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As ONGS e a Educação Sérgio Haddad* O início dos trabalhos das ONGs com a educação A atuação das ONGs de desenvolvimento no campo da educação não é novo. Aliás, este envolvimento está na razão mesma do seu nascimento. Nos anos 60 e 70, um conjunto de pequenas organizações constituídas por grupos de pessoas oriundas dos setores progressistas das igrejas, dos partidos políticos e das Universidades, organizam-se em entidades - associações civis sem fins lucrativos - para se dedicar ao trabalho social junto aos setores mais pobres da população do Brasil. Estávamos em plena vigência do regime militar, implantado em março de1964 encerrando um período de intensa mobilização social envolvendo diversos setores da sociedade e onde a disputa sobre o modelo de desenvolvimento e o tipo de sociedade a se constituir no Brasil esteve em pauta. Tais organizações tinham como missão principal a reconstrução do tecido social que havia se rompido com a ditadura, a defesa dos direitos humanos e a educação popular. O que se buscava com estes processos educativos era contribuir para a ampliação da compreensão que a população pobre tinha das suas condições de vida, discutindo as suas causas, visando uma atuação crítica na sociedade. A Igreja Católica foi um dos espaços mais importantes onde os trabalhos de ação junto aos grupos populares, com as características acima descritas, ocorriam. Ali, os processos educativos baseavam-se na leitura dos textos bíblicos, adaptando-os à realidade do momento, sob a perspectiva da Teologia da Libertação. As famosas Comunidades Eclesiais de Base eram grupos de ação pastoral e de educação popular. A reflexão sobre a realidade não ficava restrita apenas a um processo de conhecimento. Ao contrário, o contato direto com a realidade para identificar os problemas ali existentes, determinava, após análise de suas causas, uma intervenção concreta. Este trabalho tinha por objetivo transformar a realidade, visando a superação dos problemas e a construção de condições de vida mais justas. Neste sentido, a prática educativa era ao mesmo tempo uma prática de organização e mobilização da sociedade. Como se pode imaginar, o trabalho desenvolvido não tinha uma visibilidade pública. Era um trabalho militante, realizado com grupos comunitários, que se desenvolvia em um contexto de sigilo e sob o silêncio da censura e da repressão impostas pelo regime militar. Outra característica destes trabalhos iniciais de envolvimento das ONGs

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As ONGS e a Educao

As ONGS e a Educao

Srgio Haddad*

O incio dos trabalhos das ONGs com a educao

A atuao das ONGs de desenvolvimento no campo da educao no novo. Alis, este envolvimento est na razo mesma do seu nascimento. Nos anos 60 e 70, um conjunto de pequenas organizaes constitudas por grupos de pessoas oriundas dos setores progressistas das igrejas, dos partidos polticos e das Universidades, organizam-se em entidades - associaes civis sem fins lucrativos - para se dedicar ao trabalho social junto aos setores mais pobres da populao do Brasil.

Estvamos em plena vigncia do regime militar, implantado em maro de1964 encerrando um perodo de intensa mobilizao social envolvendo diversos setores da sociedade e onde a disputa sobre o modelo de desenvolvimento e o tipo de sociedade a se constituir no Brasil esteve em pauta.

Tais organizaes tinham como misso principal a reconstruo do tecido social que havia se rompido com a ditadura, a defesa dos direitos humanos e a educao popular. O que se buscava com estes processos educativos era contribuir para a ampliao da compreenso que a populao pobre tinha das suas condies de vida, discutindo as suas causas, visando uma atuao crtica na sociedade.

A Igreja Catlica foi um dos espaos mais importantes onde os trabalhos de ao junto aos grupos populares, com as caractersticas acima descritas, ocorriam. Ali, os processos educativos baseavam-se na leitura dos textos bblicos, adaptando-os realidade do momento, sob a perspectiva da Teologia da Libertao. As famosas Comunidades Eclesiais de Base eram grupos de ao pastoral e de educao popular.

A reflexo sobre a realidade no ficava restrita apenas a um processo de conhecimento. Ao contrrio, o contato direto com a realidade para identificar os problemas ali existentes, determinava, aps anlise de suas causas, uma interveno concreta. Este trabalho tinha por objetivo transformar a realidade, visando a superao dos problemas e a construo de condies de vida mais justas. Neste sentido, a prtica educativa era ao mesmo tempo uma prtica de organizao e mobilizao da sociedade.

Como se pode imaginar, o trabalho desenvolvido no tinha uma visibilidade pblica. Era um trabalho militante, realizado com grupos comunitrios, que se desenvolvia em um contexto de sigilo e sob o silncio da censura e da represso impostas pelo regime militar.

Outra caracterstica destes trabalhos iniciais de envolvimento das ONGs com a educao era o fato de que tais processos educativos eram absolutamente desligados dos processos oficiais, ou seja, dos sistemas pblicos de ensino. Em funo do regime autoritrio, havia muito pouca opo de trabalho crtico dentro destes sistemas de ensino e nas escolas. As orientaes das teorias educacionais crticas viam o trabalho com os sistemas de ensino como reprodutor das ideologias dominantes e muito mais afeito a manter as relaes de classe existentes do que a produzir uma nova ordem social. Eram os tempos da sociologia reprodutivista onde as escolas, consideradas como aparelhos ideolgicos do Estado, eram vistas como instncias de manuteno e reforo das condies de vida da populao empobrecida em sociedades capitalistas como a brasileira.

Naqueles tempos, as ONGs tinham o seu trabalho quase que exclusivamente voltado ao apoio das pastorais sociais da Igreja Catlica, atravs de aes junto s suas comunidades, orientadas pelas decises progressistas do Conclio Vaticano II e por opes de trabalhos do clero progressista. As temticas variavam em funo das necessidades definidas pelos prprios grupos populares: sade, moradia, analfabetismo, produo, organizao, etc.

Os processos educativos sofriam grande influncia do pensamento pedaggico desenvolvido no perodo anterior ao golpe, durante os primeiros anos da dcada de 60, quanto s idias do educador brasileiro Paulo Freire se disseminaram junto s centenas de experincias de educao popular, denominados como movimentos de cultura popular. Estas experincias uniam a poltica com manifestaes culturais como teatro, msica, poesia e outros. Era um trabalho educativo, construdo junto com as comunidades carentes, a partir das suas tradies e que se espalharam por todo o pas.

Em linhas gerais, tais orientaes pedaggicas se pautavam na idia de que os grupos populares detinham um saber particular, que era produzido a partir das suas condies de vida, e que os processos educativos ocorriam a partir do encontro entre estes saberes e os saberes dos educadores. Isto se dava atravs do dilogo entre o educador e o educando tomando como base o estudo da realidade local, voltado para a transformao das condies de vida desta populao empobrecida. A misso destes educadores no se realizava descolada de uma intencionalidade poltica.

O perodo de democratizao da sociedade brasileira

Ao chegarmos no final da dcada de setenta e incio dos anos oitenta, dois fatores marcaram o trabalho educativo desenvolvido por este modelo de ONGs. Um deles foi o crescimento de trabalhos sociais, no campo da sociedade civil para alm das pastorais da Igreja Catlica. Estes novos espaos, muitas vezes produzidos pela prpria atuao das pastorais, ao tornarem-se independentes da sua influncia, mostravam uma nova complexidade dos atores sociais brasileiros. Eram os movimentos de bairros, as associaes de moradores e organizaes populares; os movimentos sindicais autnticos que se constituam a margem do movimento sindical oficial; os movimentos de mulheres; o movimento negro; os movimentos autnomos de luta por moradia, terra e trabalho.

Estes novos movimentos sociais e populares davam uma nova conformidade sociedade civil. O trabalho das ONGs passou a se realizar tambm junto a tais movimentos, apoiando-os na sua organizao e mobilizao, como tambm no seu trabalho educativo. As experincias de educao popular produzidas pelas ONGs, neste segundo momento, no se ativeram apenas s questes materiais de produo e reproduo da vida, voltaram-se tambm para os temas relativos ao plano cultural e simblico, como as relaes sociais de gnero, etnia e raa. Assim, ao trabalhar com tais movimentos, as ONGs agregavam condio de pobreza e classe os fatores relativos ao universo da produo cultural e simblica.

Todos este novos movimentos sociais contriburam significativamente, atravs das suas lutas e demandas, para o processo de redemocratizao da sociedade brasileira, e com a volta do poder civil.

Outro fator que influenciou o trabalho educativo das ONGs foi a luta pela construo de um ensino pblico e de qualidade para a maioria da populao. Com a democratizao da sociedade o prprio movimento social colocou entre as suas demandas a questo da escola pblica como prioridade visando o fortalecimento dos grupos populares. Ler, escrever, contar e se apropriar dos conhecimentos, que estavam disponveis para os outros grupos sociais, eram demandas daqueles que no tinham acesso aos servios de escolarizao. Isto j se mostrava claro nos inmeros trabalhos de escolarizao popular, como programa de alfabetizao de adultos, creches, escolas comunitrias, desenvolvidos ou apoiados pelos movimentos sociais, sindicatos e ONGs.

Ao mesmo tempo, havia tambm uma outra presso vindo do prprio Estado. Com a democratizao, muitos atores sociais que antes estavam trabalhando no campo da sociedade civil, em trabalhos de educao popular desenvolvidos pelas ONGs e pelos movimentos sociais, foram trabalhar em governos populares, no sistema pblico de ensino. Ali, voltam a repensar uma proposta de escola focada na demanda popular e seus interesses. No estavam mais em vigncia as teorias reprodutivistas que viam o trabalho escolar meramente como um trabalho a servio as classes dominantes. Ao contrrio, mesmo reconhecendo que o sistema educacional era desigual e injusto, tratava-se de coloc-lo a servio da maioria da populao, fazendo com que a distribuio do conhecimento tambm fosse um ato poltico de melhoria das condies de vida.

Desta forma, as ONGs passam a desenvolver aes de assessoria aos setores pblicos, lutando pelo acesso e qualificao dos servios pblicos de ensino voltados aos interesses populares. Temas como o reconhecimento do direito de haver escolas e creches para todos, a melhoria da qualidade do ensino, formao de professores, elaborao de materiais didticos, elaborao de novos currculos e modelos pedaggicos de interesse dos grupos populares, passaram a ser contemplados pelo trabalho das ONGs.

Se, em alguns momentos, a constituio de uma escola popular paralela aos sistemas pblicos de ensino poderia ter sido pauta dos movimentos sociais e das ONGs, a verdade que dado o carter de necessria institucionalizao que processos escolares exigem, tais escolas se mostraram inviveis de serem mantidas a longo prazo por estas instncias da sociedade civil, sem um apoio do Estado. Discutia-se, ento, os mecanismos de controle por parte da sociedade civil sobre as instncias pblicas de ensino. Passa-se a discutir a participao dos pais, os mecanismos internos de democratizao da escola pblica como os centros cvicos e as Associaes de Pais e Mestres. Discuti-se ainda mecanismos de parceria entre o Estado e a sociedade, onde, por exemplo, o setor pblico garantia a institucionalidade das escolas e os movimentos sociais e as ONGs as orientaes pedaggicas.

H ainda um movimento de reconhecer prticas educativas dos movimentos sociais como prticas de carter pblico, como no caso das escolas comunitrias. Aqui se exige o reconhecimento legal, a destinao de verbas para o pagamento dos professores e o apoio de material didtico.

As ONGs ainda exerceram influncia nas orientaes pedaggicas. Procurava-se levar a experincia de trabalho desenvolvida nos espaos da sociedade civil, como uma educao popular, para junto das escolas pblicas. Ou, ento, desenvolvendo trabalhos que pudessem servir de modelos e posteriormente socializados nos sistemas pblicos

O movimento mais geral da sociedade apontava para esta preocupao de fazer com que o Estado se democratizasse e fosse instncia provedora de servios pblicos para a populao. Esta oferta deveria ser extensiva a todos, deveria ser de qualidade e deveria estar sob controle da populao. Estas eram as orientaes que movimentos sociais, sindicatos, ONGs e outros atores da sociedade buscavam implantar. Entre os vrios servios, a escola tornou-se um dos mais importantes.

A nova conjuntura

Vimos como nos ltimos anos, o Brasil, pressionado pela crise fiscal e pelo desenvolvimento do capitalismo internacional, vem executando um processo de reforma do Estado. Estas orientaes gerais no plano econmico acabaram por produzir uma reverso nas expectativas expressas na elaborao da Constituio de 1988, quando vrios direitos no campo da educao foram conquistados.

Tais direitos, conquistados dentro da lgica de democratizao do Estado brasileiro aps o perodo do regime militar, orientavam-se no contexto de ampliao dos direitos de cidadania na busca por constituir um estado de bem social no Brasil - a exemplo dos pases do primeiro mundo. As ONGs, bem como os movimentos sociais e populares, acabaram por ter um papel importante na conquista destes direitos, como pudemos verificar acima.

No entanto, as mudanas na conjuntura global da economia, que acabaram por empurrar os pases do terceiro mundo para um papel cada vez mais margem dos processos de desenvolvimento econmico, condicionaram a ampliao destes direitos, bem como a sua prpria realizao.

Vimos como as polticas pblicas de educao no Brasil vm se reorganizando em funo desta lgica. Um dos aspectos mais importantes dos processos de reforma dos sistemas educacionais a redefinio dos limites entre o pblico e o privado. Ou seja, ao se redefinir o papel do Estado no atendimento aos direitos de educao, premidos pelos aspectos da economia, a sociedade civil tem sido chamada a exercer esta funo pblica. Se antes a participao da sociedade civil se configurava como um dos aspectos ligados aos processos de democratizao do Estado, pelo seu papel de controle e direcionamento dos servios pblicos, neste momento, ela chamada para colaborar diretamente com a oferta dos servios educacionais, dentro da lgica de diminuio das responsabilidades do Estado.

Ao mesmo tempo, verifica-se no mbito da sociedade civil, entidades que vo ganhando relevncia no campo da educao. So entidades filantrpicas ou de carter assistencial chamadas a colaborarem com o Estado, deslocando parte da responsabilidade pelo sistema escolar do plano das polticas universais pblicas para o plano das polticas compensatrias. o caso da educao de adultos e da educao infantil, que foram deixadas de lado dentro das prioridades da oferta dos sistemas pblicos e vm sendo alocadas como de responsabilidade das organizaes da sociedade civil.

A sociedade brasileira, tambm, vem verificando um crescente interesse de parte dos grupos empresariais e do capital em geral nos rumos e no controle das orientaes e do atendimento educacionais. H um crescimento de fundaes de empresas privadas, constitudas muitas delas a partir de isenes fiscais, quase todas mantendo a educao como uma das suas atividades principais. A forte presena do capital no plano das aes sociais e da educao em particular demonstra duas faces contraditrias. De um lado, tal envolvimento aponta para um importante compromisso social de parte do capital, compromisso este fundamental em sociedades como a brasileira com to elevada concentrao de renda e tamanho desnvel social. Ao mesmo tempo, aponta para um crescente descomprometimento do setor pblico com a educao, correndo o risco de rompimento de um dos aspectos mais importantes na construo da democracia social brasileira.

dentro deste panorama geral que as ONGs tradicionais vm sendo chamadas a colaborarem. De um lado, na ao direta de oferta dos servios educacionais onde o Estado se retira ou no entra. De outro, em funo da diminuio do corpo tcnico das diversas secretarias, as ONGs so chamadas a produzirem materiais didticos, treinarem professores e atuarem no plano das orientaes pedaggicas.

So riscos deste momento, que a participao das ONGs se d no rumo do esvaziamento do papel do Estado na rea social, assumindo responsabilidades por aes antes nas mos dos setores pblicos. Premidos pela diminuio dos recursos produzido pelo afastamento da cooperao internacional, seduzidos pelo chamado neoliberal das reformas do Estado, muitas vezes o sentido de sobrevivncia destas organizaes aponta para um caminho contrrio ao do fortalecimento da responsabilidade social do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, em uma situao de desmonte dos servios pblicos, a atuao das ONGs no campo da educao pode oferecer servios que qualifiquem as aes educacionais oferecidas pelo Estado, garantindo o seu fortalecimento.

Sobre os desafios produzidos pela conjuntura atual, apresentamos o depoimento a seguir, retirado de documento produzido pelas ONGs de Educao de Minas Gerais em encontro realizado pela Associao Brasileira de Organizaes No Governamentais - ABONG para discutir as atividades relativas a Educao para Todos:

"...cada vez mais se impe a necessidade de elaborarmos propostas para o conjunto da populao, sempre maior que aquela que trabalhamos cotidianamente. Isto implica muitas vezes em repensarmos nossas prticas, seus contedos, metodologias, etc. Isto porque, muitas vezes, viabilidade tcnica de uma proposta nem sempre corresponde a uma viabilidade poltica, e vice-versa. Ou, em outras palavras, elaborar propostas viveis implica em viabiliz-las tcnica e politicamente ao mesmo tempo. (...) Propor projetos polticos, viveis poltica e tecnicamente, implica para as ONGs dar um passo avante na formatao tcnica de suas experincias e, por outro lado, buscar articulao poltica necessria sua imposio na agenda de debates.

Este duplo movimento poderia ajudar-nos na superao de uma vez por todas da idias do papel apenas alternativo das ONGs. Se no momento histrico de seu nascimento e fortalecimento boa parte das ONGs tiveram que reforar seu carter alternativo ao Estado e a outras iniciativas ditas 'assistencialistas', hoje preciso com lucidez dizer que isto no basta. Isto no basta por que as ONGs por sua ligao com a populao, por sua capacidade de articular-se politicamente, pela experincia acumulada, no podem se furtar ao dever de propor alternativas viveis para o conjunto da populao.

Dizer isto no implica, de modo algum, que todos agora deixemos nossas prticas e nossas referncias (alternativas ou no) e passemos para o campo do 'poltico e tecnicamente vivel'. Pelo contrrio. preciso fortalecer o campo das experincias que ocorrem fora do aparelho estatal, mas s que agora no apenas para servir-lhe como alternativa, mas tambm como parmetro...

... preciso, a muitas ONGs de diversas naturezas, compreender que na verdade elas j participam e so parte da poltica pblica. Isto por dois motivos: em primeiro lugar porque nos ltimos anos temos construdo na Amrica Latina um sentido do pblico que ultrapassa o estatal, inclusive para questionar um Estado que tem sido muito pouco pblico. Por outro lado, boa parte das ONGs se mantm com algum tipo de recurso pblico, seja este estatal ou no.

Assumir este seu carter pblico traz para as ONGs (...)propor e discutir a partir de dentro das polticas pblicas e no apenas como algum de fora do aparelho estatal. Isto seria condio, tambm, para que as ONGs no sirvam apenas de 'correia de transmisso' ou executores de polticas definidas por tcnicos e burocratas, mesmo que bem intencionados.

Afirmar o carter pblico das ONGs e sua legitimidade em propor e viabilizar polticas pblicas, implica hoje, numa capacidade de formular uma crtica fundamentada na idia e de privatizao dos servios estatais. No podemos legitimar as idias de que os Estados na Amrica Latina devem privatizar como meio de resolver os graves problemas econmicos e sociais pelos quais passamos.

Finalmente, no desconhecido de ningum que trabalhe na rea da educao a famosa afirmao que o acesso escola, nas ltimas dcadas, foi democratizado, mas a permanncia e o acesso aos conhecimentos transmitidos por ela no o foram.(...) Pensar a qualidade da educao escolar para as ONGs deve significar pensar numa experincia que incorporando a aprendizagem de conhecimentos, seja muito mais que isto: seja elemento formador e potencializador das vrias dimenses do ser humano. S conseguiremos realizar esta tarefa de tirarmos a discusso da qualidade em educao do campo da lgica do mercado e da produo. preciso discutir eficincia, produtividade e outras categorias, no na forma como foram elaboradas para dar conta de processos produtivos, a lgica do mercado, mas na lgica das relaes sociais e culturais que se do, em ltima instncia, nas relaes pedaggicas no interior da escola". (FARIA FILHO, 1994)

* Srgio Haddad, 52, presidente da Associao Brasileira de ONGs - ABONG, secretrio-executivo da ONG Ao Educativa e professor da PUC/SP.

TERCEIRO SETOR, ONGs e INSTITUTOS

Usualmente chamado de Terceiro Setor ou ONGs (Organizaes no Governamentais), o conjunto das pessoas jurdicas sem fins lucrativos.

Classificam os tericos como:

PRIMEIRO SETOR o Estado, entendendo este como o ente com personalidade jurdica de direito pblico, encarregado de funes pblicas essenciais e indelegveis ao particular (justia, segurana, fiscalizao, polticas pblicas, etc.).

O SEGUNDO SETOR compreendido como as organizaes do mercado: pessoas fsicas ou jurdicas de direito privado, encarregadas da produo e comercializao de bens e servios, tendo como escopo o lucro e o enriquecimento do empreendedor.

E TERCEIRO SETOR aquele que congrega as organizaes que, embora prestem servios pblicos, produzam e comercializem bens e servios, no so estatais, nem visam lucro financeiro com os empreendimentos efetivados, estando includas aqui, portanto, as associaes, sociedades sem fins lucrativos e fundaes.

Apesar do sentido ser o mesmo para os termos Terceiro Setor ou ONGs, a ltima denominao tem sido mais vinculada s organizaes que tenham suas finalidades direcionados a questes que atingem mais genericamente coletividade (meio ambiente, doenas infecto-contagiosas, etc.).

J INSTITUTO quando referido para identificar entidades, embora muitos o tenham como uma espcie de pessoa jurdica sabemos que tal no verdadeiro, pois, o termo instituto, quando empregado nesse sentido, significa, tambm uma entidade, entretanto, pode ser aqui tanto governamental quanto privada, tanto lucrativa, quanto no lucrativa.

Instituto, ento, pode ser compreendido como a denominao que se d a determinadas entidades, ou ao gnero, onde se encontram determinadas espcies de pessoas jurdicas. Assim, tanto uma sociedade, como uma associao ou uma fundao podem ser denominadas de instituto. Usualmente o termo tem sido mais utilizado para identificar algumas sociedades civis sem fins lucrativos, donde, provavelmente surge a confuso terminolgica.

Assim, na prtica e tecnicamente correto, podemos dizer que, genericamente, as entidades do Terceiro Setor ou as ONGs so pessoas jurdicas de direito privado sem fins lucrativos (sociedades civis, associaes e fundaes) e que todas elas podem ser denominadas institutos ou serem consideradas como tal.

SOCIEDADES CIVIS SEM FINS LUCRATIVOS, ASSOCIAES E FUNDAES

simples leitura, dos primeiros artigos do Cdigo Civil Brasileiro, podemos observar que nosso direito admite a existncia de duas classes de pessoas: as pessoas fsicas ou naturais e as pessoas jurdicas. Ou seja, reconhece o Estado como entes dotados de personalidade (sujeitos de direitos e deveres), os seres humanos individualmente considerados (pessoa fsica ou natural), o agrupamento organizado de pessoas fsicas (sociedades e associaes), e um patrimnio vinculado a um objetivo (as fundaes).

Assim, podemos dizer que as pessoas fsicas tm como substrato o ser humano, enquanto que as pessoas jurdicas se constituem em uma construo do direito, advinda de situaes criadas pelo agrupamento de pessoas ou pelo comprometimento de bens a um determinado objetivo.

pessoa fsica ou natural - o ser humano -, a lei estabelece a aquisio da personalidade civil com o "...nascimento com vida...", ao passo que a personalidade jurdica s concedida quando as autoridades competentes do Estado verificam que a entidade tem fins dignos de proteo jurdica e rene as condies necessrias para os realizar, e sua existncia s se concretiza a partir do momento em que seus atos constitutivos so inscritos no registro pblico prprio.

A pessoa jurdica, conforme conceituou Giorgi: "... uma unidade jurdica, que resulta de uma coletividade humana organizada, com estabilidade, para um ou vrios fins de utilidade pblica ou privada; completamente distinta de cada um dos indivduos que a compem e dotada da capacidade de possuir e de exercitar adversus omnes os direitos patrimoniais, compatveis sua natureza, com subsdio e o incremento do Direito Pblico."

O Cdigo Civil Brasileiro divide as pessoas jurdicas em duas classes: as de Direito Pblico e as de Direito Privado, sendo, as de Direito Pblico divididas em duas subclasses: as de Direito Pblico Interno (Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios) e as de Direito Pblico Externo (os demais Estados Soberanos).

Como sabemos, o artigo 16 do Cdigo Civil Brasileiro estabelece que so pessoas jurdicas de Direito Privado, as sociedades civis, religiosas, pias, morais, cientficas ou literrias, as associaes de utilidade pblica, as sociedades mercantis e as fundaes.

Assim, as pessoas jurdicas de direito privado (que mais nos interessam no presente trabalho), so divididas em dois grupos fundamentais: as corporaes e as fundaes. Aquelas tendo como fundamento a reunio de pessoas fsicas e que so as associaes e sociedades; estas, tendo em sua gnese massas patrimoniais, ou seja, as fundaes.

Como nosso propsito, focaremos nossa ateno nas pessoas jurdicas de direito privado sem fins lucrativos (sociedades civis, associaes e fundaes).

A teor da primeira parte do caput do art.11 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil combinado com o art. 16 do Cdigo Civil, percebemos tambm, a clara inteno do legislador em definir as sociedades civis sem fins lucrativos, as associaes e as fundaes como prestadoras de servio pblico, ainda que de direito privado:

"As organizaes destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundaes..." (art. 11 da LICC) e;

Da, e com base tambm em outros dispositivos legais, se infere que no Brasil no se permite a instituio de pessoa jurdica sem fins lucrativos para a administrao de interesses individuais ou de interesse apenas privado, v.g.: administrar heranas em favor de herdeiros; administrar patrimnio em favor de alguma famlia, etc.

Ao ocorrer o registro de uma pessoa jurdica de direito privado, em sendo ela uma associao ou sociedade, o Estado declara que o conjunto de pessoas fsicas que a compem passa a ser uma s pessoa, dotada de capacidade para os atos da vida civil, perseguindo os objetivos comuns aos scios ou associados e com vida totalmente independente de cada um deles. J quando se tratar de uma fundao, o Estado vai declarar que aquele patrimnio, vinculado a um objetivo de interesse social determinado pela vontade humana, e com uma administrao previamente definida, uma pessoa independente do instituidor, dos administradores ou dos beneficirios. L, a pessoa jurdica formada pela assemblia das pessoas naturais, com ou sem propriedade sobre bens, aqui, a pessoa jurdica o prprio patrimnio vinculado a um objetivo.

Preconizado , ento, que sociedades e associaes so compostas de uma aglomerao de pessoas naturais em torno de objetivos de interesse coletivo, enquanto que fundao um patrimnio destinado a um fim de interesse coletivo, ao qual se d personalidade.

Embora no exista grande diferena prtica ou tcnica entre sociedade civil sem fins lucrativos e associao, teoricamente, podemos dizer que o que as difere o nmero de pessoas e os interesses que nela se envolvem, sendo certo que na maioria dos casos, a sociedade civil sem fins lucrativos instituda por um pequeno nmero de pessoas cuja finalidade atender coletividade, ou a um grupo determinado da coletividade que no os prprios scios, enquanto que a associao, normalmente, composta por um grande nmero de pessoas, as quais visam, na maioria dos casos, o interesse, ou os interesses daqueles que a compem.

Assim, sociedade civil sem fins lucrativos, pode ser compreendida como a pessoa jurdica de direito privado que se forma atravs da reunio de mais de uma pessoa e que visa beneficiar outras pessoas. E, associao como o agrupamento de pessoas, geralmente em maior nmero, que, embora possa tambm visar o benefcio de terceiros, sempre tem como objetivo o atendimento dos prprios associados ou de interesses destes, enquanto que fundao um patrimnio que algum separa do que lhe pertence, para beneficiar, sempre, a outras pessoas que no o instituidor ou os administradores da entidade.

Portanto, se mais de duas pessoas possuem equipamentos e dispem de tempo com os quais desejem repassar experincia, conhecimento, sem transferncia de patrimnio, sem objetivar lucro ou benefcios materiais prprios, mais conveniente criar uma sociedade civil sem fins lucrativos.

J se algumas pessoas tm interesses comuns, que ao mesmo tempo so interesses da coletividade, visando a preservao de tais bens, ou os mesmos objetivos elencados no pargrafo anterior, melhor ser a instituio de uma associao (categorias profissionais, moradores de um bairro, alunos e pais de alguma escola, etc.).

J aquela pessoa (pode ser uma s), ou aquelas pessoas (fsicas ou jurdicas) que desejam prestar um servio comunidade, de carter mais permanente, com fiscalizao mais rigorosa por parte do Estado e cuja administrao no possa modificar o objetivo ou a vontade do instituidor, associando tal desejo a algum patrimnio livre e desembaraado que se vincular ao fim desejado, o ideal a instituio de uma fundao.

Tomz de Aquino Resende

Promotor de Justia

Curador de Fundaes em Belo Horizonte/MG.

ONGs, cidadania e globalizao: notas para uma discusso*

Atila P. Roque

Historiador

Coordenador do Programa de Globalizao do IBASE

O processo de globalizao abrange um conjunto de fenmenos da vida contempornea que ultrapassa amplamente os aspectos econmicos e financeiros normalmente enfatizados quando se fala do assunto. Uma anlise mais abrangente do impacto da globalizao deve necessariamente incluir as transformaes polticas e culturais que ocorrem tanto na esfera internacional/global quanto na nacional/local.

O objetivo do presente texto trazer para o debate alguns aspectos deste

processo, em particular aqueles que dizem respeito mais diretamente a ao internacional de organizaes da sociedade civil que ficaram conhecidas como ONGs (Organizaes No-Governamentais). A minha inteno apenas iniciar um exerccio de reflexo e amadurecimento de idias que ajude na compreenso da dimenso internacional do trabalho dessas organizaes e em que medida constituem as bases de uma emergente "esfera pblica internacional"

Reconhecendo o terreno

A interelao dos processos econmicos, a consolidao de agendas globais, a reconstruo da ordem internacional no ps guerra-fria, o fortalecimento de atores no-governamentais na esfera internacional, so alguns dos elementos que sugerem um cenrio mundial bastante diferente do que dispunhamos h poucas dcadas. Fazem parte desse processo, por exemplo, as mudanas nas organizaes de Bretton Woods (GATT/OMC, Banco Mundial, FMI), a reestrurao da ONU, o fim da bipolaridade e o fortalecimento dos blocos regionais.

Tambm estamos diante de uma maior oligarquizao da ordem econmica internacional, especialmente com a consolidao do poder das empresas transnacionais e dos grandes conglomerados financeiros. A fora desses interesses nos espaos de tomada de decises internacionais tem resultado em um gradativo desmonte dos instrumentos de controle disposio das autoridades pblicas nacionais O relativo enfraquecimento da capacidade de regulao dos estados nacionais um fator a mais de preocupao para todos que se dedicam a pensar as possibilidades de uma ordem global democrtica. Sem enfatizar exageradamente esta tendncia - considerando que a fora institucional e cultural do estado-nao permanece central na organizao da vida social - devemos estar atentos s mudanas em curso.

O que parece ser irreversvel a perda da exclusividade dos governos sobre os mecanismos de gesto da ordem internacional. A presena cada vez mais constante de organizaes da sociedade civil em espaos antes restritos aos governos tem representado um importante contrapeso tendncia oligarquizante. Este tem sido o pano de fundo de boa parte das disputas envolvendo as ONGs e as demais organizaes da sociedade civil em torno das polticas e programas dos organismos multilaterais, assim como durante o chamado ciclo social de conferncias mundiais realizadas pela ONU na dcada de 90 (Criana, Meio Ambiente e Desenvolvimento, Populao, Direitos Humanos, Desenvolvimento Social, Mulher e Assentamentos Humanos).

De certa forma, a presena ativa de ONGs nos debates internacionais faz parte do que Boaventura Santos denomina "globalizao contra-hegemnica": iniciativas envolvendo organizaes dos pases do Sul que promovem a articulao transnacional de movimentos, associaes e outros atores sociais que defendem os interesses de grupos "marginalizados" pelo capitalismo global. (Santos, 1998).

Como um componente fundamental deste cenrio, o fim da bipolaridade criou as condies para uma flexibilizao do ambiente internacional. Verificamos a superao de uma agenda excessivamente demarcada pela preocupao com a segurana militar e o fortalecimento da temtica social na agenda internacional. Do ponto de vista das relaes internacionais, a valorizao de uma perspectiva mais integrada do desenvolvimento foi a conseqncia mais importante desse processo, levando a uma participao cada vez maior das organizaes da sociedade civil em negociaes que antes estavam limitadas aos governos.

Em grande medida, a prpria diplomacia brasileira comea a reconhecer a necessidade de uma maior abertura da poltica externa. Conforme ressalta o diplomata Ernesto Otto Rubarth, comentando a importncia da articulao com agentes no estatais para a formulao da poltica externa brasileira, "(a diplomacia) est deixando de ser um modo privilegiado de dilogo entre Estados e esta passando a atuar em uma complexa teia de atores, tendo a necessidade de lidar tambm com os impulsos internos." (Rubarth, 1998:193).

A participao de ONGs nas delegaes oficiais do Brasil nas conferncias das Naes Unidas um indicador de que estamos caminhando na direo sugerida acima. interessante observar que, no caso brasileiro, ao contrrio do que tem sido afirmado com freqncia, essas organizaes no so agentes de enfraquecimento do Estado, contribuindo na verdade para o fortalecimento de seu papel na formulao e implementao de polticas pblicas, assim como para o reconhecimento da sua importncia na mediao entre poltica domstica e internacional. (Mello, 1997).

Os processos em curso na ONU, de fato, talvez sejam os que ofeream o melhor ponto de observao das mudanas na ordem internacional. So reveladores das tenses geradas em estruturas concebidas como espaos restritos (ou quase totalmente restritos) a atores governamentais, quando submetidos a processos crescentes de ampliao dos espaos para a interveno de organizaes da sociedade civil. Segundo algumas anlises, as ONGs estariam cumprindo no interior do Sistema das Naes Unidas o papel de "politizar" o ambiente das negociaes, introduzindo nos debates as lutas e os processos polticos locais. O papel das ONGs na ONU seria definido pelo cumprimento das funes de condutores de idias e inovaes, fontes de informao, agenciadores de recursos, negociadores de acordos, formuladores de estratgias e mediadores de conflitos (Weiss & Gordenker, 1996).

Tudo isso ganha uma relevncia ainda maior quando tomamos em considerao o momento poltico vivido pela ONU, cujo papel vem sendo colocado em questo, especialmente pelos Estados Unidos, os quais preferem ter os seus interesses defendidos em espaos menos transparentes e mais impermeveis participao de organizaes da sociedade civil, como o caso da Organizao Mundial do Comrcio. O lugar a ser ocupado pelas Naes Unidas na cena mundial nos prximos anos ter influncia sobre a ordem internacional que teremos no sculo XXI. Uma ONU fraca e desmoralizada em nada contribui para a consolidao de relaes internacionais sustentadas por acordos mnimos de respeito aos direitos humanos e aos valores democrticos.

Como parte desse processo temos presenciado, sobretudo a partir dos anos 80, um questionamento de propores inditas sobre o sentido do desenvolvimento. O destaque adquirido pela a temtica social alimentou a crtica a uma viso de desenvolvimento que se restringia quase que exclusivamente a dimenso econmica. Mesmo instncias mais "duras" da ortodoxia econmica, como o caso do Banco Mundial, passam reconhecer abertamente os limites de um modelo de desenvolvimento que no incorpora devidamente a dimenso social como um componente crucial da sua estratgia.

Este debate - provocado, principalmente, pelos movimentos ambientalista e de mulheres - tem subsidiado uma reviso radical dos princpios que orientam as decises sobre as chamadas polticas de desenvolvimento. As pessoas, na sua diversidade, passam a ser vistas como operadores ativas de significados sobre o destino desejvel para as suas sociedades/comunidades. No mbito das Naes Unidas, a principal contribuio a esta reviso veio do PNUD (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento), com a publicao, a partir de 1990, dos Relatrios de Desenvolvimento Humano. justamente neste cenrio multidimensionado, com interesses diversos disputando ou cooperando por um papel na definio da ordem global, que as ONGs ganham importncia poltica.

"Comunidades de sentimentos"

Esses processos tm tido impactos diversos em cada um dos atores que deles participam, de um modo ou de outro, com maior ou menor consistncia. Um dos aspectos principais que a globalizao est gerando um ambiente internacional de grande familiaridade. Compartimos um universo significativo de informaes e referncias simblicas que amplia o terreno comum sobre o qual nos situamos no mundo. No estamos lidando somente com o surgimento de uma aldeia global - nos termos j apontados nos anos 60 por Marshal Mac Luhan, ainda que de uma perspectiva demasiadamente otimista - impulsionada pelo progresso tecnolgico, sobretudo nos meios de comunicao de massas. Estamos falando, na expresso de Appadurai (1996), na possibilidade da consolidao de comunidades de sentimentos no interior da quais nascem identidades e alinhamentos que extrapolam as tradicionais mediaes territoriais, lingusticas ou tnicas. Comunidades cujos participantes nelas se reconhecem, com fluxos de comunicao estabelecidos, dinmicas polticas prprias e marcadas por uma grande heterogeneidade de origens (culturais, tnicas, religiosas, nacionais, etc). Tribos globais-quase-virtuais que podem ser encontradas em toda a parte, sem nunca se fixar em lugar algum.

neste contexto que se estabelecem as bases para um novo tipo de solidariedade internacional que rene um leque de atores altamente diversificado e que encontram fora dos referenciais tradicionais (classe, nacionalidade, ideologia poltica, religio etc) as razes para a cooperao. este o campo onde pode vir a florescer o que Wazen (1994) denomina de moral minimalista, capaz de produzir identificaes em torno de valores universais, como justia ou democracia, sem abrir mo das especificidades de sua prpria origem. O debate contemporneo em torno da aplicabilidade "universal" de direitos humanos o que melhor reflete as tenses entre o apelo relativizante de culturas particulares e o esforo de constituio de uma moralidade comum que transcenda as fronteiras de velhos e novos territrios.

Do ponto de vista desta reflexo, o que importa destacar a convergncia - em muito facilitada pelos progressos alcanados nos meios de comunicao, notadamente os eletrnicos - de processos sociais que raramente se interconectavam e ganhavam visibilidade apenas quando transformados em tragdias: a contaminao em Bhopal, a fome na Ethipia, a contaminao nuclear em Chernobil, Three Miles Island ou Goinia.

Com a proximidade do aniversrio de 10 anos da morte de Chico Mendes, convm lembrar que este talvez tenha sido o primeiro episdio em que a sociedade e o governo brasileiros tenham se dado conta do poder de presso das redes internacionais que foram se formando na dcada de 80. Antes mesmo da notcia chegar aos jornais no Brasil, centenas de telegramas do mundo inteiro j estavam na mesa do Presidente da Repblica e do Ministro da Justia, graas a mobilizao instantnea, atravs do correio eletrnico, diretamente de Xapuri para o mundo.

Estes processos revelam uma convergncia de interesses que no est livre das tenses e das contradies decorrentes de processos originados em contextos muito diferenciados entre si. O desafio est em criar as condies para que ela se realize sem desaguar em um exerccio pasteurizante - de tendncias quase sempre totalitrias - de supresso da diversidade e das identidades originais dos atores envolvidos. Muito menos ceder a tentaes essencialistas que buscam a paz em universais absolutos e invariveis. Estamos falando da possibilidade de construo de uma solidariedade ativa, baseada em valores comuns, negociados contextualmente, universais sem ser totais, ancorados no particular, mas abertos aos ventos exteriores. Uma ambigidade reflexiva e dialgica que parece caracterizar inapelavelmente os processos polticos neste final de sculo. (Soares, 1998).

O papel das ONGsSendo parte deste processo, as ONGs buscam romper com os condicionamentos decorrentes do territrio original - nacional - nos quais esto fortemente arraigadas, tornando o "internacional" parte constituinte dos seus projetos e identidade institucionais (Grzybowski, 1997). Evidentemente esta transposio da ao para a esfera internacional coloca questes de grande complexidade, especialmente quando passa a reivindicar direitos formais de participao, como ocorre atualmente no interior dos organismos multilaterais. A reforma recente nos estatutos de participao das ONGs nas Naes Unidas, por exemplo, amplificou vrias dessas questes. (NGLS, 1996).

Na qualidade de organizaes privadas, sem fins lucrativos, mas com uma funo pblica, as ONGs no podem reivindicar representao para alm de seus prprios membros ou associados, o que muitas vezes sugere dvidas quanto ao papel que possam exercer nas instncias compartidas de formulao e gesto de polticas sociais. No Brasil este debate tem sido recorrente quando se discute sobre a experincias dos diferentes conselhos de direitos que, a partir de mudanas constitucionais, passaram a fazer parte do aparato estatal nos seus diferentes nveis (municipal, estadual e federal). No interior dos organismos multilaterais este tema aparece principalmente atravs do questionamento dos direitos das ONGs vis--vis os de representantes governamentais.

Este um dilema inevitvel na medida em que as ONGs consolidam e expandem a sua presena no cenrio internacional. Enfrent-lo requer o reconhecimento de que o tema da legitimao social se apresenta em um quadro de profunda reestruturao da chamada esfera pblica, com implicaes importantes no campo das relaes internacionais. Conforme discutiremos mais frente, a "desestatizao" do pblico abre espao para uma participao mais ativa de uma diversidade ampla de atores sociais em arenas antes "fechadas" sua presena, com implicaes para o modo de interao entre os planos nacionais e internacionais.

As ONGs seriam, neste sentido, agentes de um movimento que produz uma "translocalidade" dotada de duas dimenses. A primeira de mediao e traduo de processos polticos nacionais/locais, que passam a interagir com dinmicas geradas nas esferas globalizadas. A segunda a de tornar mais vulnervel o espao local influncia de processos globais. Na perspectiva da translocalidade, as ONGs poderiam ser vistas como produtoras de "glocalizao" ou "inventoras de localidades", perpassadas por impulsos geradas no espao mundo (Robertson, 1995).

Este movimento no deve ser confundido, no entanto, com processos de "homogeneizao" cultural, um risco a ser levado em considerao quando consideramos a aplicao original do conceito de "glocalizao", na anlise das estratgias de marketing das grandes corporaes transnacionais japonesas. Devemos ser cuidadosos para no confundir uma intercomunicabilidade possvel entre diferentes culturas - mesmo quando eventualmente mediadas por uma delas, como o caso do uso extensivo (freqentemente abusivo) da lngua inglesa - com uma espcie de uniformizao de todas as culturas.

Em que medida este papel de mediador translocal/ator global expressa um projeto (ou uma agenda) conscientemente formulada pelas ONGs , um ponto a ser melhor explorado em estudos de casos especficos. O que certamente podemos afirmar que esse movimento contribui para a intensificao de circuitos de comunicabilidade entre indivduos, coletividades e processos polticos em uma escala anteriormente desconhecida. Como promotoras de uma concepo de direitos da cidadania que no se vincula de forma estrita ou exclusiva ao territrio do estado-nao, as ONGs podem vir a cumprir um papel importante enquanto foras opostas s tendncias desintegradoras contidas em vrios aspectos da globalizao: racismo, fundamentalismos tnicos e religiosos, degradao ambiental etc.

Ampliao da esfera pblica, sociedade civil e relaes internacionais

Uma das questes mais recorrentes quando se discute a presena crescente de organizaes populares, ONGs, associaes de moradores e outros tipos de organismos comunitrios na definio e implementao de polticas pblicas, diz respeito s implicaes para a chamada esfera pblica. Naturalmente no se trata aqui de entrar no debate terico sobre o tema, o qual recebeu de Habermas umas das mais instigantes contribuies (Calhoun, 1992). Gostaria, no entanto, de destacar alguns pontos relativos a um processo visto como de desestatizao ou ampliao da esfera pblica. Este processo - especialmente em culturas polticas de forte tradio estatista - traz conseqncias fundamentais sobre o papel da sociedade civil na construo de um modelo de desenvolvimento centrado nos valores de sustentabilidade democrtica.

Em primeiro lugar, nesta perspectiva ampliada, a esfera pblica configura-se enquanto o espao privilegiado para aes atravs das quais diferentes atores sociais e os indivduos buscam o entendimento, convencendo e sendo convencidos, reconstruindo suas prprias posies ticas e polticas atravs da prtica continuada do dilogo. Numa sociedade democrtica a esfera pblica o lugar de atualizao permanente do pacto poltico que, em ltima instncia, legitima as esferas institucionais de articulao e exerccio da vontade pblica (parlamentos, governos, partidos etc.). tambm onde melhor se revelam as relaes de poder e dominao que sustentam os processos geradores de excluso social e onde pode surgir as foras para a sua superao. E, sobretudo, o lugar da construo de consensos ticos necessrios a quebra do estado de solido e de isolamento no qual, freqentemente, encontram-se as lutas ou experincias de participao comunitrias: mundo da vida, das paixes coletivas e da luta pela afirmao de direitos coletivos ainda no reconhecidos ou implementados.

O reconhecimento e a valorizao da esfera pblica enquanto espao de ao poltica - de disputa, mas tambm de solidariedade e cooperao - abre um amplo leque de possibilidades para a parceria entre atores pertencentes a campos muitas vezes bastante diferentes entre si. Este tambm o espao em que o conceito de cidadania pode ultrapassar a sua dimenso normativa (no sentido que define o rol dos direitos formais - direito de ir e vir, direito de votar, etc.) e ganhar um sentido mais amplo: a cidadania como atributo de seres humanos que se sentem capazes de decidir sobre suas vidas, assegurar seu bem estar e formular proposies para alterar as condies do mundo. A luta contra a desigualdade e a excluso ganha, neste contexto, uma importncia decisiva para a extenso de uma cidadania plena a todas as pessoas .

Uma outra questo que ganha uma perspectiva diferenciada quando examinada luz da esfera pblica ampliada a da representao. Ou, dito de outra maneira, o que concede legitimidade a participao de determinados atores nos espaos de definio de polticas pblicas. Embora este questionamento seja levantado de maneira mais repetida com relao as ONGs, podemos ter a mesma preocupao quando tratamos de avaliar o lugar de outros atores da sociedade civil que tambm reivindicam legitimidade (e no representao) para o lugar que ocupam ou querem ocupar na esfera pblica. Defendo a posio de que a legitimidade desses atores decorre, por um lado, da capacidade de contribuir para o debate pblico a partir da qualidade das suas idias; e, por outro lado, do poder de mobilizar a sociedade a favor das suas propostas. Uma legitimidade, portanto, permanentemente negociada e atualizada de acordo com as novas situaes que vo sendo geradas pelos processos polticos. Decorrncia de pactos contextuais, eventualmente superveis, mas nem por isso menos relevantes.

As experincias de mobilizao e as diversas formas de participao direta que vem se consolidando em vrios pases esto a exigir uma reviso dos conceitos tradicionais de representao. A ordem democrtica institucionalizada est desafiada a assegurar que se estabeleam canais de comunicao que assegurem que os processos gerados na esfera pblica no estatal sejam considerados nas instncias decisrias . Neste sentido, a formao de conselhos de composio mista - com a participao de entidades da sociedade civil e representantes do poder pblico - e tendo a responsabilidades sobre a definio de polticas pblicas setoriais (como o caso, no Brasil, dos Conselhos da Criana e do Adolescente), uma das experincias interessantes que merecem ser acompanhadas e avaliadas.

Finalmente, um terceiro aspecto, mais diretamente relacionado com o tema deste texto, est relacionado com as possibilidades abertas por uma perspectiva ampliada de esfera pblica no que diz respeito a reforma dos mecanismos de gesto da ordem internacional e, em particular, o papel das organizaes da sociedade civil. Em outras palavras, trata-se de explorar o potencial existente para o desenvolvimento de uma esfera pblica internacional que admita algum nvel de participao efetiva da sociedade civil.

A tradio poltica dominante pelo menos desde do sculo XVI reconhece apenas o Estado como o legtimo representante da soberania nacional nos espaos internacionais. A voz e representao de outros atores sociais sempre obteve reconhecimento muito limitado e circunscrito a situaes ou temticas especficas. Mesmo o movimento sindical, com sua longa tradio de internacionalismo, raramente conseguiu obter reconhecimento para alm das questes estritamente trabalhistas. As demais reivindicaes internacionalistas - especialmente as vinculadas ao iderio socialista - sempre estiveram fortemente vinculadas a um determinado projeto revolucionrio e submetidas a instncias mais ou menos rgidas de organizao.

A forte presena nos anos recentes de organizaes civis nacionais nas disputas e embates internacionais indicam, portanto, uma importante mudana. o que muitos chamam do surgimento de uma cidadania global ou sociedade civil internacional (Liszt, 1997) que, sem perder as suas marcas de origem, trazem para o espao global as reivindicaes originadas de lutas e processos polticos locais, fortalecendo uma agenda global multifacetada que disputa espao com as pautas produzidas apenas a partir das razes de estado. Encontramos aqui tambm os indcios de uma possvel esfera pblica internacional, ampliada para alm dos limites estatais e aberta a uma diversidade quase inesgotvel de interesses coletivos, um campo argumentativo global de caractersticas inditas.

A interao entre as esferas nacionais e internacionais, neste sentido, colocam novos desafios quanto aos mecanismos de formulao de polticas externas nacionais. A presena de ONGs e outras organizaes nas disputas internacionais est forando uma abertura da diplomacia profissional aos impulsos decorrentes de mobilizaes sociais locais que impactam cada dia com maior intensidade as instncias globais. Esta tendncia se fortalece, naturalmente, na medida em que avanam os processos democrticos nacionais, ampliando assim os canais de participao das sociedades civis. Como uma espcie de "cidado coletivo" as ONGs estariam assim contribuindo para o nascimento de uma esfera pblica internacional que desafia a institucionalidade dominante e reinvindica mecanismos de participao. Uma empreitada de muito risco, mas tambm um desafio que merece o nosso entusiasmo.

Concluso

Finalmente, gostaria de concluir estas notas chamando a ateno para alguns pontos que deixei de tocar acima ou o fiz de forma pouco enftica. O primeiro a convico de que estamos diante de um momento de grandes mudanas do ponto de vista da institucionalidade internacional. Os fatos da modernidade contempornea, em particular as muitas dimenses da globalizao, esto a exigir um novo arcabouo poltico para a gesto da ordem internacional. As Naes Unidas, certamente, constituem o terreno mais frtil s experimentaes, embora, de maneira alguma, esgotem as possibilidades para a construo de um sistema global que no esteja ancorado apenas nos governos.

As foras atuantes nessa esfera pblica internacional, em particular as organizaes da sociedade civil, esto forando uma reviso nas noes de soberania nacional, solidariedade e desenvolvimento. A expanso de uma agenda social global - em contraposio a uma perspectiva de desenvolvimento centrada na dimenso econmica, ou ainda pior, reduzida a uma viso de mercado tem servido a uma generalizao de valores comuns sem precedentes na histria da humanidade. As ONGs, entidades ambientalistas e organizaes de mulheres esto na ponta deste processo, muitas vezes frente dos prprios governos, rompendo com as fronteiras Norte-Sul (ou entre primeiro e terceiro mundo) e criando vnculos transnacionais. Podemos falar cada vez com maior propriedade sobre a existncia de um Norte no Sul e de um Sul no Norte, o que abre novos caminhos para cooperao internacional. Esta realidade, de uma forma ou de outra, ter reflexos nas instncias globais de deciso.

Um segundo ponto que gostaria de chamar a ateno, embora possa parecer bvio, que a tendncia acima no conduz naturalmente a uma ordem internacional mais democrtica. De fato, quando observamos o que se passa nas negociaes que se desenrolam no interior de organismos como a Organizao Mundial do Comrcio ou os resultados de acordos de integrao comercial como o NAFTA (North American Free Trade Agreement), percebemos os riscos que corremos. O maior deles que a autoridade dos governos nacionais seja cada vez mais erodida pelos interesses das grandes empresas transnacionais. o que chamamos no incio deste texto de tendncia oligrquica de ordenamento internacional. Este risco coloca um desafio central para a ao internacional das organizaes da sociedade civil, particularmente as ONGs: encontrar a melhor maneira de articular os processos democratizantes locais, com as iniciativas e campanhas em curso na esfera internacional, trazendo mais densidade a estes ltimos. (Wazen, 1994). Um dilema, portanto, que nos provoca a pensar formas inovadoras para a ao poltica internacional.

Finalmente, importante destacar, no caso brasileiro, o papel desempenhado pelas ONGs, na difuso para um conjunto mais amplo de atores sociais de uma agenda antes restrita aos crculos diplomticos. Embora isso ainda no tenha levado ao estabelecimento de instncias formais de participao ou dilogo entre governo e sociedade civil a respeito dos rumos da poltica externa brasileira, j existe um ambiente propcio a este tipo de colaborao. Resta saber o quanto existe de determinao poltica no estado e na sociedade civil para a ruptura com uma tradio que sempre manteve uma separao profiltica entre a poltica externa e as questes domsticas.

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Por que o Terceiro Setor cresce tanto?

Uma tendncia se generaliza mundialmente: a percepo de que o "pblico" no se confunde nem se limita ao "estatal". Multiplicam-se as iniciativas privadas com fins pblicos.

Cada vez mais, os grandes empresrios se preocupam com o bem-estar das pessoas carentes. O movimento vem ganhando tanta fora que transformou a solidariedade na oitava economia mundial. Operando fora dos limites do mercado e do Estado e agrupando fundaes, universidades, organizaes profissionais, igrejas, grupos ambientalistas e ONGs, o Terceiro Setor emprega hoje no mundo por volta de 19 milhes de pessoas e mobiliza US$ 1,1 trilho em recursos.

O que Terceiro Setor? Nos pases de economias desenvolvidas, fala-se de trs setores que colocam a sociedade em funcionamento: o primeiro corresponde ao Estado; o segundo, s empresas; e o terceiro, a toda gama de organizaes sem fim de lucro.

Empresas - a filantropia estratgica Pressionadas por comunidade, opinio pblica e governo a contribuir para solucionar os problemas sociais, grandes empresas brasileiras esto voltando mais os seus olhares para o desenvolvimento de projetos na rea social com a participao de funcionrios. A maior parte investe nas reas de educao e qualificao profissional. Mas outras reas tm merecido destaque: meio ambiente, alimentao, esporte e sade.

Por que as empresas tm-se empenhado tanto?

Hoje, qualidade, servios, preos de padro mundial e marketing inteligente deixaram de ser diferenciais. preciso possuir isto tudo e ainda fazer com que as pessoas gostem de sua empresa, identifiquem-se com sua marca e tenham satisfao em trabalhar no seu negcio.

Logo, os primeiros benefcios so:

1. Funcionrios orgulhosos quem trabalha para uma empresa que no respeita produz menos;

2. Consumidores felizes por serem seus clientes empresas que apiam instituies beneficentes capturam 80% a mais de clientes do que as que no apiam.

H ainda outras benesses alm das do mercado, como a previso de que o Terceiro Setor se transforme num celeiro de lideranas para as empresas. O guru da administrao moderna, Peter Druker, afirma que as organizaes sem fins lucrativos so verdadeiras pioneiras em uma rea vital da empresa - motivao e produtividade de pessoal. Ele defende a integrao empresa-entidades filantrpicas: as entidades podem dar aulas de como fazer mais com menos, motivao e trabalho em grupo. J as corporaes transmitem conceitos como avaliao de resultados, estabelecimento de metas e parcerias estratgicas.

Como as empresas tm agido?

>>> No basta fazer o bem. preciso mostrar que ele feito, mas sem que parea uma estratgia de marketing. Assim, em vez de dispersar recursos filantrpicos em uma dezena de entidades diversas, a empresa abraa uma nica causa e fica conhecida por ela.

>>> Gigantes da rea de tecnologia se destacam nas doaes. Elas contribuem buscando integrar comunidades carentes ao mundo da Web. IBM, Microsoft, Intel, Compaq, Motorola, Dell e Xerox tentam diminuir a distncia entre pobres e ricos, aproveitando o potencial da Internet.

No Brasil, onde menos de 3% da populao navega na Web, essas companhias comeam a centrar fogo para diminuir o chamado apartheid digital: os pobres cada vez mais excludos da nova sociedade, que gira em torno da Internet. As iniciativas vo desde doao de software e equipamentos para criao de escolas de informtica em subrbios at o gerenciamento de projetos gigantescos, que pretendem interligar favelas brasileiras.

A principal meta dessas empresas ao financiar projetos sociais ligados ao seu core-business garantir o consumidor do futuro. Por isso, a educao se tornou o principal foco de atuao social de empresas brasileiras, especialmente as ligadas rea de tecnologia.

>>> O setor social sempre viveu da caridade. Hoje procura eficincia e profissionalizao. E a entram altos executivos. Alguns deles emprestam seu prestgio (para arrecadar recursos) e talento para os negcios (para ajudar na gesto) a entidades filantrpicas. Mais do que dinheiro, doam tambm seu tempo.

O papel da Internet J no fazem mais sentido as tradicionais e impertinentes ligaes de entidades assistenciais, pedindo a colaborao do cidado comum. As instituies do Terceiro Setor elegeram a Internet como o meio mais eficaz de arrecadao de fundos. Basta convencer o internauta a navegar pelas pginas das ONGs e dar um click no mouse para que a doao seja realizada. Quem paga a conta so as empresas patrocinadoras dos sites.

>>> A pgina da campanha Mude o Brasil em um minuto, lanada em janeiro, j contabilizou mais de um milho de cliques.

>>> Os leiles virtuais so outro meio de conseguir fundos: pelos sites Lokau e Arremate, por exemplo, possvel arrematar peas doadas por personalidades e pelo setor privado, com renda destinada s instituies. A Internet agiliza as doaes, e as empresas divulgam sua imagem em uma mdia poderosa. Visando a esses benefcios do Marketing Social, grandes empresas colocam a mo no bolso.

As ONGs tambm encontram um grande potencial a ser explorado na Web. A rede mundial no serve somente para captao de recursos, mas tambm um grande trunfo na divulgao de campanhas. O interesse das instituies sem fins lucrativos em fazer parte do mundo virtual surpreendente. No Brasil, o nmero de registros .ORG, destinado a este tipo de instituio, dobrou nos ltimos doze meses. Atualmente, cerca de 5 mil entidades esto on line. Em 1996, apenas 34 instituies estavam conectadas.

A sociedade No apenas as empresas, mas a sociedade de uma forma geral est verificando que preciso fazer algo para complementar as polticas pblicas.

Muitos fazem caridade por conta prpria. No entanto, a maioria das pessoas no acha que as iniciativas voluntrias livrem o Governo de combater a desigualdade social. Elas seguem o pensamento do socilogo Betinho: ajudar com uma mo e cobrar com a outra.

Desta forma, aparecem os casos em que governo e sociedade trabalham juntos. Um exemplo o programa Alfabetizao Solidria, criado pela primeira-dama Ruth Cardoso em junho de 1997, em 38 municpios do Norte e Nordeste, onde o IBGE havia registrado os maiores percentuais de analfabetismo. No programa, jovens se dispunham a ir para distantes regies e encontrar jovens de 20 a 24 anos que pudessem ser treinados nas universidades parceiras. Este modesto programa, que em 1997 teve 9.200 alunos, no fim do ano passado j havia atendido 776 mil pessoas. O motivo? A soma de alguns fatores (parceria do projeto do Governo com universidades, apoio de empresas e cooperao de estudantes das reas mais desenvolvidas) tornou o custo de cada aluno extremamente barato.

A providncia divina A importncia da religio na rede de solidariedade outro dado importante. Quanto maior a freqncia a cultos religiosos, mais propenso as pessoas tm a fazer doaes para instituies.

Mas as pessoas que praticam alguma religio no contribuem apenas diretamente. H tambm os recursos doados s igrejas e repassados aos necessitados. No Rio de Janeiro, somente durante o ano passado, segundo pesquisa do Centro de Estatstica Religiosa e Investigaes Sociais (Ceris), foram distribudas 13,4 toneladas de alimentos e quase 18 milhes de peas de roupa e calado entre os pobres e miserveis das 240 parquias da arquidiocese.

As estatsticas >>> 13,9 milhes de brasileiros (16% da populao) dedicam, em mdia, seis horas semanais a atividades voluntrias. Nos EUA, 48,8% da populao fazem trabalho voluntrio, mas a mdia de horas dedicadas semanalmente de 4,2 horas;

>>> 79% da populao adulta do Brasil (com mais de 18 anos) doa bens ou dinheiro a instituies ou diretamente a pessoas carentes;

>>> as pessoas com renda familiar entre 10 e 20 salrios mnimos doam, em mdia, 0,8% de sua renda. J as que vivem com at dois salrios mnimos doam 3,6%, um ndice quatro vezes maior.

>>> s no Sudeste, o Terceiro Setor (considerando todas as entidades sem fins lucrativos, incluindo as filantrpicas) ocupa 1,5 milho de pessoas, sendo 1,1 milho com remunerao e 300 mil voluntrios.

>>> as fontes de recursos da ONGs so majoritariamente prprias (68,3%). O Governo fornece 14,5% dos recursos, menos que as doaes privadas (17,2%)

>>> entre estas, prevalecem os indivduos (14,2%) ante as empresas (3,2%) Como vimos, as doaes ligam-se a razes diversas: identificao com a causa, vaidade, sensao de estar sendo til, desejo de reconhecimento, sentimentos religiosos e, para as empresas, uma boa estratgia de marketing.

H ainda quem veja na filantropia uma contribuio para a economia. Os resultados seriam indiretos, como, por exemplo, o caso de pessoas incapacitadas sendo cuidadas em seus lares e no em hospitais. Enfim, todos tm uma razo para participar. O Terceiro Setor s tende a crescer.

Fontes: Folha de So Paulo; Gazeta Mercantil; Jornal do Brasil; O Globo; Revista Exame.

Por Flavia Astorga - Equipe Editorial do Instituto MVC Extrado do newsletter Ameaas & Oportunidades N 30 - SETEMBRO / 2000 Boletim do Futuro - Instituto MVC

Identidade do Terceiro Setor e sua Relao com o Estado:

Agenda para a Reforma Legal

Maria Nazar Lins Barbosa

Advogada e Pesquisadora do CETS/FGV

1. Introduo

Os Estados devem fomentar iniciativas civis que visem atenuar os graves problemas de pobreza e excluso social. O Brasil tem adotado estmulos fiscais s entidades sem fins lucrativos. Porm, freqente que na concesso de incentivos fiscais falte transparncia de critrios e eficincia de superviso. Os abusos e fraudes recebem ampla divulgao da mdia e prejudicam a imagem do terceiro setor como um todo.

Nosso estudo assinala o estado de direito em que se encontram as entidades do terceiro setor no Brasil, verificando a insuficincia dos critrios burocrticos, que pautam as relaes formais entre o terceiro setor e o Estado, no Brasil. Apontamos, na seqncia, tpicos que consideramos relevantes na agenda para a reforma legal, indicando estratgias jurdicas e fiscais que confiram maior transparncia (disclosure) e responsabilidade (accountability) s entidades do terceiro setor, favorecendo o seu fortalecimento.

2. O estado de direito do terceiro setor no Brasil

O Direito no cobre muitas vezes os fenmenos que lhe so contemporneos; tende, na verdade, a cristalizar situaes anteriores. De fato, a legislao brasileira no tem acompanhado a evoluo do chamado terceiro setor.

As regras de constituio de associaes e fundaes filantrpicas pouco evoluram desde 1917, ano em que foi editado o Cdigo Civil vigente. As regras trabalhistas no contemplam eventuais especificidades do trabalho realizado por voluntrios ou beneficirios de associaes de tipo filantrpico, paralisando iniciativas socialmente teis. A legislao fiscal privilegia associaes lucrativas privadas - educacionais e hospitalares - com incentivos desproporcionados. As subvenes oficiais so permeadas de condies de favoritismo, como denunciado, por exemplo, na CPI do Oramento. Sabe-se que na prtica a pilantropia tem sido mais favorecida pelo Governo do que a filantropia. Alm disso, as ONGs - enquanto fenmeno distinto ou mesmo alheio s formas tradicionais de assistencialismo - poderiam ter uma relao com o Estado formalmente diversa daquela que este mantm com as associaes beneficentes. Juridicamente, contudo, inexistem distines, havendo um descompasso (lacunas, inadequaes, contradies) entre o fenmeno emergente e o arcabouo jurdico em que se insere. A desorientao em relao ao assunto induz a equvocos reiterados, com solues inadequadas e at contraditrias.

As normas relativas constituio, funcionamento e gozo de benefcios fiscais para associaes e fundaes de perfil filantrpico carecem de reviso. Para ilustrar esta necessidade, detenhamo-nos a considerar o iter percorrido por aqueles que desejarem reunir esforos ou recursos para perseguir fins teis coletividade. Observemos, por exemplo, as inmeras providncias jurdicas e fiscais necessrias para iniciar e dar continuidade a uma associao sem fins lucrativos .

A associao adquire personalidade jurdica quando registrada no Cartrio Civil de Registro de Pessoas Jurdicas. A partir da data do registro, a associao passa a ter existncia jurdica. Vrios documentos devem ser apresentados para conseguir o registro, tais como a ata de constituio; os estatutos sociais(duas vias) vistados por um advogado (!); a ata da eleio da Diretoria e do Conselho Fiscal. E deve ser providenciada a publicao de um breve resumo do nome e dados da entidade, no Dirio Oficial do Estado ou num jornal de ampla circulao da cidade. Tambm ser necessrio adquirir os livros fiscais e revesti-los das formalidades legais.

Entre as providncias fiscais, so obrigatrios os registros no C.G.C/M.F. - Cadastro Geral de Contribuintes do Ministrio da Fazenda, e no Cadastro na Prefeitura CCM (Contribuintes de Rendas Mobilirias). s vezes, para que possa funcionar a entidade, tambm preciso pagar uma taxa anual, que varia em cada municpio.

Para dar continuidade entidade, novas providncias se requerem. Por exemplo, qualquer alterao posterior dos estatutos, dever registrar-se tambm no Cartrio Civil de Registro de Pessoas Jurdicas. Regularmente, devem ser elaboradas Atas de Assemblias Gerais: (Ordinrias e Extraordinrias), as atas da Diretoria, as atas de eleio, que eventualmente devem ser registradas.

Aps certo tempo de funcionamento, quando a entidade venha a possuir atividades constantes e empreendimentos slidos, pode conseguir o reconhecimento da associao como de Utilidade Pblica, ttulo que concedido pessoa jurdica de Direito Privado, constituda com a finalidade de assistir coletividade, ou um dos seus segmentos, prestando servios, -considerados de interesse pblico-, anlogos aos oferecidos pelo Estado, nas reas da cultura e assistncia social.

Uma mesma entidade pode ser declarada de utilidade pblica pela Unio, pelo Estado ou pelo Municpio, porm, estas declaraes tm independncia absoluta, a tal ponto que a declarao feita pelo Estado, no pressupe nem obriga Unio ou ao Municpio a proceder do mesmo modo.

Para que uma associao possa ser reconhecida pelo Poder Pblico como de Utilidade Pblica (em qualquer esfera), deve preencher requisitos formais, tais como fazer um requerimento dirigido ao Presidente da Repblica, Governador do Estado ou Prefeito do Municpio, solicitando a declarao de utilidade pblica; apresentar cpia autenticada dos Estatutos e da certido de seu registro em cartrio, no livro de registro das pessoas jurdicas, acompanhada de cpia autenticada do C.G.C./MF com validade); apresentar atestado de pessoa idnea ou de autoridade local; ter a gratuidade dos cargos da diretoria e do conselho fiscal, no podendo a entidade distribuir lucros para seus dirigentes, mantenedores ou associados sob nenhuma forma ou pretexto (estes dois aspectos tm que constar expressamente numa clusula nos estatutos); apresentar relatrios circunstanciados dos trs anos de exerccio anteriores formulao do pedido, discriminar os servios prestados gratuitamente daqueles efetuados mediante remunerao, para caracterizar os fins da entidade, separar por ano, deve estar assinado pela Presidente da associao); enviar o ltimo balano, que deve ser anualmente publicado, etc.

Note-se que o Poder Pblico no est obrigado a outorgar a declarao de utilidade pblica mesmo que a entidade tenha atendido todas as exigncias.

Alm disso, ser cassada a declarao de utilidade pblica da entidade que deixe de apresentar durante trs anos consecutivos o relatrio das atividades; negue prestar servios dentro dos seus fins estatutrios; ou retribua aos seus membros, diretores, associados, ou mantenedores concedendo-lhes bonificaes, vantagens ou lucros. Esta cassao um ato punitivo, por isso, sempre ser apurada a irregularidade atravs de um processo administrativo que assegurar associao o direito amplo de defesa.

Quando a entidade possua a declarao de utilidade pblica, na esfera federal, dever apresentar, at o dia 30 de abril de cada ano, ao Ministrio da Justia, um relatrio circunstanciado dos servios que prestou coletividade no ano anterior, devidamente acompanhado do demonstrativo da receita e da despesa realizada no perodo, ainda que a entidade no tenha sido subvencionada por rgo pblico.

A vantagem de obter o reconhecimento a nvel federal a imunidade de impostos. A Lei n 9.249, de 26.12.95 vedou a dedutibilidade do imposto de renda, das doaes provenientes de pessoas fsicas, antes possvel mediante a emisso de recibo. A Lei n 9.249, de 26/12/95 restringiu a possibilidade de deduo do imposto de renda das pessoas jurdicas.

Na esfera estadual, somente alguns Estados-membros disciplinaram a matria. (Estado de So Paulo, Paran, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul). Na esfera municipal, algumas leis tambm regularam o assunto. (So Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba).

Porm, outros registros pautam a relao entre as associaes sem fins lucrativos e o Estado. Entre estes, destaca-se o Registro no Conselho Nacional de Assistncia Social (CNAS), cujas principais vantagens para a entidade so a possibilidade de obter o Certificado de Fins Filantrpicos e receber o patrimnio de outra entidade congnere inscrita neste rgo. Tambm aqui, vrios e superpostos so os documentos exigidos. O Registro de Certificado de Fins Filantrpicos (CFF) - a ser renovado a cada trs anos - permite entidades usufruir da iseno das contribuies sociais, subvenes de rgos pblicos etc. Para tanto, outros documentos so exigidos.

A entidade pode requerer a imunidade ou a iseno de tributos, conforme o caso. As entidades sem fins lucrativos, esto isentas do Imposto de Renda. Devem apresentar, no decorrer do ms de junho de cada ano, a declarao de entidade isenta. A Contribuio para Financiamento da Seguridade Social uma contribuio social criada pela Lei Complementar n 70/91. devida pelas pessoas jurdicas, inclusive as equiparadas pela legislao do Imposto de Renda como tais, e incide sobre o 2% (dois por cento) do "faturamento" da renda bruta auferida pelas vendas de mercadorias e servios de qualquer natureza. Nas entidades sem fins lucrativos, no h "faturamento", a receita, -para o custeio de suas atividades-, provm de contribuies, doaes, anuidades, mensalidades, etc., por tanto, esto fora da incidncia do COFINS. Porm, se tais entidades vierem a praticar operaes que se enquadrem no conceito de "faturamento", segundo entendimento da Receita Federal, tambm vir a incidir o COFINS.

H tambm as obrigaes trabalhistas: a RAIS - Relao Anual de Informaes Sociais: obrigatria a apresentao, em janeiro de cada ano, do formulrio, tambm quando a entidade no possua nenhum empregado - nesse caso, RAIS negativa. Quando a entidade vier a contratar empregados deve adquirir e registrar na Delegacia Regional do Trabalho o Livro de Registro de Empregados, at no mximo 30 dias aps a 1 contratao; registrar entidade no sindicato representativo da categoria econmica ou profissional que lhe corresponda; recolher a Previdncia Social, Fundo de Garantia (FGTS), PIS/PASEP, e observar todos os demais encargos trabalhistas; entregar anualmente a RAIS (no negativa); efetuar a matrcula no INSS, obrigatria quando a associao tem empregados contratados; efetuar o Registro Sindical Patronal (a entidade poder pertencer ao Sindicato que agrupe instituies que tenham finalidades afins s da associao); recolher a contribuio sindical.

4. Diagnstico: alguns tpicos problemticos

O quadro apresentado permite advertir algumas das principais dificuldades legais que as entidades sem fins lucrativos enfrentam. Com efeito, as questes relativas aos registros e cadastros administrativos, bem como ao regime fiscal e tributrio, so tpicos prioritrios na agenda da reforma legal do terceiro setor.

No Brasil, a questo central parece ser a identidade do terceiro setor (quem quem neste universo) como pr-condio para o acesso a incentivos fiscais ou celebrao de convnios com o poder pblico.

Em no poucos casos, a concesso de incentivos fiscais - diretos ou indiretos - faz-se indistintamente a entidades qualificadas como sem fins lucrativos. Os critrios de apreciao para concesso de benefcios resumem-se ao exame de estatutos e documentos. Assim, entidades sem fins lucrativos que privilegiam fundamentalmente seus prprios membros ou instituidores - tais como clubes recreativos ou grmios literrios - competem por recursos pblicos destinados igualmente a entidades que atuam na defesa de segmentos politicamente dbeis ou socialmente excludos, que beneficiam fundamente um pblico-alvo distinto de seus membros ou instituidores.

Logo, a falta de clareza quanto identidade das entidades que compem o chamado terceiro setor - de benefcio mtuo ou de fim pblico - induz a equvocos quanto ao financiamento dessas entidades pelo poder pblico. Essa distino vem sendo proposta por estudiosos e consta do Manual de Prticas Construtivas em Matria de Regime Legal aplicvel s ONGs elaborado pelo Banco Mundial, e importante para melhor delimitar a relao financeira entre as ONGs e o Estado. necessrio, principalmente, estabelecer uma gradao clara de incentivos entre entidades sem fins lucrativos de fim pblico - que complementam a ao do Estado - de outras que beneficiam principalmente seus prprios membros ou instituidores.

Por outro lado, entre os tpicos consensualmente tidos como problemticos, aponta-se que a legislao dificulta a identificao e qualificao das organizaes do terceiro setor; com procedimentos desnecessrios, tais como: obrigatoriedade de ter advogado para realizar registro em cartrio; dificuldades para obteno do ttulo de utilidade pblica e certificado de fins filantrpicos; mltiplas instituies para a obteno de registros; procedimentos administrativos rgidos para cadastramentos; burocracia na renovao de documentos e na apresentao de relatrios para acompanhamento das atividades desenvolvidas pelas entidades.

Sugere-se, por exemplo, para maior simplificao e transparncia, que a imunidade seja documento suficiente para o gozo do privilgio em todas as instncias de tributao e fiscalizao. De fato, a multiplicidade de normas nas trs esferas de governo (por exemplo, utilidade pblica federal, estadual em municipal) impe s entidades um sensvel nus burocrtico e administrativo, que prejudica a realizao de suas atividades-fins. As organizaes de pequeno porte provavelmente no cumprem todas as normas que lhe so aplicveis, o que as torna vulnerveis em suas relaes jurdicas, e as condiciona a comportamentos defensivos e poucos transparentes.

Outra ordem de dificuldades a vedao de atividades economicamente ativas s entidades sem fins lucrativos. No parece razovel tal vedao, sempre e quando os ingressos de uma atividade econmica sejam destinados aos fins de interesse pblico para os quais foi constituda a entidades.

Questo polmica a proibio de remunerao de dirigentes. De acordo com o Banco Mundial: Hay una fuerte y sana tradicin de que los salarios pagos en el sector civico sean generalmente inferiores a los que se pagan en el sector con nimo de lucro. Como existe una tradicin que los miembros de la junta directiva de una ONG presten sus servicios de manera gratuita o sin remuneracin; esta tradicin debera mantenerse y fortalecerse.No entanto, parece justo admitir remunerao pelos servios prestados por diretores - mormente em face da necessidade de profissionalizao do setor. Naturalmente, a remunerao haveria de refletir valores de mercado, posto que a distribuio disfarada de lucros descaracterizaria a entidade sem fins lucrativos.

Finalmente, a sndrome da fraude e a permanncia de institutos como as subvenes sociais, prejudicam a imagem e a confiabilidade do terceiro setor. A nosso ver, deve-se tender a extino desta forma de incentivo.

5. Duas Propostas de Consenso

No que tange aos registros e cadastros administrativos, de se notar que a interlocuo poltica no Conselho Comunidade Solidria identificou duas propostas consensuais que corroboram a anlise do quadro aqui delineado. A primeira, no sentido de que o estabelecimento da identidade do terceiro setor, conduz, necessariamente, classificao adequada das organizaes que dele fazem parte, garantindo o reconhecimento das suas especificidades e viabilizando parcerias mais eficazes entre essas prprias associaes e o Estado.

No estgio atual, a legislao e os mecanismos de reconhecimento dessas associaes no atendem s expectativas das partes, seja por seus custos operacionais, seja por sua questionvel eficcia. Assim, h uma demanda pela gerao de critrios para classificar e qualificar adequadamente as instituies do terceiro setor, permitindo assim, melhor definio quanto ao acesso a eventuais benefcios e/ou incentivos governamentais, com garantia da responsabilidade administrativa dos dirigentes e responsveis pelas organizaes.

Uma segunda proposta consensual aponta para a necessidade de reviso e simplificao de procedimentos para o reconhecimento institucional das organizaes do terceiro setor, de modo a reduzir os custos operacionais e a potencializar as relaes entre o Estado e a sociedade civil.

6. Concluso

O crescimento do terceiro setor sugere a busca de frmulas jurdicas que potencializem os benefcios sociais que o mesmo suscita. Por outro lado, so necessrios mecanismos tambm jurdicos aptos a corrigir distores que o sistema hoje apresenta, em especial no mbito fiscal.

A identidade do terceiro setor e sua relao com o Estado est a exigir a ateno dos estudiosos sob o enfoque jurdido e fiscal. A multiplicao de formas associativas privadas com finalidades pblicas traz conseqncias prticas para o Direito Pblico, quer Tributrio, quer Administrativo. O alcance e a extenso do fenmeno requerem uma legislao que melhor contemple as especificidades de fins e formas associativas que persigam fins teis coletividade, e incentive as mesmas.

. Rio de Janeiro ; 1998 ; Comunicao ; Primeiro Encontro da Rede de Pesquisas sobre o Terceiro Setor na Amrica Latina e Caribe ; 182; responsvel pela informao : Rits - Estudos

Terceiro Setor

Andressa Albertini BarretoCelso Vitale

Sergio AmorimMonografia apresentada no curso de Organizao, Sistemas e Mtodos das Faculdades Integradas Campos Salles, sob orientao do Professor Mauro M. Laruccia(Disponvel na rede desde novembro de 2000)

IntroduoO campo de estudos do terceiro setor uma das reas mais novas e verdadeiramente multidisciplinares das Cincias Sociais, unindo pesquisadores de disciplinas como Economia, Sociologia, Cincia Poltica e reas acadmicas aplicadas como Servio Social, Sade Pblica e Administrao. O estudo do terceiro setor uma rea de conhecimento nova tanto no Brasil quanto no resto do mundo. No Brasil, as escolas de Administrao comearam a debruar-se recentemente sobre o tema. Neste pas, o terceiro setor no um tema extensivamente pesquisado, existindo ainda poucos estudos abrangentes, e um nmero insignificante, at recentemente, com enfoque organizacional. Nos Estados Unidos, os primeiros estudos remontam apenas dcada de sessenta, e pouco foi escrito sobre o tema antes do incio da dcada de oitenta, sendo que a maior parte da produo existente provm dos anos noventa, um piscar de olhos em termos de histria da cincia. Mesmo assim, o terceiro setor j mereceu a ateno de estudiosos da Administrao, como Philip Kotler (1999) e mesmo de Peter Drucker (1999), um dos reconhecidos "pais" da Administrao moderna.

Terceiro setor, entre todas as expresses em uso, o termo que vem encontrando maior aceitao para designar o conjunto de iniciativas provenientes da sociedade, voltadas, segundo aponta Rubem Csar Fernandes (1994), produo de bens pblicos, como, por exemplo, a conscientizao para os direitos da cidadania, a preveno de doenas transmissveis ou a organizao de ligas esportivas. Apesar de tender a prevalecer, no Brasil a expresso divide o palco com uma dezena de outros: no-governamental, sociedade civil, sem fins lucrativos, filantrpicas, sociais, solidrias, independentes, caridosas, de base, associativas etc.

A emergncia do terceiro setor representa, em tese, uma mudana de orientao profunda e indita no Brasil no que diz respeito ao papel do Estado e do Mercado e, em particular, forma de participao do cidado na esfera pblica. Isto tem levado aceitao crescente da ampliao do conceito de pblico como no exclusivamente sinnimo de estatal: "pblico no-estatal".

O estudo do terceiro setor, ou das organizaes sem fins lucrativos, , atualmente, um dos temas que mais desperta interesse nas escolas e faculdades de Administrao no Brasil. Este surpreendente e inesperado interesse reflexo de um conjunto de tendncias complexas e interrelacionadas, como a adoo do discurso da cidadania empresarial e da responsabilidade social por parte das empresas privadas; dos programas de reforma do Estado que ocorrem no mbito do governo federal e em estados e municpios, baseados nos pilares de descentralizao poltica e administrativa, privatizao de espaos anteriormente reservados esfera estatal; e, o movimento de progressiva democratizao da sociedade brasileira, que, aos poucos, deixa para trs a herana do perodo autoritrio. O termo terceiro setor, no uso corrente, usado para se referir ao social das empresas, ao trabalho voluntrio de cidados, s organizaes do poder pblico privatizadas na forma de fundaes e "organizaes sociais". Mais do que um conceito rigoroso ou um modelo solidamente fundamentado em teoria - organizacional, poltica ou sociolgica - terceiro setor, no Brasil, uma idia-fora, um espao mobilizador de reflexo, de recursos e, sobretudo, de ao.

Neste momento, o Estado, as empresas privadas, a mdia e a prpria sociedade passam a olhar com seriedade o conjunto de organizaes que compem o terceiro setor, e a universidade demandada para produzir conhecimento que permita compreender este fenmeno e apoiar o seu desenvolvimento. As escolas e faculdades de Administrao voltam seu foco para este setor e so desafiadas a adaptar o seu arcabouo de tcnicas e desenvolver conhecimento aplicado especfico a ele.

Questionar o que constitui o terceiro setor deve anteceder a mera transposio do conhecimento acumulado em gesto de empresas privadas e pblicas s organizaes sem fins lucrativos. Apenas conhecendo a sua real configurao e identificando necessidades especficas podero as escolas de gesto apoiar o desenvolvimento da sociedade civil organizada.

H consenso de que a formao de administradores profissionais para o terceiro setor deve ser modelada pelo perfil e demandas especficas destas organizaes, e no meramente pela transposio de modelos e tcnicas desenvolvidos no meio empresarial ou na administrao pblica. Questiona-se, o quanto a capacitao tradicional em gesto capaz de oferecer a resposta ao gap entre as expectativas em relao ao setor e a realidade de fragilidade observada no Brasil. Mais ainda, questiona-se se falta de capacitao o problema central do terceiro setor.

Conceitos Bsicos Terceiro SetorNa dcada de noventa, o terceiro setor surge como portador de uma nova e grande promessa: a renovao do espao pblico, o resgate da solidariedade e da cidadania, a humanizao do capitalismo e, se possvel, a superao da pobreza. Uma promessa realizada atravs de atos simples e frmulas antigas, como o voluntariado e filantropia, revestidas de uma roupagem mais empresarial. Promete-nos, implicitamente, um mundo onde so deixados para trs os antagonismos e conflitos entre classes e, se quisermos acreditar, promete-nos muito mais.

As organizaes que compem o terceiro setor evidentemente no so novas. Tm-se no Brasil, como representantes mais recentes, as organizaes no-governamentais resultantes dos novos movimentos sociais que emergem a partir dos anos setenta. Nova a forma de olh-las como componentes de um "setor" que pleiteia igualdade em relao ao Primeiro Setor que representado pelo Estado e ao Segundo Setor que representado pelo setor Privado. Um fato interessante e normalmente despercebido que, no Brasil, o terceiro setor busca seu lugar ao sol ao mesmo tempo em que proposta a parceria intersetorial que obscurece os limites entre os trs setores. O terceiro setor nasce, aqui, enquanto nos Estados Unidos foi a tentativa de demarcar a diferena e proclamar independncia dos outros setores que deu o tom do nascimento do terceiro setor.

Vrios atores contriburam para trazer tona este terceiro setor e formar um retrato positivo do seu papel, como um setor capaz de fazer frente aos problemas sociais mais prementes do pas. Mais do que as prprias organizaes sem fins lucrativos brasileiras, foram as entidades multilaterais, as empresas privadas e o Governo Federal que moldaram esta promessa.

No correto afirmar que as organizaes que compem o terceiro setor no tiveram influncia na sua atual formao; isto significaria desqualificar o seu papel na redemocratizao da sociedade brasileira e