressão de
realidade convincente o suficiente para provocar a imersão do espectador na história
apresentada, gerando um impacto emocional através da identificação com o personagem
ou com a situação narrada.
Esse processo de imersão e identificação com a narrativa fílmica requer o
estabelecimento de um pacto prévio de suspensão da descrença entre o espectador e o
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filme, de modo que o indivíduo possa aceitar, voluntária e provisoriamente, como
verdadeiras as premissas de uma narrativa audiovisual construída de modo artificial. É esse
pacto que possibilita que os sentidos e os significados construídos pelas assertivas do
cinema tenham uma pretensão de verdade, e o filme possa ser utilizado para legitimar
ideologias e padrões de percepção da realidade.
A outra vertente que aparece desde o surgimento do cinema é a construção do
artifício. Essa vertente aparece na história do cinema de dois modos principais: (1) no
desenvolvimento do caráter onírico ou fantasioso do cinema; (2) no rompimento do pacto
de suspensão da descrença, resultando na produção de sentidos e efeitos emocionais que
tem a intenção de problematizar as concepções hegemônicas do real e/ou revelar os
mecanismos de construção do discurso fílmico.
No início do Século XX, o francês Georges Méliès realizou uma série de
experimentos com a montagem e intervenções na película com o intuito de criar ambientes
e situações fantásticas para narrar suas histórias. Suas experiências ficaram conhecidas
como trucagem. Os recursos de linguagem desenvolvidos pelo cineasta, como a
sobreposição de imagens, a manipulação da profundidade de campo, o corte falso e as
intervenções na película se difundiram e foram apropriadas pelas diversas vertentes
cinematográficas, utilizadas tanto a serviço do entretenimento nas narrativas do cinema
clássico, quanto como recursos expressivos de tendências críticas do cinema.
No âmbito da construção do artifício para a produção de sentidos e significados
críticos, o movimento vanguardista francês da década de 20 apresentou novas perspectivas
estéticas com o intuito de afirmar o cinema como arte – o cinema puro – ao distanciá-lo da
influência das outras linguagens artísticas, bem como dos valores burgueses que
consolidaram um padrão estético e comunicacional visando explorar o potencial econômico
do cinema como um instrumento de entretenimento das massas. A ruptura provocada pelos
vanguardistas passou pela valorização da subjetividade e deu visibilidade à dimensão
onírica e imaginativa do ser humano.
Nesse caso, a realidade social vigente era concebida como um modo de percepção
do real a ser evitada em detrimento de uma realidade percebida em outra instância, em que
subjetividade e objetividade se fundissem em uma compreensão mais aprofundada da vida.
Tal perspectiva resultou em manipulações dos efeitos de espacialidade e temporalidade
nos filmes, com o objetivo de deslocar o espectador do lugar confortável que o cinema de
entretenimento posiciona.
Outra contribuição importante para uso crítico do cinema foi dada pelos cineastas
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soviéticos no contexto da Revolução Bolchevique. Artistas e teóricos desenvolveram
estudos sobre a montagem baseando-se na experiência da escola norte-americana, com o
intuito de utilizar o cinema para provocar impactos emocionais e choques de percepção no
espectador, veiculando a ideologia e os valores revolucionários de modo intencional. Tal
perspectiva de uso do cinema o consolidaria como meio de expressão artística e política
com o objetivo de produzir novos modos de pensar e um novo modelo de sociedade.
No âmbito do cinema documentário, a construção do artifício através da montagem
foi experimentada pelo cineasta soviético Dziga Vertov, cuja manipulação intensa do
espaço-tempo narrativa visava não ocultar o real representado, mas sim intensificar a
percepção do real através do simulacro cinematográfico. Tal abordagem influenciou outras
correntes do documentário, como o cinema verdade de Edgar Morin e Jean Rouch, que se
distanciaram das propostas de não-intervenção como via de acesso privilegiada ao real.
O professor e cineasta Lev Kuleshov foi o autor de um importante experimento
conhecido como Efeito Kuleshov (fig.1), que explicita o efeito emocional promovido pela
montagem no espectador de um filme, demonstrando que a significação no cinema é
resultado do encontro ou conflito dos signos visuais unidos pela montagem e sua relação
com a subjetividade do espectador.
Figura 1 - Efeito Kuleshov
Fonte: Acervo pessoal
No experimento, o cineasta filmou o rosto impassível de um ator e articulou o mesmo
plano com imagens distintas - uma criança em um caixão, um prato de comida e uma mulher
deitada em um sofá. Os espectadores submetidos ao experimento interpretaram que o ator
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expressava diferentes emoções em cada caso – fome, tristeza e desejo – demonstrando
os diferentes efeitos, sentidos e interpretações possibilitados pela montagem
cinematográfica.
O choque promovido pela montagem como estratégia de produção de sentido é
teorizado e demonstrado pelo professor e cineasta Sergei Eisenstein, que se notabilizou
por elaborar os fundamentos de uma teoria da montagem cinematográfica. Propondo uma
montagem de atrações, ou montagem dialética, em contraponto à montagem construtiva
ou narrativa, Eisenstein entendia que a imposição de um elemento novo na sucessão de
planos provocaria choques emocionais no espectador e estimularia sua percepção das
relações, das ideias e das concepções de mundo que estão presentes na construção de
uma imagem ou narrativa audiovisual. Sobre isso, Mourão (2006) afirma que
[...] Dessa maneira, o reflexo deixa de ser, no cinema de Eisenstein, uma "impressão de realidade". A percepção que o espectador tem do filme ultrapassa a noção de "mundo real". Esse significado é produzido pela montagem no momento em que ela irá promover a junção entre o imaginário proposto pela ação interior, a história narrada, e o imaginário do espectador, chegando assim ao "real" do reflexo. No decorrer da história do cinema, podemos encontrar vários exemplos onde esse procedimento é explicitado, seja em filmes considerados de vanguarda como em filmes eminentemente clássicos, na sua estrutura narrativa. O diferenciador será o estilo de montagem. (Ibidem, p.235)
Ao abordar a especificidade da linguagem do cinema pelo viés da análise dos usos
da montagem, buscamos evidenciar a relação indissociável entre as dimensões estética,
ética e política que caracterizam uma obra cinematográfica. Tal relação está presente
também nas práticas educativas do cinema, podendo ser usado para entreter, alienar ou
questionar a ordem social vigente.
Na concepção do cinema como arte na escola, o ato da criação é reconhecido como
uma operação complexa que mobiliza as dimensões física, mental, intelectual, emocional,
sensível e intuitiva do estudante, em um processo de construção de realidades
propriamente cinematográficas a partir da realidade concreta. Ao refletir sobre o modo como
o cinema e o real se imbricam mutuamente, Cezar Migliorin (2011) assevera que
[...] as imagens no cinema se formam a partir de duas presenças inseparáveis. Por um lado, a imagem é intrinsecamente ligada ao mundo, ela sofre o mundo, é afetada pelo real. No cinema, o que vemos – no documentário ou não ficção, não importa – existe. [...] Mas o cinema é mais do que isso, claro. O cinema é uma operação de escritura com imagens afetadas pelo real. Ou seja, por um lado ele é mundo, por outro ele é alteração. Em essência, ele é transformação contínua do que há [...] (Ibidem, p.131-132)
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É nesse lugar estabelecido no nexo entre a realidade do estudante, a realidade do
mundo e a realidade da obra em processo de criação que é possível vivenciar o espanto, o
incômodo, o encantamento com a arte; e é nesse lugar também que se estabelecem as
correlações com os saberes previamente consolidados, a construção de novos saberes.
Migliorin (2011) defende que, através do cinema, o pensamento e a criação se
conectam na essencial ignorância sobre o mundo. Tal perspectiva elucida o modo como a
criação fílmica pode mediar a investigação do desconhecido e a construção de
conhecimentos, ao operar no real com um regime de comunicação visual em que a
experiência sensível do estudante possibilita a vivência de determinada questão no interior
dela mesma em sua dimensão concreta, viabilizando a aquisição de um saber através da
construção de uma perspectiva sobre o mundo pela arte.
4. Uma experiência possível: Inventar com a Diferença
O projeto Inventar com a Diferença se notabilizou por elaborar um método para a
inserção da criação fílmica no contexto do ensino público brasileiro, orientado pelo horizonte
temático e conceitual dos direitos humanos. Tal proposta foi implementada em 2014 em
escolas municipais e estaduais de todo o país. (MIGLIORIN, 2014)
O trabalho final das oficinas foi a criação de filmes-carta, que se caracteriza como
uma estratégia de escrever com o cinema, pressupondo um remetente que diz algo ao
destinatário, que no caso do projeto eram os próprios estudantes das escolas participantes,
estabelecendo uma rede de comunicação entre as escolas públicas do país através do
cinema.
Ao analisar dois filmes-carta produzidos no município do Conde/PB, verificaremos
como as estratégias de montagem de cada um deles podem contribuir para a aquisição de
saberes e valores relacionados aos direitos humanos. Vale ressaltar que, pelo
distanciamento em relação ao processo de produção dos filmes, não se trata de uma
investigação sobre as estratégias pedagógicas adotadas no processo da montagem ou os
seus efeitos concretos sobre a aprendizagem dos educandos, mas sim de uma análise dos
filmes a partir de suas evidências empíricas, realçando os elementos da montagem que
permitam evidenciar as possibilidades de uso do cinema em uma educação crítica e
emancipadora.
4.1 Pai do Mangue, dos estudantes da Escola Antônio Bento da Silva2
2 Filme disponível em: <https://goo.gl/Sn69wX> Acesso em: 10 ago. 2017
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O filme inicia com um relato de uma professora do colégio sobre uma entidade
espiritual, o Pai do Mangue, que costuma assustar os moradores da região. A professora
narra a sua experiência enquanto segura uma fotografia de si mesma no mangue. Após o
término do relato, a entrevistada diz que os benefícios do mangue é o que a faz retornar ao
local, superando o medo de reencontrar a entidade.
Nas últimas frases da professora, a imagem desloca o ponto de vista para o interior
de um jereré imerso na água do mangue. Um canto tradicional entoa frases representativas
do modo de vida local, enquanto as imagens revelam as profundezas das suas águas
verdes, o trabalho no mangue, as oferendas à entidade, e o próprio Pai do Mangue que
circula no local.
4.2 Rick Charles, dos estudantes da Escola Maria Eunice do Egito Souza3
O filme inicia com o registro de uma brincadeira de roda, em que as crianças cantam
e encenam para câmera. Em seguida, uma sequência de vozes infantis relata a história do
assentamento Rick Charles - as lutas, os dores e as conquistas de seus antepassados -
enquanto as imagens apresentam fragmentos de fachadas, varandas, o interior das casas
e alguns moradores do local.
No término do relato, uma voz infantil fala em nome de todos os alunos, enunciando
a satisfação de conhecer e apresentar a história de seu assentamento. Na imagem, as
crianças dançam uma ciranda de mãos dadas. Uma música instrumental animada marca o
corte da imagem para o ponto de vista de uma câmera que provavelmente está nas mãos
de uma das crianças. Ela filma em detalhe os olhos de outras, e depois acompanha o grupo
em meio à natureza até mergulharem no rio e brincarem dentro d'água.
4.3 Evidenciando os recursos da montagem
Os dois filmes descritos se caracterizam como documentários que abordam
aspectos da memória e do modo de vida local. Enquanto o filme Pai do Mangue parte do
individual (memória pessoal) para o universal (relação com o mangue) aproximando o
espectador das crenças e costumes daquela comunidade, o filme Rick Charles apresenta
uma digressão histórica através do olhar infantil sobre as lutas dos seus antepassados pelo
direito à moradia, ao mesmo tempo em que contrapõe a memória narrada com as imagens
atuais do assentamento. Vejamos como as articulações da montagem constróem as
personagens e organizam o tempo e o espaço em cada filme.
3 Filme disponível em: <https://goo.gl/NqXg6W> Acesso em: 10 ago. 2017
12
No caso do filme Pai do Mangue, a opção de revelar a personagem enquanto relata
sua história dá ênfase à memória individual que nos é apresentada, corroborada pela
presença da fotografia em sua mão. O espaço-tempo construído nesse momento da
narrativa se referencia na presença corporal da personagem, e se relaciona com as
imagens mentais construídas pelo seu relato. Na medida em que a entrevistada muda a
natureza do relato, enfocando os benefícios do mangue, o fluxo da imagem dá um salto
qualitativo: no lugar da personagem, o ponto de vista da água do mangue. Os cantos que
seguem consolidam o processo de deslocamento da estrutura espaço-temporal: do interior
da escola ao interior do mangue; do relato individual ao canto que atravessou as gerações;
do corpo individualizado, com memória e densidade psicológica, ao corpo genérico imerso
no corpo da natureza; do relato da crença ao registro do trabalho; do medo do sobrenatural
à confiança nos benefícios da natureza. Tal articulação audiovisual faz emergir novos
sentidos e significados possíveis na imbricação do individual com o universal.
No filme Rick Charles, a ênfase é a construção de um sujeito coletivo representado
pelo conjunto das crianças do assentamento. Tal construção se materializa no filme através
do registro da brincadeira de roda, e se sustenta na medida em que a narração que se
segue incorpora múltiplas vozes infantis. A referência na realidade concreta se dá através
do registro de imagens da comunidade, que não correspondem diretamente ao conteúdo
das falas das crianças. Esse descompasso entre a narrativa imagética e a sonora cria uma
dobra que desloca a estrutura de espaço-tempo construída inicialmente, ampliando as
possibilidades de geração de sentidos e significados. Em meio ao fluxo de imagens
documentais da natureza e da comunidade, duas delas se diferenciam em relação às
demais: (1) uma criança caminha sozinha em meio à plantação; (2) planos em detalhe dos
olhos de diversas crianças. Representações do corpo e do olhar infantil, sem memória ou
densidade psicológica, retratadas na sua generalidade, reafirmando a presença do sujeito
coletivo que sustenta a narrativa fílmica. Tal articulação consolida, no conjunto dos registros
documentais e do relato histórico, o foco temático do filme: a importância das crianças para
a afirmação da cultura local e do modo de vida da comunidade, ao estabelecer uma relação
entre o passado (relato), o presente (imagens documentais) e o futuro (o olhar das
crianças).
O uso da trilha no final do filme evidencia uma diferença de abordagem entre os dois
exemplos analisados. O filme Pai do Mangue opta pela articulação com um canto tradicional
local, e o filme Rick Charles insere uma música instrumental alegre. Enquanto a escolha do
Pai do Mangue pode ser vista como uma afirmação da cultura local, da tradição popular e
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do contato do povo com a sua terra; o Rick Charles recorre a uma articulação que sugere
um efeito de leveza e alegria.
Poderíamos dizer que nesse caso a opção por uma música descontextualizada da
realidade social local resulta em uma abordagem mais superficial, alienante ou
dissimuladora do ponto de vista histórico-crítico? Ou o efeito resultante de tal articulação
audiovisual, no contexto do filme, está carregado de significados existenciais para os
estudantes, contribuindo para a conscientização crítica?
Tais questões remetem às implicações éticas e estéticas que estão presentes na
construção do discurso fílmico, na medida em que a montagem possibilita a manipulação
das imagens e sons para a construção de uma multiplicidade de pontos de vista. Nesse
aspecto, o “reflexo do real” e o “real do reflexo” (MOURÃO, 2006) se entrelaçam, e é nessa
dobra provocada pelo significante autorreferente da linguagem cinematográfica, que se
torna possível trabalhar conscientemente com o signo visual no contexto de uma educação
crítica e emancipadora, na medida que o cinema passa a mediar a relação sensível e
cognitiva do educando com o mundo.
Embora não seja possível constatar se houve de fato uma aprendizagem dos
saberes relativos aos direitos humanos através da realização dessas práticas, certamente
podemos afirmar, pela análise da montagem dos filmes, que houve uma preocupação por
parte dos realizadores em construir um discurso que apresentasse de forma poética e lúdica
os traços históricos e culturais da comunidade, valorizando os costumes locais e a
vinculação à natureza. Tal experiência tem um valor cognitivo na medida em que imprime
na consciência de cada estudante elementos afetivos, experiências e saberes que poderão
facilitar a aprendizagem de valores como a cidadania e o respeito às diferenças.
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14
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