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“IV SEMINÁRIO TRABALHO E GÊNERO PROTAGONISMO, ATIVISMO, QUESTÕES DE GÊNERO REVISITADAS” SESSÃO TEMÁTICA TRABALHO E GÊNERO EM SERVIÇOS: DAS FORMAS ATÍPICAS AO PROFISSIONALISMO DESIGUALDADES DE GÊNERO E RAÇA NO SETOR DE SERVIÇOS PESSOAIS Neville Julio de Vilasboas e Santos

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“IV SEMINÁRIO TRABALHO E GÊNERO

PROTAGONISMO, ATIVISMO, QUESTÕES DE GÊNERO

REVISITADAS”

SESSÃO TEMÁTICA

TRABALHO E GÊNERO EM SERVIÇOS: DAS FORMAS ATÍPICAS

AO PROFISSIONALISMO

DESIGUALDADES DE GÊNERO E RAÇA NO SETOR DE SERVIÇOS

PESSOAIS

Neville Julio de Vilasboas e Santos

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DESIGUALDADES DE GÊNERO E RAÇA NO SETOR DE SERVIÇOS PESSOAIS

Neville Julio de Vilasboas e Santos1

RESUMO

O mundo do trabalho, sem dúvida, constitui esfera fundamental na construção e reprodução

de tais desigualdades. Em especial, o setor de serviços vem apresentando uma dinâmica que

coloca em evidência a sua heterogeneidade, tornando mais claras, por um lado, ou mais

obscuras, por outro, as suas conexões com as estruturas hierárquicas sobre as quais nossa

sociedade está assentada (NUNES, 2009). O objetivo do presente trabalho é discutir, com

base nos dados do Censo de 2010, algumas das características de gênero e raça que marcam o

desempenho de ocupações do setor de serviços pessoais no estado de Goiás, explicitando

condições de manutenção das desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho

brasileiro.

Palavras-chave: setor de serviços, desigualdade raciais, desigualdades de gênero

INTRODUÇÃO

No Brasil, as discriminações associadas ao gênero e à raça constituem a matriz das

desigualdades e contribuem para a permanência da pobreza e o aprofundamento da exclusão

social. São fatores determinantes das possibilidades de acesso e permanência no sistema de

ensino e no emprego, bem como dos níveis e intensidade de participação política. As

transformações que envolvem a posição das mulheres e da população negra no mercado de

trabalho não constituem detalhes históricos, mas são fundamentais para a compreensão dos

processos de mudança estrutural da sociedade.

Nas últimas décadas, a participação crescente das mulheres na busca por

oportunidades profissionais e a intensificação da discussão sobre a desigualdade racial

tornaram-se temas prioritários na agenda pública e assuntos urgentes em termos de políticas

públicas. O combate às hierarquias sociais passa pelo conhecimento das relações de trabalho

no capitalismo atual e suas ligações com atributos individuais, adquiridos ou adscritos, que

são potenciais indicadores de condições de vida e acesso a bens materiais e simbólicos.

O objetivo do presente trabalho é realizar uma análise preliminar, com base nos dados

do Censo de 2012 elaborado pelo IBGE, acerca de características que marcam determinadas

ocupações do setor de serviços no estado de Goiás, com relevo para a composição racial e

sexual, a renda, o nível de instrução e a jornada de trabalho. Na medida em que preconceitos

de raça e gênero se entrecruzam, tendem a aumentar a condição de vulnerabilidade e pobreza

de parcela significativa da população. Antes de abordar as configurações de raça e gênero no

mercado de trabalho, convém descrever as mudanças mais gerais que tomaram curso no

cenário do trabalho nacional, na intenção de permitir a compreensão das consequências

diferenciais das transformações do mundo do trabalho para os diferentes grupos de raça e

sexo.

1 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.

Professor de Ciências Sociais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás – IFG/campus

Anápolis.

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O TRABALHO EM PROCESSO DE RECONFIGURAÇÃO

Leite (2009), em seu importante texto intitulado “O trabalho e suas reconfigurações:

conceitos e realidades”, discute as novas configurações do trabalho nos dias atuais, a partir de

duas preocupações: compreender o deslocamento e a ressignificação de categorias e conceitos

que se consolidaram como centrais para o entendimento do mundo do trabalho, tais como

flexibilização, informalização, precarização, trabalho atípico, entre outros, que vêm se

tornando insuficientes para a apreensão da realidade atual; e, em consequência, relacionar o

redimensionamento desses conceitos à situação brasileira e às características do mundo do

trabalho brasileiro.

Segundo a autora, os conceitos que vêm sendo utilizados para caracterizar o mundo do

trabalho não podem ser pensados sem levar em consideração as mudanças econômicas,

políticas e sociais que o atingem profundamente. Assim, os fenômenos da globalização e da

reestruturação produtiva devem ser entendidos como um novo rearranjo social que vai além

de uma simples acomodação do modelo de acumulação fordista ao desenvolvimento

tecnológico. As tendências de terceirização e flexibilização do emprego e do trabalho

resultam de estratégias empresariais de acumulação e de fragmentação do trabalho

organizado. Harvey (2004) já chamava atenção para a necessidade constante de acumulação

que impele os capitalistas a buscar insumos mais baratos, a ampliar os mercados, a procurar

força de trabalho, terra e matéria-prima a custos mais baixos para manter os níveis de lucro.

Tais estratégias se tornam ainda mais importantes em momentos de crise. Tais instrumentos

são semelhantes aos descritos por Marx em relação à acumulação primitiva. Esse novo

momento de acumulação, segundo Harvey, tem como principal característica a flexibilização,

que se expressa na jornada de trabalho, nos contratos de trabalho, nos processo de trabalho e

nos tipos de vínculo empregatício. Tudo isso tem levado ao crescimento de novas formas de

emprego, antes consideradas atípicas, como o trabalho por conta própria, em tempo parcial,

por tempo determinado, não registrado, cooperativado, etc.

O capitalismo, que antes agia homogeneizando a mão-de-obra, hoje põe em prática uma

gestão diferenciada da força de trabalho, fragmentado-a. Este fenômeno consiste na

segmentação do mercado de trabalho,

“que resulta de estratégias conscientes das empresas e de forças inerentes ao próprio

sistema econômico: para diminuir a força crescente do proletariado concentrado em

grandes regiões urbanas, o capital trata de dividi-lo, seja no interior das empresas,

estabelecendo uma hierarquia de empregos e de poder geradora de mercados

internos de trabalho, seja ao exterior das mesmas, explorando as diferenças de sexo,

de raça e de qualificação, pela multiplicação dos estatutos jurídicos de trabalho.

Trata-se, assim, de dividir os trabalhadores, impedindo que as vantagens conferidas

a uma porção deles, ‘os verdadeiros assalariados’, não sejam estendidas ao conjunto

da força de trabalho, que pode trabalhar como subcontratada, como temporária, como prestadores independentes de serviço. Essa parcela da força de trabalho

recobre os setores mais vulneráveis, como os mais velhos, as mulheres, os mais

jovens, os menos qualificados” (LEITE, 2009, p. 75).

A precarização do trabalho vem ocorrendo também nos trabalhos compreendidos no

exercício das funções centrais das empresas, gerando uma realidade muito mais complexa.

Insere-se na dinâmica atual da modernização e constitui a consequência necessária dos novos

modos de estruturação do emprego. A questão, portanto, não é a constituição de uma periferia

precária, mas a desestabilização dos estáveis. A precarização, para além dos limites do

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emprego, se estende para a vida familiar dos trabalhadores, afetando sua saúde (LEITE,

2009).

O mercado de trabalho brasileiro experimenta, desde o início do processo de

industrialização, na década de 1950, uma frágil estruturação, marcada pela informalidade.

Entretanto, bem ou mal, o país estruturou um sistema de relações de trabalho no qual

predominou o trabalho assalariado, associado a um conjunto de direitos assegurados em lei

que englobam o salário mínimo, férias remuneradas, 13º salário, descanso semanal

remunerado, pagamento de horas extras com valor diferenciado. Além disso, formou-se um

sistema de seguridade social que contempla auxílio-maternidade, indenização por acidente de

trabalho, aposentadoria, pensão por invalidez. Mesmo tendo uma estruturação frágil em torno

desses elementos o país cresceu economicamente e se abriu à incorporação de novos setores

da produção. Contudo, houve uma inflexão neoliberal no início da década de 1990, que

impediu que muitos direitos fossem assegurados e promoveu mudanças econômicas de

profundo impacto na economia. Nessa década há uma desestruturação do mercado de

trabalho, com o aumento do desemprego, do trabalho informal, retração industrial e

ampliação de formas precárias de inserção ocupacional (LEITE, 2009).

Em suma, o processo de precarização e desestruturação do mercado de trabalho

brasileiro, a partir da década de 1990, se imbricou com as segmentações de gênero, raça,

idade e qualificação, revitalizando antigas formas precárias de inserção, que adquiriram novos

conteúdos e significados no contexto da globalização, da reestruturação produtiva e da

flexibilização do trabalho e da produção. Por outro lado, verifica-se uma importante

recuperação do emprego industrial e a expansão do comercio internacional, que demonstra

que o processo de precarização não é inevitável. Contudo, a tendência de precarização e

informalização é forte e exige intervenções políticas. É uma tendência histórica que nos

coloca frente a questões sociológicas importantes, como a centralidade do trabalho e da sua

capacidade de servir de base para novas identidades da classe trabalhadora. Juntamente com a

análise da precarização se faz necessária a análise da resistência à ela, que exprimem as

relações de força que se estabelecem entre os setores dominantes e os setores dominados, que

conformam as novas tramas sociais (LEITE, 2009).

Diante as transformações ocorridas na década de 1980, Claus Offe (1989) questiona a

centralidade do mundo do trabalho para a compreensão da vida social. Segundo ele, é preciso,

na atualidade, conferir maior atenção às variáveis como sexo, idade, status familiar, saúde,

identidade étnica, direitos coletivos, dentre outras. Nesta via, defende que está em declínio o

modelo de pesquisa social centrado no trabalho, já que todos esses outros fatores se tornam

elementos redefinidores do trabalho. Portanto, o trabalho se cruza com todas as categorias

acima citadas para definir a posição social dos indivíduos na sociedade e no mercado de

trabalho.

O trabalho de Offe (1989) foi alvo de diversas críticas no âmbito da sociologia do

trabalho. Dentre elas, a mais importante é a de que o trabalho continua sendo uma categoria

sociológica chave, desde que compreendido na sua interação com os novos elementos e

características que se tornaram relevantes para a explicação da vida social (LIMA, 2001). O

conceito de trabalho utilizado por Offe (1989) se refere a um modelo específico de trabalho, o

trabalho industrial, que passou por um processo de transformação, mas não desapareceu. A

instabilidade do trabalho nos dias atuais não implica automaticamente a instabilidade do

conceito de trabalho nem de sua importância para a teoria social. Em outras palavras, o

declínio do modelo de trabalho industrial não significa a diminuição do lugar do trabalho na

dinâmica societária. Mesmo porque o trabalho que hoje nós classificamos como pertencente

aos setores primário e terciário sempre congregou uma enorme parcela dos agentes

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produtivos, mesmo durante o auge do industrialismo. No contexto atual, a mudança se refere

principalmente às relações de produção, ao crescimento contínuo da presença feminina no

mercado de trabalho e à expansão das ocupações de serviços.

De acordo com Castells (1999), a sociedade contemporânea é a sociedade da

informação, já que o conhecimento se tornou a atividade chave da economia e o requisito para

a mudança ocupacional. Contudo, a tecnologia não aumenta a qualificação dos trabalhadores,

ao contrário, o crescimento do setor de serviços se deu mais nos setores de baixa qualificação

do que nos setores de conhecimento. A tecnologia tem influência sobre a desqualificação do

trabalhador, baseada na multiespecialização e na flexibilidade. O aumento da flexibilidade

não consiste no surgimento de um novo princípio de trabalho, e sim na acentuação dos

padrões de segmentação do mercado de trabalho por sexo, raça e idade.

Ao teorizar sobre a sociedade em rede, Castells (1999) destaca a polarização do setor

de serviços, com o crescimento simultâneo de ocupações menos qualificadas e ocupações

relacionadas à informação. Para o autor, tais disparidades originaram-se menos de sua

estrutura ocupacional que das exclusões e discriminações que ocorrem dentro e em torno do

mercado de trabalho. O trabalho se diferencia e se estratifica de acordo com o papel de cada

trabalhador no processo produtivo, e esse papel, por sua vez, depende da origem social, do

nível de instrução, do sexo, da cor, etc.

Castro (1993), por sua vez, questiona se, diante das transformações do trabalho e do

desemprego, serão apenas as características adquiridas (educação e experiência) ou também

as características adscritas (sexo, cor, idade) que participarão do processo de

inclusão/exclusão do mercado de trabalho. O mercado de trabalho não pode se apartar dos

aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais. Diante do declínio do sindicalismo e frente

à individualização e diferenciação das relações de trabalho, características como sexo e cor

ganham dimensões mais expressivas. As abordagens mais recentes sobre o mercado de

trabalho tendem à crítica à tese do fim da centralidade do trabalho e começam a considerar

como fundamentais, juntamente com a própria atividade laboral, as características como sexo,

cor, idade, região, origem social.

Sorj (2000) defende que o trabalho, mesmo diante da pluralidade que tem assumido,

continua a ser um dos mais importantes determinantes das condições de vida das pessoas.

Contudo, duas novas ordens precisam ser consideradas: a entrada das mulheres no mercado de

trabalho e a mudança nas relações de trabalho. A cultura, que define papéis de gênero, exerce

influência importante sobre o recrutamento de homens e mulheres para diferentes tipos de

trabalho. Além disso, outro fator que a autora destaca é o crescimento do setor de serviços,

sobretudo das atividades que envolvem interação entre produtor e consumidor, nas quais

características como aparência, idade, educação, gênero e raça se transformam em potencial

produtivo levando a uma estratificação do mercado de trabalho pautada em tais atributos. Na

mesma linha, Hirata (2007) discute os impactos da reestruturação produtiva nas relações de

gênero e aponta que o que ocorre não é a perda da centralidade do trabalho e sim uma dupla

transformação, quanto ao conteúdo e às formas do emprego, que afeta de forma diferente – e

desigual – diferentes indivíduos. Desigual também são as oportunidades de qualificação, que

se cruzam com diferenças de sexo e cor na construção de trajetórias ocupacionais que

conduzem à estruturação desigual do mercado de trabalho (LIMA, 2001).

A EMERGÊNCIA DE UMA SOCIEDADE DE SERVIÇOS

No Brasil, as últimas três décadas foram marcadas pelo crescimento contínuo

dos vínculos empregatícios no que se convencionou chamar de setor de serviços. Como

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ressalta Nunes (2011), a distinção tradicional entre os setores de atividade econômica define o

setor terciário de forma residual, ou seja, o terciário comporta tudo o que não cabe no

primário e no secundário, compreendendo atividades de comércio, transportes, saúde,

educação, lazer, beleza e diversos outros serviços que diferem da produção agrícola e

industrial, por sua característica imaterial. Entretanto, uma definição residual parece cada vez

mais inadequada diante do vigor que os serviços vêm adquirindo na atualidade. Tal sociedade

de serviços requer um aumento da produtividade global, da renda e do consumo. Contudo, o

consumo de mercadorias duráveis característico de uma sociedade industrial avançada dá

lugar ao crescimento paulatino do consumo de serviços. Diferentemente dos bens primários e

industrializados, os serviços não estariam sujeitos à saturação de mercado, tendo a capacidade

de se multiplicarem de forma heterogênea e diversificada (NUNES, 2011).

O norte-americano Daniel Bell (1977) elaborou uma importante reflexão em relação

ao crescimento do setor de serviços. A qualidade de vida nesse novo paradigma, não diz

respeito mais ao acesso a bens materiais, mas a determinados serviços. As exigências relativas

à qualificação do trabalhador mudam, passando do conhecimento técnico para a capacidade

de produzir e lidar com uma grande quantidade de informação. Nesse sentido, novas

ocupações foram forjadas, e várias outras já existentes passaram por uma reconfiguração,

inclusive aquelas que dão suporte à produção industrial. Uma série de serviços foi

desenvolvida em torno do avanço da telemática que, contudo, não implicou a queda dos

serviços de baixa qualificação. Ao contrário, a demanda pelo serviço doméstico, de higiene e

conservação, manutenção, alimentação e outros serviços pessoais aumentaram

significativamente. Como disse Antunes (2009), a coexistência de serviços modernos e

qualificados ao lado de serviços tradicionais e precários marca a posição do Brasil na divisão

internacional do trabalho.

O crescimento do setor de serviços, entretanto, não significou o fortalecimento da

proteção e regulamentação do trabalho. Ao contrário, deu origem à novas formas de gestão

que enfraquecem as relações salariais, os laços associativos, os direitos e proteções

trabalhistas, desqualificando o trabalho principalmente daqueles que já são mais vulneráveis.

Nesse sentido, a flexibilização, a subcontratação, a informalidade e a precarização são

fenômenos constitutivos do processo de transformação mais ampla do mundo do trabalho, que

inclui o avanço do setor de serviços, atingindo não apenas os postos de trabalho menos

qualificados, mas também os que ocupam lugar privilegiado.

O contexto contemporâneo, segundo Bell (1977) constitui não apenas uma nova etapa

econômica, mas uma nova ordem social, que ele chama de sociedade pós-industrial. Gorz

alimenta uma visão diferente em relação ao advento da sociedade de serviços. A valorização

da racionalidade econômica, que marca o trabalho industrial, contaminaria o setor de serviços,

sobretudo as atividades que são efetuadas no cuidado consigo mesmo, que seriam delegadas

para outros trabalhadores, resultando na intensificação do trabalho. Apesar de aumentar as

oportunidades de trabalho, o setor de serviços aumentou consideravelmente o número de

postos de trabalhos precários, com características subalternas. O estilo de vida característico

da sociedade do consumo leva o trabalhador em serviços a se colocar, por vezes, como

mercadoria, à disposição do cliente (NUNES, 2001).

O crescimento do setor de serviços no Brasil se deu pela alta absorção de força de

trabalho não qualificada. Em oposição a esse grupo, cresceu o número de profissionais

ligados ao conhecimento e à informação. Desse modo, o setor de serviços passou por uma

espécie de polarização, marcada pela desarticulação do trabalho assalariado, aumento da

precarização e informalização (MORAES, 2006). Não obstante, responde hoje por cerca de

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dois terços do PIB. No contexto econômico mundial, a expansão dos serviços constituiu uma

mudança de importância fundamental (MELO, 1998).

Na visão crítica de Almeida (2004), a expansão do setor terciário não representou um

aprofundamento da ruptura entre indústria e serviços. Houve, na realidade. Uma diluição da

lógica entre as duas dimensões, fazendo com que, em alguns momentos, ambas se

confundam, haja vista as características industriais que adquire a produção de serviços

padronizados, como os oferecidos em fast foods. Almeida (2004) destaca ainda que os

serviços relacionais – que implicam interação direta entre o servidor e o cliente – foram os

que mais cresceram. Isto se deve ao aumento da renda, que permite, por exemplo, que um

trabalhador delegue ao outro a satisfação das suas necessidades e desejos. Essa relação,

muitas vezes, recoloca um padrão de subordinação em um trabalho caracteristicamente servil.

Segundo Almeida (2004), a lógica econômica que estruturava as relações sociais nas

sociedades industriais tradicionais vem dando lugar a normas culturais que pautam diferentes

significados para as relações de serviço. Dessa forma, o reconhecimento do valor do trabalho

deixa de ser definido predominantemente pela dimensão econômica e passa a ser definido nas

dimensões social e cultural. Por outro lado, as interações humanas passam para o primeiro

plano da análise, e a importância atribuída às competências desenvolvidas pelos indivíduos

nessa interação apresentam aspectos negativos, e a exclusão econômica passa a reforçar a

exclusão sócio-cultural. Inegavelmente, para o autor, vivemos em uma sociedade de serviços,

uma sociedade que vem passando por um lento e profundo processo de teciarização pelo qual

as atividades de serviço adquirem papel central na geração de emprego e de riqueza. Na

própria produção industrial, os serviços se tornaram indispensáveis. Entretanto, cabe

questionar se existem diferenças irredutíveis entre a produção industrial e a produção de

serviços, ou se há, na verdade, uma intensificação e estreitamento da relação entre indústria e

serviços. Nessa linha, estaríamos vivendo não em uma sociedade pós-industrial, como

apontou Daniel Bell, mas em uma sociedade neo-industrial. Este ponto permanece carente de

abordagens mais profundas. Os estudos contemporâneos têm se debruçado sobre a análise das

lógicas de serviço (tipos de produtores e consumidores, formas de interação e de organização

do trabalho, nas suas dimensões relacional e simbólica). A atenção, portanto, passa estar nas

características de imaterialidade e intangibilidade do trabalho em serviços (ALMEIDA,

2004).

Almeida (2004) vai mais longe ao afirmar que a divisão entre os setores primário,

secundário e terciário perdeu seu potencial analítico. Para o autor, o terciário é uma

construção social do século XX. Seu estatuto econômico, social e simbólico se transformou,

acompanhando a institucionalização de diferentes atores sociais. As atividades que hoje

chamamos de serviços antecedem o referido século, e eram designadas, entre outras

denominações, de forma pré-científica, de “extração/agricultura”, “produção/indústria” e

“trocas/comércio”.O momento atual impõe uma revisão conceitual da sociologia do trabalho,

que se estruturou em torno da análise do trabalho industrial. Ainda que diversos estudos

clássicos da sociologia do trabalho já apontassem para a importância das atividades de

serviço, o modelo de análise do trabalho industrial se colocava em oposição às análises das

atividades terciárias. Isto se refletiu quando, nos anos 1980, teóricos como Gorz e Offe

vaticinaram o fim do trabalho diante da ascenção dos serviços e declínio do trabalho

industrial. Dentre as principais características das atividades de serviço, podemos elencar:

variedade econômica e produção de bens diversificados; participação do cliente no processo

de produção ou de criação de tecnologia; ênfase no discurso da qualidade total na tentativa de

adaptar o produto às necessidades do cliente e adaptar a produção de serviços às necessidades

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organizacionais específicas; dinâmica da organização do trabalho; exigência de recursos

humanos com capacidades personalizadas.

DESIGUALDADES RACIAIS E MERCADO DE TRABALHO

Na década de 1970 novas pesquisas a respeito da questão racial foram desenvolvidas

com a preocupação de rever as teses que subordinavam a relações raciais às relações entre as

classes, até então predominantes. O trabalho de Hasenbalg (1979) foi o principal deles.

Tentou esclarecer os mecanismos societários contemporâneos que produzem as desigualdades

raciais. Recusa a ênfase dada ao peso da herança escravocrata no preconceito e na

discriminação racial após a Abolição. Para o autor, essa herança é importante para explicar a

distribuição desigual da população negra no território nacional, ou seja, a concentração dos

negros nas regiões menos urbanizadas e industrializadas, onde a dinâmica social era mais

intensa. Entretanto, isso é insuficiente para manter a desigualdade racial na sociedade

brasileira. Segundo ele, a discriminação e o preconceito racial se atualizam na sociedade pós-

Abolição, relacionando-se com a manutenção dos privilégios e recompensas materiais e

simbólicas por parte dos brancos. Em um ambiente capitalista competitivo, esses mecanismos

assumem o papel de consolidar as hierarquias entre negros e brancos no mercado de trabalho.

Hasenbalg (1979) demonstra que a desigualdade de inserção no mercado de trabalho

entre negros e brancos está relacionada à desigualdade de origem social e de oportunidades de

acesso à educação formal. No mercado de trabalho, mais especificamente, os negros são

discriminados com base em critérios que envolvem competência, habilidade, escolaridade

formal, aparência, todos eles vinculados ideologicamente à cor. Essa discriminação limita a

capacidade de ascensão social e cria guetos ocupacionais negros em torno das ocupações

subalternas. Lima (2001) ressalta que, no ambiente de trabalho, a discriminação se revela pela

incompatibilidade entre a formação do trabalhador negro e a sua posição na ocupação, por

piadas e brincadeiras racistas que reproduzem estereótipos e estigmas raciais, pela

autodepreciação de alguns trabalhadores negros que terminam por se considerar incapazes de

ocupar determinadas posições.

É verdade que nas últimas décadas os níveis de escolaridade dos negros vêm

aumentando, bem como sua visibilidade em alguns contextos onde antes eram inexistentes.

Contudo, são necessárias pesquisas mais profundas e de caráter multidisciplinar para

dimensionar a variação do impacto da discriminação racial na atualidade. De todo modo, os

trabalhos mencionados até aqui argumentam que o mercado de trabalho é produtor e

reprodutor de desigualdades raciais duráveis. Segundo Lima (2001) os diferentes padrões de

participação de negros e brancos no mercado de trabalho relacionam-se com uma valorização

muito desigual do trabalho de cada um, que reflete no status e nas oportunidades que são

conferidas de forma desigual aos diferentes grupos de cor.

As desigualdades raciais ficam ainda mais evidentes quando as abordamos a inserção

de negros e brancos em determinadas ocupações, assumindo que o desempenho de uma

ocupação constitui dimensão fundamental para compreendermos os lugares sociais ocupados

pelos negros no mercado de trabalho, não só do ponto de vista das condições de trabalho,

como também da estratificação social. Para Bourdieu (2008), a posição assumida na esfera do

trabalho, ainda que não seja a única e não possa ser analisada em si mesma, é a variável

central para compreender a desigualdade.

De acordo com Bourdieu (2008), se assumirmos que uma classe corresponde a uma

ocupação, concordaremos que a posição nas relações de produção orienta as práticas por

intermédio dos mecanismos que controlam o acesso às posições, produzindo ou selecionando

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um habitus. Contudo, mesmo uma classe construída apenas com base na posição nas relações

de produção carrega consigo, inevitavelmente, além das propriedades e atributos ligados a

essa esfera, algumas propriedades ou atributos “secundários”, que são introduzidos

“clandestinamente” no modelo de análise, ainda que a variável “ocupação” permaneça

determinante. Isso significa que uma classe ou fração de classe não é definida somente com

base em sua posição nas relações de produção. Ela é definida também pela proporção do

número de homens e mulheres, pela origem racial e étnica, pela escolaridade, pela

nacionalidade, pela região de origem, pela idade, enfim, “por um conjunto de características

auxiliares que, como exigências tácitas, podem funcionar como princípios reais de exclusão

ou seleção sem nunca ser formalmente anunciados” (BOURDEU, 2008, p. 97). Dessa forma,

“inúmeros critérios oficiais servem de máscara para critérios dissimulados de modo que o fato

de exigir determinado diploma pode ser uma forma de exigir, efetivamente, uma origem

social” (BOURDIEU, 2008, p.98). Tais características às quais Bourdieu (2008) chama de

secundárias encontram-se na origem do valor social (prestígio ou descrédito) conferido à

ocupação. São fundamentais para a entrada na profissão e ao longo da carreira, de modo que

os membros da ocupação desprovidos dos traços exigidos são excluídos ou relegados a

posições marginais do mercado de trabalho. Ao reduzir a classe à ocupação, corre-se o risco

de dissimular a eficácia de outras características que, apesar de serem constitutivas da classe,

não são evocadas expressamente.

Hasenbalg (1979) busca uma mediação entre a teoria do sistema de classe e a teoria da

estratificação social para compreender a hierarquização, o preconceito e a discriminação

racial no mercado de trabalho. Para o autor, a família e o sistema escolar se interpõem entre as

diferentes posições na estrutura de classes e as oportunidades padronizadas de mobilidade

social ligadas a elas. Além dos efeitos de características tais como raça e sexo, a família e a

educação ajudam a produzir e distribuir características – habilidades técnicas e cognitivas,

traços de personalidade, modos de auto-apresentação e credenciais – que o mercado de

trabalho converte em desigualdade de renda e hierarquias ocupacionais. Sob a ideologia da

igualdade de oportunidades, representada por um sistema amplo de ensino, tal processo

reproduz a divisão social do trabalho disfarçando o grau em que as posições de classe são

transmitidas de geração em geração.

Ainda de acordo com Hasenbalg (1979), a raça opera como um critério independente

na alocação dos não-brancos na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Ela

atua mais na reprodução e distribuição dos agentes entre essas posições de classe do que na

reprodução das posições de classe. Portanto, as minorias raciais não estão fora da estrutura de

classes das sociedades multirraciais. Pelo contrário, o racismo, como construção ideológica

realizada por meio de um conjunto de práticas materiais de discriminação racial, é o

determinante primário da posição dos não-brancos nas relações de produção e distribuição. Se

o racismo torna-se parte da estrutura objetiva das relações políticas e ideológicas capitalistas,

então a reprodução de uma divisão racial do trabalho pode ser explicada sem precisar recorrer

a elementos psicológicos ou subjetivos. Pelo contrário, nessa visão o racismo passa a ser

explicado do ponto de vista institucional.

Historicamente, depois da Abolição, os negros têm ocupado posições específicas nas

relações de produção e distribuição, e essa posição é diferente daquela ocupada pelos brancos.

A população negra tem sido explorada economicamente por classes ou frações de classes

predominantemente brancas. Mas os benefícios do racismo têm se estendido também para os

brancos que não pertencem às classes dominantes, na forma indireta de vantagens

competitivas que envolvem elementos não apenas materiais, mas também simbólicos, como o

prestígio o status, o tratamento decente e equitativo e a dignidade. Tal privilégio às vezes se

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assemelha a uma posse, que se torna um diferencial a favor dos brancos. Cria-se assim

barreiras para a mobilidade dos não-brancos, baseadas em desvantagens cumulativas ligadas

aos diferentes ciclos de vida (HASENBALG, 1979). Dessa perspectiva, brancos e negros

historicamente se distribuem de forma desigual no mercado de trabalho, ocupando posições

semelhantes entre si, em um processo decorrente de privilégios e desvantagens construídas

com base na ideologia racista.

DESIGUALDADES DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO

Os efeitos contraditórios da globalização afetaram desigualmente o emprego de

homens e mulheres na última década do século passado. Se o emprego masculino se estagnou,

o emprego feminino aumentou sensivelmente em nível mundial, tanto no setor formal quanto

no informal. Contudo, a maioria desses empregos femininos são precários e vulneráveis. Isto

revela o paradoxo da globalização: aumento do emprego remunerado, por um lado, e aumento

da precarização, por outro. A globalização não implicou a redução das desigualdades. À

medida que ofereceu novas oportunidades, também impôs novos riscos. Apesar das

consequências da participação da mulher no mercado de trabalho serem múltiplas, o modelo

de trabalho precário e vulnerável tende a se consolidar como modelo geral, para homens e

mulheres (HIRATA, 2001).

De acordo com Hirata (2007), duas tendências são muito claras nesse contexto: a

primeira é a bipolarização do trabalho feminino, resultante do crescimento do número de

mulheres em profissões executivas e intelectuais e do concomitante aumento de ocupações de

baixa qualificação e altamente estratificadas por gênero, classe e raça no setor de serviços

(BRUSCHINI, 2007). Apesar de os guetos femininos no mercado de trabalho ainda estarem

concentrados nas áreas de serviços pessoais, saúde e educação, cresce o número de juízas,

arquitetas, médicas, advogadas e engenheiras. Entretanto, cresce de forma significativa

também o número de mulheres inseridas em ocupações precarizadas, mal-pagas e sem

perspectiva de carreira, como serviço doméstico e o comércio de rua. Nesse contexto, a

bipolarização do mercado de trabalho feminino coloca em antagonismo político mulheres

com perfis sócio-ocupacionais opostos, sendo que um dos grupos necessariamente se utiliza

do outro para ascender na escala sócio-econômica.

Hirata e Kergoat (2007) analisam tais desigualdades a partir do conceito de divisão

sexual do trabalho. O termo “divisão sexual do trabalho” surgiu na França, com duas

acepções distintas: a primeira se refere ao estudo da distribuição diferencial de homens e

mulheres no mercado de trabalho e nas profissões, às variações dessa distribuição no tempo e

à divisão do trabalho doméstico entre os sexos; a segunda busca compreender a gênese dessa

divisão do trabalho, mostrando que as desigualdades são sistemáticas e articulando a situação

de desigualdade constatada com uma análise reflexiva sobre os processos mediante os quais a

sociedade utiliza essa divisão para hierarquizar as atividades e, assim, os sexos, construindo

um sistema de gênero. A segunda acepção, portanto, vai além da primeira, não se limita a

medir indicadores e denunciar as desigualdades existentes, mas busca compreender os

processos pelos quais essa desigualdade é construída e legitimada. Falar de desigualdades

sexuais no trabalho, na segunda acepção, implica repensar o próprio trabalho, inclusive para

incluir nele o trabalho doméstico, no qual a desigualdade entre os sexos é evidente. Outro

ponto importante a considerar é que, mesmo diante das transformações recentes, as mudanças

nos arranjos sexuais parecem não ter apresentado mudanças tão significativas.

Na definição mais elementar, a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do

trabalho social que decorre e depende das relações sociais entre os sexos. Essa forma é

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histórica e socialmente determinada, tendo como fundamento a designação dos homens à

esfera produtiva (pública) e das mulheres à esfera reprodutiva (privada), e a consequente

apropriação por parte dos homens das funções mais valorizadas socialmente. De acordo com

Hirata e Kergoat (2007), tal divisão sexual do trabalho se apóia em dois princípios, que

podem ser considerados universais: o da separação (trabalhos de homem e trabalhos de

mulher) e da hierarquização (trabalho de homem vale mais que o de mulher). Esses princípios

são legitimados por meio de uma ideologia naturalista que reduz o gênero ao sexo e vincula

determinados papéis sociais a determinado sexo. Essa universalidade não impede a dinâmica

da divisão sexual do trabalho, que varia enormemente de uma cultura para outra. Mas, se a

maneira como se conforma essa divisão muda, a distância entre os sexos, que lhe é

característica, parece continuar a mesma.

Em suma, as novas configurações da divisão sexual do trabalho se traduzem na

reorganização simultânea do trabalho tanto no campo assalariado/profissional quanto na

esfera doméstica; no atenuamento dos conflitos dos casais burgueses, pela delegação das

tarefas domésticas; no aumento das clivagens objetivas entre mulheres. Na medida em que

cresce o número de mulheres em profissões de nível superior, cresce também o número de

mulheres na periferia do mercado de trabalho, nas ocupações flexíveis, precárias e informais

que estão às margens do desemprego. Esse movimento é tanto material quanto simbólico

(BRUSCHINI, 2007).

As abordagens funcionalistas advogam a complementaridade de papéis entre homens e

mulheres, que é compatível com a divisão sexual do trabalho e com a reprodução de papéis

sexuados. Essa complementaridade se dá, ainda de acordo com Hirata e Kergoat (2007), por

diversos modelos diferentes: a) modelo tradicional: a esfera doméstica, incluindo o cuidado

com a família, seria papel das mulheres, enquanto o papel de provedor seria atribuído aos

homens; b) modelo de conciliação: cabe quase exclusivamente às mulheres conciliar trabalho

profissional e trabalho doméstico; c) o modelo da parceria: as relações seriam mais

igualitárias e tanto o trabalho profissional quanto o trabalho doméstico seriam divididos entre

homens e mulheres; d) e o modelo da delegação: as atividades domésticas são delegadas

(quase sempre para outra mulher) e ambos, homem e mulher, podem se dedicar ao trabalho

profissional. Esse último modelo, segundo as autoras, decorre da polarização do emprego das

mulheres, a partir da qual aquelas que desempenham profissões de nível superior e executivas

têm a necessidade e os meios de delegar a outras mulheres as tarefas domésticas e familiares.

O modelo da delegação é, por essa via, consequência do aumento acelerado dos empregos em

serviços. Seus arranjos dependem das configurações culturais de cada país.

Hirata e Kergoat (2007) alertam que a reflexão sobre as diferentes modalidades de

reprodução da servidão doméstica deve conduzir a uma consideração crítica a respeito do

modelo de conciliação, bem como do modelo de delegação. Todas as esferas de socialização

contribuem para a reprodução das relações sociais. A permanência da atribuição das tarefas

domésticas às mulheres deve representar um problema de pesquisa fundamental. É, sem

dúvida, problemático o fato de que as mulheres, mesmo conscientes da opressão advinda da

divisão sexual do trabalho, continuem assumindo a responsabilidade pelo trabalho doméstico.

GÊNERO E RAÇA EM ALGUMAS OCUPAÇÕES DO SETOR DE SERVIÇOS

PESSOAIS

A heterogeneidade do setor de serviços impõe limitações às tentativas de classificá-lo

de maneira mais precisa e adequada. Partimos da classificação proposta por Browning e

Singelmann (1978), que divide o setor de serviços em: a) produtivos (serviços bancários,

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financeiros, seguros, imobiliários, de engenharia, de arquitetura, de contabilidade); b)

distributivos (comércio, transporte, armazenamento, comunicações); c) sociais (saúde,

educação, serviços religiosos, postais, demais serviços governamentais); d) pessoais

(domésticos, reparação e manutenção, higiene e beleza, hospedagem e alimentação, diversões,

dentre outros).

A intenção, nesta seção, é ressaltar algumas características das trabalhadoras e dos

trabalhadores em algumas ocupações de serviço no estado de Goiás, tais como: trabalhadoras

domésticas remuneradas, mecânicos de automóvel, cabeleireiros, garçons e guias de turismo,

que representam, respectivamente, os subgrupos dos serviços pessoais acima citados. A

análise se concentrará na composição sexual e racial dessas ocupações, bem como na renda,

no nível de instrução e na jornada de trabalho em cada uma delas, informações essas extraídas

dos dados referentes ao estado de Goiás, retirados do Censo de 2012 realizado pelo IBGE.

DISTRIBUIÇÃO DOS OCUPADOS SEGUNDO SEXO

Trab. doméstica mecânico cabeleireira garçom guia de turismo TOTAL

masculino 10442 26553 5974 10172 243 53384

feminino 171822 784 22555 4997 71 200229

TOTAL 182264 27337 28529 15168 315 253613 Fonte: Censo 2010 - IBGE Elaboração: própria

Como aponta a bibliografia, o setor de serviços pessoais é acentuadamente

feminizado. Das ocupações analisadas, as mulheres compõem 79% da força de trabalho.

Concentram-se principalmente no serviço doméstico (72% dentre as ocupações analisadas).

Por outro lado, a heterogeneidade do setor de serviços se revela na presença de ocupações que

são predominantemente ocupadas por homens, como é o caso do mecânico de automóveis, do

garçom e do guia turístico. Entretanto, são ocupações que, apesar de serem tradicionais,

reúnem menor número de trabalhadores em comparação às de cabeleireira e trabalhadora

doméstica. A despeito do aumento contínuo da escolarização das mulheres e de sua entrada

massiva no mercado de trabalho nas últimas décadas, inclusive em ocupações qualificadas

que antes eram predominantemente masculinas, elas continuam sendo a esmagadora maioria

em serviços pessoais de baixa qualificação, o que confirma a hipótese de uma polarização do

mercado de trabalho feminino (BRUSCHINI, 2007).

DISTRIBUIÇÃO DOS OCUPADOS SEGUNDO COR OU RAÇA

Trab. doméstica mecânico cabeleireiro garçom guia de turismo TOTAL

branca 57064 10391 11041 5753 145 84394

preta 19045 2280 2327 1216 35 24903

amarela 3044 391 794 300 0 4656

parda 102621 14204 14305 7860 127 760169

indígena 477 71 62 39 9 658

TOTAL 182264 27337 28529 15168 315 874780 Fonte: Censo 2010 - IBGE Elaboração: própria

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Quanto ao quesito cor ou raça, dentre as ocupações analisadas os brancos constituem

9,6%, enquanto que os negros2 90%, cabendo a amarelos e indígenas os restantes 0,4%. É

patente, portanto, que o subsetor de serviços pessoais nicho ocupacional negro. Essa presença

é mais marcante ainda entre trabalhadoras domésticas e garçons, ocupações com

características servis, cujas relações entre quem oferece e quem compra o serviço ostentam

uma carga hierárquica muito grande e carregam o ranço da subalternidade. Tendo-se em

conta, como diversas pesquisas mostram, que tais ocupações padecem de melhores condições,

remuneração e valorização social, o mercado de serviços pessoais revela uma extrema

desigualdade racial, que se conecta à desigualdade entre homens e mulheres, reforçando o

estigma dos trabalhadoras que desempenham tais funções.

DISTRIBUIÇÃO DOS OCUPADOS SEGUNDO O NÍVEL DE INSTRUÇÃO

Trab. doméstica mecânico cabeleireiro garçom guia de turismo TOTAL

sem instrução e fundamental incompleto 115683 11911 8802 5641 86 142123

fundamental completo e médio incompleto 37968 7650 7241 4486 53 57398

médio completo e superior incompleto 27458 7120 11669 4677 151 51075

superior completo 598 501 691 202 25 2017

não determinado 556 155 126 163 0 1000

TOTAL 182264 27337 28529 15168 315 253613 Fonte: Censo 2010 - IBGE Elaboração: própria

No que diz respeito ao acesso à educação, fica claro que as ocupações de serviços

pessoais são ocupações muito pouco qualificadas, ficando abaixo da média da qualificação do

trabalhador tanto no estado de Goiás quanto em nível nacional. Cabe destacar que, em todas

as ocupações analisadas, é grande o número de trabalhadores que sequer completaram o

ensino fundamental. Isto tem consequências decisivas na definição da renda e da qualidade de

vida desses trabalhadores. Proporcionalmente, a ocupação de guia de turismo é que apresenta

maior qualificação, o que se justifica pela exigência, em alguns casos, de um maior nível de

conhecimentos gerais e de domínio de línguas estrangeiras.

2 Categoria utilizada tanto em pesquisas governamentais e acadêmicas quanto pelos movimentos negros

organizados para designar a população afrodescendente, que aglutina os indivíduos autoidentificados com

pretos e pardos.

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DISTRIBUIÇÃO DOS OCUPADOS SEGUNDO RENDA MENSAL NO TRABALHO PRINCIPAL EM SALÁRIOS MÍNIMOS

Trab. doméstica mecânico cabeleireiro garçom guia de turismo TOTAL

até 1 141742 8090 11206 6881 110 168029

mais de 1 a 2 37786 10125 10857 6455 108 65331

mais de 2 a 3 2149 5062 3629 1248 45 12133

mais de 3 a 4 490 2138 1532 345 22 4527

mais de 4 a 5 10 630 528 95 17 1280

mais de 5 87 1293 776 145 14 2315

TOTAL 182264 27337 28259 15168 315 253343 Fonte: Censo 2010 - IBGE Elaboração: própria

Os baixos níveis de instrução refletem no nível de remuneração dos trabalhadores dos

serviços pessoais. Prova disso é a frequência acentuada de trabalhadores recebendo até 1

salário mínimo em todas ocupações pesquisadas, e a baixa frequência daqueles que recebem

mais de 5 salários mínimos mensalmente. Apenas os mecânicos de automóveis destoam do

restante das ocupações, de forma que a cada 8 trabalhadores, 1 tem renda maior do que 5

salários mínimos, enquanto que no serviço doméstico essa proporção é de um trabalhador

com a referida faixa de renda para cada grupo de 1.629 trabalhadores. Para quase todas as

ocupações de serviços pessoais, vale a imagem da pirâmide invertida para expressar o

rendimento. Considerando que se trata de um conjunto de ocupações que são

caracteristicamente femininas e negras, as assimetrias de raça e sexo confirmam um lugar

inferior na estrutura social para milhões de trabalhadoras e trabalhadoras, que implica a

configuração de uma sociedade desigual tanto do ponto de vista material quanto simbólico.

DISTRIBUIÇÃO DOS OCUPADOS SEGUNDO A QUANTIDADE DE HORAS DE TRABALHO SEMANAL

Trab. doméstica mecânico cabeleireiro garçom guia de turismo TOTAL

até 20 41203 1966 4546 1628 60 49403

de 21 a 30 26443 933 2901 1240 77 31594

de 31 a 40 58784 7823 8308 4423 110 79448

de 40 a 44 15145 5380 2104 2067 6 24702

mais de 44 40689 11235 10669 5811 63 68467

TOTAL 182264 27337 28529 15168 315 253613 Fonte: Censo 2010 - IBGE Elaboração: própria

Por fim, cabe destacar que, além dos níveis precários de escolaridade e renda, os

trabalhadores dos serviços pessoais ainda estão submetidos a jornadas de trabalho que, em

muitos casos ultrapassa a que é prevista em lei. Isto porque a informalidade é característica

constitutiva do setor de serviços, sobretudo dos serviços pessoais, como este trabalho buscou

demonstrar desde o início. Dessa forma, as condições precárias de trabalho impedem um

maior controle dos abusos praticados em relação à carga de trabalho imposta aos

trabalhadores. Todas as ocupações pesquisadas demonstrou altíssimo número de pessoas que

trabalham mais de 44 horas semanais. No caso dos mecânicos, cabeleireiros e garçons, que

lidam com uma demanda por seus serviços que pode oscilar indefinidamente durante um

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mesmo dia, é comum estender a jornada de trabalho, seja por imposição do empregador, seja

para tentar aumentar a renda mensal. No caso das trabalhadoras domésticas, o desempenho de

sua atividade no interior do espaço privado dos empregadores dificulta o cumprimento de

qualquer regulamentação que restrinja a quantidade de horas trabalhadas diariamente.

Apontadas essas características, convém agora refletir sobre os desafios que se colocam no

horizonte de políticas de promoção da igualdade racial e de gênero no Brasil contamporâneo.

DESAFIOS PARA A IGUALDADE DE GÊNERO E RAÇA NO TRABALHO

Não é por acaso que as mulheres e os negros têm os piores indicadores do mercado de

trabalho. As discriminações de gênero e raça são fatores determinantes das possibilidades de

acesso e permanência no sistema de ensino e no emprego, bem como das condições de

aprendizagem e de trabalho, alem da proteção social e do nível de remuneração. Sendo assim,

é possível falar que homens e mulheres, negros e brancos, têm diferentes experiências do

mundo do trabalho, pois experimentam oportunidades diferentes. As mudanças que envolvem

o lugar das mulheres e da população negra no mercado de trabalho não constituem detalhes

históricos, mas são sintomáticos dos movimentos que agitam o mundo do trabalho, colocando

em processo mudanças estruturais da sociedade.

Nos últimos anos pesquisadores de várias áreas como sociologia, ciência política,

demografia, economia, além de órgãos internacionais – como a Organização Internacional do

Trabalho (OIT) – e nacionais – como o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a

Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM) a Secretaria Especial de Políticas

para a Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) – têm desenvolvido esforços para analisar as

desigualdades de gênero e raça e refletir sobre suas consequências no Brasil, bem como

pensar políticas públicas e outras ações que contribuam para combater tais desigualdades.

Tais estudos partem do suposto de que as assimetrias de gênero e raça, sobretudo na educação

e no mercado de trabalho, se colocam como entraves para o desenvolvimento e para a

consolidação da democracia em nosso país.

Os trabalhos de Abramo (2010) têm se destacado nesse sentido. A autora defende dois

argumentos: o primeiro é o de que um maior equilíbrio entre o trabalho, a família e a vida

pessoal é condição necessária para uma efetiva igualdade de oportunidades e tratamento entre

homens e mulheres no mundo do trabalho; o segundo é o de que a estruturação de sistemas de

proteção social e políticas públicas capazes de contribuir efetivamente à superação das

desigualdades de gênero e ao enfrentamento das tensões entre família e trabalho pressupõe

não apenas a superação da tradicional dicotomia entre “mulher cuidadora” e “homem

provedor”, que esteve na base da maioria das instituições do Estado de Bem Estar Social,

como também na superação da noção da mulher como força de trabalho secundária, que

persiste no imaginário social, empresarial, na teoria econômica e sociológica e entre os

formuladores de políticas públicas.

Segundo a autora, são vários os fatores que aumentam a tensão entre a vida e o

trabalho em âmbito mundial. Antes de tudo, convém considerar que a consolidação da entrada

da mulher no mercado de trabalho e o fortalecimento desse processo na agenda pública

questionam o modelo de divisão sexual do trabalho baseado na dicotomia “mulher cuidadora”

e “homem provedor”. A tensão entre o trabalho e a vida familiar se dá, de acordo com

Abramo (2010), em várias dimensões, por motivos tais como: a) a própria ordem de gênero

que é constitutiva da nossa sociedade e da lógica de organização do mercado de trabalho, que

continua atribuindo às mulheres a responsabilidade pelas funções domésticas, apesar das

mudanças econômicas, sociais e culturais; b) o fato de que a entrada da mulher no mercado de

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trabalho não correspondeu a um aumento equivalente da participação dos homens na

distribuição das responsabilidades e tarefas domésticas e familiares; c) as mudanças recentes

no mercado de trabalho, com destaque para o crescimento dos trabalhos atípicos nos quais um

número significativo de mulheres estão inseridas; d) a visão sexista e machista incorporada

nas instituições do mercado de trabalho e nas concepções de políticas públicas; e) a

organização produtiva das empresas, que se baseia em uma idéia de trabalhador ideal como

aquele que está o tempo todo à disposição da empresa, que não se prende à família, ou que

tem alguém que cuide de sua família – esse alguém é quase sempre uma mulher – enquanto

ele se dedica integralmente à sua atividade ocupacional.

A mulher, por não atender aos requisitos do trabalhador ideal, é considerada como

inadequada ou menos produtiva, o que terá um impacto negativo na sua manutenção na

empresa, nas possibilidades de aumento salarial e de promoção na carreira. Mas o modelo da

conciliação deve ser visto apenas como danoso às mulheres. A conciliação entre trabalho e

vida familiar atualmente diz respeito a uma nova forma de relacionar-se no âmbito da

empresa e da sociedade, e a uma nova visão sobre a relação entre a esfera produtiva e a esfera

reprodutiva. Nesse contexto, para diminuir as desigualdades entre homens e mulheres no

mercado de trabalho é necessário criar mecanismos que impeçam que as mulheres assumam

de forma unilateral as responsabilidades familiares (ABRAMO, 2010).

A raça entrecruza-se com o sexo no mercado de trabalho brasileiro, e potencializa as

clivagens de gênero, criando uma situação de maior vulnerabilidade à pobreza e aumentando

as barreiras para que parcela significante de trabalhadoras jovens consigam acessar posições

melhores no mercado de trabalho.

Por fim, Abramo (2010) chama atenção para o fato de que o pressuposto fundamental

para a construção de políticas e estratégias de conciliação entre trabalho e família que

incorporem efetivamente uma perspectiva de igualdade de gênero passa não apenas pela

superação da dicotomia “mulher cuidadora” e “homem provedor”, mas também da noção de

mulher como força de trabalho secundária”. Essa noção se estrutura a partir da

hierarquização entre as esferas do público e do privado, da produção e da reprodução. Na

concepção de família nuclear, o homem é o único provedor enquanto a mulher é a cuidadora,

ou , no máximo, uma “provedora secundária”. A inserção da mulher no mercado de trabalho e

a importância da sua renda para a família seriam, assim, secundárias. Ademais, esse caráter

secundário seria reforçado pelas trajetórias ocupacionais interrompidas em função das

exigências familiares, e pela noção de que o mercado de trabalho, por ser um ambiente

predominantemente masculino, não seria um lugar de construção identitária para as mulheres,

nem de geração de práticas associativas para elas. À isso se soma a idéia de que essa inserção

secundária teria como consequência altos custos indiretos e um comportamento inadequado

no trabalho, em função das altas taxas de absenteísmo e rotatividade, além do baixo nível de

compromisso com a empresa.

Apesar de todas as mudanças em curso no mercado de trabalho, a noção da mulher

como força de trabalho secundária ainda é muito presente e fundamenta a hierarquização e

discriminação sexual no mercado de trabalho e nas famílias cujas mulheres não se limitam

mais ao confinamento na esfera doméstica (ABRAMO, 2010). Assim, como afirma Maruani

(2003), as fronteiras da desigualdade são deslocadas na medida em que as imagens de gênero

são reconstruídas em função do aumento da presença da mulher no mercado de trabalho. A

mulher deixa de se restringir ao ambiente doméstico e passa a fazer parte também da esfera

produtiva. Porém, não como uma trabalhadora com o mesmo estatuto, a mesma importância e

os mesmos direitos dos homens, e sim como uma força de trabalho secundária. As fronteiras

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que marcam a desigualdade, nesse contexto continuam criando barreiras para a constituição

de uma identidade positiva e do devido reconhecimento social em torno do trabalho feminino.

Nas últimas décadas, a participação crescente das mulheres na busca por

oportunidades profissionais e a intensificação da discussão sobre a desigualdade racial estão

entre os acontecimentos mais importantes do cenário nacional. Tais temas instauraram-se na

agenda pública, revelando o duplo peso da discriminação que recai sobre as mulheres negras.

Esses dois movimentos de gênero e raça vêm consolidando no Brasil a consciência sobre a

necessidade de incorporar o tema da igualdade às políticas de desenvolvimento e às políticas

sociais (MARQUES E SANCHES, 2010).

No Brasil, as discriminações associadas ao gênero e à raça constituem a matriz das

desigualdades e contribuem para a permanência da pobreza e o aprofundamento da exclusão

social. São produtos históricos reproduzidos cotidianamente no mercado de trabalho e na

sociedade. Assim, incorporar as dimensões de gênero e raça à análise do mercado de trabalho

implica assumir que as mulheres e os negros ocupam posições desiguais em relação aos

homens brancos, e que o desenvolvimento e a consolidação da democracia dependem, em

grande medida, do combate à essas desigualdades.

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