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Área de Competências-Chave
Cultura, Língua e Comunicação
RECURSOS DE APOIO À EVIDENCIAÇÃO DE COMPETÊNCIAS
Recursos de apoio ao desenvolvimento do processo de RVCC, nível secundário
Núcleo Gerador 7 – SABERES FUNDAMENTAIS
DR3 - Tema: Ciência e Controvérsias Públicas
Tema 3: Ciências e Controvérsias Públicas
COMPETÊNCIA: Formular opiniões críticas mobilizando saberes vários e
competências culturais, linguísticas e comunicacionais.
EUTANÁSIA Perguntas e respostas sobre testamento vital
O que é um testamento vital?
É um documento onde o cidadão pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou não receber no caso
de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade de forma autónoma. E onde
também pode deixar nomeado um “procurador de cuidados de saúde”. É válido por cinco anos.
O que é um procurador de cuidados de saúde?
É uma pessoa de confiança do doente (familiar ou não), que será chamada a decidir em nome do utente
sempre que a situação clínica identificada pelo próprio se verificar ou então, quando o testamento vital é
claro, é a pessoa que assegurará o seu cumprimento. No testamento vital pode optar-se por apenas escolher
o procurador e nada dizer em relação aos seus cuidados de saúde, será então esta pessoa a decidir.
Quem pode fazer um testamento vital?
Cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, maiores de idade, que não se
encontrem interditos ou inabilitadas por anomalia psíquica. É necessário ter número de utente e
recomenda-se o registo no Portal do Utente (em https://servicos.minsaude.pt/) para acompanhamento do
processo.
O que é o Registo Nacional do Testamento Vital (Rentev)?
É um sistema informático que registará todos os testamentos vitais validados pelos serviços de saúde e que
vai permitir que os médicos, quer no sector público quer no privado, tenham acesso à vontade dos doentes
nestas situações extremas.
Para que um testamento vital seja válido tem de estar registado no sistema informático Rentev?
Não. O utente pode ter sempre consigo o seu testamento vital em papel, desde que reconhecido pelo
notário. Mas a garantia de que o médico assistente tem conhecimento de que existe um testamento vital
válido e o cumpre apenas pode ser dada caso seja registado no Rentev.
O Ministério da Saúde fornece um modelo de testamento vital. É obrigatório usá-lo?
Não, mas o seu uso “é altamente recomendado, uma vez que guarda a informação de forma estruturada,
facilitando o processo da sua criação pelo utente e o processo de consulta por parte dos médicos.”
Que situações clínicas estão contempladas no modelo fornecido pelo Ministério da Saúde?
Estão descritas três situações: No caso de à pessoa “ter sido diagnosticada doença incurável em fase
terminal”; “de não existirem expectativas de recuperação na avaliação clínica feita pelos membros da equipa
médica responsável pelos cuidados [de acordo com o conhecimento médico atual]” ou “em situação de
inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória,
renal ou cardíaca”. Além destas hipóteses, o utente tem liberdade de apontar outras situações ou de redigir
o seu próprio testamento vital que pode anexar ao seu testamento vital no Rentev.
No modelo fornecido pelo Ministério da Saúde que cuidados de saúde é que se pode optar por
“não receber”?
Não ser submetido a: “reanimação cardiorrespiratória”, “a meios invasivos de suporte artificial de funções
vitais”, “a medidas de alimentação e hidratação artificiais para retardar o processo natural de morte”, “a
tratamentos que se encontrem em fase experimental”.
No mesmo modelo que cuidados de saúde é que se pode dizer que se quer “receber” nas
situações clínicas em causa?
“Participar em estudos de fase experimental”, “investigação clínica ou ensaios clínicos”; “receber medidas
paliativas”, receber fármacos para controlo de dores, receber assistência religiosa quando se decida
interromper meios artificiais de vida (podendo apontar-se a crença que se professa), e dizer que se quer ter
junto de si durante este momento uma pessoa que pode ser designada.
Como pode ser feito um testamento vital?
No site servicos.min-saude.pt/utente vai ser disponibilizado um modelo opcional de testamento vital, do qual
poderá fazer download, imprimir, preencher e entregar na sede do seu Agrupamento de Centros de Saúde
da sua área de residência (poderá perguntar no seu centro de saúde onde fica), para registo no Rentev. A
assinatura tem que ser feita no local e a pessoa leva uma cópia para casa. Existe também a hipótese de envio
por correio mas tem que ser com aviso de recepção e assinatura reconhecida pelo notário.
Quem faz a inserção do testamento vital no Rentev?
Receberam formação nesta matéria 150 funcionários dos centros de saúde. Será depois um outro
funcionário a inseri-lo no Rentev, mas sua validação ainda terá que ser feita pela direcção clínica do
Agrupamento de Centros de Saúde. Uma cópia em papel ficará aí armazenada.
Como é que eu sei quem é que tem acesso ao meu testamento vital?
No formulário tem sempre que fornecer um email. Cada vez que alguém o consultar receberá um email a
informá-lo de quem o fez. O objectivo é evitar o acesso indevido ao documento.
Para submeter um testamento vital é obrigatória intervenção de um médico?
Não. É opcional mas o Ministério da Saúde recomenda que debata previamente o assunto com um
profissional de saúde da sua confiança, ou com a equipa de saúde que lhe presta cuidados. No modelo
fornecido pelo Ministério da Saúde, há um campo, opcional, em que o médico declara que foram dadas
explicações sobre este assunto.
Pode algum familiar do cidadão/utente vir impugnar o testamento vital?
Sim, mas como o Sistema Nacional de Saúde é incompetente para tal responderá ao familiar em causa,
verbalmente ou por escrito, consoante a situação, de que o documento só pode ser impugnado através dos
tribunais.
Catarina Gomes, publicado no Jornal Público em 3 de junho de 2014
Testamento vital já é um direito?
Há uma década que foi apresentada pela primeira vez no Parlamento uma proposta defendendo a
legalização do testamento vital. A lei existe desde 2012, mas até Junho de 2014 o testamento vital exigia que
cada pessoa tivesse de redigir o seu documento e ir a um notário para o validar juridicamente. Há
precisamente um ano passou a existir uma plataforma informática que uniformiza os registos e os coloca
numa única base de dados a que os médicos podem aceder para conhecer a vontade dos doentes em final de
vida. Um ano volvido, contabilizam-se em 1500 as pessoas que se inscreveram na plataforma, quando há um
ano havia perspetivas de 20 a 50 mil. Mas o preocupante é que, segundo um estudo da Universidade
Católica, 78% da população ainda não sabe o que é um testamento vital. Quando as pessoas desconhecem a
existência de um direito, torna-se difícil exercê-lo. Nesse caso deixa de ser um direito.
Direção editorial do Jornal Público, publicado em 1 de julho de 2015
Em dois meses foram registados 245 testamentos vitais
Em vigor desde 1 de julho, a nova plataforma informática permite aos médicos saberem que cuidados é
que os doentes incapacitados ou com doença terminal aceitam receber para prolongar a vida.
Ministério da Saúde calculava que entre 20 a 30 mil pessoas pudessem fazer testamento vital no prazo
de um ano
Entre 1 de julho e 22 de Agosto último, 245 pessoas expressaram que tratamentos querem ou não
receber em caso de doença terminal ou incurável ou perante um diagnóstico de inconsciência por doença
neurológica ou psiquiátrica irreversível.
“Mais de 200 testamentos vitais registados em apenas dois meses que foram marcados pelas férias são
um sinal claríssimo da importância e da falta que fazia uma ferramenta desta natureza”, congratulou-se ao
PÚBLICO o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes. Já o bastonário da Ordem dos
Médicos, José Manuel Silva, não se mostra impressionado com estes números: “Considerada a população
nacional adulta, é um número pequeno e confirma as minhas expectativas de que este instrumento seria
utilizado por um número reduzido de cidadãos”.
Com 148 registos, a região da área da influência da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e
Vale do Tejo foi até agora aquela que somou mais adesões no Registo Nacional do Testamento Vital (Rentev),
a plataforma informática que arrancou no dia 1 de julho. A ARS do Norte, por seu turno, somou 52 registos,
segundo os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Seguem-se a ARS do Centro com 20 registos e as
ARS do Alentejo e do Algarve com 14 e 11 registos,
respetivamente.
Na altura em que o Rentev entrou em funcionamento,
o Ministério da Saúde admitia que entre 20 a 30 mil
pessoas aderissem àquela ferramenta no prazo de um
ano. Mas, e porque “não é possível que o testamento
vital registe adesões maciças se os portugueses não
souberem que ele existe”, Rui Nunes considera que
aquele patamar dificilmente será atingido se não houver
uma “intensa campanha de sensibilização”: nas escolas,
mas sobretudo junto dos médicos de família, para que estes expliquem às pessoas para que serve um
testamento vital e como se faz.
Através do testamento vital, um cidadão pode manifestar antecipadamente a sua vontade “consciente,
livre e esclarecida” no que concerne aos cuidados de saúde que deseja ou não receber no caso de se
encontrar numa situação em que fica incapaz de expressar a sua vontade de forma autónoma. Poderá ser o
que acontece num quadro de inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, “complicada
por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca”. O diagnóstico de uma doença incurável ou em fase
terminal ou a inexistência de expectativas de recuperação na avaliação clínica são outros dos quadros
capazes de fazer acionar a também chamada “diretiva antecipada de vontade” do doente.
Entre os cuidados que podem ser recusados incluem-se a reanimação cardiorrespiratória, o suporte
artificial de funções vitais por meios invasivos, a alimentação e hidratação artificiais que retardem o processo
natural da morte e a administração de sangue ou derivados. Este último item assume particular importância
no caso, por exemplo, das testemunhas de Jeová, que por motivos religiosos rejeitam transfusões. Aliás, e
como adiantou em junho ao PÚBLICO o assessor jurídico da Associação das Testemunhas de Jeová, Raul
Josefino, era prática comum entre os crentes (calcula-se que haja ao todo cerca de 50 mil praticantes ao
todo, em Portugal) transportarem consigo um modelo de testamento vital que recusava as transfusões
sanguíneas e que já contemplava a possibilidade de não quererem que a sua vida fosse prolongada perante
um quadro clínico sem esperança de melhoria.
Desde 2012 que a lei permitia que um cidadão definisse até onde poderiam chegar os clínicos no caso de
incapacidade de indecisão. Mas, para ficar tudo claro, era preciso ir a um notário, pagar à volta de 100 euros
e andar sempre com o documento no bolso. Sem isso, o doente deixava o seu fim entregue à obra do acaso
ou à decisão dos familiares. No passado dia 1 de julho, tais decisões puderam passar a ficar predefinidas na
referida plataforma informática que congrega todos os testamentos vitais validados pelos serviços de saúde
e mediante a qual os médicos, do setor público mas também do privado, podem aceder à vontade dos
doentes em situação extrema.
Sem quaisquer custos, o testamento vital pode ser efetuado através do preenchimento de um formulário
próprio que está disponível nos sites das ARS, no Portal do Utente e no Portal da Saúde. No formulário aqui
disponível, o cidadão pode também deixar nomeado um “procurador de cuidados de saúde”, ou seja, pode
indicar uma pessoa de confiança (familiar ou não) que será chamada a decidir em seu nome sempre que a
situação clínica o exija ou então que assegurará o cumprimento do testamento vital.
Esta declaração antecipada tem a validade de cinco anos. E ainda bem que assim é, segundo Rui Nunes:
“As pessoas podem mudar de opinião e, até por inércia, não se disponibilizarem a mudar o teor ou o
conteúdo do testamento vital. Se a lei exige que vão revalidar, é para ter a certeza que não mudaram de
opinião. Parece-me prudente”.
Apontando os exemplos dos Estados Unidos, dos países anglo-saxónicos e escandinavos, onde as adesões
ao testamento vital chegam a aproximar-se dos 90%, Rui Nunes considera que a adoção desta ferramenta
marca um salto civilizacional em Portugal. “Entre os 40 países mais desenvolvidos na lista do índice do
desenvolvimento humano, os 15 primeiros têm esta ferramenta muito aprofundada”, enfatiza o também
diretor do serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, para voltar
a sublinhar a importância dos “animadores” 245 registos efetuados até 22 de agosto. “Estamos a pedir às
pessoas que tomem decisões com este nível de responsabilidade num momento em que o país atravessa
uma crise económica e social em que as pessoas o que querem é segurança e proteção, ou seja, estes
registos mostram que estas pessoas creem mesmo na importância do testamento vital”.
Menos entusiasta, o bastonário da Ordem dos Médicos recorda que “todas as questões que se relacionam
com o testamento vital estavam já previstas no código deontológico da Ordem”. Considerando que o
preenchimento do formulário “é relativamente complexo”, José Manuel Silva recorda que “no caso das
doenças crónicas, o doente é normalmente acompanhado por um médico que normalmente está a par da
vontade do doente”. E mesmo no caso de ocorrências inesperadas, como a de um doente que fica em estado
vegetativo na sequência de um acidente, “os médicos consultam os familiares antes de decidirem manter as
suas funções vitais de uma forma artificial e sem qualquer perspetiva de recuperação”.
Natália Faria, publicado no Jornal Público em 27 de agosto de 2014
Perguntas e respostas sobre a morte assistida
O que é a eutanásia?
Ato através da qual se abrevia sem dor ou sofrimento a vida de um doente sem possibilidade de cura. Prática
associada a uma morte sem dor e sem sofrimento desnecessário, muitas vezes chamada também de “morte
misericordiosa”, em que uma pessoa, geralmente um profissional de saúde, põe termo à vida de outra
pessoa em benefício do doente e a pedido do mesmo. O pedido tem de ser formulado quando o doente
ainda está na posse das suas capacidades mentais e feito de forma informada, consciente e reiterada. A
eutanásia pode ser praticada administrando, por exemplo, uma injeção letal (ativa ou positiva) ou retirando
o tratamento que suporta a vida (passiva ou negativa). Tanto a eutanásia como o suicídio assistido cabem
dentro do conceito de morte assistida.
Em que consiste o suicídio assistido?
O termo é muitas vezes confundido com eutanásia,
uma vez que têm vários pontos em comum. No
entanto, no suicídio assistido há a colaboração de
uma pessoa, geralmente um profissional de saúde,
que ajuda o doente a pôr termo à vida, mas com
uma participação indireta, já que o último gesto de
tomar os fármacos letais tem de ser concretizado
pelo próprio doente.
O que se entende por distanásia?
Consiste no adiamento da morte de um doente que se encontra em fase terminal com o recurso a
tratamentos desproporcionados e já escusados, podendo este prolongamento da vida ser obtido com
sofrimento, sem qualidade de vida e sem dignidade. Muitas vezes utiliza-se o termo “obstinação terapêutica”
como sinónimo.
Como se define a ortotanásia?
Etimologicamente a palavra significa morte “correta” ou “natural”. Consiste na interrupção ou minimização
dos tratamentos desproporcionados destinados a prolongar a vida para além do que seria natural no estado
terminal do doente.
O que é o testamento vital?
É um documento onde o cidadão pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou não receber no caso
de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade de forma autónoma. Nesse
formulário, pode também pode deixar nomeado um “procurador de cuidados de saúde” para tomar as
decisões ou garantir que as opções são cumpridas. É válido por cinco anos e o doente pode pedir, por
exemplo, para não ser submetido a: “reanimação cardiorrespiratória”, “a meios invasivos de suporte artificial
de funções vitais”, “a medidas de alimentação e hidratação artificiais para retardar o processo natural de
morte” ou “a tratamentos que se encontrem em fase experimental”.
O que já disse o CNECV sobre a eutanásia?
"Kit" de suicídio assistido
O único documento do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) especificamente sobre o
tema da morte assistida é já de 1995 e conclui que “não há nenhum argumento ético, social, moral, jurídico
ou da deontologia das profissões de saúde que justifique em tese vir a tornar possível por lei a morte
intencional do doente (mesmo que não declarado ou assumido como tal) por qualquer pessoa
designadamente por decisão médica, ainda que a título de ‘a pedido’ e/ou de ‘compaixão’”. O texto vai mais
longe e defende que “a aceitação da eutanásia pela sociedade civil, e pela lei, levaria à quebra da confiança
que o doente tem no médico e nas equipas de saúde”.
O parecer insiste que “não há nenhum argumento que justifique, pelo respeito devido à pessoa humana e
à vida, os atos de eutanásia”, ainda que reconheça que não devem ser feitos tratamentos
“desproporcionados e ineficazes”. Aceita também que possam ser dados aos doentes, para alívio da dor,
tratamentos que podem encurtar o tempo de vida.
No Código Penal o que está previsto?
A legislação não utiliza o termo eutanásia. Porém, consoante a conduta pode ser considerada homicídio
privilegiado, homicídio em geral, incitamento ou ajuda ao suicídio ou ainda homicídio a pedido da vítima. O
Código Penal trata estes temas a partir do Artigo 133º e as penas de prisão podem ir de um a cinco anos.
O que diz o Código Deontológico dos médicos?
O juramento de Hipócrates perspetiva a vida enquanto dom sagrado: “Não darei a veneno a ninguém,
mesmo que mo peça, nem lhe sugerirei essa possibilidade”. No Código Deontológico, a Ordem dos Médicos
também afirma que ao clínico “é vedada a ajuda ao suicídio, à eutanásia e à distanásia”. Ainda assim
recomenda-se que nos cuidados paliativos o médico dirija “a sua acção para o bem-estar dos doentes,
evitando utilizar meios fúteis de diagnóstico e terapêutica que podem, por si próprios, induzir mais
sofrimento, sem que daí advenha qualquer benefício”.
Qual a realidade noutros países?
Na Suíça o suicídio assistido é legal, a eutanásia é ilegal. As clínicas Dignitas recebem doentes de todo o
mundo que procuram ajuda para terminar a vida, o que fazem depois de serem vistos por médicos e
advogados. Já no Luxemburgo está previsto o direito a “morrer com dignidade”, o que pode ser requerido
para que um doente com “sofrimento insuportável” possa pedir ajuda para morrer. A Holanda permite a
eutanásia voluntária e suicídio assistido para doentes terminais desde 2002. A prática tem regras apertadas e
os médicos recusam dois terços de pedidos de eutanásia. Por seu lado, a Bélgica permite a eutanásia desde
2002 desde que a decisão seja tomada conscientemente por um doente sujeito a “constante e insuportável
dor física ou psicológica” em resultado de um acidente ou doença incurável.
Há dados sobre o que pensam as pessoas?
Mais de metade dos cidadãos de 12 países europeus inquiridos sobre o suicídio assistido num estudo de
2012 afirma que as pessoas devem ter a possibilidade de decidir quando e como morrer. Portugal está entre
os dez países em que 75% ou mais têm essa opinião. O trabalho foi encomendado pela Swiss Medical
Lawyers Association (SMLA), que justificou a realização do inquérito online com a necessidade de confirmar
que, na maior parte dos países, as leis não refletem a opinião dos cidadãos e também de contribuir, com
dados, para eventuais iniciativas legislativas. Para encontrar respostas foram ouvidas cerca de 12 mil pessoas
do painel Isopubli, a empresa que elaborou o estudo em 12 países (Dinamarca, Alemanha, Finlândia, França,
Grécia, Reino Unido, Irlanda, Itália, Áustria, Portugal, Suécia e Espanha).
Romana Borja-Santos, publicado no Jornal Público em 14 de fevereiro de 2016
Direito a morrer com dignidade
É imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido, imposto em nome de convicções alheias. É
urgente despenalizar e regulamentar a Morte Assistida.
Somos cidadãs e cidadãos de Portugal, unidos na valorização privilegiada do direito à Liberdade.
Defendemos, por isso, a despenalização e regulamentação da Morte Assistida como uma expressão concreta
dos direitos individuais à autonomia, à liberdade religiosa e à liberdade de convicção e consciência, direitos
inscritos na Constituição.
A Morte Assistida consiste no ato de, em resposta a um pedido do próprio - informado, consciente e
reiterado — antecipar ou abreviar a morte de doentes em grande sofrimento e sem esperança de cura.
A Morte Assistida é um direito do doente que sofre e a quem não resta outra alternativa, por ele tida
como aceitável ou digna, para pôr termo ao seu sofrimento. É um último recurso, uma última liberdade, um
último pedido que não se pode recusar a quem se sabe estar condenado. Nestas circunstâncias, a Morte
Assistida é um ato compassivo e de beneficência.
A Morte Assistida, nas suas duas modalidades — ser o próprio doente a autoadministrar o fármaco letal
ou ser este administrado por outrem — é
sempre efetuada por médico ou sob a sua
orientação e supervisão.
A Morte Assistida não entra em conflito nem
exclui o acesso aos cuidados paliativos e a sua
despenalização não significa menor
investimento nesse tipo de cuidados. Porém, é
uma evidência indesmentível que os cuidados
paliativos não eliminam por completo o
sofrimento em todos os doentes nem impedem
por inteiro a degradação física e psicológica.
Em Portugal, os direitos individuais no
domínio da autodeterminação da pessoa doente
têm vindo a ser progressivamente reconhecidos e salvaguardados: o consentimento informado, o direito de
aceitação ou recusa de tratamento, a condenação da obstinação terapêutica e as Diretivas Antecipadas de
Vontade (Testamento Vital). É, no entanto, necessário, à semelhança de vários países, avançar mais um
passo, desta vez em direção à despenalização e regulamentação da Morte Assistida.
Um Estado laico deve libertar a lei de normas alicerçadas em fundamentos confessionais. Em
contrapartida, deve promover direitos que não obrigam ninguém, mas permitem escolhas pessoais
razoáveis. A despenalização da Morte Assistida não a torna obrigatória para ninguém, apenas a disponibiliza
como uma escolha legítima.
A Constituição da República Portuguesa define a vida como direito inviolável, mas não como dever
irrenunciável. A criminalização da morte assistida no Código Penal fere os direitos fundamentais relativos às
liberdades.
O direito à vida faz parte do património ético da Humanidade e, como tal, está consagrado nas leis da
República Portuguesa. O direito a morrer em paz e de acordo com os critérios de dignidade que cada um
construiu ao longo da sua vida, também tem de o ser.
É imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido, imposto em nome de convicções alheias. É
urgente despenalizar e regulamentar a Morte Assistida.
Adelino Gomes, Aldina Duarte, Alexandre Quintanilha, Álvaro Beleza, Ana Drago, Ana Gomes, Ana Luísa
Amaral, Ana Matos Pires, Ana Zanatti, Anabela Mota Ribeiro, André Freire, António Canastreiro Franco,
António-Pedro Vasconcelos, António Pinho Vargas, António Sampaio da Nóvoa, Boaventura Sousa Santos,
Capicua, Carlos Alberto Moniz, Catarina Portas, Clara Ferreira Alves, Cláudio Torres, Constantino Sakellarides,
Cristina Sampaio, Daniel Oliveira, Diana Andringa, Dulce Salzedas, Elisa Ferreira, Fausto, Fernanda Lapa,
Fernando Alves, Fernando Rosas, Fernando Tordo, Francisco Crespo, Francisco George, Francisco Louçã,
Francisco Mangas, Francisco Teixeira da Mota, Helder Costa, Helena Roseta, Heloísa Apolónia, Henrique
Sousa, Isabel Medina, Isabel Moreira, Isabel Ruivo, Jaime Teixeira Mendes, Joana Lopes, João Goulão, João
Lourenço, João Ribeiro Santos, João Semedo, Jorge Espírito Santo, Jorge Leite, Jorge Palma, Jorge Sequeiros,
Jorge Torgal, Jose A. Carvalho Teixeira, José Gameiro, José Jorge Letria, José Júdice, José Manuel Boavida,
José Manuel Mendes, José Manuel Pureza, José Pacheco Pereira, José Vítor Malheiros, Júlio Machado Vaz,
Laura Ferreira dos Santos, Lucília Galha, Luís Cília, Luís Filipe Costa, Luís Moita, Machado Caetano, Mamede
Carvalho, Manuel Loff, Manuel Luís Goucha, Manuel Pizarro, Maria Antónia Almeida Santos, Maria Filomena
Mónica, Maria Irene Ramalho, Maria Teresa Horta, Mariana Mortágua, Mário Crespo, Mário Nogueira,
Marisa Matias, Miguel Esteves Cardoso, Miguel Guedes, Nuno Artur Silva, Nuno Saraiva, Octávio Cunha, Olga
Roriz, Paula Teixeira da Cruz, Paulo Magalhães, Pedro Abrunhosa, Pedro Campos, Pedro Ponce, Pilar del Rio
Saramago, Raquel Freire, Raquel Varela, Ricardo Sá Fernandes, Richard Zimler, Rogério Alves, Rosalvo de
Almeida, Rosário Gama, Rui Rio, Rui Tavares, Rui Zink, Sérgio Godinho, Sobrinho Simões, Tatiana Marques,
Teresa Pizarro Beleza, Tó Zé Brito, Vasco Lourenço, Viriato Soromenho Marques
Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, Petição publicada no Jornal Público em 6 de fevereiro de 2016
Petição a favor da eutanásia segue na próxima semana para a AR
Ao todo são 8000 assinaturas pela despenalização da morte assistida. Movimento cívico promoveu
sessão pública em Lisboa.
O movimento “Direito a morrer com dignidade” vai entregar na Assembleia da República, na próxima
semana, a petição pela despenalização da morte assistida, que reuniu mais de 8000 assinaturas, disse à
agência Lusa João Semedo, da comissão coordenadora.
O Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida promoveu neste sábado a sua primeira
reunião pública, na Escola Secundária Pedro Nunes, em Lisboa, à qual se seguirão outras em diferentes
capitais de distrito, como informou a atriz Fernanda Lapa, uma das participantes.
Na reunião, à qual assistiram cerca de 20 pessoas, o
pediatra Jaime Teixeira Mendes recordou que os
médicos fazem o Juramento de Hipócrates (460-370
antes de Cristo), mas recordou que no seu tempo havia
eutanásia, nomeadamente através da ingestão de
cicuta.
O clínico afirmou que nas faculdades de medicina os
futuros médicos não foram preparados para enfrentar a
questão da morte assistida e disse que, atualmente,
"são treinados para a obsessão terapêutica".
Fernanda Lapa, a abrir os trabalhos, realçou que este é "um movimento apartidário" e ao qual "pertence
quem tem fé e os que não têm fé". A atriz apelou ainda ao apoio financeiro às atividades do movimento, que
"não tem fundos próprios nem apoios públicos ou privados".
Quanto ao documento a entregar ao Parlamento, é afirmado que "a morte assistida é um direito do
doente que sofre e a quem não resta outra alternativa por ele
tida como aceitável ou digna, para pôr termo ao seu sofrimento",
e recorda que a "Constituição da República Portuguesa define a
vida como direito inviolável, mas não como dever irrenunciável".
Considera o documento que "a criminalização da morte
assistida no Código Penal fere os direitos fundamentais relativos
à liberdade" e sublinha que "a despenalização da morte assistida
não a torna obrigatória para ninguém" e "apenas a disponibiliza
como uma escolha legítima".
Defende a petição que "um Estado laico deve libertar a lei de normas alicerçadas em fundamentos
confessionais". Por lado, lê-se no texto que, "em Portugal, os direitos individuais no domínio da
autodeterminação da pessoa doente têm vindo a ser progressivamente reconhecidos e salvaguardados: o
consentimento informado, o direito de aceitação ou recusa de tratamento, a condenação da obstinação
terapêutica e as Diretivas Antecipadas de Vontade (Testamento Vital)".
"É, no entanto, necessário, à semelhança de vários países, avançar mais um passo, desta vez em direção à
despenalização e regulamentação da morte assistida", sublinham os subscritores.
No debate de hoje, um dos participantes, João Ribeiro Santos, da comissão coordenadora, referiu as
legislações já existentes neste sentido de despenalização da morte assistida, na Bélgica, Holanda e
Luxemburgo, monarquias que fazem parte da União Europeia e estiveram na sua fundação.
João Semedo, ex-líder do Bloco de Esquerda, usando da palavra, anunciou a realização de um seminário, a
agendar, que reúna médicos, enfermeiros, filósofos e outras personalidades ligadas a esta temática, para
"um debate sério, aberto e o mais amplo possível".
"A morte assistida consiste no ato de, em resposta a um pedido do próprio — informado, consciente e
reiterado — antecipar ou abreviar a morte de doentes em grande sofrimento sem esperança de cura", assim
define o documento que será levado à Assembleia da República.
LUSA, publicado no jornal Público em 2 de abril de 2016
Morte assistida? Balsemão é a favor, Marques Mendes quer referendo
Bloco de Esquerda é o único partido que admite avançar com iniciativa legislativa para a despenalização
da morte assistida. Francisco Pinto Balsemão é o mais recente subscritor de um manifesto assinado por
vários notáveis
Queriam pôr na ordem do dia o debate sobre a legalização da eutanásia e conseguiram: a divulgação
do manifesto pela despenalização da morte assistida provocou muitas reacções, com o antigo líder do PSD,
Marques Mendes, a defender a realização de um referendo sobre a complexa matéria e o Bloco de Esquerda
(BE) a afirmar que vai avançar com uma iniciativa legislativa.
O manifesto continua, entretanto, a somar signatários entre as figuras públicas: o ex-primeiro ministro e
fundador do PSD Francisco Pinto Balsemão e a nova bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco,
juntaram-se à lista dos apoiantes, revelaram os promotores do movimento que pôs a circular o documento.
No domingo, o ex-líder do PSD Luís Marques Mendes defendeu, na SIC, a realização de um referendo
sobre esta matéria, hipótese com a qual Assunção Cristas, do CDS-PP, já admitiu concordar (em entrevista à
Rádio Renascença). O BE é contra um referendo e o PCP não quer fazer comentários, por enquanto.
Outros responsáveis defendem que a despenalização da morte assistida (que inclui a eutanásia, quando é
o médico a administrar o fármaco letal, e o suicídio medicamente assistido, quando é o próprio doente a
fazê-lo) não deve ser submetida a consulta popular. À Renascença, o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel
Clemente, também disse discordar da realização de um referendo e interpretou este manifesto como o
resultado de uma cultura “individualista".
O manifesto pela despenalização e regulamentação da morte assistida foi divulgado no sábado com
as assinaturas de mais de uma centena de políticos de vários quadrantes, cientistas, médicos e artistas, entre
os quais figuras como a ex-ministra da Justiça, a social-democrata Paula Teixeira da Cruz, e o patologista
Manuel Sobrinho Simões. “A morte assistida é um direito do doente que sofre e a quem não resta outra
alternativa, por ele tida como aceitável ou digna, para pôr termo
ao seu sofrimento”, sublinham os autores.
Bloco avança
Depois de fazer o balanço do impacto causado pela publicação do manifesto, os fundadores do movimento
tencionam avançar com uma petição. No plano partidário, o Bloco de Esquerda é o único partido que admite
desde já avançar com uma iniciativa legislativa para a despenalização da morte assistida. Sem avançar datas,
José Manuel Pureza, do BE, assume que o partido vai avançar com uma proposta, mas sublinha que ainda “é
tudo muito precoce”. O que é importante, para já, é “saudar este movimento muito plural” e que “não tem
medo de quebrar este tabu”, diz.
Tanto o PSD como o PS não têm prevista qualquer iniciativa legislativa sobre esta matéria. “Neste
momento não temos nada agendado, este tema não consta do nosso programa eleitoral”, explica Miguel
Santos, coordenador para a área da saúde do PSD, sublinhando, mesmo assim, que o partido “não tem uma
posição fechada, não é sim nem não”. Então? “É um tema difícil”, admite, frisando que esta matéria inclui
desde “considerações éticas e sociais a todo um conjunto de normas de segurança jurídica que têm de ser
pensadas para proteção dos médicos, das famílias e dos doentes em fase terminal”. “Oportunamente
podemos vir a refletir”, promete.
Depois de o manifesto ter sido divulgado, o PS não vai deixar de participar neste debate, assume, pelo seu
lado, o deputado socialista Pedro Delgado Alves. Lembrando também que o partido não tem a
despenalização da morte assistida no seu programa eleitoral, o deputado sublinha, mesmo assim, que os
socialistas estão “disponíveis para debater” a matéria, eventualmente “organizando uma conferência
parlamentar ou outra modalidade que não implique uma iniciativa legislativa”.
Uma das signatárias do manifesto, a deputada socialista e vice-presidente da Comissão Parlamentar da
Saúde, Maria Antónia Almeida Santos, frisa que o objetivo é o de “pôr o tema na ordem do dia” e que este
documento é um princípio nesse sentido. Contra a realização de um referendo — “não se referendam
direitos fundamentais, esta é a última liberdade individual” —, a deputada afirma que este é “um tema que
causa muitas incomodidades”, mas admite estar disponível para estimular o debate dentro do seu partido e
até acredita que o próximo congresso do PS pode ser uma boa oportunidade para tal.
Alexandra Campos, publicado no Jornal Público em 8 de Fevereiro de 2016
Viver, até que comece a doer em demasia
Cada um de nós sente onde começa o seu pântano irreversível e tem direito a não querer morrer
sufocado nele.
Francisco Pinto Balsemão
1. Em Portugal, tem-se acusado os defensores da “morte (medicamente) assistida” de esta ser uma
expressão quase de má-fé. Dizem os opositores que todos os profissionais de saúde fazem um morte
“assistida”, nos hospitais ou nos cuidados paliativos (CP). Querem com isto dizer que a morte é
acompanhada, fazendo-se tudo para que o doente não sofra. Mas, nesta questão terminológica, é preciso
ver que, antes de Portugal começar a discutir o tema, muitos outros países o fizeram. Ora, em inglês, o
esperanto dos tempos contemporâneos, o termo “assistido” (assisted dying, physician-assisted-dying,
physician-assisted-suicide) tem um significado muito preciso, implicando a antecipação deliberada e
voluntária que um doente faz da sua morte.
Se, neste momento, um profissional português de saúde escrever em inglês para um Congresso, nunca dirá
que pratica mortes “assistidas” (assisted deaths). Quer dizer, pode escrevê-lo, mas será entendido pelo
menos com curiosidade - e no final os colegas lamentarão a sua falta de domínio do inglês e da temática.
Em inglês, há até quem prefira a expressão aid-in-dying (ajuda no morrer), também no sentido do assisted
dying.
Por outro lado, em francês já existe a utilização de mort assistée para designar este assisted dying. Portanto,
onde reside a surpresa?
De qualquer modo, realce-se que, no terreno, muitos doentes americanos reagem mal ao termo physician-
assisted-suicide. Têm receio de que os acusem de cometer um suicídio irracional. Preferem dizer que é a
doença que os mata. No fundo, que o seu acto é de legítima defesa, embora implique a sua morte. Mas
melhor isso do que serem engolidos aos poucos pelo pântano da doença, quando o sofrimento já é para eles
um excesso.
2. A propósito do termo pântano, surge-me uma história, das dezenas que li. Num livro de memórias de
quem combatera numa das grandes guerras, vem a seguinte descrição. Um grupo de soldados passa ao lado
de um pântano. Dele emerge o grito de socorro de um outro soldado, a afundar-se nele sem possibilidade de
salvação: “Dêem-me um tiro e matem-me antes que sufoque!”. Os outros passam ao largo e deixam o colega
morrer aos poucos. Contei a história a uma católica que julgava “aberta”. Respondeu: “os colegas fizeram
bem, pois sabe-se lá se, antes de ser completamente engolido no pântano, o soldado não encontrava uma
rocha firme?”. Calei-me e mudei de assunto. O que julgo saber é que cada um de nós sente onde começa o
seu pântano irreversível e tem direito a não querer morrer sufocado nele, mesmo com toda a ajuda dos CP,
que não operam milagres.
3. Voltemos à recusa de os doentes americanos em ouvir dizer que cometem suicídio. É que sabem haver
uma distinção muito grande entre um suicídio evitável ou “irracional” e o que no seu caso se poderia
designar de “suicídio assistido racional”. Não querem ser confundidos com doentes deprimidos ou doentes
mentais, como o fez há pouco o Bastonário dos Médicos no Porto Canal. Aliás, lembremo-nos que foi sob a
acusação de doença mental que tantos dissidentes foram internados em hospitais psiquiátricos pelos países
ditatoriais. Ao apelo veemente do Bastonário para que se “psiquiatrize” a questão, lembremos que o próprio
Freud, fundador da psicanálise, quando o cancro do maxilar se manifestou previu para ele a possibilidade de
uma eutanásia. Para o aceitar como médico pessoal, pediu a Max Schur duas coisas: que lhe dissesse sempre
a verdade e que, um dia, se ele assim o entendesse, o “assistisse” na morte. Foi essa vontade que o médico
cumpriu, já em Londres, quando Freud o chama à cabeceira, lhe diz que agora só se sente em tortura sem
sentido e lhe pede para cumprir a promessa antiga, o que foi feito pouco depois. Tinham passado 16 anos
desde o primeiro ataque do cancro.
4. Nos próprios campos de concentração nazis, havia quem só conseguisse um mínimo de paz se encontrasse
uma possibilidade de se suicidar, caso o sofrimento fosse insuportável. E tendo sido a classe médica
holandesa a única de um país ocupado pelos nazis a ter-se recusado, como um todo, a colaborar com eles,
muitos dos seus médicos optaram mais tarde por atender os pedidos de eutanásia dos seus doentes: sabiam
distinguir entre assassinatos e pedidos genuínos de auxílio na morte. Há quem afirme que daí resultou a
confiança dos holandeses nos seus médicos, não a desconfiança.
5. Quem se sente num sofrimento para ele insuportável (situação naturalmente subjectiva, mas não
arbitrária) e pede uma morte “assistida” não é menos digno do que qualquer outra pessoa. Pede apenas que
lhe respeitem a dignidade de ter direito a não morrer sufocado no seu pântano. De quem desconfiará? De
quem não lhe respeite essa última liberdade.
LAURA FERREIRA DOS SANTOS *, publicado no Jornal Público em 4 de abril de 2016 * Professora Aposentada da UMinho, autora de Ajudas-me a morrer? e A morte assistida e outras questões de fim-de-vida.
Petição pública na agenda pela morte com dignidade
Marcelo Rebelo de Sousa só se pronuncia após a sua tomada de posse. Subscritores do Manifesto
apostam numa decisão na legislatura, apesar das vicissitudes políticas poderem levar a eleições
antecipadas.
No hemiciclo, o BE está a favor, o PSD concede liberdade de voto, o CDS manifestou-se contra e os
socialistas situam-se entre o apoio e a prudência
A petição pública está na agenda dos promotores do manifesto pela Morte Assistida, soube o PÚBLICO.
Esta iniciativa, cujo timing ainda não está definido, representa o passo seguinte de um caminho que os
subscritores do documento publicado no sábado da semana passada, consideram ir desembocar até ao fim
da legislatura na descriminalização da morte assistida.
A aposta é numa petição pública subscrita por dezenas de milhares de cidadãos, não apenas pelos quatro
mil impostos por lei, que os promotores encaram como teste à expressão social de adesão.
Depois da divulgação do manifesto, o tema tem sido abordado por atores de diversos setores - médicos,
políticos, intelectuais e publicistas. Por isso, o modus operandi não contempla a curto prazo uma iniciativa
legislativa. “Uma iniciativa legislativa é para ganhar, terá de haver confirmação de que terá força no
Parlamento”, explica, ao PÚBLICO, um promotor que solicita o anonimato.
Do mesmo modo, existe reserva quanto aos timings. Na atual composição das bancadas da Assembleia da
República, os defensores da morte assistida admitem
existir uma maioria de apoio. O tempo entre a
maturação do seu objetivo na sociedade e as atitudes,
ou seja, a execução, é o da legislatura.
Contudo, os mais de 100 cidadãos do Movimento
Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, entre
os quais parlamentares do PS, BE e PSD, não
desconhecem que as vicissitudes políticas podem levar
a eleições antecipadas e a interromper o normal
período de quatro anos de legislatura.
“Falta encontrar a oportunidade e as melhores condições, o que depende da força social [da petição
pública], para que esta seja uma proposta ganhadora”, admite um responsável do movimento. De lado está o
referendo – “os direitos fundamentais não se referendam e o processo legislativo parlamentar é mais capaz
do que o sim ou o não, ”, sublinha. Excluída está, também, a discussão imediata após a tramitação
parlamentar do Orçamento de Estado.
Quanto a Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente eleito informou o PÚBLICO que só se pronuncia sobre a
questão depois da sua tomada de posse a 9 de março, quando há uma semana apareceram versões
contraditórias sobre a sua posição.
No hemiciclo, o BE está a favor, o PSD concede liberdade de voto, o CDS manifestou-se contra e os
socialistas situam-se entre o apoio e a prudência. “Se e quando a discussão for suscitada no plenário, a
direção do grupo parlamentar do Partido Socialista dará liberdade de voto, considerando que a matéria não
consta do programa do PS, nem do Governo. Tal não exclui qualquer iniciativa legislativa dos deputados do
PS a título individual”, respondeu, ao PÚBLICO, Carlos César, líder da bancada e presidente do partido. Já o
PCP optou por um “silêncio ruidoso”, sinónimo do incómodo que a questão suscita entre os comunistas.
“Excetuando o caso do aborto, que foi alvo de referendo, a democracia portuguesa tem resolvido estes
problemas, as causas pós materialistas, no Parlamento com toda a legitimidade democrática”, observa
António Costa Pinto, investigador e professor do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Embora reconheça
que “o caráter imediatista da conjuntura política tende a subestimar as causas pós materialistas, Costa Pinto
destaca que o futuro da discussão depende da forma de ativação política: “sem esta, isto resolve-se em
comissão parlamentar.”
“Sem intermediação partidária, a questão não terá impacto, a estratégia dos partidos foi esquivar-se,
reconhecem a necessidade de debate mas não a assumiram”, refere Carlos Jalali, politólogo e professor da
Universidade de Aveiro. Ambos os especialistas não anteveem problemas na manutenção dos apoios
parlamentares ao Governo. O mesmo é sublinhado pelos subscritores do manifesto que recordam que tudo
o que não consta das posições conjuntas que levaram à maioria parlamentar de esquerda pode ser objeto de
discordância.
A profundidade da discussão é determinante para o desenho da modalidade legislativa que vier a ser
proposta aos deputados. O manifesto apenas suscita uma questão de âmbito geral – o direito a morrer com
dignidade – sem especificar práticas. E existem, basicamente duas em situações terminais: quando o doente
pede um medicamento letal que autoadministra, que se pode chamar de suicídio assistido; ou quando o
paciente pede ao médico que lhe ponha termo à vida, comummente designado de morte assistida ou
eutanásia (ver página 7). “Não há uma proposta fechada”, conclui um subscritor do manifesto.
“Não se cristianiza uma sociedade pela lei”
Deputado do Bloco de Esquerda e vice-presidente da Assembleia da República, José Manuel Pureza é
subscritor do manifesto “Direito a Morrer com Dignidade”. Católico, foi membro da JUC [Juventude
Universitária Católica] e da Juventude Estudantil Católica (JEC), é claro na sua atitude. “Não se cristianiza uma
sociedade pela lei”, afirma ao PÚBLICO.
“Não tenho nenhum problema moral em perceber que vivemos numa sociedade plural, e mesmo que
houvesse uma forma moral que entendesse mais consentânea com o Evangelho, não tenho o direito de a
impor através da lei e muito menos pela criminalização da mundividência do outro”, sustenta. “Dispenso a lei
penal como instrumento de evangelização, não se cristianiza uma sociedade pela lei, mas pelo testemunho
de solidariedade, do amor e da fraternidade”, sublinha.
“Neste caso”- prossegue José Manuel Pureza – “há o dado adicional que é o sofrimento, a crueldade de
dizer “não” a um doente terminal que quer que lhe ponham fim ao sofrimento, o meu mandamento como
cristão, o amor ao próximo que sofre, também passa por isso.” O deputado recorda, a propósito, o que Jesus
disse, no Evangelho de São João: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância”. Ou seja, em
plenitude.
“Tenho o maior respeito por quem leva o seu sofrimento até ao fim, mas não posso impor esse padrão. O
fim de vida de João Paulo II foi admirável – sou humano até quando estou a degradar-me -, mas não tenho o
direito de impor essa moralidade”, destaca. “Este é o princípio da autodeterminação da pessoa humana”,
conclui. NUNO RIBEIRO, Publicado no Jornal Público em 14 de fevereiro der 2016
Morte assistida: o lugar do sofrimento e da dignidade em vidas prolongadas pela ciência
Será preciso “descristianizar a morte” para que a eutanásia seja um dia descriminalizada? Pode o “corpo-
carne” ser considerado vida? O que é o direito “à morte livre”? Pode um doente terminal ser livre na sua
decisão de pôr termo à vida? O PÚBLICO ouviu três filósofos e uma especialista em bioética.
Maria Filomena Molder: “O desenvolvimento científico chegou a tal ponto que interessa menos o que o
doente está a sentir, os afetos, do que a obstinação terapêutica”.
Um ser humano normal absolutamente exaurido pela dor física, pelo sofrimento psíquico, pelo
isolamento social num hospital ou num ‘hospício’, acamado, não raro inconsciente a maior parte do tempo,
incontinente, de pele engelhada e manchada de chagas incicatrizáveis.”
Quando o filósofo e escritor Miguel Real fez 60 anos e foi avô pela primeira vez decidiu escrever o livro
onde aparece esta descrição, Manifesto em Defesa de uma morte livre (Edições Parsifal, 2015). Entende o
que lá escreveu, e a pesquisa que fez para o escrever, como “uma preparação para a última fase" da sua
vida: "Eu preferia morrer de ataque cardíaco, a dormir…” Mas, se o seu fim for mais parecido com o que
descreve, sentiu a necessidade de vir
dizer que quer a eutanásia para si, e de
explicar porquê.
A discussão foi relançada pelo
manifesto Direito a morrer com
dignidade, divulgado recentemente e
assinado por mais de 100 personalidades.
Ali se diz que “a morte assistida” – não se
usa o termo eutanásia – “é o acto de, em
resposta a um pedido do próprio –
informado, consciente e reiterado –
antecipar ou abreviar a morte de doentes
em grande sofrimento e sem esperança
de cura”.
Miguel Real, que é também um dos seus signatários, diz que a tecnologia e a medicina fizeram com que a
vida tenha sido artificialmente prolongada “muito além do seu ciclo natural”. O contexto actual é então do
que chama de aumento dos “profundamente idosos”, não mais a terceira, mas a quarta idade, pessoas a
partir dos 80 anos, “muito débeis, fragilizadas”.
Perguntas e respostas sobre a morte assistida
Quando se fala de “direito à vida” defende que “viver artificialmente após a derrocada natural do corpo
não é já viver de forma natural. A vida em estado de agonia não pode ser considerada natural.” Miguel Real
fala de se estar, nestes casos, apenas a prolongar “o corpo-carne. Já não é vida, é menos do que a vida. É a
ciência a ter der salvar um corpo humano a todo custo, mas há limites, há corpos humanos que já não
podem ser salvos”.
Miguel Real diz que “é preciso descristianizar a morte”. Conta que foi educado como cristão, e julga
legítimo os que entendem esta fase final de sofrimento “como uma expiação do mal. Têm esse direito. Os
que não são cristãos não têm de seguir o seu caminho” e “ficar um a dois anos a sofrer ou, a não sofrer
sedado, mas bêbado de substâncias sintéticas que lhe tiram a dor e a consciência”.
Mas o filósofo diz que “o debate ainda não está maduro”, deve prolongar-se por um ano ou dois. A haver
referendo, não tem dúvida de que “ganharia o rotundo não": "Há uma mentalidade enraizada na população,
sejam ou não praticantes, que tem 1500 anos; a mentalidade de morrer livremente tem 30 anos na Europa.
Há uma desproporção temporal. Reprovaria não só em Portugal, na maior parte da Europa”.
O também investigador do Centro de Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Universidade de
Lisboa diz que “vale a pena lutar contra a corrente” e não deixa de referir que “a política, quando é ética”
pode “apontar os caminhos civilizacionais à população”.
Acredita que a descriminalização da eutanásia será inevitável e normal dentro de duas ou três gerações,
como o culminar de “uma revolução relativamente silenciosa que tende a superar os desajustamentos entre
a prática social e a prática moral. É uma realidade que se vai impor à sociedade”.
“Começar a casa pelo telhado”
Ana Sofia Carvalho, diretora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, diz que o
debate em torno da questão da eutanásia “não tem a ver com religião, tem a ver com valores que estão
inscritos na nossa matriz cultural, e na de toda a Europa, que é judaico-cristã”.
A investigadora afirma que “um dos perigos do debate, é a “rotulagem: ‘católico’, ‘não católico’. Em
Portugal há muitas pessoas não católicas que não concordam com a eutanásia.”
Na sua opinião, pensar em eutanásia é “começar a casa pelo telhado”, notando que, “quem trabalha na
área da humanização dos cuidados de saúde, sabe que há tanto a fazer, antes de chegar a isso. Há
desumanização todos os dias.”
A também membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida pega num exemplo concreto,
“o deixar morrer [quando não há esperança] é uma obrigação do profissional de saúde” e, no entanto, “a
quantidade de pessoas que recebem quimioterapia na última semana de vida ou que acabam a sua vida
numa unidade de cuidados intensivos… Quando seria possível morrerem em paz, com mais dignidade. Há
tanto a fazer.”
Outro exemplo: “Reanimar um doente oncológico em fase terminal que entra em paragem cardio-
respiratória é má prática médica”. Será que isso se faz em Portugal? “Não há dados, mas a prática
internacional diz que se faz demasiado”. A investigadora fala “da coragem moral para saber parar quando
não há nada a fazer, deixar a pessoa morrer com dignidade. Na ética médica estas ainda são questões muito
recentes. Ainda não houve tempo para se sedimentarem nos profissionais de saúde”.
O manifesto fala do consentimento informado como um direito “salvaguardado”. A investigadora da
Universidade Católica de Lisboa diz que “afirmar que existe consentimento informado é, muitas vezes, algo
absolutamente utópico. Não é porque são legisladas que as coisas existem na realidade”.
Quanto à questão da liberdade, a especialista em bioética diz que não sabe “se é o termo mais correcto”:
“Um doente terminal, com tanta vulnerabilidade e fragilidade, nunca é livre, está condicionadíssimo.
Eticamente levantam-se objeções”. A docente defende que “a vulnerabilidade não exclui a liberdade, mas
condiciona a capacidade de decidir livremente, a possibilidade de coação aumenta”.
O manifesto parte do pressuposto “que os doentes têm acesso aos cuidados paliativos, quando isso não
acontece. E, nota, “não está cientificamente comprovado que, se todos tivessem acesso àqueles cuidados, se
quereriam morrer [recorrendo à eutanásia]”. “Não faltam exemplos de pessoas que dizem que queriam x e x
e que depois, em final de vida, não quiseram. A morte é um futuro, uma circunstância muito aberta.”
“A promessa da tortura”
Maria Filomena Molder, professora de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa, diz que “a incerteza [do
momento] da morte deve ser protegida”. Parece contraditório? “Não é”. “O desenvolvimento científico
chegou a tal ponto que interessa menos o que o doente está a sentir, os afetos, do que a obstinação
terapêutica” e essa sim “quer diminuir essa incerteza da morte. Impõe-se como medida puramente
tecnológica”.
“A incerteza da morte é o nosso espaço de liberdade”. Ser defensor da eutanásia não é contrariar essa
incerteza, explica a docente que também é signatária do manifesto, é aceitar que “a incerteza foi
abandonada.” Nessa altura, continuar a viver “é a condenação, é a promessa da tortura.”
“Há a ideia de que nós somos eternos. Muitas vezes a morte já não é ‘assistida’, a morte passou para uma
esfera oculta e institucional [hospitais e lares de idosos]”.
“Despenalizar a morte assistida”, não é, como o suicídio, “uma morte abandonada”. A intervenção do
médico tem de acontecer porque “a medicina não se faz sem dois, médico e doente. Não é a decisão de uma
pessoa abandonada, mas acompanhada. Exige preparação e reflexão, enquanto podemos refletir”.
A docente diz que uma coisa são os princípios religiosos outra “a dogmática religiosa. Há uma obsessão
em relação ao ‘direito à vida’, que não sabemos o que é. O que é isso do direito à vida”. E cita a filósofa
Hannah Arendt quando dizia que “a morte não é a coisa mais terrível, o mais terrível é ser obrigado a viver
indignamente”.
Maria Filomena Molder defende que “não pode ser a dogmática religiosa que decide. Há pessoas sem
confissão religiosa”, sustentando que a descriminalização da morte assistida será consequência “da evolução
das sociedades ocidentais e da separação do poder político do religioso.”
A lei atual nunca foi debatida
A legislação portuguesa atual prevê que o crime de “homicídio a pedido da vítima” é punível com pena de
prisão até 3 anos, o “homicídio por compaixão” com prisão de 1 a 5 anos e “o incitamento ou ajuda ao
suicídio punível” com prisão até 3 anos.
“Há uma legislação que não foi discutida e essa ninguém põe em causa. Não houve debate, é
universalmente aceite”, nota José Gil, professor de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa.
“Porque é que não se pode debater ao contrário”, uma lei que descriminaliza a morte assistida? “A
legislação que existe é uma herança, mas as coisas mudam.”
O filósofo diz que o reclamar “da morte assistida tem a ver com o reconhecimento do que a dor e o
sofrimento podem causar à vida: arrancar o indivíduo a si próprio, enlouquecê-lo, humilhá-lo, esmagá-lo, o
que se chama uma morte indigna. Há qualquer coisa na vida de puramente biológico que se recusa, que a
biologia nos pode reduzir a um objeto”. O direito à eutanásia é permitir que “o homem se possa apropriar da
sua vida até ao fim”, uma expressão “do direito à vida”. “Isto não são elucubrações filosóficas, isto tem a ver
com a nossa vida. Morre-se só.”
Catarina Gomes. Publicado no Jornal Público em 14 de fevereiro de 2016
Eutanásia, uma questão de tolerância
O debate é demasiado importante para ser atropelado por extremismos
É pena que numa altura em que se discute o Orçamento de Estado, um documento estruturante e que,
por si só, deveria ocupar a agenda política, salte para a ribalta a questão da eutanásia. Não se percebe este
timing nem num caso nem no outro, pois cada um dos temas
merece concentrar quer disponibilidade dos vários órgãos de
decisão política, quer a atenção da sociedade como um todo. Os
cínicos chamarão à colação a velha máxima segundo a qual em
política o que parece é, para justificarem a tese de que não será
inocente o lançamento da questão da eutanásia, numa altura em
que o Governo enfrenta críticas e dificuldades à medida que se
vão clarificando alguns contornos do Orçamento. A solução
encontrada para atalhar o descontentamento das empresas com o aumento dos combustíveis ou a
intransigência da CGTP sobre o alargamento das 35 horas a toda a Administração Pública são exemplos
claros dessas dificuldades e poderiam dar corpo a esta teoria da conspiração, mas é duvidoso que assim seja.
Nem a política portuguesa chegou a esse grau de “sofisticação”, nem é possível instrumentalizar tantas
pessoas fora da órbita do partido do Governo ao ponto de as levar a subscrever o documento “Direito a
morrer com dignidade”. Portanto, as teses conspirativas são sempre empolgantes, mas manifestamente
exageradas neste caso. O que não invalida o nosso ponto de partida, ou seja, a questão da eutanásia merece
atenção e foco, e deve obrigar a um debate transversal na sociedade portuguesa. Exige, sobretudo, não ser
contaminada pelo fogo das convicções políticas e religiosas de cada um como já está a ser quando se
extremam argumentos maximalistas.
Uns defendem – e já há quem exija – a eutanásia como se apenas estivesse em causa uma espécie de
autodeterminação individual sem repercussões na sociedade e sem interferências, mesmo indiretas, na
liberdade dos outros. Outros escudam-se em argumentos de ordem essencialmente religiosa, caso de quem
imputa aos defensores da morte assistida a vontade de se substituírem a Deus na antecipação do momento
da sua própria morte. Para estes, a eutanásia surge assim como que uma usurpação da vontade do Criador.
Estes temas fraturantes são exemplos de excelência para nos apercebermos que a realidade não é a preto e
branco e que por isso mesmo não se devia dar prioridade ao caminho abissal da divergência, mas antes
privilegiar o debate sereno em torno de questões éticas e morais que naturalmente tocam convicções e
crenças milenares. Isto explica o facto de haver tão poucos países que tenham inscrito o direito à eutanásia
na sua legislação, só três na Europa – Holanda, Bélgica e Suíça. Além de estudar estas experiências, será
também fundamental avaliar o resultado do debate que entretanto se faz na sociedade portuguesa. Sem
descartar a hipótese de uma consulta popular, como alguns já alvitram, com argumentos paternalistas e por
vezes pouco democráticos. Os portugueses já deram mais do que provas sobre a maturidade das suas
escolhas.
Editorial do Jornal Público do dia 11 de fevereiro de 2016
Referendo sobre eutanásia é "virar a democracia de pernas para o ar", afirma João Semedo
O ex-coordenador do BE não considera democrático um possível referendo sobre a eutanásia e defende
que cabe ao Parlamento "aprovar o direito à morte assistida". O médico recorda que Portugal entrou para
a UE sem qualquer referendo.
João Semedo, médico e ex-coordenador do Bloco de Esquerda, considera que a defesa de um referendo
sobre a eutanásia pretende evitar a discussão e adiar a solução da despenalização da morte assistida.
"Um referendo sobre direitos individuais é virar a democracia de pernas para o ar, é virar a democracia
contra ela própria", escreveu João Semedo em resposta à agência Lusa, considerando que referendar direitos
individuais "não é democrático", embora o pareça.
É antes, disse, "admitir que um direito que é de todos possa ser retirado por alguns": "Alguém admitiria
ou acharia democrático fazer um referendo em que o direito de todos à saúde ou ao trabalho, por exemplo,
fosse retirado da lei por decisão de alguns?"
"A defesa do referendo pretende evitar a discussão. Evitar a discussão para, em vez de discutirmos a
problemática do fim da vida, a forma e as condições em que morremos, passarmos o tempo a discutir se
deve ou não haver referendo", declarou à agência Lusa o antigo deputado e coordenador bloquista, que é
um dos mais de 100 subscritores do manifesto que pretende
lançar o debate sobre a despenalização ou legalização da morte
assistida.
Para Semedo, o debate sobre a morte assistida ainda agora começou, mas fica já claro que "quem quer o
referendo, não quer o direito à morte assistida mas não quer assumir com transparência o que pensa".
"Nós [o movimento que deu origem ao manifesto] queremos discutir os problemas da morte, não
queremos perder tempo a discutir politiquices. Não é a primeira vez que o referendo é usado pelo PSD como
forma de adiar um problema", referiu o médico, recordando o caso da adoção e coadoção por casais do
mesmo sexo, situação em que o referendo "inventado pelo PSD só serviu para o país perder tempo".
O antigo coordenador do BE não tem dúvidas de que "é ao Parlamento que cabe aprovar o direito à
morte assistida": "os deputados foram eleitos para resolver os problemas do país e das pessoas, não foram
eleitos para devolverem os problemas sem os resolver. Estamos na União Europeia sem qualquer referendo,
estamos no Euro e também não houve referendo, não ouvi até hoje essas vozes incomodadas porque os
portugueses não foram ouvidos sobre o Euro e a UE".
Sobre o argumento de que as eleições foram há pouco tempo e a eutanásia não constava dos programas
eleitorais, Semedo lembra que o direito à morte assistida é um antigo compromisso eleitoral do Bloco de
Esquerda. "A Bélgica, o Luxemburgo e a Holanda deixaram de ser países democráticos porque legalizaram a
morte assistida sem referendo? A resposta é óbvia, claro que não", rematou.
LUSA, publicado no Jornal Público em 11 de fevereiro de 2016
Eutanásia? Paula Teixeira da Cruz, Rui Rio e Sérgio Godinho dizem sim
Políticos de vários quadrantes, cientistas, médicos e artistas apoiam a despenalização da morte
assistida. É uma lista com uma centena de notáveis. Sobrinho Simões, Pilar del Rio, Sérgio Godinho e
Manuel Luís Goucha assinam o manifesto que este sábado é divulgado pelo PÚBLICO e pelo Expresso.
A despenalização da morte assistida é um tema tabu em Portugal, mas este sábado é dado um primeiro
passo para o arranque do debate, que se prevê polémico, com a divulgação do manifesto do movimento
cívico “Direito a morrer com dignidade”, que defende a legalização e regulamentação da morte assistida. Da
lista de signatários destacam-se, entre outros, a ex-ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, o antigo
presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, e Sobrinho Simões, que foi recentemente classificado pelos seus
pares como “o patologista mais influente do mundo”.
Também o cantor Sérgio Godinho, a jornalista Pilar del Rio e o apresentador Manuel Luís Goucha assinam
este manifesto, ao lado de políticos de vários partidos, de cientistas, de artistas e ainda de muitos médicos —
um deles é o diretor-geral da Saúde, Francisco George.
João Semedo
“O manifesto tem muito mais signatários, estes são apenas alguns dos VIP que o apoiam”, precisa Laura
Ferreira dos Santos, a professora aposentada da Universidade do Minho que já escreveu três livros sobre o
tema e é uma das fundadoras deste movimento oficialmente criado em Novembro passado, num encontro
no Porto. “Conseguimos ter pessoas de vários quadrantes e conhecidas dos portugueses. Assim, já não se
pode dizer que [os apoiantes] são meia dúzia de radicais ou de lunáticos. Estas pessoas são cultas,
informadas, sabem que existem cuidados paliativos”, enfatiza a especialista que é doutorada em Filosofia da
Educação.
A morte assistida inclui a eutanásia (o médico administra o fármaco letal) e o suicídio medicamente
assistido (é o próprio doente a tomar o fármaco). “É um direito do doente que sofre e a quem não resta
outra alternativa, por ele tida como aceitável ou digna, para pôr termo ao seu sofrimento”, lê-se no
manifesto. É, sintetiza, “uma última liberdade, um último pedido que não se pode recusar a quem se sabe
estar condenado”.
Na prática, a divulgação deste manifesto e das figuras públicas que o assinam é o primeiro passo para que
o tema da morte assistida comece a ser discutido pelos cidadãos. Pelo menos é isso que pretendem os
fundadores do movimento. E depois disto? Criado em
Novembro passado por Laura Ferreira dos Santos e pelo
médico nefrologista João Ribeiro dos Santos, o
movimento poderá evoluir para uma associação “direito
a morrer”, à semelhança das que já existem em países
como Espanha e Itália, onde a eutanásia também não
está despenalizada.
Aliás, na Europa, a morte assistida apenas está
legalizada na Holanda, na Bélgica e no Luxemburgo. Nos
Estados Unidos, o suicídio medicamente assistido é
permitido nos estados de Oregon, Washington e
Vermont e, na Europa, não é punido na Suíça. No Reino Unido a legalização foi recentemente rejeitada pela
Câmara dos Comuns, enquanto na Colômbia recebeu luz verde.
Em Portugal, João Ribeiro dos Santos lançou há mais de dez anos uma petição para que a Ordem dos
Médicos (OM) debatesse o tema. Mas a iniciativa de pouco serviu. Num encontro que reuniu em 2009 várias
personalidades na OM, em Lisboa, para debater as questões de fim de vida, apesar de a sala estar cheia de
médicos, estes, no final, quase não fizeram perguntas, recorda Laura Ferreira dos Santos, que lamenta:
“Parecia que ninguém queria tornar pública a sua posição”. Agora, o movimento tem o apoio de muitos
médicos, frisa. O presidente da Secção Regional do Sul da OM, Jaime Teixeira Mendes, é um deles. ”Acho que
agora isto é imparável”, acredita João Ribeiro dos Santos.
No futuro, o movimento cívico pode evoluir para uma associação, “se houver condições” para isso.
Consciente de que este é um caminho complexo, Laura Ferreira dos Santos explica que, para já, se decidiu
avançar com o o manifesto e se está a ponderar a hipótese de criar um site ou um perfil no Facebook para se
chegar “ao maior número de pessoas possível”. Mas o processo “vai avançar lentamente”, prevê.
Do lado da política, o ex-líder do Bloco de Esquerda, João Semedo, afirma que o partido vai, como se
comprometeu, avançar com uma iniciativa legislativa, mas não adianta uma data. À semelhança do que
aconteceu com o aborto, até pode acontecer que venha a ser agendado no futuro um referendo à eutanásia
em Portugal.
Em entrevista à Rádio Renascença, em Janeiro, a ex-ministra Assunção Cristas admitiu esta possibilidade e
lembrou que o CDS vai tomar uma posição sobre a matéria nos próximos tempos. Mas já foi levantando o
véu sobre a sua posição pessoal: “Os cuidados paliativos são a resposta civilizada para o sofrimento em fim
de vida”.
Laura Ferreira dos Santos contrapõe que eutanásia e cuidados paliativos até podem coexistir, como
sucede na Bélgica, onde “em muitos locais há cuidados paliativos integrais mas, quando os doentes estão
esgotados, podem pedir a eutanásia ou o suicídio assistido”.
O presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, defende que a eutanásia deve ser
debatida “intensamente” e referendada. “Um referendo tem a vantagem de ser democrático, de as pessoas
escolherem, e também implica um debate alargado na sociedade”, disse à Lusa Rui Nunes, que é professor
da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mas Rui Nunes tem dúvidas sobre se este será o
momento adequado para lançar uma discussão sobre a polémica matéria.
Alexandra Campos. Artigo publicado no Jornal Público em 6 de fevereiro de 2016
PS aberto a debater eutanásia, um tema não prioritário para o PSD
Bloco é o único que se compromete a avançar com projecto de lei, mas diz que a reflexão deve ser feita
depois da discussão do Orçamento de Estado. CDS defende que Parlamento não tem mandato para decidir
sobre este tema.
O PS quer discutir a eutanásia, mas diz que é cedo para avançar com propostas no Parlamento. O Bloco de
Esquerda promete avançar com um projecto de lei, mas pede que a reflexão deste tema
"extraordinariamente delicado" seja feita depois da discussão do Orçamento do Estado. E o líder
parlamentar do PSD remete para a sociedade civil a realização de um "bom e amplo debate" acerca da
eutanásia, considerando que, sendo um tema importante, não é prioritário. Já o CDS-PP diz que o
Parlamento não tem mandato para decidir sobre a eutanásia porque a maioria dos partidos não inscreveu o
tema nos programas eleitorais, mas não exclui a realização de um referendo.
Esta é em síntese a posição assumida esta quarta-feira pelos partidos com assento parlamentar, sobre o
tema da eutanásia e da morte assistida, lançado no passado
sábado com a publicação de um manifesto do Movimento
Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, assinado
por 112 personalidades.
"Estamos abertos ao debate e é com muito bons olhos
que vemos que a sociedade civil tem essa capacidade
mobilizadora, que também ajude o parlamento, ajude os
decisores, a tomar decisões mais informadas nesse
contexto", afirmou aos jornalistas o deputado socialista
Pedro Delgado Alves.
O dirigente socialista sublinhou que, "para já, ainda é prematuro falar-se de intervenção parlamentar",
que não exclui, até com apresentação de uma iniciativa do PS, mas depois de amadurecidas "questões que
são complexas, são técnico-jurídicas, são éticas, relacionadas com a deontologia profissional da profissão
médica" e implicam "um debate de facto muito alargado para o qual soluções em cima do joelho e muito à
pressa são piores porque geram um consenso mais difícil e não são factor de confiança". "Não excluímos essa
possibilidade, mas o debate está ainda numa fase embrionária, ainda terá que dar bastantes passos",
resumiu Pedro Delgado Alves.
Já o líder parlamentar do PSD remeteu para a sociedade civil a realização de um "bom e amplo debate"
acerca da eutanásia, que os sociais-democratas também farão internamente, considerando que, sendo um
tema importante, não é prioritário.
"No PSD não inscrevemos esse assunto no nosso programa eleitoral, não temos a discussão interna
suficientemente avançada e aprofundada para podermos estar hoje a poder emitir uma opinião definitiva
sobre o tema", afirmou Luís Montenegro aos jornalistas no parlamento. Montenegro disse que os deputados
do PSD não negam a importância do tema e que "é importante que a comunidade científica, académica, a
sociedade civil, que estuda e que aprofunda temas como este, se deva manifestar, e se deva promover um
bom e amplo debate na sociedade portuguesa".
Montenegro afirmou que os sociais-democratas não deixarão de participar no debate quando este entrar
"verdadeiramente na agenda política e parlamentar" e reconheceu que, na bancada, há diversas opiniões
sobre a matéria e que internamente também promoverão a discussão. "Creio que no país não há nenhuma
pressa de colocar esse tema acima de outros, a não ser para desviar as atenções e creio que é visível um
esforço de partidos que apoiam o Governo alguma necessidade de desviar as atenções, dado o facto de o
processo orçamental ter sido desenvolvido com tanta trapalhada", disse.
Na agenda do Bloco
A porta-voz do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, promete um projecto de lei sobre este tema,
mas diz que, neste momento, está concentrada na discussão do Orçamento do Estado. A deputada bloquista
considera "extraordinariamente delicado" o tema da despenalização da morte assistida e lembra que esta
matéria integra o programa eleitoral bloquista.
"A questão do direito a decidir a morte com dignidade de pessoas em situação terminal, sem nenhuma
situação de cura, é um tema que o BE tem no seu programa eleitoral. É um compromisso do BE. Há neste
momento um movimento amplo na sociedade que quer que esse debate seja feito neste país", sublinhou
Catarina Martins aos jornalistas na sede do partido.
Todavia, o elevado grau de delicadeza do tema pede que o debate e reflexão sejam feitos num momento
posterior ao da discussão do orçamento para 2016. "Este é o momento do orçamento, não é o momento de
apresentar nenhuma proposta", sustentou Catarina Martins, frisando todavia que ninguém estranhará a
"disponibilidade" do Bloco em apresentar um projecto-lei sobre a matéria. Tal só "poderá ser feito no devido
tempo de reflexão e pensamento, não é seguramente" em pleno debate em torno do orçamento.
O CDS-PP considera que a Assembleia da República não tem mandato para decidir sobre eutanásia
porque os partidos não inscreveram o tema nos programas eleitorais, sem excluir a realização de um
referendo. "O primeiro passo é promover um debate alargado na sociedade, o referendo estará em aberto e
poderá ser uma opção, a questão é que não podemos precipitarmo-nos. O que tem de acontecer é um maior
esclarecimento dos portugueses para, numa matéria desta complexidade, não decidirem de uma forma
emotiva", afirmou a deputada Isabel Galriça Neto, médica especialista em cuidados paliativos.
Para a deputada do CDS, "o central é não fugir ao debate", frisando que se realizou recentemente a
campanha das legislativas "em que nenhum" dos partidos apresentou nos seus programas eleitorais ideias
sobre esta questão. "Achamos que o debate tem de existir de forma serena na sociedade", afirmou.
Em declarações aos jornalistas no Parlamento, a deputada do CDS disse que os centristas são pela
"dignidade em fim de vida, sem eutanásia", pediu um debate "com objectividade, sem eufemismos, sem
distorções, ouvindo as pessoas que estão verdadeiramente envolvidas nestas matérias e, portanto, ajudar a
sociedade a ter uma ideia serena sobre estas matérias".
"Trazer a bandeira do sofrimento intolerável? Não conheço ninguém de bom senso que seja a favor do
sofrimento intolerável. Não sou e trabalho com estes doentes todos os dias. Não sou a favor da eutanásia e
quero dignidade e assistência na minha morte", argumentou. A deputada sublinhou que o CDS defende "uma
resposta clínica hoje humanizada para evitar que o sofrimento se torne intolerável" e que esta não é uma
matéria exclusivamente de liberdade individual.
"Não, isto diz respeito ao Estado. Há as consequências aos resultados de uma lei que, nos casos em que
falam muitas vezes, da Bélgica e da Holanda, permitem que milhares de pessoas por ano, não casos
excecionais, estamos a falar de milhares de pessoas por ano, morram por eutanásia e até sem terem pedido
para tal, o que já é homicídio", apontou.
O manifesto do Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida defende ser "urgente
despenalizar e regulamentar a Morte Assistida" e sublinha que, tal como o direito à vida está consagrado em
lei, também "o direito a morrer em paz" o deve ser. "É imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem
sentido, imposto em nome de convicções alheias. É urgente despenalizar e regulamentar a morte assistida",
sustentam.
Entre os signatários contam-se políticos de vários quadrantes, como os socialistas Álvaro Beleza, Isabel
Moreira, Elisa Ferreira e Helena Roseta, os antigos dirigentes do Bloco Ana Drago e Daniel Oliveira, os ex-
coordenadores deste partido Francisco Louçã e João Semedo, o ex-candidatos presidenciais António Sampaio
da Nóvoa e Marisa Matias, a deputada do Partido Ecologista "Os Verdes" Heloísa Apolónia, os sociais-
democratas Paula Teixeira da Cruz, Rui Rio e Pacheco Pereira, o fundador do Livre Rui Tavares e o antigo
capitão de Abril Vasco Lourenço, entre outros.
LUSA. Publicado no Jornal público em 10 de fevereiro de 2016
O CDS já fez muito mais pela causa dos paliativos do que o BE
Para nós não há vidas que valham menos ou que sejam menos dignas.
Foi preciso um cartaz e um artigo de jornal para o Bloco de Esquerda reconhecer a existência de Deus e da
sua Igreja.
O cartaz é conhecido, o artigo é de há dias - “Frei Tomás no Congresso do CDS”, assinado pelo dirigente
do BE, João Semedo. A citar alguém da Igreja, melhor seria que citasse Santo Agostinho: “nenhum homem
pode, de facto, ser verdadeiramente amigo do homem se não é antes de tudo amigo da verdade”.
A acusação é a de termos votado contra um projecto que recomendava ao governo a criação de uma
unidade de cuidados paliativos (CP) pediátricos nas “instalações do hospital Maria Pia, entretanto
desocupadas e que, desde a sua abertura em 1882, sempre estiveram ao serviço das crianças”. O que
Semedo não diz é que o CDS votou contra, por considerar que as instalações de 1822 não seriam dignas e
com a qualidade exigível para instalar uma unidade de paliativos para crianças. Os CP, especialmente os
pediátricos, não podem ser a 2ª divisão do SNS.
E também se esquece que o CDS, além de ter apresentado as suas próprias iniciativas para o reforço da
rede de CP – rede essa, já agora, criada num governo PSD/CDS - aprovou iniciativas do BE relativas aos
cuidados continuados e aos paliativos, não olhando para os carimbos partidários, mas para a relevância das
propostas.
Dados de um estudo recente apresentado pelo observatório de CP da Universidade Católica (depois
do aggiornamento do BE já se poderá citar a Católica), referem que o número de camas de CP passou de 213
em 2010, para 359 em 2015 e que o número de serviços passou de 48 para 109. Nos cuidados continuados,
de 2010 a 2015, foram criadas 2.500 novas camas. Isto é factual, isto é a verdade.
Ainda há muito para fazer até termos uma rede nacional de CP que dê resposta a todos os que dela
carecem. E é nisso que queremos continuar a trabalhar. E estes 2 escribas orgulham-se de ter colaborado
para criar melhores condições de vida para as pessoas que mais sofrem e para as suas famílias. De terem
estado na origem da Lei de Bases dos CP. De terem, mesmo em tempos de graves restrições orçamentais,
continuado a trabalhar para alargar as redes de apoio aos mais vulneráveis. Muito mais do que o Bloco em
bloco fez. Os CP não nasceram com o CDS, nem com o BE. Mas a verdade é que o CDS já fez muito mais pela
causa dos paliativos do que o BE, uma causa que é de todos e não é nem pode ser nem de esquerda ou de
direita.
Mas não nos afastemos do que é essencial: temos que continuar a garantir aos portugueses mais
vulneráveis, nomeadamente aos doentes crónicos e em fim de vida, independentemente da sua idade, o
direito a cuidados de saúde rigorosos que intervenham activamente no sofrimento que decorre dessas
mesmas condições, nunca deixando que ele se torna intolerável. Uma intervenção prestada por profissionais
devidamente capacitados, e nunca à margem do sistema de saúde.
E na nossa moção não esquecemos propostas para melhorar o apoio aos cuidadores informais,
verdadeiros heróis do quotidiano, cujo trabalho tem uma relevância social inquestionável. Para nós, com o
conhecimento concreto desta realidade, esse é um desígnio do qual não nos desviaremos. E a esse propósito
convém dizer que não aceitamos insinuações sobre a honorabilidade do carácter dos que, dentro e fora do
SNS, trabalham nesta área para ampliar a dignidade dos portugueses. Não será demasiada arrogância
intelectual ir pela vida a fazer julgamentos morais sobre os outros?
Precisamos de mais e melhores Cuidados Continuados e Paliativos prestados atempadamente. Temos
bem claro que, isso sim, corresponde a um verdadeiro Direito Humano, e não deve ser confundido como
uma opção face à eutanásia.
Porque para nós não há vidas que valham menos ou que sejam menos dignas, nomeadamente se
afectadas pela doença ou pela deficiência. Porque para nós o respeito pelo direito à vida, consagrado na
Constituição, é o garante da nossa Liberdade e Dignidade, valores maiores que prezamos e que não são
propriedade de ninguém. E sobretudo, porque somos exigentes e queremos oferecer aos que sofrem, muito
mais do que um pretenso direito a serem mortos por outros – a maneira menos digna de se morrer.
É por isso que nos afirmamos contra a eutanásia. Essa nunca será a forma de acabar com o sofrimento
mas sobretudo uma forma de acabar com a vida de alguém. E essa é a cultura que , em verdade, nos separa.
ISABEL GALRIÇA NETO e PEDRO MOTA SOARES* publicado no jornal Público em 17 de março de 2016
*Deputados do CDS
Figuras públicas aderem a movimento para despenalizar morte assistida
António-Pedro Vasconcelos, Júlio Machado Vaz, João Semedo, Alexandre Quintanilha, Francisco Louçã
e José Júdice apoiam movimento. Reunião marcada para sábado é “histórica”, diz Laura Ferreira dos
Santos.
Há vários anos que existem associações “right to die” mesmo em países onde a eutanásia é proibida.
“Acha que tenho o direito legal de me matar? Queria terminar com a minha vida, sabe onde posso obter
o produto?” Ao e-mail de Laura Ferreira dos Santos, autora de vários livros sobre morte assistida, têm
chegado múltiplas perguntas deste género. Consciente de que há muitas questões que ficam sem resposta e
de que há muitas pessoas a precisar de informação e de apoio, a professora aposentada da Universidade do
Minho aceitou o desafio de lançar a base para a criação de um movimento cívico para a despenalização e
regulamentação da morte assistida em Portugal.
Ao convite para aderir à reunião para definir o embrião deste movimento que se prevê polémico já
disseram que sim António-Pedro Vasconcelos, Júlio Machado Vaz, João Semedo, Alexandre Quintanilha,
Francisco Louçã e José Júdice, entre outras personalidades conhecidas, num grupo de inscritos que
ultrapassa a meia centena. É um caminho que faltava
fazer em Portugal, quando na Europa, lembra Laura
Ferreira dos Santos, desde há vários anos existem
associações “right to die” (direito a morrer), mesmo em
países onde a morte assistida (que inclui a eutanásia e o
suicídio medicamente assistido) não está legalizada,
como Espanha e França. “Em Itália até há duas”, diz.
Ainda sem nome – "Ajuda-me a morrer" ou "Última
liberdade" são duas das hipóteses –, o movimento,
prevê-se, vai criar um portal web, lançar uma petição
pública, pedir audiências a grupos parlamentares e a
outras entidades. Além de Laura, que acaba de publicar A Morte Assistida e Outras Questões de Fim-de-
Vida (Almedina), é promotor da reunião o médico nefrologista João Ribeiro dos Santos que há quatro anos
lançou uma petição para que a Ordem dos Médicos (OM) debatesse o tema.
Eventualmente, o movimento poderá evoluir para associação, se para isso houver vontade e meios.
“Pensamos ser tempo de passar de peças avulsas, onde se defende a despenalização e a regulamentação da
morte assistida, para uma atuação mais consistente e organizada”, explica-se na convocatória do encontro,
que está marcado para sábado às 14h30 na sede da Ordem dos Médicos, no Porto (a sala é cedida sem
qualquer tipo de envolvimento da instituição).
“Que fazer quando o doente, de forma informada, esclarecida e reiterada, solicita ao médico que o ajude
a morrer porque padece de sofrimento insuportável, físico ou psicológico, e que não é suscetível de ser
aliviado ou suavizado?”, permuta-se na convocatória. Laura Ferreira dos Santos defende mesmo que “não
dar essa escolha final à pessoa é uma tirania do Estado”.
Alterar o Código Penal
Do ponto de vista jurídico, para que a morte assistida seja despenalizada é necessário alterar o Código
Penal, mas não a Constituição da República, explicam os promotores. “Temos o direito de viver e não o dever
de viver”, justificam, defendendo que cabe a cada um “deliberar (…) sobre o tempo e a forma de viver” e que
não podem ser sempre os médicos a ter a última palavra.
Mas falar de morte assistida ainda é uma espécie de tabu em Portugal. “Esta é uma reunião histórica”,
assume a professora aposentada, enquanto recorda o encontro que há alguns anos reuniu várias
personalidades na Ordem dos Médicos (OM), em Lisboa, justamente para debater as questões de fim-de-
vida. “A sala estava cheia, mas não houve quase perguntas nenhumas, quando esta é uma questão de
direitos fundamentais”.
“Este silêncio onera as pessoas que se vêem a braços com situações graves. Um exemplo: um doente tem
um cancro que estava em remissão, o cancro volta mas ele não quer tratar-se, a família pressiona-o imenso e
ele suicida-se. Se houvesse abertura para falar disto, ele poderia ter discutido o assunto com os médicos”,
lamenta.
“Na nossa tradição judaico-cristão, a vida é vista como um bem inalienável”, observa João Ribeiro dos
Santos, para quem, "em termos éticos, esta discussão até é mais simples de fazer” do que a da
despenalização da interrupção voluntária de gravidez, que foi aprovada no último referendo e agora é
permitida, desde que feita até às dez semanas de gestação.
Sem querer expressar a sua posição pessoal sobre “um problema tão complexo”, o bastonário da OM,
José Manuel Silva, lembra que o Código Deontológico dos médicos não permite a eutanásia, mas entende
que “é saudável” promover este debate. “Nós não temos tabus quanto à discussão de determinado assunto.
Este tem sido pouco discutido porque colide com as convicções religiosas de muitas pessoas”, acredita.
Aos detratores da despenalização da morte assistida, que costumam argumentar que os cuidados
paliativos oferecem uma panóplia de meios e de medicação eficazes no alívio da dor física e do sofrimento
psicológico, os promotores do movimento para a despenalização da morte assistida respondem esta é uma
“falsa questão”. A eutanásia e o suicídio medicamente assistido não são uma alternativa aos cuidados
paliativos nem os antagonizam, alegam.
Na Europa, a morte assistida está legalizada na Holanda e na Bélgica, há mais de uma década, e o
Luxemburgo também a legalizou, entretanto. Nos Estados Unidos, o suicídio medicamente assistido é
permitido nos estados norte-americanos de Oregon, Washington e Vermont e, na Europa, não é punido na
Suíça. O Canadá “avança no próximo mês”, diz Laura Ferreira dos Santos.
Há também países e estados onde, “pontual e casuisticamente”, os tribunais não têm condenado os
autores ou os assistentes de alguma forma de morte assistida. É o caso da Colômbia, do Uruguai e do estado
norte-americano de Montana.
Alexandra Campos, publicado no Jornal Público em 12 de novembro de 2015
Um teólogo que optará pelo suicídio assistido?
Foi a partir da sua fé católica que Hans Küng aderiu à defesa da morte assistida.
No começo de Outubro de 2013, o conhecido teólogo católico suíço Hans Küng (HK), de 85 anos, publicou
o terceiro livro das suas Memórias, Erlebte Menschlichkeit (que se poderá traduzir como Humanidade
experienciada). Nele, revela que sofre da doença de Parkinson e que, para além de padecer de outros
problemas de saúde, pensa que em breve ficará cego.
Perante esta degradação da vida – HK pergunta-se o que é um académico que já não pode ler e escrever -
, expressa a possibilidade de optar pelo suicídio assistido se uma morte súbita não o poupar a uma última
decisão. Saliente-se, no entanto, que já em 1995 HK e o seu colega e amigo da Universidade de Tübingen,
Walter Jens, crítico literário (falecido este ano, demente), escreveram o que em inglês foi traduzido
por Dying with Dignity. A Plea for Personal Responsability. No último parágrafo desse “apelo”, num Postscript
em torno da encíclica Evangelium Vitae, HK concluía: “podemos expressar a esperança de que, se não
morrermos de morte súbita, possamos deixar este mundo rodeados por verdadeiros amigos e com a ajuda
de um médico compreensivo, em serenidade e confiança, em gratidão e tranquila expectativa”.
Foi a partir da sua fé católica que HK aderiu à defesa da morte assistida, rejeitando qualquer forma de
“autonomismo individualista”. Para ele, a vida é um dom de Deus e uma responsabilidade humana: no gerar
de novas vidas, durante a existência e também na morte. Assim, “de acordo com a vontade de Deus”, ao
mesmo tempo que uma dádiva, “a vida é também uma tarefa humana, portanto tornada responsabilidade
nossa (e não dos outros). Trata-se de uma autonomia baseada numa teonomia”.
Não foi por acaso que HK se colocou estas questões. Em 1954, ao mesmo tempo que se dirigia para a
Cripta de S. Pedro em Roma para celebrar a sua primeira eucaristia, o irmão, de vinte e dois anos, tinha um
problema de saúde, tendo-lhe sido detectado pouco depois um tumor cerebral de que viria a morrer. HK diz
ter então vivenciado um processo de morte terrivelmente lento, em que “um membro após o outro, um
órgão após o outro, deixava de funcionar”. Isto, claro, depois dos métodos clássicos de “combate” ao cancro.
Após dias atrozes de agonia, o irmão morreu sufocado nos fluidos dos pulmões. HK confessa que, “desde
então, tenho-me perguntado se esta é a morte que Deus dá, que Deus ordena. Será que os homens e as
mulheres devem aceitar isto ‘submissamente’ [...] até ao fim, como algo ‘dado por Deus’, ‘divinamente
querido’ ou mesmo algo que ‘agrada a Deus’?”. Para HK, Deus é deste modo visto sobretudo como o
“proprietário” dos seres humanos, dificilmente identificável com “o pai dos pobres, dos que sofrem, dos que
estão perdidos”. Por isso, depois de uma longa reflexão, assumiu que “como cristão e teólogo estou
convencido de que o Deus todo misericordioso, que deu aos homens e às mulheres liberdade e
responsabilidade relativamente às suas vidas, também deu às pessoas que estão para morrer a
responsabilidade de tomarem uma decisão consciente sobre o modo e o tempo das suas mortes”. Óbvio
adepto dos cuidados paliativos, sabe que eles por vezes não eliminam toda a dor ou sofrimento, ou só o
fazem à custa de uma sedação que elimina a hipótese de lucidez, tão apreciada por tantas pessoas. Por isso,
Jens escreve que tanto ele como HK viveriam mais tranquilos se soubessem que poderiam dispor de um Max
Schur para os acompanhar no final, ou seja, o médico pessoal de Freud que lhe proporcionou a eutanásia
desejada. Escreve HK em 1995: “Tal morrer para dentro de Deus [dying into God], com um sentido de
gratidão embaraçada, parece-me ser o que podemos esperar em confiança: uma verdadeira morte
dignificada”. Claro que HK não exclui que outras mortes sejam também vividas dignamente, mas acredita
que o seu cristianismo não lhe impede a morte assistida. Se esta vier a ser a sua opção, estou convencida de
que acreditará de facto estar desse modo a mergulhar em Deus, podendo-se assim, como diz neste livro de
Memórias, celebrar-se em seguida uma missa de acção de graças.
LAURA FERREIRA DOS SANTOS. Artigo publicado no Jornal Público em 31 de dezembro de 2013
Bastonário propõe comissões para avaliar distanásia
José Manuel Silva admite que os médicos "não estão bem preparados" para lidar com as questões de
fim-de-vida.
Quando é que os médicos devem parar de tratar um doente? Antes de ser bastonário da Ordem dos
Médicos, José Manuel Silva chegou a propor, no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, onde trabalha, a
criação de “comissões de avaliação de distanásia”, mas a proposta "não foi aceite". A distanásia é
o encarniçamento terapêutico, o uso de tratamentos desproporcionados que apenas prolongam a vida do
doente, tornando o processo da morte lento e com sofrimento.
Os médicos, admite, “não estão bem preparados”
para lidar com as questões de fim-de-vida. “São
problemas demasiado complexos para que possam
tomar decisões sozinhos. O ideal seria que o fizessem
em conjunto com outros médicos e com a família do
doente”, defende o bastonário, que lembra que, se o
Código Deontológico proíbe a eutanásia, também veda
a distanásia.
Foi, aliás, o receio do encarniçamento terapêutico
que esteve na base da criação daquilo que se
convencionou chamar testamento vital, as directivas
antecipadas de vontade que estão previstas na
legislação portuguesa e permitem às pessoas deixar por escrito os cuidados de saúde a que não querem ser
sujeitas, no caso de ficarem incapazes de manifestar a sua vontade.
José Manuel Silva
Mas esta nova possibilidade não está a ter grande adesão em Portugal. Desde que foi criado um registo
informático para facilitar a formalização destas directivas, em 2014, nem 1500 pessoas aderiram, num ano,
quando se estimava que esse número pudesse chegar a cerca de 20 mil. “É uma minoria de pessoas
particularmente esclarecidas”, resume José Manuel Silva, para quem as directivas antecipadas não
trouxeram nada de novo. “Todos os conceitos já estavam previstos e aprovados na Ordem dos Médicos”.
Alexandra Campos, publicado no jornal Público em 1 de dezembro de 2015
Miguel Torga, o abafador e a eutanásia
Quem são os verdadeiros abafadores?...
Volta e meia, os adversários da morte assistida instrumentalizam o conto “O Alma-Grande” (logo no início
de Novos Contos da Montanha) para reduzirem a eutanásia a uma terminação brutal da vida que se dá a
quem está supostamente para morrer mas ainda quer viver. Por outras palavras, reduzem a eutanásia a um
assassinato. Mas é de facto de um mero assassinato que fala o conto, para já não falar do acto demagógico
que é assimilar a eutanásia a um assassinato? Já em tempos, deixei aqui a resposta perplexa do médico belga
à jornalista que lhe perguntava quantos doentes já matara: “Eu não mato, eutanasio” (PÚBLICO, 22.04.2014).
Logo na primeira frase do conto, sobre o local onde a história se desenrola, aparece-nos um contexto
decisivo: “Riba Dal é terra de judeus”.
Em seguida, afirma-se que o Padre local “benze, perdoa, batiza e ensina o catecismo por perguntas e
respostas”. Os judeus inquiridos respondem, como é expectável, de acordo com a fé católica, de tal modo
que “não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o
Pentateuco”, ou seja, os cinco primeiros livros do que os cristãos chamam Antigo Testamento, apelidados
também, pelos judeus, de Thora, no seu sentido menos amplo.
Quando intervém o abafador? A mesma primeira página é bem explícita: “E à hora da morte, quando a
um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques
à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo – abafador”.
Estando Isaac com um tal “febrão” que as esperanças estavam perdidas, uma tal D. Rosa lembra o dever
da “confissãozinha”. E é então que o um irmão de Isaac lembra à cunhada a necessidade de chamar o
abafador. Podemos portanto supor que este tipo de homem tinha a função de proteger as comunidades de
judeus que só para sobreviverem pareciam seguir as práticas cristãs, mas que no segredo das suas vidas
continuavam fiéis ao judaísmo. Na hora da morte, diante do padre católico, podia ser que o moribundo
deixasse escapar a verdade, pondo em perigo, eventualmente de morte, toda a comunidade. Logo, era
preciso atuar de modo a que esse diálogo final não acontecesse. De acordo com o conto, haveria sempre
quem protestasse diante desta prática, mas, na hora da verdade, a ameaça dos perigos que para uma
comunidade traria o facto de a saberem judia e não católica sobrepunha-se ao grande mandamento “não
matarás”. Daquela vez, o abafador não cumpre a função para que fora chamado: o filho pequeno de Isaac
entra no quarto nos momentos finais, indo para junto do pai, pondo-lhe a mão na testa a escaldar, e o Alma-
Grande não tem coragem para agir diante de um terceiro e vai-se embora. Talvez pelo gesto de ternura do
filho, Isaac vai recuperando, sem haver lugar à necessidade de qualquer confissão. De acordo com o conto,
sendo Isaac mais forte do que o abafador, um dia vingou-se, matando-o.
Como o material até agora por mim encontrado sobre este fenómeno foi muito escasso e
academicamente pouco “depurado”, contactei há bastante tempo a filha única de Miguel Torga, Professora
Doutora Clara Rocha, que me autorizou a usar as suas informações.
Na sua perspetiva, o conto de facto não tem nada que ver com eutanásia, algo em que a mãe insistia nas
conversas de casa. Aliás, a filha tão-pouco deixou que o conto fosse incluído numa antologia de contos de
terror, pois esse não se enquadraria nos propósitos do pai. Depois de alguma investigação, na troca de
correspondência havida avancei a hipótese de que esse "abafamento" não seria considerado estranho em
certas comunidades judaicas de "cristãos-novos", de modo a que o moribundo, à hora da morte, não
pudesse denunciar ao padre ou ao médico, por um procedimento ou outro, que afinal a "conversão" fora
fictícia, pondo assim em causa também a família ou a comunidade "convertida". Em resposta, disse-me que a
minha interpretação estava correta. Não conseguindo na altura indicar-me fontes onde pudesse esclarecer-
me melhor, afirmou-me: “o que lhe posso dizer é que muitas vezes ouvi os meus pais falar sobre essa prática
de comunidades judaicas”.
Neste contexto, pergunto: quem são os verdadeiros abafadores? Os que defendem uma séria
despenalização da morte assistida, ou os que insistem em continuar a abafar a liberdade de consciência e
uma última liberdade diante da morte?
Alexandra Campos, publicado no jornal Público em 31 de agosto de 2015
Eutanásia. "Quem tem acompanhamento quer viver"
A especialista Isabel Galriça Neto lamenta que ainda haja um grande preconceito sobre os cuidados
paliativos em Portugal. Não servem só para morrer, afirma, dão mais qualidade de vida e podem ser
compatíveis com outros tratamentos. Só 15% a 20% de quem precisa tem acesso a cuidados paliativos, mas
Isabel Galriça Neto quer ajudar a mudar isso.
A percursora da introdução de cuidados paliativos no
Serviço Nacional de Saúde (SNS) lamenta o desconhecimento
sobre estas terapias em Portugal. Em entrevista ao programa
“Terça à Noite” da Renascença, Isabel Galriça Neto afirma que
“quem tem o devido acompanhamento deixa de estar em
sofrimento intolerável e quer viver com qualidade”.
“A ‘Economist’ tem um estudo deste ano – é publicado em
outubro anualmente – que diz que o nível de literacia, de
informação dos portugueses, sobre cuidados em fim de vida,
é medíocre”, diz a diretora da Unidade de Cuidados Paliativos
e Continuados do Hospital da Luz e ex-presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos.
Isabel Galriça Neto diz que há um grande preconceito sobre os cuidados paliativos em Portugal. “No
grande público a representação é: Só servem para ajudar a morrer, só servem para os últimos dias de vida, o
melhor é ir mesmo na última porque se formos mais cedo isso pode correr mal.”
E contrapõe: “Eu posso ganhar em ter cuidados paliativos ao mesmo tempo que estou a receber cuidados
de outras especialidades e com isso vivo melhor”.
Cuidados paliativos só chegam a 15% ou 20% dos doentes
Reconhecendo que Portugal só tem resposta para 15% a 20% das pessoas que necessitam de cuidados
paliativos, Isabel Galriça Neto considera que isso reflete o facto de a medicina nas últimas décadas se ter
Isabel Galriça Neto
focado apenas na cura e “deixou de lado os que não se curavam, e passaram quase que a ser doentes de
segunda”
“A medicina não pode dizer que não tem uma resposta para estes, eles estão lá, eles existem e não são
poucos”, sublinha.
Nesta entrevista à Renascença, a especialista em cuidados paliativos garante que, hoje em dia, já há
métodos que impedem que o sofrimento se torne intolerável.
Explica que o grande objetivo dos cuidados paliativos é que “o sofrimento, que pode acontecer, nunca se
torne intolerável”.
“Temos que ter isto bem claro, nós temos meios e sabemos que as pessoas não têm que estar em
sofrimento intolerável”, frisa.
“É a nossa experiência. As pessoas que têm o devido acompanhamento deixam de estar numa situação de
sofrimento intolerável e aquilo que nos dizem é que querem viver com qualidade. Também não querem que
nós lhes prolonguemos a vida para além dos tais meios nós temos que estar disponíveis e ouvir isso”, afirma
Isabel Galriça Neto.
A também deputada do CDS diz que se, o tema da eutanásia vier a ser colocado na agenda política,
“porque não está no programa de nenhum dos partidos com assento na Assembleia da Republica”, deve ser
debatido e referendado.
Sobre a questão da eutanásia, Isabel Galriça Neto conclui que a falta de cuidados paliativos não pode ser
a desculpa para “soluções fáceis”, e dá um exemplo: “Eu não vou dizer que um deficiente, porque não tem as
ajudas devidas, aquilo que tem como solução é oferecer-lhe o suicídio ou a eutanásia”.
Radio Renascença. Disponível em http://rr.sapo.pt/noticia/42051/eutanasia_quem_tem_acompanhamento_quer_viver
Associação Portuguesa de Bioética propõe referendo sobre a prática da eutanásia
A Associação Portuguesa de Bioética (APB) vai entregar esta semana um parecer ao Governo, ao
Parlamento e ao Presidente da República a propor a realização de um referendo nacional sobre a prática da
eutanásia. Rui Nunes, presidente da instituição, acredita que a legalização da morte medicamente assistida
vai ser alvo de debate público e que será prioridade no início da próxima legislatura.
A pergunta a colocar aos portugueses num eventual referendo sobre a eutanásia "é importante mas
secundária", diz o responsável pelo Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto. Rui Nunes não quer, para já, "contaminar o debate" avançando com uma questão
concreta, limitando-se a adiantar que deverá ser "algo sobre a concordância ou não da pessoa com a
liberalização ou legalização da morte medicamente assistida". A palavra eutanásia estaria fora do enunciado
da pergunta que, acredita, deverá ser colocada aos portugueses no início do próximo ciclo legislativo.
Neste momento, sublinha o presidente da APB, é importante "lançar a discussão". E foi isso que hoje quis
fazer com a "Proposta de um referendo nacional sobre a prática da eutanásia". Rui Nunes apresentou o
documento como o resultado da "cristalização de muito trabalho feito ao longo de duas décadas" e notou
que o momento actual é o ideal para lançar este tema para discussão na opinião pública. Aliás, foi ele mesmo
que antecipou a pergunta: "Porquê hoje?". Porque "a evolução no plano sociológico fez com este assunto
tenha deixado de ser tabu face ao envelhecimento da população e ao hospitalizar da morte", porque "largas
franjas da população médica" têm manifestado "simpatia por esta causa e por esta discussão" e porque
(politicamente) é um tema fracturante e oportuno após o debate de questões como o aborto, as técnicas de
Procriação Medicamente Assistida, o Divórcio ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
À procura de "um debate esclarecedor"
Entre outros argumentos, o presidente da APB considera que um referendo impõe-se por estarmos
perante uma questão de consciência individual "que não deve ficar confinada aos corredores da Assembleia
da República". Espanha deverá agora avançar para a legalização da eutanásia sem referendo mas após
sondagens que demonstraram um consenso nacional. Rui Nunes avisa: "Em Portugal o consenso não existe.
Mas não há pressa. Só há pressa de iniciar um debate esclarecedor".
O especialista alertou, no entanto, que o debate deve ser feito com cautela evitando misturar outras
questões (como o testamento vital ou ordens para não reanimar) para não correr o perigo de "meter tudo no
mesmo saco e contaminar o debate". "Isto é uma questão que remete para a consciência de cada um", disse,
sublinhando que uma medida destas teria sempre de ser acompanhada por um conjunto de medidas sociais
adequadas. É que, explicou, há muitas pessoas que pensam na morte porque estão sozinhas, excluídas ou
longe da família, entre muitas outras situações que podem ser resolvidas "a montante". "Teríamos de evitar
aqueles pedidos de eutanásia que apesar de serem voluntários e racionais, não são verdadeiramente
desejados".
Assim, antes de uma possível decisão é preciso atacar noutras frentes, reparou. É preciso cumprir Plano
Nacional de Luta Contra a Dor, investir mais nos cuidados paliativos (precisamos de um milhar de camas e só
temas cerca de 60) e "implementar políticas de apoio à família".
A proposta de debate e de referendo resume-se aos pedidos de eutanásia feitos por uma pessoa com
uma doença terminal mas que esteja consciente da sua situação. "Nesta fase falamos sobre a licicitude ética
do acto e legalização da prática eutanásia a pedido consistente e instante de pessoas adultas que estejam
capazes", propõe Rui Nunes.
Revelando que os médicos, sobretudo os que trabalham com doentes terminais, "têm cada vez mais
simpatia não só pela eutanásia mas também pela legalização", Rui Nunes apela a todos os partidos para que
se pronunciem sobre o assunto. O parecer que será entregue aos órgãos de soberania foi elaborado pelo
presidente da APB, por um jurista, uma psicóloga e um especialista de economia de saúde.
Há cerca de um ano, Rui Nunes apresentou os resultados de um inquérito a mais de 800 idosos
insitucionalizados e sem doenças graves ou crónicas de todo o país sobre a polémica questão da eutanásia.
Os resultados do projecto de investigação, levado a cabo pela Faculdade de Medicina da Universidade do
Porto (FMUP), mostraram que “quase 50 por cento” dos idosos contactados era favorável à legalização da
eutanásia.
Andrea Cunha Freitas. Publicado no Jornal Público em 14 de outubro de 2008
Conferência Episcopal considera inaceitável qualquer forma de eutanásia
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) considera inaceitável qualquer forma de eutanásia, numa nota
pastoral a aprovar esta semana, anunciou hoje o porta-voz da instituição. Para os bispos portugueses, a
resposta à eutanásia “vai na linha dos cuidados paliativos”.
O documento declara que "é inaceitável qualquer forma de eutanásia e uma delas será o chamado
suicídio assistido", afirmou hoje, em Fátima, o padre Manuel Morujão, numa conferência de imprensa no
âmbito da 173.ª assembleia plenária da CEP. Para o porta-voz da CEP, a eutanásia "pode parecer um acto de
liberdade, mas, ao fim e ao cabo, trata-se da supressão da própria liberdade", realçando que, "por motivos
antropológicos e ainda mais por motivos de fé, não se pode aceitar a eutanásia".
Manuel Morujão considerou que diferente é "a obstinação ou encarniçamento terapêutico", que explicou
como uma forma de, "a todo o custo, manter na vida uma pessoa".
"Certamente, a Igreja reconhece que qualquer pessoa não está obrigada a recorrer a meios
extraordinários, ficar ligado indefinidamente às máquinas", disse, embora reconhecendo que, "nestes casos,
a fronteira não é tão clara", mas "será para decidir por equipas médicas, familiares, sobretudo a própria
pessoa quando tem capacidade para
exprimir a sua vontade".
Para os bispos portugueses, a
resposta à eutanásia "vai na linha dos
cuidados paliativos", no âmbito
médico e de enfermagem, e do
acompanhamento amigo, de forma a
aliviar ou até eliminar a dor física,
psíquica e espiritual.
"Deve-se ajudar a viver até ao fim e
não antecipar a morte", reiterou,
defendendo a necessidade de
dignificar ao máximo o morrer, mas
não o antecipando.
O responsável considerou que, estando legalizada a eutanásia, "qualquer pessoa com uma doença grave
fica a pensar 'qualquer dia sou o próximo, estou a ser pesado para a minha família, para os meus amigos,
para os que cuidam de mim'".
"A legislação não será inócua, porque será uma pressão forte, psicológica", declarou.
Quanto ao testamento vital, "é perfeitamente aceitável", considerou o porta-voz da CEP, advertindo,
contudo, que "não é para abrir as portas à eutanásia".
"É para respeitar, quanto possível, a vontade de quem faz o testamento ou quem faz essas diretivas
antecipadas de vontade", esclareceu.
A nota pastoral sobre a eutanásia e o testamento vital, intitulada "Cuidar da vida até à morte", pretende
ser um contributo para a reflexão ética sobre o morte, que "muitas vezes se procura esconder, mas é uma
realidade inevitável", do qual se deve falar pedagogicamente e com serenidade, acrescentou o responsável.
LUSA. Publicado no jornal Público em 11 de novembro de 20009
Vaticano faz duras críticas a eutanásia de italiana
Itália. Eluana Englaro, de 38 anos, foi transferida para a clínica onde vai deixar de ser alimentada
artificialmente, por ordem dos tribunais, após anos em estado vegetativo persistente. A italiana, que ficou
assim devido a um acidente, em 1992, deverá morrer dentro de dias, sob protesto da Igreja. Morte de
Eluana deve demora entre 15 a 20 dias
"É preciso travar a mão assassina" que vai suspender a alimentação artificial de Eluana Englaro,
provocando-lhe consequentemente a morte, defendeu ontem num jornal italiano o ministro da Saúde do
Vaticano, o cardeal Javier Lozano Barragan.
"Quem costuma atuar de noite são os ladrões e os assassinos", lia-se nos cartazes de um grupo de
católicos que durante a madrugada protestou contra a eutanásia, à porta da clínica de Lecco, perto de Milão,
onde há muito estava internada.
Eluana, de 38 anos, está em estado vegetativo desde 1992, quando sofreu um acidente de carro. Ao início
da madrugada de ontem foi transferida para o hospital onde vai deixar de ser alimentada artificialmente, a
clínica La Quieta, em Udine, no nordeste de Itália. E morrer dentro de um prazo de 15 a 20 dias, segundo
médicos citados pela AFP.
A La Quieta foi a única clínica que aceitou deixar morrer Eluana e cumprir, assim, uma decisão judicial
confirmada por três tribunais diferentes: o da Relação e o Supremo italianos, além do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos de Estrasburgo. As outras recusaram a fazê-lo, incluindo a de Lecco, sua terra natal, depois
de pressões do Governo de Berlusconi e dos governos regionais. O Ministério da Saúde enviou, em
Dezembro, uma circular para as clínicas a dizer que a decisão de deixar de alimentar artificialmente Eluana
era ilegal e que quem a executasse estaria a arriscar-se ao encerramento.
As pressões do Governo e da Igreja Católica não detiveram, porém, a clínica La Quieta. "Ela não sofrerá",
garantiu o seu neurologista, Carlo Alberto Defanti, citado pela AFP, acrescentando que os médicos
suspenderão a alimentação dentro de três dias após fazerem algumas verificações. Defanti é parte de uma
equipa de 15 médicos que se constituiu em associação a fim de melhor enfrentar eventuais processos
judiciais, segundo noticiou a agência Ansa.
Na opinião do pai de Eluana, que durante anos andou de tribunal em tribunal para obter legalmente o
direito de deixar a filha morrer, este é "o primeiro passo para [conseguir] a libertação da minha filha".
Beppino Englaro garante que Eluana não quereria viver neste estado vegetativo persistente se pudesse
escolher.
A eutanásia é ilegal em Itália, mas os tribunais decidiram que é possível deixar de alimentar uma pessoa,
como aliás aconteceu, em 2005, no caso da americana Terri Schiavo. A crueldade de matar alguém à fome e
à sede levou muitos ao protesto, liderados pela Igreja.
Na entrevista que ontem deu ao jornal La Repubblica, o cardeal Javier Lozano Barragan disse que permitir
a morte de Eluana Englaro "vai representar uma derrota no respeito pela vida humana". O próprio Papa
Bento XVI, no domingo, manifestou a sua indignação sobre este caso. "A eutanásia é inaceitável. É uma falsa
solução para o drama e sofrimento. É um ato indigno do homem", disse o líder da Igreja Católica, a qual
acredita que só Deus pode tirar a vida.
Apesar de já não ser jurídica, como foi ao longo de anos, a polémica sobre a suspensão da alimentação
artificial a esta italiana promete continuar a nível religioso, político e ético, até ao dia em que Eluana Englaro
completa a sua viagem. Na clínica La Quieta, ou seja, A Tranquila.
PATRÍCIA VIEGAS. Publicado no Jornal Diário de Notícias em 4 de fevereiro de 2009
«Eutanásia: o que está em causa? Contributos para um diálogo sereno e humanizador» - Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa
1. As questões ligadas à legalização da eutanásia e do suicídio assistido estão em discussão na Assembleia da
República e na sociedade. Como contributo para esse debate, que desejamos seja em diálogo sereno e
humanizador, surge esta Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa sobre
o que verdadeiramente está em causa[1].
2. Por eutanásia, deve entender-se «uma ação ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a
morte com o objetivo de eliminar o sofrimento»[2]. A ela se pode equiparar o suicídio assistido, isto é, o ato
pelo qual não se causa diretamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha
termo à sua própria vida.
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar à chamada obstinação terapêutica[3], ou seja, «a certas
intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados
que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família»[4]. «A renúncia
a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a
aceitação da condição humana perante a morte»[5]. É, pois, bem diferente matar e aceitar a morte. Quer a
eutanásia, quer a obstinação terapêutica, constituem uma ingerência humana antinatural nesse momento-
limite que é a morte: a primeira antecipa esse momento, a segunda prolonga-o de forma artificialmente
inútil e penosa.
3. De forma sintética, podemos dizer que subjacente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido está a
pretensão de redefinir tomadas de consciência éticas e jurídicas ancestrais relativas ao respeito e à
sacralidade da vida humana. Pretende-se que o mandamento de que nunca é lícito matar uma pessoa
humana inocente (“Não matarás”) seja substituído por um outro, que só torna ilícito o ato de matar quando
o visado quer viver. Consequentemente, intenta-se que a norma segundo a qual a vida humana é sempre
merecedora de proteção, porque um bem em si mesma e porque dotada de dignidade em qualquer
circunstância, seja substituída por um outro critério, segundo o qual a dignidade e valor da vida humana
podem variar e podem perder-se. Ora, na nossa conceção, isto é inaceitável.
4. Para os crentes, a vida não é um objeto de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma
missão a cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos encontram o sentido do
sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural
e na tradição de uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. O valor intrínseco da
vida humana em todas as suas fases e em todas as situações está profundamente enraizado na nossa cultura
e tem, inegavelmente, a marca judaico-cristã. Mas não é difícil encontrar na razão universal uma sólida base
para esse princípio. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana
é inviolável» (artigo 24º, nº 1).
5. A vida humana é o pressuposto de todos os direitos e de todos os bens terrenos. É também o pressuposto
da autonomia e da dignidade. Por isso, não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento
desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A inviolabilidade da vida
humana não cessa com o consentimento do seu titular.
O direito à vida é indisponível, como o são outros direitos humanos fundamentais, expressão do valor
objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não podem justificar-se, mesmo com o consentimento da
vítima, a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde, por exemplo.
6. Por outro lado, nunca é absolutamente seguro que se respeita a vontade autêntica de uma pessoa que
pede a eutanásia. Nunca pode haver a garantia absoluta de que o pedido de eutanásia é verdadeiramente
livre, inequívoco e irreversível.
Muitas vezes, traduz um estado de espírito momentâneo, que pode ser superado, ou é fruto de estados
depressivos passíveis de tratamento, ou será expressão de uma vontade de viver de outro modo (sem o
sofrimento, a solidão ou a falta de amor experimentados), ou um grito de desespero de quem se sente
abandonado e quer chamar a atenção dos outros. Mas não será a manifestação de uma autêntica vontade de
morrer. É, pois, uma linguagem alternativa de quem pede socorro e proximidade afetiva. A dúvida há de
subsistir sempre, sendo que a decisão de suprimir uma vida é a mais absolutamente irreversível de qualquer
das decisões.
7. Em nome da autonomia, os que defendem a legalização da eutanásia e do suicídio assistido não chegam,
por ora, ao ponto de pretender a legalização do homicídio a pedido e do auxílio ao suicídio em quaisquer
circunstâncias. Pretendem apenas reconhecer a licitude da supressão da vida, quando consentida, em
situações de sofrimento intolerável ou em fases terminais. Desta forma, atentam contra o princípio de que a
vida humana tem sempre a mesma dignidade, em todas as suas fases e independentemente das condições
externas que a rodeiam. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade intrínseca, passa a variar
em grau e a depender de alguma dessas condições externas. Haveria, pois, situações em que a vida já não
merece proteção (a proteção que merece na generalidade das situações), por perder dignidade.
8. Invocam os partidários da legalização da eutanásia e do suicídio assistido que, com essa legalização, se
respeita, apenas, a vontade e as conceções sobre o sentido da vida e da morte, de quem solicita tais pedidos,
sem tomar partido. Mas não é assim. O Estado e a ordem jurídica, ao autorizarem tal prática, estão a tomar
partido, estão a confirmar que a vida permeada pelo sofrimento, ou em situações de total dependência dos
outros, deixa de ter sentido e perde dignidade, pois só nessas situações seria lícito suprimi-la.
Quando um doente pede para morrer porque acha que a sua vida não tem sentido ou perdeu dignidade, ou
porque lhe parece que é um peso para os outros, a resposta que os serviços de saúde, a sociedade e o Estado
devem dar a esse pedido não é: «Sim, a tua vida não tem sentido, a tua vida perdeu dignidade, és um peso
para os outros». Mas a resposta deve ser outra: «Não, a tua vida não perdeu sentido, não perdeu dignidade,
tem valor até ao fim, tu não és peso para os outros, continuas a ter valor incomensurável para todos nós».
Esta é a resposta de quem coloca todas as suas energias ao serviço dos doentes mais vulneráveis e
sofredores e, por isso, mais carecidos de amor e cuidado; a primeira é a atitude simplista e anti-humana de
quem não pretende implicar-se na questão do sentido da verdadeira «qualidade de vida» do próximo e
embarca na solução fácil da eutanásia ou do suicídio assistido.
9. Não se elimina o sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a vida da pessoa que sofre. O
sofrimento pode ser eliminado ou debelado com os cuidados paliativos, não com a morte. E hoje, as técnicas
analgésicas conseguem preservar de um sofrimento físico intolerável. Desta forma, pode afirmar-se que a
eutanásia é uma forma fácil e ilusória de encarar o sofrimento, o qual só se enfrenta verdadeiramente
através da medicina paliativa e do amor concreto para com quem sofre.
Como afirma Bento XVI, «a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o
sofrimento e com quem sofre»[6].
Para além do círculo afetivo dos seus familiares e amigos, a dignidade de quem sofre reclama o cuidado
médico proporcionado, mesmo que os atos terapêuticos e os analgésicos possam, pelo efeito secundário
inerente a muitos deles, contribuir para algum encurtamento da vida. Neste caso, não se trata de eutanásia,
pois o objetivo não é dar a morte, mas preservar a dignidade humana e a «santidade de vida», minimizando
o sofrimento e criando as condições para a «qualidade de vida» possível.
10. A mensagem que, através da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, assim se veicula tem graves
implicações sociais, que vão para além de cada situação individual. Esta mensagem não pode deixar de ter
efeitos no modo como toda a sociedade passará a encarar a doença e o sofrimento.
Há o sério risco de que a morte passe a ser encarada como resposta a estas situações, já que a solução não
passaria por um esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da vida da
pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade. E é mais fácil e mais barato. Mas não
é humano! Neste novo contexto cultural, o amor e a solidariedade para com os doentes deixarão de ser tão
encorajados, como já têm alertado associações de pessoas que sofrem das doenças em questão e que se
sentem, obviamente, ofendidas quando veem que a morte é apresentada como “solução” para os seus
problemas. E também é natural que haja doentes, de modo particular os mais pobres e débeis, que se sintam
socialmente pressionados a requerer a eutanásia, porque se sentem “a mais” ou “um peso”.
É este, sem dúvida, um perigo agravado num contexto de envelhecimento da população e de restrições
financeiras dos serviços de saúde que implícita ou explicitamente se podem questionar: para quê gastar
tantos recursos com doentes terminais quando as suas vidas podem ser encurtadas?
11. Não podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e
isolados, não tem acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento.
A legalização da eutanásia e do suicídio assistido contribuirá para atenuar a consciência social da importância
e urgência de alterar esta situação, porque poderá ser vista como uma alternativa mais fácil e económica.
12. Com esta Nota Pastoral, apelamos à consciência dos nossos legisladores.
Mas também sabemos que uma grande percentagem dos nossos concidadãos afirma aprovar a legalização
da eutanásia e do suicídio assistido. Estamos convictos de que muitos o fazem sem a consciência clara do que
está verdadeiramente em causa. Daí a importância de um vasto trabalho de esclarecimento para o qual
queremos dar o nosso contributo.
No Ano Jubilar da Misericórdia, recordamos que esta nos leva a ajudar a viver até ao fim. Não a matar ou a
ajudar a morrer.
Fátima, 8 de março de 2016
[1] Sugerimos também a leitura da Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, «Cuidar da Vida até à Morte». Contributo para a reflexão ética sobre o morrer, publicada a 12 de novembro de 2009, in Documentos Pastorais, vol. VII, Lisboa 2002, 123-131. [2] João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65. [3] Também designada por “encarniçamento médico”. [4] João Paulo II, Carta encíclica Evangelium Vitae (25 de março de 1995), n. 65. [5] Ibidem. [6] Carta encíclica Spe Salvi (30 de novembro de 2007), n. 38.
Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a questão da Eutanásia, disponível na Internet em: http://www.conferenciaepiscopal.pt/v1/2016/03/14/eutanasia-o-que-esta-em-causa-contributos-para-um-dialogo-sereno-e-
humanizador/
A eutanásia e a minha experiência
Quando o sofrimento é grande, particularmente na ausência de cuidados, o que o doente pede é ajuda.
1. Não consigo imaginar que no serviço de cuidados paliativos em que trabalho pudesse ocorrer,
intencionalmente, a morte provocado pelos médicos. E o que é um facto é que, ao longo destes 16 anos em
que trabalho numa equipa que já ajudou bastante mais de um milhar de pessoas na fase última das suas
vidas, nunca senti de forma clara que alguém desejasse também a provocação da sua morte. Recordo-me
apenas de uma mulher, gravemente mutilada por um cancro incurável na área genital, que pediu o termo da
vida de uma forma persistente e que não soubemos ajudar. Fora isto, não tenho memória de ninguém pedir
persistentemente o seu fim provocado. Pelo contrário.
Um outro caso pungente de um homem jovem que pediu a eutanásia antes de se iniciarem os tratamentos
paliativos exemplifica o facto de o alívio do sofrimento poder anular radicalmente essa vontade. Foi um caso
admirável, pois os dois meses de vida ainda possíveis, embora penosos mas suportáveis, foram
expressamente valorizados, três ou quatro dias antes do falecimento, pelo próprio.
Quando o sofrimento é grande, particularmente na ausência de cuidados, o que o doente pede é ajuda,
porque existe a consciência muito viva de que a medicina pode ter um efeito benéfico sobre as causas desse
sofrimento, aliviando-o. O mais comum, direi mesmo, o que se verifica invariavelmente no nosso serviço é os
doentes manifestarem as suas queixas para que o médico lhes receite um remédio que as combata. Depois,
verifica-se, também invariavelmente, que os doentes têm a consciência da necessidade de terem cuidados
próprios e de estes serem prestados por quem saiba e possa, que não é de maneira obrigatória a família,
tolerando quase sempre bem não permanecerem no domicílio, se assim tiver que ser. Quando a dor alivia e
o doente sente segurança e carinho, o que é comum é verificarmos que continua a dar valor à sua vida.
Mesmo com uma doença grave, os doentes preferiram, na nossa experiência, a vida limitada a interrompê-la
bruscamente. Este é o retrato mais fiel que tiro do meu trabalho. Claro que, se a consciência do doente se
altera, foge-nos o entendimento dos seus desejos, seguros que estamos, no entanto, de que ninguém, por
sua iniciativa, pode tirar a vida a outrem.
A ideia de no serviço estarmos perante a morte natural, própria das doenças incuráveis avançadas, é a que
existe e isso ajuda a equipa a conviver com uma realidade deste tipo. Penso que se a eutanásia fizesse parte
da atividade da equipa de cuidados paliativos (e só
me refiro, claro está, à verdadeira eutanásia, a
voluntária) os profissionais dificilmente
suportariam trabalhar tal como o fazem,
empenhados, sem mostrarem um desgaste
paralisante.
2. Também considero que se no meu serviço de
cuidados paliativos pudesse acontecer a morte
provocada intencionalmente, a confiança dos
doentes e das suas famílias nos nossos cuidados
estaria seriamente abalada.
A consciência de que a vida humana não está
diretamente nas mãos dos homens é um dado
civilizacional muito consistente. Pertence à matriz mais profunda do nosso pensamento e é o que
transparece na quase totalidade das pessoas. Quem chega vem confiante que vai viver melhor, apesar da
doença incurável. Cuidados e afeto são no entanto condições indispensáveis.
3. Referendar uma legislação sobre a eutanásia parece-me uma iniciativa sem sentido. Teoricamente, uma
pessoa pode construir um cenário em que o final da sua vida inclua sofrimento desmesurado, que a morte
provocada diminuiria. Mas, reafirmo, nas pessoas gravemente doentes, o sentimento que vemos quase
invariavelmente é o da vida como um valor em si e um bem cujo termo não está ao alcance normal dos
homens.
Também eu evoluí na compreensão deste problema. Antes de trabalhar em cuidados paliativos, considerava
que a eutanásia poderia talvez ser um direito das pessoas, exigido pelo exercício da sua autonomia, sem se
obrigar o médico. Hoje, 16 anos depois, marcado por esta experiência, tenho sérias dúvidas que a eutanásia
possa vir a ser alguma vez considerada um direito. Penso mesmo que, a existir a sua possibilidade legal,
constituiria antes um aviltamento para a medicina. Onde talvez todos estejamos de acordo é que não tem
sentido nenhum serem recusados os cuidados paliativos de qualidade aos doentes deles necessitados, isto
sim um direito que devia ser respeitado.
António Lourenço Marques*. Publicado no Jornal Público em 20 de novembro de 2008 *Diretor do Serviço de Medicina Paliativa do Hospital do Fundão - Centro Hospitalar Cova da Beira
Imagem disponível em:
http://www.jornalmedico.pt/2015/10/21/manuel-luis-capelas-
nos-20-anos-da-associacao-portuguesa-de-cuidados-paliativos/
Reflexões sobre a eutanásia
De que serve a lei se não servir os propósitos da vida humana, dotada de sentimentos, de afectos, de
humanidade?
Questões sobre a vida e a morte são essencialmente antropológicas. Não obstante os progressos
intelectuais, científicos, civilizacionais, a angústia do ser humano perante a forma como deve regular e
legislar sobre elas continua a lançar um desafio à fé, ao intelecto, à razãoQuestões como o que é a vida?
Devemos ou não aceitar viver em sofrimento? Temos ou não a capacidade e a liberdade de escolher se
queremos viver? Devemos usar em toda e qualquer circunstância os meios disponíveis para ajudar a viver?
Ou deveríamos, com os meios disponíveis, racionais e instrumentais, ajudar a morrer? Como separar a
fronteira entre eutanásia - a "boa morte", a "morte sem dor" - e o suicídio? É que embora a finalidade seja a
mesma - rejeitar deliberadamente viver -, elas parecem sugerir coisas diferentes: o primeiro sugere a ideia de
um acto que confere dignidade à pessoa humana e a outra - o suicídio - um acto de cobardia e fraqueza
perante um desafio que, afinal, se assemelha ao do resto de nós todos, que é viver, apesar da variedade de
sofrimentos a que estivermos expostos.
Não é fácil encontrar respostas à forma como devemos legislar sobre a eutanásia nas inúmeras
possibilidades em que se nos apresenta. Sobretudo porque a minha mundividência está profundamente
influenciada pela fé que me foi transmitida e não a consigo separar da forma como penso e tomo decisões.
Mas é precisamente porque sou crente e porque tento articular o pensamento com um entendimento
espiritual da vida, valorizando a importância e responsabilidade do livre-arbítrio, que sou defensora da vida
desde que vivida com dignidade e capacidade de encontrar nela o equilíbrio entre a materialidade e a
espiritualidade. Uma não deve negligenciar a outra, nem creio que seja possível viver-se bem sem esse
equilíbrio.
Perante o princípio de fé de que partilho de que o corpo é efémero e só a alma é eterna, a questão da
eutanásia, para mim, refere-se à escolha sobre a vida do corpo. E quando esse corpo está em permanente
sofrimento, incapacitado de desempenhar as suas funções normais, vivendo na ausência da esperança de
algum dia poder encontrar o tal equilíbrio entre as funções materiais e espirituais, e sobretudo, quando a
decisão sobre a finitude da vida parte do próprio sujeito, sem afectar a sociedade à sua volta, por que
condená-lo, em nome da lei, que afinal é ela mesma um produto humano? De que serve a lei, qualquer lei,
secular ou religiosa, se não serve os propósitos da vida humana, dotada de sentimentos, de afectos, de
humanidade?
A vida é uma luta constante. E o sofrimento faz parte da vida. Em súplica, um muçulmano pedirá a Deus
que lhe alivie a dor e o sofrimento, mas não lhe pede para lhe retirar todas as dificuldades. Essa é a sua
própria batalha, onde por vezes encontrará a força da fé, noutras se revoltará contra a própria vida, contra
deus, contra si mesmo, pela sua vulnerabilidade e finitude.
Rejeitar a vida, ou atentar contra a vida dos outros, para mim representa um tipo de cobardia e pequenez
humana. "Deitar a toalha ao chão" e dizer "basta! não me levanto mais todos os dias para trabalhar, lutar
pelo pão da família e ganhar uns míseros euros, enfrentar complicações, problemas e conflitos", quando se
tem a possibilidade física e mental de encontrar novas soluções, isso é suicídio e um acto que devemos
ajudar a evitar, precisamente porque ainda existem condições físicas e intelectuais para mudar, para
melhorar qualquer coisa. Na teoria escatológica muçulmana xiita, um suicida "vagueia pelo mundo pelo
menos mais sete vidas". Mesmo não entendendo o que isso queira significar, só a ideia do "vaguear", e ainda
por cima "sete vidas", faz-me pensar que essa não deve ser uma experiência muito agradável! No entanto, é
a mesma fé que estimula a liberdade e a obrigação de pensar que me permite reconhecer a profundidade do
sofrimento humano quando alguém decide não viver.
Todas as reflexões sobre casos passíveis de eutanásia pressupõem repensar a ética da vida humana.
Acima de tudo, importa reconhecer que é o ser humano, o seu equilíbrio, a sua escolha e a forma como
pretende viver, o que mais nos deve preocupar. A lei deveria contemplar a flexibilidade possível para
enquadrar na ética social os afetos e os sentimentos. Enquanto herdeiros de uma tradição iluminista, onde a
razão humana é a luz que nos conduz, temos de aceitar e reconhecer que cabe ao ser humano escolher o
melhor que sabe e pode.
16.11.2008, Faranaz Keshavjee*. Publicado no jornal Público em 16 de novembro de 20008
*Estudiosa de temas islâmicos
Cardeal-patriarca contra legalização da eutanásia
Não se elimina o sofrimento com a morte, diz D. Manuel Clemente.
O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP), rejeitou esta segunda-feira, no Santuário de Fátima, a legalização da eutanásia em Portugal,
considerando que o sofrimento não pode ser
eliminado com a morte.
"Estamos convictos de que não se elimina o
sofrimento com a morte: com a morte elimina-se a
vida da pessoa que sofre. O sofrimento pode ser
eliminado ou debelado com os cuidados paliativos,
não com a morte", disse o cardeal-patriarca de Lisboa,
na sessão de abertura da 189.ª Assembleia Plenária
da CEP, que decorreu na Casa de Nossa Senhora das
Dores.
Segundo D. Manuel Clemente, com a hipotética
legalização da eutanásia, "que de todo rejeitamos, há
o sério risco de que a morte passe a ser encarada como resposta a essas situações, já que a solução não
passaria por um esforço solidário de combate à doença e ao sofrimento, mas pela supressão da vida da
pessoa doente e sofredora, pretensamente diminuída na sua dignidade".
Salientando que a Igreja não se alheia do sofrimento de muitas pessoas e da falta de respostas que ainda
encontram, "por carências de várias ordem, que podem e devem ser colmatadas", o presidente da CEP
pretende contribuir para um diálogo sereno e humanizador.
Na sua intervenção, D. Manuel Clemente falou ainda de problemas de vária ordem que, direta ou
indiretamente, afetam o país, a Europa e o resto do mundo, lembrando que ainda "não está superada a
'crise' financeira do final da década anterior, com as respetivas consequências no setor do trabalho e da
subsistência de quem não o tem".
"Não se integraram devidamente na nossa sociedade e valores civilizacionais básicos muitas pessoas
provenientes de outras partes do mundo, criando-se, com um duvidoso 'multiculturalismo', autênticas bolsas
de mútua exclusão, propícias a atitudes de grande violência", sublinhou o prelado.
Para o cardeal-patriarca de Lisboa, ainda "não se encontrou ainda uma solução capaz para o surto
incomum de migrantes e refugiados que procuram no nosso continente as condições básicas de vida que a
guerra e outras causas negativas destruíram nas suas terras de origem".
O presidente da CEP alertou ainda para "gravíssimos problemas como os fundamentalismos, o terrorismo
ou a insegurança", que se interligam "num fundo comum de desconhecimento e até rejeição dos outros,
D. Manuel Clemente
quando teríamos todas as possibilidades materiais e mediáticas para estarmos realmente próximos e ser
muito mais solidários".
LUSA. Publicado no Jornal Público em 4 de março de 2016
A eutanásia não é de esquerda
Acabar com a vida para acabar com o sofrimento é um acto de má prática clínica que me recuso a
praticar e a ensinar mas é também um sinal de retrocesso civilizacional.
Remonta aos tempos mais antigos a cedência ao pedido de morte assistida por parte de quem sofre. Nos
campos de batalha, na Idade Média, usava-se o punhal da “misericórdia” para acabar com os guerreiros que
sofriam ferimentos graves, para acabar o seu sofrimento. O pedido de morte assistida surge também na
tradição judaica, por razões um pouco diferentes, Saul pediu ao seu escudeiro: “Arranca a tua espada e
atravessa-me com ela, para que, porventura, não venham estes incircuncisos, e me traspassem, e
escarneçam de mim” (Samuel 31). Saul está na realidade moribundo pelos ferimentos causados e sabe que
não sobrevive mas não é o sofrimento que o leva a fazer o pedido mas tão só o receio do mal que lhe possa
ainda a vir a ser causado, mais moral do que físico.
A tradição, no nosso país, relata o papel dos abafadores na comunidade dos cristãos novos em Trás-os-
Montes. Quando se aproximava a hora da morte, estas personagens eram convocadas para que no momento
final não houvesse práticas religiosas cristãs nem se corresse o risco do moribundo fazer revelações sobre as
suas verdadeiras crenças aos agentes da Igreja Católica. Esta tradição ficou imortalizada por Miguel Torga
nos Contos da Montanha, cuja leitura se recomenda vivamente pelo desenlace do conto: “O Alma-Grande”.
Torga, médico como eu, coloca as dúvidas de todos nós nos olhos sábios, porque inocentes, de uma criança.
Tem havido muita discussão à volta do tema o que me parece ser positivo, quando a discussão é
desapaixonada. Falta, contudo, a discussão médica bem orientada ao problema principal. A grande batalha
dos profissionais de saúde é contra o sofrimento, seja ele de natureza física seja ele de natureza moral,
sabendo que o segundo exacerba de forma significativa o primeiro. Custa-me compreender por que razão se
não tem discutido a forma como se pode acabar com o sofrimento. Por outro lado, é bem sabido que a
vontade expressa das pessoas não é uma crença sólida, mas é modulada pelas circunstâncias, e as
circunstâncias da vizinhança da morte com sofrimento não são as melhores conselheiras.
Conhecem-se bem, hoje em dia, os mecanismos moleculares da dor e os profissionais das clínicas da dor
sabem bem como agir nas diferentes situações. É, no entanto, no domínio dos cuidados paliativos que mais
se têm desenvolvido os conhecimentos. Os cuidados paliativos são uma especialização exigente dos cuidados
de saúde, infelizmente mal reconhecidos quer pela população em geral quer até (infelizmente) por muitos
profissionais de saúde e pelos responsáveis pelas decisões em saúde. Há medidas de relação interpessoal
que importa incrementar, há prescrição adequada de fármacos que tem que ser conhecida (tanta coisa se
tem dito e escrito que não corresponde às boas práticas clínicas) e há ainda as modernas técnicas de
estimulação cerebral que podem ter um papel dominante na reposição da qualidade de vida, mesmo nos
períodos finais da vida. Claro que esta aproximação é complexa e dispendiosa pelo que nem sequer tem sido
trazida para a discussão. Será, de facto, melhor que não se discuta esta questão em termos económicos
(porque acaba por ser uma questão económica). O problema não é, também, de natureza religiosa, podendo,
no entanto, ser considerado de natureza espiritual. É, sem sombra de dúvida, uma questão de ciência médica
que tem que saber recrutar os seus melhores recursos para combater o sofrimento e trazer quem sofre à
qualidade de vida que todos merecemos. Mas sobretudo temos que concordar que o problema não é de
natureza política, e muito menos será de desentendimentos entre esquerda e direita.
Acabar com a vida para acabar com o sofrimento é um acto de má prática clínica que me recuso a praticar
e a ensinar enquanto professor mas é também, acima de tudo, um sinal de retrocesso civilizacional.
ALEXANDRE CASTRO CALDAS,* publicado no jornal Público em 21 de março de 2016 *Professor de Neurologia
Viver dignamente até ao momento da morte
Permitir a eliminação dos que sofrem, é uma opção clara pelo facilitismo e pela cegueira fria da análise
imediata do custo/benefício em termos económicos.
Temos assistido ao reacender de um debate que já não é novo, mas que, por se tratar de matéria sensível,
apaixona sempre aqueles que nele entram. Não raras vezes são a emoção e o apelo ao sentimentalismo que
dominam esta discussão, pelo que não admira que os lugares-comuns substituam os argumentos e os
estados de alma impregnados de sofismas a desviem da análise séria e racional que se exige.
Comecemos por definir com clareza o que é a eutanásia. Com linguagem que toda a gente perceba. A
começar por mim que não sou especialista em medicina ou direito. Se fizermos uma pesquisa, encontramos
facilmente várias definições, várias ramificações e muita confusão sobre este tópico. O conceito que parece
ser mais consensual junto dos especialistas em bioética é o de que só há eutanásia quando uma pessoa – em
regra doente – pede ao médico que a mate e o médico acede ao pedido. A eutanásia é, por isso, sempre
voluntária e ativa.
Até aqui não introduzo novidade alguma. O relevante é perceber, então, o que é que não é eutanásia.
Comecemos pelo erro mais comum, o chamado “encarniçamento terapêutico”, que não é mais do que
prolongar tratamentos inúteis quando é claro que o doente não poderá melhorar e que, por isso, já só
provocam mais dor e sofrimento. Ora, interrompê-los não só não é eutanásia como, pelo contrário, é boa
prática clínica (vd. Art. 49.º do Código Deontológico dos Médicos).
Também não se enquadra dentro deste conceito o caso dos doentes de cuidados intensivos que,
voluntária e conscientemente, decidem não receber tratamentos. É um direito que já assiste aos doentes na
legislação em vigor e, portanto, embora leve provavelmente à morte do doente, não é eutanásia.
Mais complexo é quando o pedido é para que alguém – médico ou não – o ajude a matar-se a si próprio e,
nestas situações, por vezes muito dramáticas, estamos a falar de suicídio assistido. Uma realidade diferente
da eutanásia e que é importante estudar separadamente.
Mas, se a eutanásia é só quando a morte é administrada por outra pessoa, deixamos de ter o direito de
fazer esse pedido? Está aqui em causa a negação de algum direito fundamental, como parecem suspeitar os
autores do manifesto? De forma alguma. Diria até que a pessoa nessas condições não só tem o direito, como,
em certa medida, o dever de fazer esse pedido – que deve ser, no entanto, compreendido em toda a sua
complexidade por aquele que o recebe. Por outro lado, a pessoa não tem o direito de obrigar o médico a
terminar com a sua vida. Nem o Estado deve ter o poder de obrigar nenhum clínico a matar seja quem for,
pelo menos um Estado que preze a liberdade individual.
O pedido de eutanásia é sempre um sinal, um pedido de socorro desesperado e que acontece,
frequentemente, quando as pessoas são deixadas ao abandono numa enfermaria.
Já o aceitar do pedido, para além de não ser um ato de compaixão – é, antes, a “morte da compaixão”,
como disse um especialista neste tema – sinaliza a afirmação, ainda que inconsciente, da pessoa que
administra a morte, de que aquela vida é inútil, não serve. Que já não é uma vida humana [assumindo que
todos concordamos que a vida humana é inviolável].
Não há morte mais indigna do que aquela às mãos de outro ser humano. Aliás, em bom rigor, não há
morte digna nem morte indigna. Há simplesmente morte. O papel da sociedade é o de proporcionar às
pessoas uma vida digna até ao momento da morte e não o de eliminar aqueles que estorvam ou dão
trabalho.
Hoje não estamos a discutir a eutanásia, hoje estamos a discutir ideologia, pura e dura, imposta a
qualquer custo, como provam os problemas de “vanguardismo legislativo” muito bem levantados pelo Prof.
Braga da Cruz na sua entrevista recente à RR.
Se os agentes políticos estiverem verdadeiramente preocupados com estas pessoas, que o provem
investindo na criação de uma verdadeira rede de Cuidados Paliativos em Portugal, uma rede capaz de
proporcionar a todos os que vivem estas situações dramáticas um fim de vida digno e humano. Permitir a
eliminação dos que sofrem, é uma opção clara pelo facilitismo e pela cegueira fria da análise imediata do
custo/benefício em termos económicos. Respeitemos a vida humana.
BERNARDO SERRÃO BROCHADO, publicado no jornal Público em 17 de março de 2016 *Estudante Universitário de Economia
Filme: Mar Adentro
Para aprofundar a reflexão sobre a problemática da Eutanásia sugere-se a visualização do filme
“Mar Adentro”, realizado em 2004 por Alejandro Amenábar. Poderá ver o “trailer” do filme aqui.
Sinopse: O filme, baseado em factos da vida real, relata a história de Ramón Sampedro, um Galego
que ficou tetraplégico na sequência de um acidente de mergulho, e a sua luta pelo direito a morrer.