20
Aula 1 O que é Teoria da História?

Aula 01

Embed Size (px)

Citation preview

Aula 1

O que é Teoria da História?

8

Teoria da História

Meta da aula

Apresentar a dimensão teórica do conhecimento histórico.

Objetivos

Após o estudo desta aula, você deverá ser capaz de:

1. relacionar teoria da história e consciência histórica;

2. compreender o significado da teoria na produção do conhecimento histórico;

3. identificar a diversidade de teorias da história.

Pré-requisitos

Para que você compreenda melhor esta aula, é importante que relembre as aulas da

disciplina História e Documento, especialmente sobre a existência de diferentes noções

de história na Antiguidade e, na Idade Média, sobre a consolidação da história

como disciplina científica.

9

Aula 1 – O que é Teoria da História?

Introdução

Quem é o sujeito do conhecimento histórico? Qual é o objeto

do conhecimento histórico? Quais são os limites do conhecimento his-

tórico? A disciplina Teoria da História tem como objetivo propor-

cionar uma reflexão sobre a natureza do conhecimento histórico.

A disciplina está organizada em dois blocos de aulas. No

primeiro, você vai conhecer diferentes concepções de história ela-

boradas por pensadores do Renascimento, no século XV, como Ma-

quiavel, até alguns dos fundadores das ciências sociais do século

XIX e XX, como Karl Marx e Max Weber. No segundo bloco, você

vai entrar em contato com os debates contemporâneos entre os

historiadores: o caráter científico da disciplina, as condições para

a operação historiográfica, as relações entre história e narrativa, a

construção de categorias pelo historiador, a interdisciplinaridade,

as linhas de pesquisa em história, assim como as relações entre

historiografia e demanda social.

Nesta primeira aula, vamos buscar definições para teoria da

história.

teoria da História e consciência histórica

Em primeiro lugar, é importante notar que a palavra histó-

ria possui dois significados:

a) a realidade histórica;

b) o registro da realidade histórica.

A disciplina Teoria da História compreende uma reflexão so-

bre o registro da realidade. Uma das características do ser humano

é a capacidade de pensar e de se comunicar. Nem sempre se

Teoria1. Conhecimento

especulativo, meramente racional.

2. Conjunto de princípios fundamentais de uma arte ou de uma

ciência. 3. Doutrina ou

sistema fundado nesses princípios.

11. Filos. Conjunto de conhecimentos

não ingênuos que apresentam

graus diversos de sistematização e

credibilidade, e que se propõem explicar,

elucidar, interpretar ou unificar um dado

domínio de fenômenos ou de acontecimentos

que se oferecem à atividade prática. Novo

Dicionário Aurélio.

PrincípiosProposições diretoras de

uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência

deve estar subordinado. Novo Dicionário

Aurélio.

10

Teoria da História

contou ou escreveu história da mesma maneira. Também é distinto,

no tempo e no espaço, o sujeito que conta ou escreve a história:

o ancião, o chefe da aldeia, o sábio, o monge, o prefeito, o pes-

quisador e o professor. Na disciplina História e Documento, você

estudou as diferentes formas de representar o passado, como a

elaboração de mitos e a narrativa poética na Antiguidade, assim

como as biografias de santos (hagiografias), os relatos de peregri-

nação aos locais sagrados (uma espécie de crônica das cruzadas)

e a historiografia urbana na Idade Média.

Em diferentes sociedades, os homens pensam sobre a sua

existência e procuram responder às grandes questões: De onde

viemos, quem somos e para onde vamos? Ao longo do tempo,

os homens responderam de maneiras variadas a essas perguntas,

porque, nas diferentes sociedades, percebiam a sua existência no

mundo de maneiras variadas. Nós vamos considerar, como a his-

toriadora Agnes Heller, a resposta a essa pergunta a chamada

“consciência histórica”.

A nossa consciência histórica orienta a maneira como expli-

camos nossa história. Toda teoria da história corresponde a uma

forma de consciência histórica. Todos nós possuímos uma visão

sobre a história. Mesmo sem estudar muito sobre o assunto, sem ser

um especialista, imaginamos que a história acontece de uma certa

maneira, por determinadas razões. Uma das maiores polêmicas

entre as diferentes teorias da história aconteceu entre os que acre-

ditavam na providência divina como explicação para a história e

aqueles que consideravam a ação dos homens determinante para

as transformações sociais, como vamos ver nas próximas aulas.

Atualmente, a história é considerada uma disciplina científi-

ca. O pesquisador segue um método e elabora hipóteses a partir:

a) da documentação histórica (as fontes primárias, vestígios

do passado);

b) de pesquisas realizadas anteriormente;

c) de sua visão sobre a própria história.

11

Aula 1 – O que é Teoria da História?

Ao narrar uma história, sempre organizamos as informações

para dotá-las de sentido. Portanto, em segundo lugar, vale notar

que teoria possui dois sentidos, segundo Julio Arostegui:

a) ...toda disciplina normatizada constrói... um corpo de

explicações articuladas para definir o objeto ao qual de-

dica seu estudo. (...) um trabalho desse tipo corresponde

... (ao) nome específico de teoria da História. É a teoria

que deve buscar dar uma resposta convincente à pergun-

ta: o que é a História? Constitui um saber substantivo e

empírico que trata de definir qual é o campo da realida-

de que o historiador aborda e que de modo algum equi-

vale ao “desenvolvimento” da História Universal, mas sim

à reflexão sobre a natureza do histórico.

b) ...como se conhece a História (?)... Ela trata de como

se conhece a História e como os conhecimentos obtidos

podem agrupar-se de forma articulada em uma disciplina

de conhecimento. Seu tipo de saber é disciplinar ou for-

mal. Normalmente, esta segunda conterá a primeira.

Em muitos textos sobre a disciplina História, você encon-

trará referências às filosofias da história. Mas preste bastante

atenção; você perceberá que os autores podem utilizá-la com

significados diferentes:

A expressão “filosofia da história” foi inventada, no sécu-

lo XVIII, por Voltaire, que entendia por tal nada mais do

que a história crítica ou científica, um tipo de pensamento

histórico em que o historiador resolvia por si próprio, em

vez de repetir quaisquer histórias encontradas em alfarrá-

bios. A mesma expressão foi utilizada por Hegel e outros

escritores, em fins do século XVIII, dando eles, porém,

um sentido diferente, ao considerá-la simplesmente como

história universal. Encontra-se um terceiro emprego dessa

expressão em vários positivistas do século XIX, para quem

12

Teoria da História

a filosofia da história era a descoberta das leis gerais que

regem o curso dos acontecimentos que devem ser referi-

dos pela história (COLLINGWOOD, 1986, p. 7).

Então, vejamos as diferenças entre os diferentes autores.

Para Voltaire, filosofia da história era a história crítica ou científica,

um tipo de pensamento crítico e independente sobre a realidade.

Para Hegel, filosofia da história era simplesmente o desenvolvimen-

to da História Universal. Para pensadores positivistas do século XIX,

como Augusto Comte, a filosofia da história era o conhecimento

sobre as leis gerais que orientam o sentido da história. Cada um

desses sentidos corresponde a uma teoria da história, a uma con-

cepção sobre a natureza do conhecimento histórico.

No século XIX, com a consolidação da concepção de conhe-

cimento histórico como conhecimento científico, muitos historiado-

res deixaram de buscar explicações globais e passaram a preocu-

par-se com a pesquisa histórica em si, com explicações parciais,

provisórias e objetivas. Atualmente, a teoria da história consiste

em uma reflexão sobre o conhecimento histórico, sobre suas condi-

ções, seus meios, seus limites.

Atende ao objetivo 1

1. Como explicamos a nossa história? Nós estamos no século XXI, mas ainda hoje regis-

tramos a nossa história de maneira parecida com as primeiras narrativas do que foi con-

siderado a história do Brasil. O livro História da província de Santa Cruz é considerado a

primeira história do Brasil. Foi escrita pelo viajante Pero de Magalhães de Gândavo e publi-

cada pela primeira vez em 1576. Leia o trecho a seguir, e depois responda às questões:

13

Aula 1 – O que é Teoria da História?

a) relacione as semelhanças entre as narrativas de Gândavo e a dos livros didáticos de

história do Brasil;

b) identifique as diferenças entre a explicação de Gândavo, no século XVI, e as explica-

ções correntes.

Capítulo Primeiro: De como se descobriu esta província e a razão por que se deve chamar

Santa Cruz e não Brasil.

Reinando aquele mui católico e sereníssimo príncipe el-rei dom Manuel, fez-se uma frota

para a Índia na qual ia como capitão-mor Pedro Álvares Cabral; foi essa a segunda na-

vegação que fizeram os portugueses para aquelas partes do Oriente. Partiram da cidade

de Lisboa a nove de março no ano de 1500. E estando já entre as ilhas do Cabo Verde,

nas quais iam fazer aguada, deu-lhes um temporal, que foi a causa de não as poderem

alcançar e de se apartarem alguns navios da companhia. ... E havendo já um mês que

iam naquela volta navegando com vento próspero, foram dar na costa desta província, ao

longa da qual cortaram todo aquele dia, parecendo a todos que era alguma grande ilha

que ali estava, sem haver piloto nem outra pessoa alguma que tivesse notícia dela, nem

que presumisse que podia haver terra firme naquela parte ocidental. E no lugar dela que

lhes pareceu mais acomodado, surgiram naquela tarde, onde logo viram a gente da terra,

de cuja semelhança não ficaram pouco admirados, porque era diferente da de Guiné

não se parecia com nenhuma das outras que tinham visto. ... No dia seguinte, saiu Pedro

Álvares com a maior parte da gente em terra, onde se disse logo missa cantada e houve

pregação; e os índios que ali se ajuntaram ouviam tudo com muita quietação, usando de

todos os atos e cerimônias que viam fazer os nossos... E tornando a Pedro Álvares, seu

descobridor, passados alguns dias, que ali esteve fazendo a sua aguada e esperando por

tempo que lhe servisse, antes de partir, e para deixar um nome àquela província por ele

descoberta, mandou alçar uma cruz no mais alto lugar de uma árvore, onde foi arvorada

com grande solenidade e bênçãos dos sacerdotes que o acompanhavam, dando à terra

esse nome de Santa Cruz; cuja festa a Santa Madre Igreja celebrava naquele mesmo dia

(três de maio). ... Por onde não parece razoável que lhe neguemos esse nome, nem que

nos esqueçamos dele tão indevidamente por outro que lhe deu o vulgo depois que o pau

da tinta começou a vir para estes reinos. Ao qual chamaram brasil por ser vermelho e ter

semelhança de brasa, e por isso ficou a terra com esse nome de Brasil. Mas para que nisto

magoemos ao demônio, que tanto trabalhou e trabalha para extinguir a memória da santa

cruz (mediante a qual fomos redimidos e livrados do poder de sua tirania) e desterrá-la

dos corações dos homens, restituamos-lhe seu nome e chamemos-lhe, como em princípio,

província de Santa Cruz... (HUE; MENEGAZ, 2004.).

14

Teoria da História

Respostas Comentadasa) Por mais que haja pesquisas sobre a existência das populações indígenas no nosso terri-

tório, é comum registrarmos o início da história do Brasil com a chegada dos portugueses.

A nossa história geralmente é identificada como a história da descoberta e ocupação do

território pelos representantes do Estado português. Daí a importância da reflexão sobre o

nome do país, reforçando a identidade nacional e não outras identidades.

b) Gândavo registrou o encontro entre portugueses e indígenas de maneira harmônica.

Atualmente, os historiadores explicam como os representantes da Igreja Católica procura-

ram converter os indígenas ao catolicismo e o conseqüente processo de aculturação. A

narrativa de Gândavo também considera significativo para a história do país a existência

de elementos transcendentes, como a santa cruz e o demônio. Os historiadores, mesmo os

profissionais religiosos, consideram o tema da escolha do nome do país importante como

evidência da cultura católica que marcou a nossa colonização.

o significado da teoria na produção do conhecimento histórico

Agora, vamos estudar a definição de teoria e analisar a

sua importância na produção do conhecimento histórico. A teoria

é um tipo de conhecimento específico: especulativo, meramente ra-

cional. O que isso significa? A teoria é obra da razão, do pensa-

mento humano. Consiste em um conjunto de princípios fundamen-

tais de uma ciência. É o ponto de partida. E é a partir desse ponto

de partida, de uma certa visão sobre o seu campo de estudos, que

o pesquisador observa a realidade.

15

Aula 1 – O que é Teoria da História?

Cada disciplina estuda um aspecto da realidade. A Medici-

na estuda o corpo humano, observa o seu funcionamento e procura

soluções para as suas doenças. A Biologia estuda os seres vivos,

observa a diversidade da flora e da fauna e o impacto das mu-

danças climáticas no meio ambiente. A Geografia estuda a Terra,

seus acidentes físicos, climas, solos e vegetações, assim como as

relações entre o meio natural e os grupos.

A disciplina do conhecimento histórico observa as transfor-

mações das sociedades no tempo, em suas diferentes dimensões,

a economia, a política, a cultura. Se podemos nos referir a dimen-

sões da realidade, já estamos entrando no campo das ciências

sociais. Vejamos: o que encontramos na realidade são as pessoas

(homens e mulheres) e os recursos naturais (a terra, a água dos

rios e do mar, minérios etc.). A ideia de que podemos estudar a

economia, entendida como “os fenômenos relativos à produção,

distribuição, acumulação e consumo de bens materiais” (Novo Di-

cionário Aurélio) é o resultado de uma reflexão do homem sobre a

sua própria sociedade!

Muitas vezes, é difícil perceber a ação do homem na caracte-

rização da nossa realidade histórica justamente porque tais catego-

rias são construídas pelas sociedades muito lentamente. Parece que

é natural, mais um aspecto da natureza como a existência dos dias

e das noites. Você não precisou começar a estudar história para

ouvir falar em nacionalismo, Estado, revoluções, classes sociais,

capitalismo. E, no entanto, são conceitos das ciências sociais.

16

Teoria da História

Atende ao objetivo 2

2. A etimologia, estudo da origem das palavras, nos mostra significados antigos de um

vocábulo. Leia sobre a origem da palavra teoria e enumere os diferentes sentidos atribu-

ídos ao longo do tempo. O que é comum aos diferentes sentidos?

O termo teoria é de origem grega. Theoros designava a pessoa enviada para consultar

um oráculo ou levar uma oferenda a uma divindade; também designava o espectador nos

jogos ou concursos teatrais e, daí, o que olhava (o que inspecionava soldados, por exem-

plo). O sentido mais abstrato é posterior: o que contempla, o que especula ou percebe, o

que considera (lembremos, de passagem, como perdemos o sentido mais concreto dado

pela etimologia deste último termo: o que está na companhia das estrelas). Theorema, da

mesma família, antes de ter o sentido atual (praticamente restrito às ciências exatas) signifi-

cava visão, espetáculo. No século IV a.C., quando Platão e Aristóteles começaram a usar

palavras no gênero neutro para designar termos mais abstratos, a palavra theoria passa a

ter um sentido que utilizamos ainda hoje, o de se opor à prática. Apresentar uma teoria é

um modo de re(a)presentar mentalmente o mundo real, de conhecê-lo, a partir de um mé-

todo adequado (no caso de Platão, o método dialético). Lembremos, ainda, que o verbo

conhecer (oida) tem o sentido primeiro de ver com os olhos da mente, vindo da mesma

raiz – eido (forma hipotética da raiz verbal) – do verbo ver (eidon). Nesta mesma família

estão palavras como ídolo (eidolon), representação (eikasia), imagem, seja ela produzida

pela pintura ou escultura, e ícone (eikon) (CHIARA, 2008. p. 17-38).

Resposta ComentadaA palavra teoria possuiu diferentes significados, tais como: a pessoa enviada para con-

sultar um oráculo ou enviada a uma divindade, assim como a pessoa que observava um

acontecimento como espectador ou como inspetor. Posteriormente, o termo ganhou um sen-

tido mais abstrato, designava a pessoa que contempla ou considera. Quer dizer, observa

a realidade e elabora reflexões sobre a mesma. Desde o século IV a.C., a palavra teoria

é utilizada principalmente como um modo de representar mentalmente o mundo real. Esse

17

Aula 1 – O que é Teoria da História?

sentido destaca a dimensão da teoria como elaboração mental para a compreensão do

mundo. É comum aos diferentes sentidos a dimensão da teoria que envolve o trânsito entre

diferentes níveis. No sentido concreto, as relações entre o homem comum e o oráculo ou o

homem comum e a divindade. No sentido abstrato, as relações entre observar a realidade

e abstrair. E, afinal, a capacidade de observar o mundo real e elaborar uma teoria, uma

representação mental.

A diversidade de teorias

Como vimos, as teorias sociais têm relação com uma certa

visão sobre a realidade. É possível ver a realidade sob diferentes

ângulos, por isso há várias teorias para cada campo do conheci-

mento, inclusive na História. No entanto, cada teoria apresenta

uma explicação geral sobre o seu campo do conhecimento e de-

senvolve conceitos e hipóteses compatíveis entre si:

Todo o conhecimento científico é um sistema coerente,

onde, por isso, nenhuma hipótese deve contradizer qual-

quer outra. (...) Desse modo, a hipótese “o átomo é indi-

visível”, apesar de nunca termos visto um átomo, põe-se

em conflito com toda a teoria nuclear de nossos dias,

cujas leis e técnicas são amplamente utilizadas. Por outro

lado, a hipótese “excluída a terra, há vida inteligente em

nossa Galáxia”, apesar de não ter sido confirmada, e ser

até mesmo negada por inúmeros pesquisadores, não é

incompatível com o nosso conhecimento científico. Inicia-

ção à lógica e à metodologia da ciência.

Toda teoria social desenvolve conceitos que nos permitem ex-

plicar diferentes sociedades. Uma das características de uma teoria

é justamente a capacidade de abstrair as particularidades históri-

cas e generalizar. É comum o pesquisador se referir aos conceitos

como ferramentas, porque, assim como as chaves, os conceitos são

18

Teoria da História

capazes de abrir portas ou, como imagens fotografadas por satéli-

tes, mostrar uma nova perspectiva para antigos mistérios.

O historiador da ciência Thomas Kuhn fala mesmo da sensa-

ção do cientista de aterissar em um outro planeta quando há mudan-

ças de paradigmas científicos e elaboração de novas teorias:

O historiador da ciência que examinar as pesquisas do

passado a partir da perspectiva da historiografia con-

temporânea pode sentir-se tentado a proclamar que,

quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio

mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas

adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em no-

vas direções. E o que é ainda mais importante: durante

as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e diferen-

tes quando, empregando instrumentos familiares, olham

para os mesmos pontos já examinados anteriormente.

É como se a comunidade profissional tivesse sido subita-

mente transportada para um novo planeta, onde objetos

familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se

apregam objetos desconhecidos. Certamente não ocorre

nada semelhante: não há transplante geográfico; fora do

laboratório os afazeres cotidianos em geral continuam

como antes; Não obstante, as mudanças de paradigma

realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por

seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferen-

te. Na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-

se através do que vêem e fazem, poderemos ser tentados

a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a

um mundo diferente (KUHN, 2005, p. 147).

Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência (KUHN, 2005).

19

Aula 1 – O que é Teoria da História?

www.dominiopublico.gov.br

No site, você encontra vídeos produzidos pela TV Es-

cola (Ministério da Educação) para serem utilizados em

sala de aula. Veja: De onde vêm o dia e a noite? O

sistema heliocêntrico ou a teoria do heliocentrismo é apresenta-

da através de uma animação didática. É interessante perceber

que o estudo sobre o movimento da Terra, hoje, é matéria obri-

gatória nas aulas de Física, mas já foi considerado inadmissí-

vel pela Igreja Católica, que condenou Galileu Galilei à morte

através do Tribunal da Santa Inquisição.

Como se dão essas mudanças radicais no campo das ciên-

cias sociais? É importante notar que toda teoria da história pressu-

põe uma idéia de sociedade. Cada teoria da história expressa uma

determinada visão de mundo. Vamos comparar algumas teorias

sociais.

No século XIX, muitos cientistas acreditavam na teoria do

determinismo racial. Quer dizer, consideravam que os homens não

eram iguais, que havia “raças inferiores”. Nos anos 1930, décadas

após a abolição da escravidão no Brasil (1888), muitos intelectuais

consideravam que a pobreza da maioria da população brasileira

era causada pela inferioridade da população de origem indígena

e africana. Observavam a sociedade brasileira e diagnosticavam

as suas mazelas de acordo com a teoria do determinismo racial.

O pernambucano Gilberto Freyre, ainda jovem, foi estudar

na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Ali, foi aluno de

um antropólogo alemão, Franz Boas. Os estudos de Boas levaram-no

a elaborar uma nova teoria antropológica: o culturalismo. De acor-

do com essa teoria, os homens se diferenciam pela sua cultura, e não

pela sua raça. Cada cultura possui uma história particular, não sen-

do possível valorar as diferentes culturas, julgando umas melhores do

Gilberto Freyre Um dos intelectuais

brasileiros mais importantes. influenciou fortemente as pesquisas no campo da

antropologia e da história do Brasil. Nasceu em 1900, em Pernambuco. Estudou na Universidade de Columbia,

nos Estados Unidos, e na Universidade de Oxford, na Inglaterra. O seu livro mais conhecido é Casa Grande & Senzala, publicado pela primeira vez em 1933 no Brasil e depois traduzido e publicado em diversos

países. A obra de Gilberto Freyre é extremamente

polêmica, ao mesmo tempo em que mostrou a grande

contribuição da cultura africana para a cultura

brasileira, também construiu o mito da democracia racial:

a ideia de que no Brasil a miscigenação entre brancos e negros expressa relações

harmônicas e ausência de racismo.

Crédito da imagem: http://

pt.wikipedia.org/wiki/

Ficheiro:Gilberto_Freyre.JPG

20

Teoria da História

que as outras. A partir dessa nova teoria do culturalismo, Gilberto

Freyre passou a estudar a sociedade brasileira e produziu novos

diagnósticos sobre as mesmas mazelas identificados por outros in-

telectuais brasileiros. Ele mostrou a importância da discriminação

entre os efeitos da herança racial e os de influência social e cultural,

assim como o peso do sistema econômico de produção.

Atende ao objetivo 3

3. No prefácio à primeira edição de Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre escreveu

sobre a importância das aulas de Franz Boas para a elaboração de sua obra. Leia a

seguir um trecho desse prefácio.

O professor Franz Boas é a figura de mestre que me ficou até hoje maior impressão.

Conheci-o nos meus primeiros dias em Columbia. Creio que nenhum estudante rus-

so, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos

da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se

tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da nossa maneira de resolver

questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto

como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de

ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos – des-

cendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole do Brooklyn.

Deram-me a impressão de caricaturas de homens. (...) A miscigenação resultava

naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos

arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mula-

tos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos

e mulatos doentes. Foi o estudo da antropologia sob a orientação do professor

Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados

dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a

considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os

21

Aula 1 – O que é Teoria da História?

efeitos das relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança

cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultu-

ra assenta todo o plano deste ensaio (FREIRE, 1933, p. 32).

O antropólogo Franz Boas não era um estudioso da sociedade brasileira, como pôde

orientar Gilberto Freyre nas suas pesquisas sobre o Brasil?

ComentárioA orientação mais importante de Franz Boas para Gilberto Freyre se deu no plano teóri-

co. No caso de Gilberto Freyre, a teoria antropológica elaborada por Boas, o culturalis-

mo, mostrou a diferença entre os conceitos de raça e de cultura.

No site Domínio Público, é possível ler as obras

de Charles Darwin no original, em inglês, e em

espanhol: El origen de las espécies e Viaje de un

naturalista alrededor del mundo.

22

Teoria da História

Atividade Final

Em 2009, cientistas e intelectuais de todo o mundo estão comemorando os 200 anos de

nascimento de Charles Darwin e os 150 anos de sua obra-prima: A origem das espécies.

Em muitos países, exposições, simpósios e programas de entrevistas estão sendo realiza-

dos. Trata-se de um tema extremamente importante por, pelo menos, duas razões: a) a te-

oria da seleção natural revolucionou a ciência no século XIX; b) no entanto, há pesquisas

mostrando um número muito alto de professores de ciências que explicam a origem das

espécies a partir da teoria criacionista. Leia com atenção o texto seguinte e pesquise, na

sua região, como os professores de Ciências e de História se posicionam sobre o assunto.

http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=61572

JC e-mail 3698, de 09 de Fevereiro de 2009.

17. darwin e a escravidão, artigo de Marcelo Gleiser

Livro diz que ideias abolicionistas levaram britânico a propor a teoria da evolução

Marcelo Gleiser é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA),

e autor do livro “A Harmonia do Mundo”. Artigo publicado na “Folha de S. Paulo”:

Como o bicentenário do nascimento de Darwin é nesta quinta-feira dia 12 de feverei-

ro, nada mais adequado do que voltarmos a escrever sobre a sua obra e seu legado.

Acaba de sair aqui nos EUA um livro oferecendo um ponto de vista bem diferente

sobre a motivação principal que levou Darwin a desenvolver a teoria da evolução.

Em “A Missão Sagrada de Darwin” (“Darwin’s Secret Cause”), Adrian Desmond e

James Moore argumentam que foi a repugnância moral de Darwin à escravidão que

o motivou a levar adiante suas ideias.

E foi quando Darwin visitou o Brasil durante a famosa viagem em torno do mundo com

o navio HMS Beagle que ele travou contato direto com os horrores da escravidão.

Certo dia, quando passava de canoa por um mangue, Darwin ouviu um grito

terrível. O doloroso episódio ficou gravado na sua memória. “Até hoje”, escreveu

o naturalista em seu jornal mais tarde, “quando ouço um grito à distância, revivo

com enorme intensidade o que senti quando, ao passar perto de uma casa em Per-

nambuco, ouvi gemidos terríveis, certamente vindos de um escravo sendo torturado

e, tal qual uma criança, não pude fazer nada.”

Em seus livros “A Origem das Espécies” e “A Origem do Homem e a Seleção Natu-

23

Aula 1 – O que é Teoria da História?

ral”, Darwin argumenta por uma origem comum da vida. Sendo assim, existe uma

irmandade entre todos os homens, o que torna a escravidão um crime absurdo.

O interessante do argumento é que, segundo os autores, foram as ideias abolicionis-

tas de Darwin que o levaram à teoria da evolução e não o contrário.

Seu avô, o famoso médico e poeta Erasmus Darwin, era um notório abolicionista,

muito amigo do industrial Josiah Wedgwood, cujas porcelanas são conhecidas até

hoje. Wedgwood usou seus fornos para criar um medalhão com a imagem de um

escravo acorrentado e a legenda: “Não sou também um Homem e seu Irmão?”

O medalhão era um objeto cobiçado por todos que eram da mesma opinião.

As famílias Darwin e Wedgwood foram unidas por uma série de matrimônios.

O próprio Charles casou-se com Emma Wedgwood, sua prima de primeiro grau.

(Interessante que o pai da evolução tivesse feito isso. Tiveram dez filhos e dois morre-

ram na infância. A cada vez que um dos filhos ficava doente, Darwin se preocupava

com os laços excessivamente estreitos de sua família. Nesse caso, ter dez filhos deve

ter sido provavelmente uma espécie de experimento.)

A abolição era certamente tema constante nas conversas da família, um trato quase

hereditário. Foi nesse ambiente ideológico que Darwin cresceu e criou os filhos.

Certamente, Darwin viu escravos ainda na Inglaterra. Ao estudar (teologia) em Cam-

bridge, aprendeu que certos membros da igreja anglicana eram radicalmente contra

a escravidão. Sabia que não estava sozinho e que o movimento abolicionista apenas

cresceria com o tempo. Mas queria mais do que argumentos apenas morais. Queria

argumentos científicos.

Ao propor a evolução das espécies, Darwin não nos excluiu. Esse foi o maior motivo

para a recepção nem sempre positiva de suas ideias. “O quê? Nós, descendentes

de orangotangos? Primos dos negros da África, dos chineses e dos aborígenes da

Austrália? Ridículo!”

Para Darwin, não havia dúvidas. A vida bifurcava a partir de um tronco

único. O fato de sabermos hoje que nossa constituição genética é extrema-

mente próxima da dos chimpanzés (entre 95% e 98,7%) só fortalece o seu

argumento. Se a ciência de Darwin não foi criada para justificar a unidade

da vida, ela certamente o fez.

(Folha de S. Paulo, 8/2/2009)

24

Teoria da História

ComentárioAtravés desta pesquisa sobre a história de vida de Darwin, você pode perceber como

a elaboração de uma teoria pode estar estreitamente vinculada a diferentes debates

políticos. No caso, a defesa do princípio da igualdade entre os homens e o repúdio à

instituição da escravidão. A partir de entrevistas com professores de história e de ciên-

cias, você pode observar como as escolhas teóricas entre o evolucionismo e o criacionis-

mo estão relacionadas às suas visões de mundo.

ConClusão

Atualmente, a teoria da história consiste em uma reflexão

sobre o conhecimento histórico, sobre suas condições, seus meios,

seus limites. Desde o século XIX, com a consolidação do conhe-

cimento histórico como conhecimento científico, os historiadores

deixaram de buscar explicações globais para o sentido da histó-

ria. No entanto, as referências teóricas, o corpo de explicações

articuladas que definem o objeto de estudo, são imprescindíveis ao

trabalho do historiador.

rEsuMo

A palavra história possui dois significados: a) a realidade

histórica; b) o registro da realidade histórica. A disciplina Teoria da

História tem com objetivo proporcionar uma reflexão sobre a natu-

reza do conhecimento histórico. A teoria consiste em um conjunto

de princípios fundamentais de uma disciplina; é um conhecimento

meramente racional. Cada teoria apresenta uma explicação geral

sobre o seu campo do conhecimento e desenvolve conceitos coe-

rentes entre si.

25

Aula 1 – O que é Teoria da História?

Informação sobre a próxima aula

Na próxima aula, você conhecerá as concepções de

história dos historiadores do Renascimento, especialmente a de

Nicolau Maquiavel.