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REFLEXÕES 17 Domingo 2 de Agosto de 2020 Luís Kandjimbo |* A Literatura-Mundo é uma disciplina que desde 1990 vem conhecendo larga di- fusão. Mas, as interrogações acerca da sua rigorosa defi- nição têm dado lugar ao sur- gimento de um alternativo campo do conhecimento, os Estudos Literários Globais. A natureza controversa da denominação reside no facto de não possuir suficiente al- cance, em virtude de as lín- guas europeias serem os únicos critérios de definição do seu campo e de selecção dos materiais de estudo, delas dependendo exclusivamente. Mas as variedades nacionais dessas línguas que se tor- naram transnacionais reve- lam a existência de outras culturas, já que a diversidade linguística e cultural é, na verdade, a realidade domi- nante nos países africanos cujas línguas oficiais são eu- ropeias. Nos Países de Língua Por- tuguesa, foi em Portugal que, há cerca de três anos, se re- gistou uma das iniciativas que assinala os efeitos da crescente vaga do campo de estudos, visando legitimar uma “Literatura-Mundo Comparada”. O Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Uni- versidade de Lisboa publicou uma antologia, “Literatura- Mundo Comparada: Pers- pectivas em Português”,de que fui um dos colaboradores convidados, partindo do pos- tulado segundo o qual o ob- jectivo é “contribuir para a construção da Literatura- Mundo (Weltliteratur, World Literature) em português e em Portugal”. Como já referi, nos espa- ços académicos do chamado “Norte Global”o uso dessa denominação disciplinar não é unânime. A norte-ameri- cana Emily Apter escreveu um livro intitulado “Against World Literature”, (Contra a Literatura-Mundo), fun- damentando a sua perspec- tiva na intradutibilidade das obras não-ocidentais, con- trariamente ao que preten- dem os seus defensores. O estudo da posição que as literaturas africanas ocu- pam na Literatura-Mundo, enquanto domínio da lite- ratura comparada, definida como investigação de qual- quer literatura nacional do ponto de vista internacional, permite verificar a exis- tência de uma tensão entre a lógica da diversidade e a lógica da hegemonia lin- guística. A manifestação concreta disso verifica-se através da penetração geo- política de critérios estéticos e editoriais típicos dos sis- temas literários nacionais ocidentais no espaço de ou- tras literaturas consideradas “periféricas”, de acordo a ferramentas analíticas eu- rocêntricas desse domínio dos estudos literários. O “Sul Global” literário Em finais do século XX, essa geopolítica linguística e li- terária toma forma com a consagração do “Sul Global”, enquanto categoria, por opo- sição ao “Norte Global”. A hegemonia do poder de de- finir do “Norte Global” e os seus fundamentos linguís- ticos conferiram dignidade institucional ao espaço ou objecto em que se confinam as outras sociedades, civi- lizações, culturas, línguas e literaturas, não-ocidentais, quando, em 2007, foi criada a revista “The Global South”, “O Sul Global”, e a consti- tuição de grupos de trabalho nos congressos da Associação de Línguas Modernas, em painéis dedicados aos Estudos Culturais e Literários Com- parados, a organização aca- démica legitimadora dos Estados Unidos da América. No fundo, trata-se de um eufemismo através do qual se substitui a expressão “Ter- ceiro Mundo”, outra cate- goria, já esvaziada de sentido com o fim da Guerra Fria. Este é o sentido que inspira o artigo inaugural da referida revista especializada, assi- nado por Arif Dirlik. Mas, contra-argumentos também não faltam. A sul-africana Isabel Hofmeyr, dá o tom com o seu “Against the Global South”, (Contra o Sul Global), ao considerar que o termo pode ter esgotado a sua uti- lidade praticamente antes de começar. Contradiscursos A este propósito, vou des- tacar o essencial das ideias de três reputadas especia- listas acerca dos problemas que se levantam. Pascale Casanova (1959- 2018) é francesa, distinta crítica literária da sua gera- ção, infelizmente, já falecida. Notabilizou-se com uma abordagem daquilo a que designou por “república mundial das letras”.Foi professora visitante no De- partamento de Estudos Ro- mânicos da Universidade de Duke, Estados Unidos da América. Gayatri Chakravorty Spi- vak (1942), e Shu-Mei Shih (1961), representantes do “Sul Global”,são asiáticas cujas ideias têm impacto no mercado académico global, quando se trata de proble- matizar o poder de definição no domínio das Humanida- des. Curiosamente, estas duas interlocutoras são oriundas de dois países emergentes que integram os chamados BRICS. Uma é in- diana e outra chinesa. Spivak, professora de Hu- manidades na Universidade de Columbia, Estados Unidos da América, e fundadora do Instituto de Literatura Comparada e Sociedades, é uma proeminente auto- ridade dos estudos femi- nistas, estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais como pode ser comprovado pelo seu livro “Crítica da Razão Pós-Colonial”. Shu-Mei Shih, presidente da Associação Americana de Literatura Comparada, professora de Literatura Comparada, Línguas e Culturas Asiáticas e Estu- dos Asiáticos Americanos na Universidade da Cali- fórnia, Los Angeles, é res- ponsável pela criação de um novo campo científico interdisciplinar, os “Es- tudos Sinófonos”. Na sua argumentação, Pascale Casanova admite a existência de uma geopolítica das relações literárias inter- nacionais. Diz ela que a “re- pública mundial das letras” é caracterizada por uma do- minação política através das línguas. Não sendo a língua um instrumento neutro, mantém dependências po- líticas. Assim, a dominação política é exercida sob a for- ma linguística, implicando por isso uma dependência literária. Para Pascale Casa- nova as línguas europeias como factor de potência sus- citam uma categorização dos fenómenos com um forte acento etnocêntrico num exercício eufemístico que legitima a marginalização ou periferização das “pequenas literaturas” como as Litera- turas Africanas escritas em línguas europeias. Desvenda assim o carácter maligno das teorias dominantes no mer- cado literário ocidental. Por Gayatri Chakravorty Spivak e Shu-Mei Shih nutro uma simpatia que se funda nas suas preocupações com a situacionalidade das teorias e a posicionalidade dos seus autores, no âmbito da geo- política dos estudos globais onde se inscreve o sul do continente asiático. Tematizando a proble- mática, tal como o demonstra no seu livro “The Death of Discipline”, (A Morte de uma Disciplina), Spivak vem pro- por o abandono da sofisticada tradição linguística da Lite- ratura Comparada ocidental que se estrutura em torno do que designa por anglo- fonia, francofonia, lusofonia e teutofonia. Defende a neces- sidade de se adoptar as línguas do Hemisfério Sul como meios culturais activos, e não como meros objectos de estudo cul- tural à luz de modelos de um presumível centro do espaço global. Por isso, considera que a Literatura Comparada pode contribuir para a fortuna das literaturas nacionais do “Sul global”, mas também da escrita das suas próprias lín- guas, perante a ameaça pro- gramada que paira sobre a sua existência. Gayatri Chakravorty Spivak é uma das responsáveis pela consagração operatória da ex- pressão “Sul global” nos estudos literários, atribuindo-lhe um sentido radicalmente diferente, Por sua vez, no seu interes- sante artigo “Global Literature and the Technologies of Re- cognition”, (Literatura Global e Tecnologia de Reconheci- mento), Shu-Mei Shih proble- matiza o discurso académico e o mercado literário como tec- nologias de reconhecimento a que são submetidas as literaturas não-ocidentais, consideradas minoritárias, de acordo com as chamadas teorias “universa- listas” eurocêntricas. Ela entende que no discurso académico oci- dental o “reconhecimento” de outras literaturas assenta na pura negligência ou ignorância fingida, características da pro- dução neocolonial de conhe- cimento e da divisão global do trabalho intelectual. Observa que o silêncio e a ignorância exacerbam as estratégias de hierarquização do que designa como sendo a “política de re- presentação e reconhecimento centrada no Ocidente”.Para Shu-Mei Shih a generosidade dos académicos ocidentais é sinónimo de uma atenção de- sigual e menos rigorosa, em matéria de avaliação das li- teraturas não- ocidentais, consideradas minoritários e ausentes do cânone lite- rário ocidental. Ética da equidistância literária Os imperativos éticos da lite- ratura conduzem certos sectores do mundo académico para a advocacia do “fim da teoria pós-colonial”, pois já não existe um único centro, tudo se frag- menta em legados de outros sujeitos da alteridade num mun- do policêntrico e de partes equi- distantes cujo movimento conduz àquilo a que escritor queniano Ngugi wa Thiong’ o designa por “globaléctica”, no seu livro de ensaios “Globa- lectics. Theory and the Politics of Knowing”, (Globaléctica.Teo- ria e Política do Conhecimento), publicado em 2012.Trata-se de um neologismo. É uma palavra que deriva dos termos “globo” e “dialéctica”. Exprime a con- tenção recíproca da heresia e a harmonia no tempo e no es- paço, onde o tempo e o espaço são aliados um do outro. Remete para a necessidade da leitura global. É uma maneira de abor- dar qualquer texto literário, a qualquer hora e lugar, de tal modo que os seus conteúdos e temas originem uma conversa livre tecida com outros textos literários do seu tempo e lugar, proporcionando da melhor ma- neira possível o máximo das suas potencialidades a qualquer ser humano. *Ensaísta e professor universitário CONTRA HEGEMONIAS NOS ESTUDOS LITERÁRIOS O “Sul Global” na literatura-mundo DR NGUGI WA THIONG'O

CONTRA HEGEMONIAS NOS ESTUDOS LITERÁRIOS O “Sul Global” …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/...semana-02.08.2020.pdf · crítica literária da sua gera-ção, infelizmente, já falecida

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REFLEXÕES 17Domingo2 de Agosto de 2020

Luís Kandjimbo |*

A Literatura-Mundo é umadisciplina que desde 1990vem conhecendo larga di-fusão. Mas, as interrogaçõesacerca da sua rigorosa defi-nição têm dado lugar ao sur-gimento de um alternativocampo do conhecimento, osEstudos Literários Globais.A natureza controversa dadenominação reside no factode não possuir suficiente al-cance, em virtude de as lín-guas europeias serem osúnicos critérios de definiçãodo seu campo e de selecçãodos materiais de estudo, delasdependendo exclusivamente.Mas as variedades nacionaisdessas línguas que se tor-naram transnacionais reve-lam a existência de outrasculturas, já que a diversidadelinguística e cultural é, naverdade, a realidade domi-nante nos países africanoscujas línguas oficiais são eu-ropeias.

Nos Países de Língua Por-tuguesa, foi em Portugal que,há cerca de três anos, se re-gistou uma das iniciativasque assinala os efeitos dacrescente vaga do campo deestudos, visando legitimaruma “Literatura-MundoComparada”. O Centro deEstudos Comparatistas daFaculdade de Letras da Uni-versidade de Lisboa publicouuma antologia, “Literatura-Mundo Comparada: Pers-pectivas em Português”,deque fui um dos colaboradoresconvidados, partindo do pos-tulado segundo o qual o ob-jectivo é “contribuir para a

construção da Literatura-Mundo (Weltliteratur, WorldLiterature) em português eem Portugal”.

Como já referi, nos espa-ços académicos do chamado“Norte Global”o uso dessadenominação disciplinar nãoé unânime. A norte-ameri-cana Emily Apter escreveuum livro intitulado “AgainstWorld Literature”, (Contraa Literatura-Mundo), fun-damentando a sua perspec-tiva na intradutibilidade dasobras não-ocidentais, con-trariamente ao que preten-dem os seus defensores.

O estudo da posição queas literaturas africanas ocu-pam na Literatura-Mundo,enquanto domínio da lite-ratura comparada, definidacomo investigação de qual-quer literatura nacional doponto de vista internacional,permite verificar a exis-tência de uma tensão entrea lógica da diversidade e alógica da hegemonia lin-guística. A manifestaçãoconcreta disso verifica-seatravés da penetração geo-política de critérios estéticose editoriais típicos dos sis-temas literários nacionaisocidentais no espaço de ou-tras literaturas consideradas“periféricas”, de acordo aferramentas analíticas eu-rocêntricas desse domíniodos estudos literários.

O “Sul Global” literárioEm finais do século XX, essageopolítica linguística e li-terária toma forma com aconsagração do “Sul Global”,enquanto categoria, por opo-sição ao “Norte Global”. A

hegemonia do poder de de-finir do “Norte Global” e osseus fundamentos linguís-ticos conferiram dignidadeinstitucional ao espaço ouobjecto em que se confinamas outras sociedades, civi-lizações, culturas, línguas eliteraturas, não-ocidentais,quando, em 2007, foi criadaa revista “The Global South”,“O Sul Global”, e a consti-tuição de grupos de trabalhonos congressos da Associaçãode Línguas Modernas, empainéis dedicados aos EstudosCulturais e Literários Com-parados, a organização aca-démica legitimadora dosEstados Unidos da América.

No fundo, trata-se de umeufemismo através do qualse substitui a expressão “Ter-ceiro Mundo”, outra cate-goria, já esvaziada de sentidocom o fim da Guerra Fria.Este é o sentido que inspirao artigo inaugural da referidarevista especializada, assi-nado por Arif Dirlik. Mas,contra-argumentos tambémnão faltam. A sul-africanaIsabel Hofmeyr, dá o tomcom o seu “Against the GlobalSouth”, (Contra o Sul Global),ao considerar que o termopode ter esgotado a sua uti-lidade praticamente antesde começar.

ContradiscursosA este propósito, vou des-tacar o essencial das ideiasde três reputadas especia-listas acerca dos problemasque se levantam.

Pascale Casanova (1959-2018) é francesa, distintacrítica literária da sua gera-ção, infelizmente, já falecida.

Notabilizou-se com umaabordagem daquilo a quedesignou por “repúblicamundial das letras”.Foiprofessora visitante no De-partamento de Estudos Ro-mânicos da Universidadede Duke, Estados Unidosda América.

Gayatri Chakravorty Spi-vak (1942), e Shu-Mei Shih(1961), representantes do“Sul Global”,são asiáticascujas ideias têm impacto nomercado académico global,quando se trata de proble-matizar o poder de definiçãono domínio das Humanida-des. Curiosamente, estasduas interlocutoras sãooriundas de dois paísesemergentes que integram oschamados BRICS. Uma é in-diana e outra chinesa.

Spivak, professora de Hu-manidades na Universidadede Columbia, Estados Unidosda América, e fundadorado Instituto de LiteraturaComparada e Sociedades,é uma proeminente auto-ridade dos estudos femi-nistas, estudos subalternose dos estudos pós-coloniaiscomo pode ser comprovadopelo seu livro “Crítica daRazão Pós-Colonial”.

Shu-Mei Shih, presidenteda Associação Americanade Literatura Comparada,professora de LiteraturaComparada , L ínguas eCulturas Asiáticas e Estu-dos Asiáticos Americanosna Universidade da Cali-fórnia, Los Angeles, é res-ponsável pela criação deum novo campo científicointerdisciplinar, os “Es-tudos Sinófonos”.

Na sua argumentação,Pascale Casanova admite aexistência de uma geopolíticadas relações literárias inter-nacionais. Diz ela que a “re-pública mundial das letras”é caracterizada por uma do-minação política através daslínguas. Não sendo a línguaum instrumento neutro,mantém dependências po-líticas. Assim, a dominaçãopolítica é exercida sob a for-ma linguística, implicandopor isso uma dependêncialiterária. Para Pascale Casa-nova as línguas europeiascomo factor de potência sus-citam uma categorização dosfenómenos com um forteacento etnocêntrico numexercício eufemístico quelegitima a marginalização ouperiferização das “pequenasliteraturas” como as Litera-turas Africanas escritas emlínguas europeias. Desvendaassim o carácter maligno dasteorias dominantes no mer-cado literário ocidental.

Por Gayatri ChakravortySpivak e Shu-Mei Shih nutrouma simpatia que se fundanas suas preocupações coma situacionalidade das teoriase a posicionalidade dos seusautores, no âmbito da geo-política dos estudos globaisonde se inscreve o sul docontinente asiático.

Tematizando a proble-mática, tal como o demonstrano seu livro “The Death ofDiscipline”, (A Morte de umaDisciplina), Spivak vem pro-por o abandono da sofisticadatradição linguística da Lite-ratura Comparada ocidentalque se estrutura em tornodo que designa por anglo-

fonia, francofonia, lusofonia eteutofonia. Defende a neces-sidade de se adoptar as línguasdo Hemisfério Sul como meiosculturais activos, e não comomeros objectos de estudo cul-tural à luz de modelos de umpresumível centro do espaçoglobal. Por isso, consideraque a Literatura Comparadapode contribuir para a fortunadas literaturas nacionais do“Sul global”, mas também daescrita das suas próprias lín-guas, perante a ameaça pro-gramada que paira sobre asua existência.

Gayatri Chakravorty Spivaké uma das responsáveis pelaconsagração operatória da ex-pressão “Sul global” nos estudosliterários, atribuindo-lhe umsentido radicalmente diferente,

Por sua vez, no seu interes-sante artigo “Global Literatureand the Technologies of Re-cognition”, (Literatura Globale Tecnologia de Reconheci-mento), Shu-Mei Shih proble-matiza o discurso académicoe o mercado literário como tec-nologias de reconhecimento aque são submetidas as literaturasnão-ocidentais, consideradasminoritárias, de acordo com aschamadas teorias “universa-listas” eurocêntricas. Ela entendeque no discurso académico oci-dental o “reconhecimento” deoutras literaturas assenta napura negligência ou ignorânciafingida, características da pro-dução neocolonial de conhe-cimento e da divisão global dotrabalho intelectual. Observaque o silêncio e a ignorânciaexacerbam as estratégias dehierarquização do que designacomo sendo a “política de re-presentação e reconhecimentocentrada no Ocidente”.ParaShu-Mei Shih a generosidadedos académicos ocidentais ésinónimo de uma atenção de-sigual e menos rigorosa, emmatéria de avaliação das li-teraturas não- ocidentais,consideradas minoritáriose ausentes do cânone lite-rário ocidental.

Ética da equidistância literáriaOs imperativos éticos da lite-ratura conduzem certos sectoresdo mundo académico para aadvocacia do “fim da teoriapós-colonial”, pois já não existeum único centro, tudo se frag-menta em legados de outrossujeitos da alteridade num mun-do policêntrico e de partes equi-distantes cujo movimentoconduz àquilo a que escritorqueniano Ngugi wa Thiong’ odesigna por “globaléctica”, noseu livro de ensaios “Globa-lectics. Theory and the Politicsof Knowing”, (Globaléctica.Teo-ria e Política do Conhecimento),publicado em 2012.Trata-se deum neologismo. É uma palavraque deriva dos termos “globo”e “dialéctica”. Exprime a con-tenção recíproca da heresia ea harmonia no tempo e no es-paço, onde o tempo e o espaçosão aliados um do outro. Remetepara a necessidade da leituraglobal. É uma maneira de abor-dar qualquer texto literário, aqualquer hora e lugar, de talmodo que os seus conteúdos etemas originem uma conversalivre tecida com outros textosliterários do seu tempo e lugar,proporcionando da melhor ma-neira possível o máximo dassuas potencialidades a qualquerser humano.

*Ensaísta e professor universitário

CONTRA HEGEMONIAS NOS ESTUDOS LITERÁRIOS

O “Sul Global” na literatura-mundo

DR

NGUGI WA THIONG'O

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ARTES18 Domingo2 de Agosto de 2020

OBRA DE ARTE

Eduardo Vueza brilha com “Lixo ao Luxo”

A origem de tudo segundo os Akwakimbundu

“Ngana a Nzambidesignou Ngunza,o senhor da providência, para ad-ministrar o mundo. Este, por suavez, confiou essa tarefa a três “gé-nios” da natureza: Kakulu, Kabasae Kyoza. Os três tinham a mesmaorigem e idade igual e gozavam deum conhecimento igual e sem pa-ralelo sobre o mundo.

Assim, Kakulu ficou encarregadode governar os terrenos baldios, asflorestas, os rios e lagoas, os marese os lagos. Kabasa tomou conta dafertilidade das terras, das estaçõesdo ano, períodos do tempo que sãodeterminantes para o trabalho doHomem. Kyoza foi incumbido de

velar pelos seres humanos, pelobem-estar e desenvolvimento har-monioso destes, ao mesmo tempoque tinha o controlo sobre a exis-tência de todos os animais na terra,nas águas, nas matas e florestas e,enfim, sobre o ar.

Depois de certo tempo, Kyozaapercebeu-se que os homens semultiplicavam muito rapidamentee que os produtos alimentares pro-duzidos eram insuficientes para amanutenção destes. Verificou, igual-mente, que as matas, florestas, bos-ques e prados estavam a sergradualmente devastados pelosseres humanos, constituindo isso

um grave prejuízo para estes e paraos demais animais. Deste modo,Kyoza decidiu consultar Ngunzaque, depois de o ouvir, recomen-dou-lhe que contactasse Kabila kaMutombo, um grande senhor quetinha sob o seu controlo o tempo eas idades, tanto dos homens comodos animais, das plantas e até dosminerais. Depois de ouvir Kyoza esem se fazer de rogado Kabila kaMutondo designou um dos seus súb-ditos, de nome Kalunga, para equa-cionar os seres humanos, o seudesenvolvimento e sobrevivência.

Kalunga conhecia muito bem opassado e o futuro de toda a hu-

manidade, os direitos e os deveresde cada indivíduo, bem assim comoa sua ascendência e destino final:ele era o administrador da morte.Nesta conformidade, Kabila ka Mu-tondo deu ordens a Kalunga paraque este tirasse da terra todos osseres humanos que estivessem des-providos de energia física. No en-tan to , Ka lunga dec id iu ag i rcontrariando as decisões de Kabilaka Mutondo, que consistia em fo-mentar a morte dos mais fragili-zados, já que, pouco tempo depois,alertado, Kabila ka Mutondo depoisde ter consultado Ngunza pelo factode Kalunga estar a dizimar não

apenas as pessoas tidas como ca-ducas, mas também crianças e jo-vens, ficou indignado com esteignóbil procedimento, porém nãoo destituiu do seu cargo.

Como maneira hábil para dar so-lução à contradição evidenciadapor Kalunga, Kabila ka Mutondo in-dicou Ngola, um dos seus súbditos,que sabia manejar com destrezaa técnica de forjar e a manutençãodo fogo, e deu-lhe plenos poderespara transformar os metais em fi-guras humanas, a fim de compensaras perdas sofridas pela humani-dade dos mortais, por virtude dotrabalho de Kalunga.”

| EDIÇÕES NOVEMBRO

MITO SOBRE “O ORDENAMENTO DO MUNDO”

Narrativa mitológica sobre a organização do “mundo primordial” Akwakimbundu, colectada e guardada por JoséBernardo Domingos Kyoza (1925-2002), que foi vice-presidente do MPLA (1961-1963), conselheiro do presidente

Kwame Nkrumah, do Ghana, e primeiro Embaixador de Angola no Vaticano. Este texto é tornado público pela primeiravez, com a devida vénia à memória de José Bernardo Domingos Kyoza

O artista utilizou na obra, premiada no concurso “Don’t Waste, Create - Arte Ecológica”, teclados,visores, baterias, placas, circuitos de computadores, restos de telemóveis, rádios, comandos, placas de

TV, amplificadores, cabos USB, cabos analógicos e carregadores

Mário Cohen

A cerimónia de entrega do prémio deartes plásticas “Don’t Waste, Create - ArteEcológica”, organizado pela Angoalissar,inicialmente prevista para o mês passado,foi adiada para uma data a indicar, porcausa da pandemia da Covid-19. O ven-cedor do prémio, segundo anúncio feitohá duas semanas, é o artista EduardoVueza, com a obra “Lixo ao Luxo”. Pontificava no júri do prémio “Don’t

Waste, Create” o consagrado artista plásticoAntónio Gonga. Segundo o júri, o prémiofoi atribuído à obra “Lixo ao Luxo” pelo“cumprimento dos objectivos do concurso,em que o artista transformaria o que serialixo numa obra de arte”, acrescendo queEduardo Vueza expressa “a sua paixãopela cidade de Luanda, retratando um doscartões postais da cidade que é a Marginalde Luanda, utilizando materiais comorestos de paletes de madeira, restos

de telemóveis, estilhaços de vidros decarros, entre outros”.A obra vencedora e nove outras se-

leccionadas entre as participantes estãopatentes numa exposição colectiva onlinedenominada “Arte Sem Desperdício”,patente no site da empresa Angoalissar.De acordo com uma fonte da organi-

zação, o grande objectivo da Angoalissar,com a realização do concurso, é lançarcampanhas com a finalidade de desafiaros artistas nacionais a criar peças de arteque promovam a defesa do meio ambiente,reutilizando o lixo para criar algo novo,com a intenção de desenvolver actividadessobre a importância do meio ambiente ea reciclagem de materiais descartáveis. Facto relevante,as obras que não fo-

ram escolhidas para constarem da ex-posição poderão voltar a participar emfuturas edições do concurso.

“Parece pintura”Eduardo Vueza, na obra “Lixo ao Luxo”, uti-lizou dispositivos electrónicoscomo teclados,visores, baterias, placas, circuitos de com-putadores, restos de telemóveis, rádios, co-mandos, placas de TV, amplificadores, cabosUSB, cabos analógicos e carregadores.O autor escolheu como tema da sua

obra a Marginal de Luanda nos seus váriosângulos, com realce para a baía que paramuitos turistas é o cartão de visita dacidade capital. Mas também inclui os edi-fícios, o porto e os automóveis na via ouestacionados nas bermas. “Eu aproveito todos os componentes

electrónicos para produzir obras de arte,transformando aquilo que parece ser lixoem produto valioso”, disse o artista.“Émelhor apreciar a obra em 3D para vermelhor a beleza da Marginal”, acrescentou,expressando que numa primeira observação

“o quadro simula ou parece ser pintura”.Preocupado com o ambiente e usando

a sua criatividade, Eduardo Vueza achaque é sua responsabilidade como artistaajudar a dar um destino seguro aos materiaisdescartados que podem danificar o am-biente e fazer mal à saúde das pessoas.Vueza disse que tem mil e um motivos

para acreditar que a sua carreira está numagrande fase de progressão, com a conquistado concurso. Mesmo assim reconheceuque ainda tem um caminho longo a per-correr para atingir o patamar desejado.“Todos os dias, procuro trabalhar mais emais e beber experiência dos mais expe-rimentados nas artes plásticas”, frisou.

Percurso artísticoEduardo da Cruz João, o próprio EduardoVueza, nasceu em Luanda, aos 26 de Janeirode 1979. Artista autodidacta, é membroda União Nacional dos Artistas Plásticos(UNAP). Possui vários murais espalhadospela cidade.Participou em actividades artísticas

colectivas e tem obras em colecções departiculares, de instituições e de em-presas. Nos anos de 2012 e 2013 parti-cipou no Coopearte, na extinta galeriaCelamar, da ceramista Marcela Costa.Em 2014 participou na exposição e pin-

tura mural em alusão ao Festival Nacionalde Cultura e Artes (FENACULT) e em 2015fez parte do catálogo Imago Mundi, de-nominado “Angola Wisdom Like a Baobab”,promovido pela Fundação Benetton.No ano de 2016, enfrentou o maior desafio

da carreira, ao participar na 13º edição do En-sarte, feito que viria a repetir dois anos depois.Em 2019 integrou um grupo de jovens pintoresconvidados para inaugurarem uma exposiçãocolectiva em homenagem ao Mestre Kapela,na galeria Espaço Luanda Arte (ELA).

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ARTES 19Domingo2 de Agosto de 2020

As redes digitais têm um impacto significativo na carreira profissional daspessoas, elas tornaram-se uma ferramenta imprescindível para alcançar aquela

promoção desejada ou para encontrar aquele emprego de sonho

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Tânia J. A. Costa |*

A comunicação representaum pilar para as sociedades,as suas estruturas, os seusindivíduos e a maneira comoeles se inter-relacionam. Arevolução das tecnologiasde informação nos anos 70mudou completamente oparadigma da forma de es-tarmos conectados. Logoapós meados dos anos 80,foi criada a internet que per-mitiu uma abordagem e ges-tão infinita de informações,redução drástica das dis-tâncias geográficas e, con-sequentemente, criaram-senovos hábitos e aumentoua tendência da sociedade autilizar as redes sociais tantocomo forma de exposiçãocomo de comunicação.

Não surpreende, pois,que desde 2010 seja come-morado anualmente o dia30 de Junho como o dia dasredes digitais, segundo owebsite americano Mas-hable: celebrar o dia dasredes sociais é uma formade reconhecer a revoluçãodigital que transformou amídia num ambiente e es-paço social. O dia é come-morado com a organizaçãode encontros informais depessoas de todo o mundopor meios tecnológicos oupresencialmente.

As redes digitais têm umimpacto significativo nascarreiras profissionais daspessoas, elas tornaram-se

uma ferramenta imprescin-dível para alcançar aquelapromoção desejada, encon-trar aquele emprego de so-nho, sempre e quandotivermos uma postura cor-recta. Nesse sentido, as em-presas estão cada vez maiscomprometidas em escolherprofissionais que prezempor um equilíbrio compor-tamental digital. O excessoda exposição pessoal infor-mal, a disseminação de pre-conceitos, as fotografiascomprometedoras que re-flictam hábitos etílicos, tra-zem uma imagem negativae podem contribuir signi-ficativamente para ocultare ou barrar oportunidades.

Nos dias de hoje, muitasempresas a nível mundialusam as redes sociais parafazer recrutamento emar-keting. E já é comum emAngola notarmos algumasempresas de renome e “sta-tus” no mercado com essasmesmas tendências.

Paralelamente, muitospolíticos utilizam as redessociais para divulgação desuas ideias e ideologias coma finalidade de se promo-verem, estimularem a ade-são de inúmeros seguidorese divulgarem os seus feitos.Um bom exemplo é, decerteza, o Presidente JoãoManuel Gonçalves Louren-ço, que tem a sua páginaoficial na rede social deno-minada Twitter (João Lou-renço@jlprdeangola): eleusa a página para abordarsobre questões do país ou,

Por uma postura digital equilibrada

também, congratular-sepelos feitos de cidadãos des-tacados, na nossa sociedade.“Felicito as autoridades domunicípio do Andulo, pelassoluções inovadoras no qua-dro das medidas de reduçãodo risco de contaminaçãopelo Covid-19.Vosso exem-plo de busca permanentepor soluções locais deve serseguido e replicado peloresto do país”. Este foi umdos twitters de João Lou-renço@jlprdeangola, no pas-sado dia 17 de Junho.

Entretanto, existem nomundo inúmeras redes di-gitais, sendo as mais famosaso Facebook, Instagram, Lin-kedin, Twitter e o Whatsapp.Um bom exemplo de auto-promoção e postura profis-sional digital é o Linkedin,uma rede social criada em2002 no intuito de permitira partilha de informaçõesprofissionais no mercadode trabalho, networking,obtenção de um curriculumvitae virtual, dar e receberfeedbacks, gerar parcerias,crescer, desenvolver, bus-car conhecimento e novasideias. Esta plataforma per-mite que o nível de con-versa abordado seja o maisprofissional possível e nelaos profissionais criam umego de reconhecimento, dedesenvolvimento e não deaparências como noutrasredes sociais.

Em vista disso, um perfiladequado em uma rede di-gital pode contribuir signi-ficativamente para o alcance

REDES SOCIAIS NA VIDA PROFISSIONAL

““O excessoda exposição

pessoal informal, a disseminação de preconceitos, as fotografias

comprometedorasque reflictam

hábitos etílicos,podem contribuirsignificativamente

para ocultar e ou barrar

oportunidades””

dos seus objectivos pessoaise profissionais. É, pois, fun-damental sermos respon-sáveis com os conteúdostextuais e visuais, a formacomo usamos as redes so-ciais procurando utilizar oterceiro filtro de Sócrates:“utilidade”. Ou seja, comobem dizia aquele pensador:“se não tiver utilidade ne-cessária, não é necessário”.

Tenha uma postura digitalequilibrada, porque ela podeabrir portas, oportunidadese reconhecimento.

* Consultora de carreira e negócios

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TURISMO20 Domingo2 de Agosto de 2020

Víctor Mayala | Soyo

O município, que tem o con-dão de ter sido a “porta deentrada” dos colonizadoresportugueses no território quehoje é Angola - desembarqueem 1482, na foz do rio Zaire(Ponta do Padrão) do nave-gador Diogo Cão - possuioutras valências naturais,entre as quais encantos e re-cantos propícios para a prá-tica do turismo.

A contrariedade é que muitosdos locais de interesse turísticocarecem de investimentos ca-pazes de criar um cenário demaior atracção de todos quantosgostam de se deleitar com aMãe Natureza.

A região do “ouro negro”,outrora baptizada Santo An-tónio do Zaire, beneficiouda graciosidade da Mãe Na-tureza ao dispor de um pa-no rama pa i s ag í s t i c oinvejável. A exuberância dassuas praias, muitas das quais“casam”com os braços dorio Zaire, deixa qualquer vi-sitante deslumbrado.

As praias de Quinfuquena,Quifuma, Quivanda, Tómbe,

Sereia e dos Pobres, paraalém de tantos outros en-cantos e recantos, fazem doSoyo um destino predilectode muitos turistas nacionaise estrangeiros ávidos por vi-ver momentos “sui-generis”nas suas vidas.

No Soyo, os turistas têma oportunidade de saborearos quitutes típicos, confec-cionados pela mulher mus-solongo, um subgrupo étnicokikongo aborígene da região.Entre os pratos típicos maisapreciados pelos forasteiros,e não só, constam a wanguila(gergelim), nsaki madesu(uma mistura de kizaca efeijão), diaki-dia-ntente oumuteta (semente de abóboracom bagre fumado).

Sítios históricos como a Pon-ta do Padrão, Missão Católicado MPinda e Pata de Madia(peugadas de uma Santa na-tiva que resistiu à tentativade ser deportada pelos co-lonizadores portugueses),integram o vasto roteiro tu-rístico do município.

Segundo contou à nossareportagem o guia turísticoJosé Gonçalo Teresa, as peu-

gadas da Santa no local maisconhecido por Tambi KiaMadia, deixadas ao pular donavio que a devia levar aPortugal, continuam até hojeintactas e visíveis. Aliás, factoque deixa toda a gente in-trigada, lá o capim deixoude crescer.

“Aquando da chegada aonosso território em 1482, osportugueses encontraram al-gumas pessoas que tinhampoderes sobrenaturais e eramconsideradas ‘Santas’. Muitasdessas pessoas foram depor-tadas para Portugal. Mas Madiarecusou-se a deixar a sua terrae o seu povo. A insistênciados portugueses em depor-tá-la irritou a ‘Santa’, que teráfeito eclodir uma tempestadeque quase terá provocado onaufrágio do barco”, explicouJosé Gonçalo Teresa.

O local, como frisou, temsido muito visitado pelas de-legações oficiais, tanto nacio-nais como estrangeiras, masa sua importância contrastacom a falta de investimentosque o poderiam transformarnuma verdadeira fonte de re-ceitas para a região e o país.

SOYO

História e beleza natural da cidade à beira-rio

O Soyo, na província do Zaire, é um município afamado muito por conta da exploração petrolífera tantoem terra como no mar. Mas engana-se quem pensa que as potencialidades desta região se resumem à

existência de petróleo bruto

ADOLFO DUMBO | EDIÇÕES NOVEMBRO | SOYO

ADOLFO DUMBO | EDIÇÕES NOVEMBRO | SOYO

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TURISMO 21Domingo2 de Agosto de 2020

De encantos não é tudo. Orio Zaire, que dá nome à pro-víncia, é um dos maioresatractivos e fonte de rendi-mento de muitas famílias,que se dedicam à pesca ar-tesanal ao longo dos seusvários canais.

O rio, cujos contornosformam um total de 120 ilho-tas, 60 das quais habitáveis,é considerado o primeiro deÁfrica e o segundo do mundoem volume de água, che-gando a debitar algo comoum caudal de 67 mil metroscúbicos de água por segundopara o Oceano Atlântico.

O serpentear dos diversosbraços deste rio, tido tambémcomo o segundo maior de

África (após o rio Nilo) esétimo do mundo, comuma extensão to ta l de4.700 quilómetros, oferecea quem visita a região umavisão paisagíst ica semigual. Uma parte conside-rável da cidade petrolíferado Soyo, a chamada baixada cidade, onde se situa amaioria das instituiçõespúblicas, foi projectadaentre os braços do rio.

Com um investimento sé-rio em termos de infra-es-truturas, o Soyo seria umadas melhores cidades do país,tendo em consideração a be-leza natural que os diversosafluentes do imponente rioZaire oferece.

Zaire e suas ilhotas

“Petróleo deveria ser literalmente esquecido”

Alguns munícipesabordados pelanossa reportagem destacaram aimportância do sector do turismono processo da diversificação daeconomia nacional, fortemente de-pendente do petróleo, pelo quedefendem que maiores investimen-tos devem ser alocados na cons-trução de infra-estruturas e vias deacesso para as distintas zonas deinteresse turístico, podendo tam-bém, por via disso, criarem-se maispostos de trabalho, apesar do con-texto actual, caracterizado pelapandemia da Covid-19.

Por outro lado, os interlocutoreslamentaram o estado de abandono

em que se encontram muitos sítiosde interesse histórico e turístico.“Antes da pandemia, vinham aoSoyo muitos turistas para conhecero local onde aportou Diogo Cãoem 1482, mas as condições parachegar lá são péssimas”, disse ojovem Alberto Segunda.

Para ele, se houver maiores in-vestimentos neste domínio, como,por exemplo, a colocação de pe-quenas embarcações para navegarnos diversos canais do rio Zaire,seria uma mais-valia e factor demaior atracção para os turistas,além de vir a constituir um ganho,do ponto de vista da arrecadação

de receitas para os cofres do Estado.O jovem lamentou, ainda, o factode a ilha histórica da Ponta do Pa-drão não possuir um cais para fa-cilitar o embarque e desembarquedos visitantes.

Sebastião António, outro inter-locutor, defendeu a ideia de queo petróleo deveria ser, literalmente,esquecido, devendo todas as aten-ções serem viradas para outrossectores produtivos, capazes dealavancar a economia nacional,como são os casos do turismo eda agricultura.

“É preciso criar incentivos paraque os privados invistam nesses

ramos de actividade. Muitos paísesdo mundo têm no turismo e naagricultura as principais fontes dereceitas”, disse Sebastião António,lembrando que Angolapossui po-tencialidades de invejar em ambosos domínios, sendo o Soyo umexemplo disso.

Apesar das potencialidades aci-ma citadas, o Jornal de Angolaapu-rou que algumas das poucasiniciativas surgidas no sector doturismo, na região, regrediram con-sideravelmente, por força da criseeconómica, e ultimamente, pelonovo Coronavírus.

Uma das maiores referências

hoteleiras do Soyo, que antes dosurgimento da pandemia acolhiaos turistas que chegavam à região,é o hotel Nempanzu, propriedadedo empresário Adriano Manuel“Dânia”. A unidade hoteleira, pro-jectada na margem de um dosbraços do rio Zaire, constitui oprincipal cartão postal da cidaderibeirinha. O empreendimentotem a categoria de quatro estrelas,com 102 quartos, duas suites pre-sidenciais e uma piscina. Possuiainda um anfiteatro com capaci-dade para acolher 250 pessoassentadas e três salas de reuniõesde 60 lugares, cada.

ADOLFO DUMBO | EDIÇÕES NOVEMBRO | SOYO

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HOMENAGEM22 Domingo2 de Agosto de 2020

Arão Martins | Quipungo

Quinta-feira. O cenário novelório do general KundiPaihama, na sede municipalde Quipungo - 120 quiló-metros a Leste da cidade doLubango, provincia da Huila,- era de angústia e desolação.Quipungo parou.

Se para muitos, KundiPaihama era o nacionalista,o político, o comandante,o líder, o combatente da li-nha da frente e o homemde convicções, para a lide-rança da Igreja EvangélicaSinodal de Angola, deno-minação religiosa centenáriamais conhecida na região

Sul, ele era, sobretudo, um“soldado de Cristo Jesus”.

Apesar das restrições im-postas pelas medidas de bios-segurança, devido à Covid-19,a população saiu em massapara dar o último adeus aKundi Paihama. Os chorosecoavam nas multidões per-filadas na berma da EstradaNacional 280, que rasga asede municipal de Quipungo,na ligação das cidades do Lu-bango (Huíla) e Menongue(Cuando Cubango).

O acto fúnebre decorreusob cânticos de hinos cons-tantes do hinário “Sivayi Suku”,que em português significa“Adorai a Deus”.

“Com Jesus há uma morada

feliz”, “Descansando no poderde Deus” e “Não recearei enada temerei” são, dentre ou-tros, os hinos cantados en-quanto a urna contendo o corpodo general descia à tumba nocemitério Katutula, situadono “coração” de Quipungo.

Raízes religiosasKundi Paihama, filho de Pai-hama e de Kaumbe, nasceuaos 9 de Dezembro de 1944em Katolotolo, município deQuipungo, província da Huíla.

Através do seu tio Tchi-holeka Tchoia (que tinha idobuscar a Luz do Evangelhona Missão Evangélica Fila-fricana e a trouxe para a suaaldeia de Katolotolo), contou

o reverendo Dinis Marcolino,presidente da Igreja EvangélicaSinodal de Angola (IESA), aointervir no serviço fúnebre,o então jovem adolescenteKundi Paihama foi aceite co-mo aluno no internato da re-ferida Missão EvangélicaFilafricana em Kalukembe,hoje Igreja Evangélica Sinodalde Angola, onde fez a ins-trução primária de 1955 a1960, sob tutela de missio-nários suíços e autóctones.

Beneficiando de uma bolsade estudos da Missão, foi trans-ferido para a cidade do Lu-bango, para o internato daactual Igreja da União-Lage,indo estudar no ex-Liceu Dio-go Cão, até 1964.

Naquele período, segundoDinis Marcolino, Kundi Pai-hama era membro catecú-meno, porém, não chegoua ser baptizado porque, em1965, foi incorporado noexército colonial português,onde cumpriu o serviço mi-litar até 1968, interrom-pendo assim o catecismo.

Após a disponibilidadepara a vida civil, ingressouno funcionalismo públicoaté 1975, quando se envolveufortemente na revoluçãopela consolidação da Inde-pendência de Angola, tendoocupado altos cargos mili-tares e governamentais egranjeado muita simpatiado povo angolano.

KUNDI PAIHAMA NA IGREJA EVANGÉLICA SINODAL DE ANGOLA

História da conversão de um antigo revolucionário

Falecido em Luanda no passado dia 24 de Julho, vítima de doença, o general Kundi Paihama foi aenterrar na última quinta-feira no cemitério Katutula, no “coração” do município huilano de Quipungo,sua terra natal. As jornadas fúnebres do general em Quipungo vão se estender até Dezembro próximo,altura em que deveria celebrar 76 anos de idade. Ao proceder ao serviço fúnebre, o reverendo Dinis

Marcolino, presidente da Igreja Evangélica Sinodal de Angola, traçou a trajectória espiritual do generalKundi Paihama, que culminou com a sua conversão ao Cristianismo no dia 24 de Dezembro de 2012

ADOLFO DUMBO | EDIÇÕES NOVEMBRO | SOYO

Se para muitos,Kundi Paihama

era o nacionalista, o político,

o comandante, o líder,

o combatente da linha da frentee o homem de

convicções, paraa liderança da

Igreja EvangélicaSinodal deAngola,

denominaçãoreligiosa

centenária maisconhecida na

região Sul, ele era,sobretudo, um

“soldado de CristoJesus”

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HOMENAGEM 23Domingo2 de Agosto de 2020

O regresso de KundiPaihamaà fé, no seio da Igreja Evan-gélica Sinodal de Angola, suaigreja mãe, frisou o presidentedesta denominação religiosa,inicia em 1997, por altura doSínodo Geral da IESA. Foiquando Paihama, nas vestesde governador provincial daHuíla, proferiu um discursoque comoveu as pessoas eofereceu uma ambulância ealguns kits de medicamen-tos ao Hospital de Calu-quembe. Daí em diante,acrescentou Dinis Marcolino,“o Espírito Santo foi traba-lhando no seu coração devárias maneiras e usandomuitas pessoas e várias cir-cunstâncias, incluindo outrasIgrejas em Angola”.De 1997 a 2012, Kundi Pai-

hama participou em dife-rentes cultos de adoração eeventos da IESA. Em 2007,enquanto ex-aluno da Missãode Caluquembe, esteve pre-sente no Encontro Nacionaldos Quadros e ex-Estudantesdas Missões da IESA, no qualfoi um dos prelectores e pa-trocinador principal.Em 2008, continuamos

a citar Dinis Marcolino,Kundi Paihama participano culto de consagraçãode novos pastores no cam-po Mandume, no Lubango,“onde usa da palavra commuita eloquência”. No anoseguinte faz parte do “gran-de” culto de empossamentodo novo secretário do Sí-nodo Eclesiástico do LitoralCentro (Benguela) e do ani-mador geral da Juventudeda IESA (JIESA). Aí volta

a usar da palavra e assu-me-se publicamente comomembro da IESA.Em 2010, salientou ainda

o líder da IESA, Paihama éorientado espiritualmentepela Direcção Nacional daIESA a assistir, de formaassídua, aos cultos domi-nicais na igreja local daIESA, no centro da cidadedo Lubango. É lá que KundiPaihama aprofunda a suafé religiosa.

Construção do templo Depois de, em 2011, participarno Sínodo Geral da IESA,realizado no Lubango, disseo reverendo Dinis Marcolino,no mesmo ano, por inicia-tiva própria, Kundi Pahia-ma patrocina a construçãodo templo da IESA na co-muna de Cainde, muni-cípio de Quipungo, queviria a ser dedicado a Deusaos 05 de Agosto de 2018,com o nome “Salamina”,em alusão ao primeiro localonde o apóstolo Paulo pre-gou pela primeira vez nasua primeira viagem mis-sionária, depois de se terconvertido a Cristo.Em Novembro de 2012,

lembrou Dinis Marcolino, ogeneral Kundi Paihama, fi-nalmente, pede oficialmentepara ser baptizado. “Seguiu-se então (e como mandamas regras eclesiásticas) umperíodo intensivo de revisãode lições de Catecismo ba-seadas no livro ‘Fé Evangé-lica’, sob os cuidados pastoraisdo presidente da IESA, comoconclusão do processo in-

terrompido em 1964”.Cumpridas as lições e

“tendo manifestado sinaisde novo nascimento”, foibaptizado no dia 24 de De-zembro de 2012 na Igreja localda IESA Salamina, em Cainde.Paihama era então ministrodos Antigos Combatentes eVeteranos da Pátria. “Kundi Paihama conti-

nuou sendo membro do Go-verno, mas a manifestar sinaisdo novo nascimento e muitasvezes, publicamente, foi tes-temunhando a sua fé, até querendeu a sua alma a Cristo”.

Sinal de muita coragemO presidente da IESA, reve-rendo Dinis Marcolino, afir-mou que o facto de KundiPaihama ter pedido o baptismoenquanto membro do Go-verno de Angola e da maisalta cúpula do Partido que go-verna o país “é sinal de muitacoragem e vontade que mos-tra que o Espírito Santo tra-balhou muito em si”. “São poucos os que assim

fariam, por causa da vergonha.Mas Jesus disse que ‘Qualquerque se envergonhar d’Ele edas suas Palavras, tambémse envergonhará dele no úl-timo dia diante do Pai’. Ondeabundou o pecado, supe-rabundou a graça, diz a Bí-blia”, referiu o presidenteda IESA, rematando, poucosantes da descida do corpode Kundi Paihama à cova:“Que a sua alma descanseem paz junto do Senhor Je-sus Cristo a quem ele creue testemunhou publica-mente sem vergonha”.

Regresso à fé e reorientação espiritual

EDIÇÕES NOVEMBRO

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CRÓNICA24 Domingo2 de Agosto de 2020

Kassanje era natural de Kambundi Katembo, enquanto Kituxe e Ekumbi eram, respectivamente, da Quibala eLongonjo. Os três haviam cruzado os seus destinos quando foram habitar numa vetusta edificação, degradada e

abandonada, no centro histórico da cidade

Bendinho Freitas

O terreno era baldio e es-treito; contudo, serviria, cer-tamente, para ser erguido,mais uma daquelas presun-çosas moradias que insultamo padrão arquitectónico na-quela zona da cidade! Talveznascesse mais uma edificaçãoenvidraçada, para desafiar atropicalidade local!

A espontaneidade do ma-rulhar; as línguas das ondastranquilas, lambendo a areiada praia e o grasnar das gai-votas arranhando o silênciodo fim de tarde, ainda lá con-tinuavam; porém, já não con-seguiam devolver a belezaroubada ao lugar, há anos.

No coração da noite, certasquinquilharias dispersas,acumuladas pelos jovensmoradores e objectos des-cartados pela vizinhança,repousavam no chão, to-mando conta do ambiente.Algumas ratazanas despreo-cupadas, de vez em quando,circulavam com peculiar agi-lidade, traçando naquelechão, agora asqueroso, váriasrotas, que pareciam pré-concebidas: era a celebraçãoduma harmónica convivên-cia com o punhado de ado-lescentes, dormindo aorelento, numa ingénua in-vocação às enfermidades,só freada por Deus.

No cenário vislumbra-vam-se três jovens sem tecto,

dispersos; enrolados nas suasmantas sujas, sob cumpli-cidade protectora da abó-bada celeste pintada deobscuridade. A noite enver-gonhada lacrimejava umaneblina de tristeza, guar-dando para dias melhoreso sorriso das estrelas e a cla-ridade ardente do luar.

Os jovens largados a sorte,como verdadeiros fardos so-ciais, continuavam esque-cidos pelos cegos coraçõesdos homens; mas, recordadosque tinham os dias contados,naquele espaço: ainda mo-ravam nos seus ouvidos, avoz imperativa do novo pro-prietário, alertando-os, numásperos ultimato, para, numprazo de dois dias, abando-narem o terreno, agora cer-cado para obras.

Outrora, o local pertenceraa uma zona, miraculosamen-te, desanexada de um polí-gono florestal à beira mar.As placas proibindo a cons-trução de moradias, ainda lácontinuavam plantadas, re-sistindo ingloriamente aosbolsos astutos, que se en-chiam de egoísta satisfação.Cada dia que passava, o po-lígono emagrecia a olhos vis-tos: novas ruas e talhõesnasciam do nada, enviandoum agregado populacionalde árvores, para o além.

O vento marinho apalpavacom brandura as árvores so-breviventes, enquanto folhasde palmeiras tremiam de

medo, preocupadas com oincógnito destino, a elas re-servadas, pelos homens.

Kiari Kassanje – o mais-velho do grupo, era alto, derosto magro e cabelos des-cuidados – levantou-se es-ton teado , d e um sonobruscamente cortado pelaságuas fedorentas que, desúbito, se libertavam de umcano do terraço da vivendaao lado, e, escoltadas pelovento, iam baptizar o seuandrajoso lençol: ficou alipregado, com as mãos presasà cintura; o rosto franzido,pela fúria, olhava para oponto de onde provinha aágua, enquanto resmungava:“já não bastam as baratas emosquitos, que nos vão en-forcando a paciência!?”

Não muito distante, mas,protegidos do baptismo daságuas putrificadas, os seuscompanheiros Nando Kituxee Ekumbi João, forrados numsono batalhador, contra im-piedosos mosquitos, feriama escuridão da noite, comum coral de roncos, expe-rimentando uma epopeia,que prometia durar até oraiar do sol.

Kassanje era natural deKambundi Katembo, en-quanto Kituxe e Ekumbi eramda Quibala e Longonjo res-pectivamente. Os três haviamcruzado os seus destinos,quando foram habitar, numavetusta edificação, degradadae abandonada, localizada no

centro histórico da cidade.Apesar do estado de conser-vação, o edifício foi mantendoa sumptuosidade: construídohá dois séculos, já foi umadas jóias da arquitectura co-lonial, tendo se degradadovertiginosamente, com a in-vasão de famílias deslocadasde guerra e outras, prove-nientes do interior, atraídaspelas oportunidades e sonhosda cidade.

Com o decurso dos anos,o imóvel tornara-se perigosopara os próprios ocupantes,tendo resultado no desalo-jamento compulsivo das fa-mílias, sob olhares vorazesde interesses imobiliários,que pediam a demolição totaldo edifício: Já cogitavam aconstrução de uma moder-níssima torre de escritórios– das maiores da África sub-sariana: diziam, ávidos ospromotores. Todavia, mesmoconscientes das avultadasfortunas a desembolsar nasua restauração, uma correnteda sociedade, inclinada àpreservação da história dacidade, travava uma dura ba-talha, para salvar o edifício.

Esquecidos na amarga in-diferença, os desalojadosrespiravam o cheiro do des-prezo da sociedade. Margi-na l i zado s , Ka s san j e ecompanheiros, ensaiaramuma martirizada peregri-nação, em busca do tectosonhado; tendo-o encon-trado, naquele antigo pedaço

do polígono florestal, onde,agora, acabavam de recebero fresco ultimato de despejo.

Kassanje recolheu o seuimprovisado colchão de pa-pelão, deslocando-se para aoutra extremidade, buscandoencontrar um local maisaconchegante, para continuara dormir. Trazia amparado,no outro braço, a manta, e,foi-se aproximando do espaçoonde dois seguranças priva-dos, que guarneciam a vi-venda, ao lado, resistiam aomordaz peso da sonolência.

Os passos de Kassanje es-pantaram o sono do latagãoLucas Kapenda, um dos se-guranças. Este, já refeito dosono, olhou-o e esforçou-se para esboçar um sorrisosolidário. Entretanto, en-colheu os ombros, dando aentender que nada podiafazer por eles.

Na paz do silêncio, o in-terior de Kiari Kassanje erainvadido por uma revolta,quando mergulhou os pen-samentos nas perversidadesdo destino. Viajando nas lu-cubrações, sonhava: “quebom seria, se no mundo, asolidariedade social não seescondesse nos bolsos cheiosde ganâncias consumistasdos que podem”; “que bomseria se os poderosos plan-tassem, ao menos, uma se-mente de amor, em cadaalma sufocada, para germinara dignidade humana, a nóssubtraída”. Perguntava-se:

“como poderemos ludibriaro futuro paralítico, que o des-tino nos honra?” As respostasescondiam-se nas nuvensdo pensamento!

Manteve-se ali, quedo, aolhar para o outro segurançada casa, completamente ven-cido pelo sono. Dormia sen-tado, com a cabeça estática,totalmente inclinada parabaixo, como se estivesse hip-notizado; todavia, as mãoscontinuavam a segurar a ve-lha Kalashnikov, numa pron-tidão alienada.

O sossego da rua, amiúde,era roído pelo roncar de carrosque, com os seus faróis, en-candeavam a ténue ilumi-nação do local. Naqueleinstante, Kassanje, com osolhos marejados de lágrimas,invejou o homenzinho quedormia, completamente var-rido pelo cansaço do dia, enovamente vagueou nos so-nhos enevoados: “ai, quemme dera, poder desfrutar deuma noite de sono bem dor-mida, para enxugar, por al-gumas horas, o drama queteima em ensombrar a mi-nha miserável sina”. No en-tanto, como ele poderiadormir sereno, se os mos-quitos e baratas com que lu-tava, as ratazanas, com asquais celebrara, inconscien-temente, o pacto de convi-vência e o orvalho, quemolhava a sua consciência,questionavam-no, como se-ria o dia de amanhã!?

ENTRE O SONO E A ANGÚSTIA

O dilema de Kiari Kassanje

ROGÉRIO TUTI | EDIÇÕES NOVEMBRO | ARQUIVO