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Escola de Ciências Sociais Departamento de Linguística e Literaturas Mestrado em Literaturas e Poéticas Comparadas Edição 2013-2015 Docente: Professor Doutor Hélio J. S. Alves Discente: Ivo Cota / nº11724 TEORIA DA LITERATURA E COMPARATISMO I Intertextualidade, Memória Poética e Alusão na Poesia de Gastão Cruz ÉVORA, 31 de Janeiro de 2014

Contaminações Literárias em Gastão Cruz

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Leitura do autor à luz da teorização de Gian Biagio Conte.

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Escola de Ciências Sociais

Departamento de Linguística e Literaturas

Mestrado em Literaturas e Poéticas Comparadas – Edição 2013-2015

Docente: Professor Doutor Hélio J. S. Alves

Discente: Ivo Cota / nº11724

TEORIA DA LITERATURA E COMPARATISMO I

Intertextualidade, Memória Poética e Alusão na Poesia de

Gastão Cruz

ÉVORA, 31 de Janeiro de 2014

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Índice

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………….......3

1. A INTERTEXTUALIDADE......................................................................................4

1.1.Concepção kristeviana e a sua inaplicabilidade na obra gastoniana……….……4

1.2. A Intertextualidade em Conte: uma apropriação……………………………….7

2. MEMÓRIA POÉTICA E ALUSÃO……………………………………………….8

2.1. Prolegómeno teórico……………………………………………………………8

2.2. Memória poética e o poema “A Poesia depende da memória”………………..10

2.2. Alusão em Gastão Cruz: Pessanha e Pessoa…………………………………..13

CONCLUSÃO…………………………………………………………………………16

BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………...17

ANEXOS………………………………………………………………………………18

3

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visará essencialmente uma abordagem da poesia de Gastão

Cruz à luz das teorizações de Gian Biagio Conte sobre a Memória Poética e a Alusão na

sua obra The Rhetoric of Imitation: Genre and Poetic Memory in Virgil and other Latin

Poets. Surgindo este trabalho no âmbito do seminário de Teoria da Literatura e

Comparatismo I, onde foram estudadas ao longo de um semestre as teorizações de três

autores sobre as relações intertextuais na literatura, nomeadamente a teoria de Gian

Biagio Conte sobre a Imitação, a de Harold Bloom sobre a questão da Influência e por

fim a teoria de Julia Kristeva sobre a problemática da Intertextualidade (sem

necessariamente obedecer a esta ordem específica), esta pequena dissertação focar-se-á

numa aplicação teórica dos conceitos de Conte à poesia gastoniana. A teoria de Harold

Bloom será, por uma questão de selecção e inaplicabilidade apenas, deixada de parte ao

longo das páginas que se seguem…

No primeiro ponto, o trabalho visa uma passagem reflexiva pela teorização

kristeviana a propósito da Intertextualidade e uma refutação dessa mesma teoria, por todas

as razões que serão apresentadas adiante, em favor da concepção que Gian Biagio Conte

defende sobre o conceito.

O segundo ponto, dividido em três subpontos específicos, visará, num primeiro

momento, uma reflexão teórica em torno dos conceitos de Gian Biagio Conte (Memória

Poética e Alusão) cuja aplicação à poesia de Gastão Cruz é proposta e analisada nos dois

subpontos finais, através de poemas escolhidos pela manifestação sintomática dos

conceitos de Conte no seu discurso poético.

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1. A INTERTEXTUALIDADE

1.1.Concepção kristeviana e a sua inaplicabilidade na obra gastoniana

Se por um lado, ao abordar as relações entre a poesia de Gastão Cruz e outros

textos literários, pegar no conceito de Intertextualidade nos possa parecer inevitável, por

outro, devemos atentar sobre o carácter de aplicação teórica pretendido no âmbito de um

seminário como o de Teoria da Literatura e Comparatismo, no qual o presente trabalho

se insere. Não podendo negar que a análise da apropriação feita por um poeta de textos

que não os seus (anteriores ou não) se trata à partida de uma análise de cariz intertextual,

devo notar que o termo (intertextual) é aqui utilizado na sua acepção mais lata e

superficial, descuidando muito levianamente todo o background teórico e ideológico,

todas as implicações no âmbito da semiótica e da linguística estruturalista que suportam

um conceito como este. Posto isto, a teoria de Julia Kristeva sobre a Intertextualidade,

embora incontornável nos estudos de relações entre textos, revela toda uma bagagem

ideológica que não parece pertinente num estudo de aplicação teórica sobre a poética

gastoniana.

Deste modo, salvaguardando a coerência do presente estudo, o termo intertextual,

quando aqui aplicado concentra somente uma definição como a que é dada por Vitor

Manuel de Aguiar e Silva na sua Teoria da Literatura:

«O texto é sempre, sob modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma

tessitura polifónica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se

corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências.

(…) Julia Kristeva designou o fenómeno do dialogismo literário com um termo

destinado a conhecer uma fortuna excepcional na teoria e na crítica literárias

contemporâneas: intertextualidade. Num dos seus ensaios obre as teorias

linguísticas e poéticas de Bachtin, escreve Kristeva que “tout texte se construit

comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un

autre texte» (Silva, 2007: 625)1.

É nesta acepção mais genérica que o termo intertextualidade será eventualmente

usado, explícita ou implicitamente, no presente trabalho.

1 Os itálicos empregues nesta citação foram utilizados pelo autor da obra citada

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Vejamos agora outra citação, desta vez da própria Julia Kristeva, onde a

intertextualidade da autora demonstra simultaneamente as potenciais vantagens teóricas

para o presente trabalho e os obstáculos ideológicos, apenas muito subtilmente implícitos,

que a noção encerra:

«O significado poético remete a outros significados discursivos, de modo

a serem legíveis no enunciado poético vários outros discursos. Cria-se,

assim, em torno do significado poético, um espaço textual múltiplo, cujos

elementos são suscetíveis de aplicação no texto poético concreto.

Denominaremos esse espaço de intertextual. Considerado na

intertextualidade, o enunciado poético é um subconjunto de um conjunto

maior, que é o espaço dos textos aplicados em nossos conjuntos.»

(Kristeva, 2005: 185).2

Ao referir a confluência de vários “outros discursos” no enunciado poético, Julia

Kristeva abre as portas para a noção de intertextualidade que interessa reter numa poética

como a de Gastão Cruz, onde as referências interdiscursivas surgem de modo frequente e

variado, quer por epígrafes, alusões (que analisaremos adiante) ou tantos outros métodos

de interdiscursividade com vozes extrínsecas aos enunciados poéticos do autor. As

adversidades na noção de Kristeva surgem quando a mesma refere que “Considerado na

intertextualidade, o enunciado poético é um subconjunto de um conjunto maior”. Os

problemas da aplicação da teoria da autora surgem aqui, de modo apenas sugerido, mas

inegavelmente implícito. Para Kristeva, o enunciado poético surge somente como uma

gota num oceano onde todos os peixes nadam, sendo o oceano, neste caso, o discurso (ou

significado) poético (ou linguagem poética como a mesma autora designa na sua obra

posterior La révolution du langage poétique), e os peixes os autores e todos os enunciados

individuais, nadando na mesmíssima água que é a literatura. O grande obstáculo3 na

concepção kristeviana de intertextualidade é este nivelamento (quase) uniformizador da

literatura, ou linguagem poética, que o posicionamento da autora implica

ideologicamente; tal posicionamento resulta numa visão que descarta noções como a de

autoridade. Para Kristeva, dada a sua perspectiva semiótica, a questão do autor carece

fundamentalmente de relevância para o estudo da significação poética por si levado a

2 O bold é nesta citação utilizado pelo autor do trabalho, de modo a destacar os períodos textuais de relevância por serem referidos ou citados no seguimento do corpo de texto principal. 3 Obstáculo, note-se uma vez mais, apenas para o trabalho aqui desenvolvido, uma vez que resultaria na inaplicabilidade da análise aqui pretendida

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cabo; por outras palavras, para a autora a questão autoral é, arrisquemo-nos a acrescentar,

insignificante, e não somente por não importar, mas porque não atribui significação ao

enunciado poético.

Neste sentido, existe como que uma neutralização do autor, e de certo modo do

próprio texto, na teoria da intertextualidade de Kristeva, centrada sempre no seu objectivo

semiológico da busca de significação no enunciado poético e não numa perspectiva mais

consonante com as práticas da teoria e crítica literárias que interessam aqui.

Atentemos sobre o seguinte dístico de Gastão Cruz, intitulado “Cf. Baudelaire”,

presente na sua obra Campânula: “Passamos através de florestas de símbolos /

Reconhecê-los-emos no dia que termina?” (Cruz, 2009: 148). Deixando por enquanto o

título de lado, ao lermos o primeiro verso deste pequeníssimo poema, torna-se legível no

enunciado outra voz, outro poema (nomeadamente o poema “Correspondências” de

Charles Baudelaire), outro enunciado, outro discurso, como Kristeva afirma ser o

resultado da intertextualidade: “no espaço de um texto cruzam-se e neutralizam-se vários

enunciados tomados noutros textos” (Kristeva, 1984: 12); no entanto, e atentemos agora

sobre o título do poema, apesar do cruzamento de enunciados, como referido por

Kristeva, estar aqui também presente (recorde-se o primeiro verso), não existe de todo

uma neutralização dos mesmos; pelo contrário, o autor faz questão de intitular o dístico:

“Cf. Baudelaire”, incitando o leitor a confrontar este enunciado com o do poeta francês.

Neste sentido, não só a neutralização de enunciados deixa de fazer sentido como a questão

autoral passa a ter uma relevância indiscutível. É reconhecida pelo poeta a autoria de

Baudelaire sobre o poema “Correspondências” e, para além de reconhecida, essa autoria

é exposta pelo título do poema.

Embora não tão explícitas talvez, abundam referências desta natureza na obra

poética de Gatão Cruz. Dito isto, podemos facilmente afirmar que o que na teoria de

Kristeva é invisível na massa magmática do discurso poético, a autoria, torna-se na obra

de Gastão Cruz não só visível, mas destacada. Baudelaire cruza-se no poema de Gastão

Cruz não em anonimato, não como um não-ser no espaço intertextual, mas como o autor

do poema “Correspondências”, autor distinto de Gastão Cruz e ao mesmo tempo

distinguido por si.

A questão da distinção autoral é substancialmente relevante na poética gastoniana,

uma vez que o autor faz uso de referências como a anterior numa espécie de homenagem

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ou tributo ao autor aludido, o que torna a teoria kristeviana sobre a intertextualidade

inviável num estudo de caso da poesia de Gastão Cruz.

1.2. A Intertextualidade de Conte: uma apropriação

Gian Biagio Conte afirma em nota num dos seus livros:

«The term “intertextuality” is now widely accepted not least because of its

opposition to “intersubjectivity.” The term was coined by The Quel group and

was associated with Kristeva’s work. Although these scholars often extend the

ideological import of the notion too far for the concrete needs of the philologist,

who is a less abstract analyst of texts, we should probably accept the term and

seek to redefine it. I consider it equivalent to the less technical “poetic

memory” – a strategic working equivalence suited to our needs. (…) Gérard

Genette in Palimpsestes (…) tries to sort out the terminology and in the end

accepts the term while purifying it of the ideological overtones found in

Kristeva’s work; he thereby makes it a more neutral instrument suited to

philogical analysis» (Conte, 1986: 29).

Embora a apropriação que Conte faz do termo intertextualidade, na linha de

Genette, esteja longe de ter no seu centro a preocupação com a distinção autoral referida

no subponto anterior, permite pelo menos desligar o termo de Kristeva da sua carga

ideológica e, por extensão, do anonimato e insignificância a que a mesma veta a questão

do autor.

Deste modo, e usando a apropriação de Conte do termo, a intertextualidade com

outros autores e obras na poesia de Gastão Cruz será assim analisada de acordo com a

teoria de Gian Biagio Conte sobre a memória poética e a alusão que formam o núcleo de

conceitos central na teorização do autor italiano.

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2. MEMÓRIA POÉTICA E ALUSÃO

2.1. Prolegómeno teórico

Como refere Conte na citação do subponto anterior a sua noção de

intertextualidade aproxima-se bastante, e sobrepõe-se até, à sua noção de memória

poética:

«It is therefore not difficult today to accept the idea that a text can be read only

in connection with, and in opposition to, other texts. These texts form a grid

through which the text is perceived according to the expectations of a reader

capable of organizing its sense. Readers or imitators (also a type of reader) who

approach the text are themselves already a plurality of texts and of different

codes, some present and some lost or dissolved in that indefinite and generic

fluid of literary langue. Intertextuality, far from being a matter of merely

recognizing the ways in which specific texts echo each other, defines the

condition of literary readability. Certainly the sense and structure of a work

can be grasped only with reference to other models hewn from a long series of

texts of which they are, in some way, the variant form. The literary text

realizes, transforms, or transposes in relation to these essential basic models.

A literary work cannot exist outside its system; it can be perceived only if the

reader is able to decipher literary language, and this ability presupposes

familiarity with multiple texts» (Conte, 1986: 29)

Apesar de o termo memória poética não estar presente nesta citação, a mesma

define sumariamente o que Gian Biagio Conte entende pelo conceito. Esta condição da

legibilidade literária que a intertextualidade representa para Conte é a mesma condição

que constitui a memória poética teorizada pelo autor. Como o mesmo afirma, e como

parafrasearemos aqui, o sentido de estrutura de uma obra só pode ser apreendido através

da referência a outros modelos estabelecidos, modelos que constituem uma rede, ou

sistema no qual o texto literário se insere e ao qual deve obedecer. Este sistema deve ser

tido em conta quer pelo autor, quer pelo leitor, que Conte considera ter um papel activo

nos mecanismos funcionais do discurso literário. Neste sentido tanto o autor como o leitor

têm um determinado número de leituras que constituem a sua memória poética que forma

o sistema ao qual o texto literário é atribuído e determina a forma como o mesmo é

elaborado, no caso do autor, e recebido, no caso do leitor. Dito isto, a memória poética e

a intertextualidade são ambas condições essenciais à legibilidade literária e, por

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conseguinte, determinam o modo como os diversos textos literários se relacionam entre

si. Outro factor importante, que surge quase como um sinónimo dos dois anteriores (já

quase sinónimos entre si também) é o conceito de tradição que pressupõe o conjunto de

autores-modelo e textos-modelo anteriores ou, se quisermos usar um termo

consideravelmente evitado por Conte, de fontes que moldam a priori a elaboração do

discurso poético.

Intimamente ligado ao conceito de memória poética surge outro conceito na obra

de Gian Biagio Conte que é central ao trabalho teórico do autor: o conceito de alusão.

Recuperando e apropriando os estudos sobre a “arte da alusão” de Giorgio Pasquali,

Conte escreve a sua obra The Rhetoric of Imitation: Genre and poetic memory in Virgil

and other latin poets em torno do conceito de alusão. Referindo, sempre de acordo com

a sua actividade como filólogo, a alusão como um elemento retórico fundamental no

discurso poético, Conte analisa ao longo da obra, com recurso à relação entre os textos de

Vergílio e de poetas que o antecederam, a função retórica da alusão.

«When a past text is summoned up allusively and its latent vitality spreads

through a new poem, allusion works as an extension of the other weapons in

the poet’s armory. Allusion, in fact, exploits a device well known to classical

rhetoric, “figurae elocutionis” (tropes). If a poem uses “golden scythe” to

denote “moon”, rhetoric teaches me that this is a figure – more precisely, a

metaphor. The verbum proprium “moon” and the figurative expression

“golden scythe” denote exactly the same object, but the difference in functions

is crucial. By substituting a metaphorical use of language for a

nonmetaphorical use the poet sets up a tension. A gap is created between the

letter (the literal meaning of the sign) and the sense (the meaning), and this gap

has its own form, which we may term a “figure”. Thus allusion works just the

same way, and in the same semantic area, as a rhetorical figure. The gap in

figurative language between that which is said (as it first appears), a letter, and

the thought evoked, the sense. And just no figure exists until the reader

becomes aware of the twofold nature of figurative language, so too allusion

only comes into being when the reader grasps that there is a gap between

meaning (…) and the image that is its corollary (...) In the art of allusion, as in

every rhetorical figure, the poetry lies in the simultaneous presence of two

different realities that try to indicate a single reality. (…) The poetry lies in the

area carved between the letter and the sense. It exists by refusing to be only

one or the other» (Conte, 1986: 38-39)

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Nesta citação Conte explicita, muito sinteticamente, a função retórica da alusão,

que consiste na potencialização da expressividade lírica do discurso poético. Como o

autor indica, comparando a alusão à figura rétorica, nomeadamente a metáfora, o efeito

poético resulta do espaço virtual criado entre significante e significado, utilizando a

terminologia de Saussure, e é nesse espaço que a poesia se revela. Semelhantemente, a

alusão existe nessa tensão entre a realidade literal e a realidade evocada. Deste modo,

como o autor menciona posteriormente na sua obra, o texto ou autor aludidos são

transportados das suas coordenadas próprias para as coordenadas do novo enunciado

poético, tal como a metáfora move o significado do seu verbum proprium para um verbum

improprium, dando origem a uma nova realidade e produzindo por isso aquilo que já foi

aqui denominado como efeito poético. O efeito poético da alusão assenta na possibilidade

e capacidade da linguagem possuir múltiplas conotações.

2.2. Memória poética no poema “A Poesia Depende da Memória”

Interessa agora centrarmo-nos sobre a produção poética de Gastão Cruz4 e

verificar como os conceitos estruturais da teorização empreendida por Gian Biagio Conte

se manifestam, mais ou menos sintomaticamente, na produção poética do poeta

português.

Neste sentido, iniciando com o conceito de memória poética veremos como a

mesma se encontra na poesia gastoniana e como pode sustentar a aplicação teórica dos

demais conceitos de Conte propostos para análise neste trabalho. Deste modo, veremos

primeiramente como um poema específico, nomeadamente “A Poesia Depende da

Memória”, publicado no ano de 2000 no seu livro Crateras, manifesta a importância que

a memória poética comporta na poesia do autor:

«A poesia depende da memória

É a sua matéria o que se esquece

ou lembra, tanto faz; não há história

da vida verdadeira Só conhece

4 As análises dos poemas apresentados não serão feitas, de modo algum, de um ponto de vista tipicamente crítico ou de análise textual mas sim dentro do propósito de aplicação teórica das teorias de Gian Biagio Conte que este trabalho propõe.

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o que viveu quem o presente apresse

(do passado a errada divisória,

a fronteira incessante) quando cesse

a dor vivida para entrar na glória

da montanha que guarda o fogo absorto

ou da voz crematória que no forno

estala como palavra sussurrada

Há-de faltar-lhe a água nesse porto

há-de o seu corpo morto ser adorno

de poemas que não recordam nada»

(Cruz, 2009: 260-261)

Primeiramente, convém notar a dupla interpretação que o poema permite. Num

primeiro plano, e em consonância com o ambiente poético de Crateras, obra durante a

qual prolifera uma poesia de regresso ao passado, muitas vezes à infância, a temática do

poema parece centrar-se na memória empírica de um sujeito como matéria-prima da

poesia. Neste sentido, o sujeito poético afirma a dependência dessa memória sem a qual

o propósito poético se torna vazio. No entanto, atentemos sobre a seguinte afirmação do

autor num texto reflexivo sobre a sua mais recente colectânea de poemas:

«Tenho, nos tempos recentes, feito referência a momentos e épocas

da minha vida de que nunca falara, ou a que aludira em termos mais

indefinidos, por, na ocasião, ter sido essa a linguagem que se me impôs e me

pareceu funcionar poeticamente. (…)

Dou agora por mim, em certos momentos (…) a tentar compreender

poemas antigos, o que significa procurar reconstruir os factos, as

circunstâncias, os acontecimentos, as ideias, que com eles se relacionam (…)

Mas isso, verdadeiramente, pouco ou nada interessa.

(…) Sabemos (saberemos?) que não são os acontecimentos o que

aquece ou ilumina a poesia. E que por isso temos alguma dificuldade em

determinar o que ela seja, onde ela esteja, donde ela venha» (Cruz, 2009: 371-

372)

Contrastando esta afirmação com a breve interpretação, muito directa, já feita do

soneto “A Poesia Depende da Memória” claramente verificamos que, embora esta não

seja uma interpretação propriamente errada, está no entanto longe de encerrar uma

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compreensão suficiente do poema, uma vez que, como o próprio poeta afirma no texto

supracitado, embora a experiência empírica seja de facto uma componente da sua

produção poética, esta na realidade “pouco ou nada interessa”.

Dito isto, recorreremos aqui à memória poética de Conte para chegarmos a uma

melhor interpretação deste poema. Para além de ser, na interpretação aqui proposta, a

verdadeira matéria-prima do poema em questão, a memória poética parece ser igualmente

uma noção perante a qual Gastão Cruz evidencia uma aguda consciência, como não

poderia deixar de ser, visto que (segundo Conte) se trata de uma condição inerente a toda

a produção literária. Neste sentido, e assente na consciência do poeta sobre a memória

poética, “A Poesia Depende da Memória” surge como uma reflexão meta-poética, isto é,

um poema que se pensa a si mesmo e à poesia num todo, que bebe inevitavelmente de um

sistema literário no qual se insere, que, como refere Conte, se constrói sobre modelos pré-

estabelecidos, por afinidade ou oposição (temática, retórica, de género) à memória de

outros textos.

Atentemos sobre a primeira estrofe: “A poesia depende da memória / É a sua

matéria o que se esquece / ou lembra, tanto faz; não há história / da vida verdadeira”. Os

versos aqui citados legitimam a possibilidade de uma interpretação como a já proposta:

um poema que se pensa a si e aos outros. No entanto, nada no poema corrobora tal

interpretação, nem mesmo quando a questão do passado surge na segunda estrofe do

poema, dado que pode referir-se tanto à memória empírica como à poética. Nada para

além da afirmação já transcrita do poeta sobre a sua poesia pode corroborar a aplicação

do conceito de Conte na interpretação deste poema e fazer levantar no leitor suspeitas

sobre o verdadeiro tema do poema, que na primeira interpretação referida parecia tão

assertivo. Contudo, esta ambiguidade criada pelo poema seja talvez a corroboração

necessária para a leitura do mesmo à luz da memória poética de Gian Biagio Conte, uma

vez que a ambiguidade abre espaço ao carácter dúbio que, segundo o filólogo, uma figura

retórica, ou a própria alusão, compreendem.

Esta hipótese leva-nos então ao próximo ponto, onde a presença da alusão na

poesia gastoniana será analisada.

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2.3 A alusão em Gastão Cruz: Pessanha e Pessoa

A alusão é um recurso estilístico frequentemente utilizado por Gastão Cruz na sua

poesia, tanto em forma de epígrafe, como na reescrita de versos de outros autores, ou

ainda tomando o nome de um autor e recuperando dados biográficos e bibliográficos que

trabalha poeticamente, como é o caso do seu poema “Ovídio envia o seu livro a Roma”,

onde estão presentes referências ao exílio e à produção literária do autor latino; esta é

talvez a principal razão pela qual, como já foi dito, uma teoria como a de Kristeva se torna

inaplicável à poesia de Gastão Cruz, cujo significado poético tão frequentemente assenta

na distinção de certos autores ou obras e na recuperação e transporte dos mesmos para o

enunciado poético presente.

Deste modo, centrar-nos-emos brevemente em dois poemas concretos que

ilustram dois modos distintos de utilização da arte alusiva: “Um País no Mapa” e “Cantiga

do Fogo”, ambos de Crateras.

No primeiro poema, “Um País no Mapa”, a alusão surge no seu modo mais subtil

na poesia de Gastão Cruz. É este o tipo de alusão a que Conte se refere quando afirma:

«The practice of classical “imitatio” is an invitation to the double reading of

texts that is implicit in the work of deciphering the intertextual relationship

with a model. The modes of reading (and imitatio) of each epoch are implicit

in their modes of writing. The text requires the cooperation of a reader as a

necessary condition for its realization. To be more precise, a literary text is a

product whose interpretative destiny belongs to its own generative mechanism.

Generating a text means activating a strategy that predicts the moves of others.

In my research on poetic memory in general and on allusion in particular, I

tried to show how the author presupposes the competence of his (or her) own

Model Reader. Today I would go further and say that the author establishes

the competence of the Model Reader, that is, the author constructs the

addressee and motivates the text in order to do so» (Conte, 1986: 29-30)

Atentemos agora sobre a alusão feita no poema em questão e retomemos de

seguida o excerto de Conte. Em “Um País no Mapa” Gastão Cruz reescreve um verso de

Fernando Pessoa para referir um passado perdido: “O que resta de ti lugar abstracto / Com

rios, afluentes e batalhas / serras e linhas férreas no exacto / mapa fugaz, como ilusões ou

malhas // pelo império tecidas, desenhados?” (Cruz, 2009: 237). Quando o sujeito poético

diz “ilusões ou malhas // pelo império tecidas” está claramente a reescrever o verso de

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Fernando Pessoa presente em discurso parentético no poema “O Menino da Sua Mãe”:

“(Malhas que o império tece!)” (Pessoa, 2012: 82)5. Invertendo somente a sintaxe do

verso, Gastão Cruz transporta-o para um contexto radicalmente novo, mantendo, no

entanto, a sua forma semelhante o suficiente à do poema anterior para activar a memória

poética do leitor em relação ao verso pessoano. É neste sentido que Conte afirma, na

citação anterior, que o poeta estabelece a competência do seu leitor modelo; isto é, para

o processo alusivo funcionar plenamente, é necessário da parte do leitor o reconhecimento

do texto aludido no enunciado presente. É por isso requerida para a plena fruição poética

de “Um País no Mapa” uma competência e um conhecimento literários da obra de

Fernando Pessoa. Existindo tal competência o processo de alusão é bem sucedido, assente

na empatia do leitor pelo verso pessoano, na partilha de uma memória poética e no

reconhecimento de uma tradição literária em comum com o autor do poema.6

Considerando agora o segundo poema (“Cantiga do Fogo” – Cruz, 2009: 253-254)

em que a presença da alusão se faz notar com um mecanismo diferente, verificamos que

o método alusivo é bem mais directo e evidente.7 Sendo este um dos casos em que a

alusão é feita através de uma epígrafe (“Em ruína a casa nova… / Clepsidra” [Cruz,

2009: 253]), o autor, no entanto, não cinge a arte alusiva do poema à dita epígrafe, usando-

a sim como um mote a partir do qual conduz o poema8. Como a epígrafe evidencia, este

poema faz alusão ao soneto “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” de

Camilo Pessanha, integrado no seu único livro de poesia Clepsidra. Neste caso o poema

é desenvolvido recuperando o ambiente do poema de Camilo Pessanha e inserindo-o num

discurso distinto, recuperando ao longo do texto diversos motivos do poema do poeta

simbolista português (como são o caso da casa, como já a epígrafe refere, do vinho

derramado, da atitude “simiesca” dos agentes de deterioração do lar perdido, entre

outros), e alterando-os ligeiramente. A diferença mais marcada em relação ao poema de

Pessanha está no destinatário do sujeito lírico, que no poema de Gastão Cruz já não é a

5 Ambos os poemas (“Um País no Mapa” de Gastão Cruz e “O Menino da Sua Mãe” de Fernando Pessoa) podem ser lidos no anexo adicionado no final do presente trabalho. 6 Cf. Gian Biagio Conte, The Rhetoric of Imitation: Genre and poetic memory in Virgil and other latin poets, página 35. 7 Ambos os poemas (“A Cantiga do Fogo” de Gastão Cruz e “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” de Camilo Pessanha) podem ser lidos no anexo adicionado no final do presente trabalho. 8 Este processo alusivo é, por exemplo, usado de modo idêntico no poema “1934, 1959”, incluído na obra Repercussão, também de Gastão de Cruz, onde o poeta usa duas epígrafes referindo dois poemas de Álvaro de Campos a partir dos quais o poema é desenvolvido.

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alma da mãe falecida do sujeito poético, mas sim um pastor que passa pelas ruínas da

casa referida ao longo do poema.

Concluindo, leia-se a seguinte passagem onde Conte reflecte sobre a análise feita

por Pasquali da “técnica da epígrafe” (que é igualmente utilizada no poema “Cantiga do

Fogo” de Gastão Cruz) na obra Orazio lírico e o seu efeito retórico nas odes de Horácio,

que se estende também, por conseguinte, ao poema gastoniano:

«In Orazio lirico, Pasquali interprets two odes of Horace, analyzing the

poet’s “epigraph” technique – that is, his use of a quotation from another poet

to begin a poem whose development includes that initial poetic retrieval but

subordinates it to its own purposes, including deliberate contrast. What is

recalled is extraneous to the new poem because it is irrevocably embedded in

the other poetic situation. But the previous poetic context necessarily carries

over into the new. The new text therefore tends to become a visible “sign” of

the old.” (Conte, 1986: 25)

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CONCLUSÃO

Após a conclusão do presente trabalho podemos afirmar uma manifestação clara

dos conceitos de Conte na obra poética de Gastão Cruz. Apesar de o número de poemas

selecionados truncar uma visão abrangente da obra poética do autor e não permitir uma

exploração cabal da obra gastoniana, os mesmos manifestam características gerais da

poética do escritor, que se encontram, regra geral, presentes ao longo da sua produção

poética.

Neste sentido, pretendeu-se aqui escolher algumas poesias, entre muitas outras

que seriam certamente aplicáveis à abordagem aqui levada a cabo, que reunissem os

elementos paradigmáticos da teorização de Gian Biagio Conte sobre a Intertextualidade,

a Alusão e a Memória Poética, sem que, ao mesmo tempo se afastassem do discurso

poético gastoniano.

Chegados ao fim, podemos sobretudo verificar como Gastão Cruz se manifesta na

sua produção poética como um verdadeiro poeta dos poetas e da poesia, isto é, um poeta

que não se fecha na sua esfera discursiva, mas que está, pelo contrário, aberto a todo o

tipo de vozes, legados e influências. Desta abertura destemida resulta a inaplicabilidade

da teoria de Harold Bloom acerca da angústia da influência na poética gastoniana, onde

as influências estão presentes e são inegáveis, mas ao mesmo tempo aceites sem a pressão

do agon poético, na inexistência do qual a teoria de Bloom se desvirtua. Ao contrário do

poeta angustiado teorizado por Bloom, Gastão Cruz apresenta-se como um agente da

poesia receptivo a uma Tradição que é por si encarada como a Hipocrene da criação

poético-literária.

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BIBLIOGRAFIA

Activa:

- CRUZ, Gastão. Os Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009

Passiva:

- BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Lisboa: Assírio & Alvim

- BLOOM, Harold. The Anxiety of Influence: a Theory of Poetry. New York:

Oxford University Press, 1997.

- CONTE, Gian Biagio. The Rhetoric of Imitation: Genre and Poetic Memory in

Virgil and other latin poets. New York: Cornell University Press, 1986.

- KRISTEVA, Julia:

- Introdução à Semanálise. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 2005.

- O Texto do Romance: Estudo semiológico de uma estrutura discursiva

transformacional. Lisboa: Livros Horizonte, Lda, 1984

- MAFFEI, Luis; EIRAS, Pedro. A Vida Repercutida: Uma leitura da poesia de

Gastão Cruz. Lisboa: Esfera do Caos Editores e Autores, 2012.

- PESSANHA, Camilo. Clepsidra e outros poemas. Lisboa: Edições Ática, 1997.

- PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012.

- SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. Coimbra: Edições

Almedina, 2007.

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ANEXOS

“Um País no Mapa”

O que resta de ti lugar abstracto

com rios, afluentes e batalhas

serras e linhas férreas o exacto

mapa fugaz, como ilusões ou malhas

pelo império tecidas, desenhados?

Foi uma lenda fútil a existência

rectangular (dois lados ladeados

pelo oceano) da tua inexistência?

Entre o mar e Espanha continuas

talvez real como no corpo a chama

febrilmente traçada pelas tuas

vias férreas perdidas panorama

da verdade de tudo o que vivi

se tudo o que vivi vivi em ti

(Cruz, 2009: 237)

“O Menino da Sua Mãe”

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado –

Duas de lado a lado –,

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue-

De braços estendidos,

Alvo . louro, exangue,

Fita com o olhar langue

E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único , a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira,

Ele é que já não serve.

De outra algibeira alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço… Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:

«Que volte cedo, e bem!»

(Malhas que o império tece!)

Jaz morto e apodrece

O menino da sua mãe.

(Pessoa, 2012: 81-82)

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“Cantiga do Fogo"

Em ruína a casa nova…

Clepsidra___________

Pastor que estás passando outrora

na minha casa que não há

diz-me se a casa desta hora

é outra ou a ruína já

da casa nova

Pastor vindo derramado

por mão de símio ou humana

mão é uma corda de fogo que do corpo

cinge e corrige

a perfeição

Pastor que estás passando em frente

do corpo morto e glorioso

diz-me se vês ainda o fogo

ou põe a mão na cinza quente

que ficou

Pastor que passas onde mora

o coração que há-de habitar

a casa ausente em ruína e glória

põe fogo à casa que

não há

(Cruz, 2009: 253-254)

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençois de linho,

Onde esperei morrer – meus tão castos lençóis?

Do meu jardim exíguo os altos girassóis

Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)

A mesa de eu cear – tábua tosca de pinho?

E me espalhou a água? E me entornou o vinho?

- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mas da cova.

Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova…

Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.

Alma da minha mãe… Não andes mais à neve,

De noite a mendigar às portas dos casais.

(Pessanha, 1997: 51)