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O PAPEL DO JUIZ NA DEMOCRACIA Ativismo Judicial Político X Ativismo Judicial Jurisdicional 500 anos de autoritarismo e o desafio da transição para a democracia no Brasil contemporâneo

Papel Do Juiz Na Democracia, O: Ativismo Judicial Político X Ativismo Judicial Jurisdicional

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O PAPEL DO JUIZ NA DEMOCRACIA

Ativismo Judicial PolíticoX

Ativismo Judicial Jurisdicional

500 anos de autoritarismo e o desafio da transição para a democracia no Brasil contemporâneo

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ROBERTO BASILONE LEITE

Juiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial

do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina.

O PAPEL DO JUIZ NA DEMOCRACIA

Ativismo Judicial PolíticoX

Ativismo Judicial Jurisdicional

500 anos de autoritarismo e o desafio da transição para a democracia no Brasil contemporâneo

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Leite, Roberto BasiloneO papel do juiz na democracia : ativismo judicial político X ativismo judicial

jurisdicional : 500 anos de autoritarismo e o desafio da transição para a democracia no Brasil contemporâneo / Roberto Basilone Leite. – São Paulo : LTr, 2014.

Bibliografia.

1. Democracia deliberativa 2. Direito e política 3. Estado de direito 4. Estado democrático 5. Poder judiciário - Brasil 6. Poder público - Brasil I. Título.

14-04045 CDU-342.56(81)

EDITORA LTDA.© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-001São Paulo, SP – BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.br

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: LINOTECProjeto de Capa: FABIO GIGLIOImpressão: PAYM GRÁFICA

Maio, 2014

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil : Poder judiciário e Estado democrático de direito : Direito constitucional 342.56(81)

Versão impressa - LTr 4966.4 - ISBN 978-85-361-2969-3Versão digital - LTr 7790.0 - ISBN 978-85-361-2993-8

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Para Beatriz, Bárbara e Rafael,

com todo meu amor.

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AgrAdecimentos

Esta obra deriva de estudos realizados entre 2006 e 2013, destinados a deli-mitar o papel do Poder Judiciário no contexto do Estado de transição democrática pós-autoritário, à luz do conceito normativo de democracia deliberativa, e situar aí os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial, a fim de analisar se o judiciário brasileiro padece de um déficit político-institucional.

Foram fundamentais os debates travados com diversos estudiosos, sobretudo os professores Cecilia Caballero Lois, da Universidade Federal de Santa Catarina; David Wilson de Abreu Pardo, da Universidade Federal do Acre; Margarida Maria Lacombe Camargo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Cláudia Maria Barbosa, da PUC do Paraná; José Querino Tavares Neto, da Universidade Federal de Goiás; Gisele Guimarães Cittadino, da PUC do Rio de Janeiro; Virgínia Cola-res Soares Figueirêdo Alves, da Universidade Federal de Pernambuco; Cláudia Rosane Roesler, da Universidade do Vale do Itajaí; Delamar José Volpato Dutra, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina; José Ricardo Ferreira Cunha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Horácio Wanderlei Rodrigues, Antônio Carlos Wolkmer, Sérgio Urquhart de Cademartori, Luis Carlos Cancellier de Olivo, Luiz Henrique Urquhart de Cademartori, Ma-theus Felipe de Castro, José Isaac Pilati, Sílvio Dobrowolski, Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira, Rogério Silva Portanova, José Rubens Morato Leite e Vera Re-gina Pereira de Andrade, do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Sou grato ainda ao professor Richard H. Pildes por franquear-me o acesso a importantes debates e pesquisas desenvolvidos na Faculdade de Direito da New York University.

Tive a oportunidade e o privilégio de discutir tópicos específicos do trabalho, em diferentes momentos, com os pesquisadores e professores Alessandro Silva, Luiz Magno Pinto Bastos Junior, Michelle Denise Durieux Lopes Destri, Danilo dos Santos Almeida, Rodrigo Mioto dos Santos, Daniel Lena Marchiori Neto, Bernardo Rohden Pires, Sabrina Iocken, Reinaldo Pereira e Silva, Guilherme Soares, Caroli-ne Ferri, Carla Andrade Maricato, Letícia Garcia Ribeiro Dyniewicz, Fredinho da

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Silva, Maria Lúcia Pereira Antunes, José Manuel Avelino de Pina Delgado, Liriam Kiyomi Tiujo, Vilian Bollmann, Giovanni Olsson, Flávia de Ávila, Eliseu Jusefovicz, André Bezerra Meireles e Ana Carolina Casagrande Nogueira.

Agradeço pelo apoio pessoal e logístico generosamente proporcionado pelos amigos e colegas de magistratura Viviane Colucci, José Ernesto Manzi, Marcel Lu-ciano Higuchi Viegas dos Santos e Desirré Dorneles de Ávila Bollmann, bem como aos bibliotecários e secretários das universidades que me auxiliaram nas tarefas de pesquisa, com destaque para Lilian Patricia Casagrande, Telma Izabel Lino Vieira, Carla Margotti, Marco Antonio Martins, Giovana Fortkamp Pires, Douglas Ka-minski, Maíra Pires e Peter Freedberger.

Pelo apoio constante, agradeço a minha irmã, Rosana, e a meus pais, Neide e João Batista, modelos de dignidade e sabedoria, e a meus filhos, Rafael e Bárbara, que começaram sua caminhada na vida bem no momento em que o Brasil também dava seus primeiros passos rumo à democracia.

Por fim, cabe registrar que a concretização deste trabalho se deve em grande parte à intervenção de minha esposa, Beatriz Della Giustina, que, além de me esti-mular, acompanhou e ajudou a coordenar os estudos e a produção do texto.

Florianópolis, setembro de 2013.

Roberto Basilone Leite

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JUSTIÇA

brilhas como a aurora que víamos

outrora

que encanto esse teu, insuflação divina

és como o mar, de admirar

és sol, és chuvas, inundas os

corações

estouras represas, és

fortaleza

mínima é minha força

escravo dessa moça

máxima é minha paixão que só

não tem capacidade de

perturbar o juízo e a conduta

pelo código da paixão estás

cometendo um crime: ler meu

coração

(Jorge da Rosa)

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Prefácio

Qual deve ser o papel do Poder Judiciário em um regime democrático deli-berativo? Quais as funções típicas e atípicas que cabem ao juiz numa sociedade pluralista? O Poder Judiciário no Brasil padece de um déficit político ou trata-se apenas de função atípica decidir sobre temas políticos mais profundos? Função política e papel político institucional são questões que se confundem ou precisam ser separadas para que se possa refletir sobre o papel da jurisdição no âmbito do Estado democrático de direito? Estas são apenas algumas (poucas) das inúmeras e instigantes perguntas que o trabalho O papel do juiz na democracia: ativismo ju-dicial político x ativismo judicial jurisdicional. 500 anos de autoritarismo e o desafio da transição para a democracia no Brasil contemporâneo, de Roberto Basilone Leite, procura responder.

Sem se furtar a espelhar a complexidade que cada uma destas questões envol-vem, o livro que o leitor tem em mãos é um convite à reflexão séria e responsável sobre um tema que vem rondando as preocupações de todos aqueles que se de-dicam a pensar de que forma os mais recentes contornos assumidos pelo judicial review têm alterado as configurações do poder no Brasil. Deve-se destacar desde já que, muito embora o livro seja caracterizado por grande profundidade e erudição, o leitor irá sentir que suas páginas são marcadas por uma linguagem clara e didáti-ca, que torna o trabalho cativante e impossível de ser abandonado. Isso, sem falar nas inúmeras referências e apostas transversais que o texto lança e que nos levam a mundos paralelos e menos conhecidos, marca indelével, não apenas deste, mas de todos os trabalhos de Basilone Leite. Trata-se, portanto, de leitura para lá de prazerosa. Deveríamos dizer (por que não), apaixonante, tal como o leitor poderá ver por si mesmo.

Basilone Leite principia por expor o que ele próprio qualifica como marco teó-rico, qual seja, a concepção de democracia deliberativa de Jürgen Habermas. Este começo pode parecer um tanto espinhoso para aqueles que procuram no livro uma leitura mais dinâmica e contextual. Porém, nada poderia ser mais equivo-cado. A forma simples e clara como o autor expõe o pensamento de Habermas é

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algo surpreendente, notadamente se considerada a complexidade dos principais contornos e conceitos trabalhados pelo filósofo alemão. Esta habilidade de Ba-silone Leite não ocorre por acaso. Há anos ele se debruça sobre o pensamento habermasiano, tendo atingido essa grande densidade no trato do autor. De fato, só um profundo conhecedor do assunto poderia chegar a este nível de sagacidade e clareza que dão ao leitor uma impressão de familiaridade com o tema, ainda que este mesmo leitor seja pouco iniciado em questões filosóficas. Através de Basilone Leite, conceitos como desencantamento do mundo, mundo da vida, esfera pública, sociedade civil, facticidade, validade e, especialmente, democracia deliberativa vão se descortinando até o momento em que adquirem forma de sistema e mostram-se aptos a auxiliar na compreensão dos próximos passos do trabalho. Isto porque, devido ao trabalho diligente de Basilone Leite, após a leitura do texto, até mesmo um leitor iniciante já terá adquirido certa familiaridade com Habermas.

Desse modo, o delineamento do sistema conceitual habermasiano e, fun-damentalmente, do conceito de democracia deliberativa irão permitir que nosso autor faça uma das afirmações mais contundentes e corajosas sobre a trajetória política/institucional brasileira. Sem medo de errar ou ser considerado pouco sen-sível, Basilone Leite afirma que dos 488 anos de história percorridos até 1988, 433 deles transcorreram sob regimes autoritários formalmente estabelecidos no respectivo sistema de direito, de modo que resta apenas um lapso de 55 anos em relação ao qual se poderia questionar se houve ou não democracia. Com efeito, ao investigar e explo-rar minuciosamente a história do Brasil, ele dirá que, se considerado um padrão deliberativo radical, nunca houve democracia no Brasil. Declaração intensa que o autor não se furta por uma página sequer a comprovar. É impressionante como, após a leitura, ficamos com a convicção de que a democracia ainda é um devir na política brasileira, tamanha a força dos seus argumentos.

Por outro lado, ainda que comprovar esta afirmação seja o núcleo do segundo capítulo, é digna de nota a erudição que permeia esta reconstrução histórica. Sem dúvida alguma, o capítulo Estado autoritário e atrofia da esfera pública é um dos pontos altos do livro, tanto pela sua abrangência quanto pela sua profundidade. Ao ler e reler o trabalho de Basilone Leite, tenho a impressão de que este se tornará referência para todos aqueles que esperam que a história do Brasil seja recontada, pelo menos aos olhos dos leitores mais astutos, sem as mediações sedutoras de uma realidade hoje pouco convincente.

Já no terceiro capítulo, e dando continuidade às reconstruções históricas, o autor efetua quase que uma narração secreta. Por mais estranha que esta afirmação possa parecer é essa a sensação que o leitor terá ao percorrer as páginas destinadas a abordar o Poder Judiciário brasileiro. Sempre muito mais conhecidos e debatidos, os poderes Executivo e Legislativo tiveram suas mazelas decantadas de inúmeras formas, enquanto o Poder Judiciário manteve-se (e, em certo sentido, tem se man-tido), por anos a fio, sob o véu do silêncio. Contudo, estando cada vez mais perme-ável à opinião pública, este último começa, a partir do final dos anos 90, a despertar uma curiosidade ímpar tanto naqueles que podem ser considerados estudiosos do tema, quanto nos cidadãos em geral, que passam a demonstrar curiosidade sobre

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aqueles homens de toga e seu linguajar pouco comum. Podemos afirmar, sem dúvida alguma, que o livro de Basilone Leite é tributário deste momento. E isto, claro, não ocorre por acaso. Ao contrário, são vários os motivos. O primeiro deles surge do fato de ser o autor profundo conhecedor do tema. Juiz do trabalho há mais de vinte anos, ele vem acompanhando todas as mudanças que o exercício da jurisdição tem demandado em termos de legitimidade política e argumentativa, não se limitando porém apenas a vivenciá-las, mas também refletindo sobre elas e compartilhando--as. Se pudéssemos nos valer de uma linguagem estranha ao objeto, diríamos que ele é quase um intelectual orgânico do seu mundo.

Não fosse este fato já ser suficiente para credenciá-lo entre os principais au-tores que se dedicam à temática do Poder Judiciário, Basilone Leite rompe estas fronteiras e se mostra um estudioso sério e dedicado, sempre procurando explica-ções complexas para problemas difíceis, sem se contentar com soluções simplistas e perfunctórias. Assim, para o autor não será suficiente conhecer o presente pois, em sua acertada opinião, as respostas somente podem ser encontradas na história desse poder quase invisível. O livro evidencia que o modelo de Poder Judiciário vigente em 1988 no Brasil é o resultado da atuação das mesmas forças que defini-ram o perfil do próprio Estado brasileiro e, por isso, trata-se de um aparato judicial que foi moldado, desde a sua fundação, para atender às necessidades de um Estado autoritário, patrimonialista e discriminatório e que, assim, não está aparelhado para atender às exigências típicas de uma sociedade democrática.

É, portanto, através do firme propósito de revelar o passado que o autor che-ga a minúcias da história política brasileira. Desde as primeiras décadas da co-lonização, passando pela atuação dos jesuítas no processo de evangelização dos índios, analisando a instalação dos primeiros tribunais como forma de atender às demandas da monarquia absoluta e, ainda, demonstrando a pouca influência que as revoluções liberais tiveram no país, Basilone Leite vai percorrendo, até chegar ao modelo atual, os meandros esquecidos da nossa trajetória institucional que per-mitem compor uma moldura séria e responsável sobre o Poder Judiciário e suas relações como o status quo.

Contudo, um dos pontos que merecem maior atenção é aquele no qual o autor remete ao que ele chama de autoritarismo em sentido fraco; isto porque será com base nesse conceito que o autor irá comprovar uma de suas teses principais, já mencionada há pouco, segundo a qual, dos 488 anos de história percorridos até 1988, 433 deles ocorreram sob regimes autoritários formalmente estabeleci-dos pelo sistema de direito, e nem mesmo em relação aos 55 anos que restam (1894-1930 e 1945-1964) seria possível reconhecer o funcionamento sequer de uma democracia formal, uma vez que não estavam presentes várias das condições mínimas necessárias para tal.

Logo, como o leitor poderá ver, é somente a partir do modo como o autor desvenda o passado que se fará possível uma compreensão bem mais profunda de todas as dificuldades que o Poder Judiciário enfrenta na atualidade. De fato, tal

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como veremos no quarto capítulo, o autor foge do maniqueísmo teórico com o qual costuma ser avaliado o judicial review e seus desdobramentos em todo o sis-tema político, propondo uma releitura ampla e profícua do problema a partir das relações que o Poder Judiciário mantém com o Estado de direito e a democracia. Contudo, para falar da riqueza desta parte seria necessário muito mais que um pre-fácio. Na verdade, isto somente poderia ser feito a partir de um estudo detalhado do texto, algo que infelizmente não se pode desenrolar em tão curto espaço. Assim, é imperioso ir direto ao fulcro do capítulo e esperar que o leitor descubra as outras possibilidades latentes no trabalho.

Embora difícil, é preciso, então, apontar para o caminho que Basilone Leite escolhe ao apresentar suas reflexões sobre o Poder Judiciário. Para isto, convém valer-se diretamente dos conceitos cunhados pelo próprio autor para dar conta das dificuldades enfrentadas pela realidade brasileira e que, tal como demonstra-do pelo autor, advém, muitas vezes, de um déficit teórico associado a um déficit político. Isto se dá, como veremos, pela insuficiência da teoria pátria em dar conta dos problemas políticos no Brasil. Com efeito, a partir de um estudo minucioso sobre os contornos, conceitos e dilemas do chamado ativismo judicial lato sensu, o autor propõe distinguir dois tipos de ativismo judicial: por um lado, o ativismo judicial político, e por outro, o ativismo judicial jurisdicional-democrático, isto é, o ativismo judicial que diz respeito às funções eminentemente jurisdicionais típicas do modelo democrático de Estado.

Ao efetuar esta surpreendente distinção, Basilone Leite dá um passo adiante nas já esgotadas abordagens sobre ativismo e comprova que existem duas formas bem distintas de perceber o fenômeno do alargamento das funções judiciais. Essa falta de percepção seria o motivo que vem complicando muito a possibilidade de um entendimento mais claro do tema. O ativismo judicial político corresponde à postura em função da qual o juiz tende a buscar ampliar o campo de abrangência de suas decisões de modo a decidir questões de mérito político, algo muito próxi-mo do modelo americano e que, de fato, por expressar na maioria das vezes valores políticos e um ataque a divisão de poderes, não seria adequado ao modelo demo-crático deliberativo, reforçando, especialmente no Brasil, as principais características perniciosas que marcaram a nossa história.

Já o ativismo judicial jurisdicional consiste na tendência adotada pelo juiz que atua em um Estado pós-autoritário e cujo principal papel seria, então, criar as condições para a garantia efetiva dos direitos dos cidadãos, através da ação jurisdicional propriamente dita, ou seja, tendo em vista decisões que versem não sobre matéria de conteúdo político, mas sobre matéria jurídica relativa à garantia de direitos e sanção de atos ilícitos. Ao estabelecer estes claros limites à ação juris-dicional, Basilone Leite consegue não apenas reconhecer a importância do Poder Judiciário na transição para a democracia, como, especialmente, inseri-lo no con-texto deliberativo. Ao ter suas funções limitadas por um lado, mas ampliadas por outro, os tribunais podem finalmente reconhecer suas funções típicas e exercê-las

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nos seus mais amplos contornos. Essa distinção, além de central no livro, parece ser central para a possibilidade de se construir formas mais eficazes de pensar o Ju-diciário na atualidade, ligando-o, de uma vez por todas, com a cidadania, a justiça, a democracia e, principalmente, a Constituição. Se tudo isto é pedir demais para um livro só, apenas a leitura atenta, à qual convidamos agora o leitor a começar, poderá dizer. Acredito que Basilone Leite fez sua parte neste caminho e trata-se de mérito indiscutivelmente individual.

Finalmente, preciso falar da alegria que representa estar assinando este pre-fácio. Embora todo revisto e reestruturado, este livro é o resultado de um trabalho de pesquisa inesgotável que sustentou a tese de doutorado em Direito do autor e que tive a honra de orientar. Devemos registrar, porém, que não foi um trabalho qualquer mas, pelo contrário, foi um dos melhores textos já apresentados e de-fendidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e que apenas encerra a trajetória brilhante do acadêmico que conheci muito cedo, ainda nas aulas do mestrado.

Este, contudo, é apenas um momento da minha longa e estreita relação com Basilone Leite. Trabalhamos juntos há mais de dez anos, temos dividido angús-tias teóricas e intelectuais, construímos grandes trabalhos e vivenciamos inúmeros projetos. Porém, o que mais compartilhamos foi amizade e admiração. Acredito que sem estes dois ingredientes, algo muito estranho em relações que são constru-ídas na universidade, nada disso teria sido possível. Roberto é amigo incansável, leal e honesto. Acima de tudo, acredito que posso assim dizer, é sua honestidade que nos coloca diante de uma pessoa ímpar. Honestidade esta que também se refle-te no trabalho intelectual brilhante que tive o prazer de ver crescer nestes últimos anos e que apenas começa a nos surpreender.

Por último, este prefácio não estaria completo se não fizesse referência, por um lado, à Beatriz Della Giustina e, por outro, ao grupo de pesquisa Justiça, De-mocracia e Constituição, ao qual todos nossos projetos na UFSC encontram-se vinculados. Sobre Beatriz, posso dizer com toda certeza que é quase uma coautora deste trabalho. Vi-a dividir cotidianamente as angústias do trabalho intelectual e compartilhar diariamente projetos com Roberto. Foi Beatriz quem não deixou que ele desanimasse nem nas horas em que ele poderia ter pensado que até sua orien-tadora o abandonou. Tenho certeza de que, sem a sua presença forte e cuidadosa, este trabalho não seria o mesmo. O mesmo vale para nosso grupo de pesquisa. Sem dúvida, foi de seus laços intelectuais que surgiram vários trabalhos como este, mas foi da amizade profunda que une a todos nós que apareceram os melhores momen-tos destes últimos anos e aquilo que seguramente vamos sempre perpetuar. Assim, este prefácio deve se encerrar não apenas homenageando o autor, mas a história que partilhamos juntos e que Roberto, com seu novo livro, nos ajuda a contar.

Rio de Janeiro, 6 de outubro de 2013.

Cecilia Caballero Lois

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sumário

Introdução............................................................................................................. 19

1. Democracia Deliberativa ................................................................................ 31

1.1. O projeto intelectual de Habermas ........................................................ 33

1.2. Esfera pública política e mundo da vida ................................................ 39

1.3. Teoria discursiva do direito ................................................................... 47

1.3.1. Da razão prática à razão comunicativa ....................................... 47

1.3.2. Teoria discursiva do Direito ....................................................... 55

1.4. Democracia deliberativa ........................................................................ 63

1.5. Condições da deliberação ...................................................................... 69

2. Estado Autoritário e Atrofia da Esfera Pública ............................................. 73

2.1. Cultura autoritária e cultura infracional ............................................... 86

2.1.1. Cultura infracional e responsabilidade do Poder Judiciário ...... 90

2.1.2. Conclusão .................................................................................. 94

2.2. Escravidão, estado colonial e governo hereditário ................................ 95

2.2.1. República e ditaduras formais: 1889, 1930, 1964 ...................... 100

2.2.2. Proibição do voto da mulher (1932) e cassação do PCB (1985) ..................................................................................... 108

2.3. Patrimonialismo no Brasil ..................................................................... 110

2.4. Coronelismo .......................................................................................... 120

2.5. Bacharelismo e positivismo ................................................................... 130

3. Poder Judiciário Brasileiro ............................................................................. 147

3.1. Formação do Poder Judiciário brasileiro ............................................... 148

3.2. Transição para a democracia .................................................................. 170

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4. Déficit Político do Poder Judiciário ............................................................... 173

4.1. Ativismo judicial e judicialização da política ........................................ 177

4.1.1. O dissenso como matéria-prima do processo democrático ........ 196

4.2. A efetividade dos direitos ...................................................................... 211

4.2.1. Procedimentalismo e substancialismo ....................................... 219

4.2.2. Minimalismo judiciário .............................................................. 230

4.2.3. A ilusão da neutralidade judicial ................................................ 238

4.3. Ineficácia e déficit político ..................................................................... 250

4.3.1. Ativismo judicial jurisdicional e déficit político ........................ 251

4.3.2. A deliberação como fator de saneamento do déficit .................. 256

Conclusão ............................................................................................................. 263

Referências ............................................................................................................ 267

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introdução

Platão na verdade só chegou à filosofia pela política e para a política.

(Auguste Diès, 1932)

Há vários anos vínhamos acalentando a incômoda e persistente dúvida acerca do papel que efetivamente cabe ao juiz no âmbito do Estado democrático de di-reito e, em termos mais específicos, no âmbito do Estado pós-autoritário em fase de transição para a democracia, e sobre a consequente questão de saber se o poder judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional decorrente de sua eventual incapacidade para executar de modo razoavelmente eficaz esse papel. Foi tal dúvida que nos motivou a empreender os estudos cujos resultados estão sintetizados neste livro.

Para que possamos saber se existe ou não um déficit político na atuação das varas e tribunais brasileiros, é necessário primeiro delimitar qual o âmbito de atu-ação próprio da jurisdição do ponto de vista político institucional, ou seja, quais funções cabem e quais não cabem ao Poder Judiciário no contexto organizacional do Estado de direito.

Ocorre que a tarefa de fixar os limites da função jurisdicional envolve algu-mas variáveis. Em primeiro lugar, não há como se pretender descrever a priori e em tese a função normativa que, do ponto de vista político institucional, incumbe à jurisdição na estrutura do Estado sem que tenhamos definido antes que modelo de Estado estamos considerando. Com efeito, ao Poder Judiciário de um Estado autoritário ou totalitário são atribuídas funções diferentes das que cabem ao Poder Judiciário de um Estado democrático. Cada tipo de Estado exige que os juízes assu-mam determinadas tarefas, responsabilidades e poderes adequados às necessidades específicas do respectivo regime político. Assim, nossa primeira opção consiste em estabelecer que a análise do papel institucional do Poder Judiciário será efetuada no contexto do Estado democrático de direito, com foco na democracia deliberativa.

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Sem embargo de existirem inúmeras conceituações por meio das quais cada autor procura melhor delinear a ideia de democracia deliberativa, nos concentra-remos nos estudos realizados pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, que ocupam um lugar importante no debate contemporâneo e apresentam certas condições favoráveis à abordagem a que nos propomos, conforme será esclarecido mais à frente. O conceito de democracia deliberativa será adotado, obviamente, em sen-tido normativo, para servir de aporte à descrição teórica e delimitação da função jurisdicional no contexto do mecanismo estatal.

Parece claro que só poderemos apontar a existência de déficit político em determinado aparato judiciário histórico em face de dois parâmetros: a) um pano de fundo que defina quais são as funções típicas dessa instituição, considerando o modelo de Estado no qual ela se insere (para o que consideraremos, portanto, o regime democrático deliberativo), e b) um rol de elementos capazes de demonstrar a deficiência desse poder secular para o desempenho razoavelmente eficaz de tais funções. Indagaremos, assim, se é teoricamente sustentável o postulado de que o Poder Judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional decorrente de sua incapacidade para dar conta das funções típicas que, no contexto democrá-tico deliberativo, cabem a ele, e exclusivamente a ele, desempenhar.

Convém, desde já, ressaltar que a expressão função política do Judiciário é empregada aqui no sentido de delimitação da função institucional que incum-be especificamente a determinado ramo de poder do Estado. O Judiciário é uma instituição estatal e, dessa forma, a constituição reserva a ele determinado rol de competências, poderes e deveres – e dessa forma seu papel político-institucional, no sentido aqui pretendido, é aquele que resulta da distribuição constitucional das funções na estrutura organizacional do aparelho estatal. Procuraremos demons-trar, ao longo da obra, que a função política do Judiciário consiste não em decidir sobre questões de mérito político mas em garantir efetividade aos direitos dos indivíduos e das minorias e, com isso, assegurar validade e efetividade ao sistema de direito do qual depende a integridade do Estado.

A função política da justiça, nesses termos, tem conteúdo jurídico, e não político, muito embora a decisão judicial produza efeitos políticos secundários. Quando aplica a norma constitucional de modo a garantir o direito do cidadão – até mesmo contra uma decisão de mérito político tomada pelos poderes Legislativo ou Executivo – o tribunal está desempenhando sua função política institucional (ou, poderíamos dizer: sua função política em sentido institucional); ao contrário, quando o tribunal profere decisão de mérito político, poderá não estar cumprindo sua função política institucional, porque sua decisão de mérito político poderá estar contribuindo para obstruir o direito de participação dos cidadãos, que representa direito constitucional fundamental de primeira ordem no regime democrático.

Diante disso, poder-se-ia indagar: qual é, então, o lugar da política no âmbi-to do Poder Judiciário? O lugar da política no contexto do Poder Judiciário está, por um lado, na precisa definição do papel político institucional que a ele cabe

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enquanto instituição pública dotada de poderes e deveres e, por outro lado, na obrigação de garantir ao cidadão e às minorias o direito político fundamental de participação. Este raciocínio poderia conduzir à conclusão precipitada e aparen-temente paradoxal de que o lugar da política no Judiciário é um lugar vazio, já que sua função política é “não fazer política”, isto é, não é proferir decisões sobre questões de mérito político, porque tal atitude tolhe o direito fundamental de par-ticipação que o Judiciário deveria estar garantindo ao cidadão e, por conseguin-te, implica uma postura em função da qual o Judiciário descumpre sua função essencial, que consiste em garantir os direitos fundamentais. Mas esse aparente vácuo que ocupa o lugar da política no âmbito da estrutura judicial constitui mera ilusão de ótica, que confunde o observador apenas quando ele assume a postura restritiva de vincular a ideia de política exclusivamente a decisões sobre questões de mérito político; se, ao contrário, buscarmos o lugar da política dentro do Judiciário considerando a política como o espaço institucional que incumbe a determinado órgão componente da máquina estatal e que envolve certo rol de competências, deveres e poderes, esse vácuo aparente desaparecerá, no exato momento em que percebermos que a função política do tribunal não é decidir politicamente, mas sim decidir juridicamente no sentido de garantir os direitos, inclusive os direitos políticos. Neste passo, concluímos que o lugar da política no âmbito judiciário se confunde, de certa forma, com o lugar do direito; está neste subsumido, já que o papel político do juiz consiste em dar efetividade aos direitos, dentre os quais se inclui o direito fundamental do cidadão de participação nas decisões políticas. Tal discussão conduzirá necessariamente ao confronto entre as correntes teóricas substancialista e procedimentalista do direito, que analisaremos oportunamente.

Destarte, o ponto de partida do presente estudo pode ser sintetizado na se-guinte hipótese: considerando que, no Estado democrático deliberativo de direito – como tal compreendido aquele cujo mecanismo de legitimação do exercício do poder político se fundamenta na deliberação pública institucionalizada e orientada segundo regras que incorporam a participação dos cidadãos no processo de produ-ção, interpretação e execução das normas estatais – a função política institucional do Poder Judiciário consiste não em proferir decisões sobre questões de natureza política substantiva ou definição de políticas públicas, mas sim em garantir a) a efetividade dos direitos, dentre os quais se destaca o direito fundamental de parti-cipação livre e argumentativa no processo democrático de discussão e deliberação públicas; b) a efetividade do correspectivo sistema legal de responsabilidades (ac-countabilities system) e c) a regularidade do processo democrático, conclui-se que o Poder Judiciário brasileiro padece de um déficit político institucional porque não se mostra capaz de desempenhar com eficácia suas funções institucionais.

A análise aqui proposta se justifica em face da urgente necessidade de busca de diretrizes teóricas capazes de orientar o Poder Judiciário brasileiro sobre o pa-pel que cabe a ele na atual fase de transição do regime autoritário para o regime democrático. A busca de alicerce doutrinário para essa transição parece oportuna porque esse processo tem se mostrado bastante complexo e problemático em todas

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as sociedades que o enfrentaram. O caso brasileiro é particularmente difícil, por se tratar de um Estado que, depois de cinco séculos de sujeição a regimes não democráticos de tipo autoritário, iniciou em 1988 sua primeira experiência demo-crática consistente, ainda em fase inicial de transição. O Poder Judiciário, como se depreende, foi inteiramente moldado, ao longo de quinhentos anos de história, para servir ao Estado autoritário, e hoje dá sinais evidentes de que não está ade-quadamente organizado, em termos estruturais e funcionais, para cumprir o papel que cabe ao aparato de justiça no âmbito de um Estado democrático. É premente, portanto, tentar esclarecer, nestes primeiros passos da experiência democrática brasileira, que funções e ônus deve, e quais não deve, o Poder Judiciário desem-penhar no contexto de uma democracia, mesmo porque o cumprimento desse seu papel é vital para a própria preservação do regime democrático.

À luz de tais parâmetros, delineia-se como objetivo geral deste livro demons-trar que o Poder Judiciário brasileiro padece de um déficit político que decorre de sua dificuldade episódica para compreender com precisão os limites da função ju-diciária no âmbito do Estado democrático de direito e as obrigações institucionais a ela inerentes e de sua incapacidade para desempenhar com eficácia tal função, dado não se encontrar adequadamente aparelhado para garantir a efetividade dos direitos do cidadão e das minorias, inclusive o direito de participação no processo político, e a efetividade do sistema de responsabilidades e, consequentemente, a validade e efetividade do próprio sistema de direito responsável pela manutenção da integridade do Estado.

O desenvolvimento desse objetivo geral será articulado em quatro objetivos específicos, que estão ordenados em quatro capítulos. No primeiro capítulo, será analisado o conceito de democracia deliberativa nos termos formulados por Haber-mas. Após definido o modelo normativo de democracia que servirá de alicerce para toda a reflexão posterior, no segundo capítulo será descrita a situação empírica atu-al do modelo político em vigor no Estado brasileiro, com o intuito de demonstrar, por meio da brevíssima reconstrução de seu processo de formação, que a sociedade brasileira não experimentou nenhum período de efetiva democracia até outubro de 1988, porque – sem embargo de outras abordagens que também podem levar a essa mesma conclusão – nunca contou com uma esfera pública política suficientemen-te desenvolvida para possibilitar o funcionamento desse tipo de regime político. Valeremo-nos, nesse ponto, do conceito de autoritarismo em sentido fraco.

A história política brasileira será, no primeiro momento, analiticamente de-composta segundo o critério da existência ou não de uma constituição autoritária formal, a fim de trazer a lume um dado evidente do qual, todavia, muitos não se dão conta: dos 488 anos de história percorridos até 1988, 433 deles transcorreram sob regimes autoritários formalmente estabelecidos no respectivo sistema de direito, de modo que resta apenas um lapso de 55 anos em relação ao qual se poderia ques-tionar se houve ou não democracia. O grande desafio lançado no segundo capítulo, na verdade, está em demonstrar que nem sequer os dois momentos intermediários

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da história brasileira em que não nos deparamos com ditaduras formais (isto é, o período de 36 anos compreendido entre 1894 e 1930, e o de dezenove anos, entre 1945 e 1964), muito embora às vezes as respectivas elites governantes tenham tido o cuidado de maquiar o regime com alguns traços caricatos de democracia, não é possível reconhecer ali o funcionamento nem mesmo da chamada democracia formal, porque não estavam então presentes sequer as condições formais mínimas para tal reconhecimento, já que não havia um espaço público comunicativo no qual pudesse ocorrer a formação racional da vontade e da opinião. Com efeito, a democracia substantiva pressupõe a razoável efetividade dos direitos fundamen-tais; contudo, mesmo na democracia formal, embora não se consiga alcançar esse exigente objetivo, os cidadãos ao menos exercem o direito político elementar de participação política por meio do voto livre e efetivo – o que não ocorria no Brasil nos mencionados subperíodos pretensamente democráticos. Para demonstrar a veracidade deste postulado de que, até 1988, não houve democracia no Brasil, buscar-se-á apoio em análises que serão efetuadas com base em certos conceitos que denotam as características antropológicas mais marcantes da tradição e da cul-tura sociopolíticas brasileiras, que são o escravismo, o patrimonialismo e o bacha-relismo – o que, de resto, exigirá algumas referências às influências filosóficas que afetaram a evolução do pensamento político no país, sobretudo a do positivismo.

O terceiro capítulo se destina a investigar a influência da tradição política bra-sileira, caracterizada pelo autoritarismo, na formação do Poder Judiciário. Por fim, no último capítulo será desenvolvida a hipótese de que o Poder Judiciário brasilei-ro, em razão de características organizacionais e funcionais herdadas dos regimes políticos autoritários no interior do qual esse Judiciário se forjou e se moldou ao longo de quinhentos anos, se mostra incapaz de realizar com eficácia as funções institucionais que a ele competem no contexto do novo modelo adotado em 1988. Para isso, no entanto, será necessário antes traçar uma definição do papel político institucional que cabe ao poder judicial no contexto do Estado democrático, o que será abordado à luz da atual polêmica em torno do ativismo judicial, de modo a demonstrar que a prática da prolação de decisões judiciais que impliquem inter-ferência do Judiciário em questões de mérito político ou na definição de políticas públicas representa desvio das funções institucionais que cabem a ele dentro de um contexto democrático e que, por isso, o ativismo judicial político constitui um comportamento nocivo à consolidação e manutenção da democracia.

Considerando que o tema do ativismo judicial será recorrente neste estu-do, cabe estabelecer desde já, em termos sintéticos, certos delineamentos teóri-cos sobre o fenômeno. Interessa, em primeiro lugar, alertar para uma imprecisão conceitual que temos observado nos estudos sobre o tema desenvolvidos no Bra-sil, aparentemente devido ao costume de se traduzir a expressão inglesa “judicial activism” simplesmente como “ativismo judicial”. A expressão judicial activism (“ativismo judicial”) – da mesma forma que a expressão judicialization of politics (“judicialização da política”) – foi proposta na obra The global expansion of judicial

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power (“A expansão global do poder judicial”, 1997)(1), na qual Chester Neal Tate e Torbjörn Vallinder, professores de ciência política da University of North Texas e da Lunds Universitet da Suécia, respectivamente, analisaram o fenômeno da inter-ferência dos juízes nas questões de mérito político.

Qual a diferença entre judicialization of politics e judicial activism, no sentido adotado naquela obra? Judicialization of politics (“judicialização da política”) é o processo político, que se acentuou no mundo nas últimas décadas, em função do qual o poder constituinte ou parlamentar amplia a área de atuação dos tribunais, juridicizando setores da vida política, social e econômica que antes não estavam sujeitos à ação judicial. A judicialização da política não é obra dos juízes; estes são simplesmente designados pelo poder político para decidir certas questões de mé-rito político. Já o judicial activism (“ativismo judicial”), diferentemente, implica uma postura voluntariamente assumida pelo juiz no sentido de atuar de modo politicamente ativo e optar por atitudes e procedimentos tendentes a ampliar a competência do órgão judiciário de modo a alcançar questões de conteúdo polí-tico. A judicialization of politics, portanto, é uma tendência política revelada pela sociedade no sentido de ampliar a competência do Poder Judiciário, de modo que o juiz é mero destinatário das respectivas mudanças legislativas. O judicial activism não corresponde à tendência política da sociedade propriamente, mas à tendência pessoal do juiz no sentido de ampliar o seu próprio campo de atuação institucio-nal, independentemente de qualquer alteração legislativa.

Até aqui, a distinção é bem nítida e não apresenta maiores problemas. O pró-prio conceito de ativismo judicial, no entanto, é que, ao ser importado da doutrina anglo-saxã, precisa ser submetido a uma reflexão mais profunda à luz da realidade política brasileira. Os juristas norte-americanos, sobretudo, debatem sobre o judi-cial ativism no contexto de um Estado em que a democracia vem se desenvolven-do desde antes de sua fundação e que conta, portanto, com um Poder Judiciário dotado de estrutura bastante diferente daquela existente no Brasil. A estrutura judiciária norte-americana foi erigida sobre as bases de um Estado democrático fundado no século XVIII e adequada aos objetivos e necessidades desse tipo de regime. Basta ler os federalist papers,(2) que contêm parte dos debates constituintes travados na época da Revolução Americana (1775-1783), para se verificar a forte influência do pensamento democrático liberal na elaboração da primeira Cons-tituição dos Estados Unidos da América. Conforme tentaremos demonstrar nos capítulos seguintes, o Poder Judiciário brasileiro, nos termos em que se encontrava estruturado em 1988, foi o resultado de uma construção desenvolvida ao longo de quinhentos anos de autoritarismo político e moldada para atender às exigências

(1) TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn (Eds.). The global expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995, p. 1 e 33.

(2) HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The federalist papers: includes a copy of the Constitution with cross-references. Introduction and notes by Charles B. Kesler; edited by Clinton Rossiter. First Signet Classics print. New York: Signet Classic, 2003 [1961], 650 p.

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do modelo autoritário. Por isso é que o judiciário se mostra de certa forma incapaz de cumprir a função elementar que a ele incumbe em um contexto democrático, que consiste na função de garantir os direitos ou, em outras palavras, assegurar efetividade ao sistema de direito, o que pressupõe dar conta de proferir, com agili-dade, acerto e eficácia, a avalanche de decisões sobre questões puramente jurídicas (não políticas) exigidas pela sociedade recém-democratizada. Essa constatação an-tropológica produz efeitos importantíssimos na compreensão do tema do ativismo judicial, sobretudo quando pretendemos importar conceitos alienígenas, desenvol-vidos no ambiente da Common Law, sem refletir sobre as necessárias adaptações ao nosso contexto jurídico e histórico.

Assim, convém desde já estabelecer a seguinte distinção, imprescindível para a compreensão do problema. No que tange à realidade brasileira, marcada por certo déficit de jurisdição, temos de distinguir dois tipos de ativismo judicial: por um lado, o ativismo judicial político, e por outro, o ativismo judicial jurisdicional--democrático, isto é, o ativismo judicial que diz respeito às funções eminentemente jurisdicionais típicas do modelo democrático de Estado. Por razões práticas, o ativismo judicial jurisdicional-democrático será referido neste estudo, doravante, simplesmente como ativismo judicial jurisdicional.

O ativismo judicial político corresponde à postura em função da qual o juiz tende a buscar ampliar o campo de abrangência de suas decisões de modo a deci-dir questões de mérito político, de modo que – da mesma forma que ocorre com a noção de judicial activism no ambiente democrático anglo-americano – “pode-se esperar que aproveite cada oportunidade para usar suas decisões no sentido de privilegiar os valores políticos que ele preza”.(3) Já o ativismo judicial jurisdicional consiste na tendência adotada pelo juiz que atua no ambiente judiciário de um Es-tado pós-autoritário, ambiente esse inapto para permitir que se garanta efetividade aos direitos dos cidadãos, de dedicar especial ênfase no sentido de ampliar os limi-tes tradicionais – portanto, pré-democráticos – da ação judiciária no desempenho da atividade jurisdicional propriamente dita, ou seja, tendo em vista decisões que versem não sobre matéria de conteúdo político, mas sobre matéria puramente jurí-dica relativa à garantia de direitos e sanção de atos ilícitos (accountabilities system).

Cinco séculos de autoritarismo, desdobrados a partir do modelo de governo monárquico absolutista, patrimonialista e bacharelista implantado pelo coloniza-dor português, moldaram o aparato judiciário brasileiro segundo as necessidades características dessa espécie de Estado, o que significa dizer, um aparato judiciário incapaz de assegurar eficazmente os direitos e liberdades fundamentais do cida-dão e, portanto, incapaz de cumprir a função típica elementar do Poder Judiciário no Estado democrático. Em 1988, marco instaurador da fase de transição para a democracia, a estrutura do poder judiciário brasileiro havia sofrido poucas altera-ções, algumas das quais destinadas a adaptá-lo às contingências estabelecidas pelas

(3) TATE et al., p. 34.

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ditaduras militares republicanas ao longo do século XX. A esse Poder Judiciário foi que a sociedade brasileira passou a dirigir seu clamor por “ativismo judicial”, tanto pela voz de juristas e intelectuais quanto pela dos cidadãos comuns; todos esperam do judiciário que passe, agora, a assegurar a efetividade dos direitos, que nunca foi assegurada, o que inclui, por exemplo, o anseio de ver reduzidos a patamares aceitáveis o nível de corrupção nas relações intersubjetivas e a sensação geral de impunidade, responsável pela perda da credibilidade do próprio sistema de direito do qual depende a manutenção da integridade do Estado.

Não há dúvida, portanto, de que a sociedade do Brasil pós-autoritário em fase de transição para a democracia clama pelo ativismo dos juízes. Clama por um judiciário que seja reaparelhado e reinventado de modo a se tornar eficaz, forte e ágil; um judiciário “ativista”. Porém, o ativismo que a sociedade pede é o ativismo judicial jurisdicional, o ativismo de uma justiça que se mostre forte e eficaz para garantir os direitos dos cidadãos, para punir os ofensores dos direitos alheios e, as-sim, reduzir os assombrosos índices de corrupção e de impunidade. Essa sociedade clama não por um ativismo judicial político, isto é, não por um judiciário que se acredite representante da opinião pública e passe a se arrogar à tarefa paternalista de definir soluções de mérito político substituindo-se à sociedade e assim obstruin-do ainda mais o já quase inexistente debate público, mas por um judiciário que, ao contrário disso, contribua para que sejam criados espaços e mecanismos de per-suasão que permitam e estimulem a participação do cidadão nas decisões políticas públicas, sobretudo no sentido de expor suas opiniões dissidentes e sugestões crí-ticas. Em suma, o cidadão do Estado pós-autoritário sente falta de jurisdição pura e simples, não de juízes arrogados em representantes da opinião pública. Ao mesmo tempo – e ratificando a afirmação anterior –, no que tange à dimensão política da cidadania, o cidadão brasileiro sente falta de espaços viáveis e mecanismos eficazes de participação nas decisões políticas, contudo isso não se confunde com um su-posto anseio social por ativismo judicial político; estamos diante de pleitos sociais diferentes: por um lado, o cidadão do Estado pós-autoritário pugna por um judi-ciário que cumpra com eficácia, com ativismo, seu papel puramente jurisdicional e, por outro lado, pugna pela criação de espaços de participação política até agora inexistentes, o que pressupõe que os juízes se abstenham de continuar a obstruir esses espaços até então ocupados por agentes do poder executivo, isto é, que os juízes se abstenham de adotar a postura paternalista do ativismo judicial político.

É equivocada, portanto, a ideia que confunde esses dois pleitos sociais (ativis-mo judicial jurisdicional e direito de participação) quando conclui que a instituição do necessário espaço de participação do cidadão pode-se considerar concretizada por meio da transferência para o âmbito judiciário das decisões sobre questões de conteúdo político, em vez de se transferi-las para o âmbito discursivo da própria sociedade.

Portanto, se se quiser abordar com propriedade o tema ativismo judicial no Brasil, temos de trabalhar com duas categorias – ativismo judicial político e ativis-mo judicial jurisdicional –, o que traz diversas implicações. Por exemplo: podemos

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distinguir a figura do juiz politicamente ativista, que tende a expandir sua atuação judiciária de modo a abranger matérias de mérito político, da do juiz jurisdicional-mente ativista, que tende a expandir sua atuação judiciária de modo a buscar a má-xima efetividade em matéria eminentemente jurídica. No outro extremo, teremos o juiz politicamente passivista e o juiz jurisdicionalmente passivista, que representam a tendência respectivamente oposta, minimalista.

A falta de precisão e rigor semântico na classificação do ativismo judicial no Brasil tem gerado problemas teoricamente importantes relacionados à compreen-são do tema. Ao não distinguir o ativismo judicial político do ativismo judicial juris-dicional, a doutrina brasileira incide em conclusões equivocadas: os defensores de um “ativismo judicial” genérico afirmam que o juiz que se entende incompetente para proferir decisões sobre questões de mérito político, ou seja, o juiz que não pratique o que a doutrina brasileira chama genericamente de ‘ativismo judicial’, é um “juiz ineficaz”, pois, segundo essa ótica, “o passivismo do Judiciário é contrário ao interesse social na promoção da justiça”.(4) De fato, pode parecer, à primeira vista, que a expressão “juiz eficaz” tem o mesmo significado que “juiz ativista”, mas essas qualidades não se confundem. Se empregarmos a terminologia mais precisa, veremos que um juiz politicamente ativista (que tende a proferir decisões sobre matérias de conteúdo político e definição de políticas públicas) pode se mos-trar ineficaz e brando na tarefa de decidir questões não políticas e eminentemente jurídicas, como aquelas relativas à garantia de direitos fundamentais e sanção do ato ilícito, ao passo que um juiz politicamente passivista (que se considera incom-petente para invadir a área de decisão que ele entende afeta à opinião pública), pode ser extremamente eficaz e rigoroso no que tange às decisões sobre matéria eminentemente jurídica e, portanto, no desempenho da função de assegurar os direitos dos cidadãos, a regularidade do processo democrático e implementar a responsabilização dos infratores, ressaltando-se que ele talvez opte pela postura politicamente passivista justamente por entender que o contrário disso implicaria tolher o direito fundamental de participação do cidadão.

É evidente que, na prática, essas tendências não se encontram em estado puro, mas podem ser percebidas em diferentes medidas na mesma pessoa, mas estigmatizar como “ineficaz” o juiz que não é politicamente ativista denota impre-cisão conceitual, decorrente do uso impróprio das expressões ativismo judicial e eficácia judicial no contexto jurídico brasileiro. Possivelmente, quando se refere ao “juiz passivista” como um “juiz ineficaz”, a doutrina pretende se referir ao juiz jurisdicionalmente passivista, que se conforma com os limites da atuação judiciária herdados da tradição autoritária mas inadequados para o ambiente democrático.

O Supremo Tribunal Federal proferiu, em 23 de outubro de 2012, decisão de grande repercussão pública e valor simbólico no que diz respeito à importância do

(4) CAMBI, Eduardo. Neoprivatismo e neopublicismo a partir da Lei 11.690/2008. Revista de Processo, São Paulo, v. 34, n. 167, jan. 2009, p. 29.

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Poder Judiciário para o Estado democrático de direito. Naquela decisão, o Tribunal, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa, condenou, por crime de corrupção, membros do primeiro escalão do partido político que exercia o governo da repú-blica.(5) É interessante notar que essa decisão versou sobre questão eminentemente jurídica, consistente na análise de prática de crimes contra o erário. O objeto da decisão não envolve tema de conteúdo político, mas estritamente jurídico penal. Decisão de conteúdo político seria, por exemplo, aquela relativa à conveniência de se destinar certa área pública à implantação de uma praça aberta de esportes, uma penitenciária ou um shopping center. Isto seria decisão de conteúdo político. Decidir, no entanto, se determinado cidadão exercente de cargo estatal praticou ou não certo delito no exercício das funções públicas consiste em ato decisório de ca-ráter estritamente jurídico, ainda que o acusado exerça cargo político de primeiro escalão. O fato de a decisão produzir efeitos políticos não se confunde, de forma nenhuma, com a natureza substantiva da matéria decidida, mesmo porque toda sentença judicial sobre qualquer matéria de natureza puramente jurídica produz, em maior ou menor grau, efeitos políticos na comunidade em que ela é proferida. O que importa distinguir aqui é a natureza da prestação jurisdicional, ou seja, é identificar com precisão técnica se o juiz decidiu matéria de conteúdo político ou jurídico. Ao decidir se determinado cidadão, no exercício de cargo político, prati-cou certo delito, o tribunal está exercendo estritamente a função institucional que incumbe ao Poder Judiciário na democracia e para a qual ele foi criado, que é de-cidir sobre questões jurídicas – independentemente das repercussões de natureza política que essas decisões possam acarretar.

Pois bem, o que se quer destacar é que a referida decisão do Supremo Tribu-nal não revela ativismo político judicial, embora aponte na direção de um ativismo judicial jurisdicional, ao orientar as instâncias judiciais inferiores no sentido de

(5) “Decisão: Prosseguindo no julgamento quanto ao item II da denúncia, o Tribunal, por maioria, julgou procedente a ação para condenar pelo delito de formação de quadrilha (art. 288 do Código Penal) os réus José Dirceu de Oliveira e Silva, Delúbio Soares de Castro, José Genoíno Neto, Ramon Hollerbach Cardoso, Cristiano de Mello Paz, Rogério Lanza Tolentino, Simone Reis Lobo de Vasconcelos, José Roberto Salgado, Kátia Rabello e Marcos Valério Fernandes de Souza, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski (Revisor), Rosa Weber, Cármen Lúcia e Dias Toffoli, julgando-a improcedente para ab-solver do mencionado delito, por unanimidade, à ré Ayanna Tenório Tôrres de Jesus, por unanimidade, e, por maioria, a ré Geiza Dias dos Santos, vencido o Ministro Marco Aurélio, ambas as absolvições com base no art. 386, VII, do Código de Processo Penal. Ressalvados os votos dos Ministros Revisor, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Dias Toffoli que absolviam com base no art. 386, III, do CPP. Com relação ao réu Vinícius Samarane, acompanharam o voto do Ministro Joaquim Barbosa (Relator), julgando pro-cedente a ação para condená-lo pelo mencionado delito de formação de quadrilha, os Ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ayres Britto (Presidente), e acompanharam o voto do Ministro Ricardo Lewandowski (Revisor) os Ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Dias Toffoli e Marco Aurélio, julgando improcedente a ação para absolvê-lo com base no art. 386, III, do CPP. Em seguida, o julga-mento foi suspenso. Presidência do Senhor Ministro Ayres Britto (Presidente). Plenário, 22.10.2012” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual. Ação Penal 470, de 12 nov. 2007. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProces-soAndamento.asp?incidente=11541>. Acesso em: 2 nov. 2012).

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que os juízes devem ser rigorosos e implacáveis ao dar efetividade ao sistema de responsabilidades (accontabilities system) mediante a aplicação das sanções legais àqueles que ofendem a lei e os direitos de seus concidadãos e, com isso, garantir efetividade a estes direitos. Isto é ativismo judicial jurisdicional, que não se confun-de com ativismo judicial político. É pelo primeiro que a sociedade do Brasil pós--autoritário anseia; o segundo, ao contrário, contribui para preservar aquilo que Habermas chama de atrofia da esfera pública.

São esses os esclarecimentos iniciais que se mostravam convenientes, razão pela qual daremos início às reflexões propostas, passando de imediato à delimita-ção do conceito de democracia deliberativa.

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1.

democrAciA deliberAtivA

O conceito de democracia deliberativa, formulado com base na concepção de Jürgen Habermas, se constrói sob a perspectiva da relação entre Estado, esfera pública e sociedade civil. Tal conceito servirá como suporte teórico para as aná-lises que empreenderemos neste estudo, relativas à função institucional do poder judiciário no Estado democrático, à identificação do modelo político brasileiro e sua evolução e ao grau de eficácia do sistema judiciário brasileiro para cumprir seu papel político institucional. As diversas conceituações de democracia deliberativa têm em comum a proposta de instituição de formas alternativas de participação comunicativa que atuem concomitantemente com os tradicionais mecanismos de representação.(1)

A democracia deliberativa é adotada aqui como modelo normativo por nos parecer o mais apto para eliminar ou reduzir sensivelmente o déficit político do Estado e, em especial, do poder judiciário brasileiro. Isso porque a tradição política brasileira se caracteriza pela ação constante dos centros de poder político e econô-mico no sentido de constringir os espaços de comunicação pública. Diante disso, parece adequado adotar a democracia deliberativa como modelo normativo para o presente estudo, por se tratar de um regime político que tem como postulado central justamente a ampliação dos espaços comunicativos da sociedade e que se

(1) SUNSTEIN, Cass. Designing democracy: what constitutions do. New York: Oxford University Press, 2001. COHEN, Joshua. Philosophy politics democracy: selected essays. Cambridge, Massachusetts (USA): Harvard University Press, 2009, p. 158. BOHMAN, James; REHG, William (Eds.). Deliberative democracy: essays on reason and politics. Cambridge, Massachusetts (USA): Massachusetts Institute of Techno-logy Press, 1997, p. 67. GUTMANN, Amy; THOMPSON, Dennis Frank. Why deliberative democracy? Princeton (New Jersey, USA): Princeton University Press, 2004, p. 3. ELSTER, Jon. Introduction. In: ELSTER, Jon (Ed.). Deliberative democracy. New York: Cambridge University Press, 1999, p. 8. FEARON, James D. Deliberation as discussion. In: ELSTER, Jon (Ed.). Deliberative democracy. New York: Cam-bridge University Press, 1999, p. 44. PRZEWORSKI, Adam. Deliberation and ideological domination. In: ELSTER, Jon (Ed.). Deliberative democracy. New York: Cambridge University Press, 1999, p. 140.

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baseia na ideia de que o exercício do poder político encontra sua legitimação no processo de deliberação orientado pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa e da autonomia política.

Adiantemos alguns comentários sobre esses conceitos operacionais.

O princípio da inclusão diz respeito à possibilidade de acesso dos cidadãos ao processo de produção das normas públicas às quais estará sujeito; o tema está ligado às noções de ação comunicativa e de participação política, estruturantes do pensamento habermasiano, que serão desenvolvidas mais à frente.

Quando se refere a sociedade pluralista, Habermas tem em mente a sociedade contemporânea em seu momento de desencantamento, em função do qual ela se vê destituída dos pontos de apoio nos quais outrora se ancoravam as pretensões de legitimidade do poder político. Dessa forma, sociedade pluralista é aquela na qual “as próprias éticas coletivamente impositivas e as cosmovisões se desintegraram e onde a moral pós-tradicional da consciência, que entrou em seu lugar, não oferece mais uma base capaz de substituir o direito natural, antes fundado na religião ou na metafísica”.(2)

O processo de desencantamento do mundo, descrito por Weber na obra Ge-sammelte Aufsätze zur Religionssoziologie (“Estudos reunidos sobre a sociologia das religiões”, 1920-1921), marca a separação histórica entre Estado e religião, entre razão e magia e entre legalidade e moralidade, que foi provocada pela preponderân-cia, na cultura moderna, da racionalidade sobre as outras formas de conhecimento. Até o século XVII, a metafísica e a religião, por meio de éticas coletivamente im-positivas e de cosmovisões sacras e míticas, garantiam uma base de sustentação ao direito natural, que, assim, conseguia assegurar satisfatoriamente a integração so-cial. Com o advento da modernidade, essas éticas e cosmovisões se desintegraram e foram substituídas pela moral pós-tradicional da consciência, a qual, por não ser dotada de impositividade e não exercer influência persuasiva sobre os indivíduos, não oferece mais fundamento para o direito natural. Sociedade pluralista, nesse sentido, é aquela em que cada indivíduo ou grupo age em consonância com seu próprio projeto existencial ou visão de mundo, sem se sujeitar a nenhuma norma ética ou religiosa. Como a metafísica e a religião não são mais capazes de justificar a normatividade das regras jurídicas nesse tipo de sociedade, torna-se necessário encontrar outra justificação de cunho racional – que Habermas encontrará na ra-zão comunicativa.

Tanto a noção de igualdade quanto a de participação em Habermas pressu-põem a compreensão prévia da ideia de competência comunicativa. Desde já cabe ressaltar que a igualdade em Habermas é precisamente o elemento que pode ampa-rar a pretensão de legitimidade do direito moderno. Trata-se de um conceito de na-tureza procedimentalista, na medida em que seu conteúdo depende de um consenso

(2) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factibilidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p. 308.

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construído discursivamente, que, por isso, não pode ser suficientemente explicado apelando-se apenas às propriedades lógico-semânticas de leis expressas em termos universalistas, já que a “forma gramatical de mandamentos universais nada diz so-bre sua validade”;(3) a noção de igualdade jurídico-material exige que a norma seja do interesse simétrico de todos, ou seja, que a norma tenha o sentido de uma acei-tabilidade racional: todos os possíveis afetados devem poder com ela consentir, com base em razões que considerem suficientes para justificar tal consentimento. A expectativa de viabilização de um projeto de sociedade justa, que se fundamenta simultaneamente no princípio da igualdade e no princípio da liberdade, não está ligada nem à subjetividade das concepções individuais de bem, prioritária para os li-berais, nem à intra-subjetividade(4) dos valores culturais que conformam as identida-des sociais, prioritária para os republicanos, nem tampouco à objetividade científica almejada pelo positivismo;(5) está ligada, sim, à intersubjetividade dos membros de uma comunidade jurídica na qual tanto a subjetividade liberal e a intra-subjetividade republicana quanto a objetividade positivista estão submetidas a um amplo debate público que as sujeita a crítica e as compatibiliza – debate esse do qual emanam as normas cujos destinatários são os seus próprios autores.

Por fim, a autonomia política do cidadão resulta do princípio da soberania po-pular e se expressa sob a forma de autolegislação, entendida como o procedimento em virtude do qual “os que estão submetidos ao direito, na qualidade de desti-natários, possam entender-se também enquanto autores do direito”.(6) De modo simultâneo, o sujeito é dotado de autonomia privada, a qual é garantida por um sistema constitucional e jurídico de proteção de direitos humanos ou “liberdades de ação subjetiva”,(7) que correspondem aos clássicos direitos à vida, à liberdade e à propriedade e visam assegurar a auto-realização do indivíduo.

A concepção habermasiana de deliberação deve ser compreendida a partir de sua teoria da competência comunicativa, que se apóia nas noções de esfera pública, ação comunicativa e racionalidade comunicativa. Por isso, nos tópicos seguintes explanaremos sobre essas noções.

1.1. O PROJETO INTELECTUAL DE HABERMAS

Optou-se por adotar aqui conceitos operacionais formulados por Habermas porque se pretende focar a questão da atrofia da esfera pública deliberativa e da

(3) HABERMAS, 1997, v. I, p. 137.

(4) CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos de filosofia constitucional contemporânea. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 85.

(5) HABERMAS, Jürgen. La lógica de las ciencias sociales. Traducción de Manuel Jiménez Redondo. 3. ed. 2 reimpr. Madrid: Tecnos, 2001a, p. 338-339.

(6) Id., 1997, v. I, p. 157.

(7) Ibid., p. 113.

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ausência de espaços comunicativos, que caracteriza Estados de tradição autoritária como o Brasil. De fato, o referido filósofo, ao longo de sua carreira acadêmica, de-senvolveu estudos importantes sobre esses temas – esfera pública e ação comuni-cativa –, que têm servido de referência para pesquisadores em todo o mundo. Além disso, sem embargo do caráter universalista de que se revestem suas abordagens teóricas, certas decisões fundamentais de Habermas – a começar pela escolha dos assuntos nos quais concentrou seus estudos – foram influenciadas pela situação política vivenciada pela Alemanha na época em que ainda era estudante, conforme ele próprio revelou no ensaio Der deutsche Idealismus der jüdischen Philosophen (“Do Idealismo alemão e seus filósofos judeus”, 1961):(8)

Aos quinze ou dezesseis anos de idade, sentado diante do rádio, eu es-cutava os debates que se desenvolviam no Tribunal de Nuremberg; naquele momento, as demais pessoas presentes, em lugar de prosternar-se em silêncio diante das atrocidades reveladas, compraziam-se em contestar a legitimidade do Tribunal, em debater sobre questões de procedimento e de competência jurisdicional; essa experiência, que representou minha primeira ruptura pes-soal, causou-me uma estupefação que perdura até hoje.(9)

A situação histórica enfrentada pelo povo alemão à época guarda importan-tes semelhanças com o momento vivido atualmente pela sociedade brasileira. Em 1945 – época em que Habermas contava com 16 anos de idade(10) –, a nação ger-mânica saía da ditadura nazista e iniciava o processo de transição para o regime democrático. Por sua vez, o Estado brasileiro vivenciou sua última ditadura militar até 1988 e se encontra hoje em processo de transição do autoritarismo para a de-mocracia. É certo que a evolução e o perfil cultural da Alemanha e do Brasil são diferentes; no entanto, os processos de transição democrática guardam certas si-militudes, pois a tarefa da sociedade nesses casos normalmente consiste, em linhas gerais, em criar novos mecanismos que instaurem a possibilidade de exercício dos direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade de expressão e o direito de par-ticipação, no contexto de um Estado cuja estrutura administrativa está organizada de acordo com as exigências do regime autoritário que vigorava anteriormente.

(8) Id. L’idealisme allemand et ses penseurs juifs. In: ______. Profils philosophiques et politiques. Trad. par Françoise Dastur, Jean-René Ladmiral et Marc B. de Launay. Paris: Gallimard, 1974, p. 51-86.

(9) Ibid., p. 82-83.

(10) Habermas nasceu em Düsselford, no noroeste da Alemanha, a 18 de junho de 1929. Cursou a universidade em Gottingen, Zurich e Bonn. Doutorou-se em 1954, na Universidade de Bonn, sob a orientação do professor humanista Erich Rothacker, com a tese intitulada Die Dialektik der Rationalisie-rung. Vom Pauperismus in Produktion und Konsum (“Dialética da racionalização: a miséria nos setores da produção e do consumo”), que versava sobre a filosofia da história de Schelling. Percebe-se que desde aquela época Habermas já se interessava pelos dois temas que balizam toda a sua obra: a “dialética” – que leva à teoria da comunicação – e a “racionalização”, que implica o conceito de razão. Essa tese foi publicada na revista Merkur, Frankfurt am Main, ano VIII, p. 701-724, 1954.