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REFLEXÕES 17 Domingo 16 de Agosto de 2020 Luís Kandjimbo |* Por gentileza do meu amigo, o em- baixador Olabiyi Yai, recebi há al- gumas semanas quatro revistas de filosofia publicadas pela Sociedade Beninense de Filosofia, nos últimos três anos. A edição de 2019 traz o artigo de uma filósofa nigeriana cuja leitura convida à busca de ou- tras conexões discursivas. Lem- brei-me das tarefas inscritas na minha fragmentária lista de tra- balhos para os próximos anos. É que quando terminei a redac- ção de um original de ensaios sobre filosofia, já entregue ao editor, senti uma profunda necessidade de com- pletá-lo com uma secção dedicada a filósofas africanas e afro-des- cendentes. Não pretendendo ter o peso de consciência por apoio a actos misóginos e injustiça epis- témica, decidi dar prioridade à es- crita e um impulso à actualização da agenda. Mas ainda é muito cedo para fazer o balanço. Conheço algumas filósofas afri- canas, leio livros de outras que não tive a sorte de conhecer e também daquelas que não conhecerei nunca, tais como a nigeriana Sophie Olu- wole (1935–2018) de que vos falo hoje e a senegalesa Aminata Diaw Cissé (1959 –2017), já falecidas. No entanto, vou acompanhando o tra- balho de outras filósofas africanas e afro-descendentes espalhadas pelos quatro continentes. Estou a referir-me, por exemplo, a Nkiru Nzegwu, nigeriana; Ramatoulaye Diagne Mbengue, senegalesa; Sa- faa Fathy, egípcia; Soumaya Mes- tiri, tunisina; Tanella Boni, ivoriense; Arminda Fernando Fi- lipe, angolana; Mpho Tshivhase, sul-africana; e Nancy Meles Baf- four-Gyamfi, ganense. À luz da periodização da História da Filosofia Africana proposta pelo historiador Théophile Obenga, po- demos encontrar as primeiras fi- lósofas africanas no Egipto Antigo. Mas, tal como denuncia Hassan Banhakeia, no seu livro sobre his- tória do pensamento filosófico Amazigh do Norte de África, os preconceitos eurocêntricos domi- nantes nem permitem, no contexto da África Global, que o discurso historiográfico tenha em conta o território da actual Líbia como o berço da Escola Cirenaica, onde se revelou Aréte de Cirene, no século IV a.C (400 a.C.–340) que, sendo filósofa africana, não é identificada como tal.Era filha e discípula de Aristipo de Cirene, o fundador da referida escola e discípulo de Só- crates de quem era igualmente amigo. Aréte de Cirene dedicou- se ao ensino da filosofia geral e da ética durante mais de trinta anos. Um dos seus mais ilustres alunos foi o seu filho, outro filósofo de Ci- rene, Aristipo, o Jovem, contem- porâneo de Aristóteles. No século XX, a ilustração vem de uma afro- descendente. Trata-se de Joyce M. Cook (1933-2014), a primeira afri- cana-americana doutorada em Fi- losofia pela Universidade de Yale em 1965 e a primeira professora de filosofia na Universidade de Ho- ward, cujo nome não é referido em nenhum verbete do quarto volume da história das mulheres filósofas, publicado em 1995. A excepção eurocêntrica da mi- soginia na filosofia é protagonizada pelo latinista francês Gilles Ménage, que publicou um livro sobre “His- tória das Mulheres Filósofas”, em 1690. Com longos lapsos de tempo, três séculos depois, entre 1987 e 1995, é publicado nos Estados Uni- dos da América um conjunto de quatro volumes como resultado de um projecto de investigação colectiva sobre a história das mu- lheres filósofas. Injustiça epistémica A injustiça epistémica de que falo exprime-se também através da ex- clusão de mulheres africanas e afro-descendentes, mulheres asiá- ticas e latino-americanas dos ma- nuais e cânones da história da filosofia e do ensino da filosofia. Relativamente ao continente afri- cano tal comportamento assume outras formas. Aqui a misoginia corresponde a um preconceito de sentido duplo. Em primeiro lugar, visa as mulheres de um modo geral. Em segundo lugar, o predomínio de modelos, métodos e ferramentas analíticas ocidentais nos espaços académicos e nas instituições pú- blicas, por força da falaciosa argu- mentação helenocêntrica (centrada na Grécia) do berço da filosofia. Em Angola, isto é observável quando consultamos os manuais de ensino da filosofia. Entre as armadilhas de natureza cognitiva está a inexistência de referências a filósofas africanas, além do silêncio que paira sobre o enquadramento histórico dos de- bates e correntes do pensamento filosófico africano em que partici- pam as mulheres. Por essa razão, gostaria de chamar a atenção do leitor para esta filósofa nigeriana, Sophie Obasede Oluwole. É uma das mais brilhantes e singu- lares vozes da filosofia africana, até à primeira década do século XXI.A sua fecunda produção bibliográfica comprova-o. Foi a primeira mulher nigeriana a obter o doutoramento em filosofia pela Universidade de Ibadan, na década de 80 do século XX com uma tese sobre metafísica e ética ocidental. Foi chefe de De- partamento de Filosofia na Univer- sidade de Lagos e Presidente da Associação Nigeriana de Filosofia. Publicou vários livros importantes de que destaco apenas um: “Socrates and Ọ̀ rúnmìlà: Two Patron Saints of Classical Philosophy” (Sócrates e Ọ̀ rúnmìlà: Dois Santos Padroeiros da Filosofia Clássica), 2014. Ora, é preciso saber o que a dis- tingue de outros filósofos. Quais são os seus temas e problemas fi- losóficos recorrentes para se revelar como uma voz distinta? Identidade do discurso Ao proceder à caracterização da filosofia feminista num interessante capítulo publicado no compêndio que conta com a contribuição de várias autoras, Sophie Oluwole nega a existência de uma filosofia feminista em África. Por isso, considera que as problemáticas e discussões acerca de temas fe- ministas e do gênero são tratadas como objecto de um domínio dis- ciplinar específico, os “Estudos sobre Mulheres”. Neste sentido, sustenta que a fi- losofia feminista africana poderá existir apenas a partir do momento em que a mulher deixar de inspirar abordagens exclusivamente an- tropológicas ou sociológicas. Será necessário formular questões res- peitantes à situação da mulher e à condição humana, submetendo a uma avaliação crítica os princípios que regulam a relação do homem e da mulher. No seu entender, não pode ser negligenciada a investi- gação que permite compreender a expressão de crenças e ideias tra- dicionais e contemporâneas cujas fontes são os textos da tradição oral, porque é do pensamento afri- cano que se trata. Ao identificar o seu lugar no espectro da diversidade das cor- rentes e escolas filosóficas con- tinentais, ela inscreve o seu próprio discurso em duas correntes, a “tra- dicionalista crítica” e a “herme- nêutica”, ao lado de filósofos como Kwame Gyekye, Akin Makinde e Lucius Outlaw. Yoruba e descolonização conceptual No seu conjunto, a obra de Sophie Oluwole traduz bem a reacção pos- sível perante o apelo do filósofo ganense Kwasi Wiredu, segundo o qual a produção de uma verdadeira filosofia africana requer o recurso às línguas africanas, tendo em conta a necessidade da descolonização conceptual. Com essa perspectiva, a sua obra contribui para o fim do debate estéril que durante décadas se concentrou em torno da exis- tência da filosofia africana, rou- bando tempo aos filósofos profissionais apologistas da adop- ção de metodologias ocidentais, presumivelmente “universais”. Sophie Oluwole parte do pres- suposto que sustenta a perspec- tiva da hermenêutica filosófica africana, cujo fundamento reside no postulado segundo o qual a prática da filosofia é um exercício criativo de interpretação da cul- tura a que se pertence. Por isso, notabilizou-se como especialista da Filosofia Yoruba, explorando a colecção de textos orais “Ifá” das tradições Yoruba, fontes dos problemas filosóficos com que se ocupou ao longo de vários anos. O reconhecimento do seu pensamento filosófico tem a base no discurso argumentativo que constrói, nas problemáticas fi- losóficas que elege e no exame crítico a que são submetidas as referidas fontes. A morte co- lheu-a exactamente num dos momentos fulgurantes da noto- riedade pública internacional enquanto filósofa. Filosofia Comparada: Sócrates e Ọ̀ rúnmìlà Para uma perspectiva intercul- tural da filosofia, Sophie Oluwole aponta novos caminhos para a filosofia comparada e a história da filosofia. É o que acontece no livro “Sócrates e Ọ̀ rúnmìlà: Dois Santos Padroeiros da Filo- sofia Clássica”.Traça o retrato de dois pensadores antigos de que se tem conhecimento como pessoas de carne, sangue e osso. Parte do pressuposto de que Só- crates e Ọ̀ rúnmìlà viveram no século VI, antes de Cristo. Ambos dialogaram com outros inter- locutores usando alegorias e mi- tos, recorrendo à poesia e à prosa, dificultando a discerni- bilidade da ficção, da verdade e da religião. Sócrates foi condenado à mor- te, bebendo cicuta, por ser ateu e acusado de perverter os jovens. Ọ̀ rúnmìlà, decepcionado com o comportamento de seus segui- dores “intelectuais”, partiu para o céu em vez de suportar uma sociedade irracional e incorrigível. Ambos são exemplos de integri- dade, por se dedicarem à pro- moção do desenvolvimento intelectual dos humanos. Não deixaram obra escrita. A melhor forma de referir as suas ideias filosóficas consiste no uso de enunciados através dos quais o narrador ou o intérprete lhes atribui as falas. Sócrates foi pobre. Ọ̀ rúnmìlà era suficientemente próspero para alimentar os membros da sua família. Sócrates não foi po- lígamo. Ọ̀ rúnmìlà era polígamo convicto. Uma das suas esposas era apresentada simbolicamente como “Igba Iwa”, “a cabaça da virtude”. Sócrates passou toda a sua vida em Atenas. Ọ̀ rúnmìlà foi um professor que, viajando, ensinou e desenvolveu a arte de adivinhar para documentar ele- mentos importantes da expe- riência humana. Novo cânone filosófico Paradoxalmente, Sócrates con- tinua a ser estudado em África. Ọ̀ rúnmìlà e gerações inteiras de seus descendentes são acusados de prática de “feitiçaria”, des- qualificando-se o seu saber. Para Sophie Oluwole tal situação é deplorável. Por essa razão, exi- ge-se com urgência um novo câ- none filosófico para ensinar os jovens africanos a pensar de forma endógena sobre o seu legado cul- tural e intelectual. * Ensaísta e professor universitário A ICONOCLASTIA DE UMA FILÓSOFA AFRICANA Sophie Oluwole e o novo cânone filosófico | EDIÇÕES NOVEMBRO

Ọ̀ A ICONOCLASTIA DE UMA FILÓSOFA AFRICANA Sophie …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/770062871_fim-de-semana_16.08.2… · ensinou e desenvolveu a arte de adivinhar para documentar

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REFLEXÕES 17Domingo16 de Agosto de 2020

Luís Kandjimbo |*

Por gentileza do meu amigo, o em-baixador Olabiyi Yai, recebi há al-gumas semanas quatro revistas defilosofia publicadas pela SociedadeBeninense de Filosofia, nos últimostrês anos. A edição de 2019 traz oartigo de uma filósofa nigerianacuja leitura convida à busca de ou-tras conexões discursivas. Lem-brei-me das tarefas inscritas naminha fragmentária lista de tra-balhos para os próximos anos. É que quando terminei a redac-

ção de um original de ensaios sobrefilosofia, já entregue ao editor, sentiuma profunda necessidade de com-pletá-lo com uma secção dedicadaa filósofas africanas e afro-des-cendentes. Não pretendendo ter opeso de consciência por apoio aactos misóginos e injustiça epis-témica, decidi dar prioridade à es-crita e um impulso à actualizaçãoda agenda. Mas ainda é muito cedopara fazer o balanço.Conheço algumas filósofas afri-

canas, leio livros de outras que nãotive a sorte de conhecer e tambémdaquelas que não conhecerei nunca,tais como a nigeriana Sophie Olu-wole (1935–2018) de que vos falohoje e a senegalesa Aminata DiawCissé (1959 –2017), já falecidas. Noentanto, vou acompanhando o tra-balho de outras filósofas africanase afro-descendentes espalhadaspelos quatro continentes. Estoua referir-me, por exemplo, a NkiruNzegwu, nigeriana; RamatoulayeDiagne Mbengue, senegalesa; Sa-faa Fathy, egípcia; Soumaya Mes-t i r i , tunis ina ; Tanel la Boni ,ivoriense; Arminda Fernando Fi-lipe, angolana; Mpho Tshivhase,sul-africana; e Nancy Meles Baf-four-Gyamfi, ganense.À luz da periodização da História

da Filosofia Africana proposta pelohistoriador Théophile Obenga, po-demos encontrar as primeiras fi-lósofas africanas no Egipto Antigo.Mas, tal como denuncia HassanBanhakeia, no seu livro sobre his-

tória do pensamento filosóficoAmazigh do Norte de África, ospreconceitos eurocêntricos domi-nantes nem permitem, no contextoda África Global, que o discursohistoriográfico tenha em conta oterritório da actual Líbia como oberço da Escola Cirenaica, onde serevelou Aréte de Cirene, no séculoIV a.C (400 a.C.–340) que, sendofilósofa africana, não é identificadacomo tal.Era filha e discípula deAristipo de Cirene, o fundador dareferida escola e discípulo de Só-crates de quem era igualmenteamigo. Aréte de Cirene dedicou-se ao ensino da filosofia geral e daética durante mais de trinta anos.Um dos seus mais ilustres alunosfoi o seu filho, outro filósofo de Ci-rene, Aristipo, o Jovem, contem-porâneo de Aristóteles. No séculoXX, a ilustração vem de uma afro-descendente. Trata-se de Joyce M.Cook (1933-2014), a primeira afri-cana-americana doutorada em Fi-losofia pela Universidade de Yaleem 1965 e a primeira professorade filosofia na Universidade de Ho-ward, cujo nome não é referido emnenhum verbete do quarto volumeda história das mulheres filósofas,publicado em 1995. A excepção eurocêntrica da mi-

soginia na filosofia é protagonizadapelo latinista francês Gilles Ménage,que publicou um livro sobre “His-tória das Mulheres Filósofas”, em1690. Com longos lapsos de tempo,três séculos depois, entre 1987 e1995, é publicado nos Estados Uni-dos da América um conjunto dequatro volumes como resultadode um projecto de investigaçãocolectiva sobre a história das mu-lheres filósofas.

Injustiça epistémica A injustiça epistémica de que faloexprime-se também através da ex-clusão de mulheres africanas eafro-descendentes, mulheres asiá-ticas e latino-americanas dos ma-nuais e cânones da história dafilosofia e do ensino da filosofia.

Relativamente ao continente afri-cano tal comportamento assumeoutras formas. Aqui a misoginiacorresponde a um preconceito desentido duplo. Em primeiro lugar,visa as mulheres de um modo geral.Em segundo lugar, o predomíniode modelos, métodos e ferramentasanalíticas ocidentais nos espaçosacadémicos e nas instituições pú-blicas, por força da falaciosa argu-mentação helenocêntrica (centradana Grécia) do berço da filosofia. EmAngola, isto é observável quandoconsultamos os manuais de ensinoda filosofia. Entre as armadilhas denatureza cognitiva está a inexistênciade referências a filósofas africanas,além do silêncio que paira sobre oenquadramento histórico dos de-bates e correntes do pensamentofilosófico africano em que partici-pam as mulheres.Por essa razão, gostaria de chamar

a atenção do leitor para esta filósofanigeriana, Sophie Obasede Oluwole.É uma das mais brilhantes e singu-lares vozes da filosofia africana, atéà primeira década do século XXI.Asua fecunda produção bibliográficacomprova-o. Foi a primeira mulhernigeriana a obter o doutoramentoem filosofia pela Universidade deIbadan, na década de 80 do séculoXX com uma tese sobre metafísicae ética ocidental. Foi chefe de De-partamento de Filosofia na Univer-sidade de Lagos e Presidente daAssociação Nigeriana de Filosofia.Publicou vários livros importantesde que destaco apenas um: “Socratesand Ọ̀rúnmìlà: Two Patron Saintsof Classical Philosophy” (Sócratese Ọ̀rúnmìlà: Dois Santos Padroeirosda Filosofia Clássica), 2014.Ora, é preciso saber o que a dis-

tingue de outros filósofos. Quaissão os seus temas e problemas fi-losóficos recorrentes para se revelarcomo uma voz distinta?

Identidade do discursoAo proceder à caracterização dafilosofia feminista num interessantecapítulo publicado no compêndio

que conta com a contribuição devárias autoras, Sophie Oluwolenega a existência de uma filosofiafeminista em África. Por isso,considera que as problemáticase discussões acerca de temas fe-ministas e do gênero são tratadascomo objecto de um domínio dis-ciplinar específico, os “Estudossobre Mulheres”. Neste sentido, sustenta que a fi-

losofia feminista africana poderáexistir apenas a partir do momentoem que a mulher deixar de inspirarabordagens exclusivamente an-tropológicas ou sociológicas. Seránecessário formular questões res-peitantes à situação da mulher e àcondição humana, submetendo auma avaliação crítica os princípiosque regulam a relação do homeme da mulher. No seu entender, nãopode ser negligenciada a investi-gação que permite compreendera expressão de crenças e ideias tra-dicionais e contemporâneas cujasfontes são os textos da tradiçãooral, porque é do pensamento afri-cano que se trata. Ao identificar o seu lugar no

espectro da diversidade das cor-rentes e escolas filosóficas con-tinentais, ela inscreve o seu própriodiscurso em duas correntes, a “tra-dicionalista crítica” e a “herme-nêutica”, ao lado de filósofos comoKwame Gyekye, Akin Makinde eLucius Outlaw.

Yoruba e descolonizaçãoconceptualNo seu conjunto, a obra de SophieOluwole traduz bem a reacção pos-sível perante o apelo do filósofoganense Kwasi Wiredu, segundoo qual a produção de uma verdadeirafilosofia africana requer o recursoàs línguas africanas, tendo em contaa necessidade da descolonizaçãoconceptual. Com essa perspectiva,a sua obra contribui para o fim dodebate estéril que durante décadasse concentrou em torno da exis-tência da filosofia africana, rou-bando t empo ao s fi l ó s o f o s

profissionais apologistas da adop-ção de metodologias ocidentais,presumivelmente “universais”. Sophie Oluwole parte do pres-

suposto que sustenta a perspec-tiva da hermenêutica filosóficaafricana, cujo fundamento resideno postulado segundo o qual aprática da filosofia é um exercíciocriativo de interpretação da cul-tura a que se pertence. Por isso,notabilizou-se como especialistada Filosofia Yoruba, explorandoa colecção de textos orais “Ifá”das tradições Yoruba, fontes dosproblemas filosóficos com quese ocupou ao longo de váriosanos. O reconhecimento do seupensamento filosófico tem a baseno discurso argumentativo queconstrói, nas problemáticas fi-losóficas que elege e no examecrítico a que são submetidas asreferidas fontes. A morte co-lheu-a exactamente num dosmomentos fulgurantes da noto-riedade pública internacionalenquanto filósofa.

Filosofia Comparada:Sócrates e Ọ̀rúnmìlàPara uma perspectiva intercul-tural da filosofia, Sophie Oluwoleaponta novos caminhos para afilosofia comparada e a históriada filosofia. É o que aconteceno livro “Sócrates e Ọ̀rúnmìlà:Dois Santos Padroeiros da Filo-sofia Clássica”.Traça o retratode dois pensadores antigos deque se tem conhecimento comopessoas de carne, sangue e osso.Parte do pressuposto de que Só-crates e Ọ̀rúnmìlà viveram noséculo VI, antes de Cristo. Ambosdialogaram com outros inter-locutores usando alegorias e mi-tos, recorrendo à poesia e àprosa, dificultando a discerni-bilidade da ficção, da verdadee da religião. Sócrates foi condenado à mor-

te, bebendo cicuta, por ser ateue acusado de perverter os jovens.Ọ̀rúnmìlà, decepcionado com ocomportamento de seus segui-dores “intelectuais”, partiu parao céu em vez de suportar umasociedade irracional e incorrigível.Ambos são exemplos de integri-dade, por se dedicarem à pro-moção do desenvolvimentointelectual dos humanos. Nãodeixaram obra escrita. A melhorforma de referir as suas ideiasfilosóficas consiste no uso deenunciados através dos quais onarrador ou o intérprete lhesatribui as falas.Sócrates foi pobre. Ọ̀rúnmìlà

era suficientemente prósperopara alimentar os membros dasua família. Sócrates não foi po-lígamo. Ọ̀rúnmìlà era polígamoconvicto. Uma das suas esposasera apresentada simbolicamentecomo “Igba Iwa”, “a cabaça davirtude”. Sócrates passou toda asua vida em Atenas. Ọ̀rúnmìlàfoi um professor que, viajando,ensinou e desenvolveu a arte deadivinhar para documentar ele-mentos importantes da expe-riência humana.

Novo cânone filosóficoParadoxalmente, Sócrates con-tinua a ser estudado em África.Ọ̀rúnmìlà e gerações inteiras deseus descendentes são acusadosde prática de “feitiçaria”, des-qualificando-se o seu saber. ParaSophie Oluwole tal situação édeplorável. Por essa razão, exi-ge-se com urgência um novo câ-none filosófico para ensinar osjovens africanos a pensar de formaendógena sobre o seu legado cul-tural e intelectual.

* Ensaísta e professor universitário

A ICONOCLASTIA DE UMA FILÓSOFA AFRICANA

Sophie Oluwole e o novo cânone filosófico

| EDIÇÕES NOVEMBRO

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HOMENAGEM18 Domingo16 de Agosto de 2020

CARLOS BURITY (1952-2020)

“Porque foste embora assim?”É momento dos amantes da música angolana celebrarem a vida e obra de Carlos Burity, que partiu para a eternidade na passadaquarta-feira(12/08). Sucessos como “Canção Nostálgica”, “Ondjala yeya”, “Minga”, “Mukajiami”, “Tonacaxi”, “Lamento de umcontratado”, “Kanjila”, “Nzumbi dya Papá”, “Monami ya jienda”, “Ilha de Luanda”, “Tia Joaquina”, “Lolito”, “Maria da Bicha”,“Jingonça” e “Malalanza”estarão a encher, por estes dias, certamente, os ouvidos e a mente dos amantes da música angolana

Analtino Santos

Recomendamos umavisitaà plataforma online Youtube,no canal da Nova Energia,onde está disponível o Showdo Mês protagonizado porCarlos Burity. Esta semana,a TPA emitiu o concerto Due-tos N’Avenida em que GersyPegado e Patrícia Faria par-tilharam o palco com CarlosBurity, ao passo que a TVZimbo recuperou a home-nagem feita ao artista numaedição do Show da Zimbo.

A 1 de Março último, Car-los Burity abrilhantou o Palcodo Semba, no jango da Uniãodos Escritores Angolanos. Omúsico teve então o suporteinstrumental da Banda Ma-ravilha, tendo cantado váriosdos seus sucessos. Neste es-pectáculo foi notória a cum-plicidade que o artista tinhacom a Banda Maravilha: F.A.e Isaú Baptista, respectiva-mente percussionista e gui-tarrista, foram alternandona interpretação com CarlosBurity, cantando algumasmúsicas do rico reportóriodo sembista. Moreira Filho,com o seu baixo, mantevea marcação do Semba, aopasso que Marito, na bateria,segurava o andamento. Osdesenhos harmónicos esti-

veram a cargo de MiqueiasRamiro, nos teclados. Noscoros estiveram Beth Tavirae Lito Graça, este tambémna dikanza.

Na ocasião, Burity foi ho-menageado, pela produçãodo Palco do Semba, com umcertificado de reconheci-mento pelo contributo emprol da música e da culturaangolana. “Carlos Burity éum artista transversal e dosmais conceituados intér-pretes do Semba, com su-cessos que transcendemgerações e uma obra que nãodeixa indiferentes os aman-tes da nossa música”, enfa-tizou a organização.

Senhor do SembaCarlos Burity partilhou opalco da Casa 70 com PatríciaFaria e Gersy Pegado, no dia14 de Dezembro de 2019,em mais uma edição doDuetos N’Avenida.

Naquela noite, CarlosBurity recebeu um tributoda UNAC-SA e da produ-ção do concerto. Foi enal-tecida a importância docantor e a consistência dasua obra musical.

O Senhor do Semba, comoCarlos Burity era tratadopelas cantoras Gersy Pegadoe Patrícia Faria, brindou a

plateia com o tema “Ilha deLuanda” e relembrou a suafase de cantor de intervençãocom “Liberdade África”.

Carlos Burity, Gersy Pe-gado e Patrícia Faria agitarama audiência quando canta-ram “Jingonça”, “Ondjalayeya”, “Minga”, “Mukajia-mi”, “Tonacaxi” e outrascanções bem ritmadas. Os“toques” de Burity massem-baram as senhoras. As ba-ladas também estiveram emalta: “Nzumbi dya Papá”,“Lamento do contratado”,“Monami ya jienda”...

Na sua derradeira passa-gem pelo Muzonguê da Tra-dição, no Centro Recreativoe Cultural Kilamba, no dia28 de Julho de 2019, CarlosBurity brilhou na companhiade Samangwana, AugustoChacaya e Suzanito.

Naquela tarde, Carlos Bu-rity contou não só com aplateia habitual do Kilamba:uma delegação de europeusapreciadores de Kizomba eSemba assistiram ao con-certo e ambientaram-se detal modo que “invadiram”a pista de dança.

Foi um Carlos Burity ale-gre e com muita vivacidadeque surpreendeu a plateiacom a interpretação, numprimeiro momento, de temas

da sua época da canção re-volucionaria. Foi assim que“Caminhar África”, “Liber-dade de África” e “Inveja”transportaram os entusiastasmais-velhos para os primei-ros anos da República Po-pular de Angola. Para umaoutra geração, Burity “ace-nou” com “Tia Joaquina” eos sucessos que ergueram oSemba para um patamarmais alto. “Malalanza”, quenos últimos anos passou aser o tema de fecho dos seusconcertos, lançou, no bomsentido, a “confusão” no re-cinto do Kilamba.

Foi bom de ver o artistasexagenário a fazer esquecera idade e a entrar numa forteinteracção com o público.É preciso dizer que estáva-mos, ainda, no “bom tem-po”, sem Covid-19 e semproibição dos abraços e deoutros gestos de afecto quemuito nos humanizam.

Carlos Burity, que venceuo Prémio Nacional de Culturae Artes em 2009, foi dos maisconceituados intérpretes doSemba, com sucessos queatravessam gerações e discoscom grande impacto na nossacena musical. Em vida, foireconhecido como um dosartistas mais produtivos dasua geração.

DR

DR

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HOMENAGEM 19Domingo16 de Agosto de 2020

Analtino Santos e Arão Martins

O ano de 2018 foibastantemarcante para WaldemarBastos. Foi o ano em quefez o concerto no Show doMês e em que foi distin-guido com o Prémio Na-cional de Cultura e Artes.No ano seguinte, fez apre-sentações no Lubango eem Benguela, para agradodos inúmeros fãs. Em 2019,participou no concerto doDia Internacional do Jazz,organizado pela Unesco,em Luanda. A passagem de Walde-

mar Bastos pelo Show doMês pode ser vista, parasempre, no Youtube, numaproposta da Nova Energia.Uma frase arrepiante,

que marcou a actuação deWaldemar Bastos no Showdo Mês, foi esta: “É a pri-meira vez que canto livre-mente na minha terra”. Entre anónimos, perso-

nalidades com responsa-bilidades nos vários sectoresda nossa sociedade, gentedo partido da situação e dospartidos na oposição, ac-tivistas, revus, bajus, cu-ribotas e artistas, queenchiam a sala, era motivopara dizer: “Estamos Jun-tos”. Angolanamente juntos. O homem que em 1990

declarava o seu amor in-declinável pelo país em“Angola Minha Namora-da”, começou a aquecercom o tema “Margarida”Waldemar Bastos, em-

balado pela plateia, deuum cheirinho do seu ladode solista entrando na al-ma do “ClassicsofMySoul“(en)cantando os temas“MbiriMbiri“ e “Muxima”.Um outro tema executadocom muito sentimento eque fez furor na sala foi“HumbiHumbi“ , quetrouxe à lembrança os co-ros das igrejas Evangélicase Baptistas.Passada a fase de exe-

cução de canções do seuúltimo trabalho discográ-fico, WB recorreu ao seuLP de estreia, “EstamosJuntos”, e soltou ao mi-crofone “Teresa Ana”, umautêntico pregão de qui-tandeiras do antigamente,hoje substituídas pelaszungueiras, as guerreirasda sociedade luandense.O bardo contou a história

de NzingaMbande, patente

no tema “NzingaMbande”,constante do disco “PretaLuz”, saído com a chancelada LuakaBop, de DavidByrne. Se a canção falada mulher tão linda, a so-berana guerreira , WBconfessou que no mo-mento não tinha poemaspara cantar, só o ritmopara dar. Foi o que o artistaapresentou na execuçãodeste tema. Embalado pe-los solos de Botto Trindadee Teddy Nsingui, o WBsolista reapareceu com arítmica do antigo Reinodo Kongo, concretizadanum soukouss que levan-tou a plateia.“Carnaval” não ficou de

fora do Show do Mês, assimcomo “Mungueno”, a es-tória triste, mas com an-damen to a l e g re , d eDomingos, o filho que sedespede da mãe dizendoque ia à praia para pescaro peixe para o mufete enunca mais voltou.

Inevitável “Marimbondo”Depois de tantos pedidos,“Marimbondo”, poemamusicalizado de ErnestoLara Filho, foi executado,com as inevitáveis asso-ciações na mente dos pre-sentes, decorrentes doambiente político actual,onde ganhou uma nova einesperada acepção na vozdo Presidente João Lou-renço, significando agora“poderoso corrupto”. Mi-guel Trovoada, na percus-são, e a secção de cordas,reproduziram, enfatica-mente, o zunido do ma-rimbondo e das abelhas.Foi mais um momento su-blime, com o público aaplaudir de pé.Em clima de reconcilia-

ção, “Carinho”, tema iné-d i to , ape lou à un ião ,sinceridade e a outros va-lores que estão em falta.Para o fecho, estavam

reservadas as canções “Pi-tanga Madura” e “Colonial”,a primeira do disco homó-nimo lançado em 1992. As cadeiras já não eram

tão convidativas. E a viagemmusical proposta por Wal-demar Bastos não podiaterminar de outra forma,senão com a narrativa dacarta que chegou, trans-portada pelo navio “Colo-nial”, que deu nome aofamoso tema popular es-

tilizado pelo Ngola Ritmose que em 1983 WB gravou,inserindo-o na sua disco-grafia. Com esse tema, deu-se por encerrado o concerto,confirmando-se assim queo disco “Estamos Juntos”(não podia haver desig-nação mais simbólica),com os seus oito temascantados no Show do Mês,é o que mais está fincadonos ouvidos do públicoangolano. E explica-se: éo disco de WB que maistocou nas rádios angolanas,antes de um manto de si-lêncio, estendido a mandode inomináveis “ordenssuperiores”, terem pros-crito o artista. As duas noites de espec-

táculo no Show do Mês fo-ram aproveitadas peloartista, que se encontravanum momento ímpar aoser galardoado com o Pré-mio Nacional de Cultura eArtes de 2018, para mani-festar publicamente o seureconhecimento aos ad-miradores, depois de o terfeito já nas redes sociais.O músico vinha de umatournée americana, comactuações no Royce Hall,em Los Angeles e no Festivalde Música Espiritual, namesma cidade norte-ame-ricana, com críticas bas-tante favoráveis no jornal“Los Angeles Times”.

Actuação no LubangoA actuação de WaldemarBastos nas Festas da NossaSenhora do Monte, no Lu-bango, em 2019, permitiu-lhe matar saudades dos fãslocais e da cidade onde nãosubia a um palco há maisde 20 anos. “Cantei váriasmúsicas, porém, a ‘LalipoLubango’, que fiz com muitoamor, foi a que a plateiabastante exigente e muitopresente solicitava. Não épor acaso que até hoje essacanção se renova e a juven-tude gosta. Tudo que é feitocom amor tem a capacidadede se rejuvenescer”, dissena altura o cantor.“Foi uma grande alegria

vir ao Lubango, sabendoque a cidade, por alturadas festas, tem essa músicacomo hino”, explicou,acrescentando que “serconvidado assim, dá umagrande alegria, porque fizuma canção linda paraesta terra”.

“Pela primeira vez canto livremente na minha terra”

WALDEMAR BASTOS (1954-2020)

Falecido na segunda-feira passada (10/08) em Lisboa, Waldemar Bastos (WB), em 2018 e 2019, reencontrou-se emAngola, a partir do palco, com os seus fãs no Show do Mês e em actuações no Lubango e em Benguela. O músico,certamente, ainda tinha muito para dar à cultura angolana. Recuperamos aqui, com adaptações, as narrativas queeste caderno fez daquele memorável Show do Mês e do concerto que Waldemar Bastos fez no Lubango,nas Festas

da Nossa Senhora do MonteDR

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LITERATURA20 Domingo16 de Agosto de 2020

David Capelenguela |*

Com um curso feitoem Lon-dres, além de dirigir sériesde documentários e de fil-mes catalogados como ma-terial de cariz etnográfico,Ruy Duarte de Carvalho foi,depois da Independência,responsável pelo primeirofilme de ficção do cinemaangolano: “Nelisita”, de1982. E, a esse respeito, elepróprio diz:“(...) foi de alguma forma

a poesia que me fez passarpelo cinema e, por seu turno,foi a partir do cinema queme tornei antropólogo. Dessepercurso e desse trânsito,exactamente, é que resultaa minha estreita e continuadarelação com certas vozes lo-cais de Angola e do Mundoque se exprimem segundoo regime da oralidade.”(CAR-VALHO, 2008, p. 48).Numa noite de quinta-

feira, recebi o telefonema domeu amigo Arlindo Isabel:– Aló, David! Então, como

vai? David, peço desculpaspor ligar-lhe a esta hora,mas é para lhe comunicarque faleceu o seu amigo RuyDuarte de Carvalho, meuautor na Nzila.Confesso que foi um duro

golpe! Conheci o Ruy Duartede Carvalho no Namibe, poraltura da realização do sim-pósio sobre identidades cul-turais do Sul de Angola,organizado pelo Governo lo-cal. Foi na condição de rea-lizador e apresentador da“Frente Cultural”, uma ru-brica radiofónica que ia aoar todas as quartas-feiras,que depois vim a recebê-lona cabine de emissão na Rá-dio Namibe, em 1990. Im-punha-se a necessidade de,mais uma vez, abordar-seo tema sobre os Kimbar do

Namibe, daí o convite for-mulado ao sociólogo Edil-berto Madeira, que, porindisponibilidade, indicouo seu amigo de infância, RuyDuarte de Carvalho. Assimquis o destino! Daí partiuuma amizade de longos anos,permitindo assim, desdemuito cedo, tomar contactocom a sua fulgurante pro-dução artístico-literária.Convivemos muitos anos,viajámos e fez-me conhecerquase todo o percurso Herero,do Namibe à Namíbia. Osseus povos e culturas, formasde estar e de ser, danças,provérbios, máximas, adi-vinhas, cantos, ritos de pu-berdade, sinais do rugir doleão e gestos até do ruminardo boi comum e do mugirdo boi sagrado. Ocupando o seu lugar ca-

tivo, entre a noção de culturae a resiliência da hegemonia,a obra de Ruy Duarte deCarvalho inscreve-se, deforma inovadora, na lite-ratura produzida em Angola,sobretudo depois da nossaIndependência.

Mitopoética: a tradição oralA produção literária de RuyDuarte de Carvalho, parti-cularmente a sua poética,apresenta-se como um dis-curso em ascensão, em queo poeta, gradativamente, in-corpora e ressignifica ele-mentos s imbó l i co s douniverso angolano, ence-nando manifestações doquotidiano, histórias do pró-prio sujeito e da linguagem,com o objectivo de constituiruma memória colectiva bas-tante dinâmica.Desde “Chão de oferta”,

seu primeiro livro de poesia,os poemas deste autor pro-blematizam, quase sempre,a interacção do espaço-tem-

po e ser, com destaque paraas paisagens do Sul de An-gola, sua predilecta zona deconforto, e Angola, sua terra,desde que, em 1983, se na-turalizou, por motivos quese prendem com o senti-mento, de que teve cons-ciência aos 12 anos, depoisde a sua família ter emigradopara Moçâmedes (ainda naépoca colonial), tendo ali asua matriz geográfica:“O que há aqui é ter-se a justa percepção

do espaçoe as importantes coisas

que o sustém: o exacto norte que o temor

encerra; a votiva escravidão que o

mar inspira; o leste e o som remoto de

uma extinta glória; o sul magnético e a festa que anuncia.”(CARVALHO, 2005, p. 59).Da sua poesia, observa-

se, nalguns casos, a escritade uma reescrita, de uma re-leitura abstraída das tradiçõesculturais, em que se cruzamaspectos da tradição oral doSul angolano. Pensa em lín-gua portuguesa, apreenden-do-a de uma perspectivaoutra, num entrelugar quedesliza “entre voz e letra”.E, ao articular literariamenteo registo oral, cuida da me-mória identitária dos agoraseus concidadãos. E diz: “Tenho cruzado as me-

mórias dos grupos, e te-nho-as cruzado com aminha, enquanto elas mes-mas se cruzam entre si e édaí que se urdirá uma ex-pressão angolana de que to-dos nós, institucionalmenteangolanos, tanto precisamospara podermos pensar epara nos podermos pensara nós mesmos” (CARVA-LHO, 2008, p. 63).

Os KuvaleQuase sempre incompreen-didos e não aceites pela “so-ciedade civilizada”, os Kuvale,“Pastores... Como os Himba,eles a norte e estes a sul dorio Kuroka, são o núcleo durode uma cultura do gado e doleite que do canto sudoestede Angola se projecta paraSul. Integram uma manchade implicação clânica que noseu caso e no dos Himba fun-damenta e regula toda a prá-tica social que exercem nocomum, mas se estende, emtermos de reciprocidades ede obrigações, consanguini-dades e alianças, a franjasmuito ocidentalizadas, emAngola e na Namíbia, tantode gente herero, como eles,como também Nyaneka eOvambo. Os Kuvale garan-tem-se e reproduzem-se,entre o deserto do Namibee o planalto da Huíla, segundoos modos, as operações e asrazões de um sistema pro-dutivo realizado e actualizadode acordo com uma matrizque é comum a toda a Áfricapastoril e que terá viajado –a partir do Leste, ao níveldos Grandes Lagos, parece– com as migrações de po-pulações pastoris bantas, oubantuizadas ou que, pelomenos, terão dado origema grupos cuja língua era bantaquando chegaram, já tarde,à costa sudoeste do que éhoje Angola.”(CARVALHO,2008, p. 63).Depois da sua tese de

doutoramento “Ana a Man-da – Os filhos da rede”, RuyDuarte de Carvalho voltoua sua atenção para os povospastoris do Sul de Angola,em especial os Kuvale, nu-ma espécie de regresso aoterritório de sua origeminaugural. O universo cul-tural Herero ocupou, por

muitos anos, um lugar cen-tral em toda a sua produçãointelectual. Em aviso à na-vegação sobre os Kuvale nahistória, nas guerras e nascrises, nos seus artigos ecomunicações, por exem-plo, estão reunidos impor-tantes reflexões sobre avida quotidiana dos Kuvale,onde, com recurso a umalinguagem mesclada entreo rigor ensaístico e as linhasdo discurso ficcional, osKuvale são tratados com adimensional importânciacultural que se impõe. De coração e alma estendidos

para o Sul, propondo-se a viverlá por aproximadamente seismeses por ano, passando pelomeridiano de Moçâmedes,margens do Cunene, até àNamíbia, Ruy Duarte de Car-valho, à chama do Kalahari,numa descrição como queuma poética dos nomes e doslugares, traduz um fio con-dutor cujo enquadramentose subscreve na Antropologia,Literatura e história. Em seumagnífico livro, “Vou Lá Vi-sitar Pastores”, um retratoapurado e baseado no seulongo trabalho de pesquisaantropológica, reproduz, se-lecciona, sistematiza e clas-sifica etnograficamente osHerero,para minuciosamenteabordar os Kuvale, revelan-do-se exímio conhecedor dospovos e do espaço enigmáticoque palmilha, decifrando per-cepções, sentimentos e re-lações que mostram um outromodo de ser e de estar sociais,fundamentado no “eu do ou-tro” ou vice-versa:O livro“Vou Lá Visitar Pas-

tores”, engenhosamente fic-cional, consiste na “transcrição”de uma colecção de cassetesem que o narrador, pressu-pondo um interlocutor virtual,desenrola o relato das suas

anotações de campanha,penetrando mais e maisno território do Outro (osKuvale), para melhor com-preender a essência silen-c i o s a d a p a i s a g em : anarrativa, lenta, minuciosa,“ricamente lavrada” (comooutrora se diria), toda elarecheada de digressões ereflexões críticas e ensaís-ticas, funciona como umaespécie de ritual de en-cantamento, que obriga oleitor a internar-se comele pela paisagem (terras,gentes, costumes) que é aprópria matéria de que sefaz o livro. Numa das suas passagens,

o autor descreve a paisagem,advertindo a importância doseu domínio e conhecimento,pois é preciso conhecê-lapara entender a “lógica dastransumâncias”. Para queisso ocorra, segundo o autor,precisamos de nos interessarpelas “pastagens, por capins,águas, solos, climas, entãoa intrusão da poesia resultaimediata” (CARVALHO,2000, p. 117).“Toda essa poesia me ser-

viu para dizer-te, agora, queda Serra da Neve, que nemmeio grau é a Norte da Lucira,para baixo e até ao Kuroca,é o território ecológico dosKuvale. A pastorícia mucubalé aí que funciona combinan-do estes dois tipos de estepe,a herbácea e a subarbustiva,mais a zona dos bosques se-cos de mutiatis e as aplana-ções aluvionais; agricultáveis,e com extensões transuman-tes que aproveitam recursosde serra-abaixo e os pastosocres, quando verdes, doplanalto. [...] O pastor quemantém acesa a fogueira quea noite revela sabe de tudoisso, evidentemente” (CAR-VALHO, 2000, p. 120).

NOS DEZ ANOS DA MORTE DE RUY DUARTE DE CARVALHO

“Talvezpor que

a vida é como uma viagem”Ruy Duarte de Carvalho deixou o mundo dos vivos hádez anos, no dia 12 de Agosto de 2010, mas deixou,também, a magnífica obra, cuja dimensão de valor é

grande e de um perfil de transcendentalparticularidade, onde o labor oficinal da palavra

transita por várias linguagens, no conjunto de umaprodução que abrange uma variedade de textos, sendo

que foi pela poesia (“Chão de oferta”, sua obrainaugural, editada em 1972) que veio, posteriormente, aassociar-se ao cinema, actividade que desenvolveu até

ao fim dos anos 80

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LITERATURA 21Domingo16 de Agosto de 2020

Tendo nascido em Santarém, Portugal, em1941, Ruy Duarte de Carvalho passou a suainfância e adolescência em Moçâmedes.Regente agrícola, foi criador de ovelhas noCaracul (60 Km antes da cidade de Moçâ-medes). Mais tarde estudou Cinema emLondres e doutorou-se em Antropologia,pela École des Hautes Études en SciencesSociales, em Paris, com uma tese sobre ospescadores da Ilha de Luanda. Leccionouna Universidade Agostinho Neto e foi Pro-fessor Convidado nas universidades deCoimbra e de São Paulo.

Com David Mestre e Arlindo Barbeitosfaz parte dos nomes mais sonantes que in-troduziram inovações na poesia da décadade 1970, onde, a par da actividade crítica ede reflexão sobre o ofício poético, impul-sionaram o surgimento de novas tendênciase novos nomes na poética daquela épocae transição para a geração de 1980.

Ana Mafalda Leite, professora universitáriaem Lisboa, diz que, com o impulso de RuyDuarte de Carvalho, David Mestre e ArlindoBarbeitos, “a dimensão narrativa da poéticaantecedente, tendencialmente épica e his-tórica, resultante de uma urgência de de-núncia da situação colonial, é substituídapela dimensão simbólica e mítica, que afragmentação e o experimentalismo do dis-curso manifestam”.

Inovador na poesia

Cultura e posicionamento intelectualPelo seu engajamento nodiscurso escrito, Ruy Duartede Carvalho pode aferir-secomo um escritor e aindapode ser encarado comointelectual no mundo con-temporâneo, posicionan-do-se, e le próprio , nodiscurso que produz, comointelectual no espaço pú-blico das relações de forçaentre as diversas retóricassócio-culturais. Se a acti-vidade literária contempo-raneamente se encontra,por um lado, retalhada entreuma alta e engajada litera-tura, em seu labor, a posiçãodo etnógrafo enquanto es-critor é permanentementetensionada e problematizadapelo também poeta e fic-cionista que é, tanto quantoestes são pressionados pelométodo do etnógrafo e, coma preocupação e consciênciada responsabilidade social,com a lucidez que se lheimputa o labor, não se es-quece de que, a partir de esimultaneamente a esse jogode(des)autorizações do su-jeito autoral, há a necessi-dade de discutir impassesda sociedade angolana pós-Independência. Ou seja, alocalização do escritor comoautor social, presente noespaço das representaçõesculturais da sociedade an-golana, dá-se, portanto,fundamentalmente atravésda sua acção mais caracte-rística: escrever. Pela escrita,

ele activa processos de sub-jectivação que o represen-tam nas malhas da redesocial como sujeito de umdiscurso, uma acção dis-cursiva. Enquanto acção, oacto de escrever é, portanto,compreendido como actode força, pelo qual o escritortematiza, directa ou indi-rectamente, formas e modosde inserção e posiciona-mento de si próprio e dooutro na malha da hierarquiasocial, não fosse, por isso,o seu olhar de intelectualaprumado, para debitar dagrande porção do territórioKuvale, a concludente per-cepção do percurso:

“A parte norte do terri-tório Kuvale é de algumaforma excêntrica em relaçãoà incidência maior do meuinquérito e das minhas ex-periências, tanto a recentequanto a remota, da infân-cia. Mas no ano passado eno ano anterior andei porali. De uma das vezes fuiaté Lucira e flecti depoispara o interior, pela Ma-handya. Aí atravessei o rioCarunjamba, para alcançaro Xingo. Estava a chovercom força, corria água, masdava ainda passagem. Quan-do mais à frente atingi o rioseguinte, o Inamandando,aí já não dava e voltei paratrás, arrepiei caminho ape-nas para constatar que oCarunjamba tinha enchido

também, entretanto. Fiqueidez dias retido entre as duastorrentes e só consegui sairdali quando achei que iadar se recorresse ao processode meter o carro na peugadade uma manada de bois.Revolvem a areia e a lamado fundo, enquanto atra-vessam, e deixam mais fir-me o le i to do r io . Comtracção as quatro rodas eaceleração certa conseguessair, e é a maneira de escapara tanta água acumulada portoda parte e a toda a sortede cobras e lagartos que emtais períodos da estaçãosaem dos abrigos para re-fazer os ciclos que hão-dedevolver mais tarde, nova-mente, à secura, ao frio eao sono. Fugi literalmentedali e nem os magníficosbandos de humbihumbi quetodas as tardes cruzavam océu chuvoso, azul cobalto,em direcção ao Leste, mepuderam evitar uma ásperacrise pessoal, angústias deantropólogo, de nacional,de andarilho sem-eira-nem-beira bloqueado noespaço e nas dobras do tem-po, enredado nas malhas dasua própria deambulação”(Carvalho, 2000, p. 75).

A experiência de sentidodiante da fragilidade do sa-grado no mundo, no olharsucinto e preliminar do con-ceito de modernidade deRuy Duarte de Carvalho,

consiste na redescoberta doseu lugar de origem ou depertencimento para viverexperiências de ressignifi-cação de realidades e de te-cidos culturais, como atradição oral, onde o outrosobre si se manifesta, e fazsentir o do outro, na aceitaçãoda partilha dos actos. Au-sentar-se das grandes cida-des, como Luanda ou Lisboa,em busca do Sul angolano,daí adentro, redesenha o es-paço em perspectiva, ondeo fluir do tempo é tão maisdesacelerado e propício aobservações, sentimentos,assunção e partilha para como próximo e seu contexto:

“O que resulta [da poesia]não é senão a expressão deuma experiência firmemen-te localizada na, e tributáriada, realidade (...) Para en-cerrar, finalmente, dizendoque meu trabalho sobre atradição oral tem sido so-bretudo, tal como eu o sintoe assumo, um exercício demodernidade, precisamen-te, que encontra nas estru-turas profundas, reveladaspor essa expressão, a viapara actualizar, tornar acto,uma atitude tão antiga quan-to o próprio tempo do ho-mem - a atitude poética -no exacto momento da es-crita, no aqui, no agora, hojemesmo.” (CARVALHO,2008, p. 255)

* Poeta

DR

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VIDA22 Domingo16 de Agosto de 2020

Lourenço Bule | Menongue

Domingas Marcela MungalaCas-sanga, 50 anos de idade, nascidaaos 19 de Março de 1970, na cidadedo Lobito, província de Benguela,é uma empresária de sucesso emdiversos ramos de actividade.Viuos seus feitos a serem reconhe-cidos, pela primeira vez, em 2011,com uma estatueta e um diplomade mérito, atribuídos pela Asso-ciação Munakazi Mwene - MulherRainha, pelo contributo para odesenvolvimento da província doCuando Cubango e a afirmaçãoda angolanidade.

Proprietária do grupo empre-sarial “Minga e Filhos”, e de outrosempreendimentos sociais e eco-nómicos em Luanda, Benguela eBié, Domingas Marcela Cassanga,“Minga Junqueira” para os mais

chegados, foi também distinguidacom medalha e um certificadode mérito pela multinacional pe-trolífera Chevron, pelos múltiplosapoios, no capítulo social, quetem prestado a dezenas de crian-ças em situação vulnerável nocentro de acolhimento “Mbemb-wa”, em Menongue.

A acção empreendedora dessamulher não tem limites.Em 2015viuos seus esforços serem reconhecidospela Companhia Siderúrgica doCuchi (CSC) Lda, que explora ferrogusa no município com o mesmonome, que lhe atribuiu uma mençãohonrosa pelo seu “envolvimentoe entrega total” no surgimento destemega projecto no Cuando Cubango,o primeiro em todo o país.

E, para colocar a cereja no topodo bolo, como se diz na gíria, Do-mingas Cassanga recebeu, em 2019,a Medalha de Bravura e de Mérito

Cívico e Social, atribuída pelo pre-sidente da República, João Lou-renço, em reconhecimento do seuenvolvimento, há mais de 15 anos,nas causas sociais,em benefíciode pessoas em situação de vulne-rabilidade no Cuando Cubango.Éa única mulher de negócios da pro-víncia distinguida com tamanhadistinção, até ao momento.

A empresária tem, ainda, aju-dado com géneros alimentícios,roupa usada, material de higienepessoal, presentes de natal, entreoutros mimos, os utentes do lar daterceira idade localizado no bairroHoje-ya-Henda, os petizes do larde acolhimento Mbembwa, a co-munidade Khoisan e outros po-pulares em situação de extremapobreza nas províncias do CuandoCubango e de Benguela.

Na conversa que manteve como Jornal de Angola, Domingas Cas-

sanga revelou que no bairro da Li-xeira, na periferia da cidade deBenguela, tem apoiado com génerosalimentícios, roupas, calçados epagamento da renda de casa, umafamília de portadores de deficiênciafísica, cujo chefe do agregado fa-miliar encontra-se acamado hámais de 14 anos,“por padecer deuma doença estranha”.

Disse que, do lucro que obtémdos seus negócios, gosta de “par-tilhar um pouco” com as pessoasque se encontram em situação devulnerabilidade. Gosta de convivercom crianças e pessoas da terceiraidade, “porque um dia chegarátambém a envelhecer”.

Lamentou o facto de, muitasvezes, ter sido mal interpretadapor alguns empresários e membrosdo governo local, pela sua bene-volência, sob a alegação de quepretende, com os seus feitos,“apo-

derar-se de posições de outrem”,ou de “querer aparecer”. Ela ga-rantiu que é, tão somente, umamulher focada em ajudar os maisdesfavorecidos, com destaque paracrianças, idosos e pessoas com li-mitações físicas.

Domingas Cassanga afirmouqueconstruiu e entregou uma igreja,com capacidade para 500 fiéis,aos populares da aldeia do Vioto,em Menongue.

Em tempos da pandemia da Co-vid-19, a empresária ofereceu maisde cinco mil máscaras faciais aoscitadinos de Menongue e dezenasde cobertores e casacos aos inqui-linos do lar da terceira idade dobairro Hoje-ya-Henda.

Ela disse ter como pretensão aconstrução de um centro de aco-lhimento para os mais carenciados,bem como mais igrejas e escolasem zonas recônditas.

EMPRESÁRIA DOMINGAS CASSANGA

Mulher vencedora, sem medo dos desafios

Domingas Cassanga tem a sua residência fixada na cidade de Menongue, província do Cuando Cubango, desde 2002. Porcausa dos negócios que tem em Luanda, Benguela, Bié e Cuando Cubango, não olha a meios quando o assunto é viajar por

estrada. A bordo da sua viatura, pega no volante e segue para o seu destino, para cuidar dos negóciosLOURENÇO BULE | EDIÇÕES NOVEMBRO | MENONGUE

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VIDA 23Domingo16 de Agosto de 2020

Domingas Cassanga revelou ao Jornal de Angolaque, futuramente, pretende levar a vida no campo,uma vez que o seu pai “foi um grande empresário ea mãe agricultora”. Para concretizar o seu sonho, aempresária de sucesso já comprou um espaço de5.250 hectares no projecto das 50 fazendas agro-pe-cuárias, no município do Cuchi.

“Fui uma das primeiras pessoas a aderir a esteprojecto. Comprei a minha fazenda a 200 mil dólares”,disse. Acrescentou que, até ao momento, ainda nãoimplementou nada no local.

A empreendedora construiu várias escolas de seise 12 salas de aulas, edificou o centro ortopédico e acasa protocolar da comuna do Caiundo e foi, também,a responsável pela construção e apetrechamento daresidência do administrador, do procurador municipaldo Cuchi e do Balcão Único do Empreendedor(BUE).Equipou, igualmente, a pirâmide do memorialà batalha do Cuito Cuanavale.

Em Luanda, construiu e apetrechou um complexoescolar, duas escolas T8 e equipou o hospital da Barrado Kwanza, onde actualmente estão alguns doentescom Covid-19, e o Hospital dos Queimados, localizadono Zango II. Edificou, ainda, vários equipamentossociais na província do Huambo, com realce para omunicípio da Caála.

Domingas Cassanga queixa-se de que, apesar deconstruir várias infra-estruturas sociais e apetrechar

diversos imóveis no Cuando Cubango, muitas dessasempreitadas não foram pagas até ao momento, razãopela qual pensa, seriamente,abandonar o ramo daconstrução civil.

Domingas Cassanga é detentora de uma lojade venda de materiais de construção civil, armazémde produtos diversos, estaleiro, salão de belezae uma r e s i d ên c i a em Luanda e o u t ra emBenguela.Possui uma rent-a-car, snack-bar, estaçãode serviço e um escritório.

No Cuando Cubango, onde está a sediada empresa“Minga e Filhos”, possui uma loja de materiais deconstrução, armazéns de produtos diversos, váriasresidências e um estaleiro. Ao passo que na provínciado Bié, é detentora de um escritório e está viradapara a construção de infra-estruturas diversas noâmbito do Plano Integrado de Intervenção nos Mu-nicípios (PIIM).

A empresária lobitanga tem agora um novo desafiopela frente:a construção de um colégio, creche, salãode eventos, rede de supermercados e padarias nasprovíncias de Luanda, Bié e Benguela. Revelou quepor causa da pandemia da Covid-19 vários dessesprojectos estão por implementar.

Domingas Cassanga “rasga” habitualmente as estradasdo país,a partir de Menongue, ao volante da sua viatura,para supervisionar os negócios que tem espalhados porLuanda, Benguela, Bié e Cuando Cubango.

Projectos na forja

Forte veia empreendedora Domingas Cassanga reve-lou que herdou a veia em-preendedora do seu pai,Junqueira Cassanga. Este,em 1978, já possuía um res-taurante, padaria e umaloja na zona da Restinga,na cidade do Lobito.

“Estudava no período damanhã e todas as tardesacompanhava o meu pai aosseus estabelecimentos co-merciais, para contabilizaras vendas diárias.Com apenas10 anos, eu já sabia fazer ascontas do dinheiro”, recordou,com um grande sorriso.

Salientou que, com 14anos, aprendeu a condu-zir.E aos 17 obteve a suaprimeira carta de conduçãoprofissional de veículos pe-sados, através de um termode responsabilidade assi-nado pelo pai, que, apesarde na altura ter vários car-ros, nunca conduziu, de-pendendo de motoristas.

Fez saber que quando ti-nha 18 anos, isto em 1988,o seu pai obteve-lhe umabolsa de estudo para Cuba,mas, posta em Luanda, sub-metida aos exames médicosda praxe, descobriu-se queestava grávida, não podendo,por isso, seguir viagem comos demais bolseiros.

Quando regressou a Ben-guela, o pai Junqueira Cas-sanga deu-lhe uma carga deporrada e, posteriormente,deserdou-a. Tudo por ter per-dido a “grande oportunidadede formar-se no exterior dopaís por causa de um amornão correspondido”.

Domingas Cassanga in-formou que o jovem comquem manteve uma relaçãoamorosa, e a engravidou, nãoquis assumir a gravidez. Fu-gindo das suas responsabi-lidades, alistou-se nas ForçasArmadas Populares de Li-bertação de Angola (FAPLA)

e nunca mais foi visto.Frustrada com a situa-

ção, começou a pedir di-nh e i ro emp re s t a d o aalgumas pessoas chegadasao seu pai, para começar oseu primeiro negócio.

“Facilmente consegui di-nheiro emprestado, porquetodo mundo conhecia e res-peitava o meu pai, que naaltura era proprietário deuma padaria, restaurante eloja na Restinga”, disse.Acrescentou que o restau-rante do seu progenitorera“paragem obrigatória”para citadinos e visitantes.

Do peixe à construção civilSem dinheiro para continuaros estudos e sustentar a suafilha, Domingas Cassangacomeçou a trabalhar no ser-viço de táxi com um auto-carro de 35 lugares, que faziaviagens de Lobito a Benguelae vice-versa.

“Trabalhava de manhãe, no período da noite, iapara a escola. Na altura es-tava a frequentar a nonaclasse na Escola Pim, Pam,Pum, no bairro Compão, noLobito”, disse.

Concluído o ensino mé-dio, conseguiu o seu pri-meiro alvará comercial emBenguela, com a denomi-nação “Domingas MarcelaMungala Cassanga”, e passoua comercializar peixe seco,sal, açúcar e whisky nasprovíncias da Lunda-Nortee da Lunda-Sul.

Com o aumento do vo-lume de negócios, a empre-sária passou a comprarcerveja na vizinha Repúblicada Namíbia, para comercia-lizar nas Lundas, Bié, Malanjee Cuando Cubango.

Fez saber que em 2001,em pleno conflito armado,perdeu quatro camiões comcontentores de 40 pés car-

regados de cerveja, que ti-nham como destino as Lun-das, e mais dois quandosaíam da Namíbia para An-gola. Mas nunca baixou osbraços. O seu lema, até hoje,é: “bola para frente, porqueatrás vem gente”.

Explicou que tanto naLunda-Sul como na Lunda-Norte alguns dos seus pro-dutos eram comercializadosem dólares e outros permu-tados com diamantes, quevendia na Bélgica. Com oandar dos negócios, em 2002comprou 15 carros de ocasiãoe comercializou-os em Ben-guela e no Cuando Cubango.No mesmo período, a conviteda sua prima e amiga AnaBela Tchindandi e do seu tioJoão Baptista Tchindandi,na altura governador doCuando Cubango, começoua comercializar peixe secoem Menongue.

Recordou que compravao peixe seco na Baía Farta.Com os resultados positivosdo negócio passou a compraro peixe seco em Luanda,onde, na altura, era maisbarato, além da maior fa-cilidade de o transportarpara o Cuando Cubango,usando os aviões da ForçaAérea Nacional.

Acrescentou que, com onegócio do peixe seco con-solidadoem Menongue, sur-giram-lhe novos horizontes.A venda de roupa usada foia sua nova aposta.

Em 2004 criouo grupoempresarial “Minga e Fi-lhos”, voltado para a cons-trução civil e obras públicas,comércio geral, exploraçãode diamantes, prestação deserviços, transportes, im-portação e exportação.

Lobitanga de gema, comosempre faz questão de real-çar, Domingas Cassangapassou a viajar para países

da Europa, nomeadamente,Bélgica e Holanda, ondecomprava quantidadesconsideráveis de roupa usa-da que tinha como destinoo Porto Comercial do Lo-bito.De lá era distribuídopara as filiais da sua em-presa em Benguela, Cui-to-Bié e Menongue.

Ainda em 2004, a em-presária lobitanga ganha aprimeira obra de construçãocivil. Tratou-se da empreitadade reabilitação e ampliaçãoda Administração Municipalde Menongue. No ano se-guinte, reabilitou a delegaçãoprovincial dos Correios e Te-lecomunicações.

Domingas Cassanga,nointuito de se afirmar com-pletamente no mundo dos

negócios, em 2006, contraiuum empréstimo de 60 mildólares no Banco de Pou-pança e Crédito, que investiuna compra de sal, peixe secoe roupa usada, que vendeuno mercado informal de Me-nongue, uma parte, e dis-tribuiu aos cidadãos queestavam nas zonas de aco-lhimento nos municípiosdo Rivungo, Mavinga e CuitoCuanavale, outra parte.

A empresária deu a co-nhecer que o seu lucro foide 30 mil dólares.Adquiriu,nos Estados Unidos da Amé-rica, 18 contentores de 40pés carregados de roupausada e calçados. Em Ben-guela ,adquiriu sal, açúcare óleo vegetal, que vendeuno Cuando Cubango.

“Este negócio rendeu-memuito dinheiro. Nunca penseique seria bem-sucedida ven-dendo estes produtos”, disse.Acrescentou que graças aolucro que obteve, conseguiucriar o império “Minga e Fi-lhos”. O ano 2016 foi o maisdifícil da sua vida, por terperdido a sua irmã, no mêsde Abril, em pleno trabalhode parto.No mês seguinte fa-leceu a sua mãe, vítima dedoença prolongada.

“Perdi os maiores tesou-ros que eu já tive na minhavida. Senti-me bastante des-troçada e com vontade dedesistir de tudo, sem forçasnem coragem de continuara lutar e trabalhar”, recor-dou, com os olhos marejadosde lágrimas.

DR

Page 8: Ọ̀ A ICONOCLASTIA DE UMA FILÓSOFA AFRICANA Sophie …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/770062871_fim-de-semana_16.08.2… · ensinou e desenvolveu a arte de adivinhar para documentar

CRÓNICA24 Domingo16 de Agosto de 2020

Pombal Maria

No passado dia 9de Agosto,a trágica notícia da morte deWaldemar Bastos caiu comotempestade na minha alma.Não tive de evitar o vendaval.Realmente não previa paratão cedo a partida daquelaestrela cintilante da músicanacional. Naquela data, DiaInternacional dos Povos In-dígenas, parece que o tempoencurtou e, num pestanejarde olhos, viajamos para ofuturo longínquo. Fomos pe-los caminhos e encontrámosuma onda de choque. A notícia que me trouxe

a informação do infaustoacontecimento tinha essaencantadora metáfora: “Hojehá música angolana no Céu”.As lágrimas brilharam namenina dos meus olhos,não consegui identificar onome de quem havia assi-nado a notícia, não conseguimesmo… Fiquei preso àque-la metáfora. A alegoria ace-lerou ainda mais a viagempelo espaço onde o nossoprezado cantor certamenteestá: no Céu. Com esta li-terariedade, a tempestadeque sacudia a minha almadiminuiu de intensidade.Julguei que estivesse dentrode um poema de BendinhoFreitas, Abreu Paxe ou DavidCapelenguela.O bicho da arte agarrou

em mim e obrigou-me a sen-tar-me junto ao computador

para burilar uma crónica.Não sabia por onde começar,se pelos traços de metáforaspoéticas ou pelos traços tra-dicionais da crónica. Não sa-bia por onde começar aviagem pelo sonho das letras,no género parente da lite-ratura. Logo, o passado veioter comigo, é verdade, a ima-gem da primeira vez que de-positei o voto na urna do“Top dos Mais Queridos”,na década de 80, na portariada Rádio Nacional de Angola.O autor de “Lalipó” foi o meueleito. Mil razões cobriam-me. A forma como cantavaa beleza da terra que me viuchegar no bico de uma ce-gonha foi uma delas. A RádioNacional de Angola levantouo véu, o prémio não chegouàs mãos do meu eleito. Nãoembarquei em prantos, sabiaque o homem que melhorcantava o morango da Huíla,a Serra da Leba e muitas ou-tras belezas da terra da Chela,e não só, tinha adiante umalonga estrada de sucesso porgalgar e Angola e o mundohaveriam de se render aoseu talento. Os mais nobrespalcos do mundo inteiro,principalmente do PrimeiroMundo, seriam testemunhas.Deus foi testemunha.Para enriquecer o meu

texto, já que estava a navegarpor oceanos de letras, fuipromovendo alguma tertúliasobre aquela estrela candenteda música, nas redes sociais,principalmente com amigos

da terra da Marrabenta. Osirmãos do Índico estavammuito consternados com apartida do astro. Por exemplo,Fu Manjate, prestigiado mú-sico, radicado na cidade deCuimba, exímio cantor deFado, através do seu irmãoCarlos Manjate, meu confrade,enviou os seus mais sentidospêsames à família e aos an-golanos. Fu foi amigo do Me-nino de Mbanza Congo.Mas no oceano de letras,

para conseguir resgatar asminhãs memórias sobre oautor, viajei para o passado,cerca de seis anos atrás,quando ele (WB) esteve naCasa dos escritores angola-nos, em Luanda, partilhandoas suas experiências de vidacom os admiradores. A casainaugurada pelo poeta Agos-tinho Neto estava inflamadade gente. O cantor falou dasua trajectória de vida, dosseus encantos e desencantos.Que foi militar das FAPLA,que abandonou o Huambono alvorecer da indepen-dência, receiando ser apa-nhado pelos rebeldes e,automaticamente, foi “des-pachado” para o “inferno”.Lembrou que a sua mãe, umaverdadeira biblioteca, aindaestava entre os vivos, na casados noventa e tantos cacim-bos. Mas, o que mais encan-tou a plateia foi a memóriados seus três meses no pa-lácio do Rei de Espanha. Nãono espaço dos hóspedes. Afamília real fez questão de

o ter bem próximo. Os pre-sentes maravilhavam-se como que saía da sua boca. Na-quela iluminada noite, Wal-demar Bastos matou ondasde saudades, reviu velhasamizades. Há décadas quenão pisava o pé na cidade daKianda. Nas ruas e ruelas deLuanda, modesto como era,não contou os seus passosno tapete asfáltico. Para mui-tos “bons” angolanos, andara pé é uma doida humilha-ção. A educação vem mesmodo berço. Nas suas caminha-das, ao contrário dos meninoscomplexados, o meu eleitodo “Top dos Mais Queridos”foi “amarrado” nos abraçosde centenas de cidadãos, detodas as cores, feitos e feitios,que se assustavam ao verum monstro sagrado da mú-sica angolana a atravessar aestrada a pé.

Bem haja, BurityCom esta viagem ao passado,tinha eu as bases para de-senhar a crónica. Deixei pas-sar um dia para refrescar afloresta da memória, limpeias lágrimas do sol seguintee, no dia escolhido para ca-minhar nas nuvens com otexto, com sabor a poesiasurrealista, outra bomba vol-tou a trepidar a minha alma,acelerando os batimentoscardíacos. Carlos Buritymorreu. Palavra pesada:morreu. Meu Deus, para umpaís louco, com elevada in-versão de valores, pouca

promoção da música autóc-tone, em menos de uma se-mana dois astros da músicapartem para a eternidade.Muita carga para a mãe An-gola, mal amada por algunsdos seus filhos.Carlos Buruty, Deus o te-

nha, foi um dos poucos sem-bistas de gema, dos últimosanos, que conservava a ma-triz. Os tambores, a viola,a dikanza ou o reco-reco ti-nham indispensável pre-sença na sua elaboraçãomusical. Mesmo no tempo(segunda metade da décadade 80) em que os editorese realizadores das rádios,arrepiados como serpenteao ritmo do Zouk, o grandeBurity, com alguns confra-des, caminhavam no deser-to, certos da vitória nacional.A passagem para o Além

deste monstro sagrado doSemba foi uma punhaladano dorso da cultura angolana.Não somente por ter desa-parecido do nosso convívio;tarde ou cedo isso haveriade acontecer, mas porquefoi um dos poucos, que, naidade contemporânea, contrao vendaval da aldeia globale do modernismo - ou pós-modernismo - conservavaas nossas raízes, a nossa iden-tidade cultural. Em Angola, quando al-

guém “bate as asas”, emgrande parte dos casos, éacompanhado por outrem,um amigo, vizinho, colegaou morador do bairro. Como

se o Anjo da Morte copiasseuma impressionante cenado filme “Fuga de Sabibor”,onde o algoz pede ao con-denado para escolher alguémpara o acompanhar ao infernoda morte. Assim foi com amorte do poeta António Pan-guila (1963-2018). Seguiu-se-lhe, uma semana depois,Frederico Ningi (1959-2018).Ningi em vida chegou aacompanhar Panguila à suaeterna morada. Posterior-mente, o escritor Jimmy Ru-fino, Kamba dya Muxima,partiu sem regresso, deixandovasta obra inédita. Na semanaseguinte o poeta Rui Eduardo,da geração 80, o acompanhouao campo santo.Tudo isso parece uma via-

gem ao futuro, ou simples-mente, um sonho acordado.Já dizia o poeta da “SagradaEsperança”: “Quando nosveremos breve ou tarde/ Diz-me amor (…)”. Este amor… única tábua

de salvação para resgatarnossa mais digna vivência...A pergunta não se cala! Quemserá o próximo? Que o digao Anjo da Morte, a esta horarelaxado no céu. No fim do dia, vamos to-

dos pendurar as botas, a mor-te é natural. O Anjo da Morteapenas cumpre a sua tarefa.Waldemar Bastos e CarlosBurity, verdadeiramente,nunca morrerão, jamais secalarão. Continuarão a brilhardeslumbrantes no céu daarte musical mundial.

WALDEMAR BASTOS E CARLOS BURITY

Música angolana no CéuEles nunca morrerão. Jamais se calarão. Continuarão a brilhar deslumbrantes no Céu da arte musical

DR