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AS EPÍSTOLAS PAULINAS: DE CARTAS OCASIONAIS A SAGRADA ESCRITURA PIXLEY, Jorge 1 . RIBLA, n. 42-43, p. 100-120,2002/2-3. Introdução Este número de RIBLA pretende investigar o processo mediante o qual os escritos apostólicos, ou pretensamente apostólicos, foram sendo aceitos nas igrejas cristãs num mesmo nível que a Sagrada Escritura, quer dizer, a Bíblia hebraica em grego, a Septuaginta. Na prática, este processo chega ao seu auge nos escritos de Ireneu, embora ainda se discuta a inclusão de livros como Hebreus e o Apocalipse durante mais algumas décadas. É isto que geralmente se considera sob o título de cânon nas introduções ao Novo Testamento. Mas é apenas a última fase do processo que nos propomos a investigar. Alguns escritos parecem ter sido escritos com a intenção de serem autorizados nas igrejas. Aqui estão os quatro evangelhos canônicos e o Apocalipse. Não é o caso das epístolas de Paulo. As epístolas paulinas foram, no início, uma extensão de seu trabalho pastoral. Nelas Paulo responde a circunstâncias particulares das quais está informado em Corinto, Filipos, Tessalônica, na região da Galácia ou na igreja que se reúne na casa de Filêmon em Colossos. São escritas com autoridade e esperam ser lidas como textos de autoridade nas cidades destinatárias. Mas a sua autoridade provém da posição pastoral de Paulo, seu autor, e não há evidência de que sua intenção seja que fossem recolhidas e transformadas em escritura. Além disso, fora de suas igrejas, e às vezes dentro delas, Paulo era tido por uma figura controversa e possivelmente herética. Então, no princípio, suas cartas podem ter sido vistas como perigosas. Queremos recriar este primeiro momento para nossos leitores. Bem cedo as cartas foram recolhidas e assim foram conhecidas como coleção por Inácio de Antioquia, Clemente de Roma e pela assim chamada Segunda Epístola de Pedro. Até onde sabemos, Marcião foi o primeiro, pouco depois do ano 140, a considerar esta coleção como plenamente Sagrada Escritura, embora sua coleção não incluísse as chamadas epístolas pastorais nem a epístola aos Hebreus, mas ambas aparecerão em todos ou quase todos os manuscritos das epístolas paulinas. Já Ireneu, no final do século II, conhece Paulo com a coleção de epístolas que depois serão canônicas. Queremos tratar o tema da coleção das cartas e sua conversão em textos sagrados. Em conexão com esta coleção, será preciso considerar as opiniões de que algumas das epístolas de Paulo não são autênticas. As questionadas são 2Tessalonicenses, Colossenses e Efésios, as Pastorais, Hebreus e 3Coríntios, que está inserida nos Atos de Paulo e Tecla. Presumindo que todos estes questionamentos têm alguma possibilidade, teremos que explorar como a adição destas epístolas facilita a passagem de Paulo de herege a apóstolo autorizado, de vagabundo a missionário, de teólogo inspirado e controverso a pastor inócuo de igrejas que estão em vias de se instalar na sociedade de sua época. Terminamos onde termina esta história, com Ireneu e seu pleno reconhecimento de Paulo. Justino foi, em muitos sentidos, o mestre de Ireneu em teologia, mas quanto à canonização dos escritos apostólicos há um abismo entre os dois. Justino somente reconhece como escrituras sagradas a Bíblia grega, Septuaginta, ao passo que Ireneu 1 Jorge Pixley é Professor emérito, Seminário Teológico Batista da Nicarágua.

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AS EPÍSTOLAS PAULINAS: DE CARTAS OCASIONAIS A SAGRADA ESCRITURA

PIXLEY, Jorge1. RIBLA, n. 42-43, p. 100-120,2002/2-3. Introdução Este número de RIBLA pretende investigar o processo mediante o qual os escritos apostólicos, ou pretensamente apostólicos, foram sendo aceitos nas igrejas cristãs num mesmo nível que a Sagrada Escritura, quer dizer, a Bíblia hebraica em grego, a Septuaginta. Na prática, este processo chega ao seu auge nos escritos de Ireneu, embora ainda se discuta a inclusão de livros como Hebreus e o Apocalipse durante mais algumas décadas. É isto que geralmente se considera sob o título de cânon nas introduções ao Novo Testamento. Mas é apenas a última fase do processo que nos propomos a investigar. Alguns escritos parecem ter sido escritos com a intenção de serem autorizados nas igrejas. Aqui estão os quatro evangelhos canônicos e o Apocalipse. Não é o caso das epístolas de Paulo. As epístolas paulinas foram, no início, uma extensão de seu trabalho pastoral. Nelas Paulo responde a circunstâncias particulares das quais está informado em Corinto, Filipos, Tessalônica, na região da Galácia ou na igreja que se reúne na casa de Filêmon em Colossos. São escritas com autoridade e esperam ser lidas como textos de autoridade nas cidades destinatárias. Mas a sua autoridade provém da posição pastoral de Paulo, seu autor, e não há evidência de que sua intenção seja que fossem recolhidas e transformadas em escritura. Além disso, fora de suas igrejas, e às vezes dentro delas, Paulo era tido por uma figura controversa e possivelmente herética. Então, no princípio, suas cartas podem ter sido vistas como perigosas. Queremos recriar este primeiro momento para nossos leitores. Bem cedo as cartas foram recolhidas e assim foram conhecidas como coleção por Inácio de Antioquia, Clemente de Roma e pela assim chamada Segunda Epístola de Pedro. Até onde sabemos, Marcião foi o primeiro, pouco depois do ano 140, a considerar esta coleção como plenamente Sagrada Escritura, embora sua coleção não incluísse as chamadas epístolas pastorais nem a epístola aos Hebreus, mas ambas aparecerão em todos ou quase todos os manuscritos das epístolas paulinas. Já Ireneu, no final do século II, conhece Paulo com a coleção de epístolas que depois serão canônicas. Queremos tratar o tema da coleção das cartas e sua conversão em textos sagrados. Em conexão com esta coleção, será preciso considerar as opiniões de que algumas das epístolas de Paulo não são autênticas. As questionadas são 2Tessalonicenses, Colossenses e Efésios, as Pastorais, Hebreus e 3Coríntios, que está inserida nos Atos de Paulo e Tecla. Presumindo que todos estes questionamentos têm alguma possibilidade, teremos que explorar como a adição destas epístolas facilita a passagem de Paulo de herege a apóstolo autorizado, de vagabundo a missionário, de teólogo inspirado e controverso a pastor inócuo de igrejas que estão em vias de se instalar na sociedade de sua época. Terminamos onde termina esta história, com Ireneu e seu pleno reconhecimento de Paulo. Justino foi, em muitos sentidos, o mestre de Ireneu em teologia, mas quanto à canonização dos escritos apostólicos há um abismo entre os dois. Justino somente reconhece como escrituras sagradas a Bíblia grega, Septuaginta, ao passo que Ireneu

1 Jorge Pixley é Professor emérito, Seminário Teológico Batista da Nicarágua.

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tem uma Bíblia que é, fundamentalmente, igual às Bíblias que os cristãos usamos hoje. Esta é, pois, a tarefa que nos propusemos bosquejar para os leitores de RIBLA. As cartas indubitavelmente paulinas À igreja dos tessalonicenses É opinião quase unânime dos estudiosos que esta é a carta mais antiga de Paulo, escrita no ano 49, mais ou menos. Paulo chegara a Atenas e inquietou-se sobre a situação da jovem igreja de Tessalônica e por isso enviou Timóteo para saber qual era a situação (3,1-5). Quando Timóteo volta, informa a Paulo sobre a fé e o amor que prevalecem entre os crentes de Tessalônica, o que muito anima a Paulo (3,5-10). Isto corresponde mais ou menos aos movimentos que são descritos em At 17,14-15, com a variante em Atos de que Timóteo não foi enviado de Atenas, mas ficou em Tessalônica mais um tempo e depois foi encontrar-se com Paulo. 1Tessalonicenses é uma carta autêntica que Paulo escreve a irmãos muito amados. Tem calor humano. Não respira o perigo de dissensões que costuma haver em suas cartas posteriores. Aparecem várias diferenças com respeito à descrição em At 17,1-10. Nada na carta sugere que houvesse judeu-cristãos em Tessalônica, mas parece mais uma congregação de pagãos convertidos “dos ídolos para servir ao Deus vivo e verdadeiro” (1,9). Quando se fala de judeus em 2,14-16 são judeus não crentes da Judéia que ali perseguiram os crentes em Cristo, como os compatriotas (pagãos) dos tessalonicenses perseguem a eles. Fala-se muito da “parusia” de Cristo, tomando um termo político usado para a marcha triunfal de um general ou político (2,19; 3,13; 4,15; 5.23),2 parusia que salvará os crentes da “ira vindoura” (1,10; 2,16; 5,9). O tema da parusia está descrito em 4,13-18 para consolar os tessalonicenses diante da morte de algum deles, para que não fiquem sem esperança. 3 Em geral, a carta contém um espírito alegre e uma celebração da alegria dos crentes, que chega em algum momento a se tornar exortação: “Vivei sempre alegres” (5,16). Não se fala de hierarquia (bispos, diáconos), mas se fala de líderes espirituais (5,12-13), e é evidente que ainda não há muita organização eclesial. Paulo ainda não pensou em questões de organização. Há exortação com dois acentos: evitar a dissolução sexual com prostitutas e perseverar na santidade (4,3-8) e trabalhar com as próprias mãos para não depender dos de fora (4,11-12). Enfim, aqui temos uma carta muito simpática dirigida a uma comunidade pagã com a qual Paulo não teve problemas. Foi escrita com a intenção de fortalecer estes jovens crentes na fé. Não devemos nos deixar enganar por Atos, importando problemas de judaísmo e judaizantes que não aparecem nesta carta. Surpreende a ênfase paulina, aqui, na escatologia da parusia, um tema que posteriormente irá desaparecer ou pelo menos será relativizado. Aos Filipenses Como na primeira carta aos Tessalonicenses, a carta única aos Filipenses é uma carta de tom positivo. Filipos era uma colônia militar romana sobre a Via Egnatia e uma cidade de cultura e religião predominantemente pagãs. No entanto, havia uma presença judia

2 Néstor O. Míguez, "Linguagem bíblica e linguagem política", Ribla 4 (1989) 161-172. 3 Néstor O. Míguez, "Para não ficar sem esperança-A apocalíptica de Paulo em ITs como linguagem de esperança", Ribla 7 (1989) 145-162.

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que se reflete na seção polêmica 3,2-11. Atos dos Apóstolos, capítulo 16, faz dela um elemento dominante na vida da jovem comunidade, assunto que não é confirmado na carta, que inclui uma breve seção polêmica, que visa evitar problemas ao ajudar a comunidade a definir os limites do aceitável em seu meio. Não parece ser um problema interno sério. Esta é uma carta de amizade escrita por um amigo a um grupo que considera amigos sinceros.4 O amor, a harmonia e a alegria são temas totalmente preponderantes. A comunidade de Filipos enviou em repetidas ocasiões donativos em dinheiro para ajudar Paulo em suas necessidades e nas necessidades de sua missão, e Paulo exprime a sua gratidão (4,10-20). Também eles, ao saber da prisão de Paulo, enviaram um representante querido de Paulo e deles, Epafrodito, para levar uma contribuição econômica e a solidariedade pessoal com suas aflições (2,25-30). Infelizmente, Epafrodito ficou doente durante a sua missão. Não sabemos se foi durante a viagem ou depois que chegou ao seu destino, onde Paulo estava preso. Paulo se apressa a escrever esta carta e enviá-la com o próprio Epafrodito para tranquilizar a comunidade.

Mesmo a seção mais doutrinal, o hino de 2,6-11, desempenha nesta carta uma função de amizade, pois sua intenção é exortar os filipenses a se entregarem em toda humildade aos seus irmãos e irmãs, seguindo o exemplo de Jesus Cristo, que se entregou por nós, inclusive até à morte e morte de cruz. Também a única menção de um problema na comunidade, o conflito entre Evódia e Síntique, não parece ser por motivos ideológicos, que exijam minuciosas análises teológicas, e Paulo procura resolver o caso com exortações de harmonia (4,2-3). Sua exortação repetida é: “Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito: alegrai-vos” (4,4; ver 1,8; 2,17-18 e 3,1). Seria útil saber a data desta carta. A questão depende do lugar da prisão de Paulo, e os comentaristas propuseram Roma, Cesareia e Éfeso. Se for Éfeso, é urna carta escrita bem cedo (ano 52 a 54); se for Cesareia, é entre 57-58; se for Roma, seria já uma carta de seus últimos anos (60-64). A menção do pretório (1,13) e a saudação da casa de César (4,22) sugerem Roma, que foi a opinião unânime dos Padres da Antiguidade. Também o medo de ser executado (1,21-26) é um elemento a favor de Roma. Os argumentos, portanto, inclinam-se para Roma, apesar de que a distância entre Roma e Filipos torna difícil saber como houve tanta comunicação como a sugerida pela carta.

Para nossa finalidade é significativo que, tão tarde em sua vida, e depois de cartas teologicamente “pesadas” aos Coríntios, Gálatas e Romanos, Paulo possa escrever uma carta de amizade onde a discussão teológica está ausente. Também brilha, por sua ausência, a hierarquia eclesial, que tanto pesa nas Pastorais. Aqui a exortação ao amor e à alegria parece suprir o que nas Pastorais ocupa a obediência ao bispo, aos diáconos e ao marido. Certamente, estas conclusões dependem de aceitar que a carta foi escrita em Roma, o que é provável mas não é seguro. Esta carta, seja tardia ou temporã, revela um lado de Paulo pouco elaborado nos comentários, a sua capacidade para o amor fraterno e a amizade. A nível humano, é sem dúvida a mais bela de suas cartas conhecidas. A Filêmon, Ápia e Arquipo Esta, a mais curta das cartas preservadas de Paulo, é, por seu gênero, uma carta de intercessão em favor de Onésimo, tendo Filêmon como destinatário. Não é sem importância que a carta é dirigida formalmente às três pessoas citadas “e à igreja que se reúne em tua casa”. Com isto Paulo consegue testemunhas para seu pedido a Filêmon, o

4 John T. Fitzgerald, "Epistle to the Philippians", em Anchor Bible Dictionary (Nova York: Doubleday, 1992), vol. 5, 318-326.

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verdadeiro destinatário do pedido, testemunhas que servirão como pressão para que Filêmon se comporte à altura de sua posição como líder cristão que é. Esta pequena carta é uma jóia da arte retórica: apela para a honra de Filêmon e para as vantagens que redundarão para ele, se responder positivamente ao pedido que Paulo lhe faz para que receba sem castigar o seu escravo Onésimo e, aparentemente, também que o liberte, já que agora é irmão na fé de Jesus Cristo. 5 Este duplo motivo para sustentar o pedido é o que os oradores Cícero e Quintiliano recomendam para as cartas de petição. Também como os retóricos recomendam, começa com elogios do receptor para preparar o terreno (v. 4-7), seguindo-se o pedido (v. 8-16), terminando com uma recapitulação do pedido (v. 17-22). Não sabemos se Paulo tinha estudado retórica ou se aprendeu isso de segunda mão, na escola básica helenística. Em todo caso, a carta a Filêmon é, sem dúvida, uma carta pessoal, uma verdadeira carta, que não tem pretensões de se tornar fundamento para a fé e nisto se parece com a primeira carta aos Tessalonicenses e a carta aos Filipenses. Definitivamente, não foi escrita para se tomar Sagrada Escritura. É uma carta pessoal de Paulo a Filêmon a respeito de uma terceira pessoa, Onésimo, por quem Paulo intercede. A presença de Ápia e Arquipo e da comunidade local está em função do pedido, pois são mais testemunhas de um pedido do que destinatários do mesmo.

É evidente que a casa e igreja de Filêmon, Ápia e Arquipo está em Colossos ou em Laodicéia, ambas pequenas cidades da Frigia, hoje parte da Turquia. Que a coleção canônica das epístolas paulinas pensa assim comprova-se comparando a lista de saudações nos v. 23-25 com a lista um tanto mais ampla em Cl 4,10-17. Ora, Paulo está preso quando escreve esta carta. Qual prisão? Cesaréia, Roma? Ou uma hipotética prisão em Éfeso? Não é possível sabê-lo, mas isto deixa abertas as possibilidades de data para esta carta, que pode ser na época de maior trabalho (52-54), se for Éfeso, ou em seus últimos anos (60-64), se for Roma. Para os efeitos do processo de canonização, não tem muita importância o lugar e a data desta carta, mas constatar que é verdadeiramente uma carta cuja intenção é comunicar seu escritor com seus destinatários. Às igrejas na Galácia

Tal como vimos nas cartas anteriores, também a análise desta carta revela que se trata de uma carta autêntica, uma comunicação de uma pessoa que não pode ir aos seus destinatários e põe por escrito a sua mensagem. A epístola aos Gálatas é uma carta do gênero apologético, uma defesa das ações e comportamento de seu autor que foi questionado pelos destinatários. 6 O modelo da carta apologética na Antiguidade foi a sétima carta de Platão, onde ele justifica suas ações político-filosóficas em Siracusa em defesa de Dion, seu amigo e discípulo, e de Dionísio, o tirano de Siracusa, na Sicília, ilha que pertencia à Magna Grécia. Epicuro e Sêneca também escreveram cartas apologéticas seguindo o modelo de Platão (ou Pseudo-Platão, para os que questionam a autenticidade da Sétima Carta). A carta apologética é uma peça de retórica cujo propósito é convencer aqueles que duvidam da integridade ou sabedoria do autor. Permite-se que se usem todos os recursos do convencimento sem estar sempre preso à verdade. E, como o autor foi questionado, tem um forte conteúdo autobiográfico com o qual o autor pretende demonstrar, recontando os fatos passados, a sua integridade e a justeza de suas doutrinas. Como Paulo, também Platão combina um esforço para

5 S. Scott Bartchy, "Epistle to Philemon", em Anchor Bible Dictionary (Nova York: Doubleday, 1992), vol. 5, 305-310. 6 Ver no grande comentário de Hans Dieter Betz, Galatians (Filadélfia: Fortress Press, 1979), série Hermeneia, a grande discussão do gênero literário na introdução, p. 14-25.

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defender suas ações passadas com seu interesse de convencer os seus destinatários da exatidão de suas doutrinas: no caso de Platão, a filosofia política e, no caso de Paulo, o evangelho de Jesus Cristo. A vida dos autores está muito vinculada com suas doutrinas, de modo que é impossível separar as duas.

No entanto, há diferenças notáveis que analisamos. A mais notável inovação são as maldições em 1,8-9. Isto confirma a impressão dada pela lista de provas da veracidade de seu ensinamento (3,1-4,31) de que ela, mais que uma simples carta para responder a uma situação pontual nas igrejas da Galácia, é uma declaração que busca validade e uso permanente. A maldição sobre aqueles que ensinarem um. evangelho diferente do de Paulo, ainda que fossem anjos ou o próprio Paulo (1,8), não é algo pontual para este momento. Já é um assunto para todo o futuro e para qualquer pregador falso que se apresentar em qualquer lugar. Este assunto não se esgota no problema dos Gálatas, mas tem a ver também com Pedro e Tiago, que caem sob esta maldição, como se pode ver no conflito que Paulo cita em 2,11-14. Uma maldição vai além dos limites de uma carta para invocar a ação de Deus sempre que se dêem as condições que ela contempla. Isto é um primeiro passo dado pelo próprio Paulo para a sacralização de sua carta, um primeiro passo para a sua canonização.

Para o nosso propósito de historiar o processo de canonização das epístolas paulinas, não é necessário entrar na explicação da polémica de Paulo com os Gálatas nem na controvertida questão de quem eram estes gálatas. Mas convém ver a data. A carta dá a impressão de vir de um Paulo que já é cristão de velha data (os 17 anos: 1,8 mais 2,1), mas que ainda não amadureceu a sua reflexão sobre a questão da justificação pela fé e a impossibilidade de justificação pela lei, tema central de duas epístolas suas, esta e a que escreveu aos romanos. Se Romanos foi escrita quando Paulo estava a caminho de Jerusalém para entregar a oferenda para os pobres (Rm 15,25), antes de suas prisões, e reflete muito tempo de reflexão que ainda não é evidente em Gálatas, teríamos que pensar numa data em torno do ano 50. Correspondência com a igreja de Deus que está em Corinto

A igreja de Corinto foi sem dúvida a igreja mais importante que Paulo fundou. Corinto era uma cidade comercial num istmo importante para o tráfego marítimo. A igreja era, aparentemente, grande e com uma composição social heterogênea. 7 Foi também a igreja que mais problemas deu a Paulo, e suas cartas “à igreja de Deus que está em Corinto” (ICor 1,2 e 2Cor 1,1) são esforços para responder a problemas pastorais concretos. A igreja em Corinto era uma igreja grande e não cabia nas casas dos irmãos, de modo que se reuniam por células em diversas casas, mas constituía uma igreja de Deus em Corinto. As cartas contemplam um só corpo e se dirigem a ele.

Em nossas bíblias, estão preservadas duas cartas à igreja de Corinto. Quando estas cartas são examinadas, é evidente que não seguem os padrões de nenhuma carta conhecida na retórica antiga. A segunda carta parece composta de fragmentos de várias cartas, que podemos ver em (1) 2,14-6,13 e 7,2-4; (2) 10-13; (3) 1,1-2,13 e 7,5-16; (4) capítulo 8 e (5) capítulo 9. Já é comum supor que 6,14-7,1 não é de Paulo. Há razões importantes para a divisão que estou propondo, que podem ser encontradas nos comen-tários e dicionários bíblicos, embora evidentemente não possa haver segurança. O que é evidente a uma simples vista de qualquer leitor cuidadoso é que a chamada segunda carta aos Coríntios não é uma carta, mas um conjunto de fragmentos. Isto significa que

7 Sobre a situação social dos cristãos em Corinto, consultar o livro de Gerd Theissen, Estudios sobre la sociologia dei cristianismo primitivo (Salamanca: Sígueme, 1985).

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em Corinto havia um arquivo de cartas de Paulo e, provavelmente, algumas dos coríntios para Paulo. Um passo importante na canonização foi a seleção das porções que pareceram mais importantes para fazer uma só carta de várias. Isto certamente se fez com a intenção de circular a “carta” resultante entre todas as igrejas para sua instrução. E evidente pelos fragmentos que se tratou de verdadeiras cartas, comunicações do pastor com sua grei sobre problemas pastorais na cidade de Corinto, mesmo quando o que chegou até nós já não seja uma carta e careça de forma homogênea.

No entanto, a primeira carta parece ser uma carta, embora fora do comum em tamanho. Não teria sido prático lê-la toda inteira numa reunião, mas toma-la por partes, o que é fácil de fazer porque o próprio Paulo aborda temas distintos com a apresentação “Acerca de (peri de)” (1Cor 7,1; 8,1; 12,1). Estes são assuntos sobre os quais a “igreja de Deus em Corinto” fez perguntas para buscar orientação pastoral de seu fundador. Estas perguntas vieram, às vezes, por carta e, às vezes, oralmente, por mensageiros, pois havia uma comunicação fluente entre as duas partes, servindo como mensageiros do lado paulino tanto Timóteo (16,10) como Tito (2Cor 2,13; 7,6), Por outro lado, uma ou mais cartas chegaram a Paulo com Estéfanas, Fortu-nato e Acaico (ICor 16,17). Também chegaram ao apóstolo informações “extra-oficiais” pelos “familiares de Cloé” (l,11) de que havia divisões entre os crentes em Corinto e, antes de responder às consultas pelas cartas, ele mantém isto bem presente diante dos olhos ao responder às perguntas formais na ou nas cartas que Estéfanas, Fortunato e Acaico trouxeram.

O tom desta primeira carta, apesar dos grandes problemas dos quais está sendo informado, é um tom positivo e de esperança. Os fragmentos recolhidos na chamada segunda carta, porém, refletem uma crise gravíssima que deprimiu Paulo e exigiu dele imediata atenção por carta e por seus mensageiros Tito e Timóteo. O que diremos do conjunto da correspondência a Corinto? Reflete uma intenção “canônica” do autor? É preciso dizer que, pelo menos, há uma consciência de amplitude geográfica. A carta completa menciona a dádiva para Jerusalém em sua última parte (16,1-4) e, ao fazer isto, coloca a contribuição de Corinto junto com a da Galácia. Duas das cartas que compõem nossa 2Cor trataram, segundo parece, exclusivamente desta dádiva. Trata-se de 2Cor 8 e 2Cor 9, que parecem ter sido escritas para promover a coleta, um assunto que não tem nada a ver com o “canônico”, mas, como em 1Cor, nesse assunto se manifesta uma consciência ge-ograficamente ampla quando Paulo usa a oferta recolhida na Macedônia para motivar a generosidade dos coríntios (2Cor 8,1-6). Os fragmentos de 2Cor parecem consumidos pelo grave problema que atravessava a relação da igreja de Corinto com Paulo. A intenção de escrever algo canônico detecta-se mais nos coletores do que no autor. Se eles fizeram esta seleção de materiais de várias cartas de Paulo, apesar da situação particularíssima que as provocou, foi por pensar que poderiam ser lidas com proveito em outras comunidades de crentes.

Por sua vez, a primeira carta é, apesar de estar dirigida para os problemas pastorais de uma comunidade, uma carta grande demais e, às vezes, solene, como ao discutir a força do pequeno (1,18-25), a grandeza da cruz de Cristo (2,1-5), a sabedoria revelada (2,6-16), e em alguns momentos poética e visionária, como no hino ao amor (13,1-13) ou a ressurreição e glória última (15,1-58), para ter sido pensada como uma simples carta ocasional. Sugere um Paulo que vê, além da situação imediata, algo permanente, útil para suas igrejas a longo prazo. É um passo para a canonização. A todos os amados de Deus, santos escolhidos, que estão em Roma

A carta aos santos que estão em Roma é uma carta diferente das outras cartas paulinas. É a carta mais longa de todas. E a que dedica mais espaço a argumentos

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teológicos apresentados em forma sistemática. Isto levou muitos comentaristas a vê-la como um tratado de teologia e não como uma carta autêntica. Há muito de verdade nesta perspectiva e isto indica que o próprio Paulo dá, aqui, um grande passo para uma futura canonização.

Contudo, não é um tratado. Tem a introdução costumeira de Paulo em todas as suas cartas (1,1-7), e tem também as saudações finais (16,1-23) e bênção (16,25-27) com que Paulo costuma terminar as suas cartas. Ademais, há aqui uma seção (15,14-33) onde Paulo situa a carta nas circunstâncias de sua vida apostólica. Acaba de arrecadar, em suas igrejas, a oferenda para os pobres de Jerusalém, terminou seu trabalho “nestas regiões” (15,23) e pretende abrir igrejas na Espanha, mas deseja antes visitar os santos em Roma. Pede paciência a eles porque sente-se obrigado a viajar com a delegação que levará as ofertas a Jerusalém. E aqui aparece um motivo de sua carta: solicitar as orações dos santos para que sua oferenda seja aceita e que ele seja libertado dos “incrédulos” na Judeia (15,30-33). É, portanto, uma carta, apesar do peso de sua argumentação, que tende para sua consideração como tratado teológico.

Mais exatamente, essas longas seções de argumentos teológicos são exemplos do género conhecido como diatribe, que ficou exemplificado como expressões de certas escolas filosóficas que pretendiam recriar a exposição do mestre, as objeções do aluno e a refutação dos argumentos do aluno por parte do mestre. E justamente isto que Paulo faz nesta carta, crendo poder antecipar as objeções que os crentes de Roma-judeus e gentios -fariam a ele para depois refutá-las. E se não foi a Roma, como julga saber o que se pensa nas reuniões dos cristãos nessa cidade? Vejamos.

Situemos a carta - não à igreja de Roma, mas aos santos escolhidos que estão em Roma - dentro da vida de Paulo e das igrejas do momento. Ela pode ser datada mais ou menos no ano 56, no tempo de sua partida para Jerusalém com a oferta. A Palestina era governada por Félix (52-58 ou 60), que foi sucedido por Festo (58 ou 60-62), sendo que ambos atenderam a Paulo preso. Das referências em 16,1-2 se pode concluir que a carta foi escrita de Corinto, o ponto a partir do qual Paulo iniciou esta última viagem a “suas” igrejas para despedir-se delas. É neste contexto que escreve a única carta a uma igreja que ele mesmo não fundou e, mais, uma igreja numa cidade desconhecida para ele. Por seu conteúdo, esta carta tem muito em comum com a carta às igrejas da Galácia, pois trata com maior amplitude a relação entre Israel e os gentios dentro da comunidade que segue a Jesus. Mas revela a sua distância dessa carta, pois está envolvido na coleta para os santos de Jerusalém, assunto que compartilha com a correspondência coríntia.

Paulo não visitou Roma, mas conhece muitas pessoas das comunidades cristãs dessa cidade, como evidenciam as muitas saudações do capítulo 16. Isto se explica pela expulsão por parte do imperador Cláudio dos judeus de Roma pelo ano 49. Assim como em Corinto conheceu Priscila e Áquila, terá conhecido ali e em outras cidades outros exilados de Roma. Sabia (ou imaginava) que, ao voltar, encontrariam uma situação mudada, onde durante seis anos os crentes gentios foram multiplicando-se e exercendo a liderança nas comunidades. Alguns teriam ouvido que Paulo era, na divisão das tarefas, o apóstolo dos gentios (Gl 2,6-7), e a volta de judeus crentes era um momento oportuno para explicar com amplidão o “seu evangelho” para uns e para outros. Daí a epístola aos Romanos em sua forma de diatribe.

Paulo terá se proposto a escrever Sagrada Escritura? Provavelmente não. Queria, no entanto, expor a sua posição teológica, que tinha sido questionada por Tiago e mais alguns e interpretada mal por muitos. Não creio que nos enganaremos se dissermos que aqui Paulo estava escrevendo um texto fundante para as comunidades de crentes em Jesus, que incluíssem tanto judeus como gentios. Também os evangelistas escreveram

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obras que consideravam fundantes. E, depois de tudo, o que é a Sagrada Escritura senão uma coleção de textos fundantes para os crentes? Paulo, de herege a missionário exemplar Reflexões gerais

Para entender a sorte que tiveram as cartas paulinas é preciso recordar o azar do próprio Paulo na emergente igreja cristã. Se examinarmos Paulo a partir da igreja em seu conjunto ou, o que é quase o mesmo, desde seu centro em Jerusalém, Paulo como apóstolo aos gentios foi logo objeto de suspeitas. Os seguidores de Jesus em Jerusalém eram judeus leais que cumpriam a lei de Moisés como qualquer judeu fiel. Sabia-se que Paulo, que sentiu-se chamado a ser o apóstolo dos gentios, embora fosse judeu, exercia uma liberdade suspeita perante a lei.

O primeiro conflito entre Paulo e “os de Tiago” de que se tem notícia aconteceu em Antioquia, cidade importante onde os discípulos helenistas, que fugiram de Jerusalém depois da morte de Estêvão, exerceram uma missão cristã (At 8,1.4 e 11,19-20). Em sua apologia aos Gálatas, Paulo narra como foi a Jerusalém três anos depois de- seu chamado como apóstolo, quando conheceu a Pedro e Tiago irmão do Senhor (Gl 1,18-20). Não diz o que discutiram. Voltou a Jerusalém catorze anos mais tarde levando em sua companhia Barnabé, o judeu de Chipre (helenista, portanto), e Tito, um gentio que seguia o caminho (Gl 2,1-3). Nesta ocasião, estas “colunas” da igreja não obrigaram Tito a circuncidar-se e, vendo que Deus encarregara Paulo do apostolado aos gentios e Pedro do apostolado aos judeus, estenderam a ele e a Barnabé a mão em sinal de pleno acordo (Gl 2,6-9). Tudo parecia estar bem encaminhado com uma espécie de divisão de trabalho.

Mas logo surgiu um problema. Em Antioquia se encontraram Pedro, o apóstolo dos judeus na diáspora, e Paulo, o apóstolo dos gentios, que se tinham dado a mão ao repartir as tarefas em Jerusalém. Todos participaram juntos nas mesas sem problemas até que chegaram “alguns de Tiago” (Gl 2,12), e Pedro separou-se das mesas dos judeus juntamente com os demais judeus, inclusive Barnabé (Gl 2,13). Aqui apareceu um problema que não tinham esclarecido em Jerusalém: o que fazer lá onde conviviam crentes judeus com crentes gentios? Enquanto Paulo e Pedro não se encontraram, não houve problemas. Mas os problemas começaram quando os dois grupos, que estes apóstolos representavam, encontraram-se num só lugar. Parte da fidelidade ao pacto para qualquer judeu era comer apenas comidas “kosher”, o que era impossível fazer junto com gentios. Pedro trazia o aval dos primeiros seguidores de Jesus em Jerusalém, e parece que Paulo saiu perdendo em Antioquia, neste encontro, pois foram aceitas mesas para judeus e outras para gentios. Paulo ficou como um herege ou, pelo menos, como alguém com uma visão suspeita da jovem fé cristã.

Pela sua carta podemos concluir que, nas igrejas gentias da Galácia fundadas por Paulo, tinham chegado judeu-cristãos e conseguiram convencer as igrejas de Paulo de que o seu evangelho era incompleto, precisando ser completado com a observância da lei. Se o que Paulo diz em Gl 2,6-10 - que os líderes concordaram que Paulo fosse apóstolo para os gentios e Cefas para os judeus - é fiel à verdade, temos que supor que os representantes de Cefas e Tiago violaram o acordo metendo-se entre igrejas de gentios fundadas por Paulo. E tiveram êxito em convencer estas igrejas contra Paulo e “seu” evangelho, quer dizer, convenceram-nas de que Paulo não era um pregador de todo o evangelho.

Pelo fragmento da carta “à igreja de Deus que está em Corinto”, que se encontra em 2Cor 10-13, sabemos que também ali houve um conflito com representantes do judeu-cristianismo. Aqui, no entanto, a igreja era mista, havendo judeus e gentios. Numa situação deste tipo podemos imaginar que haveria a possibilidade de várias

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interpretações do arranjo para dividir a tarefa de proclamação do evangelho. Paulo ressentiu-se porque se meteram em “sua” igreja, uma igreja fundada por ele; mas, havendo judeus nela, tanto Pedro como Tiago ou sua gente podiam entender, com boa fé, que era seu território tanto quanto território de Paulo. É evidente que em todos estes conflitos, em Antioquia, na Galácia e em Corinto, o peso da legitimidade estava com os representantes de Jerusalém e contra Paulo. Os primeiros apareciam como os sucessores diretos de Jesus, Pedro e João por serem dos doze e Tiago por ser irmão, ao passo que Paulo chegou mais tarde no seguimento de Jesus. É interessante a descrição que “Lucas”, o autor de Atos dos Apóstolos, faz da última visita de Paulo a Jerusalém. Foi recebido por Menasão de Chipre, “discípulo antigo” (At 21,16) e provavelmente um “helenista”, judeu da deportação. No dia seguinte Paulo foi ver Tiago (At 21,18) como se um inferior procurasse encontro com um superior. A conversa que Lucas informa a seguir ilustra a tensão e os mal-entendidos e, mais do que tudo, as suspeitas que existiam sobre Paulo no centro da igreja, em Jerusalém. Lucas sempre procura apresentar as relações como harmoniosas, mas é evidente em seu relato que os judeus crentes em Jerusalém impuseram algumas tarefas a Paulo para prová-lo.

Tudo isto mudou com a destruição de Jerusalém e o desaparecimento da igreja de seguidores de Jesus entre os judeus dessa cidade. Nessa data, 70 dC, Paulo, Pedro e Tiago estavam todos mortos, todos eles mártires. Com o desaparecimento da congregação de Jerusalém, a igreja ficou por algum tempo sem centro, mas com seu centro de gravidade nas regiões ocidentais, Ásia (Ásia Menor para nós), Grécia, Macedônia e Roma. Estas foram as áreas de influência de Paulo, onde Tiago não teve presença física e Pedro, pouca. A situação inverteu-se. As comunidades de judeus crentes em Jesus que ficaram na Palestina e Síria foram suspeitas de serem ebionitas, de crer mais no Jesus em carne e osso do que no Filho de Deus encarnado. Paulo tornou-se o teólogo por excelência de Cristo salvador e os sucessores de Tiago passaram a ser os que viviam na sombra de uma fé insuficiente, suspeita de heresia. De modo que as cartas de Paulo foram mais aceitas e utilizadas por Inácio de Antioquia e Justino Mártir que as de Tiago e Pedro. Ironia da história! Estas últimas cartas formavam uma coleção com os Atos dos Apóstolos, outro livro sem importância na Igreja Primitiva.

As cartas aos santos e fiéis irmãos em Cristo em Colossos e aos santos e fiéis em Cristo Jesus que estão em Efeso

Estas duas cartas têm uma clara afinidade em seu conteúdo, e é opinião da

grande maioria dos que estudaram o assunto que Efésios depende de Colossenses, sejam elas de Paulo ou de algum discípulo seu. Há muitas coisas interessantes nestas cartas, mas para nossa finalidade o notável é que, embora se apresentem como cartas, têm um claro interesse por desenvolver uma visão teológica.

Dizendo em duas palavras, a epístola aos Colossenses desenvolve uma teologia de um Cristo cósmico que é primícia e Senhor da criação, em quem habita todo o plêrôma (plenitude) (ver o hino em 1,15-20). É por ele que temos o perdão dos pecados (1,13-14; 2,13; 3,13). Isto não conflita com a salvação nas outras cartas paulinas, mas-nelas a ênfase está mais na obra de Cristo como a justificação, o justificar os fiéis (Rm 3,24; 5,6-9.15-21). Aqui Cristo é a cabeça não somente da igreja (1,18), mas também habita nele toda a plenitude da deidade corporalmente e ele vem a ser a cabeça de todo principado e poder (Cl 2,9-10).

A epístola “aos Efésios” desenvolve uma bela teologia da igreja. A ela Deus revelou todo o mistério de sua vontade de unir em Cristo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão no céu (1,9-10). A salvação que Cristo realiza

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desenvolve-se em termos da superação das barreiras humanas, especialmente a que separa os judeus e os gentios (2,11-22). O autor, que se diz Paulo (1,1; 3,1), está preso, “prisioneiro de Cristo por amor de vós, gentios” (3,1). Paulo fez os destinatários conhecerem a “economia” da graça de Deus, o mistério de juntar todas as coisas em Cristo (3,2-7).

Uma coisa que estas duas epístolas têm em comum são as listas de obrigações dos distintos membros da família, as mulheres e seus maridos, os filhos e os pais, os escravos e os senhores (Cl 3,18-4,1 e Ef 5,21-6,9). Isto é uma exortação bem conhecida na moral antiga, começando por Aristóteles, em sua Política 1253b, embora Aristóteles tenha uma quarta categoria de moral, a chrêmatistikê, o ganho económico para completar o quadro de um cidadão honrado e decente. Surpreende que dois livros tão originais de teologia cristã como são estes tratem o tema da moral de uma maneira tão tradicional com todos os elementos classistas do pensamento da Antiguidade Clássica.

Se estas cartas são realmente de Paulo, coisa muito discutida, seriam posteriores à sua epístola aos santos eleitos em Roma, a última das cartas indubitavelmente paulinas. Teriam sido escritas em Roma por volta do ano 60. A carta hoje conhecida como Efésios, embora o Papiro 46, o manuscrito Sinaítico e o manuscrito Vaticano não indiquem um destinatário específico, não pretende responder a uma situação concreta. 8 É uma carta geral “urbi et orbi”, se quisermos, o que já indica outro passo para a canonização. Paulo escreve para todos e para a posteridade. Colossenses diz ser uma carta a uma comunidade que Paulo não conheceu, mas, como Romanos, indica um conhecimento de muitos indivíduos em sua última seção (4,7-17). Como Efésios, não parece responder a questões determinadas, mas parece ser uma carta geral.

Mas estas cartas podem ser de discípulos de Paulo, que o consideram um grande teólogo e quiseram pôr por escrito o que eles entendiam como sendo a sua teologia mais acabada. “Efésios” deveria estar escrita antes do ano 100, pois Inácio já a conhece em sua carta aos efésios. Colossenses teria sido escrita um pouco antes de Efésios e seria também uma carta circular porque Colossos foi destruída por um terremoto no ano 60 e só foi reconstruída muito depois. Em qualquer caso, sejam de um Paulo ancião e refletivo desde uma prisão romana ou sejam de admiradores seus que queriam preservar os seus ensinamentos, são tratados teológico-pastorais que facilmente poderiam tornar-se escritos canônicos, como de fato aconteceu. A “segunda” carta à igreja dos Tessalonicenses

Esta carta está cheia de problemas para o intérprete, a maioria dos quais não é motivo para deter-nos neste ensaio. A pequena carta é uma discussão em torno do tema escatológico da parusia do Senhor. Quer insistir que os novos cristãos gentios dessa importante cidade macedônia não se excitem na espera iminente do Senhor. A outra carta aos tessalonicenses diz, pelo contrário, que muitos dos presentes receberão o Senhor sem terem morrido (ITs 4,15). Será esta, a nossa primeira carta aos Tessalonicenses, a carta espúria que se denuncia em 2Ts 2,2? Neste caso, a carta não seria um pseudónimo real, mas uma carta escrita por um adversário de Paulo com o propósito expresso de desqualificar uma carta autêntica de Paulo. Mas esta pode não ser a interpretação correta de 2,2. É possível que a carta seja autêntica de Paulo e a referência seja a outras cartas que estão circulando na Macedônia. O coração da carta parece ser 2,3-12, que trata do “homem da iniquidade, o filho da perdição” e do

8 A informação sobre variantes textuais encontra-se no Novum Testamentum Graece, coordenado por Nestle e Aland (Stuttgart, 27.ed. 1993).

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“mistério da iniquidade” que se manifestará antes da parusia. Por ora há alguém que detém este mistério da iniquidade (anomias) (ho katechôn), mas quando for tirado, o mal se manifestará até que o Senhor o destrua com o vento (pneuma) de sua boca. Mistério demais para nós!

Desde as primeiras coleções, esta pequena carta foi incluída entre as cartas de Paulo e não temos provas claras suficientes para negá-lo, embora também não seja possível situá-la bem dentro da carreira conhecida de Paulo. Quando terá ocorrido o entusiasmo escatológico na Macedônia que o autor desta pequena carta combate? Seja como for, a carta em discussão ern pouco contribui para o processo de canonização. Dá toda evidência de ser uma carta verdadeira, que responde a uma situação concreta, seja ela escrita por Paulo ou por um adversário de Paulo. Esta última possibilidade, embora não muito provável, seria um testemunho interessante para a oposição que a figura de Paulo gerou, mesmo que nesta ocasião não fosse duvidosa a sua lealdade à tradição judia. Aos Hebreus

Esta “epístola” não tem designação de remetente, de destinatário, nem tem título dentro de seu texto. De modo que nos remetemos ao título que recebe nos manuscritos, evidentemente resultado de um esforço unificador pelos que prepararam as epístolas de Paulo para a sua publicação (reprodução). Na maioria dos manuscritos a epístola aos Hebreus aparece após 2Tessalonicenses e antes de 1Timóteo. Embora a própria epístola não diga quem a escreveu, é evidente, por sua colocação dentro da coleção paulina em todos os manuscritos desta coleção e por sua titulação pelos destinatários (tampouco nomeados dentro do texto da epístola) e não por seu autor como as “católicas”, que era considerada de Paulo. Este documento é propriamente uma epístola somente por sua conclusão epistolar em 13,18-25. O corpo é mais um tratado teológico-pastoral.

E seu estilo, vocabulário e teologia revelam que não foi Paulo quem a escreveu, opinião que Orígenes já manifestou no século III. Lutero colocou-a no final de sua Bíblia alemã junto com Tiago e Judas. E nos últimos séculos a opinião geral nega a autoria paulina. Por isso a excluímos de nosso relato, exceto para dizer que aqui também, dentro de uma carta atribuída já no século II a Paulo, há uma “intenção canônica”. Não é uma verdadeira carta. As cartas pastorais

A carta a Tito e as duas a Timóteo foram chamadas Epístolas Pastorais desde o século XVIII por serem instruções práticas dirigidas a dois ajudantes de Paulo em seu trabalho missionário. Já Marcião, que na primeira parte do século II criou um sistema teológico, excluía estas três cartas, talvez porque as rejeitasse, como diz Tertuliano em sua obra Contra Marcião, escrita pelo ano 200, ou talvez porque não as conhecesse. Marcião acreditava em Paulo porque era um teólogo da graça e, sem dúvida, é preciso reconhecer, as epístolas pastorais não contêm argumentos teológicos, mas conselhos práticos. Teófilo de Antioquia e Ireneu de Lion, no final do século II, conheceram e utilizaram estas epístolas pessoais como cartas de Paulo. Segundo Jerônimo (final do século IV), Taciano (mais ou menos em 170) aceitou apenas Tito entre estas cartas. De modo que a evidência entre os primeiros Padres é mista e não pode ser considerada a favor ou contra a inclusão destas cartas entre as paulinas. Quando foram compostas as primeiras edições do que chamamos Novo Testamento, no final do século II ou princí-pio do século III, estas cartas foram juntadas com Filêmon e concluíam a coleção das

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epístolas paulinas. O papiro mais antigo da coleção paulina é P46, aproximadamente do ano 200, que, em sua forma incompleta atual, não contém as pastorais, mas pode tê-las tido em sua forma completa. O P32, da mesma data, contém a carta a Tito e é o único papiro antigo que atesta uma carta pastoral. Dos grandes códices unciais, o Sinaítico do século IV contém as Pastorais. O Códice Vaticano, do mesmo século, contém todo o Novo Testamento menos as Pastorais e o Apocalipse, mas pode ser devido à destruição de suas últimas páginas. A ordem, na grande maioria dos manuscritos, é: Evangelhos, Atos dos Apóstolos, cartas católicas, cartas paulinas e Apocalipse, de modo que a terminação deste códice com 2Tessalonicenses talvez se deva simplesmente à perda de suas últimas páginas. Contudo, não contém as Pastorais. O Códice Claramontano (D) e o palimpsesto Ephraemi (C), do século V, contêm as Pastorais como parte da coleção paulina. Resumindo, podemos dizer que, pelo século IV, com toda segurança as Pastorais foram consideradas parte da coleção de cartas paulinas, e o P32 sugere que, em alguns círculos, já no final do século II eram assim consideradas.

O leitor desculpará esta nossa excursão um pouco técnica na evidência dos Padres e dos manuscritos, mas isto nos permite dar consistência ao consenso recente de que as Pastorais não eram de Paulo, mas foram aceitas mais tarde na coleção de suas cartas. A evidência interna é forte para inclinar-nos na mesma direção. O vocabulário total das três cartas é de 901 palavras distintas, das quais 306 não aparecem nas outras cartas paulinas e 335 em nenhum outro escrito neotestamentário9 . Encontramos um Paulo que vê a Igreja como a Casa de Deus segundo o modelo das famílias patrícias onde o pai manda e a mulher, os filhos e os escravos obedecem. São cartas escritas numa situação de grande acomodação às ordens sociais romanas, que inventam um Paulo também missionário plenamente dentro da ordem social romana. Aqui se reza pelos governantes (1Tm 2,1-4) e se exige que os bispos sejam varões e que tenham mantido em submissão os seus filhos, sendo maridos de uma só mulher, quer dizer, viúvos na maioria dos casos (1Tm 3,1-7; Tt 1,5-9). São estas cartas escritas para a posteridade para servir de manual de conduta nas igrejas, na tradição da Didaqué e dos escritos clementinos. Por assim dizer, são canonizáveis, embora por razões muito diferentes de Romanos, Colossenses e Efésios. Os Atos de Paulo: Paulo milagroso e mártir

No século II foi composta esta obra que celebra o missionário Paulo como operador de milagres e pregador incansável na Palestina, Ásia Menor, Grécia, Macedônia e Roma. A obra foi usada e, aparentemente, apreciada por Hipólito de Roma (Comentário a Daniel 111,29) e Orígenes de Alexandria (De principiis 1,2-3), ambos do início do século III. Foi rejeitada por Tertuliano (De baptismo 17) por causa da apresentação de Tecla, a companheira de Paulo em suas missões, como uma mulher que batizava e foi autorizada por Paulo a ensinar. Para Eusébio, era um dos livros discutidos, mas não era herege, como também o Pastor de Hermas e o Apocalipse de Pedro (HE 111,25). Preservam-se vários manuscritos desta obra e, embora não seja pos-sível restaurar o seu texto original, pode-se garantir que continha textos valiosos como o batismo do leão, o autobatismo de Tecla, a carta dos coríntios a Paulo e a resposta deste, conhecida como SCoríntios. O Paulo dos Atos não é um teólogo, mas um missionário denodado, que prega a abstinência do sexo, mensagem bem recebida pelas mulheres e rejeitada pelos homens. Termina a sua vida sendo decapitado em Roma. Em suas

9 Estas estatísticas são tomadas de Robert M. Grant, Historical Introduction to the New Testament (Nova York: Harper and Row, 1963), p. 211.

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primeiras cartas vemos um pastor que atende a problemas de condução das comunidades, um teólogo que deseja garantir seu ensinamento nas últimas cartas, um conselheiro pastoral nas Pastorais e, finalmente, um fazedor de milagres e mártir nos Atos. A correspondência com Corinto, que está contida aqui, tem alguma pertinência para nosso tema, embora nunca tenha sido considerada canônica no sentido das cartas hoje incluídas no NT. A carta dos coríntios apresenta o problema de dois pregadores que chegaram e pregam que Deus não é todo-poderoso, que não há ressurreição da carne e que o Senhor não veio na carne nem nasceu de Maria. São os mesmos problemas que Ireneu enfrentou com os gnósticos no final do século II, a rejeição da criação como obra boa de Deus e, portanto, a rejeição do mundo e da matéria como não re-dimíveis mediante a ressurreição. Paulo responde, em Coríntios, afirmando a criação, a vinda do Espírito Santo sobre Maria para conquistar na carne o que se perdeu na carne e, é claro, a ressurreição carnal de Jesus. Não se toca nos problemas com os judaizantes, que dominam 2Coríntios no cânon. A coleção das epístolas paulinas

Parte do processo de canonização de cada seção do NT é a coleção dos escritos. No caso das cartas paulinas isto aparece surpreendentemente cedo. Já Inácio de Antioquia, em sua carta aos Efésios (aproximadamente no ano 115), menciona que “em toda epístola vos recorda em Cristo Jesus” (12,2). Embora seja uma referência imprecisa, complicada pelo fato de que Éfeso e os efésios são mencionados apenas em ICoríntios, das cartas que com certeza são de Paulo (1Cor 15,32; 16,8), é evidente que, nesta época, as cartas são conhecidas numa coleção. É preciso lembrar que Inácio estava viajando no momento em que escreve a carta e, também, que deseja agradar os destinatários de sua carta. Todavia, conhece algum tipo de coleção de cartas paulinas. No entanto, Clemente de Roma, que escreve a sua carta aos coríntios cerca de vinte anos antes, menciona somente o martírio de Paulo, mas não suas cartas (1Clemente 5,5-7). Ainda não existia a coleção? Se existisse, sem dúvida seria conhecida nos grupos cristãos de Roma, cidade para onde tudo convergia.

Na segunda carta de Pedro, que está no cânon do NT, provavelmente escrita no começo do século II, encontramos uma referência: “em todas as epístolas ele sempre trata deste assunto (a escatologia), mas nelas há alguns pontos difíceis de entender, que pessoas ignorantes e sem firmeza deturpam, como o fazem com as outras Escrituras, para sua própria perdição” (2Pd 3,16). Evidentemente o autor conhecia uma coleção, que considerava de alguma maneira autorizada. Em sua posição ante a parusia, 2Pedro está muito próxima de 2Tessalonicenses, crê nela como doutrina, mas não põe sua esperança nela e, portanto, pensa nela como uma realidade ainda distante. Compartilha com 2Tessalonicenses o temor de que expressões de Paulo sejam entendidas como promessas de uma parusia imediata, o que seria torcê-las “para sua própria perdição”. Portanto, é provável que sua coleção de cartas paulinas incluísse as duas cartas aos tessalonicenses, pelo menos. E se pensamos que sua carta tem que ser posterior à de Judas, que cita, estaríamos falando dos anos 120 a 140, quando já podemos pensar numa coleção das mesmas dez cartas que Marcião conheceu na mesma época (l e 2Tessalonicenses, l e 2Coríntios, Gálatas, Romanos, Filipenses, Colossenses, Efésios, Filêmon).

Pelo ano 140, Marcião do Ponto usou uma coleção de cartas de Paulo que não incluía as Pastorais nem Hebreus. Tertuliano afirmou que ele rejeitou as cartas a Timóteo e Tito (Adversus Marcionem V,21), mas isto é provavelmente uma suposição. É provável que no tempo de 2Pedro e Marcião ainda não existissem as Pastorais. A

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ausência de Hebreus é, sem dúvida, devida a que, ainda que existisse, não fora ainda atribuída a Paulo. Voltaremos a Marcião no inciso seguinte deste ensaio.

É curioso que Justino, em meados do século II, não mencione as cartas de Paulo. É preciso lembrar que ele não tem um cânon de escritos apostólicos e que seus escritos que foram preservados são apologias escritas para as autoridades e seu longo debate com o judeu Trifão; nenhum deles precisa de referencias de um pastor cristão como Paulo. Ireneu, no final do século II, já conhece a coleção de cartas paulinas, incluindo as Pastorais. Embora, destas, cite apenas 2Timóteo, é provável que circularam desde o princípio como uma pequena coleção e que, portanto, conheceu as três. Também parece que Hebreus não fazia parte da coleção.

É importante notar algo que já vimos, que a edição das cartas paulinas foi feita com outros critérios que a das cartas católicas. Estas últimas levam títulos que denotam a autoria de cada carta, ao passo que as de Paulo, estando numa coleção que contém exclusivamente suas cartas, são intituladas por seus destinatários.10 Isto indica que o que hoje chamamos de Novo Testamento, este conjunto de três coleções (evangelhos, Atos-cartas apostólicas, cartas paulinas) mais o Apocalipse de João, foi desenhado como um conjunto usando critérios editoriais. Os papiros mais antigos, que abrangem mais de uma das coleções, já refletem estes critérios. Na prática, a coleção paulina já era um fato no final do século II, quando Ireneu escreve, ficando pendente apenas a inclusão da epístola aos Hebreus, que nos manuscritos será colocada depois de 2Tessalonicenses e antes de 1Timóteo. Para entender o desenvolvimento da coleção paulina é preciso recordar outro dado. Em quase todos os manuscritos, esta coleção vem depois das cartas católicas dos apóstolos, deixando assim Paulo como o último dos apóstolos, como ele mesmo reconheceu. Nossas bíblias modernas separaram as cartas apostólicas do livro dos Atos dos Apóstolos, certamente para destacar as cartas de Paulo. Pelo menos este foi o efeito. Não sei dizer quando se deu esta inversão, que altera a maneira em que são recebidas as duas coleções (Paulo e Católicas).

A pergunta que viemos nos fazendo ao longo de todo este ensaio é a passagem de cartas ocasionais dirigidas uma por uma a comunidades distintas em diversas cidades a uma coleção de epístolas que levam o poder e a autoridade de Deus como parte das Sagradas Escrituras. Agora queremos ver a última etapa deste processo cujos primeiros passos já observamos no exame das epístolas uma por uma e na vista geral que tivemos do processo de coleção das mesmas onde o título de cada uma é o nome da cidade dos destinatários. A última etapa é a incorporação da coleção na “Bíblia”, as Sagradas Escrituras com uma autoridade igual ou pouco menor que os livros de Moisés, de Davi ou de Salomão.

Costuma-se dar, neste processo final, um lugar privilegiado a Marcião. Marcião foi um empresário naval que chegou a Roma procedente do Ponto por volta do ano 140. Era um teólogo leigo com muita criatividade e com riqueza e experiência organizativa e administrativa. A sua teologia era claramente paulina, com ênfase marcante na graça de Deus, a tal ponto que negava o aspecto justiceiro do mesmo. A rejeição da lei, que aprendeu de Paulo, levou ao extremo de rejeitar a Moisés e, com ele, toda a Bíblia até esse momento usada pelas igrejas cristãs. Muitos cristãos das igrejas em Roma e, finalmente, de todo o mundo conhecido passou para igrejas marcionitas, onde as Sagradas Escrituras tradicionais foram substituídas por um cânon em duas partes, o Evangelho e o Apóstolo. Marcião foi um crítico literário, e tanto o seu Evangelho como seu Apóstolo eram versões de Lucas e da coleção paulina de onde tinham sido eli-

10 Para esta discussão dos critérios editoriais que se refletem nos antigos manuscritos do NT, ver David Trobisch, The First Edition of the New Testament (Nova York: Oxford University Press, 2000). Original alemão de 1996.

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minadas, como interpolações, as referências à Bíblia Hebraica e assuntos afins. A sua Bíblia pode ser parcialmente recuperada a partir do ataque que Tertuliano faz a ela em seus cinco livros Adversus Marcionem. Marcião foi muito convincente e, por um momento, pareceu que as igrejas marcionitas substituiriam as “apostólicas” devido ao imenso crescimento que tiveram. É que a sua teologia era simples e atraente: um Deus de amor e de graça que quer salvar todo pecador. Além disso, as suas Escrituras eram pequenas e acessíveis, sem as complicações da Bíblia Hebraica. Mas, para os efeitos de nosso ensaio, o realmente novo era que as Sagradas Escrituras eram cristãs, substituindo completamente as antigas escrituras dos judeus. É evidente, pela manipulação que Marcião fez, tanto de Lucas como das cartas paulinas, para eliminar os traços das Escrituras judias, que tinha consciência de estar inventando “suas” escrituras para sua igreja.

Um contemporâneo de Marcião foi Justino, que chegou a Roma procedente da Samaria como filósofo que procurava formar escola na grande cidade. Ali se tornou cristão e entre suas obras está um tratado Contra Marcião, hoje desaparecido mas mencionado por Eusébio (HE IV, 11). Justino, conhecido depois como o Mártir devido à morte que sofreu, ao contrário de seu contemporâneo do Ponto, só aceitou como Escritura a Bíblia dos judeus, que ele conheceu em grego, na tradução dos Setenta. Em suas Apologias,

Justino cita algumas vezes os evangelhos de Mateus e de Lucas como fonte dos ensinamentos de Jesus e de informação sobre a vida do Mestre, mas não como Escritura Sagrada. Fala deles como as memórias dos apóstolos e que se chamam evangelhos (I Apol. 66). Além disso, num dado sumamente valioso, somos informados que, nas reuniões dominicais dos crentes, costuma-se ler “as memórias dos apóstolos ou os profetas” (I Apol. 67). Depois uma pessoa comenta as leituras. Aqui nos dá uma janela para o processo mediante o qual a liturgia vai contribuindo para a sacralização dos textos narrativos dos evangelhos. No entanto, nunca, nos escritos de Justino Mártir que chegaram até nós, há uma citação ou uma referência às cartas de Paulo. À primeira vista se poderia pensar que não as conhecia, mas não pode ser assim. Se escreveu um tratado contra Marcião, evidentemente conhecia a Bíblia de Marcião, onde estas cartas desempenhavam um papel determinante. A solução da ausência de referências às cartas do apóstolo aos gentios está, sem dúvida, no género das obras de Justino que chegaram até nós. Uma, o Diálogo com Trifão, é um tratado contra o judaísmo onde, evidentemente, tem que argumentar com base nas Sagradas Escrituras reconhecidas pelos judeus, a Bíblia Hebraica. As outras são apologias escritas para o imperador, nas quais cartas de índole pastoral e teológica pouco teriam contribuído para o argumento. Justino Mártir, portanto, nos revela uma igreja que está ao ponto de reconhecer os escritos apostólicos como Sagrada Escritura e os usa em suas reuniões ao lado dos profetas da Bíblia Hebraica. Mas uma igreja que, como conjunto, não foi tão longe como Marcião ao abraçá-las como Palavra inspirada.

Com Ireneu, bispo de Lyon de 177 em diante, chegamos à conclusão de nossa investigação. IreneujátemSagradas Escrituras que incluem tanto a Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) como os escritos dos apóstolos (Novo Testamento). É o caminho que viemos fazendo até o cume. Sem dúvida, para o bispo, a base do Novo Testamento é a coleção de quatro evangelhos e o bispo pode dar razões para que tenham que ser quatro, nem mais nem menos (AH III, 11). No entanto, depois de apresentar cada um dos quatro evangelhos, quando Ireneu quer falar dos apóstolos, ficamos surpresos que conheça e utilize amplamente o livro dos Atos dos Apóstolos, até esta data praticamente desconhecido pelos escritores cristãos. A eles dedica o longo capítulo de Adversus Haereses 111,12. Depois passa a falar de Paulo, refutando desde o princípio a opinião

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de que somente Paulo, entre os apóstolos, tinha conhecimento da verdade, a ideia de Marcião (AH III, 13). Se perguntarmos pelas cartas paulinas nas Escrituras de Ireneu, responderemos que, embora não mencione uma coleção, cita todas elas menos 1Tessalonicenses, incluindo as três cartas pastorais e Hebreus. A ausência de 1Tessalonicenses nas citações provavelmente é acidental e sem importância.

E qual é a opinião de Ireneu sobre os escritos apostólicos? E como entram em sua defesa da igreja contra os hereges? Eis aqui uma expressão básica: “Porque não conhecemos a 'economia' de nossa salvação, a não ser por meio daqueles pelos quais chegou a nós o evangelho, o qual foi pregado, primeiro, e nos foi transmitido, depois, por vontade de Deus nas Escrituras” (AH III, prólogo). 11 Nesta afirmação sucinta devemos destacar a importância da cadeia conhecida de transmissores da tradição desde os apóstolos até a geração de Ireneu. É esta transmissão por uma corrente de pessoas conhecidas que garante a fidelidade do evangelho, das escrituras e das práticas eclesiais. É justamente isto que os hereges não têm. Diz, por exemplo, em AH 111,2,1: “De fato, quando se vêem convencidos pelas Escrituras, passam a acusar as próprias Escrituras, como se não fossem correias nem próprias para fazer autoridade e porque sua linguagem, segundo eles, é erro, seja porque, por elas sozinhas, não é possível que os que desconhecem a Tradição encontrem a verdade... É normal que, segundo eles, a verdade esteja ora em Valentim, ora em Marcião, ora em Cerinto, depois em Basílides, ou também em qualquer outro que sempre diz o contrário e jamais pôde pronunciar uma palavra proveitosa. Porque cada um deles está tão profundamente pervertido que corrompe a ‘regra da verdade’ e não se ruboriza de pregar a si mesmo” (AH 111,2,1). Vimos que, embora Marcião tenha sido o primeiro a reconhecer méritos de Sagrada Escritura a alguns livros apostólicos, teve a confiança suficiente em sua capacidade para corrigir estes livros antes de fazer com que circulassem entre suas igrejas. Não respeitou, diria Ireneu, a “regra da verdade” (ou regra da fé) que foi transmitida pelos apóstolos através de seus sucessores.

Portanto, para Ireneu, as Escrituras sem a autoridade dos apóstolos não valem nada. E esta autoridade e a regra que legaram a seus sucessores que permite confiar nas Escrituras, evidentemente as do Novo Testamento. Jesus deu este encargo aos apóstolos e eles, por sua vez, o legaram a seus sucessores nas várias igrejas que fundaram, cujos nomes são conhecidos. O próprio Ireneu se sente confiante porque recebeu a tradição de Policarpo, a quem os próprios apóstolos encomendaram a igreja de Esmirna, na Ásia (AH 111,3,4). Portanto, por si só, a Escritura não pode validar uma doutrina. A própria Escritura precisa ser validada pelos apóstolos e pela sucessão apostólica. Uma vez posto em seu lugar este cerco em redor das Escrituras dos apóstolos, Ireneu pode, sem medo, acrescentar às Escrituras do Antigo Testamento as do Novo Testamento. Pode assumir a genial ideia de Marcião sem abrir-se aos perigos de arbitrariedade que permitem a cada herege proclamar suas próprias doutrinas como avalizadas pelos escritos apostólicos.

Depois de Ireneu, a canonização do Novo Testamento é questão de detalhes: se Hebreus é parte da coleção paulina, se o Apocalipse de João, o Pastor de Hermas ou algum outro escrito são parte do legado dos apóstolos ou não. A aceitação das Sagradas Escrituras apostólicas é um fato que nunca mais foi questionado sem pôr em dúvida as Escrituras hebraicas recebidas dos Padres.

11 As citações de Ireneu são tomadas da tradução de Jesús Garitaonandia Churruca, Contra las herejías (Sevilla: Apostolado Mariano, sem data).