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1 DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana Taveira da Fonseca 1. Introdução: Poucos dias depois de termos entregado a nossa dissertação de doutoramento, foi proferido um acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto 1 em que se discutia se o direito de retenção - previsto nos arts. 754.º e 755.º - poderia ser aplicado por analogia a situações em que o legislador não atribuiu ao devedor a possibilidade de reter a coisa até que o seu credor pagasse o contracrédito de que, por sua vez, é devedor. Em causa estava uma situação em que os autores da acção entregaram ao réu, que foi subsequentemente declarado insolvente, 382.000,00 € para este último os aplicar na abertura de uma carteira de títulos cotada em bolsa sob o seu controlo. Aquele a quem o dinheiro tinha sido confiado confessou-se devedor perante os autores da acção e para extinção de tal dívida entregou-lhes um imóvel que, mais tarde, estes vieram a descobrir estar previamente hipotecado a um terceiro. Ficou igualmente provado que os autores da acção eram “pessoas de avançada idade, de baixa instrução e trabalhadores agrícolas, que juntaram ao longo da vida o suficiente para uma velhice descansada”. Na sequência da declaração de insolvência do réu, os autores da acção, num processo de verificação ulterior de créditos (arts. 146.º a 148.º do CIRE), em que o seu crédito foi reconhecido nos termos do art. 136.º do CIRE, peticionaram que este fosse graduado como um crédito da insolvência garantido por direito de retenção. Por esta via, pretendiam que a sua garantia prevalecesse sobre a hipoteca anteriormente constituída. Sabendo que não estavam perante uma das 1 Ac. TrRelPt de 7 de Outubro de 2013, Processo n.º 1900/11.8TBPVZ-F.P1, in www.dgsi.pt

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DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS

Ana Taveira da Fonseca

1. Introdução:

Poucos dias depois de termos entregado a nossa dissertação de

doutoramento, foi proferido um acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto1 em

que se discutia se o direito de retenção - previsto nos arts. 754.º e 755.º - poderia

ser aplicado por analogia a situações em que o legislador não atribuiu ao

devedor a possibilidade de reter a coisa até que o seu credor pagasse o

contracrédito de que, por sua vez, é devedor.

Em causa estava uma situação em que os autores da acção entregaram

ao réu, que foi subsequentemente declarado insolvente, 382.000,00 € para este

último os aplicar na abertura de uma carteira de títulos cotada em bolsa sob o

seu controlo. Aquele a quem o dinheiro tinha sido confiado confessou-se

devedor perante os autores da acção e para extinção de tal dívida entregou-lhes

um imóvel que, mais tarde, estes vieram a descobrir estar previamente

hipotecado a um terceiro. Ficou igualmente provado que os autores da acção

eram “pessoas de avançada idade, de baixa instrução e trabalhadores agrícolas,

que juntaram ao longo da vida o suficiente para uma velhice descansada”. Na

sequência da declaração de insolvência do réu, os autores da acção, num

processo de verificação ulterior de créditos (arts. 146.º a 148.º do CIRE), em que

o seu crédito foi reconhecido nos termos do art. 136.º do CIRE, peticionaram

que este fosse graduado como um crédito da insolvência garantido por direito

de retenção. Por esta via, pretendiam que a sua garantia prevalecesse sobre a

hipoteca anteriormente constituída. Sabendo que não estavam perante uma das

1 Ac. TrRelPt de 7 de Outubro de 2013, Processo n.º 1900/11.8TBPVZ-F.P1, in

www.dgsi.pt

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hipóteses em que a lei atribui um direito de retenção para garantia do crédito,

defenderam que existiria uma lacuna que deveria ser colmatada através do

recurso a uma analogia legis, dada a similitude entre a situação em apreço e

aquelas que, nos termos do art. 754.º e 755.º, n.º1, conferem ao credor/devedor

um direito de preferência pelo valor da coisa retida.

Entendeu que o Tribunal que o crédito dos autores da acção não gozava

de direito de retenção, porque este é “um direito excecional, ou melhor dito, as

que o consagram (e que os recorrentes pretendem ver aplicadas

analogicamente) são normas excecionais (…). E, como se afirmou

anteriormente, e decorre expressamente do artigo 11.º do CC, as normas

excecionais não comportam aplicação analógica”.

A este fundamento para recusar a analogia legis acrescentou que “mesmo

que a impossibilidade de aplicação da norma por analogia, decorrente da sua

excecionalidade, não se revelasse argumentativamente decisiva, nunca poderia

esquecer-se que essa impossibilidade decorre diretamente do princípio da

taxatividade dos direitos reais, consagrado no artigo 1306.º, n.º1 do CC”.

A leitura do referido aresto serve de mote à revisitação de dois dos

problemas com que nos confrontamos ao longo da nossa investigação: saber em

que medida é que, fora das hipóteses em que o devedor pode lançar mão da

excepção de não cumprimento ou do direito de retenção, o facto de o direito de

retenção constituir um direito real de garantia impedirá o devedor de recusar a

realização de uma prestação até que o seu credor satisfaça o crédito de que, por

sua vez, é devedor e, em caso afirmativo, qual oponibilidade relativamente a

terceiros de que gozará este direito de recusa do cumprimento de uma

obrigação para tutela de um direito de crédito

2. O direito de retenção e o princípio da taxatividade dos direitos reais no Código

de Seabra e no Anteprojecto de Vaz Serra:

À luz do Código de Seabra, ao possuidor de boa fé era reconhecido o

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direito de reter a coisa enquanto não fosse ressarcido das benfeitorias

necessárias (art. 498.º e § 2, do Código de Seabra) ou úteis feitas naquela (art.

499.º, §2.º, do Código de Seabra). Da mesma forma, era atribuído um direito de

retenção ao mandatário sobre o objecto do mandato, até que este estivesse

“embolsado do que, em rasão deste, se lhe deva” (art. 1349.º do Código de Seabra), ao

empreiteiro de obra mobiliária, enquanto não lhe fosse pago o preço (art. 1407.º

do Código de Seabra), e ao recoveiro e ao barqueiro sobre os objectos

transportados até que o transporte fosse pago (art. 1414.º do Código de Seabra).

O depositário podia reter a coisa depositada enquanto não fosse reembolsado

das despesas que tivesse realizado com a conservação da coisa ou por causa

dela (art. 1450.º do Código de Seabra), assim como ao arrendatário era

concedido um direito de retenção do locado até ser restituído o valor das

benfeitorias expressamente consentidas pelo locador ou autorizadas por lei (art.

1614.º do Código de Seabra) e ao usufrutuário e seus herdeiros, findo o

usufruto, “por desembolsos de que devam ser pagos” (art. 2251.º do Código de

Seabra).

Em face da dispersão de normas que atribuíam ao devedor um direito de

retenção e de a lei, expressamente, determinar que o comodatário não gozava

de direito de retenção até que lhe fossem pagas as despesas extraordinárias e

inevitáveis que tivessem sido feitas por causa da coisa emprestada (art. 1521.º

§1, do Código de Seabra), não é de estranhar a divisão existente na doutrina

sobre a taxatividade das hipóteses de direito de retenção. A este propósito,

referia M. HELENA GARCIA DA FONSECA que seria “já secular o problema que gira

à volta de saber se o Direito de Retenção é um instituto de carácter geral, ou

antes um instituto de carácter excepcional por só ter lugar no caso de existir

texto de lei atribuindo-o”2.

2 M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de

Retenção como Instituto de Carácter Geral”, ROA, ano 10, 1950, I e II, p. 372.

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Para a maioria da doutrina, o direito de retenção só podia ser

reconhecido ao devedor nos casos expressamente previstos na lei. Esta solução

baseava-se no facto de o direito de retenção ser oponível a terceiros, ainda que

não existisse um consenso quanto aos efeitos que, em concreto, relativamente

àqueles o referido direito produziria.

CARNEIRO PACHECO considerava que as hipóteses de direito de retenção

previstas na lei não podiam ser aplicadas por analogia a outras situações nela

não contempladas, porque produziriam, relativamente a terceiros, efeitos

superiores aos de um direito de preferência3.

Apesar da forte influência exercida pela pandectística germânica no

pensamento de GUILHERME MOREIRA, o autor entendia que o direito de retenção

não tinha um carácter geral, porquanto, atribuindo ao seu titular um direito a

ser pago com preferência, constituía uma excepção ao princípio da igualdade

dos credores. Para o autor, no direito de retenção, os créditos, ainda que

conexos e recíprocos, eram independentes, pois cada um deles “não é causa

jurídica do outro”. O direito de retenção “não resulta da própria natureza da

obrigação” e, por isso, constitui somente uma garantia concedida por lei4.

Da mesma forma, defendia PAULO CUNHA que as hipóteses em que a lei

concedia ao devedor um direito de retenção deviam ser entendidas como

excepções ao “princípio de que não deve haver preferências no pagamento dos

credores pelos bens do devedor”5, estando, por conseguinte, excluída a

possibilidade de aplicação analógica do direito de retenção a outras situações.

Apesar de a teoria da taxatividade das hipóteses de direito de retenção

imperar na vigência do Código de Seabra, esta concepção acaba por ser

3 CARNEIRO PACHECO, Do Direito de Retenção na Legislação Portuguêsa, Coimbra, 1911, pp.

117 e ss. 4 GUILHERME MOREIRA, Instituições do Direito Civil Português, II, Das Obrigações, 2.ª ed.,

Coimbra, 1925, p. 118. Em sentido idêntico, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações,

(com a colaboração de Rui de Alarcão), 3.ª ed., Coimbra, 1966, pp. 331 e 332. 5 PAULO CUNHA, Da Garantia nas Obrigações, t.II, apontamentos coligidos por Eudoro

Pamplona Côrte-Real, 1938-1939, pp. 155 e 156.

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contestada por alguma doutrina no primeiro quartel do séc. XX.

Assim, com base no art. 1521.º, que recusava o direito de retenção ao

comodatário, JOSÉ TAVARES defendia a aplicação do direito de retenção desde

que existisse uma relação de reciprocidade entre crédito e débito, mesmo que

não houvesse uma “relação de conexidade entre o crédito e a cousa retida. São

todos os casos em que é admitido o direito de reconvenção, nos termos dos arts.

331.º e 333.º do código do processo. Simplesmente êste direito de retenção, não

tendo o seu fundamento na relação de dependência entre o crédito e a cousa, só

tem efeitos entre as próprias partes e os seus representantes”6.

CUNHA GONÇALVES7, por sua vez, apoiando-se também no art. 1521.º,

n.º1, considerava que “embora o direito de retenção seja uma garantia e importe

uma preferência, isto não implica que êle só seja de admitir nos casos expressos

na lei, pois que, realizando-se em determinadas condições, que dos textos legais

resultam, o direito de retenção não deixa de ser uma excepção por ser extensivo

aos casos não previstos”. Não deixa, contudo, de salientar que não é pelo

simples facto de existir a detenção de uma coisa e de os créditos serem

recíprocos que essa aplicação extensiva é defensável. O direito de retenção

seria, assim, reconhecido ao devedor em dois grandes grupos de casos: quando

existisse uma conexão objectiva entre o crédito e a coisa retida e nas obrigações

emergentes de um contrato sinalagmático8, o que permite perceber que, para

CUNHA GONÇALVES, a excepção de não cumprimento constituía uma hipótese

ou exemplo de direito de retenção.

Por último, M. HELENA GARCIA DA FONSECA admitia que o devedor

gozaria de direito de retenção sempre que existisse uma relação de conexão

objectiva entre o crédito e a coisa retida, “deixando à “exceptio non adimpleti

6 JOSÉ TAVARES, Princípios Fundamentais do Direito Civil, I, Coimbra, 1922, pp. 565 e 566. 7 CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, Coimbra, 1931, pp. 522 e 523. 8 CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, cit., pp. 523 e 524.

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contractus” os casos de conexidade subjectiva”9.

No anteprojecto do Código Civil, VAZ SERRA tinha previsto que, ao lado

do direito real de retenção fundado na conexão material entre a coisa retida e o

crédito, existisse um direito de retenção obrigacional sempre que houvesse uma

conexão jurídica entre os créditos resultante de a obrigação de entrega da coisa

e o crédito do retentor derivarem da mesma relação jurídica. De acordo com a

referida proposta, considerava-se que os créditos tinham origem na mesma

relação sempre que “se [fundassem] em várias relações jurídicas, uma vez que

estas se [apresentassem] economicamente como uma só, já em consequência do

fim tido em vista pelas partes, já em virtude da opinião corrente na vida dos

negócios, não excluídas por elas”10. Previa-se igualmente que, nestes casos, o

direito de retenção não constituiria um direito real de garantia, mas atribuiria

somente ao retentor o direito a não cumprir a sua obrigação enquanto a

contraparte não realizasse aquela que estava adstrita a cumprir.

Este direito obrigacional de retenção não se confunde com a exceptio non

adimpleti contractus, ainda que o alargamento do âmbito de aplicação do direito

de retenção possa, em abstracto, determinar uma sobreposição dos institutos. A

excepção de não cumprimento sempre estaria reservada aos contratos

sinalagmáticos e existiria em virtude da interdependência das prestações,

enquanto o direito de retenção, não sendo uma consequência natural do

contrato, deveria ser qualificado como uma garantia atribuída por lei ao credor

por razões de equidade11. Se se excluísse, conforme proposto no anteprojecto, a

possibilidade de o direito obrigacional de retenção ser exercido, sempre que os

créditos, para além de conexos, estivessem unidos por um vínculo de

sinalagmaticidade, o agente não poderia sequer prevalecer-se, em simultâneo,

9 M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de

Retenção como Instituto de Carácter Geral”, cit., pp. 389 e ss.

10 VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, BMJ, n.º 65, 1957, p. 247.

11 Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., pp. 162 e ss. e 204 e 205.

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destes dois instrumentos de tutela do crédito. A solução apresentada tinha a

vantagem de tornar o direito de retenção aplicável aos contratos bilaterais

quando entre as prestações não intercedesse uma relação de sinalagmaticidade.

É verdade que esta forma de direito de retenção pode prestar-se a

invocações abusivas para evitar o cumprimento de uma obrigação devida. Por

isso, previa VAZ SERRA a fixação de limites ao seu exercício. Assim, “o direito de

retenção [deveria ser excluído] quando [fosse] incompatível com instruções

dadas pelo devedor antes ou na data da entrega da coisa, com uma obrigação

contraída pelo credor, ou, de uma maneira geral, com a finalidade da obrigação

ou a vontade das partes” e, por fim, “quando [contrariasse] a boa fé”12.

O que individualizava os diversos direitos de retenção previstos no

anteprojecto era a existência de uma conexão, fosse ela material ou jurídica,

entre a coisa e o crédito. Por esse motivo, no ordenamento jurídico português,

não se encontra prevista qualquer hipótese de direito de retenção de uma coisa

sem que exista uma qualquer conexão entre esta e o crédito. Contrariamente, no

direito espanhol (art. 1866.º, 2 do CCes.) e no direito italiano (art. 2794 do CCit.),

o credor reter a coisa findo o penhor, se o devedor tiver contraído um novo

crédito junto do primeiro após a constituição do penhor que não se encontre

garantido por este13. A solução deriva do pignus gordianum romano. A retenção

não se funda, neste caso, na conexão existente entre créditos14, mas na

circunstância de se presumir que o credor concedeu ao devedor novo crédito

tendo em conta o penhor constituído por este para garantia de uma dívida

anterior.

Posição diferente foi a do legislador civil alemão que, tendo em conta os

12 VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 161.

13 No direito francês, a mesma possibilidade era atribuída ao credor pignoratício no art.

2082, 2, do CCfr. que foi, recentemente, revogado. 14 O facto de, nestas hipóteses, não existir uma conexão entre créditos conduz BIGLIAZZI

GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 165, a concluir que estamos

perante “uno strumento di tutela che della ritenzione ha soltanto il nome”.

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trabalhos preparatórios do direito das coisas da autoria de Reinhold Johow,

rejeitou a figura do pignus gordianum devido à inexistência, nestas situações, de

uma relação de conexão15. A solução germânica foi, neste caso, a consagrada no

direito português.

Embora na versão definitiva do Código Civil se tenha contemplado um

direito de retenção com carácter geral quando existe uma conexão material

entre a coisa retida e o crédito, não se foi tão longe quanto no BGB e no Código

Civil dos Países Baixos, pois não se consagrou a possibilidade de também haver

direito de retenção sempre que os créditos provenham da mesma fonte, ou seja,

tenham uma origem comum.

A justificação para a não consagração da proposta de VAZ SERRA é

apresentada por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA no seu Código Civil Anotado16.

O legislador terá considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira

figura de contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de

não cumprimento do contrato, que poderia criar problemas de interpretação,

pelo que recusou a proposta constante do anteprojecto. Circunscreveu-se o

direito de retenção, com carácter geral, às situações em que existe uma conexão

material entre os créditos. Quando os créditos provêm da mesma relação

jurídica, só é possível recorrer ao direito de retenção nas situações

especialmente previstas na lei, mas este constitui sempre um direito real de

garantia.

15 Cfr. PETER GRÖSCHLER, Historisch-kritischer Kommentar zum BGB, II, Schuldrecht:

Allgemeiner Teil, §§241-432, Tübingen, 2007, p. 841. 16 Segundo PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, cit., p. 775, Ter-se-á

considerado que a generalização “do direito de retenção acarretava grandes e muitas dúvidas,

quando, parece, não devem aceitar-se outros casos além dos que o novo Código prevê. Por

outro lado, o regime especial sugerido por VAZ SERRA conduzia à admissão de uma terceira

figura, intermédia entre o direito de retenção e a excepção de não cumprimento do contrato, de

contornos mal definidos e susceptível de criar embaraços de interpretação. Parece, por tudo,

melhor a solução deste art. 755.º. Não há direito de retenção, baseado na simples comunhão de

fonte, senão nos casos nele previstos. E esse direito de retenção é, sem limitações, um direito

real de garantia”.

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O poder de se reter uma prestação sempre que a outra parte não tivesse

realizado a prestação, proveniente da mesma relação jurídica, que sobre esta

recaía, agravada pela circunstância de a mesma solução se dever aplicar, ainda

que os créditos se fundassem em relações jurídicas distintas, desde que

economicamente se apresentassem como uma só, tinha a aparente desvantagem

de, em certas situações, o mesmo contraente poder recusar a realização da sua

prestação, invocando quer a excepção de não cumprimento, quer o direito

obrigacional de retenção. Nesse caso, o anteprojecto previa que não seria

possível recorrer ao direito de retenção mas somente à excepção de não

cumprimento17, o que corresponderia aos interesses do obrigado à restituição da

prestação retida, porquanto o direito de retenção, ao contrário do que acontece

com a exceptio, podia ser excluído, caso a outra parte prestasse caução.

A solução adoptada no Código Civil tem o mérito de evitar a

sobreposição dos dois institutos, embora a questão estivesse devidamente

acautelada no anteprojecto, mas o inconveniente de deixar em aberto a

regulação das situações em que dois créditos emergem da mesma relação

jurídica ou da mesma relação da vida e uma parte exige o cumprimento de uma

obrigação, não tendo cumprido aquela a que estava adstrita.

A consagração de um direito obrigacional de retenção evitaria que um

devedor fosse obrigado a cumprir sem receber a prestação de que é, por sua

vez, credor. Todavia, o direito de retenção deixaria de ter, exclusivamente, por

objecto a retenção de uma coisa, para poder compreender a recusa de

cumprimento de qualquer prestação desde que conexa com aquela cujo

cumprimento é exigido.

17 Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 255. Esta é a solução defendida pela

doutrina germânica. A este propósito, v. STAUDINGER/ CLAUDIA BITTNER, Kommentar zum

Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, 2, Recht der Schuldverhältnisse, §§

255-304, Berlin, 2009, §273, n.º 2, p. 205 e KRÜGER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen

Gesetzbuch, 2, Schuldrecht Allgemeiner Teil, §§ 241-432, 6.ª ed., München, 2012, § 273, n.º 37, pp.

683 e 684.

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10

Por outro lado, esta sobreposição do âmbito de aplicação da excepção de

não cumprimento e do direito de retenção é mais aparente do que real. É

verdade que os efeitos processuais e extraprocessuais do exercício do direito de

retenção e da excepção de não cumprimento se aproximariam, mas o seu

âmbito de aplicação sempre poderia ser distinguido. A excepção de não

cumprimento aplicar-se-ia às obrigações unidas por um vínculo de

sinalagmaticidade, enquanto o direito de retenção seria reconhecido ao agente

sempre que estivesse em causa o cumprimento de obrigações conexas que não

fossem correspectivas ou interdependentes.

Pensamos, assim, poder concluir que, mais do que evitar a sobreposição

de institutos, o que se pretendeu na versão definitiva do Código Civil de 1966

foi limitar as excepções ao princípio da par conditio creditorum. De facto, é

possível atribuir ao direito de retenção um âmbito de aplicação mais amplo do

que aquele que se encontra contemplado na nossa lei civil e evitar a existência

de uma situação de concurso, no sentido de uma sobreposição do âmbito de

aplicação dos dois institutos. A proposta apresentada por VAZ SERRA

contemplava, como vimos, expressamente essa solução. Esta proposta de uma

aplicação distributiva do direito de retenção e da excepção de não cumprimento

é, usualmente, defendida no ordenamento jurídico germânico. A este propósito

pode, a título meramente ilustrativo, ver-se a posição defendida por

GERNHUBER18. De acordo com o autor, tendo uma das partes a possibilidade de

invocar a excepção de não cumprimento, o direito de retenção deixa de poder

ser invocado. Tal não impedirá, todavia, uma aplicação combinada dos dois

institutos. Imagine-se a hipótese de o dono da obra se recusar a pagar o preço

até que os vícios desta sejam expurgados, invocando a excepção de não

cumprimento, e o empreiteiro recusar-se a entregar a obra até que o pagamento

do preço seja feito, invocando um direito de retenção. Neste caso, podemos ter

18 GERNHUBER, Das Schuldverhältnis, Tübingen, 1989, §14,V, 5b), p. 334.

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uma dupla sentença Zug um Zug sem que esta implique, contudo, uma

sobreposição dos institutos.

O nosso legislador optou, assim, por um modelo de direito de retenção

que ficou a meio termo entre a solução germânica e a constante do Código Civil

francês que, por sua vez, terá influenciado os Códigos Civis italiano e espanhol.

3. O princípio da taxatividade dos direitos reais e o princípio da par conditio

creditorum enquanto limites à analogia legis – O resumo que fizemos do Acórdão

do Tribunal da Relação do Porto permite por si só concluir que a existência de

uma conexão entre créditos não se encontra limitada às situações previstas no

nosso Código Civil e em legislação avulsa.

Podíamos aqui referir, contudo, mais exemplos. O mais impressivo

talvez se encontre nas situações em que ao devedor da entrega de uma coisa é

atribuído um direito de retenção até que a contraparte cumpra uma obrigação

conexa, mas a esta última não é reconhecida faculdade idêntica. Em causa estão,

por conseguinte, situações simétricas às previstas no art. 755.º. Por exemplo, se

o depositário tem direito de reter a coisa depositada até ser pago pelo

depositante pelas despesas de conservação da coisa, a este devia

correspondentemente ser reconhecido o direito de recusar o pagamento dessas

despesas até que a coisa depositada seja entregue. Todavia, este não pode

invocar nem a excepção de não cumprimento por não existir de uma relação de

correspectividade ou interdependência entre as obrigações, nem o direito de

retenção por este não se encontrar previsto na lei. Por sua vez, a compensação

será excluída por inexistir in casu uma homogeneidade dos créditos.

Se A vende a B uma coisa, B paga o preço, mas A lhe entrega uma coisa

diferente da devida (aliud), poderá B recusar-se a restituir a coisa, até que lhe

seja entregue aquela a que tem direito?

Na hipótese enunciada, não será possível a B recusar-se a restituir a coisa

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com base na exceptio non adimpleti contractus, por não existir um vínculo de

sinalagmaticidade entre as obrigações de restituição. Por outro lado, encontra-

se, igualmente, excluída a possibilidade de B invocar a compensação dos

créditos, porque estes não têm como objecto coisas fungíveis, da mesma espécie

ou qualidade. Por fim, ainda que exista uma clara conexão jurídica entre a

restituição da coisa indevidamente prestada e a entrega da coisa devida, não

nos encontramos perante uma das hipóteses em que, à luz do direito português,

ao devedor é reconhecido um direito de retenção.

A existência de situações em que há uma conexão entre créditos, mas em

que o devedor não pode recusar-se a cumprir até que o credor realize, por sua

vez, a prestação a que está adstrito, convoca-nos a equacionar a aplicação a

estes casos, por analogia, das regras que disciplinam o direito de retenção.

Esta possibilidade de extensão analógica do regime aplicável ao direito

de retenção a outras situações de conexão jurídica entre créditos depende,

contudo, da resposta a uma das questões formuladas no Acórdão do Tribunal

da Relação do Porto que serviu de mote à presente exposição: saber em que

medida é que essa analogia se encontra precludida por este direito constituir

um direito real de garantia, e, como tal, se encontrar limitado pelo princípio da

taxatividade ou do numerus clausus dos direitos reais (art. 1306.º, n.º1).

A este propósito, não nos afastamos daquele que é o entendimento

dominante na doutrina e jurisprudência pátrias, segundo o qual, constituindo o

direito de retenção um direito real de garantia de origem legal, a

impossibilidade de aplicar, por analogia, o direito de retenção a outras situações

de conexão jurídica resulta, não tanto da proibição de criação de direitos reais

não tipificados na lei e da impossibilidade de aplicação analógica das normas

que fixam o regime dos direitos reais a situações jurídicas não reais (art. 1306.º),

mas sobretudo da existência de uma tipicidade-taxativa dos factos constitutivos

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deste mesmo direito19. É que, apesar de o princípio da taxatividade dos direitos

reais não abranger em princípio os factos constitutivos, modificativos ou

extintivos desses mesmos direitos20, essa regra só pode logicamente valer para

os direitos reais com fonte convencional e não para aqueles que, como sucede

com o direito de retenção, têm uma origem somente legal. Neste caso, os factos

constitutivos são só e apenas aqueles que se encontram previstos na lei21 e essa

taxatividade encontra o seu fundamento na necessidade de protecção de

terceiros que, de outra forma, veriam um direito real seu arredado ou

prejudicado pela existência de um direito real de garantia com o qual não

podiam logicamente contar.

De facto, por força exclusiva da lei, o retentor torna-se titular de uma

garantia real que lhe concede o direito a ser pago com preferência pelo valor de

uma determinada coisa, o que pode limitar os direitos reais de terceiro sobre a

mesma coisa e a garantia dos credores comuns, sem necessidade sequer de se

proceder ao registo dessa mesma aquisição, para que esta limitação seja

oponível a terceiros.

E isto permite-nos, desde já, assinalar que o direito de retenção não se

pode aplicar por analogia a outras situações de conexão jurídica também por

constituir uma limitação ao princípio da par conditio creditorum (art. 604.º, n.º2)

A nosso ver, a verdadeira justificação para excluir a aplicação, por

analogia, do regime do direito de retenção a outras situações de conexão

jurídica encontra-se nesta necessidade de protecção de terceiros. Protecção tão

19 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, 5.ª ed., Coimbra, 2000, p. 287, CARVALHO

FERNANDES, Lições de Direitos Reais, cit., p. 84, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao

Discurso Legitimador, 10.ª reimpr. Coimbra, 1997, p. 201 e ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e

Tipicidade em Direitos Reais”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles,

IV, Coimbra, 2003, pp. 488 e ss. 20 Cfr. ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e Tipicidade em Direitos Reais”, cit., pp. 484 e

ss.

21 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, cit., p. 553 e CARVALHO FERNANDES, Lições

de Direitos Reais, 6.ª ed., Lisboa, 2009, p. 237.

Page 14: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

14

mais indispensável quanto o direito de retenção sobre imóveis prevalece sobre

as hipotecas anteriormente constituídas (art. 759.º). Dito de outra forma, é por

estarmos perante uma possível limitação/restrição a outros direitos reais que

tenham por objecto a coisa retida e à garantia geral das obrigações, o que

contende com os direitos dos credores comuns, estranhos à relação que se

estabelece entre credor e devedor recíprocos, que não será possível a

constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas na lei22.

É certo que, apesar de não estar sujeito a registo, a publicidade em

relação a terceiros do direito de retenção é assegurada pela detenção efectiva

exigida ao retentor, o que não sucede com outras garantias reais de fonte legal

como os privilégios creditórios. Ela não é, contudo, suficiente para alicerçar um

direito de preferência oponível a terceiros fora das hipóteses expressamente

contempladas na lei.

Assim, ainda que, na esteira do que defende CALVÃO DA SILVA a

propósito da impossibilidade da extensão analógica do regime do direito de

retenção23, se deva entender que as normas que estabelecem uma excepção a um

regime-regra devem ser aplicadas dentro dos limites do pensamento

fundamental subjacente a esse preceito (excepcional), tal não é suficiente para

abarcar todas as situações de conexão jurídica. A regra permite tão somente

aplicar, na plenitude da sua razão de ser, as várias disposições legais que

consagram um direito de retenção a favor do devedor-credor.

Assim, de acordo com o art. 755.º, n.º1, é titular de direito de retenção “o

albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a

pousada ou acessórios dela, pelo crédito da hospedagem”. Dever-se-á entender

22 No mesmo sentido, à luz do ordenamento jurídico italiano e espanhol, v. D’AVANZO,

“Ritenzione (Diritto di)”, Novíssimo Digesto italiano, XVI, Torino, 1969, p. 176, ANGELO SATURNO,

“Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed estensibilità”, Rassegna di Diritto Civile,

1991, I, pp. 89 e 90 e TERESA ECHEVARRÍA DE RADA, ”En torno al derecho de retención”, Estudios

Jurídicos en Homenaje al Profesor Luis Díez-Picazo, II, Madrid, 2003, p. 1772

23 CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª ed., Coimbra, 2002,

p. 340.

Page 15: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

15

que gozam de igual direito o proprietário mas igualmente aquele a quem foi

cedida a exploração de um hotel sobre as coisas trazidas pelos hóspedes até ser

pago não só do valor da estadia, como também todos os outros serviços que

uma unidade hoteleira usualmente presta. Todavia, já não caberá no

pensamento fundamental subjacente a este preceito, a possibilidade de, depois

de restituído o locado, o locador reter os bens do locatário que ainda se

encontrem no imóvel até serem pagas as rendas em atraso.

Pelas razões apontadas, concordamos com a solução perfilhada pelo

Tribunal da Relação de Lisboa em que se considerou existir uma conexão entre

a obrigação de restituição de um veículo e o crédito resultante não só da

reparação do automóvel, como também do diagnóstico da avaria. A decisão

recusou, porém, a possibilidade de o direito de retenção garantir o pagamento

devido pela viatura de substituição que foi contratada pelo cliente que era

credor da restituição do automóvel24.

Mais questionável é, à luz do direito constituído, a decisão proferida pelo

mesmo Tribunal da Relação de Lisboa em que se reconheceu existir direito de

retenção, em caso de incumprimento de um contrato-promessa de permuta de

imóveis, em que as partes não procederam ao pagamento de qualquer quantia a

título de sinal25. No caso, uma delas tinha transmitido a propriedade do imóvel,

enquanto a outra se tinha limitado a entregar os imóveis que tinha prometido

vender. Apesar de o art. 755.º, n.º1, al.f), restringir o direito de retenção às

hipóteses em que o retentor é titular de um crédito resultante do não

cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º, entendeu o

Tribunal que o facto de os promitentes fiéis terem uma detenção legítima dos

imóveis lhes permitia retê-los até que se realizasse o contrato definitivo. A

decisão alicerçou-se no argumento de “tendo-se operado a tradição destes

24 Ac. TrRelLx de 15 de Dezembro de 2011, CJ, t. 5, pp. 132 e ss. 25 Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, CJ, t. 4, pp. 111 e ss.

Page 16: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

16

imóveis a favor dos Autores, parece que estes devem gozar de direito de

retenção para garantia do seu crédito derivado da sua prestação anteriormente

efectuada a favor da Ré. Este crédito equivale ao sinal a que lei se refere a

propósito do contrato-promessa de compra e venda. Tratando-se de um

contrato promessa de troca não se pode falar de sinal, mas não seria justo que

não fosse concedido ao titular do referido crédito idêntico direito”26. Ainda que

à luz da ideia de justiça a decisão seja inquestionável, conferir ao promitente-

adquirente este direito de retenção consubstancia a aplicação, por analogia, do

disposto no art. 755.º, n.º1, al.f) a um contrato-promessa cujo incumprimento,

sendo imputável à contraparte, não gera qualquer crédito nos termos do art.

442.º.

Pela mesma ordem de razões, é discutível que o direito de retenção

atribuído ao agente comercial sobre os objectos e valores que detém em virtude

do contrato de agência pelos créditos resultantes da sua actividade (art. 35.º do

DL 178/86, de 3 de Julho) possa ser reconhecido ao franquiado e ao

concessionário.

Todavia, se a tutela das expectativas de terceiros, titulares de outros

direitos reais de garantia sobre a coisa retida ou dos credores comuns do

mesmo devedor, impede a aplicação, por analogia, do direito (real) de retenção

a outras situações de conexão jurídica não significa que não exista uma lacuna

que, por outra via, careça de ser colmatada. A afirmação da existência de uma

lacuna postula que se comece por determinar se a questão não deve ser deixada

ao “espaço livre do Direito” ou se, pelo contrário, se trata de uma

“incompletude contrária ao plano do Direito vigente”27.

Da mesma forma, não pode impedir as partes de criarem direitos de

26 Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, cit., p. 113.

27 Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 194 e

ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 9.ª ed., Lisboa, 2004 (tradução de Baptista Machado

de Einführung in das juristische Denken, 8.ª ed., Stuttgart, 1983), p. 281.

Page 17: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

17

retenção por acordo desde que estes não ponham em causa os direitos de

terceiros estranhos a esse acordo.

4. Direito de retenção convencional – O facto de a protecção das expectativas

de terceiro - operada através dos princípios da taxatividade dos direitos reais e

da par conditio creditorum – excluir a aplicação por analogia do direito de

retenção não impede as partes de convencionarem que, em caso de não

cumprimento de uma obrigação, a outra poder-se-á recusar a cumprir uma

prestação recíproca, mesmo que essa hipótese não se encontre contemplada na

lei

Com isto não se pretende sustentar que as partes podem, por acordo,

afastar todos os pressupostos e prevalecer-se de todos os efeitos do direito de

retenção, tal como este se encontra previsto nos arts. 754.º e ss. Há, por essa

razão, necessidade de identificar certas disposições imperativas que, para a

salvaguarda de interesses públicos ou de terceiros, introduzem limites à

autonomia privada.

Em primeiro lugar, para que o acordo possa ser considerado válido é

necessário que exista, antes da invocação da excepção de retenção, uma

detenção lícita da coisa a reter porque, de outra forma, estar-se-ia a recorrer à

força própria, fora dos casos previstos na lei, para obter a detenção da coisa, o

que seria contrário ao disposto no art. 1.º do CPC.

Conforme já fomos aflorando ao longo da nossa exposição, os

mecanismos de autotutela passiva não se encontram sujeitos às mesmas

restrições aplicáveis às demais formas de autotutela que implicam que o titular

do direito recorra à força própria para se defender de uma ameaça ilícita ou

para realizar o seu direito. De facto, a necessidade de protecção da paz e ordem

públicas faz-se sentir com maior acuidade relativamente aos instrumentos de

autotutela activa. Para que o direito de retenção convencional constitua uma

Page 18: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

18

forma de autotutela passiva, não se pode prescindir da existência de uma

detenção prévia e lícita da coisa a reter, porque de outra forma estar-se-ia a

admitir que o credor recorresse à força própria para garantir o seu direito. Por

este motivo também, devem ser consideradas nulas todas as cláusulas que

convencionam a possibilidade de o locador recorrer à força própria para

readquirir a detenção do locado, com o objectivo de, posteriormente, reter a

coisa até que o locatário proceda ao pagamento das rendas ou ao cumprimento

de qualquer outra obrigação em falta.

Estará, igualmente, vedada às partes a atribuição de uma oponibilidade

erga omnes a este direito de recusa de cumprimento, através da qual fosse

possível ao seu titular ser pago com preferência pelo valor da coisa retida. A

necessidade de protecção das legítimas expectativas de terceiros de não verem

os seus direitos reais arredados ou onerados com limitações com as quais não

podem legitimamente contar exige que só possam existir limitações ao princípio

da taxatividade dos direitos reais (art. 1306.º) e da par conditio creditorum nos

casos especialmente previstos na lei (art. 604.º, n.º2)28. Da mesma forma, o

direito de retenção convencional não será oponível ao adquirente da coisa

retida, ainda que essa aquisição só tenha ocorrido depois de o direito se ter

constituído29. Se as partes tiverem, expressa ou tacitamente, convencionado a

atribuição de um efeito real ao direito de retenção, o negócio terá de ser

considerado nulo. Sempre se deverá equacionar a possibilidade de conversão

deste direito num direito obrigacional de retenção (art. 1306.º)30. Aliás, estando

28 Cfr. BIGLIAZZI GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 139(3),

ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, I modelli della ritenzione e dell’eccezione di inadempimento in

comparazione col sistema tedesco, Napoli, 1995, p. 190 e BIANCA, Diritto Civile, VII, cit., p. 310.

29 Ainda que seja esta a solução decorrente do princípio da relatividade dos contratos,

encontramos quem, em Itália, defenda que este princípio não impede que o direito de retenção

seja oponível àqueles que adquirem o bem retido, por tal solução se encontrar consagrada para

o contrato de locação (emptio non tolit locatum). Cfr. ENRICO AL MUREDEN, “Ritenzione legale e

ritenzione convencionale”, Contratto e Impresa, ano 13, n.º1, 1997, pp. 210 e 211. 30 Cfr. LEBRE DE FREITAS, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do

direito de retenção reconhecido por sentença”, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, I, 2.ª

Page 19: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

19

em causa uma conversão legal, esta será admitida ainda que o fim prosseguido

pelas partes não permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a

nulidade (art. 293.º)31/32.

Por outro lado, como o direito de retenção convencional não atribui ao

seu titular qualquer direito de preferência sobre a coisa retida, mas somente o

poder de não a restituir em caso de incumprimento, não se poderá considerar o

negócio nulo por violação da proibição de celebração de um pacto comissório33.

Relativamente à conexão que deve existir entre o crédito e a coisa,

entendemos que essa conexão tanto pode ser material como jurídica34. Pode

ainda equacionar-se a possibilidade de as partes convencionarem a existência

de um direito de retenção prescindindo do requisito da conexão entre créditos.

Assim, na hipótese de existir uma hipoteca voluntária ou um penhor inválidos e

tendo a coisa sido entregue, pode questionar-se se o negócio não poderá ser

convertido num contrato constitutivo de um direito de retenção convencional

ed., Coimbra, 2009, pp. 348 e ss. Admitindo esta possibilidade relativamente aos privilégios

creditórios, v. ROMANO MARTINEZ, “Privilégios creditórios”, Estudos em Homenagem ao Prof.

Doutor Manuel Henrique Mesquita, II, 2009, Coimbra, p. 115. 31 A respeito da autonomia dogmática da conversão legal relativamente à conversão

comum, v. CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos Civis, Lisboa, 1993, pp. 657

e ss., especialmente pp. 671 e ss. 32 Admitindo a figura da conversão legal, em face do disposto no art. 1306.º, mas

considerando não existir justificação bastante para o seu reconhecimento, v. OLIVEIRA

ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, pp. 96 e 97. Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO,

Direito Civil: Reais, cit., p. 160, “não há nada que justifique que se recuse às partes, em negócio

constitutivo de direito real inominado, o benefício da demonstração de que não teriam querido

ficar com um mero direito de crédito se tivessem previsto que o negócio celebrado não poderia

valer como constitutivo de direito real”. Defendendo que a conversão legal prevista no art.

1306.º não contraria o disposto no art. 293.º sobre conversão dos negócios jurídicos, contendo

uma presunção legal de que as partes pretendiam criar um vínculo obrigacional em substituição

do real, o que, nas palavras dos autores, constitui somente “um ligeiro desvio à regra do art.

293.º, que não tem na sua base nenhuma presunção legal”, v. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,

Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra, 1987, p. 99. 33 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed

estensibilità”, cit., p. 92.

34 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed

estensibilità”, cit., p. 92.

Page 20: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

20

válido (art. 293.º)35.

5. A recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito:

Quando não existir um direito de retenção convencional, o facto de

estarmos em presença de dois créditos recíprocos não legitima por si só que

cada um dos devedores se possa recusar a cumprir até que o outro devedor

cumpra a obrigação a que está adstrito. No caso da excepção de não

cumprimento é necessário que haja uma relação de interdependência ou

correspectividade entre as obrigações, no caso do direito de retenção exige-se a

existência de uma relação de conexão entre os créditos. Quando as obrigações

se encontram unidas por um vínculo de sinalagmaticidade existe uma

interdependência entre as obrigações recíprocas que permite concluir que cada

uma delas é correspectivamente a causa da outra. Para que as obrigações se

encontrem unidas por um vínculo de conexão, basta que exista uma ligação

material ou jurídica entre os créditos recíprocos.

Sempre que existe uma relação de sinalagmaticidade entre as obrigações,

os créditos não deixam de ser conexos, porque o conceito de conexão jurídica é

mais abrangente do que o conceito de sinalagma. Não é de estranhar, por isso,

que alguma doutrina germânica conceba a excepção de não cumprimento como

uma forma especial de direito de retenção em que existe um vínculo mais forte

entre as obrigações. O facto de a ligação de sinalagmaticidade ser mais estreita

do que aquela que decorre de uma mera conexão entre créditos reflecte-se no

regime jurídico aplicável aos institutos. Desde logo, a excepção de não

cumprimento, ao contrário do direito de retenção, não pode ser afastada

mediante a prestação de uma garantia (arts. 428.º, n.º2 e 756, al.d)). Embora a

oponibilidade a terceiros do direito de retenção seja mais intensa do que aquela

35 Cfr. SOERGEL/ WOLF, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, 2, Schuldrecht I, §§ 241-

432, 12.ª ed., Stuttgart, Berlin, Köln, 1990, § 273, n.º 73, p. 561 e KRÜGER, Münchener Kommentar...,

cit., § 273, n.º 103, p. 697.

Page 21: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

21

que se encontra expressamente prevista para a excepção de não cumprimento

(art. 431.º), em virtude de a retentio, ao contrário da exceptio, constituir um

direito real de garantia, isso não significa que a relação de sinalagmaticidade

possa ser confundida com uma situação de conexão entre créditos. Pelo

contrário, a diferença de regime convoca-nos a questionar se, de iure condendo,

terá sentido que, pelo menos nas situações de conexão jurídica, o crédito do

retentor beneficie do regime das garantias reais36.

Apesar de terem um âmbito de aplicação distinto e, consequentemente,

não existir, à luz do direito civil português, de acordo com a posição que

defendemos, a possibilidade de sobreposição destes institutos, como ambos

permitem ao devedor recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela de

um crédito recíproco, a sua proximidade é assinalável37. Em ambos os casos,

através desta rejeição lícita do cumprimento, o devedor visa, simultaneamente,

compelir a contraparte a cumprir e garantir que, caso ela não o faça, também

não receberá a prestação a que tem direito. O credor serve-se da sua posição de

devedor para tutela do seu direito e, tendo em conta que esta recusa tanto pode

ser actuada judicial como extrajudicialmente, conclui-se que a exceptio e a

retentio constituem mecanismos de auto e heterotutela do direito de crédito.

Em face do exposto, subsiste a interrogação: ao devedor que recusa o

cumprimento deve ser reconhecida a existência de uma causa justificativa,

ainda que a lei, expressamente, não a preveja? Essa causa justificativa deve ser

reconhecida ao devedor sempre que este seja credor do seu credor ou é a

necessária existência de uma especial ligação entre as obrigações recíprocas

derivada de estas terem uma origem comum? O mesmo é questionar se estas

situações merecem o amparo do Direito e, consequentemente, se se deve

36 Cfr. Parte III, n.º 6.5 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo). 37 Sobre a inexistência de uma sobreposição do âmbito de aplicação do direito de

retenção e da excepção de não cumprimento à luz do ordenamento jurídico português, v. Parte

III, n.º 4.1.3 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo)

Page 22: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

22

considerar lícito o não cumprimento de uma obrigação sempre que o devedor

pretenda, por esta via, compelir e/ou garantir o cumprimento de uma obrigação

devida pelo credor (reciprocidade) e conexa com a primeira (conexão).

Para isso, é necessário perceber se existe uma lacuna e, por esse motivo,

se estes casos merecem uma regulamentação especial relativamente ao regime

regra segundo o qual o devedor entra em mora se não cumprir uma obrigação

vencida. Pretender-se-á apurar em que medida, nas hipóteses supra

identificadas, se deve aplicar o regime da mora do devedor ou existe uma

imperfeição do sistema por a lei não prever uma causa justificativa para estas

situações.

À primeira vista, dir-se-ia que, não existindo uma norma a excluir a

ilicitude do comportamento do devedor, a contrario sensu, se teria de aplicar o

regime da mora.

É, porém, duvidoso que as causas justificativas do incumprimento de

uma obrigação constituam disposições excepcionais. E mesmo que assim fosse,

é hoje reconhecida pela generalidade do pensamento jurídico a debilidade do

argumento a contrario e a consequente impossibilidade de proibir, em termos

gerais, a aplicação analógica de normas excepcionais38.

O que poderá estar aqui em causa é uma lacuna que se revela pelo

reconhecimento da falta de um preceito com conteúdo oposto ao regime regra,

38 Partindo do princípio que o recurso à analogia ou ao argumento a contrario constitui o

“resultado necessário de uma interpretação de direito positivo mediante valorações teleológico-

normativas”, defende CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais,

Coimbra, 1993, pp. 265 e 273 e ss., na sequência daquele que é o ponto de vista da generalidade

do pensamento jurídico actual, a impossibilidade de, em termos absolutos, proibir a aplicação

analógica de normas excepcionais. O “decisivo é ponderar que se não pode excluir a

possibilidade do reconhecimento de eadem ratio do regime da excepcionalidade prescrita

perante casos não directamente previstos na norma excepcional, casos de aplicações analógicas

que então a própria ratio iuris da excepção justificará (…)”. Poder-se-á questionar se a solução

preconizada não será vedada pelo art. 11.º. Partindo “do valor muito relativo das disposições

legais que se propõem impor soluções a problemas que competem verdadeiramente à

autonomia crítica do pensamento jurídico e não ao legislador”, conclui CASTANHEIRA NEVES

pela possibilidade de aplicação analógica de normas excepcionais.

Page 23: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

23

aplicável à constituição em mora do devedor. Se concluirmos que é essa a

situação, então, segundo CASTANHEIRA NEVES, “o caso oferece-se em

circunstâncias particulares que obrigam a fazer apelo a pontos de vista

axiológico-jurídicos, em coerência normativa com essas circunstâncias, e que

refluindo sobre o caso concreto lhe incutem um sentido jurídico pelo qual o

preceito regra, ainda que formalmente aplicável, se torna para ele

normativamente inadequado. Pertencem aqui todos os casos em que

circunstâncias particulares são o fundamento para distinções normativas que a

lei não faz, ou para fazer intervir em concorrência com os pressupostos da

hipótese legal outros pressupostos a que a lei não atenda – em qualquer dos

casos a lei se vem a considerar como não aplicável -, ou para fazer funcionar

causas justificativas que a lei não prescreve”39.

O direito de retenção é, por natureza, o instituto vocacionado para

regular as situações identificadas. Todavia, constituindo um direito real de

garantia à luz do nosso ordenamento jurídico, encontra-se sujeito a um

princípio da taxatividade, pelo que não será de admitir o recurso a uma

extensão analógica40. Se se aceitasse a extensão analógica, estar-se-ia também a

limitar, por esta via, a garantia dos credores comuns, terceiros relativamente à

relação estabelecida entre credor e devedor recíprocos, pelo que não será

aceitável a constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas

na lei. Por este motivo, o princípio de impossibilidade de aplicação analógica de

normas excepcionais não pode in casu sofrer qualquer desvio.

Esta impossibilidade de recorrer à analogia justificará as tentativas de

alargamento do âmbito de aplicação da excepção de não cumprimento a

situações em que não existe uma relação de sinalagmaticidade entre as

prestações. Parece-nos não exitir, neste caso, qualquer impedimento a que,

39 CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., p. 219. 40 Cfr. supra, Parte III, n.º 4.3.1.

Page 24: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

24

existindo uma lacuna, esta possa ser colmatada por recurso a uma extensão

analógica do regime da exceptio non adimpleti contractus. Como esta excepção

não confere ao seu titular um direito real de garantia, os direitos de terceiros

não serão postergados. Isso não autoriza, contudo, a conclusão de que todas as

situações em que o devedor é credor do seu credor se encontram abrangidas

pelo escopo da exceptio. A existência de uma relação de sinalagmaticidade é o

pressuposto distintivo deste instituto, pelo que, quando se verifica não existir

essa relação entre as obrigações, não se poderá recorrer a esta forma específica

de tutela do direito de crédito. O regime jurídico da exceptio, nomeadamente a

impossibilidade de esta ser afastada mediante a prestação de uma garantia, é

inadequado para regular situações em que existe uma mera conexão entre

créditos, pelo que, nestes casos, não se poderá recorrer à analogia para defender

a possibilidade de o devedor recusar o cumprimento da sua obrigação para

tutela do seu direito de crédito.

Por último, através do instituto da compensação, são tuteladas as

hipóteses em que ao credor, simultaneamente devedor do seu devedor, se

atribui a possibilidade de extinguir a sua dívida e, desta forma, tutelar o seu

crédito. Todavia, a extinção recíproca das dívidas pressupõe necessariamente a

fungibilidade das prestações, o que significa que a homogeneidade constitui o

pressuposto distintivo deste instituto. Isto mesmo impede a aplicação analógica

do regime da compensação quando as prestações não forem homogéneas.

O facto de não existir a possibilidade de colmatar a lacuna através de

uma analogia legis não significa que a situação não careça da tutela do Direito.

É comum referir-se que seria contrário à equidade, entendida como

justiça do caso concreto, não permitir que, nestas hipóteses, o devedor pudesse

licitamente recusar o cumprimento da obrigação.

Entendemos, contudo, que tal solução não pode ser acolhida. Em

primeiro lugar, o recurso à equidade não fornece ao intérprete-aplicador um

Page 25: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

25

critério que lhe possibilite destrinçar as hipóteses em que, em geral e abstracto,

o credor poderá recusar a sua prestação. Desde logo, não permite determinar se

o devedor pode recusar o cumprimento da obrigação sempre que for credor do

seu credor ou se é também necessária a existência de uma especial ligação entre

as obrigações. Repare-se que, de acordo com o art. 10.º, n.º3, na ausência de caso

análogo, a situação deve ser “resolvida segundo a norma que o próprio

intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”. Como

bem assinala BAPTISTA MACHADO, “o legislador não remete o intérprete para

juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, antes, bem ao contrário, o

incumbe de elaborar e formular uma norma, isto é, uma regra geral e abstracta

que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso” 41.

Em segundo lugar, não constituindo a equidade, enquanto justiça do

caso concreto, o fundamento da excepção de não cumprimento, do direito de

retenção, nem da compensação não se pode, por maioria de razão, nela alicerçar

a solução para o problema.

Diferente será se entendermos a equidade como referência à ideia de

Justiça. Ainda que ela não permita estabelecer em que hipóteses pode o credor

recusar-se a cumprir, poderá constituir o fundamento último desta causa de

justificação não prevista na lei.

A referência à equidade nestas hipóteses justificar-se-ia, assim, pelo facto

de ser tido como injusto e contrário à boa fé que alguém seja obrigado a

cumprir sem que o credor cumpra, por sua vez, a prestação a que se encontra

adstrito e não como forma de resolução meramente casuística de um conjunto

de hipóteses concretas em que seria contrário à justiça material não reconhecer

como lícita a recusa de cumprimento de uma obrigação para tutela de um

direito de crédito.

Não se esgotando o direito positivo “nos seus comandos e valores

41 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 203.

Page 26: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

26

avulsos, informadores das rationes legis e da teleologia das diferentes normas”42,

antes assentando a ordem jurídica num conjunto de princípios que a legitimam

e num conjunto de valores fundamentais que dão unidade e coerência ao todo,

as lacunas não se poderiam esgotar ao nível da teleologia das disposições legais

emanadas pelos órgãos competentes. Pelo contrário, sempre que os referidos

princípios e valores jurídicos gerais não tiverem uma expressão suficiente na lei,

ter-se-á de questionar se não existirá uma lacuna43. Lacuna essa que terá de ser

preenchida por recurso a uma analogia iuris, isto é, por recurso a um princípio

que, embora obtido através de uma indução de disposições legais vigentes,

constitui um desenvolvimento do Direito que ultrapassa o quadro legal.

Independentemente de tal não ser necessário, esta possibilidade pode ser

retirada do art. 10.º, n.º3 da nossa lei civil44 que atribui ao intérprete o poder de

criar uma norma dentro do espírito do sistema45. Isto significa que, mesmo na

perspectiva do legislador, à doutrina e à jurisprudência é acometida a tarefa de

criação do Direito.

Quando essa norma ou princípio mais geral decorre das normas “postas”

pelo legislador, poder-se-á questionar, com CANARIS, se a analogia iuris não

constitui somente, em termos metodológicos, uma indução. Inclinamo-nos, na

sequência da posição assumida a este propósito por LARENZ, para considerar

que, ainda que essa norma se forme por indução, sempre se terá de lançar mão

42 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 197.

43 Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., pp. 197 e

ss. 44 Defendendo que a norma hipotética, tal qual como se encontra prevista no art. 10.º,

n.º3 deveria ser procurada “ao mesmo tempo em que se faria a aplicação das normas legais e,

não apenas, subsidiariamente, se não se encontrasse por interpretação ou analogia, uma solução

legalmente definida”, v. ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, Lisboa, 2010, p. 68.

Salienta o autor, ob. cit., p. 232, que “os princípios não são apenas parâmetros subsidiários que

actuem praeter legem em caso de lacuna legal, mas parâmetros de validade ético-jurídica que

podem inclusivamente prevalecer sobre soluções legais expressas”. 45 Sobre a necessidade de o juiz solucionar estes casos omissos “dentro da lógica das

valorações legais; numa linha de subordinação, aliás inteligente e criadora, ao sentido ético-

jurídico dessas valorações”, v. MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, (Oração de

sapiência lida em 30 de Outubro de 1953), Coimbra, 1973, p. 32.

Page 27: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

27

da analogia para se proceder à comparação entre o caso e a ratio do princípio

aplicável46.

Em suma, sabendo que o Direito não se circunscreve aos comandos

emanados pelo poder legislativo, resta determinar em que medida existirá um

princípio mais geral do qual resulte a possibilidade de o devedor recusar

licitamente o cumprimento até que o credor satisfaça a obrigação a que se

encontra adstrito para com o primeiro, em situações diversas daquelas que se

encontram expressamente previstas na lei.

Da exposição decorre que a excepção de não cumprimento e o direito de

retenção são causas de justificação previstas na nossa lei, através das quais se

atribui ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento da obrigação sem

entrar em mora. Em ambos os casos, as partes são reciprocamente credora e

devedora uma da outra e podem, quer judicial quer extrajudicialmente, recusar

o cumprimento da obrigação. Não basta que o credor não cumpra a obrigação a

que, por sua vez, está adstrito perante o devedor, é necessário que entre as

obrigações exista uma especial ligação. No caso da excepção de não

cumprimento uma relação de sinalagmaticidade e no caso do direito de

retenção uma relação de conexão. Por outro lado, se todas as situações em que

existe uma relação de sinalagmaticidade permitem a invocação da exceptio,

desde que os demais pressupostos se encontrem reunidos, nem todas as

situações em que se verifica existir uma conexão entre créditos possibilitam ao

devedor recusar o cumprimento da sua obrigação. Neste contexto, não pode

deixar de se fazer igualmente referência à compensação, porquanto, ao

extinguir a sua obrigação, na prática, o devedor recusa-se definitivamente a

46 LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa, 1997, (tradução portuguesa

de José Lamego de Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6.ª ed., Berlin, Heidelberg, 1991), pp. 545

e 546. Pelo contrário, CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., pp. 263 e 264, considera que

não há analogia iuris, na medida em que a analogia existe entre casos e não entre o caso e um

princípio obtido por indução, o que lhe permite concluir que “decisivo é reconhecer que a

chamada analogia iuris se reconduz a um argumento judicativo a partir ou com fundamento em

princípios jurídicos e não a uma analogia em sentido próprio”.

Page 28: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

28

cumpri-la.

É possível, desde já, concluir que, através destes três institutos, se cria

um quadro de protecção do devedor, simultaneamente credor do seu credor.

Importa, por conseguinte, perceber se o poder reconhecido ao devedor de

recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela do seu direito de crédito

se encontra circunscrito às disposições legais em análise ou se estas não são

mais do que a concretização ou manifestações de um princípio ou ideia mais

ampla à qual se chega através de um raciocínio indutivo.

Tivemos a oportunidade de explicitar que, noutros ordenamentos

jurídicos47, seja através da excepção de não cumprimento, seja através do direito

de retenção há uma tendência ora do legislador, ora da doutrina e da

jurisprudência para admitir a possibilidade de o devedor poder recusar o

cumprimento de uma obrigação para tutela do direito de crédito de que, por

sua vez, este é titular, sempre que entre estes exista uma relação de conexão.

Pelo facto de a versão definitiva do Código Civil Português de 1966 não

ter acolhido a proposta constante dos trabalhos preparatórios, poderíamos ser

levados a concluir que estamos na presença de um “silêncio eloquente” da lei

que só poderá ser superado através de uma intervenção legislativa48. Se a

inexistência da regulamentação é intencional, mesmo que o intérprete-aplicador

discorde da opção do legislador não se pode sobrepor a este, concluindo que

existe uma lacuna que deve ser colmatada.

47 A importância da história do direito e do direito vigente noutros ordenamentos

jurídicos para a formação de princípios por indução ressalta da definição de princípios gerais de

direito apresentada por METZGER, Extra legem, intra ius: Allgemeine Rechtsgrundsätze im

Europäischen Privatrecht, Tübingen, 2009, pp. 26 e 29 e s. Segundo o autor, um princípio geral de

direito (Rechtsgrundsatz) é uma norma jurídica (Rechtsnorm) que, não sendo ou não sendo

totalmente reconhecida pelo direito legislado, pode ser formada por indução a partir das regras

jurídicas vigentes ou pretéritas não só nesse ordenamento jurídico como noutros (“welche von

internen, «externen» (insbesondere ausländischen) und/oder historischen Rechtsregeln im Wege der

Induktion abgeleitet wird”).

48 Sobre o “silêncio eloquente” da lei, v. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, cit.,

pp. 281 e 282, LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 525 e BAPTISTA MACHADO,

Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 201.

Page 29: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

29

Em primeiro lugar, temos dúvidas se em causa está um silêncio

eloquente do legislador ou se, em face das dúvidas que se colocavam

relativamente à oportunidade de alargar o âmbito de aplicação da retentio, se

preferiu deixar a questão em aberto e remeter para o intérprete-aplicador a

solução. A proposta de VAZ SERRA terá sido rejeitada, porque o legislador terá

considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira figura de

contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de não

cumprimento do contrato que podia criar “embaraços de interpretação”. Em

face da insuficiente reflexão feita em torno do problema, o que se pretendeu foi

não incluir expressamente a proposta na nova lei civil e não tanto proibir ou

excluir a solução. Estamos, nas palavras de MANUEL DE ANDRADE49, perante

uma situação “que o legislador conheceu ou entreviu, mas propositadamente

deixou em claro”, por não estar suficientemente radicada ou amadurecida para

poder “constituir objecto de um tratamento legal apropriado”.

As dúvidas que a consagração deste instituto podia gerar, prender-se-

iam sobretudo com as hipóteses em que o direito de retenção poderia ser

abusivamente invocado. Não nos parece que tal receio constitua um

impedimento à admissão desta causa de justificação, porquanto os Tribunais

sempre poderão controlar a verificação dos pressupostos indispensáveis para

que a recusa de cumprimento seja considerada lícita.

Por outro lado, mesmo que a intenção do legislador tivesse sido a de

afastar esta causa de exclusão da ilicitude, tal não impediria que, no futuro, se

não viesse a concluir pela existência de uma lacuna a exigir um

desenvolvimento praeter legem do Direito. É que se uma lacuna não deve ser

identificada com uma incompletude contrária ao plano do legislador, muito

menos este último poderá ser identificado com o legislador histórico. A lacuna

será, quando muito, uma incompletude contrária ao plano do Direito.

49 MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, cit., p. 29.

Page 30: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

30

De facto, a opção do legislador histórico, que excluiu a proposta

constante dos trabalhos preparatórios, não permite concluir obrigatoriamente

pela inexistência de uma lacuna, quando o conjunto das normas jurídicas

produzidas pelo mesmo legislador aponta para a existência de um princípio

mais geral com contornos idênticos ao do preceito constante do anteprojecto

que foi rejeitado. Se é verdade que o elemento histórico de interpretação

compreende os trabalhos preparatórios e, por conseguinte, se deve ter em conta

as propostas que foram rejeitadas, não nos podemos esquecer que este não é o

único elemento de interpretação que deve ser tido em conta.

Como refere FERRARA, “[e]specialmente à medida que a lei se vai

afastando da sua origem, a importância da intenção do legislador vai

afrouxando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de mudadas

concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um significado e um alcance

diverso do que originariamente foi querido pelo legislador”50.

Somos da opinião que resulta das normas postas que o facto de o credor

exigir o cumprimento de uma obrigação sem se dispor a cumprir a obrigação

exigível a que está adstrito para com o devedor altera a relação de confiança

existente entre os dois sujeitos e legitima a reacção deste último, traduzida na

recusa temporária do cumprimento da sua própria obrigação. Essas normas são,

em primeiro lugar, o direito de retenção e a excepção de não cumprimento,

porque, tanto num caso como noutro, é reconhecida ao devedor a faculdade de

rejeição do cumprimento. Todavia, a esta possibilidade não é também alheia a

compensação. Ainda que, neste caso, ao devedor assista a faculdade de

extinguir a sua obrigação e não somente a de recusar o seu cumprimento.

Para além da origem dos referidos institutos ser comum, são muitos os

seus pontos de confluência.

50 FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, (traduzido por Manuel A.

Domingues de Andrade), 3.ª ed., Coimbra, 1978, p. 135.

Page 31: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

31

Em primeiro lugar, subjacente a todos eles está a ideia de que àquele que

não cumpre não é devido o cumprimento (“inadimplenti non est adimplendum”).

Por esse motivo se reconhece ao devedor o poder de recusar, temporária ou

definitivamente, consoante os casos, o cumprimento da obrigação a que está

adstrito. Através desta recusa, o devedor visa tutelar o seu direito de crédito.

Ao contrário do que sucede com a excepção de não cumprimento e o direito de

retenção, a compensação não visa compelir a contraparte a quem esta é oposta a

cumprir, pois o seu exercício conduz à extinção da obrigação. Todavia,

qualquer dos mencionados institutos cumpre, ainda que de forma diversa, uma

importante função de garantia do direito de crédito.

Se para a compensação a reciprocidade é tida como suficiente para

permitir ao devedor extinguir a sua obrigação, para a excepção de não

cumprimento e para o direito de retenção é necessário que exista entre os

créditos uma relação, no primeiro caso de sinalagmaticidade, no segundo de

conexão material ou jurídica. Por outro lado, a existência dessa relação entre

créditos não é, na nossa perspectiva, indiferente para o regime da compensação.

O próprio regime jurídico aplicável a estas três figuras apresenta muitos

pontos de contacto.

É necessário, em regra, que o devedor seja credor do seu credor, o que

significa que os créditos têm de ser recíprocos.

Em todos os casos, o crédito de que o devedor é titular pode ser ilíquido,

mas tem, em princípio, de ser exigível. O retentor goza também de direito de

retenção quando se verifique alguma das circunstâncias que determinem a

perda do benefício do prazo (art. 757.º, n.º1). No caso de existir uma relação de

sinalagmaticidade entre os créditos, admite-se a invocação de uma excepção de

insegurança quando exista uma verdadeira deterioração ou modificação in peius

da situação patrimonial da contraparte ou se verifique que a sua capacidade de

cumprimento se encontra por outro motivo afectada a ponto de pôr em perigo a

Page 32: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

32

efectivação do direito à contraprestação.

Todos os institutos desempenham, em maior ou menor medida, uma

função de garantia. Embora a exceptio e a retentio tenham uma função

meramente dilatória e a compensatio determine a extinção dos créditos, as três

figuras constituem excepções de direito material invocáveis judicial e

extrajudicialmente.

O facto de, através da sua invocação, o devedor poder extrajudicialmente

recusar, temporária ou definitivamente, o cumprimento de uma obrigação para

tutela do seu direito de crédito determina que qualquer destes institutos seja

considerado um mecanismo de autotutela. A circunstância de qualquer dos

institutos constituir um instrumento de autotutela ajudará a explicar a

relutância com que é encarada a possibilidade de alargamento destas situações

de recusa lícita do cumprimento para tutela de um direito de crédito. Essa

resistência é, na nossa opinião, injustificada, pois não se trata de uma hipótese

em que o credor tenha de recorrer à força para realizar o seu direito, como

sucede com a acção directa (art. 336.º). Sempre os Tribunais poderão aferir da

licitude da sua recusa, pelo que a paz e ordem públicas se encontram por esta

via asseguradas.

Tanto na exceptio como na retentio, a recusa de cumprimento determina a

exclusão da mora do devedor. Na prática, efeito idêntico é assegurado pelos

efeitos retroactivos da declaração de compensação (art. 854.º), pois se os

créditos recíprocos se consideram extintos a partir do momento em que se

tornaram compensáveis, não existe mora do devedor desde aí.

Por outro lado, se o crédito de que o devedor é, por sua vez, titular

prescrever depois de qualquer destes institutos poder ser invocado, este

continuará a poder recusar, temporária ou definitivamente consoante os casos,

o cumprimento da obrigação, embora não possa exigir judicialmente o crédito

de que é titular.

Page 33: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

33

Pelo exposto, a excepção de não cumprimento, o direito de retenção e a

compensação não constituem figuras isoladas, antes serão concretizações de um

“princípio” mais amplo, que desonera o devedor de prestar ao credor que não

se dispõe a cumprir perante ele uma obrigação exigível. Esse princípio pode ser

encontrado na máxima ou adágio51 de que àquele que não cumpre não é devido

o cumprimento (inadimplenti non est adimplendum). O mesmo é dizer, ainda que

o credor tenha o direito a exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, o

devedor pode recusar-se a fazê-lo.

É verdade que no direito vigente nos deparamos com diferenças

assinaláveis no regime jurídico de cada uma das figuras estudadas. As referidas

diferenças justificam-se essencialmente por, no caso da compensação, os

créditos serem homogéneos e, no caso da excepção de não cumprimento, pelo

vínculo de interdependência ou correspectividade existente em virtude do

sinalagma. Todavia, essas diferenças não são suficientes para apagar a

existência de um fundo comum ou princípio mais geral sobre o qual assentam

todas elas. Mais, esse fundo comum explica que certas hipóteses enquadradas

pelo nosso legislador no direito de retenção permitam, noutros ordenamentos

jurídicos, a invocação da excepção de não cumprimento.

Por outro lado, o facto de esse princípio se encontrar concretizado em

diversos institutos demonstra que a solução delineada não é contrária ao

sistema que, na formulação de CANARIS, pode ser definido como “conjunto de

todos os valores fundamentais constitutivos para uma ordem jurídica”52.

51 Como explica ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 30 e 31, nem

todos os princípios são princípios fundamentais do Direito. “São princípios do Direito neste

segundo sentido as proposições sintéticas que a doutrina e a jurisprudência formulam e que

possam valer como Direito. Essas proposições assumem a forma de máximas ou adágios que

podem provir da tradição jurídica ou não.(…)

Todos os princípios podem, em conjugação, com o sistema de fontes de direito vigente,

dar origem a novas soluções que se podem exprimir e consolidar sob a forma de “regras” que a

jurisprudência irá testar ”. 52 CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (tradução de

MENEZES CORDEIRO de Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz) 2.ª ed, Lisboa, 1989,

Page 34: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

34

Quanto a nós, a solução está ínsita no próprio sistema. Uma resolução diferente

do problema é que ocasionaria uma quebra da unidade do sistema.

Não se pode negar que, apelando-se à existência de um princípio mais

amplo de que diversas figuras legais constituem uma concretização, não

conseguimos daí retirar quais as situações em que, em concreto, deve ser

reconhecido ao devedor este poder de recusa de realização de uma prestação

para tutela de um direito de crédito. Trata-se, contudo, de uma vicissitude

própria do facto de se reclamar a existência de um princípio ao qual

corresponde uma máxima que devido ao seu carácter geral não é, de per si,

dotada da operacionalidade necessária para ser directamente aplicável a um

caso concreto. Como explica ANTÓNIO CORTÊS, “dizer que estamos perante um

“princípio” é, no fundo, dizer que estamos perante um parâmetro ético-jurídico

cuja aplicação exige a ampla intervenção de mediações dogmáticas e

jurisprudenciais, mas que possui também uma força irradiante que permite a

sua aplicação em âmbitos diversos a que não está expressamente referido. (…)

Os princípios não tipificam os pressupostos e as consequências da sua aplicação

e possuem uma força irradiante que resulta do facto de terem uma ampla

justificação racional, ética ou axiológica”53.

Embora seja possível, através de uma indução ou generalização, chegar

ao referido princípio de que àquele que não cumpre não é devido o

cumprimento, isso é insuficiente não só para determinar quando é que, em

concreto, a faculdade de recusar o cumprimento deve ser reconhecida, mas

também para legitimar a sua existência.

Como refere o mesmo autor, “cada novo princípio é geralmente o

resultado de uma dupla fundamentação ou dupla justificação. Por um lado,

temos os dados positivos, como sejam os preceitos legais, a natureza das coisas,

pp. 190 e ss.

53 ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 132. Em sentido idêntico, v.

MENEZES CORDEIRO, “Princípios Gerais de Direito,” Polis, vol. 4, 2.ª ed., Lisboa, 2004, p. 1551.

Page 35: DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana

35

a tradição consolidada de diversos Estados ou a ratio de precedentes judiciais;

por outro lado, a justiça, a ideia de Direito”54.

O caminho até agora percorrido permite-nos concluir não só que em

diversos preceitos legais encontramos reflectido este princípio, como este se

encontra expressamente previsto ou admitido ora na legislação, ora na doutrina

e na jurisprudência de outras ordens jurídicas pertencentes à família romano-

germânica.

Reconhecer ao devedor um poder de recusar a prestação corresponde

também a uma necessidade do tráfico jurídico, pelo que igualmente aí se

encontra um fundamento forte para a admissão da figura. De facto, é mais

vantajoso permitir que o devedor não cumpra para, desta forma, compelir o

credor a realizar a prestação a que está adstrito do que exigir que o faça,

correndo o risco de o credor não vir a realizar a prestação a que está obrigado e

ter o devedor de recorrer aos meios jurisdicionais para receber a prestação a que

tem direito. Tanto mais que, em última análise, os tribunais sempre poderão

aferir da existência de fundamento para a recusa da prestação, suportando o

devedor o risco de se concluir pela inexistência de qualquer causa de exclusão

da ilicitude.

Por outro lado, corresponde à natureza das coisas que um sujeito não

seja obrigado a realizar uma prestação a favor de outrem que não se dispõe a

cumprir uma obrigação exigível de que é, por sua vez, devedor para com o

primeiro, bem assim que não tenha de realizar uma prestação quando é credor

do seu credor e as duas obrigações têm por objecto coisas fungíveis da mesma

espécie e qualidade.

Resta apurar se tal princípio se pode considerar conforme à ideia de

Direito.

54 ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 248. “Em suma, os princípios

jurídicos, por muito apoio que possam ter em dados positivos, encontram sempre um

fundamento decisivo em considerações éticas ou axiológicas superiores”.

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36

Conforme tivemos oportunidade de explicitar, é igualmente comum

encontrar-se a referência a que o fundamento da excepção de não cumprimento,

do direito de retenção e da compensação reside na equidade. Todavia, essa

referência não deve ser entendida como uma remissão para a fórmula

aristotélica de justiça do caso concreto. Através da aludida referência, o que se

pretenderá significar é que, em termos gerais, é contrário à boa fé e à ideia de

Justiça obrigar o devedor a cumprir pontualmente as suas obrigações quando

ele é credor do seu credor.

A origem histórica da compensação, do direito de retenção e, em certa

medida, da excepção de não cumprimento encontrar-se-á precisamente nos

bonae fidei iudicia e na exceptio doli generalis. Se nas acções de ius strictum era, em

regra, necessária a inserção formal de uma excepção de dolo para que o iudex

pudesse considerar que uma determinada pretensão ofendia a boa fé em

sentido objectivo, nos bonae fidei iudicia, o iudex podia ter em conta o crédito do

devedor, para efeito de compensação ou de retenção, como simples decorrência

do poder que lhe era reconhecido de decidir oportet ex fide bona.

MENEZES CORDEIRO não deixa, contudo, de defender a possibilidade de

recorrer ao tu quoque para alargar o âmbito de aplicação da excepção de não

cumprimento para lá dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos.

Por sua vez, LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS defendem que o

fundamento daquilo que denominam de direito de retenção obrigacional se

encontra, em determinadas hipóteses, num desenvolvimento da lei por

identidade ou maioria de razão, noutras no princípio da boa fé, em especial, no

abuso do direito55, mais concretamente, na proibição de um exercício

desequilibrado de uma posição jurídica.

Estas formas de abuso do direito não serão, efectivamente, estranhas ao

55 MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido da

excepção de não cumprimento”, RDES, Ano XLIX (XXII da 2.ª Série), Janeiro-Dezembro 2008, p.

198.

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37

reconhecimento deste poder de recusa do cumprimento para tutela de um

direito de crédito, porquanto, na forma de “tu quoque”56, deve ser considerado

abusivo o comportamento daquele que exige a outrem o acatamento de uma

norma jurídica, maxime o cumprimento pontual de uma obrigação, quando ele

próprio não se dispõe a cumprir uma obrigação que sobre si recai. Nas palavras

de MENEZES CORDEIRO57, “[a] ordem jurídica postula uma articulação de valores

materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se

satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da

substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o

equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um

procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria

ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a

conduta requerida já não poderá ser a mesma”.

Por outro lado, um dos corolários do referido exercício desequilibrado de

uma posição jurídica reside exactamente em pedir aquilo que se tem de

devolver (dolo agit qui petit quod statim redditurus est ), o que se adequará mais a

institutos como a compensação58.

Não nos parece que qualquer dos institutos analisados encontre o seu

fundamento numa das formas de abuso do direito. Mesmo no âmbito das

relações sinalagmáticas, o credor pode exigir o cumprimento da obrigação sem

se dispor a contraprestar. Essa exigência não pode ser considerada ilícita nem

abusiva, pois o credor que pretende exercer o seu direito de crédito não está

obrigado a contraprestar, mas tem somente o encargo de o fazer, se não quiser

que o devedor recuse o cumprimento. Por maioria de razão, não existe esse

dever quando entre os créditos não intercede uma relação de interdependência

56 Sobre o conceito de tu quoque, v. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II,

Coimbra, 1985, p. 837. 57 MENEZES CORDEIRO, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”,

Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, 2005, II, p. 360. 58 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II, cit., pp. 852 e ss.

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38

ou correspectividade. Assim, a função da exceptio, tal como da retentio, é a de

facultar ao devedor a possibilidade de licitamente se recusar a prestar e não

tornar ilícita ou abusiva a exigência de cumprimento sem que o credor se

disponha a contraprestar em simultâneo. Por esse motivo, se o devedor decidir

cumprir voluntariamente a obrigação, desconhecendo que poderia invocar

qualquer das excepções que lhe permitem recusar o cumprimento, não pode

pedir de volta aquilo que prestou.

Se não há abuso do direito por parte do credor que exige o cumprimento

de uma obrigação, quando a contraparte pode invocar a excepção de não

cumprimento, de retenção ou de compensação, para se recusar a cumprir, por

maioria de razão, não poderá este legitimar directamente o princípio cuja

juridicidade pretendemos fundamentar.

O credor que exige o cumprimento sem, por sua vez, cumprir a

obrigação a que está adstrito perante o seu devedor não está a exigir

abusivamente o seu direito de crédito, no sentido de que o seu direito à

prestação não depende do cumprimento da obrigação a que está vinculado

perante o devedor. Do art. 762.º, n.º2 decorre que tanto devedor como credor59

devem no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente

proceder de boa fé, o que significa que cada uma das partes tem de comportar-

se de forma honesta e leal para com a outra. Por este motivo, poder-se-á

considerar um corolário da boa fé em sentido objectivo que, embora o credor

possa exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, tal comportamento

do credor deve facultar ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento

para tutela do seu direito. Se, de acordo com o ius strictum, o devedor está

obrigado a cumprir pontualmente as suas obrigações (art. 406.º), o princípio da

boa fé exige que lhe seja reconhecido, em termos gerais, uma excepção de

59 Salientando o carácter bilateral do princípio da boa fé, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de

Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, p. 56.

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39

direito material que lhe permita recusar esse cumprimento quando o credor não

cumpra a obrigação a que está adstrito. O credor tem, assim, o encargo de

realizar a prestação por si devida, porque, caso contrário, o devedor pode

licitamente recusar a realização da prestação a que o primeiro tem direito.

A referência à equidade enquanto fundamento desta faculdade de recusa

do cumprimento para tutela de um direito de crédito deve ser entendida como

uma remissão para a ideia de Justiça. Ainda que nenhuma norma de direito

deva, em última análise, ser contrária à ideia de Justiça, há institutos, como

acontece com a compensação, o direito de retenção e a excepção de não

cumprimento, cujo princípio primeiro sobre o qual repousam é directamente a

ideia de Justiça. Os referidos institutos não cobrem, contudo, todas as situações

em que ao devedor deverá ser reconhecida a faculdade de recusa da prestação

para tutela de um direito de crédito. Daí a necessidade de um desenvolvimento

praeter legem do Direito cuja legitimidade deverá ser encontrada na ideia de

Justiça.

Todavia, uma coisa é a boa fé e a ideia de Justiça constituírem o

fundamento último ou a legitimação metodológica do desenvolvimento praeter

legem do direito, outra bem diferente é tentar recorrer a estas para traçar o

recorte da figura. Isto significa que não é possível valer-se delas para

determinar em concreto quais as hipóteses em que um devedor pode

licitamente recusar-se a cumprir, sem recorrer aos tribunais, até receber a

prestação que, por sua vez, o seu credor lhe deve.

Por último, para concluirmos pela existência de um princípio, é

necessário perceber se este não terá sido excluído pela ordem jurídica vigente60.

A proibição de recurso à força própria para realização de um direito (art.

1.º do CPC) não é aplicável às formas de autotutela que não requerem o uso da

60 Sobre a admissibilidade de soluções contra legem com base em princípios jurídicos, v.

ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 306 e ss.

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força para serem actuadas, pois estas não põem em causa, da mesma maneira, a

paz e ordem públicas.

No espaço jurídico alemão, a questão da proibição da autotutela foi

largamente debatida nos trabalhos preparatórios do BGB. Grande foi a

discussão em torno da exclusão, no futuro Código Civil, de uma norma que

proibisse o recurso à autotutela. Segundo os autores dos trabalhos preparatórios

do BGB, a proibição de autotutela apresentar-se-ia desnecessária, porquanto os

actos de justiça privada seriam, em regra, ilícitos e a ordem jurídica previa

sanções adequadas sempre que uma conduta, independentemente do seu fim,

pusesse em causa a paz pública. Pelo contrário, a intenção de agir conforme ao

direito não pode ser considerada ilícita, nem põe em causa a paz pública61. Esta

solução deve ser enquadrada no contexto de uma codificação que consagrou o

princípio da autonomia privada de forma particularmente ampla e abdicou da

intervenção dos tribunais, como por exemplo na resolução62, excepto quando tal

se mostrasse estritamente necessário.

Deve também entender-se que não existe na nossa ordem jurídica uma

proibição genérica de recurso à autotutela, mas somente de recurso à força

própria para realizar um direito (art. 1.º do CPC), contrabalançada por a cada

direito corresponder uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (art. 2.º,

61 “Die Absicht, den Zustand herbeizuführen, der dem Rechte entspricht, ist nich widerrechtlich.

Ebensowenig wird durch eine solche auf dem Boden des Rechtes sich bewegende Handlung der

Rechtsfriede gestört”. Cfr. MUGDAN, Motive…, I, p. 546. No Protokolle, rejeitou-se somente a

possibilidade de haver uma norma que determinasse que o fim de justiça privada não tornava o

acto lícito ilícito e vice-versa. Não se tratou, contudo, de uma alteração da concepção defendida

no primeiro projecto. Considerou-se que a norma deveria ser excluída por ter uma natureza

doutrinária. Cfr. MUGDAN, Protokolle…, I, pp. 806 e 807. Subsequentemente, no Denkschrift

reitera-se que o importante é determinar se o acto é, em si mesmo, ilícito ou lícito. Como o fim

de autotutela (Selbstshilfezweck) não torna, de per si, o acto ilícito, a lei só deveria regular as

excepções. Cfr. MUGDAN, Denkschrift …, I, pp. 843 e 844. 62 A mesma ordem de razões esteve na origem da solução acolhida pelo nosso legislador

civil em 1966. Nos trabalhos preparatórios, escrevia VAZ SERRA, “Resolução do Contrato”, BMJ,

n.º 68, 1957, p. 227, ser preferível permitir a cessação extrajudicial de um contrato, “pois não há

necessidade de obrigar o titular do direito de resolução a pedir em juízo que esta seja decretada,

isto é, obrigar quem tem esse direito aos incómodos e delongas de uma acção judicial. Mais

simples é que ele declare directamente à outra parte que resolve o contrato”.

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n.º2, do CPC).

Embora o direito a uma decisão judicial em prazo razoável esteja

constitucionalmente consagrado (art. 20.º, n.º4, da CRP) e inscrito na Convenção

Europeia dos Direitos do Homem (art. 6.º), a obtenção de uma decisão judicial,

que não ponha em causa as garantias processuais que sempre terão de ser

asseguradas às partes, é inevitavelmente morosa. E nem a “fuga para o

privado” a que se tem assistido nas diversas reformas da acção executiva tem

conseguido alterar a situação63.

Assim, a opção de deixar aos particulares a possibilidade de procederem

à tutela dos seus direitos ou atribuir ao Estado a exclusividade da sua protecção

passa, quanto a nós, por uma ponderação de interesses. Ora, parece-nos que a

não admissão desta causa de exclusão da ilicitude criaria um dano superior

àquele que resulta da sua aceitação. Se o devedor estiver obrigado a cumprir, o

credor deixa de se sentir compelido a realizar a sua prestação para receber

aquela a que tem direito, tendo o devedor, em última análise, de recorrer aos

meios jurisdicionais para receber aquilo que lhe é devido. Por outro lado, se o

devedor recusar o cumprimento e se vier a concluir que essa rejeição é ilícita,

sempre existirá um incumprimento (definitivo ou temporário) da obrigação

com todas as consequências que lhe estão associadas.

Por fim, se o legislador admite, com grande amplitude, certas formas de

autotutela que desempenham uma função executiva, como vimos suceder com

a compensação, por maioria de razão, deve aceitar-se a licitude dos

instrumentos de autotutela com um carácter meramente defensivo ou passivo64.

63 Todavia, como bem reconhece ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, cit., p. 205, “a

“fuga nel privato” não é indolor. Ela não produz só vantagens, mas em geral também - e salta aos

olhos de todos - desigualdades e injustiças (...). Estas tensões reflectem-se tal e qual na

autotutela, cujo emprego, quanto mais geral, tanto mais se arrisca a redundar em abuso”. 64 As formas de autotutela activa distinguem-se dos instrumentos de autotutela passiva

ou meramente defensiva por, nos segundos, o titular do direito se limitar a resistir à pretensão

de outrem através de uma omissão ou de um comportamento passivo que visa manter o status

quo. Cfr. BETTI, “Autotutela”, Enciclopedia del Diritto, IV, Milano, 1959, p. 529 e GIROLAMO

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O carácter meramente defensivo e temporário desta forma de autotutela

permite concluir que a paz e ordem públicas não são, por esta via, postas em

causa65. Trata-se de uma mera recusa do cumprimento, pelo que o credor se

limita a omitir um comportamento devido para tutela do seu direito e não

recorre à força própria para cobrar o seu crédito.

Em síntese, a autotutela não pode ser perspectivada como uma forma de

justiça oposta à justiça pública, mas como complementar desta que deve ser

permitida sempre que não ponha em causa a paz pública e simultaneamente

favoreça a realização do direito do credor em relação às possibilidades que este

tinha de obter o cumprimento através do recurso à tutela jurisdicional.

Outro problema que se pode colocar é se tal solução não põe em causa o

princípio do cumprimento pontual das obrigações. A recusa de cumprimento

de uma obrigação constituirá, em regra, um comportamento ilícito do devedor,

mas que, na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, o legislador

torna legítimo, em virtude do não cumprimento simultâneo pela contraparte da

obrigação que sobre esta recai, precisamente para tutela do respectivo direito de

crédito. Assim, a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses que

permitem ao devedor invocar a excepção de não cumprimento ou o direito de

retenção, também se verificará noutras situações não abrangidas por estes

institutos. Como tivemos oportunidade de aflorar, encontra-se hoje

ultrapassado, pela generalidade da comunidade jurídica, o entendimento

segundo o qual a analogia de disposições excepcionais se encontra em todos os

BONGIORNO, L’Autotutela Esecutiva, Milano, 1984, pp. 29 e 30.

65 No ordenamento jurídico francês em que a excepção de não cumprimento não se

encontra prevista, em termos gerais, no Código Civil, a doutrina e a jurisprudência têm-se

pronunciado no sentido do alargamento do âmbito de aplicação da excepção por se tratar de

uma medida defensiva e temporária que não põe em causa a paz e ordens públicas. Cfr.

CATHERINE POPINEAU-DEHAULLON, Les Remèdes de Justice Privée à l’Inexécution du Contrat, Étude

Comparative, Paris, 2008, pp. 99 e 100. Referindo-se especificamente à compatibilidade da

excepção de não cumprimento com a tutela da ordem pública, v. VALLIMARESCO, La Justice

Privée en Droit Moderne, Paris, 1926, p. 407.

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casos excluída. A esta concepção restrita, reflectida no art. 11.º, tem-se vindo a

sobrepor aquela que manda atender à “razão pela qual o legislador

excepcionou este casos”66. Justifica-se, por conseguinte, plenamente que seja

reconhecida a licitude do comportamento do devedor que se recusa a cumprir

para tutelar o direito de crédito de que é titular.

A solução passa também pela formulação de um juízo de oportunidade.

Tudo está em saber se, sendo possível ao credor tutelar de forma económica e

célere o seu direito sem recurso à força própria, não será de admitir esta causa

de exclusão da ilicitude, apesar de a mesma não se encontrar prevista na lei. Por

outro lado, sempre existirá a garantia de que os tribunais poderão intervir para

ajuizar se a recusa é abusiva e, como tal, contrária ao direito vigente.

De acordo com a formulação ampla do adágio “inadimplenti non est

adimplendum”, qualquer situação em que se verifique existir uma reciprocidade

de créditos permitiria, à primeira vista, ao devedor recusar o cumprimento da

sua obrigação, se o credor não se dispusesse a cumprir, em simultâneo, aquela a

que está adstrito. Diríamos, todavia, que não existe um consenso no que

concerne à admissão de uma forma tão ampla de exclusão da ilicitude do

comportamento daquele que não cumpre pontualmente uma obrigação.

Tanto a excepção de não cumprimento, como o direito de retenção

pressupõem a existência de uma especial ligação entre créditos. Por outro lado,

apesar de o regime jurídico da compensação não distinguir, em regra, as

hipóteses em que os créditos, para além de recíprocos, provêm da mesma

relação jurídica, entendida para o efeito como mesma relação de vida, a verdade

é que fomos capazes de identificar um conjunto de situações em que o regime

jurídico deve ser distinto do geral.

66 Cfr. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 503.

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A conclusão a que chegámos a nossa dissertação de doutoramento67 é a

de que, ao contrário do que vimos suceder com o direito de retenção

convencional, é necessária a existência de uma conexão entre créditos para que

o devedor possa recusar o cumprimento da sua obrigação até receber do credor

a prestação a que tem direito. Isto significa que não basta que créditos sejam

recíprocos é necessário que estes tenham uma origem comum. Essa conexão

entre créditos existe quando estes provêm da mesma relação jurídica. O

conceito abrange também as situações em que os direitos têm fonte na mesma

relação da vida.

6. Oponibilidade a terceiros:

Outras das questões suscitadas no Acórdão do Tribunal da Relação do

Porto com que iniciámos a presente exposição era a de saber se o direito de

retenção, que os Autores da acção advogavam ser titulares, prevaleceria sobre

uma hipoteca anteriormente constituída sobre o bem retido.

Estando os direitos reais de garantia sujeitos ao princípio da

taxatividade, mesmo que a obrigação recusada tenha por objecto uma coisa

determinada, aquele que legitimamente se recusa a realizar a prestação não

goza de qualquer direito a ser pago com preferência pelo valor do bem retido.

Aliás, foi por esse motivo que excluímos a possibilidade de o direito de retenção

ser aplicado por analogia a outras situações em que se verifica a existência de

uma conexão entre créditos.

Problema diferente está em saber se a excepção de recusa de

cumprimento para tutela de um direito de crédito que temos sustentado existir,

nos termos anteriormente delineados, apesar de não atribuir ao seu titular

qualquer direito de preferência pelo valor da coisa retida, não permitirá recusar

a terceiros a entrega da coisa. De outra forma, o credor poderá alienar a coisa

67 Cfr. Parte VI, n.º 4.2.3.

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retida a um terceiro que a poderá reivindicar, defraudando, assim, os interesses

do beneficiário da excepção que legitimamente pretendia recusar a entrega da

coisa até receber a prestação a que tem direito. Se defendemos, a propósito da

oponibilidade a terceiros da excepção de não cumprimento, a impossibilidade

de esta, à luz do ordenamento jurídico português, ser oponível aos terceiros

adquirentes da coisa, por maioria de razão, temos de entender que esta

excepção não pode ser oposta a estes últimos. A recusa da entrega da coisa não

é, assim, oponível, em regra, a terceiros adquirentes.

A este propósito, pode suscitar-se, ainda, a seguinte interrogação: será a

referida recusa oponível aos credores do credor da entrega da coisa em sede de

acção executiva singular e de processo de insolvência?

No que diz respeito ao processo de insolvência, o beneficiário da

excepção não pode deixar de ser considerado um credor comum, não gozando

de qualquer direito a ser pago com preferência68, nem da protecção conferida no

art. 102.º do CIRE às prestações unidas por um vínculo de sinalagmaticidade69.

Assim, estará obrigado a cumprir integralmente a sua obrigação e receberá

aquilo a que tem direito de acordo com o princípio da par conditio creditorum. Se

68 Relativamente à impossibilidade de invocação do direito de retenção previsto no

§273,1 do BGB, em processo de insolvência por se tratar de um direito que não produz efeitos

relativamente a terceiros, v. KRÜGER, Münchener Kommentar..., cit., § 273, n.os 56 e 94, pp. 687 e

695. 69 Sobre a impossibilidade de o disposto no art. 102.º do CIRE ser aplicado a contratos

não sinalagmáticos, v. PESTANA DE VASCONCELOS, “O novo regime insolvencial da compra e

venda”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 3, 2006, pp. 536 e 537,

MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 4.ª ed., Coimbra, 2012, p. 179(235) e ROSÁRIO EPIFÂNIO,

Manual de Direito da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra, 2013, p. 177. Esta posição não é, contudo,

acolhida por OLIVEIRA ASCENSÃO, “Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso”, ROA, ano

65, II, 2005, pp. 288 e ss. que propõe a aplicação analógica do art. 102 do CIRE aos contratos e

negócios unilaterais. A analogia não nos parece sustentável, porquanto nas hipóteses em que o

administrador opta pelo cumprimento, os contradireitos do credor tornam-se dívidas da massa,

o que implica uma restrição ao princípio da par conditio creditorum. A doutrina germânica tende

a circunscrever a aplicabilidade do §103 da InsO aos contratos bilaterais. Admitindo a

possibilidade de o §103 da InsO se aplicar a obrigações emergentes de um contrato bilateral

ainda que estas não se encontrem unidas por uma relação de sinalagmaticidade, mas recusando

a sua extensibilidade aos contratos bilaterais imperfeitos, v. KATHARINA BLAUM,

Zurückbehaltungsrechte in der Insolvenz, Baden-Baden, 2008, pp. 146 e ss. e pp. 250 e 251.

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outra fosse a solução, teríamos de concluir que esta faculdade de recusa gozaria,

afinal, de maior protecção do que aquela que é conferida ao titular de um

direito real de garantia, especialmente quando o valor da coisa retida fosse

superior ao do crédito, pois, nesse caso, os demais credores poderiam estar

dispostos a proceder ao pagamento para que a coisa retida fosse entregue à

massa70.

Relativamente à acção executiva para pagamento de quantia certa,

procedendo-se à penhora de um bem do executado que se encontre “retido” e

não gozando o devedor que arguiu a excepção de nenhuma preferência sobre

aquele, não poderá reclamar o seu crédito ao abrigo do art. 778.º do CPC.

Poder-se-á, todavia, equacionar a possibilidade de este deduzir embargos

de terceiro, advogando que a penhora lesa a sua posse ou um direito com esta

incompatível. Para além de ser duvidoso que o “retentor” possa ser

considerado possuidor, a verdade é que o seu direito não é oponível a terceiros,

pelo que entendemos que a resposta não poderá deixar de ser negativa, o que

demonstra a fragilidade da garantia associada a este poder de recusa que tem

eficácia somente entre as partes.

Diferente será se se proceder à penhora de um direito de crédito cujo

cumprimento possa ser licitamente recusado pelo seu devedor, nos termos

supra mencionados. Aí já é defensável que este direito de recusa do

cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito goze de uma certa

oponibilidade a terceiros, porquanto no art. 776.º do CPC se estabelece que no

caso de o devedor - notificado da penhora do direito de crédito – declarar que a

exigibilidade da obrigação depende de prestação a efectuar pelo executado e de

este confirmar a declaração, o executado é notificado para satisfazer a prestação

no prazo de 15 dias. Se o executado não o fizer, a prestação pode ser exigida na

70 Cfr. MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido

da excepção de não cumprimento”, cit., pp. 214 e 216 a 217.

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mesma execução, servindo de título executivo a sua declaração de

reconhecimento de dívida. Se o executado impugnar a declaração do devedor e

a penhora se mantiver, o crédito considera-se litigioso e como tal será

adjudicado ou transmitido.

Assim, no que concerne à oponibilidade a terceiros, a regra é a de que

não se encontrando esta prevista na lei, o direito a suspender o cumprimento da

obrigação para tutela de um direito de crédito só será oponível entre as partes.