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7/11/2019 Affonso Claudio - Estudos de Direito Romano (v. II) (1927) http://slidepdf.com/reader/full/affonso-claudio-estudos-de-direito-romano-v-ii-1927 1/382

Affonso Claudio - Estudos de Direito Romano (v. II) (1927)

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Direito Roman oPelo Dezembargador Affonso Claudio, Livre Do cente da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro e da de Nictheroy, exlente cathedra tico de Direito Romano do Instituto Universitrio, etc., etc.

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II VOLUME

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(Direito das Gousas)

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RIO DE JANE IROPap. e Typ. Marques Arajo & CR. S. Pedro 214 e 111) 1927

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1., 23, De Aqua; 4., 29, Dig. De Usurp.; CICERO, pro Caecina, 26; 20, De Servit; 1., 2., De Serv. Praed. Rust.; lei 12, Cod. De Praesc. Long. Temp.

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A differena acima notada provm do caracter das servides urbanas que so contnuas, que pesam sobre o prdio serviente independentemente do facto da pessoa, ao passo que as rsticas so descontinuas e necessitam para o seu exerccio do facto do homem; neste ultimo caso somente, a absteno faz correr o praso do no-uso. 2 pela perda de um dos dous immoveis; mas reviver a servido si o anterior estado de cousas fr restabelecido antes de expirar o praso fixado para o no uso; 3 pela confuso, quando os prdios dominante e" serviente passam a pertencer ao mesmo senhor; 4 o pela renuncia do proprietrio do prdio dominante, consentida no antigo direito por via da in jure cessio, com ajuda de uma aco negatoria fictcia implicando a plena propriedade; sob Justiniano a renuncia pde ser feita por qualquer modo de manifestao do consentimento; 5 o pela resoluo do direito do constituinte; 6 o segundo o direito pretoriano, pelo implemento do termo ou da condio resolutoria (l). No -Direito Romano, alm dos caracteres geraes que convinham s servides, todas ellas se faziam conhecer pr alguns outros especiaes em relao aos prdios a que ellas se referiam. Assim, as servides no se presumiam e dependiam de titulo que lhes comprovasse a existncia. Em segundo logar eram inalienveis; no podiam ser separadas do sujeito a que pertenciam (o prdio dominante) nem transmittidas quer por actos inter vivos, quer causa mortis. Em terceiro iogar eram indivisveis, porque um immovel considerado aberto em vez de fechado, regado em vez de ser privado d'agua, no pode gosar de taes qualidades sino tomado 'em seu todo e nunca em um tero ou um quarto. Em quarto finalmente, eram perptuas, porquanto, um immovel que, por exemplo, gosa de uma servido de passagem ou de aqueducto, a sua constituio no de presumir que se ralisasse, si o transito ~e o transporte d'agua no tivessem estabilidade e no ficassem estabelecidos a titulo definitivo (2). (1) Frags. 1, 5, 6 princ. ; 8 princ. ; 10, 1.; 14, princ, Dig. Quem Servit. Amitt.; 6, De Servit. Praed. Urb. (2) Frags. 28, Dig. De Servit. Praed. Urb. ; 9, De Servit. Praed. Rust. ; 9, 14, 20 5." in fine; 30 princ. e 40, De Servit. Praed. Urb. ; 15 e 16 in fine, De Usuf.; 2 1. e 72 princ, De Verb. Signif.

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No Direito Civil ptrio, a constituio das servides prediaes e o modo de sua utilisao, esto consignados nos artigos 695 a 707 e os casos de extinco vm mencionados nos arts. 708 a 712 do Cod. Civ.. Todas as solues adoptadas pelo Cdigo, decorrem directamente da doutrina professada e ensinada pelos jurisconsultes romanos, inclusive os casos de usocapio pro libertatis; examinal-as uma por uma, eqivaleria a termos de repetir o que j ficou dito em outro logar. Apenas notaremos que differentemente do seu paradigma, o Cdigo Civil s menciona no art. 697 as servides no apparentes, parecendo que as apparentes, continuas e descontnuas, affirmativas e negativas foram postas margem, sem motivo justificado; tambm notamos que no lhe mereceu considerao a grave controvrsia acerca da distincco entre as servides rsticas e urbanas, em que os velhos jurisconsultes do imprio romano, dispenderam o melhor de sua erudio scientifica, no afan de construirem a doutrina ainda hoje adoptada pelos cdigos das naes de cultura juridica. Esses fructos da sabedoria antiga, de ordinrio so entre ns acoimados de velharias ou de resduos fosseis, sem proveito para a moderna cultura juridica, que no se nutre de um tal caput mortuum; tudo isso deve ceder o passo ao prurido reformista que domina os nossos legisladores, os quaes, sobrecarregados como vivem com os grandes interesses que entendem com o bem estar do paiz, talvez ainda no tenham tido tempo de 1er esta observao muito de ser meditada: Quando as leis se succedem e se substituem rapidamente, ellas perdem, com o respeito que lhes devido, sua fora e auctoridade (1).

(1) VON JHERING, O Esp. do Dir. Rom. II, 62.

VIGSIMA SEGUNDA

PRELECO

SUMMARIO: Servides pessoaes: (usuructo, uso, habitao e servios de escravos). Direitos e obrigaes do usufructuario; como se estabelecem e se extinguem as servides pessoaes. Do quasi-usufructo. Meus Senhores: Tivemos opportunidade no ultimo dia util de trabalho acadmico, de anaiysar a materia das servides em geral, quanto ao seu conceito jurdico, passando em seguida a dividil-as nas duas grandes classes em que as distribue a doutrina, isto , em servides reaes ou prediaes e servides pessoaes. Constituindo as primeiras objecto da preleco do dia, repartimol-as em urbanas e rsticas ou ruraes, assignando s de ambas as categorias os seus caracteres geraes e especiaes e ao mesmo tempo lembrando as questes que se suscitavam acerca de cada uma dlias, emittimos a nossa opinio, sem outro intuito que o de chamar a atteno dos Senhores para um assumpto de innegavel interesse pratico e theorico, porquanto, nemuma duvida pde haver nos dias que hoje correm, que as servides acompanharam a marcha evolutiva da propriedade romana, recebendo delia os traos lineares de sua composio, desde que se organisaram como instituto autnomo. As nossas ultimas observaes, tiveram por alvo a ultima diviso das servides quanto aos seus effeitos, a maneira porque se constituam e extinguiam, e a posio que ellas assumiam no Direito Civil ptrio, comparada com a que tiveram no Direito Romano. Feita a brevssima resenha da precedente preleco, na de hoje estudaremos as servides pessoaes, sujeitando-as ao mesmo methodo observado nas servides reaes. A noo de usofructo dada pelo imperador Justiniano, que elle consiste no direito de usar e gosar de cousas alheias, salvo quanto substancia: usufructus est jus alienis rebus utendi fruendi, salva rerum substancia; (1) essa definio, que a reproduco da de Paulo constante do frag. 1 Dig. De ususf. quem. quis utat Fruct., elle completou-a com ajuda (1) Institutas, De Usuf. princ. -

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de outra formulada por Celso, nos termos a seguir: na realidade o usofructo um direito sobr; cousa corporea, a qual supprimida, necessariamente tambm o extingue: est enim jusin corpore, quo sublato et psum tolli necesse est (1).

De modo que a ida do usofructo, para ser claramente entendida, exige que definio de Justiniano accrescenternps a phrase de Celso, ficando o seu sentido reproduzido no seguinte enunciado; usofructo o direito de usar e gosar de cousas alheias, corporeas, sem offensa substancia das mesmas, porquanto, no ha identidade entre o direito real de usofructo e o direito de uso e fruio, exercido a titulo pessoal. E' assim que vemos que o terceiro a quem o usofru1ctuario cedeu o seu direito, adquire o jus utendi et intendi, mas, esse direito diffre, principalmente quanto durao, do usofructo que lhe fosse constitudo pelo proprietrio da cousa directamente; tal differena assignala Paulo quando faz esta distino: Quando me vendes o usofructo, cumpre saber si me vendes o direito de usar e desfructar que somente tenhas ou si me vendes o usofructo da cousa que seja tua; porque no 1 caso, ainda que falleas immedatamente, nada dever-me- o teu herdeiro e si fr eu o extincto, e tu o sobrevivente, o direito que me cabia continua na pessoa do meu herdeiro; no 2o caso, porm, comquanto nada se deva ao meu successor, a responsabilidade do teu evidente. (2) Como da propria palavra, resalta ususfructus abrange o direito de usar de uma cousa, sem o goso delia, usus ou o que vem a ser o mesmo sem o goso dos fructos que ella pde produzir; e frucus, o direito aos fructos com ou sem qualquer uso da referida cousa; mas, certo , que, se compondo tanto de um direito como de outro, comprehende ambos. Dos direitos componentes do usofructo, o primeiro (direito de uso) essencialmente individual e varia em cada caso dado, tanto quanto podem variar, de um lado a possibilidade de usar diffrentes cousas sem lhes alterar a substancia, e de outro as exigncias pessoaes d'aquelles que tm direito a este uso. O segundo, (direito aos fructos) no tem por bitola o interesse ou as necessidades individuaes e comprehende sob a denominao de fructos, todos os productos que o indivduo pde auferir de uma cousa sem a deteriorao, de onde vem o di, (1) Frag. 2. Dig. De Usus/. et Quemad. Qui. Utat. Fruct (2) Frag. 8, 2, Dig. De Pericol. et Comm. Rei Vind.

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zer a lei romana: quidquid in fundo nasctur, quidquid indie percipi potest, ipsius fructus est (1) Comprehende-se, no emtanto^ que a utilisao dessa faculdade tem por limite as possibilidades, a natureza e o destino da cousa e no a convenincia d'aquelles que a aproveitam; ha de se attender ao modo e no espcie do uso; ad modum enim referendum est, non ad qualitatem utendi, diz o frag. 9o citado, in fine/. E' lio dos interpretes, que, a locuo salva rerum substantia tem tido diffrentes interpretaes. Ao ver de uns ella contm uma indicao da durao possvel do usofructo; ao ver de outros, menciona a designao das cousas que por sua natureza intrnseca podem ser objecto de verdadeiro usofructo, em opposo ao quasi usofructo das cousas fungveis; finalmente ainda alguns entendem a dita proposio, como exprimindo o dever imposto ao usofructuario de gosar a cousa sem a desnaturar (2). Das apontadas intelligencias do texto, conclue Ortolan que a ultima deve ser preferida, por mais comprehensiva e mais verdadeira. Assentada a noo do usofructo, cumpre que faamos desde j uma observao, que, comquanto importe conhecimento de materia pertencente ao direito das successes e parea uma antecipao descabida, todavia tem a sua cabal justificao em interesses de ordem pratica; referimo-nos distinco que devemos assignalar, entre o usofructo e o fdeicommisso, que muitos auctores confundem. No Direito Romano do perodo clssico, chamava-se fdeicommisso, a disposio de ultima vontade, pela qual o testador encarregava ao seu herdeiro (fiduciario) de restitur no todo ou em parte e em dado tempo, a uma terceira pessoa, (fideicommssario), a herana recebida. , E' natural que o fiduciario, a quem as cousas so entregues, durante o tempo em que as tiver comsigo, aufira as vantagens que ellas proporcionam e nisso o fdeicommisso se assemelha ao usofructo; mas ao mesmo tempo occorre uma circumstancia que de notar e vem a ser que, ao passo que o fideicommisso sempre condicionado a praso, o usofructo tem por medida de tempo de durao, a vida do usufructuario. (1) Frags. 9 princ. e 59 1. Dig. De Usuf. et Quem. Qui. Utat. Frut. (2) Gluck, Pandecten, IX, 159 e seg. ; Ortolan, Explic. Hist, des Institutes, I, 295 n. 2.20

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Como bem pondera Clovis Bevilqua, no fideicommisso, o fiduciario proprietrio, embora o seu domnio seja resoluvel, pois elle pde exercer em relao cousa a plenitude dominial do uso, goso e disposio; o usufructuario no pode dispor da cousa em circumstancia alguma, emquanto o for e quanto ao seu prprio direito, s lhe permittido transferil-o ao seu proprietrio sob pena de extinco do usofructo. No fideicommisso, os sujeitos do direito o fiduciario e o fideicommissario, se succedem, cada qual a seu tempo; no usufructo, os sujeitos do direito, actuam simultnea e independentemente um do outro: o usufructuario, usando e gosando a cousa; o proprietrio, dispondo delia, no obstante o onus que a grava, porque a dita cousa, em sua substancia lhe pertence. Resumindo o seu pensamento acerca da distinco entre os mencionados institutos, conclue o egrgio civilista: Osdois institutos differem por sua estructura e sua finalidade. Por ="estructura, porque o fiduciario continuaria a ser proprietrio, no obstante no poder dispor dos bens gravados. Sua propriedade seria restricta como qualquer outra sujeita clausula da inalienabilidade, mas, embora desprovida desse elemento importante, continuaria a ser propriedade e no um direito real sobre cousa alheia. Por sua finalidade, porque, o fideicommisso, prove a necessidades, attende a intuitos, que o usofructo no pde prover, a que no pode attender. (1) O limite assignado ao direito do usufructuario, de nada fazer que affecte a substancia da cousa, deve ser entendido, no somente no sentido natural, isto , de abster-se de abusos materiaes do goso, mas tambm no sentido juridico, isto , de abster-se de actos que modificariam a situao da cousa, como objecte de direitos activos ou passivos. Elle no pde, pois: 1, alienar, 2, obrigar a cousa sujeita usufruio. O direito de alienal-a e hypothecal-a, sem offensa ao goso reservado ao usufructuario, pertence ao proprietrio; neque usufruetus... dominii mutatione amittitur.

Mas, salvo os direitos acima especificados, certo que o usufructuario absorve a melhor parte dos attributos da propriedade, de maneira a no deixar ao dono da cousa sino o puro direito real despojado de toda utilidade effectiva, e, por ser tal a posio em que este fica, que tomou a denominao1(1) Cod. Civ. Comment VI, 194-195.

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de n proprietrio e a cousa, a de na propriedade. Entretanto, o usufructuario no considerado como possuidor civil da cousa submettida ao seu goso e uso; a lei apenas lhe renhece a posse natural ou simples deteno. (1) J dissemos em comeo, que o usufructo comprehende dous direitos que se desmembram da propriedade plena, e passam do proprietrio para o usufructuario; o jus utendi e o jus fruendi. O primeiro lhe proporciona a vantagem de se servir da cousa com todos os accessorios que lhe augmentam a utilidade, taes como as servides prediaes activas. O segundo, a de adquirir a propriedade de todos os tructos da cousa. O n proprietrio tem os productos; mas os rendimentos que a cousa d periodicamente, tm o caracter de fructos e so do usufructuario. O seu direito, portanto, abrange os fructos naturaes e industriaes, inclusive a cria dos animaes, os cereaes, as peas de madeira, reduzidas a lenha e as de construco quando constiturem exclusivo rendimento do immovel e finalmente o que fr extrahido das minas e das pedreiras, abertas antes da constituio do usofructo, os fructos civis, quer consistam em alugueis de uma herdade, de uma casa ou .em juros de dinheiro em espcie ou em ttulos. Ha apenas um rendimento que do n proprietrio: a cria da mulher escrava, que no um fructo e sim um producto, por entenderem os romanos, que, tendo a natureza creado para o homem todos os fructos seria um contrasenso entrar elle prprio na categoria de fructo. (2) Accarias commenta os citados textos de Gaio e Justiniano, dizendo: Phrase sonora, mas vasia de sentido! No fundo, de que se trata? Si os filhos da escrava constituda em usofructo, pertencem ao n proprietrio, ou ao usufructuario. Si assim , a dignidade humana to sacrificada em uma soluo como em outra. (3) Realmente, ainda segundo os princpios, parece mais exacta e fiel doutrina, a opinio que considera os filhos da escrava fructos, pois, at o tempo de Cicero, era esse o parecer de Manilio e Scaevola, posto que viesse a prevalecer (1) Leis 9, 6, 2, Cod. De Usufr.; frag. 19, Dig. Quem. Ususfr. Amitt; 17, 2., 4, De Usufr.; Institutas, huj. tit. 4.; frags. 10 5 Dig. De Adq. Rer. Dom.; 12 princ. De Adq. vel Amitt. Poss ; 6, 2., De Precrio ; 3. l. e 7." princ. Dig. De Usufr. (2) Frag. 28 1. Dig. De Usur. et Fruct.; Institutas. De Usufr. % 37. (3) Prcis de Droit. Rom. I, 696-697, nota T..

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o voto em contrario de Bruto, como se verifica do frag. 68 princ. Dig. De Usufr. et Quemadm. Em que momento, porm, o usufructuario, adquire a pro- | priedade dos fructos? ' A resposta questo obriga a uma distinco. Si o caso fr de fructos naturaes, elle fica sendo proprietrio dos mesmos desde a percepo, quer a faa por si mesmo, quer por outrem em seu nome; a cria dos animaes, desde o nascimento. (1). Si fr de fructos civis, o usufructuario os adquire dia por dia, si a cousa no frugifera por si mesma, como uma casa; o aluguel representa sobre tudo o uso. Si a cousa fr frugifera, o aluguel representa sobre tudo o fructus e o usufructuario adquire os fructos civis na proporo dos naturaes que o arrendatrio pode perceber. Assim, por exemplo, si a colheita estiver inteiramente feita no fim do usufructo, o aluguel devido por inteiro ao usufructuario; si apenas por metade, o n proprietrio tem direito a uma parte delle. O usofructo, sendo uma servido estabelecida em proveito de determinada pessoa, por sua natureza incessivel. Entretanto, prevaleceu a doutrina de que o usufructuario podia ceder o exerccio do seu direito, a titulo gratuito ou oneroso. Em tal caso, o cessionrio aufere todas as vantagens do usofructo cedido, mas o direito repousa e permanece com o cedente e com este se extingue; foi neste sentido que o direito pretoriano permittiu ao usufructuario ceder ou hypothecar o seu direito. (2). Em relao s obrigaes do usufructuario, dissemos que por fora da natureza do seu direito, elle no podia alterar a substancia da cousa nem mudar-lhe o destino; essa realmente a maior que fica a seu cargo, sem embargo de outras accessorias, como: fazer por si as despezas de conservao, pagar os impostos com os rendimentos colhidos e restituir a cousa, findo o usofructo, ao n proprietrio. Por isso mesmo que as relaes do usufructuario se referem cousa e no ao n proprietrio, muito naturalmente no cabia ao primeiro zelar pelos interesses do segundo, que neste particular serlhe-iam indiffrentes; todavia, a lei, para no tornar precria a posio do n proprietrio, auctorizou o pretor a lanar mo de uma formalidade que ficou sendo obrigatria para (1) Frag. 28Dig. De Usurp. (2) Frag. 11 2.Dig. De Pignor.

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o usufructuario e que consiste em prestar, no momento em que entra no goso do usofructo, a dupla promessa garantida por fiadores, de gosar como bom pae de famlia e de restituir no fim do usofructo, a cousa ao seu proprietrio. (1) A promessa de gosar como bom pae de famiila, fal-o responsvel por todo e qualquer acto de negligencia; em conseqncia, elle deve interromper as prescripes; exercer as servides que se extinguem pelo no-uso; preencher com as crias as perdas do rebanho; substituir as arvores mortas ou as que se extinguem com os fructos que adherem s raizes; mas, no tem o encargo de fazer maiores obras de reparao, por nada ter contractado neste sentido com o n proprietrio. (2) A promessa de restituir a cousa findo que seja o usofructo, parece inutil, porque sendo este um direito essencialmente temporrio, j em si contem a clasula restitutoria; entretanto, assim no , porque d ao n proprietrio uma vantagem de interesse pratico, qual a de dispensal-o da prova do direito da propriedade, na aco de reivindicao que tiver de intentar contra o usufructuario ou quem quer que detenha a cousa, bastando-lhe intentar a aco ex-stipulatu, que a que sancciona a dupla promessa do usufructuario.

Verificado que o usofructo tem por elementos o jus fruendi e o jus utendi, possvel a existncia do usus sem o fructus ou deste sem aquelle? Ulpiano e Paulo se manifestam pela negativa. (3). Cumpre, entretanto, como bem pondera Accarias, no tomar essa doutrina ao p da lettra, pois, o prprio Ulpiano fala de um fructus sine usu e decide em longo parecer, que, o credor de direito de usofructo, pde validamente fazer acceptilao do usus, conservando-se credor do fructus; do mesmo modo elle no censura a disposio de um testador que legou a certa pessoa o fructus e a outra o usus de dada cousa; finalmente, tampouco lhe pareceu irregular a diviso a que allude, da propriedade, em trs partes, cabendo a uma o usus, a outra o fructus e ultima, a na propriedade. (4). (1) Paulo Sentenc. III, 6 2.. (2) Frag. 7., 2-% Dig. De Usufr. (3) Frag. 14, 1. Dig. De Us. et Habit. Sentenc. III, 6 24. (4) Frags. 5., 2. Dig. De Usufr. Quemadm. Cav., 13, 3., De Accept. 42 princ. De Usufr. 14, 3.; De Us. et Habit.

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Podemos conciliar essas duas series oppostas de textos, conclue o citado tratadista francez, por duas idas muito simples. Primeiramente, o jus fruendi no pde ser srio, desde que no seja possvel exercel-o por um certo jus utendi; elle implica portanto o direito de usar, na medida em que este ultimo a condio do goso. Em segundo logar, ainda mesmo que o jus fruendi no seja acompanhado de um jus utendi, sem restrico, no constitue um direito sui generis; apenas um direito de usufructo um pouco mais limitado do que o usufructo ordinrio. E isso que explica porque ao usufructo se chama indifferentemente ususfructus ou fructus e ao usufructuario, ususructuarius ou fructuarius e cousa gravada res usufructuaria ou ructuaria. (1)

Vejamos agora como se constituia o usufructo e as modalidades de que era susceptvel. O usofructo se estabelecia, conforme as varias pocas do Direito, pelos mesmos modos de translado e de deductio, usados nas servides prediaes e com as restrices a seguir: I a Pela mancipatio no se constitue usofructo que no se referir a res mancipi; 2 foi cedo imitado pelas cidades nos arrendamentos dos seus terrenos patrimoniaes celebrados com particulares para edificaes, e, como o regimen forrava os proprietrios de dispensarem maiores cuidados s suas terras, ao mesmo passo que lhes assegurava a vantagem do foro, em breve entrou nos costumes individuaes (1). Assim considerada em seu primitivo aspecto, a superficie confundir-se-ia com a locao commum e naturalmente por esta seria absorvida, si o pretor no desse como deu, successivamente, ao direito delia decorrente, o amparo e o prestigio de duas providencias que lhe asseguraram a autonomia: a saber, o interdicto De Superficiebus, modelado pelo Uti Possidetis, .por via do qual ficou o possuidor coberto de turbaes em sua posse superficiaria, por parte de terceiros e uma actio in factura, equivalente reivindicao, que lhe permittia retomar a cousa gravada pelo seu direito, das mos e poder de quem a detivesse, ainda mesmo que fosse o proprietrio ou seus successores no domnio, para cujo fim deu ao possuidor aces calcadas nos moldes de aco negatoria e da confessoria; (2). Ha quem ainda outorgue ao superficiaro, as vantagens do recurso aos interdictos Unde Vi e De Precrio, em vista do que se contm no frag. 1 5, Dig. De Vi e do frag. 2 3, De Prec, mas parece que foram constrastados, pela concesso feita ao proprietrio, da faculdade constante do frag. 3 7, Uti Possidetis. O que porm fica fora de duvida, observa com inteiro fundamento F. GIRARD, , que, assim como da existncia da aco Publiciana, se deduziu a sua applicao propriedade pretoriana, tambm da concesso de aco real ao superficiaro, se concluir a existncia do direito real que elle pde transmittir mortis causa, alienar por actos inter vivos, submetter aos gravmes de servides e hypothecas e, quaesquer outros onus reaes. Conhecido o desenvolvimento que teve a superfcie entre os romanos, c possvel determinar a natureza primitiva d direito que ella creou? (1) Dig., Uti Possidetis, frag. 3., 7.; DEGENKOLB, Platzrecht und Miethe, 90-93. (2) Frag. 1. princ. e 1, 2, 3, Dig. De Superficiebus; 73 1. e 75, De Rei Vindic

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A resposta no fcil. Quando estudmos a origem do direito emphyteutico, vimos pelas decises de Gaio e Justiniano, que entre os antigos jurisconsultes, era assumpto controvertido, o de saber, si, os prdios que so aforados, mediante certo foro, constituem objecto de contracto de locao ou de compra e venda, dissdio a que poz termo o imperador Zeno, declarando que a relao jurdica proveniente do aforamento, dava logar emphyteuse e no quelles contractus que eram de natureza diffrente. E' de suppr que, si a superficie tivesse tido na pratica maior applicao, em vez de Zeno resolver a pendncia com a ajuda do direito emphyteutico pela primeira vez lembrado, fal-o-ia por via da superficie, conhecida e praticada desde a Republica. A utilisao das cousas moveis, era feita pela locao; o uso das cousas immoveis, pelo pagamento do foro far-se-ia pela superficie, emquanto a sua funeo econmica ficou circumscripta apreciao do valor de uso. A relao de direito entre o superficiario e o proprietrio do solo, devia nessa poca ser idntica do locatrio em face do locador: meramente pessoal e a razo residiria no facto de no ter o primeiro, com a construcao que realizou, accrescido o solo de um novo valor ou de valor mais considervel. Os textos falam de cousas superficiarias, como si foram invariavelmente secundarias em relao ao solo, motivo porque este posto sempre em salincia, como principal, a que ellas tm de ceder como accessorios; (citados frag. 2 Dig. De Superf. e 32 De Cont. Emp.). No ultimo texto apontado, ULPIANO salienta que: qui tabernas argentarias, vel ceteras . . . vendit, non solum, sed jus vendi, quum istae tabernae publicae sunt, quarum USUS ad privatos pertinet. A deciso peremptria: o dono da tenda ou escriptorio sito em solo publico, vende o direito de uso de uma ou outra, mas no aliena uma partcula do solo que lhe no pertence. Modalidade da locao com especial applicao e construces levantadas em solo publico, quanto ao direito do uso que ellas comportavam, de prever que a superfcie, no obstante a proteco de que a rodeou o edicto do pretor, no se pde adaptar s concesses do ager vectigalis, representadas pelos arrendamentos perptuos ou a longo prazo, mediante penso annual, de terras incultas, feitas a particulares, pelas cidades, pelo Estado e pelas corporaes religiosas, destinadas mais a impulsionar a agricultura, do que a edificao. Foi ento

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quando lhe tomou o passo a emphyteuse, restringindo a sua funco ao objecto exclusivo da regulamentao do direito de oonstruco feita em solo publico ou particular, restrico que tanto mais evidente parece, quanto certo que o direito codificado, ao mesmo tempo que insere no Cdigo de Justiniano todo um titulo attinente emphyteuse, omitte qualquer referencia superficie. Isto prova que a iniciativa do pretor de transformar esta, elevando-a categoria de direito real, no lhe imprimiu novo alento de vitalidade. No direito anterior a Justiniano, a superficie se extinguia como a locao, pela perda da cousa e ainda segundo alguns tratadistas, pela falta de pagamento do foro, por dous annos consecutivos (1). . O nosso Cod. Civil, excluiu, a exemplo de outras legislaes, notadamente a allem, a superficie, do quadro dos direitos reaes (art. 674) e regulamentou a emphyteuse nos arts. 678 a 694, segundo as prescripes do Direito Romano. Quanto sua constituio, pde ser feita por acto entre vivos ou por disposio de ultima vontade, comtanto que o proprietrio reserve para si o domnio directo sobre o immovel e transfira ao emphyteuta o domnio util, obrigando-se este, no s ao pagamento do foro annual, certo e invarivel, como dos impostos e onus reaes que gravarem o objecto da emphyteuse (arts. 678, 682, 686). Na constituio da emphyteuse essencial ou substancial a escriptura publica? No a exige explicitamente o Cod. Civil, mas se contm implicitamente na regra constante do numero II do art. 134 da Lei de Introd., alis de accrdo com a pratica forense, como o attesta TEIXEIRA DE FREITAS (2) E' possvel a acquisio da emphyteuse por usucapio? E' opinio do egrgio auctor do Cod. Civ. Commentado, que sim, posto que o Cod. expressamente no o diga. Em Direito Romano a resposta negativa, alm dos fundamentos doutrinrios que- em outro logar expusemos, por expressa disposio de lei: in vectigalibus, et in aliis praediis quae usucapi non possunt; taes so os termos expressos do frag. 12 2 Dig. De Public. Actione. (1) Frag. 39, 2/ Dig. De Damno Infecto; F. GIRARD, op. cit. 386. (2) Consolid. das Leis Civis, art. 367, 2., nota 28. Egual a doutrina adoptada no Direito Romano ; Cod. De Jure Emphyt, a

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Por domnio util entende-se no Direito Romano, o direito que tem o emphyteuta de extrahir da cousa aforada todo o proveito e utilidade de que ella fr susceptvel e para segurana de tal direito que ella perpetua; a concesso por tempo determinado, constitue arrendamento e nessa qualidade se rege pelas clusulas contractuaes que a estabelecem (art. 679). Domnio directo era o direito substancia da cousa, excludas todas as vantagens de goso que servem de contedo ao domnio util. O Cod. Civil limitou a extenso do objecto da emphyteuse, lavra e edificao (art. 680) ; de onde resulta que o emphyteuta no pode explorar o subsolo para extrahir, por exemplo, riquezas mineraes, guas thermaes, etc, sem offensa ao direito do senhor directo, a menos que no seu contracte uma clausula especial lhe outorgue o direito que na emphyteuse no se pde subentender. Na frma do art. 681, a transmisso dos bens emphyteuticos, pode ser feita por herana, obedecendo ordem estabelecida a respeito dos allodiaes (arts. 1603 a 1619); mas os referidos bens no podem ser divididos em glebas, sem consentimento do senhorio. E' de todo em todo judiciosa a critica que a este dispositivo faz o auctor do Projecto Primitivo do Cod. Civil, reputando a sua primeira parte ociosa e capaz de induzir em erro, por fazer suppor que a emphyteuse propriedade no allodial. Com effeito, si a emphyteuse gera um domnio posto que limitado e si no systema do Cod. (art. 1573) a successo hereditaria tanto resulta da vontade do testador como da lei, est claro que os bens emphyteuticos podem ser objecto de herana e inutil era a previa declarao do art. em analyse. Tambm o qualificativo de allodiaes, dado aos bens encabeados successo legitima, uma extravagncia, porque allodiaes, no sentido de bens no sujeitos a suzerania feudal, so todos os que no paiz existem, onde o medieval regimen no medrou em nem-um tempo, visto ser anterior ao seu descobrimento. Realmente a legislao antiga, bem como os civilistas, no alludiam ao allodium, sino como antithetico de feudum; fora dessa relao, uma condio geral que se presume nos bens serem livres e desembaraados, emquanto no se prova que sobre elles pesam onus reaes. Era para indicar a propriedade plena e verdadeira, contraposta que emergia de benefcios ou de bens e direitos decorrentes de concesses de feudo, que STRYCKIO escrevia: alio-

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dium nihil aliud dnott quam nem immobilem quae nulle feudali nexu alteri obligato est. Ao que accrescentava BALDO: proprium cujusque patrimonium, quod a nullo reconoscitur, seu rem liberam quam quis a nemine tenet seu recognoscit nisi a Deo. As demais regras estabelecidas pelo Cdigo, aparte aquellas que so peculiares ao nosso direito acerca da emphyteuse, so sobrevivencias da legislao justinianea.

VIGSIMA QUARTA PRELECO SUMMARIO: Da hypotheca, sua constituio e effeitos; categoria dos credores hypothecarios. Jus offerendas pecuniae; successio in locum. Hypothecas privilegiadas. Da extinco da hypotheca. Meus Senhores: Foi objecto de nossas cogitaes na preleco anterior, o exame da materia da emphyteuse e da superficie, ltimos dos direitos reaes exercidos sobre re aliena, capazes de gerar ora a posse e ora o domnio. Em relao primeira, mostrmos que comeou pela posse de cousas do domnio publico, depois pela resultante das concesses do ager vectigalis, sempre regulada pelos princpios da locao e da compra e venda, at receber a denominao e os contornos de direito real que lhe outorgou o jus emphyteuticum, pela constituio Zenoniana. Em relao segunda, fizemos ver aos Senhores, que tendo sido uma relao de direito creada a um tempo para incentivar o desenvolvimento agricola e a edificao, dentro em pouco teve a sua expanso limitada pelo desenvolvimento da emphyteuse, reduzindo-se o seu objectivo exclusivamente locao predial quanto aos edifcios levantados em solo publico, por concesses feitas em comeo pelo Estado, depois pelas villas e finalmente pelos prprios particulares entre si. Tendo a superficie precedido emphyteuse, procurmos fazer certo porque motivo no se manteve o parallelismo no desenvolvimento dos dois institutos, vindo afinal a segunda a dominar toda a rea primitivamente occupada pela primeira, no que concernia ao regimen romano da propriedade agricola. Definidos os dous direitos reaes e dados os modos porque se estabeleciam e se extinguiam, passamos a discutir as questes que por sua importncia suggeria a emphyteuse, quer no Direito Romano quer no ptrio, accentuando por ultimo que o nosso Cdigo Civil no contemplara, a exemplo de outras legislaes modernas, a superficie, no quadro dos direitosi reaes, de modo que para ns este instituto tem apenas a recommendal-o o interesse histrico. Hoje encerraremos a parte de nossas observaes attinentes ao Direito das Cousas, tratando dos chamados direitos de garantia, representados pela hypotheca, o penhor e a antichrse - - conforme a judiciosa classificao dos direitos reaes,

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feita pelo notvel auctor do Cod. Civ. Commentado, classificao que a .mais perfeita e completa que conhecemos. Realmente, emquanto a propriedade gera o direito de posse, uso, goso e disposio, a emphyteuse, esse mesmo direito, subordinado entretanto a limitaes impostas por direito alheio; o usufructo e a antichrse o de posse, uso e goso sem disposio; as servides, o uso e a habitao, o direito s utilidades exclusivamente; a hypotheca, o penhor e a antichrse, so meros direitos reaes de garantia, destinados, no a proporcionar a acquisio da propriedade, mas a assegurar subsidiariamente a execuo das obrigaes oriundas de outras relaes jurdicas. E' verdade que pela dao in solutum a propriedade transferida do devedor ao credor; mas essa via de pagamento uma excepo no regimen hypothecario e salvo o caso de insolvencia do primeiro ou de accordo amistoso, . a regra ser feita a soluo da divida e de seus interesses, por dinheiro' de contado e no pelo immovel hypothecario. Como o credor hypothecario, o antichretico e o pgnoraticio, tambm podem por conveno ou acto jurdico posterior, vir a ser proprietrios da cousa destinada garantia do contractu anterior; mas ainda aqui essa possibilidade, constitue um caso excepcional, qual o da impontualidade do devedor. Das ponderaes que temos feito, evidente , que, emquanto dos institutos enumerados em primeiro logar, todos elles visam, ora a posse, ora a propriedade da cousa, quando no sejam simultaneamente ambas, os trs ltimos operam como meios compulsrios de execuo de obrigaes e desde que esta se realise, nem uma outra finalidade lhes cabe.

No estudo que ora encetamos relativamente hypotheca, o nosso escopo apenas apresentar este instituto como a ultima formula assecuratoria dos direitos reaes, succedanea da alienao fiduciaria e do penhor, si bem que com este ultimo e com a antichrse, por mais de uma vez se combinasse em todo o curso do seu desenvolvimento, porquanto, o direito real que de todos elles emerge, como contractes autnomos, constitue materia das chamadas obrigaes re, que s no direito das obrigaes pde ser ponderado devidamente, em sua formao, evoluo e extineo. Tarnpzmco entraremos na apreciao da hypotheca, quanto ao aspecto particular da aco a que d direito, porque assumpto pertinente theoria das aces, em Direito Romano,

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ultima parte do nosso programma ; quando a essa altura do nosso curso chegarmos, vero os Senhores, como e porque motivos, as formulas severssimas do processo judicirio, por via da man us in jectio, do n exum e do pign oris capio, deixaram de ser instrumentos de tortura da liberdade humana, a partir do reinado de Deocleciano e Maximiano, por fora da lei 12 e seu nico, do Cod. De Oblg. et Act. Si, porm, quizerem por antecipao conhecer qual era a sorte do devedor em Roma, sob o imprio, podero satisfazer a sua curiosidade, perlustrando o escripto que em 1916, publicmos sob o titulo: Da Reten so do Cadaver do devedor em garan tia do di reito creditorio, en tre os roman os. Assim limitado o objectivo de nossas cogitaes, comece mos pela an tichrse. ntichrse um vocbulo de origem grega que significa etymologicamente tnca mutua de goso; mas no este o sentido que teve no Direito Romano, e sim o de uso de cousa dada em garantia de divida ao credor, para cornpensad dos fructos e interesses, de tal modo que si o credito no pro duzisse interesses ou si se convencionasse que os fructos se riam percebidos pelo credor, para amortisar o capital do cre dito, o contractu perderia a feio antichretica, para se trans formar em contractu de simples garantia, approximado do pe nhor, mas sem nemuma designao particular. Tendo em atteno o que fica exposto, escreveu Marcian o, si se houver feito antichrse uso mutuo de um penhor por um credito (mutuus pign oris usus pro credito) e algum se introduzisse em uma herdade ou em uma casa, retm a posse em vez do penhor at que se lhe pague o seu dinheiro, posto que pelos interesses perceba os fructos, dandoos em arrenda mento ou directamente colhendoos ou habitando a casa; e assim se perder a posse, s ter direito aco in factum (1). Os commentadores de Direito Romano, no so menos ex plcitos quanto natureza da antichrse. Cujacio, observa: Si facta sit, et in fun dum aut in aedes aliquis in ducatur, eo usque retinet possession em pign oris loco, don ee illi pecun ia solvatur, cum in usuras fructus percipiat, aut locando aut ipso percipiendo habitandoque... Voecio, accrescenta Praecipu probatum in pign oribus pactum an tichreseos, que id agitur, ut creditor utatur pign ore in vicem usurarum, don ee debitum soiutum fuerit, sive ipse

(1) Frag. II 1., Dig. De Pignoris et Hypothecis.22

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Modernamente, antichrse o contractu pelo qual um devedor, em garantia de sua divida, entrega ao credor um immovel, com a faculdade de perceber os fructos por este produzidos, com o encargo de annualmente os imputar amortisao dos interesses e do capital do credito; arts. 2.071, 2.072 e 2.085 do Cod. Nap.; arts. 1891 a 18Q7 do Cod. Civ. ital. Constituindo, porm, um contractu de garantia de divida, o credor no se torna proprietrio do immovel dado em antichrse, pela falta de pagamento do seu credito no praso convencionado; qualquer clausula que em contrario fr estipulada, nulla, degenera em conveno injusta e usuraria, considerada pela lei romana, pacto commssorio e como tal vedado (2). No Direito Civil italiano, embora o Cdigo inclua a antichrse entre os direitos de garantia reaj, vae prevalecendo na jurisprudncia, a partir de 1880, a opinio de que essa garantia meramente pessoal, segundo Garbasso, Santarini, Ciccagione e no poucos outros civilistas. Luigi Abello que figura entre os sustentadores da segunda doutrina, assim se manifesta: Segundo o nosso Cod. Civ., a antichrse designa a conveno por via da qual um credor obtm a posse de um immovel com o direito de apropriar-se dos fructos, por conta dos interesses e do capital que lhe so devidos. Essa conveno visa assegurar ao credor, embora por uma via transitria e relativa, o adimplemento da obrigao do devedor, e tambm proporcionar-lhe meios e modos de, por si mesmo cobrar-se do seu credito, pela percepo dos fructos do immovel sujeito antichrse. D'aqui resulta que no uma garantia, mas uma forma especial de pagamento progressivo e parcial que a ordem usual d ao devedor a faculdade de obrigar, em dados casos, o credor a receber por partes o pagamento do debito, nos limites que a colheita annual dos fructos permitte. Ha muita analogia entre a antichrse, o penhor, o usofructo e a hypotheca; mas a primeira se distingue das demais, sobretudo porque origina um direito pessoal, emquanto que o que emerge dos restantes institutos real. E' certo que na Italia, alguns juristas influenciados pelas doutrinas de Pothier, Mirabelli e outros, defendem a realidade da antichrse, soccorrenCo-se do chamado direito de reteno conferido ao credor antichretico e da collocao especial que tm no Cdigo,(1) De Pignor. et Hypot, n. 23. (2) Lei 3? Cod. De Pact. Pignor. et De Leg. Comm.

aedes inhabitando, fundosve cotendo, percipere utilitatem vet, sive aliis elocare (1).

fructum,

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as normas relativas a esse contractu; mas, no menos certo , que, nos dias que correm a doutrina concorde da jurisprudncia, conclue pelo personalismo da obrigao. E realmente, si analysarmos o principal argumento da doutrina contraria, isto , o direito de reteno por parte do credor antichretico, quanto cousa dada em garantia, reconheceremos que no ha propriamente tal direito, mas apenas uma forma ou modo de execuo do contractu, que segundo a sua natureza e o seu alvo, impe ao devedor a condio de no entrar no goso do immovel, antes da completa satisfao do seu debito, sem que o credor precise de lhe fazer sentir, que essa deve ser a sua linha de conducta. Ha no caso reteno do immovel? Parece que no, porque no particularmente elle o fornecedor da materia da compensao e sim os fructos ou a colheita annual, acceita por ambas as partes para solucionar a obrigao. Improcede tambm o argumento que se procura derivar da circumstancia de ter o Cod. Civil, depois de haver tratado da garantia pessoal, discorrido sobre a real e includo nesta a antichrse. Certamente a posio material de um dado instituto ou de dado artigo no Cdigo, pde algumas vezes concorrer para a sua exacta interpretao, mas isso succde s e quando concorram outros elementos que demonstram a verdadeira inteno do legislador; no, porm, no caso em debate em que explicito o artigo 1897, quando prescreve que a antichrse s produz effeito nas relaes entre credor e devedor e seus herdeiros e claramente faz deste contracto uma espcie de delegao de fructos, que origina no credor delegado um direito simplesmente pessoal. Do caracter pessoal do direito de antichrse, resultam os seguintes corollarios: 1 O credor antichretico no tem nem-um direito de propriedade sobre o immovel, no o retm, pois animo domini, ou com animo de exercitar nelle um direito que lhe diga respeito; retem-n'o, sim, em nome do devedor em cujo solo assenta o dominio; 2o O contracto no exeqvel entre terceiros e por isso no opponivel aos credores de quem por elle se obrigou, tampouco ao credor hypothecario ou ao chirographario que seqestrou os fructos ou arrematou em praa publica o immovel, nem aquelle que o comprou ou posteriormente celebrao da antichrse; 3 o O credor antichretico no tem nem-um direito de propriedade nem de prelao sobre os fructos pendentes do immovel dado em antichrse, do mesmo modo que se no

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pde oppr penhora dos mesmos, por parte de outro credor do devedor commum; 4 o Segundo as normas da lei do processo italiano, a competncia para a soluo judicial das questes de antichrse, determinada pelo domicilio do devedor e no pelo da situao do immovel; 5 Podem ser objecto de antichrse todos os immoveis frugiferos, natural ou civilmente e quanto s pessoas, no , necessrio que o concedente tenha a propriedade da cousa, nem a capacidade para alienal-a e como no implica cesso de propriedade, claro que a antichrse possvel em relao quelle que pde conceder a cousa em locao (art. 1572 do cod. civ.) ou a quem sobre ella exera actos de simples administrao (arts. 224 e 296); 6" Finalmente, em relao forma, no s a antichrse no exige obedincia a forma alguma prescripta de publicidade, como a transcripo, nem est adstricta a nera-uma forma especial ou essencial do contractu. Todas essas conseqncias, conclue o jurista em comeo citado, mostram que a antichrse no geral direito real e sim pessoalv. (1) Outros Cdigos Civis, como o nosso, consideram a anuV chrse direito real e no Direito Romano diverso no era o seu caracter, principalmente quando constitua pacto adjecto ao contractu de hypotheca. D'entre os escriptores francezes, nenx-um se avantaja a Troplong na demonstrao do personalismo da obrigao antichrtica. Admittindo que o penhor quer de moveis quer de immoveis, foi a primeira formula que na antigidade garantia os crditos, o alludido tratadista chega concluso de que a distinco entre o penhor e a antichrse, s comeou a existir, quando na constituio do primeiro se inseria a clausula de que o credor teria o goso da cousa empenhada, para compensar os juros do seu credito, porquanto, nesta ultima situao que o contractu toma a denominao especifica de pacto antichretico, em vez da geral, de penhor que tinha, como bem entenderam os romanos e assim disseram no frag. II, 1 Dig. De Pignor, posto que algumas vezes antichrse designe a propria cousa cujo uso e goso tivessem sido concedidos ao credor, como o caso do frag. 33 Dig. De Pignor. Act.

(1) Dizionario dei Diritto Privato de Scialoja I, 190-191.

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A excluso do goso, correspondente ao vocbulo grego de que deriva a antichrse, cumpre notar que se costuma estipular tanto na constituio do penhor, como em outras convenes, de que so exemplos os casos a que alludem as leis 6a Cod. Cum- Eo. e 14 Cod. De Usur. Na idade media e sob o imprio do regimen feudal, o esr pirito de cautela e de desconfiana que se manifesta onde o poder social dividido e sem fora, se mostra impotente para dar aos interesses legtimos as garantias de que ho mister, o penhor real devia prevalecer nos usos e na pratica. E, como em conseqncia da falta de xito da industria e do commercio, a riqueza movei no podia ser seno nulla ou insufficiente, era quasi que exclusivamente ao penhor immo,biliario que os possuidores de dinheiros amoedado recorriam, para assegurar o reembolso dos adeantamentos que faziam. No prefacio de seu Commentario Lei Franceza de Garantia, o egrgio civilista escreveu estas palavras dignas de meno: A feudalidade tinha consolidado nas mos dos principes e dos Senhores, immensas propriedades territoriaes. De outro lado, a piedade dos fieis havia enriquecido os estabelecimentos religiosos dando-lhes numerosos domnios, mas no meio dessas riquezas torritoriaes, o dinheiro rareava; as contribuies eram pagas com os fructos naturaes; os censos eram mdicos e o commercio contrariado e maltratado pouco animava as trocas. A feudalidade, entretanto, experimentava grandes necessidades de dinheiro para attender aos reclamos do seu luxo, e de suas li,beralidades e as guerras intestinas que a dilaceravam. O thesouro senhoril, alta e pacientemente augmentado pelas economias, pelas vexaes e rapinas, nem sempre podia bastar nos casos emergentes; maus dias chegavam em que o fisco exgottado no podia se sustentar seno custa de emprstimos. Como, porm, achar dinheiro? A confiana tinha desapparecido; os capitalistas, quasi todos judeus ou extrangeiros, se vingavam por horrveis usuras, dos despresos de opinio e das espoliaes dos princir pes: o numerrio cautelosamente fugia das vistas de quantos o solicitavam e s consentia em se lhes apresentar quando as necessidades dos visitantes eram de molde a lhe excitarem o appetite... Ora, o aperitivo da usura, era a terra e como a necessidade no conhece derivativos, o que -succedeu, foi que os proprietrios mais zelosos das prerogatives que ella conferia, viram-se reduzidos a empenhar o territrio que possuam, para evitar a penria e solver seus compromissos.

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Parece que no preciso dizer que a especulao no era para desdenhar em relao aos argentarios que podiam emprestar e a propria feudalidade no perdia occasio de aproveitar as opportunidades de contrahir emprstimos. A razo estava nisto: Os adiantamentos monetrios fariam passar s mos e posses dos banqueiros, terra, castellos, provncias, que lhes augmentavam os domnios e maior brilho davam ao seu poder; algumas vezes elles adquiriam um castello ou uma fortaleza de fronteira. O senhor feudal lucrava com isto, porque se forrava s difficuldades de defeza, oriundas de guerra e invases do? bares visinhos. Por outro lado, a restituio do dinheiro emprestado era feita ordinariamente em praso muito longo; no raro se escoava uma gerao sem que o devedor fizesse o resgate do immovel empenhado. Durante esse tempo, o capitalista tinha ensejo de utlisar a cousa da forma que lhe fosse mais vantajosa, quer para luctar com os adversrios, quer para se tornar temido e firmar a sua auctoridade. Os argentarios, alm disto, bem de ver que no seriam solcitos em attender aos devedores, quando se lhes apresentassem com o dinheiro na mo, para resgatar a propriedade; esquecendo a origem precria da occupao, bem possvel que os primeiros acabassem por se persuadir de que lhes pertencia a cousa alheia; este, com effeito, o sentimento que acompanha quasi sempre as longas posses: a prescripo apenas a consagrao jurdica. Ento, nasceram as discusses e as questes e os processos acabavam em guerras sanguinolentas, a menos que um arbitro superior no se interpusesse, fazendo cessar a usurpaso e pondo as partes desavindas em accordo, por uma transaco. As crusadas vieram tornar mais freqentes os compromissos pignoraticios sobre immoveis. De ordinrio os nobres se separavam da terra para fazer face a todas as exigncias da vida feudal, sustentar o luzimento dos seus brazes, attender s despesas de guerra com um visinho: no poucos se arruinavam, julgando servir a um acto de honra que no passava de uma velleidade. Foi assim, por exemplo, que o senhor de Joinville, fez prego de haver empenhado as suas terras, para ficar em condies de partir para a Terra Santa. Ora, natural que em virtude deste ou de outros muitos factos idnticos, se operasse na propriedade immovel um movimento cada vez mais assignalado, que redundou em proveito da

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cidade e dos conventos e que os reis no podiam deixar de aproveitar para augmentar os seus domnios. Poder-se-ha perguntar: mas como esses emprestimos sob penhor immovel, se conciliavam com as disposies do Direito Canonico que prohibiam os emprstimos de dinheiro a juros usurarios? A isto responde Troplong dizendo que taes emprstimos no eram antichrses propriamente ditas, porquanto, a antichrse no proporciona ao detentor do immovel empenhado nem-um direito real, ella no desmembra a propriedade, sendo como um direito movei conferido ao credor. Os empenhamentos, eram, posto que o contrario supponha d'Aguesseau, cousa diffrente, pois de outro modo no teriam resistido prohibio canonica. Elles tinham menos de antichrse do que de contractus de retro-venda: affectando a cousa com um direito real, se approximavam, sob este aspecto, por laos muito estreitos, da alienao com faculdade de resgate. Eis porque na linguagem forense do tempo e nos prprios actos pblicos, cesso do penhor se chamava resgate. Eis porque ainda os emprstimos eram postos na mesma linha das vendas retro. A antichrse propriamente tal, era proscripta pelo Direito Canonico e com effeito, desde que a Igreja condemnava o emprstimo a juros, no podia tolerar a pratica que tinha por intuito dar ao credor, com a posse de um immovel, os fructos desse immovel, sob o disfarce de interesses ou juros, sem os imputar no capital; o que proclamavam jurisconsultes como Cujacio em suas Decretales e De Fundis, cap. 1; Dumoulin, De Usuris, quaestio 35; Loyseau, Deguerpissements, I, cap. 7 n 13. Entretanto os mosteiros e captulos empregavam freqentemente a via de antichrse para auferir rendas usurarias, segundo informa Ducange, in verb. Pignus Mortuum e foi talvez por isto que em 1429, o Papa Martinho V, se viu obrigado a se manifestar de novo contra a antichrse, do que resultou tambm o antigo direito Francez prohibir geralmente a pratica do dito instituto.

Como se est a ver, a realidade ou pessoalidade da antichrse, uma questo ainda aberta na theoria e parece que os Cdigos pronunciando-se geralmente pela realidade contractual do direito, foram mais lgicos, porque embora os fructos no contracto antichretico correspondam a pagamentos parcellados por annuidade, feitos pelo devedor ao credor, e verdadeiramente insira a antichrse uma conveno accessoria, ho-

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mologatoria de outra pessoal, como a divida oriunda do direito de credito, todavia, a garantia prestada sobre uma cousa ou productos naturaes delia e o direito resultante no pde deixar de ser real, porque se grava no immovel que lhe serve de objecto at a completa soluo da divida. Resolver a questo pela forma que apontamos, parece melhor corresponder aos intuitos econmicos do credito real, que modernamente a base em que assenta o maior prestimo da propriedade immovel.

Dos direitos de garantia real, o penhor o que remonta infncia dos povos e por conseqncia o mais antigo. Dalloz lembra a sua pratica entre os hebreus, invocando passagens do Deuteronomio, onde lemos: V. 6. No se tomar por penhor as duas ms que esmagam o trigo, porque eqivaleria a penhcrar a vida do proximo ,com a privao do alimento. V. 10. No entreis na casa do devedor para tomar penhor. V. 11. Mas esperae fora d'ella que elle prprio vos apresente o que deve constituir o objecto de vossa garantia. V. 12. E si o devedor fr pobre, no durmaes com o penhor que elle vos der. V. 13. No vos esqueaes de restituir o seu penhor antes do sol posto, afim de que, dormindo com o seu vestido, elle vos abenoe; esta ba aco ser levada em conta dos vossos peccados pela Justia do vosso Deus Eterno. Entre os gregos, to notveis pelos surtos do commercio e da industria, o penhor foi instrumento de credito constantemente usado, quer consistisse na entrega de moveis, quer na de i m moveis (1). Na primitiva Roma, o credor no tinha para garantia da execuo das obrigaes, sino uma aco directa sobre a pessoa do devedor, aco que algumas vezes se exercitava em vida ngarrando-se o devedor insolvente, reduzindo-o condio de escravo e outras ia at o seu fallecimento, caso em que se penhorava o. cadaver para, difficultando a inhumao, obter-se dos parentes ou amigos do morto o pagamento da divida. As aces manus njectio e pignoris capio, so resqucios dessa poca. Mais tarde, como essa garantia fosse tida por insufficiente, por meio de estipulaes ficou admittido e permittido que terceiros viessem se juntar ao devedor principal, respondendo

(1) Saumaise, De Mod. Usurarum, 503-560.

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solidariamente com elle pela soluo da divida: o papel reservado aos fidepromissores, sponsores e fidejussors (1). Esses meios assecuratorios do credito, comquanto de alguma maneira correspondessem s necessidades creadas pelos negcios civis, todavia no eram to efficazes como fora de desejar e desde ento o pensamento dominante foi crear um systema de garantias de outra espcie, com applicao directa aos bens do devedor, de modo a conferir aos credores seguranas reaes, em razo do objecto sobre o qual elles repousavam. Tal foi a origem commum da mancipao fiduci causa, do penhor, da antichrse, da hypotheca. A crermos em Herodoto, parece que apz os Hebreus, foram os Egypcios os primeiros que legalmente estabeleceram o penhor como garantia de divida. O velho historiador grego conta que, no reinado de Atychis, rei do Egypto, resentindo-se o commercio da falta de dinheiro, o soberano fez publicar uma lei prohibindo os emprstimos, a m^nos que o devedor no desse em penhor o corpo do seu prprio genitor; uma segunda lei aecrescentava que em poder do credor ficaria a sepultura daquelle, e que no caso de recusa do pagamento da obrigao contrahida, no obstante a effectividade ou a realidade de to precioso penhor, o corpo do devedor no repousaria no sarcophago de seus pes, extineto que fosse, nem em qualquer .outro, sendo-lhe, outrosim, em vida, vedado celebrar o culto dos mortos (2). Leis como as que acabamos de apontar, como bem diz Bousquet, s podiam convir a um povo que sabia honrar como os egypcios, a piedade filial e a memria dos mortos; ellas, porm, accrescentaremos ns, seriam inadequadas para regular o commercio jurdico entre povos que, como o romano, senhoreavam quasi todo o mbito do mundo conhecido pelos antigos, submettendo ao seu jugo e regra das suas instituies, nacionalidades de raas diffrentes, mais pelo temor imposto por suas legies, do que pelas injunees de uma moral incorruptvel. Eis porque o instituto do penhor se nos apresenta com um csracter diffrente, isto , como mero regulador do interesse, nas operaes juridicas. GAIO nos instrue que o vocbulo Pignus, deriva de punho (pugnum) para significar que as cousas que se do em penhor so entregues com a mo, posto que outros opinem que (1) GAIO, Commentarius III, 118-129; Institutas De Fidij. princ (2) Historia do Egypto II, cap. 136.

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para fazer certo que o penhor s se constitue propriamente sobre cousas moveis (1). Esta ultima proposio no entretanto exacta, porquanto segundo as fontes, todas as cousas eram susceptveis de penhor, at mesmo as incorporeas, desde que offerecessem a possibilidade de tradio ou quasi tradio (2). Entre os germanos, de quem provavelmente os romanos herdaram o instituto, era o penhor chamado Wadium, de onde resultaram os vocbulos usados na baixa latinidade vadium, guadius, guadium precursores do pignus, que o termo usado pelos jurisconsultes clssicos, quando se referiam ao contractu pelo qual o devedor entrega uma cousa ao credor, para garantir a soluo da divida, com a condio de lhe ser restituida, extincta a obrigao pelo pagamento. Mas ainda aqui convm additar que pignus tanto exprime o contracte, como a cousa dada em garantia, como ainda o direito que da conveno pignoraticia resulta (3) De todas estas hesitaes, resultou que por muito tempo, permaneceu indeterminada a rea de extenso do penhor, da antichrse e da hypotheca e que s muito mais tarde foi possvel a discriminao, comprehendendo o primeiro as cousas moveis, a segunda apenas os fructos e os rendimentos e a ultima os immoveis, ainda que em regra, a hypotheca dos immoveis abranja como accessorios, cousas que constituiriam, tomadas isoladamente o penhor e a antichrse. A regra de que o penhor, podia ter por objecto em Direito Romano, todas as cousas corporeas, computadas no patrimnio, est subordinada a varias excepes. Em relao s incorporeas, excepo feita das militiae ou certos empregos pblicos, com tratamento e emolumentos, transmissveis hereditariamente, todas as outras, pelo rigor da lei, no podiam constituir penhor e a razo provinha de no serem susceptveis de tradio, que, conforme a etymologia de pignus, era indispensvel realisao do contractor incorporates res traditionem non recipere manifestum est, diz' o frag. 45 1 Dig. De Adq. Rer. Dom. Fez-se mister a interveno do pretor para dar efficiencia constituio do penhor, applicado a cousas incorporeas, principalmente s dividas activas; Schilling, trad, de Pellat, 15 3 nota 6 a .). Entretanto, preciso no omittir que no pro(1) Dig. De Verb. Signif. frag. 238 2.. Cl) Frags. 6. 1., 8, princ, 25, Dig. De Pignor. Ad., 11, l. e 2., 20, 1., De Pignoribus ; lei 4?, 7. Cod. De Pignor. (3) Lacantinerie e Loynes, trad, de Bonfante ; Del Pegno, I, 107.

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prio Direito Romano os crditos (nomina) podiam ser objecto de um penhor valido (1). At esta altura temos falado do penhor voluntrio e daquelle que nasce de uma conveno ou de um concurso de vontades; resta dizermos que pde resultar de um acto de ultima vontade, como o caso do pignus testamentarium, e mais ainda que ha uma constituio de penhor que se opera contra a vontade do proprietrio e que resulta em proveito do credor, seja por ordem do magistrado e que comprehende, tanto a missio in bona ou in possessionem (pratorium pignus, a que alludem as leis 1 e 2a Cod. De Prat. Pign.), como a Pignoris Capio, seja por fora de disposies legaes, como nos casos de hypothecas tcitas. Os jurisconsultes romanos nos transmittiram, no que se refere aos crditos e obrigaes, que o penhor garante, regras que ainda hoje so applicaveis. Assim, segundo Marciano, o penhor compatvel com toda espcie de obrigaes, quer se trate de um emprstimo de dinheiro, de dote, de venda, de locao, de mandato, quer de obrigaes civis ou simplesmente naturaes (2). A constituio do penhor, pode ter logar nas obrigaes condicionaes e a termo; o que succde que em relao s primeiras, o direito de penhor comea a existir do momento em que a obrigao tambm nasce com o acontecimento que lhe serve de condio: E' o que diz o supracitado frag. nas palavras sed et in condicionali obligatione, non alis (res) obligantur, nisi conditio existiterit regra confirmada pelo 13 5, do mesmo titulo; e em relao s segundas, o direito de penhor existe desde o momento da sua constituio, ficando salvo ao credor esperar o implemento do termo, para poder prevalecer-se completamente das prerogatives que emergem do seu direito. A obrigao por cuja segurana o penhor foi constitudo, pde ser divisivel ou indivisvel; mas quanto ao penhor, sempre por sua natureza indivisvel; individua est pignoris causa, observa Papiniano (3). Quer isto dizer, explica Pothier, que o credor adquire pelo contracte, o direito de penhor sobre o debito total e sobre cada parte da divida, em relao ao todo da cousa e a cada uma de suas partes. (1) Frags. 20 Dig. De Pignor. et Hyp.; J5 8. e 9. De Rejud.; 7. De He red. Vend.(2) Frag. 5." princ. Disr. De Pignor. et Hyp. (3) Frag. 65, Dig. De Evict.

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Assim, si para garantir um credito de 4 contos, o credor recebeu quatro pedras preciosas, o devedor no poder, ainda que reembolse o primeiro da maior parte do seu debito, exigir a restituio de uma s das pedras empenhadas; emquanto existi a menor fraco da divida, integral subsistir o penhor, at a extinco do compromisso. E convm notar que tal succde, porque o legislador presume, que outra no era a vontade das partes, quando realisaram o contractu; de onde resulta, que, si outra fora a vontade das mesmas, poderiam modificar a natureza do contractu por urna declarao em sentido contrario presumpo legal. Deveramos agora encetar o exame da materia da hypotheca; mas o adeantado da hora no nos permitte o inicio desse exame, pela extenso e importncia do assumpto, que reservamos para objecto de nossa ultima preleco referente ao Direito das Cousas; aproveitaremos o tempo que nos resta, para o confronto da antichrse e do penhor romanos, com os similares institutos ptrios. No systema do Cod. Civ., a antichrse um direito real (art. 674 n. VIII) sobre cousa alheia, immovel, por fora do qual tem o credor a posse sobre ella, de forma a poder perceber os fructos de sua produco e leval-os em conta do seu credito at completo pagamento do capital e juros, salvo conveno expressa que limite a applicao dos fructos no pagamento dos juros somente (art. 805 e seu I o ). De ordinrio, na hypotheca se comprehende, salvo conveno expressa, os fructos do immovel, civis ou naturaes (decreto n 169-A, de 1890, art. 4 2); em conseqncia a antichrse dos rendimentos um pacto que em regra a ' h y p o theca subentende (art. 811), e quando expressamente o exclua, direito do devedor celebral-a, comtanto que o faa ao credor hypothecario. Por egual, importando a antichrse em contracte accessorio. limitado em seus effeitos, aos rendimentos, nem um inconveniente ha em que possa o devedor da obrigao antichretica, submetter a cousa em sua integridade ao onus hypothecario, desde que o credor hypothecario seja o antichretico (art. 2o). Na constituio da antichrse, cujo valor exceder de um conto de ris, essencial a escriptura publica (art. 134 n. 2); mas ou se constitua por escripto publico ou particular, o effeito de direito real que d'ella dimana, depende da transcripo do titulo acquisitivo no registro respectivo.

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O artigo 806 estabelece a extenso que tem o direito do credor antichretico, concedendo-lhe a fruio do immovel ou por si mesmo ou por arrendatrios, salvo pacto em contrario. Desde que no envolve a antichrse um acto personalssimo, nada ha que possa impedir o credor antichretico de auferir as vantagens do contracto indirectamente, por um preposto, como ao proprietrio de um prdio licito collier os rendimentos que elle pde dar, locando-o. At aqui comprehende-se a disposio legal em exame; o Cdigo Civil, porm, acerescenta mantendo no ultimo caso, at ser pago, o direito de reteno do immovel. Esta clausula final, d a entender que pde haver algum caso de antichrse, em que o credor respectivo, tenha o direito de percepo dos rendimentos, sem a reteno da cousa frugifera, quando o exercite por interposta pessoa, o que no verdade, porque o direito de reteno insepparavel do onus real, emquanto elle existir e isto j ficara esclarecido no artigo 760. O douto auetor do Cdigo Civil Commentado, reputa o alludido acerescimo dispensvel e, no intuito de tornal-o perceptvel, adverte: Para darmos uma intelligencia acceitavel ao adjuneto adverbial no ultimo caso, temos que 1er o artigo, como se dissesse que o credor mantm o immovel at ser pago, si no estipulou um praso ou no combinou que a sua posse duraria o praso mximo desse direito, segundo o artigo 760. (1) Ao nosso ver. a clausula de que trata, entra no numero daquellas a que os jurisconsultes romanos chamavam inutfIibus stipulationibus, e como tal se reputa no escripta. Com effeito, o artigo 760 estabelece que o credor antichretico ,tem o direito de reter a cousa, emquanto o seu credito no fr pago, e que este direito se extingue, apz trinta annos, contados do dia da transcripo do titulo. Ora, quer elle perceba os rendimentos da cousa gravada, directamente ou por interposta pessoa, claro que o seu direito de reteno, adquirido com a ajuda da antichrse, permanece, dura e subsiste, at 30 annos aps a transcripo do titulo, si tanto fr de mister para soluo da divida. Si, pois, o pagamento que faz cessar a reteno, desnecessrio parece acerescentar, que, emquanto aquelle no se effectua^ esta se mantm, pensamento to transcendental para no lhe darmos ouro qualificativo, como o de ser a morte a cessao da vida!...(!) Observ. nica ao art. 806 do Cod. Civ. Bras. Ill, 376.

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O art. 807 faz o credor antichretico responder pelas deterioraes que por culpa sua soffrer a cousa, bem como a negligencia com que se houver na percepo dos fructos. Si, como com o superior senso jurdico que o distingue, affirma o egrgio auctor do Cdigo Civil Commentado, o credor antichretico um administrador de cousa alheia em proveito prprio, nem-uma duvida pde haver de que na fruio das vantagens que tem de retirar d'ella, deve proceder com o mesmo cuidado e solicitude que um bom pae de famlia costuma dispensar s cousas que lhe so proprias; a falta, pois, desse zelo, ou provenha da impericia com que trata a cousa frugifera, ou do desleixo ou desidia com que feita a percepo dos fructos, no pde deixar de ser imputavel ao credor, quer elle aufira os rendimentos por si mesmo, quer por outrem, porque revertem em prejuzo do devedor. O Cdigo Civil allude culpa contractual; ns addicionamos a impericia, que na primeira se contm, como espcie do mesmo gnero: imperitia culpas adnumeratur, pondera GAIO no frag. 132, Dig. De Reg. JUT. A regra contida no artigo 808 a sanco do preceito do 2 do artigo 805: ou se trata de immovel submettido a antichrse e depois hypotheca, ou vice-versa, sempre com o seu credor que o devedor ha de transigir; si no obstante este descumpre a lei, nem por isto o direito real daquelle se desfaz. Elle ir fazer valer o seu direito de percepo dos rendimentos onde quer que se encontre o immovel. E' uma conseqncia natural do direito de reteno que lhe assiste. O paragrapho primeiro do mesmo artigo, prescreve que Se o credor antichretico executar o immovel por no pagamento da divida ou permittir que outro credor o execute, sem oppor o seu direito de reteno ao exequente, no ter preferencia sobre o preo. Aqui temos duas situaes diffrentes regidas por um mesmo canon! A primeira parte do dispositivo no justa; no paga a divida no praso estipulado no contractu, direito do credor antichretico, compellir o devedor a satisfazer o seu credito; dado que appaream outros credores do devedor commum, portadores de ttulos que traduzam direitos reaes, a preferencia ser determinada pela prioridade na inscripo. Ora, si a antichrse tiver sido transcripta e fr anterior aos onus reaes a que o devedor submetteu o immovel, porque motivo no lhe caber a preferencia no preo? Isto ou retirar da antichrse a segurana que lhe confere o direito real, a mesma cousa, desde que ao credor que exe-

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cuta a obrigao por impontualidade do devedor, no se permitte haver o que lhe devido pelo producto da cousa, arrematada, preferentemente. Dir-se- que a lei assim estatuindo, pe um freio ganncia do credor, obrigando-o a cobrar o seu credito pela fruio do immovel. Assim succdera quando a cousa frugifera produzir, mas dado que a colheita diminua e tenda a extinguir-se, que outro recurso restar seno a execuo? No ha duvida que o onus real de que se trata limitado aos rendimentos e no cousa frugifera integralmente, que pde estar sujeita a outros onus mais extensos; isto porm, uma vez verificada a prioridade da inscripo antichetica, seria motivo para conferir ao credor respectivo a preferencia quanto ao producto da arrematao. A segunda parte do encerra doutrina pacfica: se o titular da antichrse no oppe ao credor que executa o immove! gravado, o seu direito de reteno preexistente, porque tacitamente, por negligencia, renuncia ao direito que lhe compete e a si prprio deve imputar as conseqncias de sua frouxido, por fora de regra: vigilantibus et non dormientibus succur*rit jus. O 2o nega preferencia ao credor antichretico sobre a indemnizao do seguro ou da desapropriao, quando occorre o sinistro total do immovel, ou elle desapropriado. E' outro ponto pacifico de doutrina. Tanto a desapropriao como o sinistro, so factos no imputavei; ao devedor honesto, a quem de ordinrio prejudicam; qualquer dlies libera o immovel dos onus que o gravavam, sem que se possa subrogal-os na indemnisao, que no representa o valor real do immovel destrudo ou desapropriado, mas uma equitativa compensao do prejuzo soffrido pelo proprietrio, em falta de outro meio mais adequado. E' este o motivo porque os portadores de direitos reaes, ficam sendo portadores de direitos pessoaes. No que respeita ao penhor, a sua constituio segundo o cdigo civil (artigo 788) exige: 1 um objecto movei; 2 uma entrega effectiva da cousa ao credor ou ao seu legal representante, feita pelo devedor ou algum por elle; 3 o que esse objecto seja possvel de alienao; 4 que na posse do credor fique a cousa dada em garantia, salvo o caso do penhor agrcola e do pecurio, em que o objecto continua em poder do devedor (artigo 769). A doutrina accrescenta que o penhor s se constitue por escripto e presuppe uma obrigao a que serve de garantia; bem de ver que si a obrigao a garantir no exceder de um

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conto de ris, o instrumento ser particular e no caso contrario, necessria se faz a escriptura publica. No primeiro caso, como ambas as partes precisam saber a que se obrigaram, o contractu ser lavrado em duplicata, podendo qualquer dlias fazel-o transcrever no Registro respectivo (artigo 771). A transcripo ser feita ( no Registro Especial de Ttulos, si o instrumento particular fr de penhor commum ou de titulos ao portador; no registro de immoveis, si fr de penhor agrcola ou pecurio; nas reparties competentes, si de aplices nominativas; na sede da associao emissora, si de titulos de Companhias (artigos 796-797) Cod. Civ. Commentado Observao ao artigo 771. Quanto s cousas que podem ser objecto de penhor, menciona o citado auctor do Cod. Civ. Commentado: 1 os moveis alienaveis, corporeos, semoventes, fungveis ou meramente representativos, ( orno os titulos de credito (lettras, aplices, aces de Companhias); 2, os fructos pendentes e instrumentos agrcolas immobilisados nos estabelecimentos ruraes; Observao 2a ao art. 768. Dos termos em que est expresso o artigo 768, surge a debate a controvrsia de ser ou no possivel o penhor de cpufta alheia. O jurisconsulte que firmou o Projecto Primitivo do Cdigo Civil, sempre foi contrario a esta espcie de penhor, que na verdade degenera em contractu de fiana por cauo. No artigo 874, do ailudido Projecto, escreveu elle: Se a cousa dada em penhor no pertence ao constituinte, no se fixa sobre ella o direito real do credor, de cujo poder pde ser reivindicada pelo proprietrio. Cohrente com essa doutrina, oppe-se ao penhor da cousa alheia em face do prprio Cdigo Civil, argumentando, no s com o elemento histrico do mesmo, como com o artigo 756, no tpico em que determina que O dominio superveniente revalida a garantia real, e assim conclue o seu raciocnio: Mas se o dominio superveniente revalida a garantia real, quando dada pelo possuidor a titulo de proprietrio, o penhor de cousa alheia, evidentemente, insubsistente por falta de capacidade do constituinte do direito real; Observao 3 a ao cit. art. do Cod. Civ. Commentado. Cumpre entretanto notar, que o Cdigo Civil diz, que o objecto movei, susceptvel de alienao, pde ser entregue ao credor pignor'aticio, pelo devedor ou algum por elle, quando em relao ao credor, muda de linguagem: ao credor, ou a quem o representa, que eqivale a dizer: ou a quem fr o seu

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legal mandatrio, de onde parece resultar que o cdigo no repelle a interveno de um terceiro, que em favor do devedor empenha objecto que lhe prprio, ou objecto movei, in commercium. E esta intelligencia parece tanto mais procedente, quanto certo que a lei, que em relao ao accpiens do penhor, fez questo da sua qualidade de credor, em relao ao tradens nem-uma exigncia formulou, mostrando-se dest'arte indiffrente circumstancia de ser a cousa empenhada, do devedor ou de algum que por elle, a offerecer em penhor. O caso em analyse um dos muitos, em que a redaco difficulta a comprehenso dos dispositivos do Cdigo Civil; bastava que o legislador tivesse dito que o objecto a submetter ao penhor, pertencesse ao devedor, para estar finda a questo. Outra questo suscita o mesmo artigo, qual a de saber, si ao credor pignoraticio, licito empenhar cousa que em tal qualidade possua, a credor seu. No sentimos o menor constrangimento em responder negativamente, no s porque semelhante acto defeso pelo artigo 331, numero 2 do Cdigo Penal, que o considera furto, como ainda porque, si o agente occultasse a sua qualidade de possuidor eventual da cousa ou contrariamente verdade fizesse crer que estava isenta de onus reaes, commetteria o delicto de estellionato, previsto no artigo 338 n > 3. < Alm disto, sendo como o credor pignoraticio, um depositrio da cousa alheia, obrigando-a para com terceiro, tera infringido a clausula que lhe impe o dever de a conservar com o cuidado e diligencia que costuma dispensar ao que lhe pertence e de a restituir a quem de direito, incorrendo na sanco do artigo 1287, combinado com o artigo 1266. , A disposio do artigo 769, posta de parte a redundncia do comeo do enunciado, trata da excepo que offerece o penhor agrcola ou pecurio, que se constitue, ficando os bens em poder do devedor, por effeito de clausula constituti. A este respeito, fazemos nossos os conceitos do eminente auctor do Cdigo Civil Comment. Observ. 2a ao artigo em analyse: A parte util do artigo, est na excepo referente ao penhor agrcola e pecurio. Mas, nesta introduziu-se doutrina, que no talvez, a mais pura, considerando-se que o credor ter a posse dos objectos (machinas, fructos, animaes), pelo consttuto possessorio. O penhor agrcola "e o pecurio, participam mais da natureza da hypotheca do que da natureza do penhor commum, porque a cousa empenhada no se desloca do poder do devedor. Achou-se, porm, que tal construco jurdica seria aber23

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rante, e imaginou-se explicar a permanncia da cousa guardada em poder do devedor, pelo constituto possessorio. E', no meu sentir, uma theoria, que fora a realidade, mas a doutrina legal, que se acha, expressamente, consagrada no Cdigo. Nem-uma duvida pode haver que o recurso ao constituto possessorio, desnatura a constituio do penhor, uma vez que no ha tradio effectiva da cousa ao credor, como exige o artigo 768, nem elle o possuiu anteriormente por algum titulo cuja inverso o constituto explicasse. A innovao feita pelo cdigo no tem explicao, nem justificao alguma. O artigo 770 exige que o instrumento do penhor determine precisamente, o valor do debito, o objecto empenhado e quando consistente em cousa fungvel, a declarao da qualidade e quantidade. Mas no s isto que o instrumento deve conter; necessrio que delle conste a tradio da cousa ao credor, a verificao exacta da qualidade e quantidade, si o caso fr de penhor de cousa fungvel, o tempo de durao do contracto, o dever de restituio da cousa empenhada ao credor, extincta que seja a obrigao que o penhor garante e porque ha na hypothse um contracto, quer o instrumento da constituio seja publico ou seja particular, alm da assignatura das partes pactuantes, conter as das duas testemunhas presentes ao acto.

As demais disposies do Cdigo relativas ao penhor, so de fcil intuio e dispensam esclarecimentos.

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VIGSIMA QUINTA PRELECO SUMMARIO: Continuao da hypotheca, sua constituio e effeitos; categoria dos credores hypothecarios. Jus offerendae pecuniae; successio in locum. Hypothecas privilegiadas. Da extmco da hypotheca. Meus Senhores: Era nossa inteno iniciar na finda preleco, o estudo do instituto da hypotheca, com a comprehenso que lhe deram os romanos, adaptando-o s necessidades da vida civil do imprio, onde no poderia vingar si permanecesse nas linhas em que o idearam os gregos; mas como julgvamos e ainda julgamos indispensvel, que antes de conhecer esse direito real de garantia, deviam os Senhores ter uma noo exacta dos outros dous, o penhor e a antichrse, destes nos occupmos preferentemente e como se acontecer sempre que o assumpto convida a uma explanao mais minuciosa, n'elles consumimos toda a hora destinada disciplina que ensinamos. No foi entretanto, Senhores, e com intima satisfao o confesso, mal empregado o nosso tempo, pois entre os direitos de garantia, exercitaveis sobre cousa alheia, a antichrse e o penhor < o de uso freqente e eu supponho que levando desta aula ideas geraes bem assentadas, sobre ambos, quando no terceiro anno do curso jurdico, houverdes de estudar o Direito Civil Ptrio, nem-uma difficuldade encontrareis na applicao dos subsdios colhidos no Direito Romano, s instituies civis codificadas que nos regem. Como terieis observado no decorrer da nossa ultima preleco, a antichrse em relao aos rendimentos dos immoveis e o penhor era relao aos moveis, foram os precursores da hypotheca, sendo de notar que a vantagem desta sobre aquelles, consiste exactamente em deixar na posse do devedor a cousa gravada, pcmittindo-lhe a sua utilisao sem estorvos, ao passo que a eKistencia dos outros dous onus reaes apontados, implica a transferencia da posse para a pessoa do credor. Mas. favorecendo a situao do devedor, a hypotheca torna o direito real que ella exprime mais enrgico e mais extenso, no s pela possibilidade de abranger como accessorios os bens que constituem a finalidade do penhor e da antichrse, como ainda porque comprehende a cousa sobre que rece o onus que ella gera, no todo e em cada uma de suas partculas, pen-

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samento que os jurisconsultes romanos enunciavam na proposio: tota in tot et tota in qualibet parte. Isto dito, passmos a definir em que consistiam a antichrse e o penhor, no sentir dos romanos, entrando depois na discusso das questes que ambos suscitavam, na maneira porque se estabeleciam e se extinguiam, sendo as nossas ultimas observaes tendentes a demonstrar ora o parallelismo, ora as modificaes porque passaram os referidos institutos, no Direito Civil Ptrio. Feita a synthse do nosso ultimo trabalho, examinemos mais de perto o que diz respeito hypotheca. Hypotheca, um direito real sobre um immovel affectado ou destinado a solver uma obrigao. PAULO a reputara uma espcie de obrigao que grava uma cousa, en vez de gravar uma pessoa. (1) IZIDORO definiu-a nestes termos: Hypotheca est, cum res aliqua commodatur sine depositione pignoris, pacto vel cautione sola interveniente. (2) Informs BOUSQUET, que a origem desse direito remonta a uma poca, muito remota, porque entre os gregos, os campos hypothecados, eram assignalados por columnas, contendo na face externa uma inscripo, destinada a recordar as obrigaes contrahidas pelo respectivo proprietrio com um primeiro credor. Essas columnas collocadas diante das casas, mostravam aos viandantes que ellas estavam empenhadas e o magistrado, mediante tal aviso, fazia crer que outros crditos que apparecessem contra o devedor commum, no podiam prejudicar aquelle que tinha a seu favor a prioridade na inscripo das columnas (3). O uso dos gregos foi conhecido e praticado em Roma; TREILHARD, porm, acredita que no subsistiu por muito tempo, pelo excesso de precauo que a prejudicava, porquanto, si as partes que celebram contractus justo que tenham conhecimento do estado de seus compromissos, nem-uma utilidade ha em proclamal-os e em fazel-os saber a pessoas a quem no interessam (4). Os tratadistas francezes, comquanto accordes na origem grega do vocbulo hypotheca, divergem no que respeita transplantao do instituto, entendendo uns que foi praticado em Roma tal qual existia na Grcia e outros que os romanos (1) Frag. 11, Dig. Qui Mod. Pig. et Hyp. Solvit. (2) Orig., V. 25.30.

(3) ANACHARSIS, cap.

(4) Nouv. Diet, de Droit, in verb, hypotques.

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apenas se utilisaram da palavra grega, mas no do conceito jurdico que lhe era inhrente. Ao ver dos que adoptam a segunda opinio, a hypotheca apparece como uma resultante da aco conjugada do penhor e da antichrse, logo que o pretor reconheceu a convenincia e a possibilidade de conferir ao credor de direito real a garantia do seu credito sobre os bens do devedor, sem que este ficasse privado da posse que lhe permittia a confinuao da actividade obre os immoveis, por via da qual poderia angariar os meios indispensveis soluo dos seus compromissos. E* de suppor que como ensaio fosse a hypotheca consagrada pelos usos provinciaes quanto proprietas e mais tarde entrasse no corpo da legislao romana, porquanto no pde haver duvidas, como observa ACCARIAS, que os jurisconsultes romanos do terceiro sculo conheceram-n'a. Nos ttulos do Digesto que lhe so referentes, ha fragmentos extrahidos dos commentarios aos edictos e crivei que o Edicto Perpetuo contivesse disposies attinentes hypotheca, pois antes de ser redigido, j a respeito escrevera NERACIO, seguindo-se-lhe pouco tempo depois GAIO, que auctoi de um tratado sobre a aco hypothecaria li). O que parece verdade, que a saneo dada pelo pretor SERVIO conveno que ficou sendo hypothecaria, foi realmente a confirmao de que era possvel gravar de direitos reaes, bens destinados garantia de um credito, sem que sahissem da posse do devedor, tendo o uso homologado essa possibilidade jurdica, pois ao tempo em que viveu MARCIANO, to susceptveis de penhor como de hypotheca eram as mesmas cousas, que elle pde dizer que a nica differena entre esta e aquelle, residia no som emissor da palavra: inter pignus autem et hypothecam tantum nominis sonus differt. (2) Que afinal foi a interveno do pretor que deu curso hypotheca nas convenes, resulta do histrico do instituto romano. Reconhecido o inconveniente do deslocamento da posse dos bens sujeitos ao penhor e antichrse, do devedor para o credor, os jurisconsultes cogitaram de uma combinao convencional em que o direito real de garantia poderia existir em favor deste, sem que entrteanto as cousas oneradas sahissem da posse d'aquelle e para o caso serviu de exemplo, um con(1) Prcis, I, n. 284, nota V. ; Dig. In Quib. Caus., frag. 2 e frags. 4 e 15, De Pign. et Hyp. (2) Frag. 5." 1." De Pignor. et Hyp.

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tracto de arrendamento de uma herdade, em que o arrendatrio, na falta de bens que garantissem o proprietrio pelo aluguel das terras, affectou para segurana do embolso deste, os animaes, escravos, ferramentas e utensilios aratorios (invecta atque illata), que faziam parte da herdade, sem alis se desapossar dalles. Este ajuste mereceu a sanco do pretor SERVIO, que lhe assegurou a execuo por via da aco chamada Servians, (lj Generalisada a deciso do pretor aos casos semelhantes, que foram apparecendo, dentro em breve a hvpotheca ficou sendo meio hbil de garantir direito real sobre cousa alheia, por effeito de simples pacto, posto que derogada ficasse a regra de qre nem as convenes nem os contractus podem transferir direitos reaes. Depois da extenso que teve a nova pratica supra referida, a alienao fiduciaria que continua a vigorar, vae aos poucos sendo posta de lado, at desapparecer pelo desuso. O penhor continuou a existir lado a lado da hypotheca, mas confinado aos moveis, emquanto que a hypotheca circumscripta aos immoveis, podia no obstante abranger os moveis e semoventes como accessorios. A sobrevivncia do penhor explica-se, pelo facto de importar a transferencia da posse da cousa para o poder do devedor e de ter por amparo o exerccio dos interdictos; em nada, porm, influiu para obstar os surtos da hypotheca. Passemos a fazer a diviso da hypotheca. A hypotheca, quanto sua natureza, divide-se em convencional, testamentaria e legal (2). E' convencional quando as partes a estabelecem em virtude de um simples pacto, quer para garantia de uma divida pura e simples, quer a termo ou condicional, civil ou natural, quer se refira ao constituinte ou a um terceiro, comtanto que a lei no o prohiba. E' testamentaria quando o de cuius a constitue em seu testamento em proveito do legatario ou do credor. E? legal quando resulta de uma disposio legislativa, dando sanco conveno tcita e presumida das partes, como a do locador de uma casa sobre o mobilirio que a guarnece ou a do proprietrio do immovel, sobre os fructos e as colheitas. (1) Frag. 32 do Dig., huj. tit. (2) Frags. 4, 13, 1: ; 26, Dig. huj. tit ; 3, 4 princ. ; 6, 7, Dig. In Quib. Cam., lei 1.a 1." Cod., De Rei Uxor. Act.

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Por egual motivo legal a hypotheca que se relaciona com o interesse pubKco, como a do fisco sobre os bens dos seus prepostos e dos seus contribuintes; ou finalmente quando constituda como medida de proteco e assistncia a certas pessoas e taes so as relativas aos pupillos, aos loucos, aos menores, quanto aos bens dos tutores e curadores a cuja guarda e zelo ficam; a das mulheres casadas, sobre os dos maridos, para garantia da restituio do dote. As hypothecas do Fisco, dos incapazes e da mulher casada, so geraes, o que quer dizer que alcanam todos os bens patrimoniaes do responsvel; as outras so especiaes, isto , alcanam s os bens especialisados na constituio do onus. O Direito Romano considerava hypothecarias, as obrigaes resultantes do pignus pratorium ou do pignus ex causa judical! captum (1). Esses compromissos, porm, digamos desde logo, eram antes penhor do que hypotheca. O pignus prtorium affecta, com effeito, os bens comprehendidos em uma emisso de posse, decretada pelo magistrado e a partir somente da effectividade da emisso, na poca do direito clssico, elle conferia um direito de reteno; no ultimo estado do direito, foi que se concedeu ao possuidor, alm do direito de reteno, o direito de sequela e a aco real. O pignus causa judicati captum, data da poca de Antonino, o piedoso, e resulta da apprehenso de certos bens, ordenada pelo magistrado contra o devedor que no d cumprimento ao julgado, pagando o seu debito. E' direito ento do credor, passado o praso assignado ao devedor para pagar, fazer vender o penhor apprehendido, pagando-se com o producto delle, p.referentemente a todos os demais credores, com excepo d'aquelle que tivesse sobre os bens vendidos, uma hypotheca anterior. A hypotheca pde comprehender todos os bens do devedor ou apenas alguns dlies especificados, moveis ou immoveis, corporeos ou incorporeos, susceptveis de ser alienados. (2) Pde-se hypohecar uma cousa de que o hypothecante tenha a propriedade quiritaria, bonitaria ou mesmo provincial, um direito de usufructo, de emphyteuse, de superficie, um credito (pignus nominis), um direito de penhor ou de hypotheca(1) Frags. 26, Dig. De Pignor. Act ; 31, De Re Jud. (2) Frags. 1. princ; 9, 1.; 11, 2. e 13; 12; 3, 2., Dig. De Pignor.

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ESTUDOS DE

D I R E I T O ROMANO

(pignus pign ori datum), e, neste ultimo caso, o credito tam bm fica hypothecado (1). So tambm susceptveis de hypotheca, as servides ru raes; no assim as urbanas, naturalmente por no serem to teis. Basta, pois, para constituir uma hypotheca, ter um di reito sobre a cousa que se pretende gravar de onus; mas si se hypothecar cousas futuras, a conveno, posto que valida em si mesma, no far nascer o direito real sino no dia em que os bens entrarem no dominio do hypothecante. Inversamente, no se pde hypothecar cousa de outrem, por no ter o constituinte capacidade para alienala e s poder hypothecar quem pode vender. Constituda a hypotheca, o direito real que ella faz nascer abrange a cousa no todo e em cada uma de suas partes, ab sorvendoa de tal modo, que o