37
A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA Ricardo Lodi Ribeiro Doutor em Direito e Economia pela UGF, Mestre em Direito Tributário pela UCAM, Coordenador dos Cursos de Direito Tributário da FGV/RJ. Advogado. SUMÁRIO 1) Determinação e Abstração. 2) Os Conceitos de Direito. 2.1) Os Conceitos Abstratos. 2.2) Os Tipos. 3) A hipótese de incidência tributária e o tipo. 1) Determinação e Abstração A reserva legal tributária tem como corolário o princípio da determinação, a exigir que todos os elementos essenciais da obrigação tributária sejam claramente previstos em lei. Tradicionalmente, essa conclusão vem associada na doutrina brasileira à idéia de uma tipicidade fechada. De acordo com esse posicionamento, no Direito Tributário, em nome da segurança jurídica (que teria papel preponderante sobre os outros valores neste ramo da ciência jurídica), o tipo contido na lei deve conter o critério da decisão em relação a todos os elementos da obrigação, de forma que o aplicador o apreenda por mera dedução, limitando-se a nele subsumir o fato tributário. 1 1 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 92 a 94 “O princípio da tipicidade da tributação vai, porém, ainda mais longe: exige que o conteúdo da decisão se encontre rigorosamente determinado na lei. É o princípio da determinação (Grundsatz der Bestimmtheit) de que fala Friedrich. (...) Eis o que a segurança jurídica exige no domínio tributário: pois não ficaria seriamente abalada a regra nullum tributum sine lege, se na aplicação do Direito Tributário se pudesse recorrer a elementos ou critérios de valoração e decisão que não estivessem já contidos na própria lei? (...) O princípio da determinação converte, pois, o tipo tributário num tipo rigorosamente fechado: e tipo fechado não só no sentido que lhe atribuiu Oliveira Ascensão, de tipo que exclui outros elementos juridicamente relevantes que lhe sejam exteriores, de tal modo que o fato pode ter um conteúdo extratípico modelado pela vontade (o que é repelido pelo princípio do

A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Ricardo Lodi Ribeiro

Doutor em Direito e Economia pela UGF, Mestre em Direito

Tributário pela UCAM, Coordenador dos Cursos de Direito

Tributário da FGV/RJ. Advogado.

SUMÁRIO

1) Determinação e Abstração. 2) Os Conceitos de Direito. 2.1) Os Conceitos Abstratos. 2.2) Os Tipos. 3) A hipótese de incidência

tributária e o tipo.

1) Determinação e Abstração

A reserva legal tributária tem como corolário o princípio da determinação, a exigir

que todos os elementos essenciais da obrigação tributária sejam claramente previstos

em lei. Tradicionalmente, essa conclusão vem associada na doutrina brasileira à idéia

de uma tipicidade fechada. De acordo com esse posicionamento, no Direito Tributário,

em nome da segurança jurídica (que teria papel preponderante sobre os outros valores

neste ramo da ciência jurídica), o tipo contido na lei deve conter o critério da decisão

em relação a todos os elementos da obrigação, de forma que o aplicador o apreenda

por mera dedução, limitando-se a nele subsumir o fato tributário. 1

1 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 92 a 94 “O princípio da tipicidade da tributação vai, porém, ainda mais longe: exige que o conteúdo da decisão se encontre rigorosamente determinado na lei. É o princípio da determinação (Grundsatz der Bestimmtheit) de que fala Friedrich. (...) Eis o que a segurança jurídica exige no domínio tributário: pois não ficaria seriamente abalada a regra nullum tributum sine lege, se na aplicação do Direito Tributário se pudesse recorrer a elementos ou critérios de valoração e decisão que não estivessem já contidos na própria lei? (...) O princípio da determinação converte, pois, o tipo tributário num tipo rigorosamente fechado: e tipo fechado não só no sentido que lhe atribuiu Oliveira Ascensão, de tipo que exclui outros elementos juridicamente relevantes que lhe sejam exteriores, de tal modo que o fato pode ter um conteúdo extratípico modelado pela vontade (o que é repelido pelo princípio do

Page 2: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Segundo Alberto Xavier, o princípio da tipicidade tem como corolário: 2

a) o princípio da seleção, segundo o qual a lei tributária deve selecionar os

fatos que revelem capacidade contributiva, sendo impossível a tributação com base

num conceito geral ou cláusula geral de tributo;

b) o princípio do numerus clausus, que determina que os tributos devem

estar taxativamente previstos na lei, não havendo espaço para a analogia na

imposição tributária, em face da regra nullum tributum sine lege;

c) o princípio do exclusivismo, que obriga o tipo tributário a abrigar uma

descrição completa dos elementos necessários à tributação, capaz de conter uma

valoração definitiva da realidade, sem carecer ou tolerar qualquer outro elemento

valorativo estranho a ela;

d) e o princípio da determinação, pelo qual o conteúdo da decisão deve ser

rigorosamente previsto na lei, limitando-se o órgão aplicador à mera subsunção do

fato ao tipo tributário, uma vez que todos os elementos componentes deste são

minuciosamente descritos pela norma, que não pode conter conceitos

indeterminados.

No entanto, tal posicionamento acaba constituindo uma idéia de legalidade que se

sobrepõe à sua própria finalidade, que é garantir o sentido material do Estado de

Direito.3

exclusivismo), mas também no sentido que lhe atribuem Larenz e Roxin, de tipo que oferece elevado grau de determinação conceitual, ou de fixação do conteúdo”. 2 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, p. 92 a 99.

Page 3: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Ademais, tal construção parte de algumas imprecisões que devem ser

esclarecidas. Inicialmente, cumpre destacar que a tipicidade se revela pela própria

qualidade do tipo. Assim, há tipicidade quando o tipo reúne os elementos necessários

à sua caracterização lógica. Não deve ser confundida com a tipificação que se traduz

na formação normativa do tipo, na procura de traços da realidade necessários à

ordenação dos dados semelhantes.4 Também é necessário fazer a distinção entre os

tipos e a definição legal do fato gerador abstrato, pois ainda que esta quase sempre

seja composta por aqueles, com eles não se confunde.

Na verdade, o que a doutrina brasileira normalmente chama de tipicidade é a

necessidade de que todos os elementos essências da obrigação tributária estejam

previstos em lei em sentido formal, o que deriva, como se viu, do princípio da

determinação.5

Contudo, é preciso ressaltar que a idéia de determinação não se extrai de uma

estrutura conceitual, cuja abstração é incompatível com a exigência, pelo princípio em

questão, de correspondência com dados perceptíveis extraídos da realidade.6 Muito ao

3 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 119. 4 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 469 e 479. 5 Para Humberto Ávila, o princípio da determinação se atende pela obrigatoriedade do legislador “inserir os elementos materiais da obrigação tributária com o maior detalhamento possível, por meio de elementos distintivos determinados ao máximo, naquelas matérias que possam ser normativamente padronizadas, e que, portanto, não digam respeito a prerrogativas técnicas da administração nem sejam incompatíveis com uma regulação com pretensão de permanência”. (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 308). 6 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción en el Derecho y en la Ciência Jurídica Actuales. Trad. Juan José Gil Cremades. Granada: Comares, 2004, p. 66.

Page 4: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

contrário, a determinação é mais bem atendida pela concreção dos tipos abertos, a

partir da sua valoração adequada a uma pauta axiológica aplicável ao objeto da

regulação.

Em outras oportunidades, a expressão tipicidade tem sido vinculada à idéia de

adequação7 do fato imponível concreto à hipótese de incidência abstrata,8 por meio do

método da subsunção. Porém, a conformidade da situação fática com o fato gerador,

fenômeno indispensável para o nascimento da obrigação tributária, não se dá, como

adiante se revelará, pela subsunção do suporte fático a um conceito legal abstrato, mas

pela coordenação daquele a um tipo, o que longe de constituir uma atividade informada

pela lógica formal, não pode prescindir de uma dinâmica valorativa.9

Por outro lado, a idéia de uma tipicidade fechada também encarna uma

impropriedade metodológica, revelando uma contradição em termos. Senão vejamos.

Para a definição de tipo fechado, Alberto Xavier, segundo indicado na própria obra

citada,10 partiu de uma classificação adotada por Karl Larenz na obra Metodologia da

Ciência do Direito, entre os tipos aberto e fechado, sendo este último caracterizado por

elevado grau conceitual. Todavia, conforme relatado de forma muito perspicaz por

7 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 489. 8 É Geraldo Ataliba que propõe no Brasil a distinção quanto à nomenclatura do fato gerador, desdobrando-a em seus elementos empíricos e normativos. Em relação à descrição hipotética abstratamente prevista em lei, o saudoso professor paulista denomina o fato gerador de hipótese de incidência. Já à base fática ocorrida no mundo real, dá o nome de suporte fático. Quando este encontra uma discrição prévia daquela, diz-se ocorrido o fato gerador da obrigação tributária. (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 71). 9 ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira. 2.ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 644; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2004, p. 372-373. 10 XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação, p. 94, nota de rodapé n. 20.

Page 5: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Misabel de Abreu Machado Derzi,11 Karl Larenz abandonou a tese da possibilidade do

tipo fechado, a partir da terceira edição de sua obra, datada de 1975. De fato, segundo

o posicionamento adotado pelo citado autor alemão nas últimas edições de sua obra

clássica, a estrutura tipológica é sempre aberta, ao contrário do conceito abstrato, que

em situações ideais, apresenta-se fechado.12

No entanto, se Misabel de Abreu Machado Derzi reconhece a inexistência de uma

estrutura tipológica fechada, parte de outro pressuposto teórico para entronizar o valor

da segurança jurídica no Direito Tributário. Segundo a referida autora, neste ramo da

ciência jurídica, assim como no Direito Penal, em razão da necessidade exacerbada de

segurança jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos classificatórios sobre a

estrutura tipológica.13 Como se vê, o reconhecimento da inexistência do tipo fechado, o

11 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 63-64: “É sabido que Larenz admite os tipos no Direito, entendendo como tal a ordem estruturada de forma flexível e fluida como temos visto até agora. O fato de ter denominado os conceitos de classe de tipos fechados foi questão apenas terminológica, já superada. As edições mais recentes de sua tão consultada Metodologia registram a alteração, pois para o jurista é tão-só aquele, por sua própria natureza, aberto. A expressão ‘tipo fechado’ foi eliminada de sua obra”. 12 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 660 e 661: “Os usos do tráfego, os usos comerciais e a ‘moral social’, enquanto tais, têm para os juristas o significado de standards, quer dizer, de ‘pautas normais de comportamento social correto, aceites na realidade social’. Tais standards não são, como acertadamente observa STRACHE, regras configuradas conceitualmente, às quais se possa efetuar simplesmente a subsunção por via do procedimento silogístico, mas pautas ‘móveis’, que têm que ser inferidas da conduta reconhecida como ‘típica’ e que têm que ser permanentemente concretizadas, ao aplicá-las ao caso a julgar”. 13 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 286: “considerando as tensões sempre existentes entre princípios jurídicos como segurança e justiça, conservadorismo – estabilidade das relações jurídicas e permeabilidade às mutações sociais, individualidade e aplicação uniforme da lei em massa, reconhecemos, na Ciência do Direito Tributário, ser prevalente a tendência conceitual classificatória”. Em obra posterior, a autora reitera o posicionamento aplicando ao Direito Tributário a teoria fechamento operacional do sistema de Luhmann. (DERZI, Misabel de Abreu Machado. “Mutações, Complexidade, Tipo e Conceito, sob o Signo da Segurança e da Proteção da Confiança”. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Tratado de Direito Constitucional Tributário – Estudos em Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 272 e segs). Porém, deve-se ressaltar que embora o sistema jurídico apresente, segundo Luhmann, um fechamento operativo, já que a compreensão do que é ou não jurídico só se dá no âmbito das fronteiras do Direito a partir de suas próprias regras, ele se abre cognitivamente para o seu entorno e se relaciona com os outros sistemas por

Page 6: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

que, aliás, é feito com extrema competência, leva aos mesmos resultados encontrados

pela teoria que o entronizou: o fechamento dos conceitos de direito utilizados pelo

legislador tributário.

Porém, como ressalta Humberto Ávila, a segurança jurídica não pode ser atingida

pela garantia de conteúdos absolutos prévios ou por meio de conceitos fechados, mas:

a) pela linguagem da lei como ponto de partida essencial;

b) pela vinculação do juiz e da administração aos significados preliminares

mínimos da lei;

c) pelo dever de adotar um procedimento regulado para quaisquer questões

jurídicas;

d) pelas exigências quanto ao método para as decisões jurídicas, de acordo

com as regras de interpretação.14

Da simples abstração do texto da lei não se extrai a garantia da segurança, pois,

como adverte Friedrich Muller, a norma vai muito além do seu teor literal, não

prescindindo da realidade fática, uma vez que seu texto representa, juntamente com o

ordenamento jurídico, o programa da norma. No entanto, a norma é composta ainda

por outro elemento: o âmbito da norma, revelado pelo segmento da realidade social

meio de um acoplamento estrutural que, ao mesmo tempo admite a comunicação entre os sistemas, estabelece os limites dos encargos que cada sistema é capaz de suportar sem sofrer corrupção. (LUHMANN, Niklas “La costituzione come acquizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg (org.), Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996, p. 112). Assim, se modernamente a tributação se deita sobre a idéia de manifestação de riqueza, a partir do código econômico binário riqueza/escassez, no Estado Social e Democrático de Direito ela é regulada pelas normas estabelecidas pelo Direito Tributário, que se abre à realidade econômica. 14 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 300.

Page 7: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

escolhido como seu âmbito de regulação. 15 Por essa razão, a norma não pode ser

conhecida sem o exame da realidade fática a que se destina, que determina o

significado dos conceitos jurídicos nela contidos,16 já que nenhuma regra pode regular

inteiramente a sua própria aplicação.17

Como salienta Klaus Vogel, a norma por trás do texto é sempre reconhecível de

modo imperfeito, o que leva o juiz a estar vinculado a este, de acordo com a sua

interpretação e concretização.18 É que a lei não contém as próprias decisões, mas

apenas os parâmetros ou padrões em razão dos quais será tomada, sendo ilusória a

representação da tipicidade enquanto cálculo antecipado legal de todas as decisões

possíveis. Assim, a determinabilidade não é sinônimo de determinação prévia, mas a

15 MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 3. ed., 2005, p. 42: “O teor literal expressa o ‘programa da norma”, a ‘ordem jurídica’ tradicionalmente assim compreendida. Pertence adicionalmente à norma, em nível hierárquico igual, o âmbito da norma, i. é, o recorte da realidade social na sua estrutura básica, que o programa da norma ‘escolheu’ para si ou em parte criou para si com seu âmbito de regulamentação (como amplamente no caso de prescrições referentes à forma e questões similares). 16 WITTGENSTEIN, L. Philosophische Untersuchungen, 1967, nº 43: “Die Bedeutung eines Wortes ist sein Gebrauch in der Sprache”, apud: KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho. Trad. Luis Villar Borda e Ana María Montoya. Bogotá: Universidad Externato de Colombia, 1996, p. 204. 17 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 247: “Um estado de coisas conforme regras só se constitui a partir do momento em que é descrito em conceitos de uma norma a ele aplicada, ao passo que o significado da norma é concretizado pelo fato de ela encontrar aplicação num estado de coisas especificado por regras. Uma norma “abrange” seletivamente uma situação complexa do mundo da vida, sob o aspecto da relevância, ao passo que o estado de coisas por ela constituído jamais esgota o vago conteúdo significativo de uma norma geral, uma vez que também o faz valer de modo seletivo. Essa descrição circular caracteriza um problema metodológico, a ser esclarecido por toda a teoria do direito”. 18 Segundo Klaus Vogel: “A ação concreta em situações concretas sempre só pode ser prefigurada de modo imperfeito por um texto de norma. O número dos elementos distintivos que um texto de norma pode descrever, sempre é finito; em contrapartida, o número dos elementos distintivos de um conjunto de fatos é infinito. Por essa razão há sempre particularidades da situação que o texto da norma não considera e com vistas às quais se pode formular a pergunta se a situação ainda é como o texto da norma a pressupõe”. (VOGEL, Klaus. “Vergleich und Gesetzmäbigkeit der Verwaltung im Steuerrecht”. In: Der offene Finanz-und-Steuerstaat. Heidelberg: C.F.Müller, 1991, p. 310-311, apud: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 298).

Page 8: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

possibilidade de fornecer pontos de partida para aquilo que é essencial a determinado

âmbito normativo.19

Ademais, a indeterminação das normas tributárias decorrem não só dos valores e

princípios fundamentais aplicáveis ao Direito Tributário, que pelas suas características

são fluidos e ambivalentes como a igualdade e a segurança jurídica, mas também da

natureza aberta da linguagem por elas utilizadas, tanto das leis de incidência como das

regras de competência, sobretudo quando empregadas expressões extraídas de outro

ramo do Direito, cujo significado no plano fiscal carece de ser esclarecido.20

Por outro lado, poder-se-ia concluir que, embora de difícil realização, a

determinação absoluta seria um ideal a ser permanentemente perseguido. No entanto,

tal conclusão deve ser rechaçada, à medida que o detalhamento excessivo acaba por

levar a uma maior indefinição, uma vez que o excesso de pormenores faz com que,

inexoravelmente, vários traços da realidade deixem de ser contemplados no texto legal,

21 guardando, portanto, uma menor influência sobre a decisão.22 Como esclarece

19 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 304 -305, citando OSTERLOH, Lerke: “Leis não são nem deveriam ser nenhuma coleção de decisões individuais pré-fabricadas. Muito pelo contrário, elas contêm normas em princípio genericamente abstratas, mais ou menos abertas, cuja aplicação à realidade, a conjuntos de fatos, individualmente concretos, não constitui apenas uma tarefa da identificação das informações já contidas na lei, mas exige um processo de múltiplas camadas de conhecimento e decisão” (Gesetzesbindung und Typisierungsspielräume bei der Anwemdung der Steuergesetze. Baden-Baden: Nomos, 1992, p. 94). 20 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 175-176; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 121-123. 21 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 377: “o princípio da determinabilidade não se confunde com o suposto dever de pormenorizar o mais possível ou de otimizar a pormenorização da disciplina dos impostos, uma vez que, quanto mais o legislador tenta pormenorizar, maiores lacunas acaba por originar relativamente aos aspectos que ficam à margem dessa disciplina, aspectos esses que, como facilmente se compreende, variarão na razão inversa daquela pormenorização. Ou seja, as especificações excessivas, porque se enredam na riqueza dos pormenores, perdem o plano de que partiram, acabando, ao invés, por conduzir a maior indeterminação”.

Page 9: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Kaufmann, a lei, por ser criada para ser aplicada a todos os casos, cuja multiplicidade é

infinita, não pode e não deve ser formulada de forma unívoca, vez que cerrada em si

mesma, completa, sem vazios, absolutamente clara, se isso fosse possível, conduziria

o desenvolvimento do Direito ao estancamento. Deste modo, não é possível, nem

desejável alcançar o ideal da univocidade da linguagem legal, que deve ser

bidimensional, se manifestando pela sua imanente historicidade e pela dialética entre o

seu caráter metafórico e a conceitualização da linguagem.23

No entanto, quando houver um grau especialmente relevante de segurança

jurídica, o legislador deve, se isso for possível, substituir o tipo aberto pelo conceito

determinado.24 Porém, é forçoso reconhecer que, mesmo nesses casos, remanesce

uma certa indeterminação em virtude do caráter impreciso da linguagem e da natureza

abstrata o texto da norma.

2) Os Conceitos de Direito

A compreensão da linguagem jurídica se dá com base no sentido que cada

conceito inserido no texto possui, de acordo com o significado da palavra ou de uma

cadeia delas no uso lingüístico geral ou, se for possível constatar que essa foi a

22 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 307. 23 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 193 e 244-246. 24TIPKE/LANG. Steuerrecht. 15 ed. Köln: Otto Schmidt, 1996, p. 138: “Em todos os lugares nos quais se trata em grau especial da segurança jurídica e da previsibilidade, o legislador deveria substituir o tipo aberto com maior precisão possível por um conceito abstrato”. Apud: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 308.

Page 10: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

intenção do legislador, no uso especial conferido à expressão por outro ramo do Direito

ou até mesmo por outra ciência.25

Porém, a cientificidade do processo de criação do Direito não pode residir em sua

redução à conclusão lógica da subsunção da realidade fática a esses conceitos, pois o

sentido do fenômeno jurídico não se revela por uma conclusão lógica, mas por uma

comparação de casos, a partir das ponderações de adequação e valor,26 uma vez que

essa conclusão lógica, oferecida pela dedução por meio de um silogismo, nada de novo

produz. Se o método jurídico se baseasse apenas nesse silogismo, cada caso teria

uma solução obrigatória e não haveria espaço para controvérsias.27

Enquanto a norma jurídica dotada de caráter geral e abstrato pertence ao “deve

ser”, o fato jurídico está no plano do “ser”. Esses dois elementos estabelecem uma

relação dialética, se enriquecendo e se correspondendo com a norma, fazendo justiça

ao caso e este àquela. Quando a norma se aplica ao fato ocorre uma mediação entre

os dois mundos, pois, passo a passo, a norma se concretizará a partir de sua

aproximação da realidade e do seu ajuste aos contornos do caso concreto, para então

se converter em tipo.28

Contudo, como a realidade (‘ser”) nunca atinge a perfeição do modelo legal (“deve

ser”), a redução do fenômeno jurídico à mera subsunção silogística leva a uma

25 LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito, p. 451. 26 COING, Helmut. Elementos Fundamentais de Filosofia do Direito. Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002, p. 343. 27 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p.182. 28 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 186-187 e 228.

Page 11: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

infrutífera procura pelo protótipo ideal, condenando o ordenamento jurídico à inutilidade.

Assim, dado o abismo entre o “ser” e o “deve ser”, a subsunção conceitual absoluta

nunca será realizada,29 uma vez que esse processo de aproximação da norma abstrata

ao fato não segue a lógica formal, mas a lógica do razoável.30

São duas as classes de conceitos: 31

a) conceitos abstratos gerais (conceitos de classe ou conceitos em sentido

estrito): englobam em sua essência um número fixo de elementos fechados ou

unívocos, que se apresentam no caso concreto ou não se apresentam. Tais

conceitos cumprem de forma ideal o mandato constitucional da determinação.

Porém, só os conceitos numéricos apresentam perfeitamente essa característica.

Como exemplo, a maioridade (ou se tem 18 anos, ou não);

b) conceitos de ordem (conceitos de função ou de tipo): não definem ou

limitam a essência do fenômeno, mas só o descrevem mais graficamente, não de

forma completamente concreta, senão sempre em determinado nível de abstração;

sendo assim, não conhecem a disjunção bifurcadora dos conceitos abstratos

gerais, apenas o “mais ou menos”. Exemplificando, o ácido clorídrico pode ser

caracterizado como arma não porque se subsuma no conceito legal abstrato geral

de arma, mas porque sua utilização corresponde ao tipo legal.

29 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 181. 30 PIRES, Adilson Rodrigues. Contradições no Direito Tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 33-34: “Esse processo de adequação da lei ao caso concreto resulta da atuação de uma lógica diferente da tradicional, da lógica formal, regida por um ideário explicativo de nexos entre causa e efeito. A lógica referida fundamenta-se em valores humanos direcionados para um fim específico, qual seja a lógica do razoável, que, por sua vez, não se confunde com a lógica do racional”. 31 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 246-247.

Page 12: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

2.1) Os Conceitos Abstratos

Segundo Larenz, os conceitos abstratos são formados por notas distintivas que são

desligadas, abstraídas dos objetos em que aparecem, e na sua generalização, são

isoladas, separadas tanto umas das outras, como em relação a esse objeto. A

abstração é, segundo Hegel, uma separação do concreto, a partir do isolamento de

suas determinações, pela qual somente se apreendem propriedades ou momentos

particulares. Pela abstração se apreende um objeto da experiência sensorial, não na

sua plenitude concreta de todas as suas partes, como um todo único, mas apenas na

medida em que nele sobressaem propriedades particulares ou notas consideradas

como gerais, desligadas, artificialmente, da sua natural união com outras, isolando-as.

Dessas notas isoladas formam-se conceitos por meio dos quais se possibilita a

subsunção de todos os objetos que apresentam todas as notas recolhidas na sua

definição, qualquer que seja a sua vinculação concreta. Mediante a eliminação de

notas particulares podem ser formados conceitos de mais elevado grau de abstração

aos quais podem se subsumir todos aqueles que lhes estão subordinados, o que se dá

em relação inversamente proporcional com a densidade de seu conteúdo. Sendo

formado por poucas notas, esse conceito “supremo” guarda um conteúdo ínfimo em

relação ao mais amplo âmbito de aplicação. De outro lado, quanto maior o número de

traços distintivos, mas conteúdo terá o conceito, em relação inversamente proporcional

ao seu campo de influência, bastante específico. 32

32 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 625: “A seleção das notas distintivas, que hão-de ser recolhidas aquando da formação de um conceito abstrato na sua definição, é essencialmente co-determinada pelo fim que a ciência em causa persegue com a formação do conceito”.

Page 13: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Deste modo, enquanto o conceito concreto está vinculado ao perceptível, assim

entendido pelo aquilo que é extraído da realidade fática, a abstração, ao revés, se

associa à idealização do mundo irreal e imperceptível. Daí, não fica difícil concluir que

a idéia de concretude, enquanto algo real e perceptível, vem sempre atrelada à

determinação do seu objeto, ao contrário do conceito abstrato, cujo caráter ideal e

imperceptível, desemboca na indeterminação.33 Por isso a incompatibilidade dos

conceitos abstratos com a concreção da realidade.

A função dos conceitos é a classificação, de modo claro, de uma enorme

quantidade de fenômenos da vida, caracterizando-os mediante notas distintivas

facilmente identificáveis e ordenando-os de modo que sempre suas conseqüências

jurídicas sejam idênticas quando houver identidade conceitual. Para que tal tarefa seja

plenamente exitosa, o caminho mais fácil seria o da utilização dos conceitos abstratos

aos quais possam ser subsumidos, sem grande esforço, todos os fenômenos da vida

que apresentarem as suas notas distintivas. Porém, o ideal de se subsumir todos os

caso jurídicos aos conceitos dados por lei, é um ideal que nunca foi atingido em

qualquer época da Ciência do Direito, sendo a utilização da norma de estrutura

conceitual pouco freqüente.34

33 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 64-66. 34 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 626, 644 -645: “A parte da subsunção lógica na aplicação da lei é muito menor do que a metodologia tradicional supôs e a maioria dos juristas crê. É impossível repartir a multiplicidade dos processos da vida significativos sob pontos de vista de valoração jurídicos num sistema tão minuciosamente pensado em compartimentos estanques e imutáveis, por forma a que bastasse destacá-los para os encontrar um a um em cada um desses compartimentos. Isto é impossível, por um lado, porque os fenômenos da vida não apresentam fronteiras tão rígidas como as exige o sistema conceitual, mas formas de transição, formas mistas e variantes numa feição sempre nova. É impossível ainda, porque a vida produz constantemente novas configurações, que não estão previstas num sistema acabado. É também impossível, por último, porque o legislador, como várias vezes sublinhamos, se serve necessariamente de uma linguagem que só raramente alcança o grau de precisão exigível para uma definição conceitual”.

Page 14: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Mas a objeção contra a ampla utilização do método conceitual não está só na sua

impossibilidade de aplicação ampla. Se assim fosse, este seria um ideal a se buscar na

medida máxima possível. Porém, deve-se levar em conta que o pensamento abstrato,

dada a sua tendência ao esvaziamento de sentido, levaria ao resultado contrário do

esperado, uma vez que dependeria do abandono de muitos traços particulares da

realidade e da desunião de cada um desses traços entre si, o que acabaria por

comprometer a relevância jurídica e o sentido da regulação,35 já que muitas vezes há

exageros na importância de cada um deles, ao considerá-los conceitualmente

indispensáveis a sua aplicação numa situação de fato, pois nessa dinâmica dos

conceitos abstratos não há mais ou menos’, mas um isto ou aquilo do pensamento por

alternativas. Os conceitos de grau mais elevado de abstração só admitem em cada

caso duas alternativas que estejam entre si numa relação de contraposição excludente,

como se dá nos conceitos de móvel ou imóvel. 36

Aparentemente, a formação de conceitos abstratos contribui para a clareza, uma

vez que um grande número de fenômenos, muitas vezes de índole muito diversa, pode

ser reconduzidos a um denominador comum e uniformemente regulado. No entanto, a

35 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 646. No mesmo sentido: Ávila, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 192: “O recurso a conceitos abstratos e gerais que funcionem como meio de realização da mesma legalidade aumenta essa indeterminação: quanto mais geral um conceito, mais situações de fato ele irá abranger e tanto mais difícil será prever essas situações de fato, sobretudo no campo do Direito Tributário, que regula processos econômicos”. E ainda: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, 471: “O tipo não se confunde com o conceito jurídico. Este é a representação abstrata de dados empíricos, podendo de certa forma violentar a realidade”. 36 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 650: “As contraposições pretensamente excludentes revelam-se apenas opostas; o que conceitualmente está radicalmente separado está ligado entre si de forma multímoda; a abstração levada ao extremo, interrompe as concatenações de sentido e acaba por conduzir-se ad absurdum, pela vacuidade dos conceitos supremos, que já nada dizem sobre a concatenação de sentido subjacente”.

Page 15: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

clareza da linguagem não está associada à determinação do conceito que,

necessariamente, carecerá de valoração diante do objeto da regulação. Ademais, a

aplicação das pautas valorativas e dos princípios jurídicos, que são indispensáveis ao

Direito, não se faz, senão com certo sacrifício da clareza em nome da adequação à

realidade fática.37

Em função dessas razões, os conceitos abstratos terão um valor limitado na

elaboração da lei e na concatenação de sentido, para as quais constituem verdadeiro

empecilho, vez que a extrema precisão da linguagem só pode ser alcançada à custa do

esvaziamento do conteúdo e do sentido. Sua função revela-se, tão somente, na

orientação inicial da subsunção, quando esta se revelar possível, pois estes conceitos,

para poderem subsumir outros a si, são de uma precisão extrema, intentada por uma

linguagem artificial.38

Como se pode extrair dessas afirmações, o pensamento tipológico melhor se

adequa ao raciocínio jurídico, pois é necessariamente analógico, ao permitir a abertura

da norma às circunstâncias fáticas. Deste modo, a criação do Direito também possui

um caráter analógico, pois este, ou mais exatamente, os princípios gerais do Direito e

as possíveis situações fáticas da vida antecipadas mentalmente pelo legislador, devem

37 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 649. Para Radbruch: “Precisamente, esa inadecuación de los conceptos jurídicos a la realidad, ese ignorar los tonos medios, y el benévolo ‘casi’, el rechazar con acritud todo ‘no solo sino también’ o todo ‘más o menos’, ocasionan en muchos casos esa repugnancia por el derecho, en especial por el derecho romano”. (RADBRUCH, Gustav. Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe im Rechtsdenken, “Internacionale Zeitschrift für Theorie dês Redchts”, XII, 1938, p. 46 e segs, apud: ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 414). 38 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 650. Para Engisch, o Direito, assim como as outras ciências naturais e sociais, tende à tipificação, de acordo com a sua natureza normativa (ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 353 e 394).

Page 16: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

colocar-se em correspondência recíproca, a partir de um processo de

acomodação/assimilação. De acordo com esse posicionamento, a analogia se

diferencia da interpretação teleológica, não por uma distinção quanto à estrutura lógica

do processo, mas em relação ao grau de extensão. Com a sua abertura a essas

situações concretas, o Direito se materializa, se concretiza e se positiva. 39 Assim, os

tipos são mais concretos do que os conceitos, e, ao contrário destes últimos que são

definidos, só podem ser descritos.40

A realidade fática, por sua vez, se configurando em forma conceitual-normativa,

idealiza-se e se constrói. A produção legislativa se revela como a acomodação da idéia

de Direito e das possíveis futuras circunstâncias fáticas da vida. Por sua vez, o Direito

harmoniza a norma legal e as circunstâncias de fato, revelando-se um tertium a

promover a mediação entre o “ser” e o “deve ser”. Assim, a norma e o fato devem

guardar relações de sentido, a fim de que possam ser levadas, reciprocamente, à

correspondência. Esse sentido, que não se esconde só no Direito, mas também nas

circunstâncias fáticas da vida, é o que Kaufmann designa como natureza das coisas

(ratio juris), que nos leva ao pensamento tipológico.41

Nesse processo de concretização da norma abstrata, os conceitos gerais devem

abrir-se às circunstâncias de fato da vida para chegar a uma decisão jurídica concreta,

o que acaba por conferir forma a essa norma abstrata, aumentando a sua dimensão

lingüística. Com isso, os conceitos de classe, abrindo-se à realidade, acabam por dar

39 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 247-248. 40 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 176. 41 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 249.

Page 17: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

origem aos conceitos de ordem, que compreendem os conceitos globais de sentido

(conceitos de função ou tipos). Deste modo, mesmo os conceitos abstratos, após a sua

concretização por uma decisão jurídica, não são mais unívocos, e nem poderiam sê-lo,

sob pena de não poderem cumprir sua função de equilibrar as tensões dentro da idéia

de Direito, atendendo a igualdade, a segurança jurídica e a equidade.42

2.2) Os Tipos

Segundo Ricardo Lobo Torres, o tipo é a ordenação de dados concretos existente

na realidade segundo critérios de semelhança, representando a média ou a

normalidade de uma determinada situação concreta.43 Tipificar significa colher o que é

comum e repetitivo em determinado fenômeno, abstraindo-se as particularidades

individuais, generalizando e padronizando.44

Os tipos, originados nas ciências da natureza, foram introduzidos por Max Weber

nas ciências sociais,45 tendo Jellinek os inserido na Teoria Geral do Estado, a partir da

classificação entre tipo ideal e tipo empírico. Nessa concepção, o tipo ideal tem um

valor essencialmente teleológico, não sendo algo que é, mas que deve ser, e

constituindo, portanto, a medida do valor dado. Por sua vez, ao tipo empírico não se

42 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 245. 43 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 469-470. 44 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 47: “Tipo será, então, o que resultar desse processo de abstração generalizante, vale dizer, a forma média ou freqüente, ou ainda especialmente representativa, ou ainda, o padrão normativo ideal”. 45 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: UnB, 2004, p. 11-12: “As ‘leis’, como habitualmente designadas por algumas proposições da Sociologia Compreensiva – por exemplo, a ‘lei’ de Gresham -, são probabilidades típicas, confirmadas pela observação, de determinado curso de ações sociais a ser esperado em determinadas condições, e que são compreensíveis a partir de motivos típicos e do sentido visado pelos agentes”.

Page 18: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

exige a expressão de um objetivo que transcenda a experiência, traduzindo-se apenas

na unificação de notas entre os fenômenos, de acordo com os pontos de vista que

adote o investigador.46

Para Larenz,47 os tipos se classificam:

a) Tipos médios ou de freqüência e tipos de totalidade ou configuração: os

primeiros se referem àquilo que se espera normalmente, a partir a reações típicas

de uma pessoa ou de uma multiplicidade de pessoas numa mesma situação, ou de

uma característica de certa região, como por exemplo, a referência a uma

temperatura típica de determinada região e época do ano. No segundo sentido, o

tipo alude a situações que reúnem os traços característicos que tipificam uma

imagem na sua globalidade, como uma típica casa rústica da Baixa Saxônia, sem

que seja necessário que todos os traços estejam presentes em todos os casos.

Nas duas espécies temos tipos empíricos, cujas reações e evoluções podem ser

confirmadas pela experiência.

b) Tipos só imaginados e mentalmente concebidos e tipos empíricos:

enquanto aqueles são frutos da extração de notas distintivas da realidade (mas ao

contrário dos conceitos abstratos, o tipo pensado não os separa); estes últimos são

reconhecidos por intuição, que nem sempre separa os elementos constitutivos do

tipo, apreendendo a realidade como uma imagem.

46 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad. de Fernando de los Rios. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 79: “El concepto “tipo” puede comprenderse en sentido de ser la expresión de la más perfecta esencia del género. Se puede representar de un modo platónico, como la idea que vive en más allá y solo de un modo imperfecto puede realizarse en el individuo, o concebírsele conforme a Aristóteles, como la fuerza activa que crea y da forma a los ejemplos individuales de un género”. 47 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 657-660.

Page 19: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

c) Tipos empíricos, tipos ideais lógicos e tipos ideais normativos: o primeiro

se revela pelos tipos médios, que estejam configurados num maior ou menor

número de exemplares que podem ser encontrados na realidade. O tipo ideal

lógico também deriva da experiência, mas não precisa estar realizado em toda a

sua pureza em nenhum fenômeno empírico, constituindo-se em uma representação

de um modelo, que é obtido a partir da observação de alguns traços particulares

observados na realidade e descurando outros. Como exemplo, oferece-se

economia de livre mercado, economia totalmente dirigida. Presta-se a estabelecer

comparações entre os modelos puros e as formas híbridas encontradas na

realidade. Já o tipo ideal normativo não quer ser cópia da realidade, mas modelo

ou arquétipo. Como exemplo, a democracia ateniense, que, erigida como modelo

de onde se abstraem alguns traços de realidade, como a escravidão. Também

pode ser exemplificado no tipo ideal do verdadeiro homem de Estado, juiz, médico,

educador, cristão, que cumpra plenamente a sua missão. A partir de um modelo

perfeito, que não pode ser atingido em sua pureza, serve como orientação para

ação humana.

A importância do tipo no Direito se revela quando as normas remetem para os usos

do tráfego, como normas de comportamento socialmente típicos, tendo para os juristas

significado de standards, isto é, pautas normais de comportamento social correto,

aceitas na realidade social, mas que longe de serem configuradas conceitualmente, de

forma a efetuar a simples subsunção por via do procedimento silogístico, são pautas

móveis que tem que ser permanentemente concretizadas pelo aplicador. Tais

standards, a despeito de se manifestarem por tipos reais, são sempre tipos ideais

Page 20: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

axiológicos, não no sentido de tipo de totalidade ou configurativo, mas de tipo de

freqüência ou tipo médio. 48

Ao lado do tipo empírico, extraído da realidade, tem maior importância para o

Direito o tipo normativo, onde o legislador não prescinde de elementos criados pelo

próprio ordenamento jurídico, como o possuidor de animais, que vai utilizar dados

extraídos da regulação da propriedade, por exemplo. Na formação do tipo, entram

tanto elementos empíricos derivados do escopo da norma, como elementos normativos

oriundos pelas idéias jurídicas que estão por trás da regulação. A união desses dois

elementos constitui precisamente a essência do tipo, sendo denominado por Larenz de

tipo real normativo.49

Devem ser diferenciados dos tipos reais normativos, os tipos jurídicos-estruturais,

criados pela realidade jurídica para caracterização mais pormenorizada de certas

situações jurídicas, como os contratos. O Direito não os inventou, mas descobriu-os na

realidade fática. Porém, o legislador não precisa delinear o tipo exatamente como foi

originalmente encontrado, podendo introduzir-lhe novos traços e descurar outros.50

Enquanto o conceito abstrato apresenta uma rígida união dos elementos distintivos,

à qual um conjunto de fatos pode ser ou não integralmente subsumido, o tipo apresenta

48 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 660-661. 49 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 662. Humberto Ávila enquadra os tipos tributários entre os tipos reais normativos, por terem origem no Direito Tributário tradicional e relação indireta com a Constituição. (ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 179). 50 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 662-663.

Page 21: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

uma totalidade graduável e aberta de notas, admitindo que um conjunto de fatos seja

“mais ou menos” coordenado a um tipo.51

Assim, o tipo constitui uma altura média entre o geral e o particular, se distinguindo

do conceito abstrato-geral definido por um número limitado de características gerais

isoladas, por sua grande proximidade com a realidade, por sua claridade gráfica e por

sua objetividade. Com efeito, o tipo não se pode definir, mas somente explicitar, pois

embora tenha um núcleo fixo, mantém as fronteiras flexíveis, de tal sorte que a falta de

um ou outro de seus muitos traços característicos, não leva a sua descaracterização.

Enquanto o conceito, seguindo a lógica do sim ou não, separa, o tipo, acomodando-se

ao mais ou menos da realidade, une, tornando conscientes as conexões de sentido,

fazendo o geral ser compreendido de forma clara e integral. Deste modo, os fatos não

se subsumem ao tipo. Este se coordena, ou se põe em correspondência, em maior ou

menor grau, com um suposto fato concreto. 52 Essa coordenação entre o tipo e a

realidade fática baseia-se numa valoração, que deve ser determinada eticamente por

uma ponderação de finalidade, a partir de uma análise minuciosa das condições reais,

bem como de uma mensuração dos próprios valores isoladamente aplicáveis.53

No entanto, se correspondência entre fato e tipo não depende da coincidência em

relação a todos os traços particulares, mas sim da imagem global, a aludida

coordenação não deve ser reconhecida quando ausentes no caso particular as notas

51 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 171. 52 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 250. No mesmo sentido: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 645; e ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito: Introdução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-brasileira. 2. ed. brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 647. 53 COING, Helmut. Elementos Fundamentais de Filosofia do Direito, p. 280-281.

Page 22: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

distintivas isoladas, ou quando estas forem insignificantes, em nada contribuindo para a

compreensão da regulação.54 Deste modo, como assinala Humberto Ávila, a abertura

do tipo se caracteriza por dois elementos. O primeiro se revela pela prescindibilidade

de alguns elementos distintivos, sob pena de tornar o tipo vazio de conteúdo, e o outro

pelo sopesamento, que indica que a correlação não se dá apenas de acordo com a

relação dos seus elementos entre si, mas, principalmente, sob uma perspectiva

valorativa.55

Vale destacar que o tipo, assim como a abstração conceitual, extrai momentos

comuns de uma pluralidade de manifestações singulares, iguais ou semelhantes, mas

aquele, diferentemente desta, não leva a um conceito geral, mas a uma união de traços

perceptíveis, que certamente não poderão ser aplicados a um objeto individual, mas a

um objeto fictício, típico.56

Por outro lado, o tipo se posta “no meio-termo entre o indivíduo e o conceito”,57

distinguindo-se dos fenômenos isolados, pois algo único não pode ser típico, o que

pressupõe a comparação e a diferenciação, de onde deriva o seu nível de abstração

54 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 666: “Os desvios notórios da imagem global do ‘tipo normal’ classificar-se-ão como tipos especiais ou como ‘configurações atípicas’. Onde reside em cada caso a fronteira, até onde é possível ainda uma coordenação a este tipo, não pode indicar-se de modo geral; quando as fronteiras são fluídas, como é geralmente o caso tratando-se do tipo, a coordenação só é possível com base numa avaliação global”. 55 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 194. 56 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 384. 57 KRETSCHMER, Paul. Über die Methode der Privatrechtswissenschaft, 1914, p. 400, apud: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 658. Para Radbruch: “Los tipos comparten, con los conceptos individuales históricos, la plenitud concreta del contenido, y, al miesmo tiempo, con los conceitos genéricos propios de las ciencias naturales, la possibilidad de comprender ampliamente manifestaciones históricas individuales” (RADBRUCH, Gustav. Logos, II, 1911-2, p. 259, apud: ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 381).

Page 23: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

intermediário.58 Enquanto a abstração conceitual conduz ao conceito geral, a partir da

decomposição do universo em uma pluralidade de conceituações de notas

descontínuas para chegar ao todo do conceito, a abstração individualizadora, por sua

vez, reconhece a profusão perceptível do real, primeiramente, em uma totalidade de

imagens alcançáveis precisamente por ser objeto de uma percepção, do qual extrai

posteriormente seus traços característicos. 59

Em relação ao tipo não mais tem sentido o pensamento exato, lógico-formal, pois

nos encontramos diante da lógica fuzzy, cujo fundamento é a distinção entre conceitos

determinados e indeterminados, e que se move na zona grísea das transições graduais

entre todavia não e não mais. 60

A aplicação do tipo pelo Direito faz nascer o tipo normativo, que se distingue do tipo

de freqüência ou do tipo ideal, de Max Weber. Manifesta-se como ponto médio entre a

idéia de Direito e as circunstancias de fato da vida em torno das quais, finalmente, gira

todo o pensamento jurídico. É o ponto medido entre a justiça conforme a norma e a

justiça conforme os fatos, sendo, ao mesmo tempo, modelo de fenômeno passageiro e

paradigma da idéia. Recebe luz de ambos, e é, em conseqüência, mais rico em

conteúdo e mais gráfico do que a idéia, e por outra, mais válido, mais espiritual, mas

duradouro que o fenômeno. Não é rígido em seus contornos, não é imutável. Nós não

58 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 382. 59 MAIER, H. Philosophie der Wirklinchkeit, I, p. 202, apud: ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 383. 60 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 250.

Page 24: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

podemos construir tipos discricionariamente, pois o tipo é a causa do fenômeno

original.61 Assim, enquanto o conceito é fechado, o tipo aberto! 62

Porém, a abertura do tipo não significa que a decisão jurídica não seja dotada de

determinabilidade, mas se refere à possibilidade aberta a diversas combinações de

manifestação dos elementos distintivos que somente recebem seu significado jurídico a

partir de um ponto de vista valorativo. Nesse sentido, a indeterminabilidade é uma

característica da aplicação do Direito.63

Ademais, o tipo é sempre mais rico em conteúdo, é mais espiritual, tem maior

sentido, é mais gráfico que o conceito abstrato, pois o Direito nunca pode ser idêntico à

lei, já que não é possível que aquele seja apreendido pelos conceitos legais na

plenitude de seu conteúdo concreto.64 Por isso, o tipo é mais concreto do que o

conceito abstrato.65

Por esta razão, não pode existir um sistema de Direito fechado, axiomático, mas

um sistema aberto e tópico. É falsa a opção entre o tipo e o conceito, pois como

observado por Kant, os conceitos sem tipos são vazios, os tipos sem conceitos são

cegos. 66

61 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251. 62 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 660-661; KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251; ASCENSÃO, José de Oliveira. A Tipicidade dos Direitos Reais. Lisboa: 1968, p. 63; CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia ..., p. 315. 63 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 184. 64 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251. 65 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 385. 66 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 251.

Page 25: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Diante de todo o exposto, fica evidenciado que o tipo se diferencia do conceito

abstrato pelos seguintes traços:

a) o conceito é fechado, o tipo aberto;

b) o conceito se revela pela soma rígida dos elementos distintivos, enquanto

o tipo por uma totalidade graduável e aberta de conjunto de fatos;

c) o conceito se subsume, a partir da igualdade entre ele e o conjunto de

fatos; o tipo se corresponde com o fato por uma relação de semelhança;

d) o conceito é definível, o tipo descrito;

e) para a adequação dos fatos em relação ao conceito, todas as notas

distintivas devem estar presentes; no tipo algumas delas podem faltar;

f) o tipo é concreto, o conceito é abstrato.

Por essas razões, a indeterminação da linguagem humana da qual se serve o

Direito, sempre dotada de caráter plurissignificativo, bem como a necessidade de

adequação da lei à realidade fática, cada vez mais surpreendente, imprevisível e

inexplicável com base nas lições extraídas do passado, fazem com que o legislador,

inclusive o tributário, privilegie a utilização de tipos em detrimento dos conceitos

abstratos, cada vez menos capazes de estabelecer conexões de sentido com o mundo

dos fatos.

3) A hipótese de incidência tributária e o tipo

O princípio da determinação a que se submetem as leis que configuram as

hipóteses de incidência não constitui óbice à aplicação de tipos no Direito Tributário,

Page 26: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

uma vez que determinabilidade não se confunde com uma determinação prévia, mas

com a possibilidade de fornecer pontos de partida para o conteúdo essencial de

determinado âmbito normativo. A despeito de seus elementos constitutivos deverem

ser definidos com clareza, tais normas não dependem apenas de determinações

lingüísticas e estruturais, são também carentes de concretização, pois seu significado

normativo não pode ser dado absolutamente sem uma adequação a situações de fato,

o que vai se dar de acordo com as regras de competência e os princípios de ordem

material.67

Por isso, tais normas de incidência, a exemplo das regras constitucionais que

delimitam competência, se manifestam por tipos, e não por conceitos classificatórios,

dada a abstração desses últimos, incapazes de descrever com fidelidade toda a riqueza

e dinamismo realidade econômica. 68

67 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 304-305: “Deve-se constatar, no caso concreto, se a hipótese de incidência atende às determinações constitucionais de competência e aos princípios substancialmente conexos (inclusive aos direitos fundamentais no seu aspecto objetivo); qual a intensidade da influência e da estrutura material das leis e como a norma e o conjunto de fatos estão estruturalmente ligados. Deve-se saber, sobretudo, se se trata de um caso normal ou de uma exceção sob os princípios constitucionais substancialmente conexos, se as assim chamadas ‘correções de elementos marginais’ [Randkorrekturen] se fazem necessárias em conformidade com a consideração do teor literal e da finalidade concreta das normas legais a serem aplicadas, ou quais circunstâncias do caso individual devem ser consideradas na aplicação do Direito”. 68 Não são poucos os autores que reconhecem a natureza tipológica da hipótese de incidência tributária: ENGISCH, Karl. La Idea ..., p. 407; TIPKE, Klaus e LANG, Joachim. Steuerrecht. 17. ed.. Köln: O. Scchmidt, 2002, p. 133, apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 473; VOGEL, Klaus. Zur Konkurrenz zwischen Bundes – und Landessteuerrecht nach dem Grundgesetz. In StuW 1971, p. 315, apud: ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 170; KIRCHOF, Paul. “Steuergleichheit durch Steuervereinfachung. In: FISCHER, Peter (Ed.). Steuervereinfachung. Köln: O. Schmidt, 1998, DSTJG 21:23, apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 474; KRUSE, H. W. Lehrbuch des Steuerrechts. München: C.H. Beck, 1991, p. 71, apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 470: ”O objeto do imposto não se deixa definir, mas descrever”; BEISSE, Heinrich. “O Critério Econômico na Interpretação das Leis Tributárias Segundo a Mais Recente Jurisprudência Alemã”. In: Brandão Machado (Coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 27; e NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 334. Entre nós: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 483; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e a Interpretação da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 68; ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 170; DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 126;

Page 27: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

A utilização da estrutura tipológica pela norma tributária, segundo Engisch,69

desemboca na aproximação dos tipos que fundamentam as exações fiscais com as

relações da vida real, de modo a que o enquadramento dos fatos deve ocorrer

conforme o seu sentido típico, e não de acordo com a vontade específica dos

interessados. O que se leva em conta, segundo o autor alemão, não é uma

individualização, mas uma tipificação, em que o tipo se determina pela conduta normal,

usual, que se dá pelo termo médio, o que permite o combate à evasão e à elisão

abusiva pela via da interpretação. É que, quando o legislador tipifica, tem em vista a

produção de dado efeito prático.70 Deste modo, a descrição do fato gerador do tributo

por meio de tipos promove a sua abertura à realidade econômica por meio da sua

interpretação teleológica.71

A compatibilização da segurança jurídica com a estrutura tipificante vem sendo

reconhecida pela jurisprudência, aqui e alhures. A Corte Constitucional Alemã, vem

aceitando a tipificação pelo legislador tributário, desde que respeitados os princípios da

proporcionalidade e da igualdade e os objetivos da praticidade e da simplificação

fiscal.72 Conforme esclarece Klaus Tipke, o Tribunal Constitucional Alemão, em

RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 34; e ROCHA, Sérgio André. “Existe um Princípio da Tipicidade no Direito Tributário?”.Revista Dialética de Direito Tributário 136: 73, 2007. Contra: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 286, para quem as hipóteses de incidência tributárias se manifestam preferencialmente por conceitos abstratos. 69 ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción..., p. 407-408. 70 ASCENSÃO, José de Oliveira. A Tipicidade dos Direitos Reais, p. 63. No mesmo sentido: CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia ..., p. 315. 71 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 117-118. 72 BverfGE 82, 185:”O legislador apreende o individual no tipo, generalizando o concreto e esmaecendo as diferenças. Ele deve se orientar fundamentalmente pela regularidade e não tomar em consideração as especificidades e as singularidades”. (Apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 480).

Page 28: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

diversos julgados, estabeleceu que a exigência da tipicidade é satisfeita quando o

legislador encontra a determinação essencial sobre o tributo com suficiente exatidão,

sendo desnecessário decidir sobre todas as questões. Noticia, ainda, o autor alemão

que jamais a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade de uma norma tributária

por indeterminação.73 Casalta Nabais, registrando a mesma notícia jurisprudencial,

ressalta que a utilização pelo Tribunal Constitucional Alemão de conceitos

indeterminados, como “suficientemente” e “certa medida” para definir o conteúdo do

princípio da determinação, acaba por fazer deste, nas palavras de Papier, uma flor de

retórica.74

Em nosso país, o Supremo Tribunal Federal vem, aos poucos, abandonando a

idéia da abstração conceitual baseada na tipicidade fechada. No Direito Penal, seara

onde a segurança jurídica ocupa uma posição de destaque, o STF já admitiu a

tipificação aberta em relação ao crime de tortura, o que demonstra que o referido valor

não é arranhado pelo uso dos tipos.75

No campo tributário, a orientação de nossa Corte Suprema vem se modificando em

direção ao reconhecimento de uma maior abertura do tipo. Após a declaração de

inconstitucionalidade, da Taxa de Fiscalização Ambiental do IBAMA (TFA) instituída

pela Lei º 9.969/00, 76 dentre outros motivos por ter a lei deixado a cargo da autoridade

administrativa a definição de quais empresas seriam potencialmente poluidoras, a Corte

73 TIPKE, Klaus. Die Steuerrechtsordnung. Köln: O. Schmidt, 2000, Vol. 1, p. 138, apud: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 486. 74 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 355-356. 75 STF, Pleno, HC nº 70.389, Rel. Min. Sydney Sanches. Rel. p/acórdão: Min. Celso de Mello, RTJ 178/1-168, DJU 10/08/2003, p. 3. 76 STF, Pleno, ADIN 2.178, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 12/05/00.

Page 29: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

passou a admitir, no caso do SAT – Seguro de Acidentes do Trabalho, instituído pelo

art. 22, II, da Lei nº 8.212/91, alterada pela Lei nº 9.528/97, que, de acordo com a

previsão legal de alíquota variável de 1 a 3% sobre a sua folha de salários, de acordo

com o grau de risco que a sua atividade preponderante gera à saúde de seus

empregados, a definição pelo regulamento dos conceitos de “atividade preponderante”

e “grau de risco leve, médio ou grave”.77 Embora, tenha se utilizado como fundamento

da decisão, a tese do regulamento delegado, quando a questão não é de delegação,

mas de interpretação de conceitos indeterminados, a decisão se traduz numa virada da

jurisprudência tributária do STF, que supera o dogma da tipicidade fechada, e caminha

em direção à juridicidade e da legalidade da sociedade de risco.

É importante ressaltar que a utilização dos conceitos abstratos pelas leis tributárias,

além de ser uma pretensão praticamente inatingível, e de constituir-se em flagrante

prejuízo à capacidade contributiva que se pretende mensurar com a tributação, causa

grave lesão também à segurança jurídica, uma vez que o uso de uma linguagem

inequívoca só seria alcançado com o mais alto grau de abstração, o que levaria a

exclusão de toda conexão com a realidade econômica. Tal conclusão é reforçada pela

idéia de que é esta conexão com a materialidade econômica que vincula os atos

praticados pelo contribuinte às autorizações constitucionais e legais da tributação e que

lhe conferem certeza quanto à legitimação do ônus fiscal. Por outro lado, a tentativa de

reduzir o papel hermenêutico do aplicador por meio da adoção de uma estrutura

abstrata, nunca irá ser exitosa, pois uma lei tal, que não requeira qualquer

77 STF, Pleno, RE 343.446-SC, Rel. Min. Carlos Veloso, transcrito no Informativo STF nº 302.

Page 30: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

interpretação, precisamente porque nela não existe nada o que se interpretar, abre

caminho para a sua manipulação discricionária. 78

Como se vê, ao contrário do que sustenta a doutrina formalista, a estrutura

conceitual abstrata não promove uma maior garantia aos direitos do contribuinte, pois a

aplicação da lei a partir unicamente do seu texto, sem considerar o âmbito da norma e

os princípios jurídicos imanentes, leva a uma aplicação irracional do Direito, por não

atingir o significado concreto da norma que, embora limitado pelo seu texto, com ele

não se confunde.79 Assim, a determinabilidade não afasta o compromisso do Direito

Tributário com a juridicidade, uma vez que, se nenhuma regra jurídica é extraída

exclusivamente a partir dos princípios ou da idéia de Direito, também é verdade que

nenhuma decisão jurídica deriva apenas a partir da regra jurídica.80

Deste modo, se o formalismo, por muito tempo, serviu de fundamento a uma

concepção de segurança baseada no abuso das formas jurídicas, tais efeitos vêm

sendo eliminados por uma legislação tributária que cria mecanismos para superar as

práticas evasivas e elisivas. Por outro lado, tal linha de pensamento formalista acaba

por se impor como obstáculo à efetivação dos princípios materiais que tutelam os

78 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 244. No mesmo sentido: RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, Interpretação e Elisão Tributária, p. 32: “A própria segurança jurídica restaria arranhada se os fatos geradores tributários fossem veiculados por estruturas conceituais, uma vez que os tipos, como manifestações da realidade social e econômica, são bem mais concretos do que aquelas, sendo portanto mais adequados a descrever o fato-signo manifestador de capacidade contributiva”. Contra: DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, p. 286. 79 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 308-309: “às vezes, mesmo a segurança jurídica – no sentido de uma segurança jurídica material – vê-se bloqueada, quando o sentido concreto de uma norma jurídica não pode ser ‘retrorreferido’ ao texto da norma, em virtude dos conjuntos de fatos da vida, dos quais o texto da norma depende (e.g. igualdade na aplicação do direito)”. 80 KAUFMANN, Arthur. Filosofía del Derecho, p. 171.

Page 31: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

direitos dos contribuintes, como o princípio da não-surpresa, o princípio da capacidade

contributiva, e o princípio da igualdade.81 Sem falar que a complexidade da legislação

tributária muitas vezes subordina o cálculo de deduções e benefícios fiscais, a

conceitos, como o de despesas necessárias, por exemplo, que não podem ser fixados

previamente pelo legislador, e cuja interpretação formalista, acaba por violar os direitos

do contribuinte.

Nesse sentido, a abertura dos tipos, assim como dos conceitos indeterminados,

permite ao Direito Tributário, o exame da proporcionalidade da adequação da lei

tributária aos fins a que ela se destina constitucionalmente,82 viabilizando o combate

aos abusos de direito e fraudes fiscais. Ademais, o uso dessa estrutura tipológica

atende à generalidade tributária, a partir de uma definição legal baseada na

simplificação. Porém, deve-se advertir que, não se confundindo a justiça tributária com

os interesses da arrecadação, a legitimidade de tais normas simplificadoras dependerá

da proporcionalidade dessas medidas vista sob o ângulo do princípio da capacidade

contributiva. Pouco adianta uma definição legal que, abstratamente seja fiel à

capacidade contributiva efetiva, mas que, no entanto, dada a complexidade na

apuração da base tributável, seja de difícil controle pela Administração. E diante de tal

dificuldade, muitos contribuintes poderão deixar de recolher seus tributos, o que

81 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário, p. 306 “Muitas restrições materiais do poder de tributar, porém – e aqui se evidencia o déficit de uma teoria geral dos conceitos classificatórios -, não podem ser derivados dos ‘elementos constantes dos conceitos das normas’ por meio da ‘subsunção’, pois dependem da concretização dos direitos fundamentais e de uma aplicação direta de um conceito abstrato no Direito. A proibição de excesso, a proporcionalidade e a razoabilidade, por exemplo, são limitações que, ‘em princípio’, não resultam dos ‘conceitos’ de norma de uma lei, embora ‘em princípio’ devessem determinar o conteúdo da relação obrigacional tributária”. 82 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 128.

Page 32: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

provocará uma injusta repartição das despesas públicas e uma violação do princípio da

isonomia no plano da realidade fática. A rigor, sendo o princípio da capacidade

contributiva uma decorrência do valor da igualdade, uma norma simplificadora que

daquele se afaste em alguns casos individuais, mas que venha a garantir a prevalência

da isonomia (que poderia ser violada pela facilidade no descumprimento da legislação

tributária pelos contribuintes, ou pelo alto custo para a sociedade na adoção de

medidas que impeçam esse descumprimento), não atenta contra o referido princípio. É

que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o próprio princípio da capacidade contributiva

é violado se não há possibilidade de se estabelecer mecanismos de controle do

cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes menos imbuídos do dever

de contribuir para as despesas públicas ou quando o alto custo desses controles é

suportado por toda a sociedade. No entanto, tais medidas simplificadoras não podem

descambar em uma tributação que, na maioria dos casos, não reflita a capacidade

contributiva de cada um dos contribuintes, e nem impingir a qualquer deles uma carga

tributária radicalmente distinta da que seria devida caso não houvesse a medida

simplificadora. 83

Abalizada doutrina vem defendendo que a abertura dos tipos seria maior nas taxas

e contribuições parafiscais do que nos impostos.84 Também o Tribunal Constitucional

83 HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Capacidad Económica y Sistema Fiscal – Análisis del ordenamiento español a la luz del Derecho alemán. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 161-162: “Ahora bien, la ineficacia administrativa lleva consigo una aplicación deficiente del sistema fiscal, y ésta supone necesariamente un reparto desigual de las cargas fiscales en beneficio de aquello menos honrados o con menos posibilidades de defraudar. A sensu contrario, la eficacia del control administrativo constituye una condición necesaria (no suficiente) del sistema tributario justo” 84 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado..., v. II, p. 425-427; HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Metodología del Derecho Financiero y Tributario. México: Porrúa, 2004, p. 109: “pensamos que en los tributos distintos de los impuestos la verdadera garantía para el ciudadano no radica en la mención

Page 33: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

da Espanha admite um maior espaço para o regulamento nos tributos sinalagmáticos.85

Porém, tal conclusão se pode chegar, não por uma característica ontológica dos

tributos não-vinculados a uma atuação específica do Estado, uma vez que nesses é

também sensível a influência dos fenômenos da ambigüidade das palavras da lei, da

necessidade de valoração e da abertura da norma à realidade. A despeito dessa

afirmação, é forçoso reconhecer que, historicamente, sendo os impostos frutos de

construções legislativas mais antigas, muitas ainda ligadas à moldura do Direito Civil, o

grau de abertura acaba não sendo tão intenso quanto o verificado nos tributos mais

recentes, sejam eles impostos definidos a partir da realidade econômica, o que constitui

a tendência atual, 86 seja quanto aos tributos vinculados a uma prestação estatal. Por

outro lado, a liberdade do legislador dos impostos também encontra limite nas regras de

competência constitucional e nas definições de fato gerador, base de cálculo e

contribuintes em lei complementar, o que, indiretamente, acaba por reduzir o grau de

abertura do tipo, muito embora tais definições nacionais também sejam quase sempre

estabelecidas por conceitos indeterminados. Enquanto isso, as taxas e contribuições

parafiscais (exceto as que se constituem em impostos afetados travestidos), sempre se

referindo a uma atuação estatal, seja por meio do fato gerador nas primeiras ou da

finalidade nas últimas, acabam deixando ao regulamento uma carga maior de cognição

da realidade, especialmente em matéria técnica. Porém, é preciso deixar claro que o

individualizada del supuesto de hecho de cada pretación por la ley, sino en la existencia de unos criterios de cuantificación lo más precisos posibles, aunque lo sean medidate conceptos jurídicos indeterminados”. 85 STC 106/2000, apud: SÁNCHEZ, Juan Ignácio Gomar. In: HERRERA MOLINA, Pedro Manuel. Comentarios de Jurisprudencia Tributaria Constitucional – Años 2000-2001, Madri: Instituto de Estudios Fiscales, 2003, p. 79. 86 A tendência da transformação de fatos geradores jurídicos em fatos geradores econômicos se verificou também no Brasil, a partir da EC nº 18/65, como na substituição do IVC, que incidia sobre as vendas e consignações, dando origem ao ICM, sobre circulação de mercadorias, e do imposto do selo, que onerava os negócios jurídicos, dando lugar ao IOF, a tributar as operações financeiras.

Page 34: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

grau de abertura, seja nos impostos, seja nos demais tributos, será sempre definido

pela própria lei tributária.

O mesmo fenômeno ocorre com a tributação extrafiscal que, embora subordinada

ao princípio da legalidade nos mesmos termos do que a tributação fiscal, se amolda

freqüentemente a um tipo legal que deixa, em larga medida, ao regulamento a definição

de aspectos vinculados à realidade fática que pretende regular.87 Mais uma vez,

cumpre ter cautela para verificar que esta maior abertura também vai depender de uma

definição legal que atribua maior espaço para valoração objetiva do aplicador, o que vai

variar de acordo com a realidade regulada.88

Porém, embora se reconheça que na sociedade de risco ocorre a passagem do

Estado dos Impostos para o Estado das Taxas (em que as despesas públicas tendem a

ser custeadas por tributos contraprestacionais, ficando os impostos para as despesas

gerais do Estado), vivemos numa época de transição onde os impostos, justificados

pela capacidade contributiva, ainda possuem importância central,89 como instrumento

do Estado Social destinado à redistribuição de riquezas. Assim, também na seara dos

impostos, são aplicadas as idéias oriundas do pós-positivismo tributário, com a sua

87 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos, p. 337; MONCADA. Luís S. Cabral. Lei e Regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 939; e entre nós: DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 133. 88 DOMINGUES, José Marcos. Direito Tributário e Meio Ambiente, p. 143 e 145, onde o autor defende que no Direito Tributário ambiental não há o princípio da determinação, pois dada a extrafiscalidade envolvida na matéria, a indeterminação é a regra, e não a exceção. 89 TORRES, Ricardo Lobo. “A Fiscalidade dos Serviços Públicos no Estado da Sociedade de risco”. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Serviços Públicos e Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 124.

Page 35: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

juridicidade iluminada pelos valores e princípios, a partir da utilização de definições

legais que se abram a eles.

Mas se o princípio da legalidade tributária admite a utilização de tipos na descrição

das hipóteses de incidência dos tributos, exige por outro lado que a lei tome

determinadas decisões a respeito dos seus aspectos essenciais. É verdade que a

indeterminação da linguagem, que caracteriza a estrutura tipológica, abre a tributação

aos valores materiais consagrados constitucionalmente, mas é preciso determinar até

que ponto pode ir a abertura da norma sem que seja comprometida a reserva legal,

para tão se pecar no extremo oposto, de modo a deixar que a autoridade administrativa

escolha as situações econômicas que serão tributadas com base na abstração

oferecida pelos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, afora dos casos

previstos em lei.

No momento que o Direito Tributário se abre aos princípios materiais previstos em

nossa Constituição, é necessário prevenir a tendência, que foi verificada também no

Direito Constitucional e no Direito Administrativo, de pretender resolver tudo com base

nos princípios, esquecendo da importância da correta e segura aplicação das regras.90

90 Tal tendência é diagnosticada no Direito Constitucional com grande acuidade por Daniel Sarmento: “Se quisermos levar à sério a democracia, o impacto negativo que uma “panconstitucionalização” do Direito pode exercer sobre ela tem de ser devidamente sopesado, Portanto, entendemos que a Constituição não pode ser vista como fonte da resposta para todas as questões jurídicas. Uma teoria constitucional minimamente comprometida com a democracia deve reconhecer que a Constituição deixa vários espaços de liberdade para o legislador e para os indivíduos, nos quais a autonomia política do povo e a autonomia privada da pessoa humana podem ser exercitadas”. (SARMENTO, Daniel. “Ubiqüidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda”. In: SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 196). E prossegue o brilhante constitucionalista carioca, comentando os efeitos colaterais da inadequada compreensão da função dos princípios no Direto Pátrio: “E a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do “oba-oba”. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -,

Page 36: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

Por isso, é essencial definir os limites da atribuição de poder decisório à Administração

Fazendária, a fim de preservar as decisões estabelecidas pelo pluralismo político, que

fundamenta a reserva legal tributária na sociedade de risco.

A resposta a essas questões, se não pode ser universalmente dada a priori,

dependerá do exame da natureza e do grau de densidade normativa da linguagem

utilizada pelo legislador, a que o estudo da doutrina dos conceitos indeterminados

presta um efetivo auxílio.91

Os conceitos indeterminados, gênero do qual os tipos fazem parte, se caracterizam

pela indeterminação ou imprecisão da linguagem no plano abstrato da norma,

estabelecendo comandos que serão definidos no momento da aplicação. Sua

utilização não contraria o princípio da determinação, corolário da legalidade, desde que

não resvale para a discricionariedade.

Esses conceitos, quando tomados em sentido estrito se diferenciam da

discricionariedade, pois, enquanto nos primeiros o legislador estabelece a solução a ser

adotada no caso concreto, que poderá ser identificada pelo aplicador por meio da

passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu espaço muito maior para a decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandioqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser”. (“Ubiqüidade Constitucional..”., p. 200 ). Embora a lição se dirija ao decisionismo dos juízes, também se aplica às autoridades administrativas fazendárias, notadamente quando essas baseiam na capacidade contributiva a autorização para a tributação não prevista em lei. 91 Para Karl Engisch, o uso dos conceitos indeterminados, das cláusulas gerais, da eqüidade e dos elementos normativos nas hipóteses, constitui importantes mecanismos de aplicação da práxis jurídica em sentido tipificador. (ENGISCH, Karl. La Idea de Concreción ..., p. 411).

Page 37: A TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

interpretação efetivada a partir de uma valoração objetiva, que se baseará nas idéias

sociais dominantes no tempo e no espaço considerados, nos últimos, o legislador

transfere a decisão sobre o justo ao aplicador, que poderá decidir a respeito da solução

correta com base numa valoração subjetiva.

Nos dias atuais, o princípio da legalidade tributária aceita a utilização dos

conceitos indeterminados, capazes de enfrentar a imprevisibilidade e a ambivalência da

sociedade de risco, mas não admite a adoção pelo legislador dos conceitos

discricionários, pois violadores do pluralismo político e social que lhe serve de

fundamento no Estado Social e Democrático de Direito.