Upload
fabio-rocha
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
1/198
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
2/198
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
3/198
Dilma RousseffPresidenta da Repblica
Maria do Rosrio NunesMinistra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
Patrcia BarcelosSecretria-Executiva da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
Gabriel dos Santos RochaSecretrio Nacional de Promoo e Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
Jos Armando Fraga Diniz GuerraCoordenador-Geral da Comisso Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo Conatrae
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
4/198
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
5/198
SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOSPRESIDNCIA DA REPBLICASetor Comercial Sul B, quadra 9, Lote CEdifcio Parque Corporate, Torre A,10 andarCEP: 70308-200 Braslia, DFTel. (61) 2025-7908 / [email protected]
APOIO
Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao, a Cincia e a Cultura OEIEscritrio Regional da OEI em BrasliaSHS Quadra 06, Conjunto A, Bloco C, Ed.Brasil 21, sala 919CEP 70316-109 Braslia DF
Impresso no Brasil
DISTRIBUIO GRATUITA
5.000 exemplares
Braslia, 2013
Secretaria de Direitos Humanos, 2013Permitida a reproduo sem fins lucrativos, parcial ou total, por qualquer meio, desde que citada a fonte e o stio da Internet onde pode ser encontrado o original (www.sdh.gov.br).
Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Braslia: SDH, 2013.10 anos de Conatrae: Conatrae 2013
197 p. il.
1. 10 anos de Conatrae. Trabalho escravo e escravido contempornea. Ttulo
CDD: 341344
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
6/198
EXPEDIENTE DA PUBLICAO
Equipe editorialJos Armando Fraga Diniz Guerra Conatrae/SDHLeonardo Sakamoto ONG Reprter Brasil
Xavier Plassat Comisso Pastoral da TerraPesquisa e textoCarolina Falco Motoki
Pesquisa de imagemAndr Boselli
Imagem capaSrgio Carvalho
Projeto grficoEditorar Multimdia
DiagramaoEditorar Multimdia
ImagensAcervo da Cmara dos DeputadosAgncia BrasilAssessoria de imprensa do Ministrio do Trabalho e EmpregoAssociao Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT)Centro de Documentao e Memria Sindical da CUTComisso Pastoral da TerraDiviso para Erradicao do Trabalho Escravo do Ministrio do Trabalho e EmpregoIber ThenrioJoo Roberto Ripper (Imagens Humanas)Joo ZinclarLeonardo Sakamoto
Organizao Internacional do Trabalho (OIT)Renato AlvesReprter BrasilSrgio CarvalhoSindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait)Verena Glass
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
7/198
APRESENTAOSubmeter trabalhadoras e trabalhadores a condies de trabalho anlogas a escravido uma grave violao de Direitos
Humanos e, como tal, representa uma afronta ao Estado Democrtico de Direito. O Estado brasileiro, diante do fato de que esta
prtica inaceitvel ainda ocorre tanto no interior quanto nas grandes cidades, assumiu a erradicao e a represso prtica do
trabalho escravo como uma de suas prioridades.
Nos ltimos anos, o Brasil fez expressivos avanos no combate a esta prtica justamente por ter um olhar sobre a questo
com base na violao de direitos. O trabalho decente um direito a ser preservado e assegurado. Com o reconhecimento da
comunidade internacional, o Governo Federal trabalha com determinao para manuteno de uma economia forte e garantia de
emprego digno para todas e todos. Porm, mais que tudo, quer assegurar que estes postos de trabalho sejam disponibilizados da
forma adequada nossa legislao e sem que se admita qualquer discriminao s pessoas por suas caractersticas individuais.
Neste sentido, a criao da Comisso Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo CONATRAE um marco histrico para o
Pas. Coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, o rgo completou 10 anos em julho de 2013.
Reconhecemos que muitos obstculos ainda precisam ser transpostos para que se possa garantir o cumprimento de todas as
metas do Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo, que se encontra em sua segunda verso. Todavia, nos ltimos
anos foram criados importantes mecanismos de combate ao trabalho escravo como, por exemplo, o Cadastro de Empregadores
que tenham submetido trabalhadores a condies anlogas de escravo, mais conhecido como Lista Suja. Ao lado das
operaes de campo coordenadas pelo Grupo Especial de Fiscalizao Mvel, a lista um valioso instrumento com o qual oEstado brasileiro pode contar na luta contra o trabalho escravo.
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
8/198
Temos nos dedicado ao debate pblico sobre a importncia da aprovao do Projeto de Emenda Constitucional (PEC 57-A/99,
Senado Federal), que prev a expropriao de propriedades nas quais sejam identificados trabalhadores em condies anlogas
escravido. O Projeto foi aprovado na Cmara dos Deputados em 2012 e agora se encontra sob apreciao do Senado Federal.
Trata-se de mais um instrumento decisivo para erradicar essa violao aos Direitos Humanos.
Alm disso, destacamos a articulao empresarial em torno do Pacto Nacional pela Erradicao do Trabalho Escravo, cujos
signatrios se comprometem a no adquirir qualquer produto cuja produo incorpore trabalho escravo em sua cadeia produtiva.
Da mesma forma, ressaltamos a importncia da criao de Comisses Estaduais para a Erradicao do Trabalho Escravo
em diversos estados brasileiros, com potencial para se estender a todas as 27 unidades federativas. Estes so importantesinstrumentos de garantia do direito ao trabalho decente para brasileiras e brasileiros. Em boa parte dos estados, alm da
criao da comisso estadual, tambm foi estabelecido um Plano Estadual e at mesmo uma lei estadual para somar foras ao
enfrentamento articulado no mbito federal.
A erradicao definitiva do trabalho escravo no Brasil uma das prioridades do governo da Presidenta Dilma. A CONATRAE, com
energia e determinao, continuar coordenando e avaliando a implementao das aes previstas no Plano Nacional, bem como
coordenando todos os esforos estaduais e federais de autoridades pblicas e entidades da sociedade civil engajadas nessa luta.
No descansaremos enquanto no erradicarmos definitivamente essa prtica herdada do passado colonial escravista, que tanto
afronta os preceitos da Declarao Universal dos Direitos Humanos.
Maria do Rosrio Nunes Ministra de Estado-Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
9/198
INTRODUO| 12
ENTRE DENNCIASE ARTICULAES: O CAMINHO
AT A CONATRAE| 20
O NASCIMENTO
DA CONATRAE| 48
SUM
RIO
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
10/198
O QUE MARCOU A HISTRIA
DA CONATRAE| 612003 | 62
2004 | 82
2005 | 92
2006 | 104
2007 | 110
2008 | 1362010 | 140
2012 | 144
A CONATRAE HOJE:QUAIS OS DESAFIOS?| 158
LISTA DE SIGLAS| 188
LISTA DE PESSOAS ENTREVISTADAS| 189
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS| 191
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
11/198
INTRODUOFazia pouco mais de 80 anos da assinatura da Lei urea de 1888 quando dom
Pedro Casaldliga, bispo na prelazia de So Flix do Araguaia, em Mato Grosso,
denunciou publicamente que o trabalho escravo ainda era uma realidade no Brasil,
em sua carta pastoral Uma Igreja na Amaznia em conflito com o latifndio e a
marginalizao social, em 1971. Em um trecho dedicado aos pees1, o religioso
descreve a situao enfrentada pelos trabalhadores na abertura das grandes
fazendas da regio do Vale do Araguaia, estimulada pelo governo militar.
1 Parte VI: Pees. Uma
Igreja na Amaznia em
conflito com o latifndio e
a marginalizao social.
So Flix do Araguaia, 10 de
outubro de 1971.
FotgrafoSrgio Carvalho
LocalMinas Gerais
DescrioCana de acar, 2008
12
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
12/198
13
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
13/198
Os pees, aliciados fora, so transportados em avio, barco
ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a
maioria recebe a comunicao de que tero que pagar os
gastos de viagem, inclusive transporte. E j de incio tm que
fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazns
da fazenda, a preos muito elevados.
Para os pees no h moradia. Logo que chegam, so
levados para a mata, para a zona da derrubada onde tm que
construir, como puderem, um barraco para se agasalhar,
tendo que providenciar sua prpria alimentao. As
condies de trabalho so as mais precrias possveis. (...)
No h com os pees nenhum contrato de trabalho. Tudo
fica em simples combinao oral com o empreiteiro.
Acontece mesmo que o empreiteiro foge, deixando na
mo todos os seus subordinados. Os pagamentos so
efetuados ao bel-prazer das empresas. Muitas vezes usa-
se o esquema de no pagar, ou pagar s com vales, ou s
no fim de todo o trabalho realizado, para poder reter os
pees, j que a mo de obra escassa. (...)
Fotgrafo
Joo Roberto Ripper
LocalPiau
DescrioCarvoaria, 2008
14
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
14/198
Outros muitos, doentes, sentindo-se sem foras e temendo
morrer naquelas condies, no conseguindo receber o que
de direito, fogem para sobreviver. Outros ainda fogem por
se verem cada vez mais endividados. E nesta fugas so
barrados por pistoleiros pagos para tanto. (...)
O peo, depois de suportar este tipo de tratamento, perde
sua personalidade. Vive, sem sentir que est em condies
infra-humana. Peo j ganhou conotao depreciativa por
parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e
sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o
peo como raa inferior, com o nico dever de servir a eles,
os desbravadores. Nada fazem pela promoo humana
dessa gente. O peo no tem direito terra, cultura,
assistncia, famlia, a nada. incrvel a resignao, a
apatia e pacincia destes homens, que s se explica pelo
fatalismo sedimentado atravs de geraes de brasileirossem ptria, dessas massas deserdadas de semiescravos que
se sucederam desde as Capitanias Hereditrias.
[Trecho da carta pastoral Uma Igreja na Amaznia em conflito com o
latifndio e a marginalizao social, de dom Pedro Casaldliga, em 1971]
15
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
15/198
Foram necessrios mais 30 anos para que o governo federal
lanasse, em 2003, o primeiro Plano Nacional para a Erradicao do
Trabalho Escravo, com 75 metas envolvendo os poderes Executivo,
Legislativo e Judicirio, o Ministrio Pblico e atores da sociedade
civil. Fruto de discusso realizada em 2002 no mbito do Conselho
de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) da Secretaria
de Direitos Humanos, o plano previa a criao da Comisso
Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo a Conatrae,
o que aconteceu em 31 de julho de 2003, por meio de decreto
presidencial. A comisso nasceu com a funo de acompanhar a
implementao das aes do plano, assim como as demais polticasnacionais para enfrentar o trabalho escravo, e propor estudos e
campanhas de divulgao de informao sobre o tema.
A releitura da carta de dom Pedro Casaldliga descortina uma
realidade daquela poca, que, no entanto, infelizmente se mostra
atual ainda hoje. Ao longo dos anos, a escravido foi revelada
em fazendas e carvoarias de todos os estados brasileiros, de
norte a sul, e em outras atividades econmicas: recentemente,
casos flagrados na construo civil e nas confeces ganharam
destaque. Como elemento comum, situaes que roubam a
dignidade do trabalhador.
16
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
16/198
A escravido contempornea no se utiliza de grilhes e chibata,
mas, assim como aquela que marcou nossos perodos de
Colnia e Imprio, baseia-se na violncia e na destituio dos
trabalhadores de sua condio de ser humano. Em muitos casos,
a explorao no vista como tal e considerada natural, como
hbito, cultura ou a nica opo destinada a quem nasceu pobre.
O reconhecimento pblico pelo governo brasileiro de que o trabalho
escravo existia em territrio nacional s veio em 1995. Desde ento,
o Estado passou a criar estruturas especficas para combater o
problema. Apesar disso e dos avanos alcanados desde ento,alguns setores insistem em negar a sua gravidade, atribuem a
exagero de fiscais algumas autuaes e contestam o conceito
brasileiro de trabalho escravo, evocando as imagens do passado.
Os dez anos de histria da Conatrae so marcados por esse
dualismo: eles acompanham a maneira como o combate
escravido contempornea no Brasil se consolidou, a ponto de
ser considerado pela Organizao Internacional do Trabalho (OIT)
uma experincia que deve servir de exemplo a outros pases
do mundo, ao mesmo tempo em que apontam as resistncias
enfrentadas para que a prtica seja condenada como um crime
de lesa-humanidade.
FotgrafoRenato Alves
(Assessoria deimprensa/MTE)
LocalCear, 2009
17
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
17/198
18
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
18/198
CASO COMPANHIA VALEDO RIO CRISTALINOSANTANA DO ARAGUAIA, SUL DO PAR
Em 1973, a Volkswagen, montadora de veculosalem, comprou 140 mil hectares de terra no sul doPar, respondendo ao chamado do regime militarpara a ocupao da Amaznia. A terra era baratae o governo concedeu incentivos fiscais a queminstalasse projetos agropecurios na regio, almde realizar obras de infraestrutura. dessa poca a
construo da rodovia Transamaznica.
Ao mesmo tempo em que incentivava a chegadado empresariado, o governo tambm atraamigrantes de diversas regies do pas, em especialdo Nordeste, de Minas Gerais e de Gois, sob ojargo falacioso terra sem homens para homenssem terra, propagandeando um grande projeto decolonizao e de distribuio de terras.
No entanto, ao chegarem ao destino, em vez deencontrarem a terra onde jorra leite e mel, osmigrantes depararam-se com intensos conflitosfundirios e muitos deles se viram obrigados aservirem de mo de obra farta e barata para aberturadas grandes fazendas. Assim se formou a basepara a escravido contempornea na Amaznia.
Sem terra e sem emprego, tiveram de atender aoschamados dos gatos, aliciadores de trabalhadores,e a se submeter a pssimas condies de trabalho.
No foi diferente na fazenda Vale do RioCristalino, da Volkswagen. O projeto da empresafoi aprovado pela Sudam em 1974, quando foraminiciadas as atividades. Ao passo em que a Valedo Rio Cristalino se utilizava de alta tecnologia ecolocava disposio de seus funcionrios retiroscom clube e escola, os pees, nos fundos dafazenda, eram tratados de maneira degradante etinham sua dignidade e liberdade roubadas.
Em 1983, ganharam repercusso na imprensainternacional as denncias elaboradas pelaComisso Pastoral da Terra CPT, representadapelo padre Ricardo Rezende Figueira, que acolhiaos trabalhadores fugitivos da fazenda. Peesamarrados, tortura, violncia sexual, cerceamentoda liberdade de ir e vir, endividamento, gua sujapara beber, doenas no tratadas apresentavam umcenrio de extrema violao de direitos. Em pocade derrubada, a Vale do Rio Cristalino chegava a
empregar mil trabalhadores nessas condies.
O inqurito policial instalado chegou concluso da
existncia do trabalho escravo na fazenda. Apesar
disso, a Volkswagen negou sua responsabilidade, e a
atribuiu ao empreiteiro.
REALIDADE
FotgrafoJoo Roberto Ripper
DescrioDesmatamento da
Floresta Amaznica
19
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
19/198
ENTRE DENNCIAS EARTICULAES:
O CAMINHO ATA CONATRAEFotgrafo
Srgio Carvalho
LocalPiau, 2008
20
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
20/198
21
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
21/198
LAS ABRAMO, DIRETORA DA OIT NO BRASIL
A OIT considera que o Brasil uma referncia internacional na luta contra o trabalho escravo. Isso est expresso nos relatrios globais sobre o
trabalho forado, elaborados periodicamente pelo diretor geral da OIT. Desde 2005, o Brasil aparece como um pas que tem realmente feito um
esforo muito grande no sentido da preveno e da erradicao do trabalho forado. A primeira questo que destacada quando se analisa a
experincia brasileira que eu acho que central o fato de o pas ter reconhecido oficialmente a existncia do problema.
As denncias em relao existncia de trabalho escravo contemporneo no Brasil vm desde os anos 1970. A Comisso Pastoral da Terra teve
um papel muito importante no desenvolvimento dessas denncias, e durante muito tempo isso era algo bastante oculto, bastante desconsiderado.
At que, em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, houve um reconhecimento oficial, ante a Organizao das Naes Unidas, da existncia
do problema no Brasil, e a primeira definio de um mecanismo de combate ao trabalho escravo.
A anlise da OIT que o trabalho escravo hoje, infelizmente, um fenmeno generalizado no mundo. Ele acontece em todas as regies e tem
crescido no contexto da globalizao. Est presente no apenas nos pases mais, digamos, atrasados ou menos desenvolvidos, mas tambm nos
pases centrais e em cadeias produtivas de empresas com presena no mercado internacional. Apesar de ser essa a realidade mundial, so poucos
os pases hoje em dia que reconhecem oficialmente a existncia do problema nos seus territrios.
DEPOIMENTO
22
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
22/198
As reiteradas denncias na imprensa, na Organizao Internacional do Trabalho OIT, na
Organizao das Naes Unidas e no Parlamento Europeu, elaboradas pela sociedade civil a partir
da dcada de 1970, especialmente pela Comisso Pastoral da Terra CPT, tornaram impossvel
negar que o trabalho escravo era uma realidade no Brasil. O reconhecimento oficial em 1995 se
deu aps o pas ser denunciado pela prpria CPT e pela organizao no governamental Centre
for Justice and International Law na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo que ficou
conhecido como caso Jos Pereira. A denncia alegava violao de diversos direitos humanos,
omisso do Estado brasileiro para investigar crimes de trabalho escravo, muitas vezes associados a
assassinatos, e ineficcia para punir os responsveis por essas prticas.
O caso do trabalhador Jos Pereira foi tomado como exemplo dessa situao. Em setembro de
1989, com 17 anos, ele tentou fugir da fazenda Esprito Santo, em Sapucaia, Par, com um colega
de trabalho apelidado de Paran. Os dois foram seguidos por pistoleiros e alvejados por tiros.
Paran morreu na hora e Jos Pereira ficou ferido no rosto e na mo. O rapaz se fingiu de morto e
foi abandonado na estrada a alguns quilmetros de distncia. Jos Pereira conseguiu denunciar a
situao Polcia Federal, que retirou 60 trabalhadores da fazenda. Os pistoleiros fugiram e nada
foi feito para punir os responsveis pelos crimes.
23
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
23/198
JOS PEREIRA2, TRABALHADOR RURAL
O gato [aliciador de servio para a fazenda] j dizia que ns estvamos devendo
muito. A gente trabalhava e eles no falavam o preo que iam pagar pra gente, nem
das coisas que a gente comprava deles, nem nada. E a, ns fugimos de madrugada,
numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande.
Mas a fazenda tinha duas estradas, e ns s sabamos de uma. Nessa, que ns
ia, eles no passavam. Mas eles j tinham rodeado pela outra e tinham botado
trincheira na frente, tocaia, n. Ns no sabia... Mais de cinco horas passamos na
estrada, perto da mata. E quando ns samos da mata, fomos surpreendidos pelo
Chico, que o gato, e mais trs. Que atiraram no Paran, nas curvas dele, e ele
caiu morrendo. Eles foram, buscaram uma caminhonete com uma lona e forraram
a carroceria. A colocaram ele de bruos e mandaram eu andar. Eu andei uns dez
metros e ele atirou em mim.
2 Em entrevista concedidaa Leonardo Sakamoto, da
ONG Reprter Brasil. In:
Trabalho escravo no
Brasil do sculo XXI.
Braslia: OIT, 2007.
3 Um exemplo so os relatrios
elaborados pela Coordenadoria
de Conflitos Agrrios doMinistrio da Reforma e
Desenvolvimento Agrrio que
defendiam a desapropriao de
imveis rurais onde a prtica
de trabalho escravo fosse
constatada, o que no chegou a
acontecer naquele perodo.
DEPOIMENTO
Entre as dcadas de 1970 e de 1990, aes da Polcia Federal, como a da fazenda Esprito
Santo, no garantiam os direitos aos trabalhadores nem a punio dos proprietrios. Muitas
das aes realizadas pelo prprio Ministrio do Trabalho no caracterizavam as situaes
flagradas como trabalho escravo, o que tambm era denunciado pela CPT. Nesse perodo,
iniciativas esparsas foram realizadas pelo governo3. Essas medidas, entretanto, no se
configuravam como uma ao organizada do pas para combater a prtica da escravido.
Enquanto isso, algumas instituies se articulavam para discutir o problema.
24
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
24/198
DEPOIMENTOANA DE SOUZA PINTO,
AGENTE DA CPT EM
XINGUARA, PARA divulgao era para mostrar: Olha, est
existindo na Amaznia um problema muito
grave e cabe aos poderes pblicos enfrentar
isso, se responsabilizar pelo que vem
acontecendo aqui, ter formas de agir. E o
primeiro passo seria reconhecer a existnciado problema. Todo o esforo era nessa direo,
para forar o poder pblico a agir.
FotgrafoLeonardo Sakamoto
LocalEldorado dos Carajs, Par
DescrioTrabalhador libertado de
fazenda de gado
25
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
25/198
Em 1991, diante do acirramento dos conflitos envolvendo trabalhadores rurais e posseiros, especialmente
no sul do Par, foi criado o Frum Nacional contra a Violncia no Campo. Ele reunia na Procuradoria
Geral da Repblica, em Braslia, diversas entidades da sociedade civil, como a prpria CPT, sindicatos,
movimentos de direitos humanos e a Ordem dos Advogados do Brasil, e tinha a participao do prprio
Ministrio Pblico Federal e de alguns servidores do Ministrio do Trabalho.
O Frum surgiu com os objetivos de registrar as prticas de violncia no campo e de apontar solues
para o problema. No mesmo ano de seu lanamento, o sindicalista Expedito Ribeiro fora assassinado em
Rio Maria, sul do Par, uma morte anunciada por ele mesmo meses antes em um congresso da Central
nica dos Trabalhadores CUT em So Paulo. Nas reunies quase mensais, o trabalho escravo tornou-se um dos principais assuntos debatidos, com formulao de legislao e de propostas de polticas
pblicas para o enfrentamento ao crime, entre elas o que viria a ser a PEC do Trabalho Escravo, que at
meados de 2013 ainda tramitava no Congresso Nacional. A proposta de emenda constitucional prev o
confisco das propriedades onde for flagrado o trabalho escravo.Foto:arquivo/CPTXinguara
26
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
26/198
FotoTrecho do documentrioOs Rurais da CUT
DescrioSindicalista Expedito Ribeiro,assassinado em 1991
DEPOIMENTOFREI HENRI BURIN
DES ROZIERS,
ADVOGADO DA CPTEM XINGUARA, PAR
Teve o assassinato de Expedito, depois do
assassinato de Joo Canuto, dos filhos de
Joo Canuto. Em uma grande assembleia
da CUT em So Paulo, chamaram Expedito.
Ele disse: querem me matar, querem
eliminar o sindicato de Rio Maria. E estava
acontecendo, estavam eliminando pouco
a pouco. O pessoal queria que ele sasse
de l e ele disse: como posso abandonar
meus companheiros de luta?; e ficou. Ele
foi assassinado. Foi como uma bomba. Todo
mundo preocupado. No tinha advogadono local, e era necessrio acompanhar
imediatamente para no perder as pistas. Me
ofereci por dois meses, adiando uma viagem
que estava marcada. Quando cheguei a Rio
27
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
27/198
DEPOIMENTO Maria, estava presente o subprocurador geral da repblica lvaro Ribeiro, que
voltou a Braslia com a ideia do Frum Nacional contra a Violncia no Campo.
A procuradoria ofereceu seu espao para fazer as reunies. Eu estava no focoda violncia, em Rio Maria, e me convidaram a participar. A ideia era aliviar o
problema do sul do Par. O trabalho escravo j era uma coisa muito importante
na CPT de Conceio do Araguaia e apareciam sempre casos de trabalho escravo
gravssimos. Ento, sempre que eu ia ao espao do Frum, alm da violncia,
alm do andamento dos processos criminais, sempre colocava o trabalho
escravo: acontece isso, isso, isso e nada foi feito. No existia o Grupo Mvel.
Preocupava muito a situao e nada funcionava. O trabalho escravo se tornou
uma prioridade do Frum. E o que era fantstico: a partir da realidade que
colocvamos l. As pessoas estavam mobilizadas descobrindo a realidade.
Organizamos um seminrio no Congresso em 1994 sobre esta realidade que
estava negada oficialmente4. O seminrio foi assumido pelo Ministrio Pblico
do Trabalho, vrios procuradores do trabalho presentes e muita gente. O pblico
no era muito simpatizante, teve muito debate. Foi interessante, briga feia
entre os procuradores do Trabalho. Uns diziam: tem que sair do escritrio e
acompanhar, ver a realidade. Comeava um pouco a ideia do Grupo Mvel.
O outro dizia: no, temos que trabalhar sobre peas, no tem que sair. Foi
extremamente importante. Criou-se pouco a pouco o embrio do Grupo Mvel.
4Seminrio
Trabalho Escravo
Nunca Mais,
de 23 a 25 de
agosto de 1994,
na Cmara dos
Deputados,
Braslia.
FotoArquivo/CPT Xinguara
LocalRio Maria, Par, fev. 1991
Descrio
Ato pblico em protestoao assassinato deExpedito Ribeiro e deoutras lideranassindicais
28
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
28/198
O Estado brasileiro passou a
se mobilizar para combater o
trabalho escravo apenas em 1995,
quando, aps o reconhecimento,foi criado o Grupo Executivo
de Represso ao Trabalho
Forado Gertraf. O Gertraf era
coordenado pelo Ministrio do
Trabalho e composto por mais seis
ministrios5. Outras organizaes
eram convidadas s reunies, mas
sem poder de voto. No entanto,a avaliao que se faz que o
Gertraf no funcionava a contento.
5 Pelo decreto 1.538 de 27 de junho de 1995,
o Gertraf era composto por: Ministrio do
Trabalho; Ministrio da Justia; Ministrio do
Meio Ambiente, dos Recursos Hdricos e da
Amaznia Legal; Ministrio da Agricultura e
do Abastecimento; e Ministrio da Indstria,
do Comrcio e do Turismo. Em 1996, o decreto
1.982 incluiu o Ministrio da Previdncia e
Assistncia Social e o Gabinete do Ministro
de Estado Extraordinrio de Poltica Fundiria.
29
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
29/198
RUTH BEATRIZ VILELA, SECRETRIADE INSPEO DO TRABALHO
1993-1994; 1995-1998;2003-JAN/2011
O Gertraf foi uma primeira tentativa de articulao interinstitucional para
lidar com o tema. Existia interesse e boa vontade da parte dos tcnicos
que representavam cada Ministrio. Mas no necessariamente eram
pessoas com poder de deciso, com governabilidade suficiente sobre os
recursos e sobre a possibilidade de caminhar. Eu entendo que o Gertraf,muito embora tenha sido uma iniciativa importante para a poca, no
vingou por falta de possibilidade de execuo das polticas.
O que realmente figurou uma mnima poltica governamental foi a
criao do Grupo Mvel, que tambm ocorreu em 1995. O que segurou
o tema e deu visibilidade foram as aes realizadas e a cobertura
da mdia. As questes comearam a ser divulgadas e chegaram ao
conhecimento pblico.
No incio, a fiscalizao sofreu muito, porque no tinha os instrumentos e
no havia nenhum antecedente que se pudesse usar. Tivemos que ir criando
as formas de atuao. Nas primeiras aes de que participei, eu desesperei,
porque voc encontra o problema e v a gravidade dele, mas no h legislao
eficiente que d conta do recado e no h recurso para bancar todos os
desdobramentos da ao. Ento, no incio, foi uma coisa de desbravador...
Porque no sabamos o que fazer. Tivemos que criar alternativas.
Se o Gertraf tivesse caminhado bem, teria sido timo, porque seria
uma estrutura que reforaria o trabalho da fiscalizao e o resultado
das aes. Mas, infelizmente, caminhavam bem separados porque
comearam as presses polticas contrrias. E o mesmo discurso que
ainda se ouve hoje: trabalho escravo inveno, no existe, um
exagero, forao de barra.
O discurso era muito semelhante, por incrvel que parea. Agora tem leis
mais claras, j tem vrios precedentes, tem decises da Justia; isso jdeveria ser um limitador da cara de pau de quem faz o discurso mais
escravagista. Mas, do ponto de vista dos parlamentares, da bancada
ruralista, o discurso no mudou. Ele continua nessa insistncia de que tudo
um exagero e inveno da fiscalizao. Eu tive muito esse enfrentamento,
cara a cara, em algumas audincias pblicas na Cmara dos Deputados. Eu
me lembro de um deputado que falou assim: mas, doutora, vocs esto
praticamente exigindo que a gente fornea gua Evian aos trabalhadores.
No respeita nem os costumes locais. Vocs no deixam nem os
trabalhadores dormirem em rede. Mentira, porque no tem isso.
O que ao longo do tempo foi mudando um pouco, com a boa repercusso
nacional e internacional, foi conseguir angariar um apoio maior e mais
adeptos para a defesa do trabalho.
DEPOIMENTO
30
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
30/198
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
31/198
6 Hoje Superintendncias
Regionais do Trabalho eEmprego - SRTE.
7 Entrevista concedida em
junho de 2013.
8Entrevista concedida por
email em julho de 2013.
Outra proposio surgida no espao do Frum Nacional contra a Violncia no Campo,
tambm levada a cabo pelo governo em 1995, foi a criao de um grupo de fiscalizao que
atendesse denncias de trabalho escravo com atuao nacional, livre de influncias polticas
locais e de possveis ameaas aos auditores fiscais envolvidos nas aes. Em entrevista,
Lus Antnio Camargo, procurador-chefe do trabalho, declara que havia muita dificuldade
no atendimento das denncias pelas ento chamadas Delegacias Regionais do Trabalho6:
no Mato Grosso do Sul, por exemplo, aconteceu de chegar a uma determinada empresa
ou propriedade rural para fazer uma verificao, e tomar conhecimento que o proprietrio j
estava nos aguardando. Significava no poder confiar naquelas estruturas das Delegacias
Regionais do Trabalho. A criao do Grupo Mvel diretamente ligado Secretaria de
Inspeo do Trabalho aqui em Braslia retirava das Delegacias Regionais do Trabalho o
conhecimento da operao7. A CPT fazia as mesmas queixas. De acordo com padre Ricardo
Rezende Figueira, no estado, o delegado do trabalho e os auditores do Ministrio eram
omissos ou coniventes8.
O Grupo Especial de Fiscalizao Mvel, em funcionamento at os dias de hoje, ligado Secretaria de Inspeo do Trabalho em Braslia e fiscaliza casos de trabalho escravo com
auditores de diversas partes do pas, apoio da Polcia Federal e participao do Ministrio
Pblico do Trabalho. Por reunir diversas esferas para uma ao coordenada, considerado
um instrumento inovador no campo da represso.
FotgrafoSrgio Carvalho
DescrioAo do Grupo Mvelresgata trabalhadoresO GRUPO MVEL DE FISCALIZAO: OUTRA REIVINDICAO
32
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
32/198
33
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
33/198
VALDEREZ MONTE, AUDITORAFISCAL DO TRABALHO E
COORDENADORA DE EQUIPE DOGRUPO MVEL
1995-2004
Filha e neta de seringalistas, sempre quis saber o que era seringueiro
no saldo porque pelos comentrios soava como extravagncia.
Perguntando e entendendo aos poucos, descobri que era o trabalhadordos seringais que conseguia a faanha de sair, libertar-se das dvidas de
barraco; significava tambm um homem com dinheiro, esbanjando nas
compras e despesas com bares e cabars.
Nossa casa sempre foi frequentada por todos os tipos de pessoas e me
fascinavam as histrias sofridas dos nordestinos que deixaram tudo
pra trs e foram em busca de um sonho de vida digna que muitos no
conseguiram. Era um mundo paradoxal: muita gua, peixes, animais e a
pujana da floresta. Era tambm a primeira notcia de trabalho escravo
que conhecia.
Inconformada, abordava sempre o assunto, at que um dia, trabalhando
no Movimento de Educao de Base da CNBB, Paulo Freire como base,
encontrei amigos que tambm eram sensveis questo. Chegamos a
escrever uma pea de teatro, inclusive com msica, sobre o tema. Veio aDitadura, foi tudo destrudo e nosso projeto tambm.
J auditora fiscal do trabalho, logo me apaixonei pela fiscalizao rural,
poca feita de forma muito precria e sazonal na regio Centro-Oeste.
Em 1995, com o reconhecimento da existncia de trabalho escravo pelo
Estado brasileiro, foram criados os Grupos Mveis de Fiscalizao para
combate e erradicao do trabalho escravo. Me coloquei disposio
para fazer parte do trabalho, dedicando-me integralmente a ele
enquanto estive na ativa, at 2004 quando me aposentei.
Foi uma das mais gratificantes experincias que tive no servio pblico,
sentindo-me realmente til.
DEPOIMENTO
34
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
34/198
No incio de sua formao, porm, o Grupo Mvel enfrentou algumas dificuldades, o que pode ser notado pelo
baixo nmero de trabalhadores libertados entre 1995 e 2002, em comparao com os anos seguintes9. Alm
da falta de estrutura para a realizao das operaes as equipes no dispunham nem de computadores para
relatoria , carecia de agilidade no atendimento das denncias e, ainda, sofria influncia poltica de algunsdelegados regionais, que negavam aos seus fiscais participao nas aes.
Ao longo dos anos, o Grupo Mvel tem enfrentado resistncias e ataques de alguns setores econmicos.
Rosa Maria Campos Jorge, do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho Sinait, afirma que
o trabalho dos auditores fiscais do trabalho que compem e coordenam os Grupos Mveis feito no
estrito cumprimento da lei, de forma exaustivamente documentada, com vdeos, fotografias, depoimentos
dos trabalhadores e ainda com presena de outros servidores pblicos. Ao final so produzidos relatrios
minuciosos, sempre com a preocupao de deixar claro, e de maneira inequvoca, se a realidade encontrada
pela fiscalizao se adqua descrio legal10.
9 Segundo
levantamento da CPT,
entre 1995 e 2002
foram libertados 5.893
trabalhadores. Somenteem 2003, 5.228 pessoas
foram resgatadas pelo
Grupo Mvel.
10 Entrevista
concedida por
email em julho
de 2013.
35
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
35/198
FotgrafoSrgio Carvalho
DescrioAo do Grupo Mvelem canavial
36
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
36/198
ALEXANDRE LYRA, CHEFE DA DIVISO DE FISCALIZAO PARAERRADICAO DO TRABALHO ESCRAVO DO MINISTRIO DO TRABALHO
Os que contestam dizem que h ausncia de objetividade do conceito, que trabalho escravo coisa da cabea de auditor. Posso garantir que isso no
corresponde realidade. Se eventualmente percebemos excessos, analisado e contestado. Quando voc se depara com aquela situao, no h
dvida de que trabalho escravo. At o deputado Giovanni Queiroz, em fiscalizao no Par, ficou chocado com o que viu e afirmou ser impossvel
que essa situao ainda acontea. Por falta de argumento, dizem que so meras irregularidades, que por dormir na rede, que pela espessura do
colcho. mentira. O que acontece que, junto com o trabalho escravo, so lavrados autos sobre todas as irregularidades encontradas. So autos
perifricos. Trabalho escravo uma situao gravssima na qual h negao total do direito do trabalhador. Alm disso, em mdia a fiscalizao tem
contato com 30 mil trabalhadores, e apenas 10% se resgata da situao de trabalho escravo. Se a fiscalizao estivesse de qualquer forma buscando
resgatar ou apontar como trabalho escravo, o nmero seria maior. No razovel dizer que a fiscalizao est exagerando.
DEPOIMENTO
37
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
37/198
Apesar das dificuldades, o Grupo Mvel consolidou-se como um dos
principais instrumentos na represso ao trabalho escravo, a partir
do qual derivam aes em outras instncias, como na Justia do
Trabalho e no Ministrio Pblico Federal. Entre 1995 e setembro de2013, 47.666 pessoas foram libertadas da escravido.11
Durante a ao de fiscalizao, os auditores fiscais,
coordenadores da equipe, verificam as condies de trabalho
e aplicam autos de infrao em caso de irregularidade. Se
constatados elementos que configurem a situao como
trabalho escravo, feita a resciso indireta dos contratos
de trabalho. Assim, garantem o pagamento de todos os
direitos trabalhistas no ato do resgate. J os procuradores
do trabalho reforam a atuao dos auditores com medidas
judiciais urgentes, como o bloqueio de bens dos acusados
que se negarem a pagar os direitos trabalhistas. Alm disso,
podem firmar termos de ajustamento de conduta ou entrar na
Justia do Trabalho com aes civis pblicas, com a exigncia
de indenizaes por dano moral coletivo. Para o procurador do
trabalho Sebastio Caixeta, a participao dos procuradores do
trabalho nas atuaes do grupo Mvel, sem dvida, influenciou
a forma como o MPT trata o tema hoje12.
11 Dado compilado
pela ComissoPastoral da Terra.
12 Entrevista
concedida por
e-mail em agosto
de 2013.
FotgrafoRenato Alves(Assessoria deimprensa/MTE)
LocalPar, 2010
38
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
38/198
Os policiais federais, alm de garantir a segurana da equipe,
devem colher provas, abrir inquritos e efetuar prises em caso
de flagrantes de crimes. Para Paula Dora, chefe do Servio de
Represso ao Trabalho Forado da Polcia Federal, o choque derealidade com questes como vulnerabilidade e explorao faz
com que os policiais passem a enxergar um delito hediondo e
silencioso, o que fundamental para a atuao. O principal
desafio da PF continua sendo a qualificao e treinamento dos
policiais visando no s aprimorar as tcnicas operacionais,
como tambm a sensibilizao com a existncia e prtica do
delito, complementa13.
Desde 2003, os trabalhadores resgatados pelas equipes mveis
tm direito a trs meses de salrio do Seguro-Desemprego14. O
objetivo da medida impedir que retornem mesma situao,
mesmo que temporariamente.
Mais recentemente, as Superintendncias Regionais do Trabalho
e Emprego SRTEs passaram a investigar denncias e afiscalizar casos de trabalho escravo. A prtica bastante comum
e, em alguns estados, praticamente o Grupo Mvel no tem
atuado, como em Mato Grosso, Minas Gerais, So Paulo e
Tocantins, por exemplo. De acordo com Alexandre Lyra, chefe
13 Entrevista
concedida por
e-mail em junho
de 2013.
14 Lei 10.068 de 20
de dezembro de 2002.
39
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
39/198
da Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo
do Ministrio do Trabalho e Emprego, ao longo dos anos, as
SRTEs se organizaram e, ao receberem denncias, podem
optar pela fiscalizao. A Secretaria de Inspeo em Brasliatambm pode solicitar que a fiscalizao seja efetuada pelas
regionais. Quando no envolve um alto nvel de complexidade
ou quando no se coloca em risco a segurana dos auditores,
encaminhamos para as superintendncias15.
A medida, no entanto, ainda polmica: alguns auditores
consideram que essas aes colocam em risco a segurana
dos servidores e que deveriam ser feitos mais investimentos
no grupo nacional. Para Rosngela Rassy, presidenta do Sinait,
esse movimento foi uma tentativa de facilitar o deslocamento,
de atender mais rpido, de dar mais agilidade. Sem dvida
nenhuma funcionou, est funcionando. Mas, por outro lado, ns
como categoria temos esta preocupao com a segurana16.
15 Entrevista
concedida por
telefone em outubro
de 2013.
16 Entrevista
concedida em junho
de 2013.
40
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
40/198
DEPOIMENTORACHEL CUNHA, SERVIDORA
NO MINISTRIO DO TRABALHO
E EMPREGO (1993-2001) ECOORDENADORA DO BALCO DEDIREITOS, NA SECRETARIA DIREITOSHUMANOS (2001-2010)
Eu cheguei ao Ministrio do Trabalho em 1993 para trabalhar com a
Ruth Vilela. No havia informao nenhuma sobre trabalho escravo na
Secretaria. As denncias chegavam, mas no tinha estrutura, no tinha
carro, no tinha pessoal. O ministrio levava meses para apurar. O trabalho
escravo tem um carter temporrio e quando a fiscalizao chegava l,
claro, o trabalho escravo j estava acabado. E os fiscais colocavam assim:
trabalhador sem carteira. Descries muito bobas e no acontecia nada.
O Brasil foi denunciado na OEA pelo caso de Z Pereira. E Valter Barelli,
ministro do Trabalho na poca, teve a ousadia de reconhecer. Porque todomundo dizia: no, acho que no pode escancarar. Valter Barelli esteve
na conferncia da OIT dizendo: ns temos trabalho escravo sim e agora
o governo vai fazer um esforo para combater. Foi quando o governo
Fernando Henrique resolveu criar o Gertraf.
E criou o Grupo Especial de Fiscalizao Mvel, formado de auditores
fiscais de diversas regies com o objetivo de combater o trabalho escravo.
Esse grupo foi, aos poucos, comeando, e o pessoal aprendeu a fazer
fazendo. Ia apurar uma denncia e a situao encontrada era uma lona
preta e os pedaos de pau; essa era a habitao desses trabalhadores. s
vezes, bebiam gua onde os animais bebiam; as necessidades fisiolgicas
eram feitas na mata... Era uma situao deplorvel. Naquela poca, eram
grandes propriedades com 20 mil cabeas de gado, grandes projetos
agropecurios. Os trabalhadores eram jogados no mato, e as fazendas com
casas projetadas por Burle Marx; os proprietrios no fim de semana iam de
jatinho para a sua propriedade e os trabalhadores naquelas condies.
Eu digo sempre que os animais tinham um atendimento e uma assistncia
muito melhor do que os trabalhadores. Os animais tinham rao
balanceada, vacina, currais at aquecidos. No incio, a sofisticao era to
grande que voc tinha um chip na pata do animal e esse chip ia identificar
o momento ideal para o corte. O gado tinha um atendimento timo. Os
trabalhadores no tinham nada. Se casse uma tora de rvore na cabea
ou houvesse picada de cobra, no tinham assistncia mdica. Omisso
de socorro, a fiscalizao sempre autuava. Chegava e encontrava um
trabalhador em uma rede, com malria, doente, com febre alta.
O incio sempre difcil porque tudo por fazer; no tinha frmula. Em 2003,
voc j tinha todo esse incio estruturado. De 1993 a 2003, se preparou o
terreno para que as coisas comeassem a acontecer de forma bem estruturada.
41
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
41/198
42
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
42/198
A COMISSO PASTORAL DA TERRA E SUA AOARTICULADA
A CPT foi pioneira ao dar visibilidade, nacional e internacionalmente,
condio de explorao a que eram submetidos muitos trabalhadores
acolhidos por seus agentes pastorais, funo que desempenha at hoje17.
A sua participao no Frum Nacional contra a Violncia no Campo
possibilitou o encontro com fiscais do trabalho comprometidos com o
combate escravido, o que fez com que a entidade se tornasse referncia
na formalizao de denncias ao Ministrio do Trabalho, construindo a ponte
entre os trabalhadores e o poder pblico.
Ainda hoje, responsvel pela maior parte das denncias que so
encaminhadas ao Grupo Mvel de Fiscalizao. Sua ao tem sido fatordeterminante para que muitas vtimas sejam resgatadas e tenham seus
direitos ressarcidos. Desde 2003 at 2012, a CPT encaminhou 1.174 denncias
Secretaria de Inspeo do Trabalho, das quais 446 foram fiscalizadas,
resultando no resgate de 8.146 trabalhadores.
FotgrafoSrgio Carvalho
17 A CPT foi criada
em 1975, em resposta
s violncias sofridas
no campo por
trabalhadores rurais e
posseiros, sobretudo
na Amaznia. O
trabalho escravo
eixo transversal das
aes da entidade,
que mobiliza e articulacomunidades rurais
para reivindicao
de seus direitos e
para a conquista e
a permanncia na
terra com vida digna.
Desse modo, a CPT
acredita que suas
atividades, no geral,
acabam por evitar que
trabalhadores desses
grupos caiam no cicloda escravido, ao
atuarem diretamente
no que considera a
raiz do problema:
a concentrao
fundiria.
43
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
43/198
ANA DE SOUZA PINTO, AGENTEDA CPT EM XINGUARA, PAR
Nos vrios povoados, havia equipes pastorais, compostas de
padres, irms e leigos que trabalhavam ligados prelazia [de So
Flix do Araguaia, Mato Grosso], no sentido de acompanhar a
caminhada do povo da regio, frente aos seus problemas ligados
terra, questo das relaes de trabalho, e tambm sade,
educao e tudo mais. Na medida em que os trabalhadores
fugiam, buscavam apoio nas casas dessas pessoas, em condies
de extremo sofrimento e com muito medo. Se at agora ainda tempistoleiros, imagine naquela poca, na dcada de 1970, o nvel
de controle que era exercido sobre os pees. Eu me lembro, em
Ribeiro Cascalheira onde eu morei seis anos , de um grupo de
seis pees que vieram. Eles chegaram espancados por pistoleiros,
todos arranhados, cheios de feridas, os ps inchados, com um
medo, um desespero... Tinham andado mais de uma semana,
morrendo de fome... Chegaram l pedindo comida, roupa, remdio,essas coisas. A atuao da equipe da prelazia, que tinha ligao
com a CPT, era de acolher e prestar a solidariedade bsica em
funo dessa situao limite.
DEPO
IMENTO
FotgrafoJoo Roberto Ripper
DescrioPeo que trabalhava comoescravo em fazenda noestado do Par
44
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
44/198
Entre as primeiras denncias da dcada de 1970 e os anos 1990, as equipes do Mato
Grosso e do sul do Par perceberam que a maioria dos trabalhadores escravizados
na regio chegavam de outros estados, principalmente do Piau, do Maranho e
do Tocantins. E que, ento, fazia-se necessria uma articulao com as equipespastorais que atuavam nos locais de origem desses trabalhadores.
Assim, a partir de 1997, a CPT tambm organizou sua prpria articulao, na forma
de uma campanha chamada deDe olho aberto para no virar escravo. Alm do
recolhimento de denncias, so realizadas aes preventivas, com distribuio de
materiais, palestras com trabalhadores, educadores, lideranas e agentes pblicos.
Hoje, oito estados participam da campanha (Bahia, Gois, Maranho, Mato Grosso,
Par, Piau, Tocantins e Rondnia), alm do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos
Humanos Carmen Bascarn, de Aailndia (MA), e da ONG Reprter Brasil.
45
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
45/198
FotoDivulgao/CPT
DescrioMaterial da CPT explicacomo se d o ciclo dotrabalho escravo
46
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
46/198
DEPO
IMENTOFREI XAVIER PLASSAT,
AGENTE DA CPT EM
ARAGUANA, TOCANTINS, ECOORDENADOR NACIONALDA CAMPANHA DE OLHOABERTO PARA NO VIRAR
ESCRAVO
A ideia era simples: existem rotas do trabalho escravo;e ns da CPT estamos nas rotas. Ento, que as equipes
de cada lugar da rota abram o olho, entendam o que
est acontecendo. Que verifiquem se h trabalhadores a
caminho do trabalho escravo, quais so as modalidades
de seu aliciamento, como fazer um trabalho de alerta e
de preveno. E nas linhas de frente, onde o trabalho
escravo acontece, na poca supostamente somente no
Par e no Mato Grosso, incentivamos esse trabalhador
a denunciar, acolhemos e protegemos esse trabalhador,
sendo rigorosos na lavratura das denncias e respeitando
regras de sigilo absoluto.
47
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
47/198
O NASCIMENTODA CONATRAE
48
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
48/198
FotgrafoJoo Roberto Ripper
LocalMato Grosso
do Sul, MS
Descriondio trabalhando em
usina de cana de acar
49
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
49/198
ROBERTO CALDAS,REPRESENTANTE DA
OAB NA CONATRAE2003-2007 E 2010-2013
Antes se falava em combate ao trabalho escravo. No governo Lula,
o ministro Nilmrio Miranda veio com o conceito de erradicao
do trabalho escravo. Da o nome: Comisso Nacional para a
Erradicao do Trabalho Escravo. Claro que ns discutimos muito
na poca, porque erradicao parece um termo utpico pelo
tamanho do problema e pelas suas razes. Mas ns entendemos
que deveramos perseguir essa utopia, que ns no deveramos
sossegar enquanto houvesse um s trabalhador escravizado.
DEPO
IMENTO Com a ineficcia do Gertraf, o Frum Nacional contra a Violncia
no Campo continuou a se reunir e identificou que era fundamental
um espao de articulao que aglutinasse no somente o Poder
Executivo mas tambm, oficialmente, organizaes da sociedade
civil, com participao de outras instituies pblicas, como o
Ministrio Pblico Federal e o Ministrio Pblico do Trabalho.
O processo do caso Jos Pereira corria na Corte Interamericana de
Direitos Humanos desde 1992. Em 1999, o governo brasileiro se
prontificou a assinar um Acordo de Soluo Amistosa. No entanto,
a assinatura foi sendo adiada sucessivamente e o pas, cada vez
mais pressionado pela possibilidade de uma condenao. Diante
disso e do impressionante crescimento do nmero de denncias de
casos de trabalho escravo18, foi instituda, em 2002, uma Comisso
Especial ligada ao CDDPH: um de seus objetivos era propor
medidas urgentes para combater o trabalho escravo.
18 De acordo com a CPT, em 2001,
foram 59 casos denunciados,
explodindo para 215 casos em
2002, mais do que o total de todo o
perodo entre 1995 e 2001 (168 casos
denunciados).
50
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
50/198
Naquele ano, a sociedade civil apresentou muitas denncias, inclusive de
assassinato de oito trabalhadores tocantinenses em fazenda na regio do Iriri,
no Par19. A articulao se fazia cada vez mais forte: as organizaes mais
atuantes se reuniam paralelamente para dar forma s propostas. A partir das
discusses foi construdo o que viria a ser o primeiro Plano Nacional para a
Erradicao do Trabalho Escravo, lanado no ano seguinte pelo governo Lula.
A Conatrae foi proposta diante da necessidade de planejamento conjunto
e de monitoramento de aes articuladas para combater o trabalho
escravo, e prevista como uma das metas do Plano Nacional. Ela se moldou
como a consolidao de uma demanda antiga, congregando pessoas
historicamente engajadas em suas prticas no combate ao trabalho
escravo dentro de suas instituies. O que torna a experincia brasileira
to particular, segundo a OIT, a articulao desses diversos atores para
criar instrumentos que combatam o problema. E a Conatrae tornou-se o
espao institucionalizado para esse encontro.
19 Entre junho e agosto de 2002, oito trabalhadores
dos municpios de Anans, Angico e Tocantinpolis,
norte do Tocantins, retornaram sem vida da regio do
Iriri, no Par, onde haviam ido trabalhar. A coincidncia
das mortes por acidente causou estranhamento.
Cinco deles trabalhavam em fazenda de Aldemir
Lima Nunes, conhecido como Branquinho. Em funo
das denncias, o fazendeiro ameaou testemunhas,
agentes da CPT e o procurador da repblica Mrio Lucio
Avelar, que tiveram de deixar o estado. Condenado
por trabalho escravo, falsificao de documentos e
desmatamento ilegal, Branquinho ficou foragido durante
anos e, at hoje, conseguiu escapar do cumprimento de
qualquer sentena penal, apesar de vrias acusaes e
condenaes por grilagem e homicdios.
51
FotgrafoAssessoria de imprensa/SDH
Descrio
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
51/198
RAQUEL DODGE, PROCURADORA DA REPBLICAHavia uma desconfiana da sociedade civil muito forte em relao ao Gertraf porque era um frum de debates diferente do Frum Nacional contra
a Violncia no Campo. Ele tinha uma marca de uma instituio absolutamente oficial da qual no participavam oficialmente os representantes da
sociedade civil ou os membros do Ministrio Pblico enquanto defensores da sociedade civil. No tinha um desenho institucional que permitisse
entender aquele grupo como um ambiente em que a sociedade civil tinha voz, podia encaminhar perguntas para serem respondidas, diretrizes de
atuao e cobrar relatrios. Comea uma nova discusso para criar uma instituio voltada para a questo do trabalho escravo em que membros da
sociedade civil e organismos de governo tivessem um ambiente oficial de discusso com paridade de votos.
[A Conatrae] uma instituio que me parece moderna porque ela no integrada apenas por rgos de governo em ambiente em que a sociedade
civil tratada como visitante ocasional, como se fosse uma deferncia t-la ali assistindo s reunies, mas ao contrrio: a Conatrae moderna
exatamente porque ela um organismo do Estado integrado pela sociedade civil, em que os rgos da sociedade civil tm voz, vez e atribuies,
inclusive, de exigir prestao de contas, fiscalizao, mecanismos de controle e de cobranas de indicadores da correo e do xito desta poltica
pblica de erradicao do trabalho escravo. Me parece que uma ideia bastante feliz, tambm, porque ela nasce da prpria sociedade civil, que
demanda e acaba conseguindo que exista um rgo com essas caractersticas, um rgo em que a sociedade tenha participao e voz ativa. uma
soluo bem interessante.
DEPOIMENTO
DescrioMinistra Maria do Rosriopreside reunio daConatrae; dezembrode 2012
52
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
52/198
53
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
53/198
FotoDivulgao/OIT
DescrioPea publicitria decampanha da OIT
54
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
54/198
A ORGANIZAOINTERNACIONAL DOTRABALHO COMO
ARTICULADORA
A OIT teve importante papel no processo de articulao contra
o trabalho escravo a partir de 2001, em seu primeiro projeto
no Brasil, que previa diversas aes com objetivo de otimizar
os mecanismos de coordenao entre os diferentes rgos e
reforar a fiscalizao. Entre elas, estava a construo de um
plano de ao, que se misturou formulao do Plano Nacional.
Foram convocados pela organizao vrios encontros de
discusso do problema.
Alm disso, a OIT apoiou diretamente o Grupo Mvel, ao doar
equipamentos s equipes. Tambm auxiliou no processo de
padronizao dos relatrios e na construo de um banco dedados sobre trabalho escravo.
No campo normativo, realizou oficinas jurdicas que contriburam
para a reflexo, pelos operadores de direito, de suas atribuies nas
diferentes instncias do Judicirio e do Ministrio Pblico, para a
criao de novos instrumentos e para a definio de competncias.
Antes do projeto, a OIT j havia formulado observaes e
recomendaes ao governo brasileiro acerca do trabalho escravo.
55
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
55/198
LUS ANTONIO CAMARGO, PROCURADOR-CHEFE DO TRABALHO
Durante os anos de 2001 e 2002, ns temos um fator importante: a entrada da Organizao Internacional do Trabalho, com um projeto deenfrentamento ao trabalho escravo financiado pelo governo dos Estados Unidos. Esse projeto da OIT d uma nova conformao nossa atuao. Era
como se todos ns colaborssemos com o projeto da OIT. O fato de todos ns, representantes de instituies, passarmos a colaborar com o projeto
da OIT, fez com que aquela fogueira de vaidades que existe entre as instituies do poder pblico fosse apagada. Isso deu um novo flego no final do
governo do Fernando Henrique Cardoso, concomitantemente com a elaborao do primeiro Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo.
DEPOIM
ENTO
SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS: O LUGAR DA CONATRAE
A Conatrae foi criada em 2003 e sua coordenao ficou sediada na Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica20. Esta
opo visava a afirmar o trabalho escravo como uma grave violao dos direitos humanos, e no s trabalhistas, alm de reforar a ideia
de que seu combate deveria ser transversal, envolvendo diversos ministrios e instituies. De acordo com Nilmrio Miranda, ministro
de Direitos Humanos entre 2003 e 2005, isso foi uma conquista. Para ele, se tivesse ficado vinculado ao excesso da lei trabalhista, iria
conviver ad eternun com o Estado de Direito, como uma pequena violao, punindo s com multas. Na medida em que associado aosdireitos humanos, inclui outras responsabilizaes penais e cveis para a prtica do trabalho escravo21.
Diferentemente das articulaes que a antecederam, sua composio garantiu a participao de representantes dos trs poderes, da
sociedade civil, de entidades de classe (incluindo a Confederao da Agricultura e Pecuria do Brasil CNA, patronal), alm da presena
20 Ento
Secretaria Especial
de Direitos
Humanos daPresidncia da
Repblica.
21 Entrevista
concedida em junho
de 2013.
56
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
56/198
do Ministrio Pblico do Trabalho, do Ministrio Pblico Federal e da
OIT22. Na opinio de Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho, o
significado da Conatrae era transformar aquela estrutura embrionria
do Gertraf, puramente estatal, ventil-la, e trazer a sociedade civil pra
dentro dessa organizao, que vigiaria e formularia a respeito da polticanacional. Para ele, foi um grande marco porque trouxe a sociedade civil
para discutir, acompanhar e fiscalizar23.
Na solenidade de lanamento da comisso, o Brasil assinou o Acordo
de Soluo Amistosa que reconheceu sua responsabilidade diante do
caso Jos Pereira. Com isso, o pas assumiu diversos compromissos de
reparao ao trabalhador24e de punio dos responsveis pelos danos
causados a ele, alm de medidas para combater o trabalho escravo, comoaperfeioamento legislativo, incremento da fiscalizao e da represso, e
informao da sociedade sobre o tema.
De acordo com o decreto de sua criao, a Conatrae tem como objetivos:
acompanhar o cumprimento do Plano Nacional para a Erradicao do
Trabalho Escravo, propondo adaptaes necessrias; acompanhar projetos
de lei relacionados temtica; propor estudos, pesquisas e incentivar
campanhas, entre outros. Ao longo dos anos, sua importncia comoespao de encontro e de articulao, de discusso da poltica nacional e
de apoio estratgia de combate ao trabalho escravo tornou-se evidente,
como se poder notar pela linha do tempo que se segue.
22 A composio inicial da Conatrae,
estabelecida pelo decreto, era: Secretrio
Especial dos Direitos H umanos (presidente);
Ministros de Estado (da Agricultura,
Pecuria e Abastecimento; da Defesa; do
Desenvolvimento Agrrio; do Meio
Ambiente; da Previdncia Social, e do
Trabalho e Emprego); dois representantes
do Ministrio da Justia, sendo um do
Departamento de Polcia Federal e outro do
Departamento de Polcia Rodoviria Federal;
e at nove r epresentantes de entidades
privadas no governamentais, reconhecidas
nacionalmente, e que possuam atividades
relevantes relacionadas ao combate ao
trabalho escravo.
23 Entrevista concedida emmaio de 2013.
24 Aps 14 anos de
sua fuga, Jos Pereira
recebeu do Estado
brasileiro indenizao
de 52 mil reais.
57
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
57/198
CARLOS HENRIQUE KAIPPER, REPRESENTANTE DO MINISTRIO DO
DESENVOLVIMENTO AGRRIO NA CONATRAE2003-2006
O plano foi fundamental. A cada passo e a cada movimento que se d em torno desse tema, h uma repercusso, tanto interna, aqui no pas, quanto
externa. So sinalizaes que potencializam e do fora para a poltica que se tenta implementar. E o que eu sempre dizia na poca: o trabalho
escravo, ainda tem muita gente que nega. Para poder abolir o trabalho escravo contemporneo, para poder implementar todas as polticas pblicas,
para articul-las, tem que se admitir que o trabalho escravo existe no Brasil ainda nos dias de hoje. E todos esses movimentos de criao, de
indenizao, de articulao sinalizam para a sociedade e para a comunidade internacional que, apesar de ainda ser uma mazela do nosso pas, ns dogoverno e da sociedade civil admitimos e estamos trabalhando para combater.
DEPOIM
ENTO
58
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
58/198
FotgrafoJoo Roberto Ripper
LocalPar
DescrioResgate de
trabalhadores, 1999
59
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
59/198
60
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
60/198
O QUE MARCOU
AHISTRIA
DA CONATRAEFotgrafo
Joo Roberto Ripper
DescrioCondies do alojamento 61
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
61/198
2003
O ano foi marcado pelaconsolidao dos
instrumentos de combate escravido
contempornea no Brasil. Alm do
lanamento do primeiro Plano Nacional
para a Erradicao do Trabalho Escravo e da
Conatrae, foi implementada a lista suja,
que d visibilidade ao nome de quem
flagrado cometendo esse tipo de explorao,
e foi alterado o artigo 149 do Cdigo Penal,
que atribuiu contornos mais exatos ao crime.
O ano comeou com uma grande oficina
no Frum Social Mundial, que demonstrou
a tnica desta nova etapa do combate ao
trabalho escravo no pas. E um protesto deproprietrios rurais em Redeno, no Par, foi
uma mostra das resistncias que a Conatrae
teria de enfrentar ao longo destes dez anos.
O QUEMARCOUA HISTRIADA CONATRAE
62
Janeiroper
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
62/198
A oficina Trabalho escravo, uma chaga aberta, no III Frum Social
Mundial em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, marca simbolicamente o incio
de uma nova etapa no combate ao trabalho escravo no Brasil. Reunindo cerca
de duas mil pessoas, foi organizada de forma conjunta por diversas entidades,
um retrato da articulao que vinha se consolidando. A oficina foi dividida em
trs momentos, que visavam a responder as seguintes perguntas:Quem o
escravo? Quem escraviza? Quem liberta?
Na ocasio, Nilmrio Miranda, ministro dos Direitos Humanos (2003-2005),
anunciou o lanamento do Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho
Escravo. A palavra de ordem passou a ser erradicao, e no mais
combate, e o termo trabalho escravo passou a ser empregado de forma
oficial, em substituio a trabalho forado.
2003Foto:JooRobertoRipp
Foto:JooRobertoRipper
Foto:JooRobertoRipper
63
Lula pediu que cada setor do governo, que cada ministrio, cada secretaria, apresentasse algumas25 In: Anais da oficina
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
63/198
u a ped u que cada se o do go e o, que cada s o, cada sec e a a, ap ese asse a gu as
prioridades, algumas aes. Na nossa secretaria, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, a primeira
que ns escolhemos foi erradicar, acabar, sepultar o trabalho escravo no Brasil. Entendo que isso
possvel. Exatamente porque h toda uma luta das pessoas que esto nesta mesa, que esto sentadas
aqui. H um acmulo, h um trabalho feito por vrias frentes e que nos permite dizer que, se houver
vontade poltica, o trabalho escravo vai desaparecer do Brasil nos prximos quatro anos.
(...) H inclusive uma proposta j elaborada por uma Comisso Especial do Conselho de Defesa e
Direitos da Pessoa Humana, constituda no ano passado, coordenada pelo professor Jos de Souza
Martins, que produziu uma proposta por todas as organizaes citadas aqui, instituies, pessoas
que detm o conhecimento de como enfrentar essa chaga aberta. E essa proposta j foi feita no
governo passado. Ns prorrogamos essa Comisso Especial por mais 60 dias e em 30 dias nosapresentaro uma atualizao disso.
[Trecho da fala de Nilmrio Miranda, durante oficina]25
Trabalho Escravo: uma
chaga aberta.Braslia:
OIT, 2003.
64
Maro2003
lanado o Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
64/198
2003 p
Escravo,formulado pela Comisso Especial do CDDPH em 2002 e
referendado pelo governo que acabava de assumir. Com o plano, o
governo federal passa a declarar a erradicao do trabalho escravo como
uma prioridade do Estado brasileiro.
O plano funcionou como aglutinador das aes previstas ou em
desenvolvimento, na tentativa de coordenar os esforos para enfrentar
o trabalho escravo. Ele apresentava aes gerais, aes de promoo
da cidadania e de combate impunidade e aes de conscientizao,
capacitao e sensibilizao. Alm disso, propunha melhorias na estrutura
administrativa do Grupo Especial de Fiscalizao Mvel, da ao policial,do Ministrio Pblico Federal e do Ministrio Pblico do Trabalho. As
responsabilidades foram atribudas a diversas instituies, do poder pblico e
da sociedade civil.
Dentre as Aes Gerais, a meta 13 previa a criao da Conatrae: Criar o
Conselho Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo Conatrae vinculado
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica.
Em 2007, um estudo publicado pela OIT avaliou que haviam sido cumpridas
68,4% das metas do Plano Nacional26. E em 2008 foi lanado um novo plano.
26 In: trabalho
escravo no Brasil
no sculo XXI.
Braslia: OIT, 2007.
Foto:VictorSoares,AgnciaBrasil
65
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
65/198
LUS ANTONIO CAMARGO,PROCURADOR-CHEFE DO TRABALHO
Eu creio que o primeiro plano responsvel pela organizao e estruturao dessa interveno. Quando voc parte para escrever o Primeiro Plano
Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo, ns no tnhamos comeado a atuar na noite anterior; ns atuamos desde o incio dos anos 1990.
Algumas instituies se incorporam a esse projeto ao longo dele, mas ele no um projeto que comeou, por exemplo, com o Gertraf em 1995. Pode-
se dizer: mas ele comea de forma desorganizada. Sim, mas as instituies j estavam l, o Ministrio Pblico do Trabalho j estava l, o Ministrio
do Trabalho e Emprego j estava l. Desorganizado? Claro, desorganizado. Com, digamos assim, um foco no muito definido? Sim, com um foco no
muito definido. Se o plano foi um sucesso e foi um sucesso porque havia uma experincia acumulada. As pessoas no tinham chegado naquela
reunio para escrever o plano e dito: hoje eu vou escrever um Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo; no, essas pessoas j tinhamdez anos de interveno.
E eu no posso trabalhar sozinho, e isso ns fomos aprendendo. Voc vai aprendendo com a experincia, com a prtica, com a articulao, com
a convivncia com outras instituies; ns aprendemos isso. Identificamos muitas instituies importantes em todos esses processos. E essas
instituies hoje esto na Conatrae.
A Conatrae, do meu ponto de vista, est onde sempre esteve: um grande frum democrtico de discusso, onde voc tem o poder pblico e a
sociedade civil reunidos, observando os problemas e discutindo solues. Isso um grande exerccio democrtico.
DEPOIM
ENTO
66
Agosto2003
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
66/198
DECRETO DE 31 DE
JULHO, PUBLICADO NODIRIO OFICIAL EM 1DE AGOSTO,CRIA
A CONATRAE.
2003
67
Novembro2003
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
67/198
2003
A Conatrae realiza sua primeira reunio itinerante em Redeno, no Par, quando foi lanada
a Campanha Estadual de Erradicao do Trabalho Escravo. Em 2003, fazendeiros da regio
haviam realizado uma ofensiva contra a CPT e contra o Ministrio do Trabalho, em funo do
grande nmero de aes no incio do ano no sul do estado: somente no primeiro trimestre,
foram cerca de 500 trabalhadores resgatados.
Duas fiscalizaes foram especialmente difceis, pois houve dificuldade para garantir o
pagamento aos trabalhadores: uma envolvendo 250 trabalhadores na fazenda Vale do Rio
Fresco, de propriedade de Jos Lucena de Barros, em Santana do Araguaia; outra envolvendo
100 trabalhadores na fazenda Santa Ana, em Cumaru do Norte, de propriedade do deputado
Augusto Farias e Eleuza Farias, irmos do tesoureiro da campanha de Fernando Collor
presidncia, PC Farias. Augusto e Eleuza chegaram a ter priso preventiva decretada.
Essa situao gerou um descontentamento nos fazendeiros da regio, liderados pelo
Sindicato Rural de Redeno, que realizou discusses para questionar as aes do Ministrio
do Trabalho, com apoio do prefeito da cidade, da Cmara Municipal e do ex-secretrio de
agricultura do Par Gervsio Camilo. O sindicato comeou a atacar a atuao do Grupo Mvel.
68
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
68/198
Segundo o sindicato rural de Redeno, o grupo mvel
de fiscalizao vem agindo de forma arbitrria e
intimidatria nas fazendas. (...)
Sendo assim, teremos que demitir toda mo de obra
contratada, no podemos comparar a realidade de
grandes centros do sul e sudeste com o interior do
nosso estado para seguir ao p da letra, o que exigem
os fiscais do ministrio, afirmou o presidente do
Sindicato, Adelino Junqueira Franco Neto.
[Trecho de matria27publicada no jornal Folha de Carajs
em 28 de fevereiro de 2003].
So de conhecimento pblico os fatos envolvendo denncias
de trabalho escravo em nossa regio, que chegaram,
inclusive, a culminar em prises de produtores ruraisacusados de descumprir a Legislao Trabalhista. O Sindicato
Rural de Redeno v aes desta natureza com perplexidade.
Estes funcionrios pblicos agem desta forma no sul do
Par, porque no tm compromisso com a soluo dos
problemas da regio, mas sim com a necessidade de aparecer
na imprensa para serem promovidos em seus cargos. Estes
cidados deveriam ser mais responsveis, pois somente
desmoralizam o setor que hoje o maior gerador de emprego
e renda do Estado do Par, afirma o produtor rural e diretor
do SRR, Luciano Guedes (...).
O Sindicato Rural de Redeno entende que aes como essa da
fiscalizao tm como objetivo paralisar a atividade agropecuria,
uma vez que os responsveis demonstram claramente que no
abriro espao para nenhum tipo de flexibilizao da lei, levandoem conta as peculiaridades regionais.
[Trecho de matria28 publicada no jornal Folha de Carajs
em 21 de maro de 2003].
28 SRR questiona
aes do Ministrio
do Trabalho, p. 8.
[Arquivo CPT]
27 Pecuaristas
se renem para
discutir sobre
fiscalizao do
Ministrio do
Trabalho na
regio, p. 7
[Arquivo CPT].
69
Na imprensa local, tambm foram publicadas notas desqualificandoLeonardoSakamoto
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
69/198
a atuao da CPT, com ataques diretos a frei Henri des Roziers.
Assim, fcil encaminhar denncias ao Tribunal Superior do
Trabalho, ao Ministrio da Justia, Organizao Internacional doTrabalho, com provvel noticirio para o exterior, especialmente
para a Frana, de onde veio esse frei Henri Burin des Roziers. Todos
conhecem as ambies internacionais sobre a Amaznia Legal e
desmoralizar o Par com um denuncismo vazio e repetitivo, parece
colaborar com a campanha orquestrada em vrios pases a respeito
da Amaznia, inclusive com a divulgao de um mapa do Brasil, na
Inglaterra, sem constar a Amaznia.
Se existem alguns poucos fazendeiros, comprovadamente escravagistas,
isso no autoriza essa campanha sistemtica do frei Henri e da CPT,
sob o comando dele, contra os pecuaristas do sul e sudeste do Par,
especialmente os de Redeno. Ningum do Sindicato Rural de
Redeno quer denegrir a imagem do frei Henri Burin des Roziers,
e esse tipo de acusao infundada, parece mais uma tcnica de
autovalorizao, de autopromoo, de se apresentar espertamente comovtima, do que outra coisa.
[Trecho de nota do Sindicato Rural de Redeno29
publicada no jornal Folha de Carajs em 23 de maio de 2003].
Com o passar do ano, cerca de cem outras aes do GrupoMvel de Fiscalizao libertaram trabalhadores no sul e no
sudeste do Par, e os ataques dirigidos pelo Sindicato Rural de
Redeno no esmoreceram. Assim, julgou-se necessrio fazer
na cidade o lanamento da Campanha Estadual de Erradicao
do Trabalho Escravo, com a presena da Conatrae e do ministro
de Direitos Humanos Nilmrio Miranda.
Ao chegar, a comisso foi recebida com hostilidade, e foi
impedida de realizar a reunio no local agendado. Apesar disso,
as atividades aconteceram, com a presena de trabalhadores
rurais, sindicalistas e entidades de atuao local.
29 Sindicato
Rural de
Redeno contra
generalizaes, p.
8. [Arquivo CPT]
Foto:L
Foto:LeonardoSakamoto
Foto: Leonardo Sakamoto
70
TOCARLOS HENRIQUE KAIPPER, seria cerceado de aterrissar. Eu lembro que ns tivemos que aterrissar em
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
70/198
DEPOIMENT
REPRESENTANTE DO MINISTRIODO DESENVOLVIMENTO AGRRIONA CONATRAE
2003-2006
Foi um daqueles momentos inesquecveis. Ns samos no avio da FAB,
vrios representantes da Conatrae. E, no caminho, nos chegou a notcia
de que os produtores rurais haviam colocado tratores e mquinas na
pista do aeroporto para no deixar o avio aterrissar naquela localidade.
Ns ficamos perplexos porque nunca iramos imaginar que, no Estado
Democrtico de Direito, um avio cheio com uma comitiva de Braslia, com
ministro de Estado e uma representao bem forte do Poder Executivo,
um aeroporto de uma cidade vizinha e nos deslocar de carro para o destino.
E, chegando l, havia algumas pessoas vestidas de preto e faixas dizendo
que a cidade estava de luto com a presena da Comisso Nacional para
a Erradicao do Trabalho Escravo. Uma coisa absurda, impensvel; se
algum me contasse, eu no acreditaria. Se as pessoas se encorajam de
ir publicamente contra a Comisso Nacional de Erradicao do Trabalho
Escravo, o que no se faz em um mbito no pblico de boicote poltica?
Foi um momento bem marcante da existncia da Conatrae esse episdio,
mas fomos. No conseguimos aterrissar naquele aeroporto, aterrissamos
no aeroporto mais prximo, fomos l de carro, ultrapassamos essas
barreiras, faixas e cartazes e pessoas de preto, fizemos a reunio que
tnhamos planejado. No obstante toda a hostilidade do momento, ns no
deixamos de fazer tudo o que estava previsto na regio.
Depois de Redeno, outras reunies itinerantes foram realizadas ao longo destes dez anos, em diversos estados Tocantins, Maranho, Bahia, Rio de Janeiro,Mato Grosso , para apoiar as foras locais que atuam no combate ao trabalho escravo e para tentar envolver os governos estaduais na luta contra a escravido.
71
ROBERTO CALDAS, REPRESENTANTE DA OAB NA CONATRAEN
TO
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
71/198
2003-2007 E 2010-2013
A sociedade tem que compreender que o Estado no consegue estar em todos os lugares neste pas de dimenses continentais. Especialmente nas
novas fronteiras, isso [que aconteceu em Redeno] sempre possvel de acontecer. O importante que, se acontecer, haja uma reao imediata
do Estado para no permitir que esse tipo de coisa acontea. A possibilidade hoje muito menor. Vamos dizer que os movimentos ruralistas j
esto acostumados com a presena do Estado. Havendo uma ao, haver uma reao e vice-versa. Ento o importante , para atividades ilcitas ou
criminosas, que o Estado esteja presente para garantir a liberdade das pessoas.
DEP
OIMEN
72
Novembro2003
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
72/198
O Ministrio do Trabalho e Emprego lana portaria que cria o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condies anlogas de
escravo, mais conhecido como lista suja. Na mesma data, o Ministrio da Integrao Nacional tambm divulga portaria com recomendao aos bancos
pblicos de cortar financiamento aos proprietrios do cadastro. A primeira lista continha 52 nomes e, desde ento, vem sendo atualizada semestralmente.
A atualizao de julho de 2013 apresentava 490 nomes.
O empregador inserido na lista aps encerrado, no Ministrio do Trabalho e Emprego, o processo administrativo em consequncia do flagrante de trabalho escravo
pela fiscalizao. Seu nome nela mantido por dois anos, e retirado se os dbitos trabalhistas e multas forem quitados, desde que no haja reincidncia.
A lista suja apontada como um dos principais instrumentos de combate escravido. Primeiro, pelo constrangimento ao expor publicamente o fato de a
pessoa ou a empresa ser escravagista. Segundo, por ser usada para restringir crditos e financiamentos. Por fim, pela sua utilizao por outras instituies,
o que gerou novas iniciativas, como a pesquisa de cadeias produtivas envolvendo trabalho escravo e o Pacto Nacional pela Erradicao ao Trabalho Escravo,
acordo que rene importantes grupos econmicos do pas que se comprometem a no realizar transaes comerciais com os que tm o nome na relao.
A lista suja, assim, foi o primeiro instrumento que visava a mexer no bolso de quem escraviza. O ministro de Direitos Humanos Nilmrio Miranda
(2003-2005) considera essa estratgia muito importante, pois o trabalho escravo tem que deixar de ser uma atividade economicamente vivel eatraente para quem quer faz-la, as pessoas sem escrpulo. Porque enquanto for vivel economicamente, haver trabalho escravo30.
Algumas empresas tm entrado com liminares na Justia para retirada dos nomes do cadastro, processos contestados pela Advocacia Geral da Unio AGU.
2003
30 Entrevista
concedida em
junho de 2013.
73
Via de regra, os empregadores alegam a inconstitucionalidade e a ilegalidade da atual Portaria Conjunta 02 (antiga Portaria 540),
pois entendem que a mesma tem carter sancionatrio e portanto deveria ter anterior previso legal ou constitucional
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
73/198
pois entendem que a mesma tem carter sancionatrio e, portanto, deveria ter anterior previso legal ou constitucional.
A AGU defende a Unio em todas as aes em que existe algum questionamento a respeito do cadastro. Os principais
argumentos adotados pela AGU so:
O cadastro tem como fundamentos constitucionais a dignidade da pessoa humana e a valorizao social do trabalho
(artigo 1, III e IV, artigo 3,I e III, artigo 4,II, artigo 170, III e VIII, 186,III e IV, todos da Constituio Federal);
O cadastro tem embasamento legal diante das previses existentes em atos internacionais: Conveno da OIT n
29 (Decreto n 41.721/1957), Conveno da OIT n 105 (Decreto n 58.822/1966), Conveno sobre Escravatura de
1926 (Decreto n 58.563/1966) e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica -
Decreto n 678/1992), todas ratificadas pelo Brasil, com status normativo de lei ordinria e plenamente recepcionadas
pela Carta Constitucional de 1988, que contm dispositivos prevendo a adoo imediata de medidas, sejam elaslegislativas ou no, necessrias para a erradicao do trabalho escravo;
A criao do cadastro funciona como um dos mecanismos de orientao de polticas conjuntas do governo, no
implicando por si s restrio aos direitos de quem foi apanhado na conduta de reduzir trabalhadores condio
anloga de escravo. Nessa linha, o Poder Executivo pode e deve possuir bancos de dados e cadastros de suas
atividades no sentido de registro e orientao das suas aes, sendo o cadastro uma importante ferramenta
administrativa na medida em que permite a atuao conjunta de rgos pblicos, evitando-se o risco da adoo de
polticas contraditrias no mbito do Governo Federal.
Mario Guerreiro, diretor do Departamento Trabalhista da AGU31
31 Entrevistaconcedida por e-mail
em julho de 2013.
74
O CASO DAA
DE
o/DivisodeFiscalizaopara
aodoTrabalhoEscravo(MTE)
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
74/198
CONSTRUTORA MRV AMERICANA, INTERIORDE SO PAULO
Um caso que ficou conhecido pela disputa judicial
contrria lista suja foi o da construtora MRV.
A primeira insero da empresa no cadastro se deu
em julho de 2012, por conta de dois flagrantes de
escravido em 2011 no interior de So Paulo: um em
Americana, onde 63 trabalhadores foram libertadosna construo de um condomnio residencial que
recebeu financiamento do programa Minha Casa,
Minha Vida; outro em Bauru, com o resgate de 5
trabalhadores contratados no Maranho. A Caixa
Econmica Federal chegou a suspender a concesso
de crdito empresa, que entrou com liminar para
retirada de seu nome da lista, acolhida pelo ministro
Benedito Gonalves do Superior Tribunal de Justia.
A partir de novo flagrante de escravido em Curitiba,
Paran, a MRV retornou ao cadastro em dezembro
de 2012. No entanto, outra liminar foi concedida
pelo STJ, desta vez pela ministra Eliana Calmon.
Entre 2011 e 2013, a utilizao de mo de
obra escrava foi flagrada em quatro canteirosde obras da empresa, resultando num total
de 85 trabalhadores resgatados. O ltimo
aconteceu em Contagem, regio metropolitana
de Belo Horizonte, Minas Gerais. As situaes
encontradas apresentavam elementos de
condies degradantes de trabalho, no
pagamento de salrio, informalidade empregatcia
e aliciamento. Em todos os casos, a MRV alegou
responsabilidade de empresas terceirizadaspor ela contratadas. Em 2011, ano em que
aconteceram trs dos flagrantes, a empresa teve
faturamento bruto de R$ 2,5 bilhes.
Os casos de libertao na construo civil
aumentaram nos ltimos anos. Os primeiros
flagrantes aconteceram em 2008 no Rio de Janeiro,
no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul. Muitos
dos municpios que antes forneciam trabalhadorespara atividades agrcolas hoje veem seus filhos
saindo para buscarem emprego nesse outro setor
econmico, em franco crescimento no Brasil, nem
sempre com melhoria nas condies de trabalho.
REALIDA
Foto:Divulga
Erradica
Foto:Divulgao/DivisodeFiscalizaopara
ErradicaodoTrabalhoEscravo(MTE)
Foto:Divulgao/DivisodeFiscalizaopara
ErradicaodoTrabalhoEscravo(MTE)
Foto:Divulgao/DivisodeFiscalizaopa
ra
ErradicaodoTrabalhoEscravo(MT
E)
75
Dezembro2003
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
75/198
2003
aprovada anova redao do artigo
149do Cdigo Penal Brasileiro, que d
forma mais precisa tipificao do crime,
ao considerar a jornada exaustiva, a
restrio da liberdade em razo de dvida
e o trabalho degradante como formas de
trabalho escravo, adequando a definio
realidade brasileira. Na verso anterior,
apenas aparecia na lei: reduzir algum a
situao anloga a de escravo.
Artigo 149
Reduzir algum a condio anloga de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forados ou
a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer restringindo,
por qualquer meio, sua locomoo em razo de dvida contrada com o empregador ou preposto.
Pena recluso, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, alm da pena correspondente violncia.
1 Nas mesmas penas incorre quem:I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de ret-lo
no local de trabalho;
II mantm vigilncia ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos
pessoais do trabalhador, com o fim de ret-lo no local de trabalho.
2 A pena aumentada de metade, se o crime cometido:
I contra criana ou adolescente;
II por meio de preconceito de raa, cor, etnia, religio ou origem.
76
NTOMARCELO CAMPOS, AUDITOR FISCAL
DO TRABALHO E COORDENADOR
o cerceamento da liberdade de ir e vir. O que distingue o trabalhador
com direitos e o trabalhador escravo como objeto? a dignidade. Porque o
7/22/2019 Contrae Livro Site Sdh
76/198
DEPOIMENDO TRABALHO E COORDENADOR
NACIONAL DO GRUPO MVELNA SECRETARIA DE INSPEO DOTRABALHO
1997-2000 E 2003-2010
Ns fazamos um enfrentamento no seguinte sentido: no h cerceamento
da liberdade de ir e vir, mas trabalho anlogo ao de escravo, entendemos
como tal. Sempre dialogvamos com o conjunto das instituies pblicas e
com a sociedade civil e dizamos: ns temos que modificar o Cdigo Penal.
O Cdigo Penal no dizia que deveria haver cerceamento da liberdade de
ir e vir; quem dizia era uma jurisprudncia que nunca tinha enfrentado a
realidade. Era uma inveno da cabea de alguns juristas, completamente
pautada em algo que no era uma realidade.
Ns considervamos [trabalho escravo] porque aquilo feriafundamentalmente a dignidade do trabalhador. Se fizer uma anlise do
ponto de vista filosfico e conceitual, o que diferencia o trabalhador
contemporneo com direitos e livre do trabalhador escravo do Imprio no
j g q
trabalhador contemporneo um sujeito de direitos, livre, e, para realizar
o seu trabalho, h uma srie de direitos que tm que ser cumpridos. E
esses direitos no so uma fico: na prtica dariam a ele uma dignidade
para exercer o seu trabalho.
Para o escravo no Imprio e na Colnia, no havia o