30
8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 1/30 1 FILOSOFIA – ENSINO MÉDIO PROFESSOR CARLOS (Atenção: os textos são portugueses e a grafia nem sempre é a mesma que no Brasil) AS DISCIPLINAS DA FILOSOFIA DESIDÉRIO MURCHO No que respeita à formulação de um programa de estudos, tanto para o ensino secundário como pa superior, exige-se, da parte do professor, uma visão abrangente das diferentes disciplinas da filoso Só essa visão permite hierarquizar quer as disciplinas quer as matérias obedecendo ao princ simples de começar pelo mais central e intuitivo, avançando para o mais especializado e me intuitivo. Evidentemente, tal hierarquização terá sempre um certo grau de vagueza ou oscilaçã estará sempre sujeita a revisão, de acordo com o progresso da investigação. Por exemplo, a filosof mente, secundária no princípio do séc. XX, assume cada vez mais importância hoje em dia. E a metodológica da prioridade da linguagem, que foi tão popular na filosofia de meados do séc. X que tanta proeminência deu à filosofia da linguagem, é hoje recusada pela maior parte dos filósofo Em qualquer área de estudos, o estudante e o investigador carecem de orientação na selva luxurian livros e artigos existentes. Evidentemente, tal orientação, para ser de qualidade, deverá basear-se ampla informação da parte dos professores 1 , e deverá ser tão objetiva quanto possível. Por exemplo, só porque a área de especialização de um professor é a metafísica da modalidade, ele não deve impor estudantes esta área de estudos nem os seus autores preferidos, como se fossem centrais e como sua disciplina favorita fosse a mais importante. Quando este tipo de falta de seriedade educa acontece, os planos de estudos tornam-se batalhas campais, tentando cada professor, por todas as v impor as suas preferências. O resultado são planos de estudos aparentemente aleatórios, como acon com os programas do ensino secundário, não obedecendo a quaisquer princípios científicos didáticos, mas apenas aos gostos pessoais dos seus autores, ou ao fato de alguém que é nosso am nos ter telefonado na véspera a «sugerir» que também o seu autor preferido, acabado de reeditar, f contemplado. As disciplinas mais centrais e gerais da filosofia são as seguintes: Metafísica Epistemologia Ética Lógica A filosofia é uma disciplina muito vasta e o espaço não permite que descrevamos, nem em ger maior parte dos problemas, teorias e argumentos das suas diferentes disciplinas. O que se segue é mera sinopse 2 . A metafísica estuda problemas relacionados com os aspectos mais gerais da estrutura da realida nomeadamente os seguintes: a natureza da verdade; a independência do mundo relativamente à n experiência; a natureza da objetividade e da subjetividade; a identidade pessoal; o livre-arbí o sentido da vida; a natureza da modalidade e a existência de mundos possíveis; a identidad persistência e a substância dos objetos; acontecimentos e substâncias; universais e particulares noção de causalidade e de lei da natureza; problemas conceptuais do espaço e do tempo. A ontologiaé a parte da metafísica que estuda a existência ou o que há: que tipo de existência tem números, ou os universais? Que tipo de existência tem um acontecimento ou uma proposição? temas introdutórios mais comuns 3 no que respeita à metafísica são a identidade pessoal, o livre- arbítrio e a persistência dos objetos.

Apostila de Filosofia Geral

  • Upload
    caalft

  • View
    232

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 1/30

1

FILOSOFIA – ENSINO MÉDIOPROFESSOR CARLOS

(Atenção: os textos são portugueses e a grafia nem sempre é a mesma que no Brasil)

AS DISCIPLINAS DA FILOSOFIA DESIDÉRIO MURCHO

No que respeita à formulação de um programa de estudos, tanto para o ensino secundário como pasuperior, exige-se, da parte do professor, uma visão abrangente das diferentes disciplinas da filosoSó essa visão permite hierarquizar quer as disciplinas quer as matérias obedecendo ao princsimples de começar pelo mais central e intuitivo, avançando para o mais especializado e meintuitivo. Evidentemente, tal hierarquização terá sempre um certo grau de vagueza ou oscilaçãestará sempre sujeita a revisão, de acordo com o progresso da investigação. Por exemplo, a filosofmente, secundária no princípio do séc. XX, assume cada vez mais importância hoje em dia. E a metodológica da prioridade da linguagem, que foi tão popular na filosofia de meados do séc. Xque tanta proeminência deu à filosofia da linguagem, é hoje recusada pela maior parte dos filósofo

Em qualquer área de estudos, o estudante e o investigador carecem de orientação na selva luxurianlivros e artigos existentes. Evidentemente, tal orientação, para ser de qualidade, deverá basear-seampla informação da parte dos professores1, e deverá ser tão objetiva quanto possível. Por exemplo, só

porque a área de especialização de um professor é a metafísica da modalidade, ele não deve imporestudantes esta área de estudos nem os seus autores preferidos, como se fossem centrais e como sua disciplina favorita fosse a mais importante. Quando este tipo de falta de seriedade educaacontece, os planos de estudos tornam-se batalhas campais, tentando cada professor, por todas as vimpor as suas preferências. O resultado são planos de estudos aparentemente aleatórios, como aconcom os programas do ensino secundário, não obedecendo a quaisquer princípios científicos didáticos, mas apenas aos gostos pessoais dos seus autores, ou ao fato de alguém que é nosso amnos ter telefonado na véspera a «sugerir» que também o seu autor preferido, acabado de reeditar, fcontemplado.

As disciplinas mais centrais e gerais da filosofia são as seguintes:

Metafísica• Epistemologia• Ética• Lógica

A filosofia é uma disciplina muito vasta e o espaço não permite que descrevamos, nem em germaior parte dos problemas, teorias e argumentos das suas diferentes disciplinas. O que se segue é mera sinopse2.

A metafísica estuda problemas relacionados com os aspectos mais gerais da estrutura da realidanomeadamente os seguintes: a natureza da verdade; a independência do mundo relativamente à nexperiência; a natureza da objetividade e da subjetividade; a identidade pessoal; o livre-arbío sentido da vida; a natureza da modalidade e a existência de mundos possíveis; a identidadpersistência e a substância dos objetos; acontecimentos e substâncias; universais e particularesnoção de causalidade e de lei da natureza; problemas conceptuais do espaço e do tempo.

A ontologia é a parte da metafísica que estuda a existência ou o que há: que tipo de existência temnúmeros, ou os universais? Que tipo de existência tem um acontecimento ou uma proposição?temas introdutórios mais comuns3 no que respeita à metafísica são a identidade pessoal, o livre-arbítrio e a persistência dos objetos.

Page 2: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 2/30

2

A epistemologia estuda problemas relacionados com o conhecimento em geral, nomeadamente seguintes: a análise de conhecimento como crença verdadeira justificada; a estrutura da justificcognitiva (fundacionalismo, coerentismo, externalismo, teorias causais, etc.); o problema cepticismo; fontes de conhecimento (conhecimentoa priori e a posteriori, indução, testemunho, etc.).Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à epistemologia são a análise de conhecimentteorias da justificação (fundacionismo e coerentismo) e o problema do cepticismo.

A ética (ou a filosofia moral4) estuda problemas relacionados com o modo como devemos viver e como que devemos valorizar. A ética abrange três áreas ou subdisciplinas distintas: a metaética, a énormativa e a ética aplicada. A metaética estuda problemas mais abstractos, relacionados conatureza da própria ética; a ética normativa estuda diferentes sistemas éticos; e a ética aplicada esproblemas práticos, como o aborto ou a eutanásia. Eis alguns problemas da ética em geral: o egoí(ético e psicológico); a Regra de Ouro; a natureza da normatividade e da razão prática; a objetividdo juízo ético; responsabilidade moral, deliberação e decisão; acrasia; relativismo ou realismo éticincomensurabilidade de valores. Algumas das teorias normativas mais importantes são a teoriavirtudes, o utilitarismo e a ética deontológica. Alguns dos problemas mais estudados em ética aplisão os seguintes: o aborto, a eutanásia, o estatuto moral dos animais não humanos, a ética do mambiente e o problema ético da pobreza no mundo. A ética aplicada deu entretanto origem a vásubdisciplinas próprias, como a ética empresarial, a ética jornalística, a ética médica, a bioéticageral, a ética universitária, etc. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita à ética práticao aborto, a eutanásia e os direitos dos animais; no que respeita à ética normativa, esses temas sãutilitarismo, a ética de Kant e o egoísmo; e no que respeita à metaética o tema mais comum relativismo ético.

A lógica estuda e sistematiza a argumentação válida. A lógica tornou-se uma disciplina praticameautônoma em relação à filosofia, graças ao seu elevado grau de precisão e tecnicismo. Hoje em duma disciplina que recorre a métodos matemáticos, e os lógicos contemporâneos têm em gformação matemática. Todavia, a lógica elementar que se costuma estudar nos cursos de filosofia ébásica como a aritmética elementar e não tem elementos matemáticos. A lógica elementar é uscomoinstrumento pela filosofia, para garantir a validade da argumentação.

Quando a filosofia tem a lógica comoobjecto de estudo, entramos na área dafilosofia da lógica, que

estuda os fundamentos das teorias lógicas e os problemas não estritamente técnicos levantados pdiferentes lógicas. Hoje em dia há muitas lógicas além da teoria clássica da dedução de Russell e F(como as lógicas livres, modais, temporais, paraconsistentes, difusas, intuicionistas, etc.), o que levnovos problemas à filosofia da lógica.

A filosofia da lógica distingue-se dalógica filosófica,que não estuda problemas levantados porlógicas particulares, mas problemas filosóficos gerais, que se situam na intersecção da metafísicaepistemologia e da lógica. São problemas centrais de grande abrangência, correspondendo à discipmedieval conhecida por «Lógica & Metafísica», e abrangendo uma parte dos temas presentesprópria Metafísica,de Aristóteles: a identidade de objectos, a natureza da necessidade, a natureza verdade, o conhecimentoa priori, etc. Precisamente por ser uma «subdisciplina transdisciplinar», odomínio da lógica filosófica é ainda mais difuso do que o das outras disciplinas. Para agravaincompreensões, alguns filósofos chamam «lógica filosófica» à filosofia da lógica (e vice-versa).qualquer caso, o importante é não pensar que a lógica filosófica é um gênero de lógica, a par da lóclássica, mas «mais filosófica»; pelo contrário, e algo paradoxalmente, a lógica filosófica, não é lógica no sentido em que a lógica clássica é uma lógica, isto é, no sentido de uma articulasistemática das regras da argumentação válida.

A lógica informal estuda os aspectos da argumentação válida que não dependem exclusivamente forma lógica. O tema introdutório mais comum no que respeita à lógica é a teoria clássica da ded(lógica proposicional e de predicados, incluindo formalizações elementares da linguagem natura

Page 3: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 3/30

3

lógica aristotélica é por vezes ensinada, a nível universitário, como complemento histórico e não calternativa à lógica clássica.

O grupo seguinte de disciplinas da filosofia são menos centrais do que as anteriores:

• Filosofia da religião• Filosofia política• Estética e filosofia da arte• Filosofia da ciência• Filosofia da mente• Filosofia da linguagem

Afirma-se que uma disciplina como a ética, por exemplo, é mais central do que a filosofia políticaexemplo, porque de algum modo a filosofia política estuda problemas éticos específicos da vida nsociedade politicamente organizada, tal como a filosofia da ciência estuda aspectos metafísilógicos e epistemológicos da ciência. Evidentemente, a distinção entre estes dois grupos de disciplé algo vaga: não há critérios de diferenciação que permitam traçar uma fronteira nítida. Mas a ausêde fronteira clara não é a ausência clara de fronteira.

A filosofia da religião estuda temas como os seguintes: argumentos a favor e contra a existência d

Deus, como os argumentos ontológico, do desígnio ou cosmológico, e o problema do malracionalidade e a epistemologia da fé; a natureza de Deus e as suas propriedades; filosofialinguagem religiosa; a idéia de alma e de imortalidade. Os temas introdutórios mais comuns no respeita a esta disciplina são os argumentos a favor de Deus e as suas críticas, o problema do mafideísmo.

A filosofia políticaestuda o modo como podemos viver em sociedade e o modo como devemos fazlo, o que levanta problemas como os seguintes: a justificação do estado e da obrigação polític justificação do anarquismo; a natureza da justiça; a justificação da democracia; a igualdadeliberalismo político, a liberdade e os mercados livres; a propriedade privada; os direitos naturaiproblema da punição. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina sãproblema da justificação do estado, as teorias contratualistas e a liberdade.

A estética e a filosofia da arte são subtilmente distintas, mas hoje em dia estuda-se sobretudo aúltima. A estética estuda a natureza do juízo estético em geral; a filosofia da arte estuda problecomo a definição de obra de arte e o valor da arte. O tema introdutório mais comum no que respeesta disciplina é a definição de obra arte, estudando-se em geral as várias teorias que respondem aproblema.

A filosofia da ciência estuda aspectos epistemológicos, metafísicos e lógicos relacionados com ciências em geral, incluindo as ciências da natureza e as ciências humanas. Eis alguns dos teestudados nesta disciplina: a relação entre teoria e observação; a confirmação de teorias científicinterpretação da probabilidade; a noção de explicação científica e de leis da natureza; realismo e realismo científicos; incomensurabilidade de teorias; o estatuto dos inobserváveis; unidaddiversidade das ciências. A filosofia das ciências tem dado origem a várias subdiscipliespecializadas: filosofia da biologia, filosofia da física, filosofia das ciências humanas e filosofihistória. Os temas introdutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são a relação eobservação e teoria, o problema da confirmação (indutivismo e falsificacionismo), realismo e arealismo científicos, e o problema da demarcação (entre ciências e não ciências).

A filosofia da mente estuda problemas metafísicos e epistemológicos relacionados com os fenômenmentais. Eis alguns dos temas estudados nesta disciplina: a relação mente-corpo — fisicalisdualismo, funcionalismo; o problema da causalidade mental; a existência de mentes alheias

Page 4: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 4/30

4

problema do solipsismo); o valor da introspecção e a autoridade da primeira pessoa com respeitoseus estados mentais; os fenômenos mentais: consciência e experiência,qualia, conteúdo perceptivo;intencionalidade e atitudes proposicionais; internalismo e externalismo mental; o papel e a natudas emoções; a natureza da ação; acrasia. Tanto a filosofia da linguagem como a metafísica filosofia da psicologia estão intimamente relacionadas com a filosofia da mente. Os temintrodutórios mais comuns no que respeita a esta disciplina são as teorias fisicalistas, dualistafuncionalistas sobre o problema da mente-corpo e o problema do solipsismo.

A filosofia da linguagemestuda todos os problemas relacionados com o funcionamento da linguagee o fenômeno do significado linguístico. Eis alguns dos temas desta disciplina: a naturezasignificado — significado, verdade e realismo, indeterminação; pragmática; a natureza conhecimento do significado e das regras lingüísticas; o problema da referência: indexicaidemonstrativos, nomes próprios, descrições definidas, quantificação e anáfora; atitudes proposiciosentido, força e modo; advérbios e quantificação sobre acontecimentos; a distinção entre diferelínguas, linguagens e dialetos; o significado das metáforas. Os temas introdutórios mais comuns norespeita a esta disciplina são as teorias da referência e as descrições definidas.

Disciplinas decididamente menos centrais e mais especializadas, sendo muitas vezes subdisciplinaanteriores, são as seguintes:

• Filosofia da ação e filosofia da psicologia — Partes próprias da filosofia da mente, da filosda ciência e da metafísica.

• Filosofia do direito — Parte própria da filosofia política e da ética.• Filosofia das ciências humanas — Parte própria da filosofia da ciência.• Filosofia da matemática — Parte própria da metafísica, epistemologia e filosofia da linguag

A história da filosofiaestá sempre presente no estudo das diferentes disciplinas filosóficasumariamente apresentadas acima. Ao estudar as diferentes disciplinas filosóficas, verifica-se muitos dos problemas, teorias e argumentos foram originalmente estudados por autores clássicos cPlatão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Hume, Leibniz, Kant, Russell, Frege, Wittgensetc. Por exemplo, ao estudar ética deontológica discutem-se idéias clássicas de Kant, mas tambémcontemporâneas; ao estudar o problema da definição de conhecimento discutem-se idéias de Pla

mas também as idéias contemporâneas.No estudo direto da história da filosofia discute-se explicitamente o pensamento dos autores clássmais importantes, dos pré-socráticos à atualidade. O estudo introdutório da história da filosoftambém tematicamente orientado. Dado que não se pode ter a veleidade de estudar todos os aspedo pensamento de todos os principais filósofos clássicos, é comum escolher as contribuiçfilosóficas mais significativas dos principais filósofos, estudando-se apenas esses aspectos. Isto,sua vez, implica a capacidade para transmitir ao estudante os problemas, as teorias e os argumefilosóficos que estão em causa e que tornam essas contribuições filosoficamente significativas. exemplo, para estudar oTeeteto,de Platão, é necessário explicar, tirando partido do entendimento quhoje temos das coisas, o que é o problema da definição de conhecimento. É por esta razão que nãopode estudar história da filosofia sem dominar a própria filosofia: a filosofia é prévia à sua histórcomo deveria ser evidente, estudar um problema do ponto de vista do próprio autor implicaria nuavançar na compreensão das coisas; seria como estudar a poesia de Camões da perspectiva de Camsem todo o conhecimento que entretanto ganhamos da poesia: um exercício fútil.

Notas

1 O bom professor lê abundantemente, para poder escolher, do que leu, o que se adequa ao estudané central para a formação deste.

Page 5: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 5/30

5

2 Para uma visão mais completa sugere-se a consulta de London Philosophy Study Guide,preparadocolectivamente pelos departamentos de filosofia da Universidade de Londres (Londres, 2001), edisponível gratuitamente emhttp://www.criticanarede.com/lds_studyguide.html.

3 Isto é, os que costumam ser lecionados em cursos de licenciatura de algumas das melhoresuniversidades, e os que surgem em alguns dos melhores livros introdutórios. A escolha destes temaintrodutórios não é aleatória: corresponde ao fato de se tratar de temas centrais mais intuitivos, queestudante que dá os primeiros passos na disciplina mais facilmente compreende, e que, por seremcentrais, são estruturantes.

4 Faz-se por vezes uma distinção vaga e confusa entre ética e moral, que não tem qualquer relevânteórica ou didática, obscurecendo mais do que esclarecendo.

Retirado do livroRenovar o Ensino da Filosofia (Lisboa: Gradiva, 2003).

Copyright © 1997–2007 criticanarede.com · ISSN 1749-8457Direitos reservados. Não reproduza sem citar a fonte.Termos de utilização: http://criticanarede.com/termos.html.

Page 6: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 6/30

6

ENSINAR A PENSAR, de IMMANUEL KANT

Espera-se que o professor desenvolva no seu aluno, em primeiro lugar, o homem de entendimedepois, o homem de razão, e, finalmente, o homem de instrução. Este procedimento tem evantagem: mesmo que, como acontece habitualmente, o aluno nunca alcance a fase final, terá meassim beneficiado da sua aprendizagem. Terá adquirido experiência e ter-se-á tornado mais inteligese não para a escola, pelo menos para a vida.

Se invertermos este método, o aluno imita uma espécie de razão, ainda antes de o seu entendimentter desenvolvido. Terá uma ciência emprestada que usa não como algo que, por assim dizer, cresnele, mas como algo que lhe foi dependurado. A aptidão intelectual é tão infrutífera como sempreMas ao mesmo tempo foi corrompida num grau muitíssimo maior pela ilusão de sabedoria. É por razão que não é infrequente deparar-se-nos homens de instrução (estritamente falando, pessoas têm estudos) que mostram pouco entendimento. É por esta razão, também, que as academias envpara o mundo mais pessoas com as suas cabeças cheias de inanidades do que qualquer outra institupública.

[...] Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzidoassim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capacaminhar por si, e sem tropeçar.

A natureza peculiar da própria filosofia exige um método de ensino assim. Mas visto que a filosofestritamente falando, uma ocupação apenas para aqueles que já atingiram a maturidade, não éespantar que se levantem dificuldades quando se tenta adaptá-la às capacidades menos exercitadas jovens. O jovem que completou a sua instrução escolar habituou-se a aprender. Agora pensa queaprender filosofia. Mas isso é impossível, pois agora deve aprender a filosofar. [...] Para que pudeaprender filosofia teria de começar por já haver uma filosofia. Teria de ser possível apresentar um le dizer: «Veja-se, aqui há sabedoria, aqui há conhecimento em que podemos confiar. Se aprendereentendê-lo e a compreendê-lo, se fizerem dele as vossas fundações e se construírem com base daqui para frente, serão filósofos». Até me mostrarem tal livro de filosofia, um livro a que eu papelar, [...] permito-me fazer o seguinte comentário: estaríamos a trair a confiança que o público dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuida

em vez de educá-los de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mamadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogipor outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência. Essa ilusão só em celugares e entre certas pessoas é aceite como moeda legítima. Contudo, em todos os outros lugarrejeitada como moeda falsa. O método de instrução próprio da filosofia é zetético, como o dissealguns filósofos da antiguidade (de zhtein). Por outras palavras, o método da filosofia é o métodoinvestigação. Só quando a razão já adquiriu mais prática, e apenas em algumas áreas, é que método se torna dogmático, isto é, decisivo. Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a noinstrução não deve ser considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, na verdade, contra ele. O qaluno realmente procura é proficiência no método de refletir e fazer inferências por si. E só proficiência lhe pode ser útil. Quanto ao conhecimento positivo que ele poderá talvez vir a adquirmesmo tempo — isso terá de ser considerado uma conseqüência acidental. Para que a colheita deconhecimento seja abundante, basta que o aluno semeie em si as fecundas raízes deste método.

Immanuel KantTradução de Desidério MurchoTexto retirado de «Anúncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766» da coletâneatextos Theoretical Philosophy, 1755-1770 (edição de David Walford e Ralf Merbote, CambridgeUniversity Press, 1992), pp. 2:306-7.Termos de utilização: http://criticanarede.com/termos.html.

Page 7: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 7/30

7

Page 8: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 8/30

8

CIDADANIA DO UNIVERSO,de BERTRAND RUSSELL

Devemos procurar o valor da filosofia, de fato, em grande medida na sua própria incerteza. O homsem rudimentos de filosofia passa pela vida preso a preconceitos derivados do senso comum, a crecostumeiras da sua época ou da sua nação, e a convicções que cresceram na sua mente semcooperação ou consentimento da sua razão deliberativa. Para tal homem o mundo tende a tornadefinitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não levantam questões, e as possibilidades incomunsrejeitadas com desdém. Pelo contrário, mal começamos a filosofar, descobrimos, como vimos nossos capítulos de abertura, que mesmo as coisas mais quotidianas levam a problemas aos quais spodem dar respostas muito incompletas. A filosofia, apesar de não poder dizer-nos com certeza qua resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargamnossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, apesar de diminuir a nossa sensde certeza quanto ao que as coisas são, aumenta em muito o nosso conhecimento quanto ao que poser; remove o dogmatismo algo arrogante de quem nunca viajou pela região da dúvida libertadormantém vivo o nosso sentido de admiração ao mostrar coisas comuns a uma luz incomum.

À parte a sua utilidade ao mostrar possibilidades insuspeitas, a filosofia tem valor — talvez o principal valor — por via da grandeza dos objetos que contempla, e da libertação de objetilimitados e pessoais que resulta desta contemplação. A vida do homem instintivo está fechadacírculo dos seus interesses privados: a família e os amigos podem ser incluídos, mas o mundo ext

não é tido em consideração exceto na medida em que possa ajudar ou prejudicar o que pertenccírculo dos desejos instintivos. Em tal vida há algo de febril e limitado, em comparação com a quvida filosófica é calma e livre. O mundo privado dos interesses instintivos é pequeno, localizandno seio de um mundo grande e poderoso que, mais cedo ou mais tarde, terá de deixar o nosso muprivado em ruínas. A menos que possamos alargar de tal modo os nossos interesses que incluam tomundo exterior, somos como uma guarnição numa fortaleza sitiada, sabendo que o inimigo impefuga e que a rendição última é inevitável. Em tal vida não há paz, mas antes um conflito constentre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De um modo ou de outro, para a nossa vidgrandiosa e livre, temos de escapar desta prisão e deste conflito.

Uma maneira de escapar é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica, na sua perspemais ampla, não divide o universo em dois campos hostis — amigos e inimigos, vantajoso e ho

bom e mau — vê o todo imparcialmente. A contemplação filosófica, quando não tem misturas, tem como objetivo provar que o resto do universo é favorável ao homem. Toda a aquisiçãoconhecimento é um alargamento do Eu, mas este alargamento alcança-se melhor quando nãdiretamente procurado. Obtém-se quando só o desejo de conhecer é operativo, por um estudo quedeseja previamente que os seus objetos tenham este ou aquele caráter, antes adaptando o Eu caracteres que encontra nos seus objetos. Este alargamento do Eu não se obtém quando, aceitando tal como é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que o seu conhecimento é posssem admitir o que parece alienígena. O desejo de provar isto é uma forma de auto-afirmação e, ctoda a auto-afirmação, é um obstáculo ao desejado crescimento do Eu, crescimento de que o Eu ser capaz. A auto-afirmação, tanto na especulação filosófica como noutras áreas, vê o mundo comomeio para os seus próprios fins; assim, dá menos importância ao mundo do que ao Eu, e o estabelece limites à grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, começamos pelo nãe, através da sua grandeza os limites do Eu alargam-se; através do infinito do universo a mente qcontempla consegue compartilhar o infinito.

Por esta razão, a grandeza de alma não é fomentada pelas filosofias que assimilam o universoHomem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o não-Eu; como toda a uniãoprejudicada pela dominação, e consequentemente por qualquer tentativa para forçar o universconformar-se ao que encontramos em nós. Há uma tendência filosófica muito comum favorávperspectiva que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita phomem, que o espaço e o tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente e que, se há

Page 9: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 9/30

9

que não seja criado pela mente, é incognoscível e sem importância para nós. Esta perspectiva, snossas discussões prévias foram corretas, não é verdadeira; mas além de não ser verdadeira, temefeito de roubar à contemplação filosófica tudo o que lhe dá valor, dado que agrilhoa a contemplao Eu. Aquilo a que chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas um conjuntopreconceitos, hábitos e desejos que constituem um véu impenetrável entre nós e o mundo que está além. O homem que tem prazer em tal teoria do conhecimento é como o homem que nunca deixcírculo doméstico por ter medo que a sua palavra possa não ser lei.

A verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra a sua satisfação em todo o alargamdo não-Eu, em tudo o que aumenta os objetos contemplados, e desse modo o sujeito que contemNa contemplação, tudo o que é pessoal ou privado, tudo o que depende do hábito, do interesse próou do desejo, distorce o objeto e assim compromete a união que o intelecto procura. Erguendo dmodo uma barreira entre sujeito e objeto, essas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão paintelecto. O intelecto livre irá ver como Deus poderia ver, sem umaqui e agora, sem esperanças ereceios, sem as peias das crenças costumeiras e dos preconceitos tradicionais, calmamedesapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de conhecimento — conhecimento tão impesstão puramente contemplativo, quanto for possível ao homem alcançar. Logo, também o intelecto irá valorizar mais o conhecimento abstrato e universal, no qual os acidentes da história privada entram, do que o conhecimento dos sentidos, dependente, como tal conhecimento tem de estar, deponto de vista exclusivo e pessoal e de um corpo cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quarevelam.

A mente que se acostumou à liberdade e imparcialidade da contemplação filosófica irá presequalquer coisa dessa liberdade e imparcialidade no mundo da ação e da emoção. Irá ver os spropósitos e objetivos como partes do todo, com a ausência de obstinação que resulta de vê-los cofragmentos infinitesimais num mundo no qual nada do resto é afetado por qualquer dos feitos dehomem. A imparcialidade que, em contemplação, é o desejo sem misturas pela verdade, mesmíssima qualidade mental que, em ação, é a justiça, e na emoção é aquele amor universal que ser dado a todos, e não apenas aos que se julga serem úteis ou admiráveis. Assim, a contemplaalarga não apenas os objetos dos nossos pensamentos, mas também os objetos das nossas açõafecções: faz-nos cidadãos do universo, e não apenas de uma cidade murada em guerra com todresto. A verdadeira liberdade do homem, e a sua libertação da servidão de esperanças e rece

limitados, consistem nesta cidadania do universo.Bertrand RussellTradução de Desidério MurchoRetirado deThe Problems of Philosohy, de Bertrand Russell (Oxford University Press, 1912; trad.port.: Edições 70, em preparação)

Page 10: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 10/30

10

GUIA DE FILOSOFIA PARA PESSOAS INTELIGENTES*

Roger Scruton**

Porquê?

A filosofia — o ‘amor à sabedoria’— pode abordar-se de duas maneiras: ou fazê-la, ou estudar com

sido feita. O segundo modo é conhecido dos estudantes universitários, que se encontram confron

pelo mais vasto corpo de literatura jamais dedicado a uma só disciplina. Este livro segue o mode

antigo. Tenta ensinar filosofia ao fazê-la. Embora faça referência aos grandes filósofos, não o

nenhum guia para as suas ideias. Expor os seus argumentos no seu todo seria frustrar a minha int

principal, que é dar vida à filosofia. A vida, tal como nós a conhecemos, não é muito parecida com

de onde emergiu a nossa tradição filosófica. Platão e Sócrates eram cidadãos de uma pequena e f

cidade-estado, com critérios de virtude e de gosto publicamente aceites, em que a classe instruída d

a sua concepção da vida de uma única e incomparável colectânea de poesia, mas na qual outras for

conhecimento eram raras e preciosas. O reino intelectual ainda não tinha sido dividido em terri

soberanos, e o pensamento era uma aventura que se estendia em todas as direcções, repous

maravilhado diante esses precipícios da mente que nós agora conhecemos por filosofia.

____________________

* Primeiro capítulo de An Inteligent Person’s Guide to Philosophy publicado por Allen Lane, Penguin Press,London 1996. Tradução de Patrícia MacGowan Pinheiro e revisão de F. Rua.© Da trad. Port.: Patrícia MacGowan Pinheiro

** Sobre o autor:Roger Scruton reformou-se recentemente da Cadeira de Estética de Birkbeck College, Univerde Londres. Foi também ‘Visiting Professor’ na Universidade de Boston, EUA. É conhecidocrítico, romancista, conferencista, e aparece regularmente na televisão e na rádio. É direcrevistaSalisbury Reviewe os seus livros recentes incluemThinkers of the New Left(1986), Xanthippic Dialogues(1993), Modern Philosophy(1994) e Animal Rights and Wrongs(1996).

Diferente dos grandes atenienses, habitamos um superpovoado mundo de estranhos, do qual os cri

de gosto praticamente desapareceram, em que a classe instruída não retém uma cultura comum e

saber tem sido parcelado em especialidades cada uma reivindicando o seu monopólio interesseiro co

ondas de ideias divergentes. Nada neste mundo está fixo: a vida intelectual é uma vasta comoção,

uma miríade de vozes se esforça para ser ouvida através do ruído. Mas na medida que aume

Page 11: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 11/30

11

quantidade de comunicação vai diminuindo a sua qualidade; e o mais significativo sinal disto está n

de que enunciá-lo já não é aceitável. Criticar o gosto popular convida à acusação de elitismo, e d

distinções de valor — entre a virtude e o vício, o belo e o feio, o sagrado e o profano, o verdadei

falso — é estar contra o único juízo de valor que é largamente aceite: o juízo de que todos os juíz

condenáveis. Em tais circunstâncias a tarefa da filosofia terá que mudar. A filosofia, para Platão, su

as certezas de uma cultura comum e dirigia-se, através da dúvida e da admiração, ao reino da v

Hoje não existem certezas e nenhuma cultura comum merecedora desse nome. A dúvida é o refr

comunicação popular, o cepticismo estende-se em todas as direcções e a filosofia ficou privada

ponto de partida tradicional: a crença numa comunidade estável. Uma filosofia que assenta na dú

contra o que ninguém acredita e convida-nos a nada acreditar. Por mais importantes que sejam o

êxitos, na descrição da natureza e nos limites do pensar racional, tal filosofia agora arrisca-se a afas

vida circundante e a trair a antiga promessa da filosofia, que é a de nos ajudar, mesmo indirectam

viver sabiamente e bem.

No seu justamente célebre livro,Os Problemas da Filosofia , Bertrand Russell descreveu a filosofia nos

termos que o título implica: como uma série de problemas. ‘A filosofia é para estudar’, escreveu, ‘n

o propósito de obter respostas definitivas às suas perguntas, porque não há, regra geral, resp

definitivas conhecidas como verdadeiras, mas sim pelas perguntas em si mesmo’. Então, pod

perguntar, qual o objectivo de tal estudo? Porquê havíamos nós, que temos tão poucas respostas, d

as nossas energias a perguntas que não têm nenhumas? Para Russell, o propósito é o de tornar-s

intelecto livre, um intelecto que verá como Deus poderia ver, sem um aqui e agora, sem esperança

temores, sem os estorvos das crenças habituais e os preconceitos tradicionais, calmam

desapaixonadamente, no único e exclusivo desejo do saber — o saber como tão impessoal, com

puramente contemplativo, que é possível um homem atingir’. É fácil ser-se tentado por esta visão

estudo puramente abstracto, que é ao mesmo tempo um exercício da mais alta liberdade e uma libe

do costume, do preconceito e do aqui e agora. Mas a máscara da retórica é frágil, e transparece a an

de Russell. Ele sabe que temos que viver no aqui e agora e que a dificuldade em fazê-lo surge preci

porque as ‘crenças habituais e os preconceitos tradicionais’ vieram a perder a sua credibilidade. Nó

Page 12: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 12/30

12

criaturas esperançadas e tementes, e sem as nossas esperanças e temores seríamos incapazes de

receber amor. Ver calma e desapaixonadamente é correcto — mas só às vezes e só no que diz resp

alguns assuntos. Aliás, Russell publicou essas palavras em 1912, quando o cepticismo era o luxo

classe dominante e não a dieta quotidiana da humanidade.

Ao realçar questões abstractas, Russell é fiel à história da filosofia. O mérito de tais questõ

nos libertar das ilusões interesseiras; colocam-nos à uma distância do mundo das emoções e habilit

a vê-lo por um instante como se nós próprios não estivéssemos envolvidos. Mas os filósofos, com

outros seres humanos, têm a tendência de representar a seu próprio modo de vida como o melhor m

—talvez como o único modo de redenção. Ao libertarem-se de um conjunto de ilusões, caiem pre

outras, precisamente tão interesseiras, e com a vantagem extra de enobrecer a pessoa que as pro

Louvam a vida ‘desapaixonada’ e ‘contemplativa’, porque é a vida que eles escolheram. Dizem-no

Platão, que esta vida leva a uma visão de um mundo mais elevado; ou, como Espinosa, que ela m

nosso mundo a outra luz, ‘sob o aspecto da eternidade’. Censuram-nos pelos nossos modos sensu

lembram-nos delicadamente, nas palavras de Sócrates, que ‘a vida não examinada não é uma vida p

ser humano’. É tentador concordar com Nietzsche que o filósofo não está interessado na verdade, m

na minha verdade , e a coisa que se disfarça para ele como verdade não é mais do que o resíduo das

próprias emoções.

Tal juízo não é justo: nenhum dos juízos de Nietzsche o é. Mas têm o seu valor. A filosof

nossa tradição tem pressuposto a existência de uma abordagem simples e de senso comum qu

propriedade das pessoas vulgares e que a filosofia deve questionar. O resultado poderia ser o de sub

a visão normal, como o fez o próprio Nietzsche; ou poderia ser o de questionar a questão, com

Wittgenstein, e de nos restituir a nossa ‘forma de vida’ em comum como a única coisa que temos. T

sem aquele pressuposto, não há nenhuma normalidade para subverter ou reafirmar e a filosofia en

dificuldade em despontar. A peculiaridade da nossa condição é de que já não se pode formular

pressuposto. Confrontados com a ruína dos velhos modos, tradições, convenções, costumes e do

podemos unicamente sentir uma impotente ternura por estas coisas que se têm provado, como tudo

é humano, tanto mais fáceis de destruir quanto difíceis de criar. Mas, o que tem a filosofia a dizer e

Page 13: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 13/30

13

desta mudança momentosa — a mudança, como alguns a descrevem, do cepticismo moderno p

condição pós-moderna em que todas as crenças são simultaneamente postas em dúvida ou afirmada

entre aspas?

O filósofo checo T.G. Masaryk (1850-1937) atribuiu muitos dos males do mundo moder

‘meia-educação’. Era a proeminência na vida pública dos semi-educados, sugeriu, que provo

esperanças e destruiu as certezas do género humano. Toda a fé foi posta em dúvida, toda a mora

relativizada e todos as comodidades simples destruídas pela crítica sarcástica dos que puderam

ponto de questionarem os fundamentos da ordem social, mas não suficientemente longe para as apo

A queixa de Masaryk, assim como a declaração de fé no pensamento abstracto de Ru

pertencem a um outro mundo — o mundo que em breve iria desaparecer no turbilhão da Primeira G

Guerra, da qual Masaryk emergiu como presidente do novo estado de Checoslováquia. Contudo

profunda relevância para nós, cujo mundo ficou corrompido pelo o cepticismo, que desejamos

como proceder quando ninguém oferece orientação salvo aqueles que, por assim dizer, são escarne

Se a meia-educação subverte as nossas certezas, haverá uma educação total capaz de as restaurar?

restará nada, depois de todo o nosso pensar, salvo uma mão-cheia de pó?

Neste livro tento mostrar o que a filosofia tem para oferecer nesta nova condição. A sua ta

como eu a vejo, é de restaurar, de um modo pensado, o que tem sido danificado de um modo impen

Esta coisa danificada não é a religião, a moral ou a cultura, mas o mundo humano comum: o mun

sua inocência, o mundo apesar da ciência. É certo que Russell tem razão ao pressupor que a fi

começa com perguntas; também tem razão em considerar que ela procura respostas num rein

abstracção onde os interesses vulgares são afastados e substituídos pela contemplação. Mas, a ta

filosofia não termina nesta procura sem fim. Existe um caminho de retorno para o mundo hum

através do próprio pensamento abstracto que o corrói.

Nós somos seres racionais e é da nossa natureza levantar interrogações. Os cães e os gatos v

num ‘mundo de percepção’, para empregar uma expressão de Schopenhauer. Para eles a exper

presente é tudo e o pensamento nada mais é do que uma frágil ponte de antecipação que leva

experiência para a próxima. Nós, pelo contrário, somos assediados pela necessidade de ex

Page 14: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 14/30

14

Confrontados por qualquer coisa inusitada, o nosso pensamento não é ‘E agora?’ mas ‘Porquê

responder a esta segunda pergunta podemos responder à primeira. E isto, em resumo, é o mé

científico. Então onde é que reside a diferença entre ciência e filosofia? Ou será a filosofia simple

uma espécie de ciência generalizada, como foi para os seus primeiros praticantes — essas figuras t

como Tales ou Heraclito, que emergem da escuridão pré-histórica para nos dizer que ‘Tudo é água’,

existe fogo’, e cujas palavras enigmáticas ressoam através dos séculos como misteriosos gritos pr

Esta pergunta é de primeira importância, porque nada mudou a posição da filosofia como o êxi

ciência moderna.

As explicações científicas fornecem as causas do que observamos. Mas o conhecimento cie

seria muito menos útil do que é — não mais útil do que o conhecimento histórico — se não

susceptível de ser traduzido em previsões. O instrumento através do qual o diagnóstico se pode tr

em previsão é a ‘lei causal’, a lei que nos diz não só que um acontecimento é o efeito de um outro, m

acontecimentos do segundo tipo fazem com que acontecimentos do primeiro tipo são mais prováve

sentir-me doente depois de beber água da torneira do Alfredo, posso suspeitar que a água seja a ca

minha doença. Até aqui é só uma hipótese; é confirmada quando descubro que outras pessoa

beberam dessa torneira contraíram uma doença semelhante. Eu antevejo a lei que beber da torne

Alfredo torna provável uma doença. Esta proposição tem interesse por dois motivos: primei

definitivamente aberta: não se refere só aos casos até agora observados, mas à universalidade. Ao to

uma previsão estabeleceu o seu poder como diagnóstico. Segundo, é formulada em termo

probabilidade; não afirma que todos os que bebem da torneira do Alfredo irão adoecer, mas só qu

efeito é provável. A probabilidade é mensurável. Se sessenta por cento dos casos observados produz

dado resultado, então concluímos que, com base na evidência, existe uma probabilidade de sessen

cento de que o próximo caso também o produzirá.

Isto é um exemplo bastante simplista de ciência. À questão, ‘Porque fiquei doente?’ ofe

resposta ‘Porque bebi da torneira do Alfredo', mas esta resposta convida a outra pergunta: ‘Porque

beber da torneira do Alfredo causa doença?’. Tais perguntas são prosseguidas até o ponto onde as

causalidade se tornam ‘leis da natureza’ — leis que não registam simplesmente as nossas observaç

Page 15: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 15/30

15

que descrevem o mecanismo subjacente. Descobrimos que um organismo vive no tanque de ág

Alfredo e que este organismo pode também viver no sistema digestivo humano e causar inflama

uma lei da natureza que organismos deste tipo possam viver desta maneira e é uma lei da natureza

sistema digestivo humano reaja assim à sua presença. Esta não é simplesmente uma afirmação sobr

observamos, mas uma afirmação sobre como são as coisas. Podemos aprofundar o assunto ao desc

reacção química exacta que precipita a inflamação e por aí adiante. E quanto mais profundo mais fi

nosso entendimento da doença, mais provável é a nossa possibilidade de encontrarmos uma cura pa

mais capazes seremos de evitar o seu alastramento.

A natureza e os limites do método científico são assuntos de aceso debate entre os filó

académicos. Mas isto, pelo menos, é sugerido pelo meu exemplo. Primeiro, que a procura das

implica uma procura das leis; segundo, que as leis são afirmações de probabilidade; terceiro, que

elas próprias, são explicadas por leis mais amplas e gerais; quarto, que quanto mais longe form

investigação das causas de qualquer coisa, podemos sempre ir mais longe; e, finalmente, que ma

formos, mais remotos nos encontramos do mundo de observação. No fim do nosso inquérito pode

estar a descrever processos que não são de todo observáveis — até processos, como os da física qu

que não podemos observar e que são praticamente indescritíveis na linguagem de observação.

mostra a mecânica quântica, o conceito de probabilidade, que aparece na nossa primeiríssima hi

reaparece no diagnóstico final: o mundo da natureza é regido por leis, mas nenhuma lei científica, p

profunda seja, é mais do que uma afirmação de probabilidade. Não se pode dizer que o mundo natutem

que ser assim mas, no melhor dos casos, que é extremamente provável que seja assim.

Numa uma certa etapa da sua história recente, a filosofia era dominada pelos ‘positivistas ló

cuja escola teve origem em Viena de Áustria entre as duas guerras e cujas ideias foram trazidas aos

anglófonos por A.J. Ayer no seu famoso livro,Language, Truth and Logic(1936). Os positivistas tinham um

fascínio pela ciência, cujos resultados e métodos pareciam tão claros e indiscutíveis quando confro

com ononsensepomposo da filosofia. Eles procuraram explicar por que as pessoas podem argumentar

proveito sobre questões científicas a partir de uma compreensão comum dos seus significados enqu

disputas filosóficas parecem intermináveis, com cada participante a inventar as regras. Concluíram

Page 16: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 16/30

16

conjunto das proposições filosóficas não tem sentido e propuseram, como meio para acabar c

assunto, um critério de significado chamado o ‘princípio de verificação’. Este diz que o significado

frase é dado pelo seu método de verificação — o procedimento para determinar se é verdadeiro ou

As proposições científicas têm sentido porque são testadas por observação. Nenhuma observ

experiência ou análise pode determinar se é verdade uma proposição como ‘O Absoluto é Uno e ab

totalidade’; devemos, por conseguinte, rejeitar a frase como sendo sem sentido.

O positivismo lógico já não tem adeptos e é fácil perceber porquê. O princípio de verificaçã

pode ser verificado: por conseguinte condena-se a si próprio como sendo sem significado. A vis

ciência dos positivistas continua, contudo, muito influente. Numerosos filósofos encaram a obse

não só como a via para a verdade científica mas também como o verdadeiro objectivo da ciência. A

as teorias são generalizadas a partir de observações e tecem-nas numa tapeçaria sem costura. Em

análise, é isto que significam. A realidade é aparência sistemática e as teorias são sinopses de observ

Voltemos ao meu exemplo e verificamos quanto esse quadro é estranho. A ciência pode par

observação. O seu propósito, contudo, não é de condensar aparência mas de distinguir a aparên

realidade. A ciência é uma viagem de descoberta que passa do observado para o inobservado, e daí

inobservável. Os seus conceitos e teorias descrevem uma realidade tão remota do mundo da aparên

mal podemos imaginá-la e, enquanto os seus resultados sãotestadosatravés da observação, isto não é mais

do que uma consequência trivial do facto de que a observação é o que significa ‘testar’. A ciência e

aparência do mundo mas não a descreve.

Isto quer dizer que a reivindicação tantas vezes feita a favor da filosofia, que ela mostra arealidade

por detrás dasaparências , poderia de igual modo e mais plausivelmente, ser feita a favor da ciência. E s

métodos da ciência são acordados, certos e indiscutíveis, enquanto os da filosofia são obs

controversos e vagos, que necessidade tem nós da filosofia? Qual a contribuição que a filosofia pod

nossa visão do mundo?

Eis aqui uma resposta a estas perguntas. A ciência começa quando fazemos a pergunta ‘Po

Leva-nos do acontecimento observado às leis que o governam, e assim por diante até a leis mais

gerais. Mas, onde é que acaba o processo? Se cada resposta suscita outra pergunta, então as expl

Page 17: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 17/30

17

científicas ou são incompletas ou são intermináveis (que é outra maneira de serem incompletas).

caso a ciência deixa pelo menos uma pergunta sem resposta. Continuamos a não saber por que é

sequência de causas existe: o porquê deste acontecimento pode encontrar-se naquele; mas que di

‘Porquê’ do mundo? Os cosmólogos discutem acerca das ‘origens do universo’, uns argumentando

do big bang , outros a favor de uma condensação lenta. Mas, de acordo com o problema, tais pergu

deixam a questão crucial sem resposta. Mesmo se concluirmos que o universo começou do nad

dado momento, há outra coisa que exige explicação, nomeadamente, ‘as condições iniciais’ qu

existiam. Algo era verdade a respeito do universo no tempo zero, nomeadamente, queeste grande

acontecimento estava prestes a irromper para a existência e a gerar efeitos de acordo com leis que j

nesse instante inicial, soberanas. E qual é o porquê deisso?

Um positivista rejeitaria uma tal pergunta como destituída de sentido. Também seria o ca

muitos cientistas. Mas se o único motivo para assim reagir é de que a ciência não pode responder, e

réplica é interesseira.Certamente que a pergunta não tem resposta científica: é a pergunta para além

ciência, a pergunta que fica quando toda a ciência estiver escrita. É uma questão filosófica.

Muito bem, dirá o céptico; mas não se segue que não haja uma resposta. Porventura as perg

filosóficas surgem na margem do nosso pensamento, onde a ordem da razão deixa de se aplicar,

aparecem mais respostas. Kant naCrítica da Razão Pura , tentou mostrar que assim podia ser. Mas era

necessário um filósofo para argumentar a questão e, se Kant tiver razão, então pelo menos uma pe

filosófica tem resposta. Por quê questionar se a pergunta acerca da explicação do universo tem

resposta, é uma pergunta filosófica e não científica; e a resposta, segundo Kant, é não.

Nem todos os filósofos estiveram de acordo com ele. Existe um argumento, conhecido pelo n

que lhe foi dado por Kant, mas da autoria de S. Anselmo, Arcebispo de Cantuária no século onz

oferece a explicação final e completa de tudo, demonstrando que ao menos uma coisa existenecessariamente .

O ‘argumento ontológico’ é normalmente apresentado como uma prova da existência de Deus.

susceptível de uma interpretação mais ampla e reaparece em Espinosa e Hegel como resposta final

os ‘Porquês?’. Diz-nos que Deus é, por definição, a soma de todas as perfeições e então a existên

faz parte da perfeição, pertence à sua essência. Eletem que existir e a questão por que existe, responde a el

Page 18: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 18/30

18

própria . Como a existência de Deus explica todo o resto, nenhum ‘Porquê?’ fica sem resposta, nem m

o ‘Porquê’ do mundo.

Enunciado assim sumaria e cruamente, o argumento tem o aspecto de um sofisma.

conseguinte nunca é enunciado sumaria e cruamente mas envolvido em subtilezas manhosas. De fa

único argumento a favor da existência de Deus que ainda está vivo e que talvez sempre estivess

mesmo antes de S. Anselmo o explicitar. Qual é realmente o significado das palavras sublimes que

o Evangelho segundo S. João? No princípio, escreve o evangelista, já existia o Verbo, ologos.Na filosofia

grega logos quer dizer não só palavra, masrazão, argumento, narrativa: qualquer resposta à pergunta

‘Porquê?’. Por outras palavras ou, melhor, nas mesmas palavras se ficarmos com o grego: No pr

existia o porquê que responde a si mesmo.

O Fausto de Göethe, meditando sobre esta passagem, oferece uma melhoria: não são as pa

mas os actos que iniciam as coisas e se o mundo faz sentido para nós, é porqueim Anfang war die Tat:no

princípio existia a acção. Não perguntemos ‘Acção de quem?’, porque uma tal questão lança-nos m

vez na interminável cadeia das causas. Em vez disso perguntemos como o ‘Porquê?’ das co

modificado, quando nós as vimos não meramente como acontecimentos mas como acções. Quan

juiz me pergunta porque pus arsénico no chá da minha mulher, não irá ficar satisfeito se eu disser ‘P

os impulsos eléctricos do meu cérebro causaram que a minha mão pegasse no frasco e a esvazia

chávena de chá’ — embora esta possa ser uma resposta verdadeira à pergunta ‘Porquê?’ construída

os cientistas a entendem, como um requisito para a causa. Por isso é uma respostade tipo incorrecto.

Parece, por conseguinte, que a pergunta ‘Porquê?’ é ambígua. Por vezes é respondida apon

uma causa, por vezes apontando umarazão. O juiz estava a perguntar qual era o meuobjectivo. Se eu

responder que me tinha enganado com o frasco, tomando-o por uma garrafa de whisky; que a m

intenção era de ministrar somente uma pequena dose de arsénico como aviso; ou que tencionara m

porque francamente estava farto — então, em cada caso ofereci uma razão para a minha acção e a re

é pertinente. Há filósofos que dizem que as razões são causas, embora causas de um tipo especi

relação às três respostas que esbocei estas são explicações válidas e o que é uma explicação,

mencionar uma causa? Mas isto não chega ao âmago da questão. A peculiaridade das razões

Page 19: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 19/30

19

podemos argumentar com elas; podemos aceitá-las ou rejeitá-las; podemos oferecer contra-razões e

ou condenar o agente por causa delas. Mesmo se as razões são causas, foram elevadas do reino neu

teoria científica e dotadas de um significado moral.

A ambiguidade pode aqui exprimir-se de outra forma. Por vezes explicamos as nossas acçõe

vezes justificamo-las. E, enquanto as explicações são verdadeiras ou falsas, as razões podem ser

más. Pertencem ao interminável diálogo moral através do qual as pessoas se relacionam umas

outras e com o mundo, e não constitui surpresa se tiverem uma estrutura inteiramente diferente

utilizarem conceitos inteiramente diferentes das explicações oferecidas pela ciência do comportam

minha resposta original ao juiz era absurda não porque era falsa mas, porque removeu a minha ac

esfera do julgamento e descreveu-a em termos que não lhe fazem referência como sendominha . Contudo,

estes são precisamente os termos que devemos esperar da ciência do comportamento: porque ident

o mecanismo subjacenteque explica aquilo que observamos.

Encontramos aqui, e não pela primeira vez nesta obra, um paradoxo persistente. Parece

descrevemos o mundo de duas maneiras bem diversas — como o mundo que noscontém e como o mundo

em que agimos. Fazemos parte da natureza, obediente às leis naturais. Mas também nós nos distan

da natureza e tomamos opções que acreditamos serem livres. A natureza tem sentido para nós — m

sentidos — e nós classificamo-la em termos que não encontram lugar em teorias científicas. Q

vimos o sorriso de outra pessoa vemos o corpo humano a mexer em obediência aos impulsos dos n

Nenhuma lei da natureza fica suspensa neste processo; sorrimos, não apesar, mas por causa da nat

No entanto, entendemos um sorriso dum modo inteiramente diferente: não como corpo, mas c

espírito, livremente revelado. Um sorriso é sempre mais do que corpo para nós, mesmo se for só cor

A questão ‘Porquê?’, quando perguntada num sorriso, está à procura de um significado. Tal

estejas a sorrir por um motivo; mas mesmo se não tiveres nenhuma razão pode haver um porquê p

teu sorriso. Eu posso entendê-lo como gesto de aceitação serena. E isso responde à pergunta p

sorris, mesmo se não formula, nem a justificação nem a causa. A descriçãotorna o sorriso inteligível. Eis,

então, outro ‘Porquê’ e um que pode aplicar-se muito mais amplamente do que para seres human

porquê de uma nota de música, ou a linha numa pintura, é assim. Entendemos porque o acórdã

Page 20: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 20/30

20

abertura de Tristão se dissolve na dominante sétima do A menor, não por saber a razão de Wagner

escrever isso, ainda menos ao procurar uma causa, mas apreendendo o peso dos dois acórdãos enq

se contra-balançam, ouvindo a voz leader que se move entre eles, e repousando com a músic

esperança de uma outra resolução que nunca mais chega. A crítica descreve o porquê desta músic

não precisa da sua descrição para entender o que se ouve, assim como não se precisa de uma des

para compreender um sorriso. O entendimento ésui generis , uma parte da nossa maneira de nos

relacionarmos com o mundo enquanto nos relacionamos com ele como seres livres.

É aqui que encontramos outra tarefa para a filosofia, e talvez a sua mais importante tarefa d

dos nossos pressupostos. Quando respondemos ao mundo como seres livres, procuramos significa

razões, dividimos o mundo segundo os nossos interesses, não segundo a sua natureza interna co

ciência nos apresenta. Na realidade, o sentido do mundo está guardado em concepções que, enq

indispensáveis para o ‘Porquê?’ da liberdade, não encontram lugar na linguagem da ciência: con

como a beleza, a bondade e o espírito que crescem no parco solo superficial do discurso humano

solo superficial sofre rapidamente a erosão quando a flora é removida e existe o risco de que dor

nunca mais algo crescerá. Podemos ver o processo em curso na questão do sexo. A sexualidade h

tem sido normalmente entendido através de ideias do amor e do pertencer. Um bosque encantad

ideias e de imagens literárias protegia essas concepções, e homens e mulheres viveram lá den

felicidade, ou ao menos numa infelicidade flexível. O sexólogo desbrava todo este emaranhado m

para revelar a verdade científica das coisas: os órgãos animais, os impulsos não-moralizados, as se

formigantes que figuram nesses impiedosos relatórios sobre o comportamento de humanóides amer

O significado da experiência não desempenha nenhum papel na descrição científica. Uma vez que c

detém ou, ao menos assume, a soberania absoluta sobre o que é verdade, o significado chega a se

como uma ficção. As pessoas podem brevemente esforçar-se por reinventá-lo, por vezes esperando

melhor. Falhando, porém, caiem num estado de hedonismo cínico, troçando dos casmurros que acre

haver mais no sexo do que a biologia.

Este é um exemplo dum processo que o grande sociólogo Max Weber (1864-1920) ch

Entzauberung — desencanto. A filosofia é-nos útil, precisamente porque ela, e só ela, pode reivindic

Page 21: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 21/30

21

conceitos através dos quais entendemos e agimos sobre o mundo: conceitos como o da pessoa, qu

têm lugar na ciência mas que descrevem o que entendemos, quando nos relacionamos com o m

como ele é realmente para nós. A tentativa científica de explorar o ‘fundo’ das coisas humana

acompanhada por um perigo singular. Porque ameaça a nossa resposta à superfície. Mas, é na sup

que vivemos e agimos: é aí que somos criados, como aparências complexas sustentadas pela inte

social que nós, como aparências, também criamos. É neste magro solo superficial que as semen

felicidade humana são plantadas e o temerário desejo de as relegar para longe— um desejo qu

inspirado todas essas ‘ciências do homem’, de Marx e Freud até à sociobiologia — priva-nos de

consolação. A filosofia é importante, por conseguinte, como exercício de ecologia conceptual. É

tentativa de último reduto para re-encantar o mundo, e assim ‘salvar as aparências’. E como disse

Wilde, só uma pessoa muito frívola é que não julga pelas aparências.

A filosofia surge, por conseguinte, de dois modos contrastantes: primeiro, na tentativ

completar o ‘Porquê?’ de explicação; segundo, ao tentar fundamentar os outros tipos do ‘Porquê

‘Porquê?’ que procura a razão, e o ‘Porquê?’ que busca um sentido. A maioria dos ramos tradicio

disciplina deriva destas duas tentativas, a primeira das quais é vã, a segunda, a nossa melhor f

esperança.

Page 22: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 22/30

22

O que é a filosofia? Nigel Warburton

O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis deresponder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos dePlatão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofosfamosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está acomeçar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nadadesses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode mesmo assim ser difícil dizer oque têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos.Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega quesignifica «amor da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizerapenas que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentáriosgerais sobre o que é a filosofia.

A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característicamais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é, tipicamente,argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem asduas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitasvezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida oupara referir algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivoé lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com osgregos antigos e que tem prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.

Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quasetoda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas como que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e domal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outrosassuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crençasfundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar?Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhumacircunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Aoexaminarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. Oestudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajudaa clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-seuma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas -- umacapacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.

A filosofia e a sua história

Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiroparágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as

contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro.Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficasparticulares e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante eimportante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: osdiálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o EntendimentoHumano, de David Hume e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos,são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar deo estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste livro é oferecer ao leitorinstrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz deexplicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas

Page 23: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 23/30

23

não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias humanas; muitaspessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.

Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos,uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores não podemoster a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimentoda história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que játinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que estáerrado no trabalho dos filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como este, é impossível

fazer justiça às complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras complementares,sugeridas no fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais vasto os assuntosaqui discutidos.

Porquê estudar filosofia?

Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os filósofosfazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir quaisquerconclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é virtualmente nula.Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos gregos. Pareceque a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.

Qual é afinal a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases fundamentais danossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes de fazer o que quer queseja, paralisados por fazer demasiadas perguntas. Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmentea de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos altamente abstractos no conforto de um sofá,numa sala de Oxford ou Cambridge, mas incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguémque consegue explicar as mais complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não conseguecozer um ovo.

A vida examinada

Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões fundamentaisacerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da suavida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há algumademonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz com quealgumas acções sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para violara lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenasseres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.

A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine estasquestões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar. Persistir numaexistência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia pode ser comoconduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos justificadamente confiar nos travões, nadirecção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficientemente bem até agora; mas estaconfiança pode ser completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharemprecisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais a nossa vidase baseia podem ser inteiramente sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a

certeza disso.Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos anossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de pensar.Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente inquietante colocar estetipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e confortáveis com os seus preconceitos.Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de encontrar respostas a questões filosóficas querepresentem um desafio.

Aprender a pensar

Page 24: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 24/30

24

Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de aprender apensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do pensamento filosóficopodem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar os argumentos a favor econtra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser aplicadas noutras áreas da vida. Muitaspessoas que estudam filosofia aplicam depois as suas aptidões em profissões tão diferentes quantoo direito, a informática, a consultoria de gestão, o funcionalismo público e o jornalismo - áreas onde aclareza de pensamento é um grande trunfo. Os filósofos usam também a perspicácia que adquiremacerca da natureza da existência humana quando se voltam para as artes: alguns filósofos foramtambém romancistas, críticos, poetas, realizadores de cinema e dramaturgos de sucesso.

[...]

A filosofia é difícil?

A filosofia é muitas vezes descrita como uma disciplina difícil. Há vários tipos de dificuldadesassociadas à filosofia, algumas delas evitáveis.

Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos problemas com os quais os filósofos profissionais lidamexigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento abstracto. Contudo, o mesmo seaplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a esse respeito, a filosofia não é diferente dafísica, da teoria literária, da informática, da geologia, da matemática ou da história. Tal comoacontece com estas e outras áreas de estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmenteoriginal na área respectiva não deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns oconhecimento dos avanços dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodosbásicos.

Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os filósofosnem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar claramente assuas próprias ideias. Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em atingir umapequeníssima audiência de leitores especializados; outras vezes, porque usam uma gíriadesnecessariamente complicada que se limita a confundir os que com ela não estão familiarizados.Os termos especializados podem ser úteis para evitar explicar certos conceitos sempre que sãousados. Contudo, há entre os filósofos profissionais uma tendência infeliz para usar termosespecializados como um fim em si; muitos usam expressões latinas apesar de existirem equivalentesportugueses perfeitamente aceitáveis. Um parágrafo cheio de palavras desconhecidas e de palavrasconhecidas usadas de forma desconhecida pode intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrevernuma linguagem inventada por eles. Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do quena verdade é.

[...]

Os limites do que a filosofia pode fazer

Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam que afilosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam que afilosofia lhes irá revelar o sentido da vida e explicar todas as facetas das nossas complexasexistências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões fundamentais rela-

cionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma imagem acabada, se éque de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alternativa ao estudo da arte, dahistória, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da política e da ciência. Estas diferentesdisciplinas concentram-se em diferentes aspectos da vida humana e oferecem diferentes tipos deesclarecimentos. Alguns aspectos da vida das pessoas resistem à análise filosófica e até talvez aqualquer outro tipo de análise. É por isso importante não esperar demasiado da filosofia.

WARBURTON, Nigel (1998). Elementos básicos de filosofia. Lisboa: Gradiva, páginas 19 – 27.

Page 25: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 25/30

Page 26: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 26/30

26

O QUE É A FILOSOFIA? deThomas Nagel,Universidade de Nova Iorque

As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termaprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começampensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos salguma coisa, se alguma coisa é realmente correcta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica directamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.

Este livro é uma introdução directa a nove problemas filosóficos, cada um dos quais pode entendido por si mesmo, sem referência à história do pensamento. Não discutirei os grandes escrfilosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em cequestões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneiracomeçar o estudo da filosofia é pensar directamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramonuma posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesproblemas.

A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da matemática

tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando ide pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmentnossos conceitos.

A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender ideias muito comuns que usatodos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinmomento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pinvestigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um fperguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar cpodemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar coas crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra signifqualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, ma

filósofo perguntará: «O que torna uma acção boa ou má?»Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as ideias de tempo, número, conhecimelinguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisaobjectivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fQuanto mais básicas são as ideias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajuNão há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por issfilosofia é uma actividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desapor muito tempo. Texto retirado deQue Quer Dizer Tudo Isto?, de Thomas Nagel (tradução de TeresaMarques, Gradiva, 1995) Copyright © 1997–2007 criticanarede.com ISSN 1749-8457Direreservados. Não reproduza sem citar a fonte. Termos de utilizaçãohttp://criticanarede.com/termos.html.

Page 27: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 27/30

27

PARA QUE SERVE A FILOSOFIA?, de Simon Blackburn, Universidade de Cambridge

Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmo-nos? Qual é o interesse? A reflexãopõe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos deas perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostaselevada, a intermédia e a chã.

A resposta elevada põe em questão a pergunta — uma estratégia filosófica típica, pois implica sum grau na ordem da reflexão. Que queremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflenão coze o pão, mas também a arquitectura não o faz, nem a música, a arte, a história ou a literaAcontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal comespecialistas em ciências ou matemáticas puras podem querer compreender o princípio do universoa teoria dos conjuntos, pelo seu valor intrínseco, ou como um músico pode querer resolver algproblemas na harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se fazemfunção de aplicações práticas. Grande parte da vida trata-se de facto de criar gado para poder commais terra, para poder criar mais gado, para poder comprar mais terra… Os momentos em que libertamos disso, seja para fazer matemática ou música, para ler Platão ou Eça de Queirós, devemacarinhados. São momentos em que desenvolvemos a nossa saúde mental. E a nossa saúde menboa em si, como a nossa saúde física. Além disso, há no fim de contas uma recompensa em termoprazer. Quando temos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e quando temos saúde menta

exercício mental dá-nos prazer.Esta é uma resposta purista. Esta resposta não está errada, mas tem um problema. Acontece provavelmente só consegue ser atraente para as pessoas que já estão parcialmente convencidaspessoas que não fizeram a pergunta original num tom de voz muito agressivo.

Por isso, eis uma resposta intermédia. A reflexão é importante porque está nacontinuidade com aprática. O modo como pensamos sobre o que estamos a fazer afecta o modo como o fazemos, oumesmo se o chegamos a fazer; pode conduzir a nossa investigação, ou a nossa atitude relativamenpessoas que fazem as coisas de modo diferente, ou até toda a nossa vida. Tomemos um exemsimples: se as nossas reflexões nos levarem a acreditar na vida depois da morte, podemos epreparados para enfrentar perseguições que não enfrentaríamos se nos convencêssemos — co

muitos filósofos — de que a noção não faz sentido. O fatalismo, ou a ideia de que o futuro edeterminado, seja o que for que façamos, é uma convicção puramente filosófica — mas é uconvicção que tem o poder de paralisar a acção. Em termos mais políticos, pode também exprimaceitação do baixo estatuto social atribuído a alguns segmentos da população, o que pode reconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos mais elevados, encorajam essa aceitação

Consideremos alguns exemplos mais prevalecentes no Ocidente. Ao reflectir sobre a natureza hummuitas pessoas pensam que, no fundo, somos inteiramente egoístas. Só procuramos a nossa próvantagem e nunca nos preocupamos realmente com mais ninguém. Quando parece que npreocupamos com os outros, isso apenas disfarça a nossa esperança num benefício futuro para mesmos. O paradigma principal nas ciências sociais é ohomo economicus — o homem económico. Ohomem económico toma conta de si, numa luta competitiva com os outros. Ora, se as pesspensarem que somos todos assim, sempre, as suas relações com os outros transformam-se; pois temenos confiança nos outros, serão menos cooperativos e mais desconfiados. Isto muda o modo cinteragem com os outros, o que acarreta vários custos. Irão descobrir que é difícil, e por veimpossível, manter actividades cooperativas: podem ficar encurralados naquilo a que o filósThomas Hobbes (1588-1676) chamou «a guerra de todos contra todos». Na vida real, essas pessterão um alto custo a pagar, pois estão sempre a pensar que estão a ser enganadas. Se a minha atitfor a de que «um contrato verbal não vale o papel em que está escrito», terei de pagar a advogados conceber contratos com sanções, e se eu não confiar nos advogados por pensar que eles nada faexcepto encher-se de dinheiro à custa dos outros, terei de contratar outros advogados para verifica

Page 28: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 28/30

28

o trabalho dos primeiros advogados, e assim por diante. Mas tudo isto pode estar baseado num filosófico, que consiste em olhar para a motivação humana através de um conjunto de categoerradas, compreendendo portanto de forma errada a sua natureza. Talvez as pessoas possam imporse umas com as outras, ou talvez possam pelo menos preocupar-se em cumprir a sua parte e em maas suas promessas. Se tivermos uma imagem mais optimista, talvez as pessoas possam viver de accom essa imagem. Talvez as suas vidas melhorem. Assim, pensar um pouco, encontrar as categocertas para compreender a motivação humana, é uma tarefa prática importante. Não é algo que estejaconfinado ao escritório; pelo contrário, é algo que extravasa o escritório.

Eis um exemplo muito diferente. O astrónomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543) reflectiu scomo temosconhecimento do movimento. Copérnico percebeu que o modo como compreendemos movimento depende da nossa perspectiva:isto é, a questão de saber se vemos ou não os objectos emmovimento é o resultado do modo como nós próprios estamos colocados e, em particular, resultaquestão de saber se nós próprios estamos ou não em movimento. (Sobretudo em comboios ou aeroportos, já tivemos a ilusão de ver o comboio ou avião que está ao lado do nosso a começamovimentar-se, apercebendo-nos depois, com um sobressalto, que somos nós que estamos movimento. Mas no tempo de Copérnico havia menos exemplos quotidianos.) Assim, os movimeaparentes das estrelas e dos planetas poderiam ocorrer não por eles se movimentarem como aparenmas por causa do nosso próprio movimento. E afinal as coisas são mesmo assim. Neste casoreflexão sobre a natureza do conhecimento — o que os filósofos chamam «investigaepistemológica», do gregoepisteme, que significa conhecimento — deu origem ao primeiro grandesalto da ciência moderna. As reflexões de Einstein sobre o modo como sabemos que dacontecimentos são simultâneos tinham a mesma estrutura. Einstein percebeu que os resultadosnossas medições iriam depender da direcção em que estamos a viajar relativamente aos acontecimeque estamos a cronometrar. Isto conduziu à teoria da relatividade especial (e o próprio Einsreconheceu a importância dos filósofos que o precederam, ao sensibilizarem-no para as complexidepistemológicas de tais medições).

Como exemplo final, podemos considerar um problema filosófico que muitas pessoas enfrenquando pensam sobre a mente e o corpo. Muitas pessoas têm em vista uma separação estrita entmente, como uma coisa, e o corpo, como uma coisa diferente. Embora isto possa parecer apenas bsenso, pode começar a contaminar a prática de uma maneira bastante insidiosa. Por exemplo, come

ser difícil ver como estas duas coisas diferentes interagem. Os médicos podem então achar quinevitável que falhem os tratamentos das condições físicas que respondem a causas mentais psicológicas. Podem achar praticamente impossível ver como interferir na mente de alguém palguma vez causar mudanças no sistema físico complexo que é o seu corpo. Afinal, a boa ciêncianos que é necessário ter causas físicas e químicas para ter efeitos físicos e químicos. Logo, podeter uma certezaa priori, uma certeza de poltrona, de que um certo tipo de tratamento (drogas choques eléctricos, por exemplo) tem de estar «correcto» e que outro tipo de tratamento (como tros pacientes humanamente, o aconselhamento e a análise) está «errado»: não é científico, não é sóestá condenado a falhar. Mas esta certeza não tem como premissa a ciência mas uma falsa filosofia.Uma concepção filosófica melhor da relação entre a mente e o corpo muda essa certeza. Uconcepção melhor deve permitir-nos ver que nada há desurpreendente no facto de haver interacçãomente-corpo. Um dos factos mais corriqueiros, por exemplo, é que pensar em algumas coisas (dommental) pode fazer corar (domínio físico). Pensar num perigo futuro pode causar todo o tipomudanças corporais: o coração bate rapidamente, os punhos fecham-se, as entranhas contraem-se.extrapolação, não deve haver qualquer dificuldade em compreender que um estado mental comoalegre optimismo possa afectar um estado físico como o desaparecimento de manchas na pele ou remissão de um cancro. O problema de saber se tais coisas acontecem realmente transforma-se nquestão puramenteempírica. A própria certeza de poltrona de que tais coisas não poderiam acontecerafinal algo que depende de uma má compreensão das estruturas do pensamento, ou por outras palavmá filosofia — e nesse sentido é anti-científica. E perceber isto pode melhorar as atitudes e as prátmédicas.

Page 29: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 29/30

29

Assim, a resposta intermédia chama-nos a atenção para o facto de a reflexão estar na continuidade a prática, podendo a nossa prática ser melhor ou pior de acordo com o valor das nossas reflexões. sistema de pensamento é algo em que vivemos, tal como uma casa, e se a nossa casa intelectual esfechada e for limitada, precisamos de ver que outras estruturas melhores serão possíveis.

A resposta chã limita-se a sublinhar um pouco este aspecto, não relativamente a belas discipligraciosas como a economia e a física, mas relativamente ao piso térreo onde a vida humana épouco menos elegante. Uma das séries de sátiras gravadas pelo pintor espanhol Goya tem por títulSono da Razão Produz Monstros». Goya pensava que muitas das loucuras da humanidade resultado «sono da razão». Há sempre pessoas prontas a dizer-nos o que queremos, a explicar-nos comovão dar essas coisas e a mostrar-nos no que devemos acreditar. As convicções são contagiosas, possível convencer as pessoas de praticamente tudo. Geralmente, estamos dispostos a pensar qunossos hábitos, asnossas convicções, anossa religião e osnossos políticos são melhores do que osdeles, ou que osnossos direitos dados por Deus anulam os direitos deles, ou que osnossos interessesexigem ataques defensivos ou dissuasivos contra eles. Em última análise, trata-se de ideias que faas pessoas matarem-se umas às outras. É por causa de ideias sobre o que os outros são, ou qusomos, ou o que os nossos interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimos os oude consciência tranquila, ou até aceitamos por vezes ser oprimidos. Quando estas convicções implo sono da razão, o despertar crítico é o antídoto. A reflexão permite-nos recuar, ver que talvez a nperspectiva sobre uma dada situação esteja distorcida ou seja cega, ou pelo menos ver se argumentos a favor dos nossos hábitos, ou se é tudo meramente subjectivo. Fazer isto bem é pôrprática mais alguma engenharia conceptual.

A reflexão pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que não podemos saber à partida onos conduzirá. Há sempre pensamentos que se opõem à reflexão. As questões filosóficas fazem mpessoas sentirem-se desconfortáveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas têm medo que as suas idpossam não resistir tão bem como elas gostariam se começarem a pensar sobre elas. Outras podquerer basear-se nas «políticas da identidade» ou, por outras palavras, no tipo de identificação cuma tradição, grupo ou identidades nacionais ou étnicas particulares que os convida a voltar as cosestranhos que coloquem em causa os hábitos do grupo. Essas pessoas irão minimizar a crítica: os valores são «incomensuráveis» relativamente aos valores dos estranhos. Só os irmãos e irmãs docírculo podem compreendê-las. Algumas pessoas gostam de se refugiar num círculo espe

confortável e tradicional de tradições populares, sem se preocuparem muito com a sua estruturasuas origens, ou mesmo com as críticas que possam merecer. A reflexão abre a avenida da crítica, tradições populares podem não gostar da crítica. Neste sentido, as ideologias tornam-se círcfechados, prontas a sentirem-se ultrajadas pelo espírito interrogante.

Nos últimos 2 mil anos, a tradição filosófica tem sido a inimiga deste tipo de complacênconfortável. Tem insistido na ideia de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Tinsistido no poder da reflexão racional para descobrir o que há de errado nas nossas práticas, e parsubstituir por práticas melhores. Tem identificado a auto-reflexão crítica com a liberdade — e a idque só quando nos conseguimos ver a nós mesmos de forma adequada podemos controlar a direcem que desejamos caminhar. Só quando conseguimos ver a nossa situação de forma estável e a vena sua totalidade podemos começar a pensar no que fazer a seu respeito. Marx disse que os filósanteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passo que o que era preciso era mudá-louma das asserções famosas mais tolas de todos os tempos (e completamente desmentida pela própria prática intelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado que sem compreendmundo, pouco saberemos em termos de como o mudar — pelo menos para melhor. RosencranGuildenstern admitem não saber tocar gaita-de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quando agisem compreensão, o mundo está perfeitamente preparado para dar voz à reacção de Hamlet: «Penque eu sou mais fácil de controlar que uma gaita-de-foles?»

Page 30: Apostila de Filosofia Geral

8/15/2019 Apostila de Filosofia Geral

http://slidepdf.com/reader/full/apostila-de-filosofia-geral 30/30

Há correntes académicas no nosso tempo que são contra estas ideias. Há pessoas que questionaprópria noção de verdade, de razão, ou a possibilidade da reflexão desapaixonada. Na sua maior pfazem má filosofia, muitas vezes sem saberem que é isso que estão a fazer: são engenheiconceptuais que não conseguem desenhar um plano, quando mais conceber uma estrutura. Voltarea esta questão várias vezes ao longo do livro, mas para já posso prometer que este livro está de levantada ao lado da tradição e contra qualquer cepticismo moderno, ou pós-moderno, quanto ao vda reflexão.

O mote completo de Goya para a sua gravura é o seguinte: «A imaginação abandonada pela raproduz monstros impossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a fonte dos seus encantos». É assimdevemos encarar as coisas.

Retirado dePense: Uma introdução à filosofia, de Simon Blackburn (Lisboa: Gradiva, 2000).