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1 AS LISTAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Nílvia Pantaleoni Introdução Escrever! Eu começo por onde? Por um tema e por um plano. E se não tenho um plano? Bem, só tenho um tema. Ou melhor, só tenho um assunto e acredito muito nele. O assunto que me interessa e que me proponho a tratar neste capítulo desta obra dedicada a aplicações das teorias do texto e da escrita a práticas de ensino de língua portuguesa nas últimas séries do Ensino Fundamental são as listas. Praticamente, não encontrei pesquisas relacionadas a elas. Por isso a minha aparente indecisão inicial. Mas, decididamente, quero tratar das listas, das enumerações de todos os tipos que recebem etiquetas como: lista telefônica, lista de espera, cardápio, rol, catálogo, inventário, sumário, índice. A lista dos tipos de “lista” é extensíssima. Meu primeiro argumento a favor das listas em sala de aula é um argumento de autoridade. Lista é um gênero textual empregado desde a mais remota antiguidade. Ainda em defesa da lista, recorro aos PCN. O negrito na citação destaca a “lista”. Um texto não se define por sua extensão. O nome que assina um desenho, a lista do que deve ser comprado, um conto ou um romance, todos são textos. A palavra “pare”, pintada no asfalto em um cruzamento, é um texto cuja extensão é a de uma palavra. O mesmo “pare”, numa lista de palavras começadas com “p”, proposta pelo professor, não é nem um texto nem parte de um texto, pois não se insere em nenhuma situação comunicativa de fato. (PCN. Primeiro e Segundo Ciclos: Língua Portuguesa, 1998:29) Para confirmar minha escolha, recorro novamente aos PCN que enfatizam os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem: Sem negar a importância dos textos que respondem a exigências das situações privadas de interlocução, em função dos compromissos de assegurar ao aluno o exercício pleno da cidadania, é preciso que as situações escolares de ensino de Língua Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada. (PCN. Terceiro e Quarto Ciclos: Língua Portuguesa, 1998:24) Finalizo minha introdução-justificativa, parafraseando as orientações dadas aos avaliadores das coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa, edição de 2014, pelo Programa Nacional do Livro Didático 1 (PNLD). Uma exigência ao tratamento que os autores devem dar à produção escrita refere-se à plausibilidade. As propostas de produção escrita não podem deixar de considerar a escrita como uma prática socialmente situada, propondo ao aluno condições plausíveis de produção do texto. O que é mais admitido, aceito e razoável que uma lista? 1 Guia de livros didáticos: PNLD 2014: língua portuguesa: ensino fundamental anos finais. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria

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AS LISTAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Nílvia Pantaleoni

Introdução

Escrever! Eu começo por onde? Por um tema e por um plano. E se não tenho um plano? Bem, só tenho um tema. Ou melhor, só tenho um assunto e acredito muito nele. O assunto que me interessa e que me proponho a tratar neste capítulo desta obra dedicada a aplicações das teorias do texto e da escrita a práticas de ensino de língua portuguesa nas últimas séries do Ensino Fundamental são as listas. Praticamente, não encontrei pesquisas relacionadas a elas. Por isso a minha aparente indecisão inicial. Mas, decididamente, quero tratar das listas, das enumerações de todos os tipos que recebem etiquetas como: lista telefônica, lista de espera, cardápio, rol, catálogo, inventário, sumário, índice. A lista dos tipos de “lista” é extensíssima. Meu primeiro argumento a favor das listas em sala de aula é um argumento de autoridade. Lista é um gênero textual empregado desde a mais remota antiguidade. Ainda em defesa da lista, recorro aos PCN. O negrito na citação destaca a “lista”.

Um texto não se define por sua extensão. O nome que assina um desenho, a lista do que deve ser comprado, um conto ou um romance, todos são textos. A palavra “pare”, pintada no asfalto em um cruzamento, é um texto cuja extensão é a de uma palavra. O mesmo “pare”, numa lista de palavras começadas com “p”, proposta pelo professor, não é nem um texto nem parte de um texto, pois não se insere em nenhuma situação comunicativa de fato.

(PCN. Primeiro e Segundo Ciclos: Língua Portuguesa, 1998:29)

Para confirmar minha escolha, recorro novamente aos PCN que enfatizam os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem:

Sem negar a importância dos textos que respondem a exigências das situações privadas de interlocução, em função dos compromissos de assegurar ao aluno o exercício pleno da cidadania, é preciso que as situações escolares de ensino de Língua Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada.

(PCN. Terceiro e Quarto Ciclos: Língua Portuguesa, 1998:24)

Finalizo minha introdução-justificativa, parafraseando as orientações dadas aos avaliadores das coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa, edição de 2014, pelo Programa Nacional do Livro Didático1 (PNLD). Uma exigência ao tratamento que os autores devem dar à produção escrita refere-se à plausibilidade. As propostas de produção escrita não podem deixar de considerar a escrita como uma prática socialmente situada, propondo ao aluno condições plausíveis de produção do texto. O que é mais admitido, aceito e razoável que uma lista?

                                                                                                               1 Guia de livros didáticos: PNLD 2014: língua portuguesa: ensino fundamental anos finais. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria

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1. A profusão de listas

Acredito que o gênero textual escrito que tenha mais circulação atualmente seja a lista. Além de atualíssimas, elas, as listas, existem há muitos séculos. Provavelmente, as primeiras tabuletas de argila na antiga Babilônia serviram de suporte para os códigos em forma de listas enumerativas que forneciam a base das leis e para as listas de bens e mercadorias que circulavam para a garantia da posse dos ricos comerciantes. Mais adiante, proponho uma atividade de produção textual que parte de uma lista de soluções para a falta de dinheiro criadas pelo Homem Mais Rico da Babilônia2. A função básica das listas escritas é mnemônica. Na verdade, também elaboramos e reelaboramos incessantemente listas mentais. Seu papel parece ser o de organizar nossos espaços mentais, numa incessante mudança da hierarquização que fazemos de nossas necessidades. Um anseio que sempre nos persegue é de estabelecer e organizar prioridades. O interessante é que a lista que representa um acúmulo tende à eliminação item por item e só ficamos satisfeitos quando ela é totalmente finalizada. Em muitos casos, a eliminação do último item da lista coincide com a finalização de um trabalho, de um projeto, de uma atividade qualquer. E a sensação é de alívio. Existem listas que são perenes, outras que são descartáveis; existem listas curtas e listas intermináveis. Existem listas de palavras e listas de enunciados. As palavras, mesmo dispostas verticalmente – que é sua feição mais comum – guardam entre si uma coerência clara porque toda lista que se preze é pragmática, utilitária e seu contexto preenche e transborda seus limites. No dia a dia, duas listas sobressaem: a lista de tarefas e a lista de compras. Parecem simples, mas não são. As duas são exemplos da exigência de um princípio que as rege e de uma estrutura visível. O princípio é o da necessidade e a estrutura é vertical. Mais um motivo para confirmar que a lista, qualquer que seja, não é um amontoado de palavras sem nexo. Por menos índices visíveis que apresentem, toda lista que se preze tem coesão e coerência. Quando a secretaria da escola elabora as listas com os nomes dos alunos de cada turma, de cada ano, de cada curso, ela emprega princípios de organização tanto da forma quanto do conteúdo. Esses princípios são materializados em critérios. Por exemplo, a lista de uma turma deve seguir a ordem alfabética; a lista deve ter entre 30 e 40 nomes; a lista não pode incluir nomes de irmãos; e por aí vão as exigências. É claro que atualmente é possível alimentar um programa de computador com os dados de todos os alunos para gerar essas listas. O professor, no entanto, quando as recebe, pode ter uma surpresa desagradável ao ver que dois ou três alunos que deveriam ficar em turmas diferentes estão juntos prometendo dissabores, pois são potencialmente elementos perturbadores das aulas. É verdade! Não existe lista perfeita! É enorme a extensão dos tipos de listas que circulam nas diversas esferas. Como exemplo, só na esfera do poder judiciário existem listas extensíssimas de precatórios, processos penais, processos civis. Os próprios códigos e toda produção escrita impressa, nessa e em outras esferas, se organizam por meio de sumários e índices, ou seja, por meio de listas. A lista mais extensa que existe é a lista das palavras nos dicionários e nas enciclopédias. Tema para ser explorado em outra oportunidade. Mais uma esfera para ressaltar a importância das listas: a científica. Todo saber científico se organiza por taxionomias, ou seja, por listas que distinguem e sistematizam a nomenclatura de grupos típicos dentro de um campo científico. A esfera burocrático-administrativa é a campeã das listas, e é preciso reconhecer que muitas delas não nos são simpáticas. Fugimos da lista de devedores do Serasa e sonhamos com a lista quase inatingível dos ganhadores dos prêmios da Loteria Federal.

                                                                                                               2 CLASON, G. S. O homem mais rico da Babilônia. Tradução de Luiz Cavalcanti de M. Guerra. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

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O princípio maior que rege as listas é o da seleção. Mesmo as listas aparentemente aleatórias como os inventários que reúnem elementos díspares, selecionam. É o princípio organizador da seleção que garante a coerência das listas. E toda seleção é situada, é contextualizada, é pragmática. Grandes poetas elaboraram poemas-inventários, poemas-listas. Manoel de Barros3 sirva de exemplo:

O efeito-lista também está presente em muitas crônicas. O que se diz4, de Drummond (1985:103), começa assim: “Que frio! Que vento! Que calor ! Que caro! Que absurdo! Que bacana! Que tristeza! Que tarde! Que amor! Que besteira!”

Ainda é preciso tratar do acervo e do catálogo. Acervo de acordo com o Houaiss5 significa grande quantidade, montão, acúmulo de coisas. Por extensão, é o conjunto de bens que integram o patrimônio de um indivíduo, de uma instituição, de uma nação. Pois bem, o grande bibliófilo brasileiro José Mindlin e sua mulher, Guita, doaram toda sua biblioteca para a USP que recebeu o nome de Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. No catálogo digital da BBM, constam cerca de 3.000 títulos disponíveis para livre acesso. O site6 disponibiliza diferentes tipos de materiais que abordam temas variados da história do Brasil. As coleções de livros de literatura e de história, mapas, iconografias, e uma coleção de periódicos dos séculos XIX e XX são particularmente significativos. Observem quantas coisas diferentes, mas interligadas existem neste acervo. O pesquisador pode consultar os livros no próprio site ou fazer o download. Basta consultar o catálogo. Aliás, catálogo é

                                                                                                               3 BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. 4 ANDRADE, C. D. O poder ultrajovem. Rio de Janeiro: Record, 1985. 5 Houaiss.uol.com.br. 6 http://www.brasiliana.usp.br/

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uma palavra de origem grega que significa lista ou fichário em que se relacionam, de maneira ordenada, os livros e documentos diversos de uma biblioteca. Para finalizar esta parte, trago pequenos trechos de um dos inventários que mais me emocionam. Encontrei o tomo I das Obras Poéticas de Cláudio Manoel da Costa no catálogo digital da BBM. Trata-se da lista dos bens do poeta inconfidente Cláudio Manoel da Costa7 que foram confiscados quando ele foi preso acusado de traição ao regime português. Alguns dias depois, o poeta aparece enforcado em sua cela. A seguir, a cópia fac-símile da capa do livro e um pequeno excerto do inventário dos bens sequestrados:

                                                                                                               7 Estes documentos foram copiados dos do Arquivo Público do Rio de Janeiro e publicados na forma em que estão pela Revista do Instituto Histórico no tomo LIII, 1ª

parte; Rio, 1890.

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As listas mais prosaicas não são menos importantes. Como você faz sua lista de compras de supermercado? Existem vários critérios. Por exemplo: Passear pelo cômodos da casa ou do apartamento e verificar o que acabou. Na cozinha, abrir os armários e a geladeira; no banheiro e na lavanderia, fazer a mesma coisa. Posso ter uma listinha previamente preparada onde vou ticando o que preciso e acrescentando novos itens. É importante definir o que comprar, onde comprar e quanto gastar. Preocupações rotineiras de uma lista de compras. Outra lista famosa nos dias de hoje é a lista de presentes de casamento. Quem já não sentiu um frio na barriga ao clicar no(s) site(s) da(s) loja(s) escolhida(s) pelos noivos? Esta é uma lista de desejos para os convidados-gênios da lâmpada. Tudo isso que estou apontando para meus leitores é só aparentemente leviano, no entanto pode se transformar em atividades de redação bem interessantes para os alunos. As listas são ponto de partida ou ponto de chegada de muitas produções textuais individuais ou em grupo. Volto a tratar disso mais adiante. Antes, os conceitos para subsidiar as atividades que proponho na última parte deste capítulo.

2. Intertextualidade, paráfrase e enumeração O conceito de intertextualidade, como o próprio nome indica, diz respeito à relação que se estabelece entre textos. Se examino de perto, verifico que os textos mais antigos vão sendo absorvidos e transformados em textos que se atualizam principalmente quanto ao estilo. São textos com novas roupagens, novos adereços. Frequentemente, são textos menores que os que lhes deram origem. Os textos mais antigos são matrizes de outros textos mais recentes: os textos derivados. Textos literários exemplares são matrizes de muitos textos derivados. Quando me apodero desses textos para transformá-los em novos textos, estou empregando a paráfrase. Meserani8 trata de modo bem didático de dois tipos de paráfrase: a reprodutiva e a criativa.

A paráfrase reprodutiva é a que traduz em outras palavras um outro texto, de modo quase literal. É o que faço aqui ao tratar da paráfrase. Não crio nada, baseio-me em Meserani que, por sua vez, baseou-se em Sant´Anna9 que certamente baseou-se em autores mais antigos, o que não lhe nega a autoria do texto. Não posso ser criativa, posso ser enfática em alguns aspectos e reduzir e anular outros que não me interessam quando estou reproduzindo o texto de outros autores. O importante é que não deixo de citá-los. A paráfrase reprodutiva é uma atividade recorrente nas aulas de qualquer matéria na medida em que os alunos precisam fixar, expandir e sintetizar textos básicos passando a entendê-los de tal forma que os incorporam absorvendo definições, conceitos e estruturas, ferramentas básicas para a aquisição do conhecimento em qualquer área.

Já, a paráfrase criativa é libertadora, ela ultrapassa os limites do texto original, matriz, e parte para voos próprios (rasantes ou de longo alcance) dependendo do parafraseador. Há paráfrases criativas maravilhosas e, muitas outras, a maioria, de valor passageiro. São exercícios cotidianos que todos fazemos. Ninguém resiste a parafrasear provérbios, por exemplo. O fundamental na paráfrase criativa é o desdobramento do texto matriz que se expande em novos significados em novos contextos, em novas situações comunicativas.

A intertextualidade não pode ser confundida com a simples cópia, muito menos com o plágio. Antigamente, antes do advento da imprensa, existia a profissão de copista. O que se passava em sua cabeça enquanto copiava os textos encomendados, não posso imaginar, mas é provável que a sua cópia, depois alguns exemplares feitos, se tornasse automática. Posso compará-lo à figura do antigo projetista de filmes que, depois de passar a fita dez vezes não prestava mais atenção a ela, ficando sua mente ocupada com outros pensamentos. Hoje,

                                                                                                               8  MESERANI,  S.  C.  O  intertexto  escolar:  sobre  leitura,  aula  e  redação.  São  Paulo:  Cortez,  1995.  9  SANT´ANNA,  A.R.  Paródia,  paráfrase  e  Cia.  São  Paulo:  Ática,  1989.  

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mesmo não sendo copistas, temos a sensação de estarmos fadados à cópia, pois parece que tudo já foi dito, já foi escrito e temos o temor de, ao escrever, não estarmos sendo autênticos, pela nítida sensação de que alguém já disse aquilo que pretendemos expressar. É aqui que entra a novamente a questão da intertextualidade, quer dizer, o que existe, na realidade, é que não podemos fugir de todo conhecimento de textos que fomos acumulando durante a vida. Quando nos dispomos a escrever sobre determinado assunto, tudo o que já lemos sobre ele é ativado por nossa memória, como se ela funcionasse como um grande hipertexto, ficando em sinal de alerta, e acabamos por dialogar com todos esses textos ao escrevermos o nosso.

Vale ainda a pena tratar da paródia. Ela nada mais é do que a paráfrase brincalhona, irreverente, sem compromisso com a verdade, sempre relacionada com situações comunicativas recorrentes e conhecidas e com propósitos muitas vezes ferinos. O estilo de muitos jornalistas, além de parafrástico, é também entremeado de paródias. A paródia pode ser uma imitação cômica de uma composição literária como é o caso do soneto de Juó Bananere10, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, que dialoga de modo bem humorado com o famoso soneto Via Láctea de Olavo Bilac11.

Finalmente, a enumeração. É forma de organização das listas. Para a retórica clássica, a enumeração é um recurso que consiste na adição de coisas relacionadas entre si. Quando as coisas enumeradas aparentemente não se relacionam, a enumeração toma o nome de inventário. Não existem pesquisas aprofundadas, na linguística textual, sobre a enumeração. Já a linguística de base cognitiva12 reconhece dois tipos: enumeração homogênea e enumeração heterogênea. A enumeração homogênea caracteriza-se por uma estrutura de

                                                                                                               10 Extraído de "Antologia de Humorismo e Sátira". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1957, pág. 305, seleção de R. Magalhães Júnior. Fonte:  http://www.releituras.com/juobananere.  Acesso  em  21/10/2014.  11 BILAC, O. Poesias, 1888. Fonte: http://www.academia.org.br/. Acesso em 21/10/2014. 12 YURYEVNA, A. M. Enumeration in short stories of w.s. maugham: cognitive approach. SECTION 29. Literature. Folklore. Translation. Studies. «Theoretical &Applied Science». Taras Shevchenko. National University of Kyiv, Ukraine, 2013. Fonte: www.T-Science.org. Acesso em 21/10/2014.  

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três elementos e é recorrente principalmente na descrição de seres e de coisas. Por exemplo: José, triste, cabisbaixo e com ar de poucos amigos, saiu do cinema e caminhou em direção do estacionamento quando foi abordado por dois desconhecidos.

A enumeração heterogênea caracteriza-se por uma estrutura com um número maior de elementos de diferentes classes. O inventário é uma enumeração heterogênea. O Protocolo Vegetal, de Manoel de Barros e o Treslado do sequestro feito aos bens do doutor Cláudio Manoel da Costa são exemplos de enumerações heterogêneas. Mesmo apresentando elementos de diferentes classes, as enumerações heterogêneas têm sua coerência garantida, pois participam de campos semânticos organizados pelo autor e reconhecido pelos leitores. O início de um poema de Jacques Prévert13 serve de ilustração:

Ainda existe o recurso da enumeração na organização dos textos. Esta, sim, é tratada pela linguística textual. Adam14, em uma obra básica, trata dos organizadores enumerativos, classificando-os em aditivos: por exemplo, e, ou, também, assim como, ainda, igualmente, além disso; e marcadores de integração linear que abrem uma série: por exemplo, de um lado, inicialmente, primeiramente; que indicam a continuidade de uma série: por exemplo, em seguida, depois, em segundo lugar; e que fecham uma série: por exemplo, por outro lado, enfim, finalmente, concluindo, para terminar. As listas mais simples podem ser organizadas numericamente. É o caso das listas com até dez partes. 1.2.3.4. Muitas vezes, são usados os ordinais. 1º. 2º. 3º Primeiro, Segundo, Terceiro. Nas listas mais simples, existe ainda a opção pelas letras do alfabeto. a) b) c). E assim por diante. Existem modelos para as listas mais complicadas, como é o caso do sumário onde existem partes submetidas a partes maiores. A hierarquia entre as partes pode ser representada por números e letras. 1. 1.a 1.b 1.c 1d. 2. 2.a 2.b 2.c.

Falta tratar das atividades com listas nas aulas de língua portuguesa. As propostas a seguir são de vários níveis de dificuldade. Mas todas são adequadas para as últimas séries do Ensino Fundamental.

3. As listas nas aulas de língua portuguesa

As atividades de produção escrita com listas são simples e motivadoras. Na maioria das vezes, a lista é o ponto de partida, mas também pode ser o produto final da atividade. Entre tantas possibilidades destaco quatro: a lista do censo e o google; o poema-inventário e a paráfrase reprodutiva; sete soluções, sete paráfrases reprodutivas e a paráfrase criativa; o diário e o conto policial.

3.1 A lista do Censo e o Google

Tive a ideia da atividade quando pesquisava o site do PNLD. Eu procurava informações a respeito das orientações dadas pelos especialistas aos autores de livros didáticos a respeito das produções escritas. Esbarrei na página que trazia a lista das escolas estaduais de todas

                                                                                                               13 PRÉVERT, J. Paroles. Paris: Gallimard, 1949. 14 ADAM, Jean-Michel. Théorie et pratique de l´analyse textuelle. Bruxelles: Mardaga, 1996.

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as cidades de todos os estados da federação. Fui levada a clicar no link SP, pois tive curiosidade por saber o número de escolas estaduais por cidade. Como existem cidades pequenas, médias, grandes e metrópoles, perdi-me na lista imensa, no formato Excel, do Censo de 2012 que elencava todas as cidades em ordem alfabética. Tomei a decisão de levantar apenas as cidades que tivessem uma única escola estadual. A partir deste critério, comecei a ler, linha a linha os nomes das pequeninas cidades perdidas entre as outras. Isso já constituiu uma alegria, pois amo os nomes das cidades, acho fantástica a imaginação dos habitantes que as denominaram. Quando cheguei à letra C, já tinha uma interessante lista com nomes variadíssimos. Só a pesquisa do léxico proporcionaria atividades interessantes. Cidades com nomes de elementos naturais, com nomes indígenas, com nomes de habitantes ilustres, tudo misturado. Uma atividade possível é a separação das cidades por tipos de nomes. Mas minha proposta aqui é outra. O professor apresenta este pequeno recorte do censo escolar (ver quadro a seguir) e propõe que cada aluno selecione duas cidades da lista, preferencialmente, duas cidades das quais nunca tenha ouvido falar. Se os alunos preferirem (e, pela experiência que tenho, eles preferem), os nomes das cidades são sorteados.

O passo seguinte fica condicionado à possibilidade de aula no laboratório de informática ou na casa do aluno que deve fazer uma visita virtual às duas cidades selecionadas usando o Google Mapas, na Internet. Os dados que o aluno achar interessantes das duas cidades servem de material para a primeira produção escrita: duas propagandas para divulgar o que cada cidade oferece para o turista, apesar de ser tão pequena. A atividade pode se encerrar na aula seguinte com um “programa de televisão” quando os alunos-apresentadores têm, em média, três minutos cada um para divulgar a cidade que achou mais interessante. É claro que a ordem da apresentação das cidades deve ser pela ordem alfabética.

Posso desdobrar a atividade em mais uma produção escrita. O aluno deve estabelecer uma rota entre as duas cidades que lhe coube. Para isso, volta a pesquisar, na Internet, a localização das duas cidades, as possibilidades de locomoção, as rodovias, as paradas, o

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tempo de viagem. Se, por sorte, lhe coube duas cidades vizinhas, ele pode trocar uma cidade com outro colega. Com o material da pesquisa, o aluno monta um roteiro de uma cidade a outra, descrevendo três momentos interessantes da viagem como, por exemplo, parques florestais, rios, sítios pitorescos, paradas para descanso, a situação da rodovia. Finalmente, posso combinar com o professor de geografia uma aula conjunta para se debater as vantagens e desvantagens da vida nas pequenas cidades do interior de São Paulo que os alunos pesquisaram.

3.2 O poema-inventário e a paráfrase reprodutiva

O texto acima, Talismãs15, de Jorge Luís Borges, é um estranho poema que apresenta um inventário de elementos aparentemente díspares, numa enumeração heterogênea. A sugestão é a expansão desse poema-inventário, ou seja, o aluno deve elaborar uma paráfrase reprodutiva, inserindo em cada verso a definição do elemento em questão. Para isso, duas obras de referência devem ser consultadas: o dicionário e a enciclopédia. No primeiro, os nomes comuns; no segundo, os nomes próprios.

O passo seguinte é a leitura em voz alta, de cada verso expandido pelos alunos. Assim: o um aluno lê a expansão que fez do primeiro verso; em seguida, o aluno que tiver feito uma expansão diferente lê a sua expansão do mesmo verso. Até que todos as expansões de todos os versos sejam lidas e comentadas. Mais uma sugestão. Partindo da suposição de que todos temos talismãs. O professor pode solicitar que seus alunos enumerem, em forma de lista, pelo menos sete talismãs, criando seu poema-inventário por meio de uma paráfrase criativa.

                                                                                                               15 BORGES, J.J. Rosa Profunda. In Obras Completas III. São Paulo: Globo, 1999.

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3.3 Sete soluções, sete paráfrases reprodutivas e a paráfrase criativa

Há alguns anos, encontrei um livro16 muito interessante que cuja história se situava na antiga Babilônia. Nele, um rico homem dá conselhos financeiros aos seus contemporâneos. Numa determinada parte, ele apresenta sete soluções para quem deseja enriquecer. Depois de apresentar cada uma das soluções de modo injuntivo, o homem a ilustra com uma história e finaliza parafraseando a solução. Pensei: isso pode ser interessante para uma proposta de redação. Apesar de tudo se passar na Babilônia, (ou justamente pelo fato de se passar num lugar distante no tempo e no espaço e fazer parte do nosso imaginário) o que era verdadeiro há tantos séculos continua sendo verdade hoje. Esta atividade de produção de paráfrase criativa divide-se em duas partes. Na primeira, basta ler as sete soluções e ligá-las às paráfrases reprodutivas correspondentes da coluna ao lado. Isso para que o aluno tenha condições de escolher, com mais segurança, duas soluções e criar uma história, unindo as duas e provando que são soluções efetivas. A história criada a partir das duas soluções é uma paráfrase criativa.

A seguir, o quadro com as sete soluções. Se fossem seguidas, mudariam a vida de muita gente. Mas isso é outra história!

3.4 O diário e o conto policial

Esta é uma atividade mais adequada para o último ano do Ensino Fundamental. Já coloquei em prática esta proposta de produção escrita a partir de uma lista e garanto que, se o professor souber contar com a simpatia da classe para as atividades individuais e em grupo que compõem a proposta, todos vão tirar bastante proveito e se divertir muito.

                                                                                                               16 Vide nota 2.

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Em primeiro lugar, o professor vai propor uma lição de casa inusitada para seus alunos na última aula da semana. Para tanto, ele entrega, em papel sulfite A4, frente e verso, um quadro parecido com este:

FRENTE VERSO

nome:..........................................................................

HORA SÁBADO HORA DOMINGO

8 8

9 9

10 10

11 11

12 12

13 13

14 14

15 15

16 16

17 17

18 18

19 19

20 20

21 21

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O professor combina o seguinte: todos devem durante o final de semana marcar com muita precisão tudo o que fizeram, hora a hora. Quando duas coisas importantes acontecerem numa mesma hora, é preciso marcar as duas. Quando os alunos perguntarem o motivo, o professor diz que é preciso confiar nele e que na primeira aula da semana, quando eles entregarem a atividade, vão entender o motivo.

Em segundo lugar, na primeira aula da semana, o professor recolhe as listas das atividades do fim de semana. Assim que terminar, ele recorta o nome do aluno, coloca um código qualquer na tira com o nome e na folha com as listas. As listas ficam dessa forma sem identificação.

Em terceiro lugar, (nesse momento os alunos já estão curiosos) o professor pede para que os alunos formem grupos de quatro a cinco participantes. Ou ele mesmo estabelece os grupos. É o momento de o professor apresentar a proposta. A produção em grupo de um conto policial em que acontece um crime misterioso que deverá ser solucionado por um detetive. Os suspeitos do crime são interrogados pelo detetive. Na última parte do conto,

Page 12: AS LISTAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Introdução · Intertextualidade, paráfrase e enumeração O conceito de intertextualidade, como o próprio nome indica, diz respeito à

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deve ser recriada a clássica cena das histórias policiais: todos os suspeitos reunidos numa sala na presença do detetive que revela quem é o criminoso. Apresentada a proposta, o professor, tomando o cuidado de não entregar as listas das atividades do fim de semana para os próprios participantes do grupo, faz a distribuição das mesmas para os grupos, revelando que está entregando os interrogatórios dos suspeitos do crime que eles vão criar e desvendar. É preciso deixar claro que as listas que os alunos recebem são a base para a criação dos personagens suspeitos do crime e que, um deles, o criminoso, está mentindo quando diz ter feito tal coisa na hora do crime. Quer dizer que as listas são essenciais para a montagem do enredo do conto policial.

A redação do conto demora algumas aulas. O professor, com a concordância dos alunos, pode auxiliar na construção das cenas e dos personagens. Ele deve ficar atento principalmente em relação à verossimilhança. Finalmente, os contos são digitados, revisados pelos autores com a ajuda do professor e distribuídos para classe. A partir da socialização dos contos e a consequente descoberta de como as listas foram utilizadas, organiza-se uma discussão a respeito dos pontos fortes e dos pontos fracos da atividade.

Considerações Finais

Escrevi sobre um tema que considero fascinante. Muita coisa ainda dá para se tratar nas aulas de língua portuguesa (e também de outras disciplinas) a respeito das listas. É evidente que lista é um nome genérico, é um hiperônimo. Posso fazer uma lista de muitos de seus hipônimos. Mas, fiquem tranquilos. Deixo isso por conta de cada um. Só espero ter contribuído com a lembrança de um gênero tão singelo, mas que pode ser o ponto de partida para muitas atividades de produção textual. Sua presença é tão pervasiva que, nessa nova era digital, a lista impera na organização hipertextual desses novos espaços, ganhando novas configurações reticulares que têm contribuído para o armazenamento, organização e divulgação das informações de todas as esferas de produção e de comunicação do conhecimento.

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