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5/21/14 1 Camilo Venturi ! A psicopatologia no século XX e XXI é marcada por linhas de acontecimentos fundamentais: 1. Emergência dos paradigmas psicodinâmico e fenomenológico, mais interessados na experiência dos sujeitos do que na dimensão objetiva da patologia mental; 2. A criação da psicofarmacologia, à partir da segunda metade do século XX, que revolucionou os tratamentos para as perturbações mentais; 3. A expansão das categorias psicopatológicas para os problemas do cidadão comum e a emergência do psiquiatra de consultório; 4. O surgimento e o crescimento do movimento da antipsiquiatria no mundo, que questionava a legitimidade do saber psicopatológico; 5. O desmonte do modelo asilar e a proposta da sua substituição por estruturas extra-hospitalares de cuidado; 6. A chamada remedicalização da psiquiatria, balizada pela sua adequação aos parâmetros do restante da medicina, seja pela adoção de sistemas diagnósticos precisos (DSMs), seja pela adoção de metodologias de pesquisa científicas (duplo-cego, análise estatística, etc.)

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Camilo Venturi

!  A psicopatologia no século XX e XXI é marcada por linhas de acontecimentos fundamentais: ◦  1. Emergência dos paradigmas psicodinâmico e fenomenológico, mais

interessados na experiência dos sujeitos do que na dimensão objetiva da patologia mental; ◦  2. A criação da psicofarmacologia, à partir da segunda metade do século

XX, que revolucionou os tratamentos para as perturbações mentais; ◦  3. A expansão das categorias psicopatológicas para os problemas do

cidadão comum e a emergência do psiquiatra de consultório; ◦  4. O surgimento e o crescimento do movimento da antipsiquiatria no

mundo, que questionava a legitimidade do saber psicopatológico; ◦  5. O desmonte do modelo asilar e a proposta da sua substituição por

estruturas extra-hospitalares de cuidado; ◦  6. A chamada remedicalização da psiquiatria, balizada pela sua

adequação aos parâmetros do restante da medicina, seja pela adoção de sistemas diagnósticos precisos (DSMs), seja pela adoção de metodologias de pesquisa científicas (duplo-cego, análise estatística, etc.)

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!  Façamos uma rápida recapitulação: aquilo a que estou me referindo como paradigma organicista procurava fazer correlações entre um conjunto de sinais e sintomas e lesões anatômicas. Em outra vertente, Kraepelin tinha por interesse criar modos estáveis de diagnosticar as patologias psiquiátricas. De toda forma, perseguia-se formas objetivas de se capturar o fenômeno psicopatológico, em acordo com o modelo anátomo-clínico.

!  Vimos que durante todo o século XIX os psiquiatras estavam preocupados exclusivamente com casos gravíssimos de psicose e com as melancolias severas. Trabalhavam primordialmente em manicômios que, pouco a pouco, se tornavam verdadeiros depósitos de gente. Outras categorias, como “nervos”, “neurastenia”, “histeria” eram não-específicas, inclusivas, e tratadas por médicos que não se identificavam como psiquiatras e sim, como neurologistas. Estes utilizavam tratamentos que enfatizavam técnicas somáticas, que incluíam o repouso, as dietas, a eletricidade, etc. Era culturalmente impossível ao cidadão comum formular as suas queixas e o seu sofrimento quotidiano em termos psiquiátricos, justamente porque uma psiquiatria do sofrimento quotidiano ainda não existia.

!  O arsenal terapêutico da psiquiatria era muito limitado. Além da crença no poder curativo da disciplina e do isolamento, utilizava-se desde meados do século XIX até meados do século XX tratamentos farmacológicos experimentais: inicialmente, utilizava-se alcalóides (Ex.: morfina, hiosciamina), o hidrato de cloral, os brometos, etc. Todos esses componentes tinham apenas função sedativa, colocando os pacientes para dormir, ou em estado de torpor. Paralelamente, se tentou tratamentos exóticos, como a injeção de sangue contaminado com malária e a indução de convulsão pela insulina (Este último esteve na origem do eletrochoque).

!  Como vimos no vídeo “A Invenção da Psicanálise”, de E. Klapnist e E. Roudinesco, a psicanálise emergiu como um paradigma distinto. Talvez a grande invenção tenha sido a inclusão da dimensão do sentido no campo da psicopatologia: observar um sintoma é se interrogar sobre o significado deste, isto é, sobre o que o sintoma quer dizer e como este se enraíza na biografia e nas vivências de um sujeito singular. O sujeito, por sua vez, seria fundamentalmente marcado pelo conflito, e o sintoma, uma tentativa fracassada de encontrar uma saída para os seus conflitos. A tarefa do analista freudiano da primeira geração era, junto com o sujeito, interpretar o sentido de uma formação sintomática, de modo a descobrir o tipo de conflito que a estaria produzindo.

!  Paralelamente, o paradigma da fenomenologia (K. Jaspers; K. Schneider; E. Minkovski, etc.) também colocava a questão do sentido da experiência psicopatológica. Mas não um sentido encoberto a se decifrar, mas um sentido explícito a ser compreendido. Sua tarefa seria se colocar no lugar do outro para tentar compreender “o que é estar tomado por um delírio de perseguição?”, “o que é estar tomado pela idéia de ruína?”; “O que é ter pânico diante de um objeto inofensivo?”, etc.

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!  Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”, onde formalizou os princípios da sua metapsicologia nascente, em 1900. No entanto, somente na década de 1920 o movimento psicanalítico se solidificou a ponto de ganhar legitimidade entre os psiquiatras da época.

!  A aceitação da psicanálise pelos psiquiatras deu origem à chamada psiquiatria psicodinâmica, ou, simplesmente, psiquiatria dinâmica. Entre os diversos motivos que provocaram este movimento, o fator econômico se destacou: até o início do século XX, o psiquiatra era um profissional que lidava basicamente com as formas severas de insanidade dentro de manicômios. A psicanálise ofereceu-lhes a possibilidade de expandir a sua prática clínica para o consultório privado. ◦  Depois da década de 1920, os psiquiatras passaram a se mover do asilo

para o consultório. No início da 2a Guerra Mundial, o número de psiquiatras de consultório já superava o de asilos. Depois da Segunda Guerra Mundial, o domínio da psicanálise nos EUA, por exemplo, foi quase completo. Isso durou até a década de 1970.

!  A psiquiatria dinâmica revolucionou a classificação de sintomas psiquiátricos. O princípio básico da classificação dinâmica era ligar o comportamento normal com o neurótico, e classificar ambos como variantes de processos comuns do desenvolvimento. As neuroses derivavam de experiências infantis universais; as diferenças que separavam comportamento normal do anormal era apenas uma questão de grau, não de tipo.

!  Assim como normalizou a patologia, ele também mostrou como comportamentos comuns derivavam da mesma raiz que os patológicos. Freud fornecia uma psicologia geral para compreender todo comportamento humano, não apenas o neurótico. As mais elevadas virtudes, assim como as piores perversões, derivavam da mesma base intelectual. Os mecanismos que subjaziam à produção dos sonhos eram análogos aos que produziam os sintomas neuróticos, mas também as piadas, os contos de fada etc.

!  A utilização de explicações comuns para comportamentos normais e patológicos apagou a fronteira entre a normalidade e a anormalidade, ligando ambas aos mesmos princípios do desenvolvimento humano. As condições que estavam no cerne da psiquiatria dinâmica, como as perversões sexuais, a histeria, as obsessões, as compulsões, as fobias, e a ansiedade, eram vistas não como formas de doença, mas como exageros das funções normais.

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!  Além da neurose, os psicanalistas desta primeira geração tentaram explicar a psicose. Os mecanismos eram diferentes, e difíceis de ser integrados no corpo do conhecimento analítico (vide a polêmica de Jung e Freud expressa em 1914 no texto sobre o narcisismo). A essência da classificação psicanalítica era abolir a fronteira entre neurose e normalidade, não a fronteira entre psicose e os outros comportamentos. Embora analistas esperassem algum dia abarcar todos os comportamentos, incluído a psicose, em uma teoria geral, seu foco claramente repousava no comportamento neurótico e normal, e não no psicótico (Isso se transformou mais tarde com certos autores pós-freudianos).

!  Logo, ao privilegiar a neurose, a psicanálise acabou sendo diretamente responsável pela inclusão da psicopatologia da vida quotidiana no campo da psiquiatria. Esta disciplina, agora intitulada psiquiatria psicodinâmica, estava então aberta não apenas às condições severas de psicose e melancolia, que geralmente implicavam em internação dentro de estruturas manicomiais, mas também ao cidadão ordinário.

!  Outro aspecto revolucionário da psiquiatria dinâmica era a reconceitualização da natureza dos sintomas mentais. Antes do desenvolvimento da psiquiatria dinâmica, as condições psicóticas localizadas no cérebro virtualmente exauriam o reino dos transtornos mentais. Para os psiquiatras dos asilos, os sintomas dos transtornos psiquiátricos eram indicadores diretos das doenças cerebrais subjacentes. Na doença, a mesma constelação de sintomas explícitos em diferentes pessoas indicavam um mesmo processo de doença subjacente.

!  A visão psicodinâmica via os sintomas de uma forma inteiramente distinta dos sintomas com causas subjacentes claras. Ela alterou radicalmente a relação entre sintomas explícitos e doenças subjacentes. Sintomas se tornaram expressões simbólicas da mente e, em particular, dos aspectos da mente não acessíveis à consciência. Não há mais uma ligação direta entre sintomas e doença, e o mesmo sintoma pode adquirir significados inteiramente diferentes para pessoas diferentes.

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!  Contextos biográficos particulares, que variam de pessoa para pessoa, e não a conexão com uma entidade mórbida subjacente, contavam para se estabelecer o sentido do sintoma. Na psiquiatria dinâmica, os sintomas nunca são indicações diretas de transtornos subjacentes; ao invés disso, eles são a expressão simbólica de conflitos que envolvem a personalidade como um todo. Sintomas em si mesmos não são importantes, porque sintomas similares podem representar muitos conflitos distintos subjacentes.

!  Da mesma forma que sintomas similares poderiam representar diferentes fontes patogênicas, tais fontes poderiam se manifestar em muitos disfarces. Os sintomas particulares de anorexia, de fadiga crônica, de perturbações do sono, ou de hipocondria não tinham muita importância na visão dinâmica porque mecanismos comuns poderiam subjazer a estes vários sintomas. Dependendo das contingências da biografia pessoal e do contexto social, um mesmo conflito poderia resultar em sintomas histéricos, fobias, obsessões, entre muitas possibilidades.

!  Quando se supões que conjuntos de sintomas indicam doenças subjacentes, acredita-se que eles possam ser a base de sistemas diagnósticos. Assim, pacientes que exibem conjuntos similares de sintoma supostamente portariam um transtorno com etiologia comum.

!  Quando, entretanto, sintomas são símbolos que possuem sentidos altamente variáveis que dependem do seu contexto particular e dinâmicas subjacentes, eles não podem ser utilizados para construir um sistema diagnóstico bem-definido. Quando várias configurações assumidas por conflitos subjacentes se tornam tão numerosos e amorfos, não é nem possível, nem desejável, que se desenvolva classificações baseadas em sintomas.

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!  Diferentemente da psiquiatria coercitiva dos asilos, a psiquiatria psicodinâmica só poderia ser bem-sucedida se os clientes acreditassem que seus defensores tinham uma boa explicação para os seus problemas.

!  Havia uma afinidade entre este tipo de terapia e pessoas cujas vidas não estavam imersas em grupos fortes ou sistemas coletivos de sentido poderosos. Inicialmente, fez muito sucesso entre intelectuais e pessoas excêntricas. Uma existência dotada de sentido para estas pessoas derivava das experiências individuais, mais do que dos laços fortes com grupos tradicionais. O apelo inicial da psiquiatria dinâmica era àqueles que rejeitavam a moralidade convencional, especialmente a sexual. Seus defensores pareciam maximizar a liberdade individual e rejeitar os sistemas culturais tradicionais de crença e comportamento. A análise era associada com a tentativa de ultrapassar uma sociedade repressiva que atrapalhava a expressão genuína de pulsões básicas. Assim, artistas, boêmios, e intelectuais associados com a rebelião contra a sociedade dominante foram os primeiros entusiastas da psicanálise. A psicanálise era vista como uma visão de mundo, não apenas como um sistema de terapia. Daí o seu sucesso.

!  Do mesmo modo, quando esta cultura psicoterapêutica se expandiu enormemente, depois da Segunda Guerra Mundial, os principais clientes da psiquiatria dinâmica passaram a ser pessoas insatisfeitas consigo mesmas, suas relações, suas carreiras, e suas vidas em geral. Eles tinham casamentos ruins, filhos problemáticos, ambições frustradas, nervosismo geral, ansiedade difusa e descontentamento geral com suas vidas. Este foi o início da penetração da psiquiatria na vida quotidiana.

!  Paralelamente à expansão da psiquiatria para a vida quotidiana, estava acontecendo uma das maiores revoluções do século XX: a revolução psicofarmacológica.

!  Em 1952, foi lançado por um laboratório francês o primeiro medicamento psicotrópico que não atuava como sedativo: a clorpromazina. ◦  Como a maioria dos psicofármacos, a utilidade da clorpromazina para tratar de condições

psiquiátricas não se originou do entendimento dos mecanismos subjacentes à psicose, mas do acaso e do empirismo clínico. Laborit trabalhava com anti-histamínicos para potencializar o efeito de anestésicos. Notou que as fenotiazinas provocavam um certo “desinteresse psíquico” e que, portanto, poderiam ser úteis à psiquiatria. Posteriormente, Jean Delay e Pierre Deniker, do hospital Sainte Anne, começaram a dá-la a doentes em Março de 1952, publicando seus resultados excepcionais sem citar Laborit. Origem polêmica do primeiro neuroléptico e o início da era psicofarmacológica.

◦  Outros medicamentos, como a imipramina, também foram descobertos à partir do uso empírico de anti-histamínicos.

◦  Nos anos 1960, foi lançado no mercado os primeiros benzodiazepínicos, que logo se tornaram medicamentos de consumo de massa, para aliviar os sintomas inespecíficos de ansiedade da população em geral (Ex.: Mother Little Helper)

!  Diferentemente de outras áreas do saber psicopatológicos, a psicofarmacologia teve como ator central a indústria farmacêutica. Ela foi responsável pela criação de rótulos inexatos, como “anti-psicóticos” e “anti-depressivos”, que induziram a população em geral a acreditar na especificidade destes medicamentos e superdimensionou o conhecimento real acerca dos fatores em jogo em perturbações desta ordem. Ex.: esquizofrenia como causada pelo excesso de dopamina; depressão como causada por falta de serotonina. Este paradigma 1 neurotransmissor – 1 perturbação psiquiátrica foi colocado em questão desde o início dos anos 1980.

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!  Todo clima social dos anos 1960 favorecia sentimentos de hostilidade a toda espécie de autoridade.

!  Psicodelia e Elogio da Loucura: Pink Floyd, Hendrix, Mutantes e a cultura hippie, p. ex.

!  Movimento pelos direitos civis das minorias: movimento gay, panteras negras, feminismo e a pílula anticoncepcional.

!  Hostilidade maciça à noção de “doença mental”: a doença psiquiátrica não tem natureza médica mas sim social, política e legal: é a sociedade, e não a natureza, que define o que é a esquizofrenia e a depressão. Se a doença psiquiátrica é socialmente construída, ela tem que ser desconstruída, no interesse de libertar do estigma da “patologia” os espíritos livres e desviantes, e as pessoas excepcionalmente criativas. Essa ideia cativou grandes intelectuais de esquerda da época e se difundiu entre o grande público.

!  Hostilidade generalizada contra o saber psiquiátrico e contra a figura dos psiquiatras.

!  Essa ideia cativou grandes intelectuais de esquerda da época e se difundiu entre o grande público. ◦  T. Szasz: “O Mito da Doença Mental” (como não existem marcadores

biológicos, a doença mental é da ordem dos valores. Logo, não se trata de doença, mas de um efeito do julgamento moral social) ◦  M. Foucault: “A História da Loucura”. (A loucura foi progressivamente

silenciada pela consciência crítica da razão) ◦  E. Goffman: “Manicômios, conventos, prisões”. (Os manicômios são o

mais perfeito exemplo de uma Instituição Total, típica das sociedades burocratizadas) ◦  D. Rosenhan: “Sobre ser são em lugares insanos” (o julgamento

psiquiátrico não é médico, nem científico. Trata-se de uma percepção moral imprecisa, sem rigor.) ◦  T. Scheff: Teoria da rotulação (o que faz mal não é ser louco, mas ser

rotulado como louco. Isto sim tem efeitos sociais perniciosos) ◦  R. D. Laing: A loucura é uma resposta saudável para uma sociedade

doente (clima da contra-cultura). ◦  Kesey: Um estranho no ninho (romance que deu origem ao filme de M.

Forman).

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!  O clima de hostilidade generalizada contra o saber psiquiátrico e contra a figura dos psiquiatras levou a dois fenômenos históricos fundamentais: ◦  1. A Reforma Psiquiátrica: na Itália, com Franco

Basaglia, fundou-se a Psiquiatria Democrática Italiana; na França, a Psiquiatria de Setor; Nos EUA, a política de desinstitucionalização... Estes movimentos se difundiram progressivamente no mundo. ◦  2. A chamada remedicalização da psiquiatria: era

necessário recuperar, seja a imagem dos psiquiatras, seja o respeito à psiquiatria como disciplina legítima.

!  Além da antipsiquiatria, a psiquiatria se via às voltas com uma outra ameaça: ◦  Nos anos 1960 surge uma gama enorme de “terapias

alternativas”, que se voltavam justamente para o tratamento do sofrimento e a angústia do homem comum: terapias corporais, terapia do grito primal, terapias grupais, psicodrama, Gestalt (que na época surgia), etc. ◦  Por outro lado, a psiquiatria dinâmica, ao se fundar sobre a

psicanálise e, assim, lidar com a dimensão interpretativa da vida humana, não era capaz de demonstrar a especificidade do seu território de atuação profissional. A lógica psicanalítica não exigia uma formação médica (embora isto seja uma questão no movimento psicanalítico desde a escrita de Freud de “A Questão da Análise Leiga”). Assim, os psiquiatras dinâmicos viam a sua prática confundida com a de outros profissionais de saúde mental, como psicólogos e assistentes sociais, de quem sofria concorrência em relação ao rico “mercado da psicoterapia”.

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!  No movimento de remedicalização da psiquiatria, que se acentuou ao longo dos anos 1970, houve uma percepção comum geral: ◦  Há que se substituir o paradigma dinâmico pelo paradigma

médico. Só assim poderemos devolver o respeito pela psiquiatria na sociedade. Isto deve envolver a adoção de metodologias de pesquisa e investigação comuns a outras áreas da medicina: análise estatística, placebo com duplo-cego, abordagens quantitativas, etc. ◦  A base desta substituição deve incluir a construção de um

manual diagnóstico confiável. Isto foi dar na elaboração do DSM-III, em uma Força Tarefa liderada por R. Spitzer.

!  Ao repousar em aspectos simbólicos, interpretativos, singulares, biográficos, pouco sujeitos a critérios rígidos de mensuração e comparação, a psiquiatria dinâmica oferecia pouca confiabilidade em sua atividade diagnóstica. ◦  Por exemplo, em um experimento, apresentava-se um videotape de dois

pacientes ingleses e dois americanos a psiquiatras ingleses e britânicos. 85% dos psiquiatras americanos tendiam a diagnosticar pacientes ingleses como esquizofrênicos, e 69% a diagnosticar pacientes americanos como esquizofrênicos. Já com relação aos psiquiatras britânicos, essa taxa correspondia a 7% e 2% respectivamente, sendo eles mais inclinados ao diagnóstico de psicose maníaco-depressiva. ◦  A demonstração de que um sistema psiquiátrico de classificação poderia

ser confiável se tornou central para o esforço de estabelecer as credenciais biomédicas da psiquiatria. Isto permitiria fazer pesquisas multicêntricas, examinar segundo critérios claros e mensuráveis o impacto de uma patologia e de um tratamento. Para tanto, era necessário eliminar tudo o que apontasse para a especulação, ou seja, eliminar todo tipo de hipótese etiológica para exercer o ato diagnóstico. Primeiro, se deveria estabelecer entidades nosológicas estáveis. Depois, se deveria procurar as causas destes sintomas

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!  O DSM-I e o DSM-II forneciam descrições curtas dos transtornos e enfatizavam os mecanismos psíquicos subjacentes que presumivelmente levavam à patologia. O DSM-III elimina qualquer tipo de alusão à causa dos transtornos, e se limita ao isolamento de grupos de sinais e sintomas bem definidos, observáveis explicitamente: não há qualquer sentido oculto a desvelar, nada a compreender.

!  O DSM-III conseguiu, de fato, aumentar a confiabilidade diagnóstica. A ênfase na medida de sintomas explícitos também permitiu que a psiquiatria diagnóstica parecesse mais científica. Finalmente, definir entidades baseadas em sintomas fez com que essas entidades parecessem reais.

!  Como não fazia referência às causas das perturbações, mas apenas aos sintomas, o DSM-III, em 1980, lançou mão de 256 categorias psiquiátricas, que envolviam todo tipo de condição de sofrimento psíquico. Em sua revisão, em 1987 (o DSM-III-TR), 292 categorias contavam no seu escopo. Em 1994, com o lançamento do DSM-IV, 400 categorias diagnósticas estavam à disposição dos psiquiatras.

!  Uma vez que um diagnóstico é criado, ele entra em currículos profissionais, especialistas emergem para tratá-lo, conferências são organizadas, pesquisas e publicações lidam com eles, carreiras são construídas em torno deles, e pacientes formulam seus sintomas de modo a corresponder a eles.

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!  Para alguns, a lógica do DSM é responsável direta pelo problema de medicalização do social, que encontramos na psiquiatria contemporânea.

!  Outros acreditam que, na verdade, o DSM é responsável pela resposta a uma demanda social que já havia sido criada pelo modelo dinâmico. Na verdade, haveria uma substituição de um modelo dimensional por outro categorial, mas não a invenção de uma demanda.

!  De todo modo, na atualidade a psiquiatria se transformou em uma linguagem adotada pelo cidadão comum, para que ele expresse todo tipo de mal-estar difuso que o acometa. A sociedade (ou seja, nós), sem dúvida, incorporou o idioma da psiquiatria como um dos dialetos principais para se expressar sofrimento, e a instituição psiquiátrica como aquela que lhe ajudará a encontrar um destino para si e suas agruras.