d Fundamentos Tributaria 1978312040

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE DIREITO

    CURSO DE PS-GRADUAO

    Lus Fernando Belm Peres

    FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO

    DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE

    INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA

    TRIBUTRIA

    BELO HORIZONTE - MG

    2010

  • 2

    Lus Fernando Belm Peres

    FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO

    DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE

    INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA

    TRIBUTRIA

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-

    Graduao em Direito da Faculdade de

    Direito da Universidade Federal de Minas

    Gerais, como requisito parcial para a

    obteno do grau de Mestre em Direito,

    sob a orientao do Professor Doutor

    Werther Botelho Spagnol.

    BELO HORIZONTE - MG

    2010

  • 3

    Lus Fernando Belm Peres

    FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO

    DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE

    INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA

    TRIBUTRIA

    Dissertao apresentada e aprovada junto ao Curso de Ps-Graduao em Direito da

    Universidade Federal de Minas Gerais, visando obteno do grau de Mestre em

    Direito.

    Belo Horizonte, ____ de _____________ de 2010.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________________

    Professor Doutor Werther Botelho Spagnol (Orientador)

    _______________________________________________

    Professor (a) Doutor (a)

    _______________________________________________

    Professor (a) Doutor (a)

  • 4

    RESUMO

    Na tradio do Direito Constitucional brasileiro, o reconhecimento judicial da

    inconstitucionalidade de um determinado diploma normativo implicava, necessria e

    inexoravelmente, na sua excluso do ordenamento jurdico com efeitos ex tunc.

    Mais recentemente, contudo, incorporando tendncias verificadas na maioria

    absoluta dos Estados constitucionais contemporneos, passou-se a admitir, tambm no

    direito brasileiro, como exceo, a mitigao dos efeitos temporais das declaraes de

    inconstitucionalidade. Com efeito, o art. 27 da Lei n. 9.868/99, entre ataques e ovaes

    por parte da literatura especializada, veio a efetivamente estabelecer que, ao (...)

    declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de

    segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal

    Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela

    declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou

    de outro momento que venha a ser fixado.

    A modulao temporal dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade vem,

    de fato, sendo aplicada pelo Supremo Tribunal Federal. A dogmtica jurdica, no

    entanto, pouco tratou da questo at agora. Neste contexto, busca o presente trabalho

    tecer parmetros conceituas que sirvam de trilho para a aplicao do instituto em

    questo, especialmente no que se refere s declaraes de inconstitucionalidade de

    normas tributrias. Com este intento, as anlises retornaro s bases tericas que

    fundamentam a jurisdio constitucional, apreciando criticamente as relaes que a sua

    atividade estabelece com a interpretao jurdica, o princpio da diviso dos poderes do

    Estado, a democracia e a proteo dos direitos fundamentais. Investigar-se-, ainda, se a

    modulao temporal dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade se

    compatibiliza com o postulado da supremacia da Constituio.

    Ao final, em abordagem desenvolvida sob a tica do Direito Tributrio

    brasileiro, e de suas peculiaridades, o problema ser apreciado luz dos direitos

    fundamentais do contribuinte e das limitaes constitucionais ao poder de tributar.

  • 5

    ABSTRACT

    In the history of Brazilian Constitutional Law, the judicial recognition of the

    unconstitutionality of a particular legislative act meant, necessarily and inevitably, in its

    exclusion from the legal system with effect ex tunc.

    More recently, however by incorporating trends in the absolute majority of

    contemporary constitutional states, began to be admitted, also in Brazilian law as an

    exception, mitigating the effects of temporal declarations of unconstitutionality. Indeed,

    art. 27 of Law No 9.868/99, between attacks and standing ovations from the literature,

    came to actually establish that, "(...) declare the unconstitutionality of a law or

    normative act, and in view of legal reasons or exceptional social interest, can the

    Supreme Court, by a majority of two thirds of its members, restricting the effects of that

    statement or that it will only be effective from their res judicata or other time as may be

    prescribed. "

    The temporal modulation of the effects of the declarations of unconstitutionality

    is, in fact, being applied by the Supreme Court. The legal science, however, little has

    dealt with so far. In this context, this paper seeks to weave conceptual parameters that

    serve as a trail for the implementation of the rule in question, especially with regard to

    declarations of unconstitutionality of the tax law. With this intent, the analysis will

    return to the theoretical foundations that underlie constitutional jurisdiction, critically

    approaching the relationships that their activity shares with legal interpretation, the

    principle of division of state powers, democracy and protection of moral rights. Will be

    investigate, even if the temporal modulation of the effects of the declaration of

    unconstitutionality to reconcile with the postulate of supremacy of the Constitution.

    Finally, the approach developed in the perspective of the Brazilian Tax Law, and

    its peculiarities, the issue will be assessed in light of the fundamental rights of the

    taxpayer and the constitutional rules on taxing power.

  • 6

    SUMRIO

    1) INTRODUO 13

    1.1. O contencioso constitucional tributrio 13

    1.2. A modulao dos efeitos das decises declaratrias de

    inconstitucionalidade

    15

    1.3. A possibilidade da modulao de efeitos das decises

    proferidas em aes diretas de inconstitucionalidade e seu

    impacto nas relaes tributrias

    24

    2. REVELANDO O SENTIDO DA CONSTITUIO: A

    INTERPRETAO JURDICA NO ESTADO DEMOCRTICO DE

    DIREITO

    33

    2.1. O texto constitucional e a concretizao da Constituio.

    Entre fatos e normas

    33

    2.2. Concluses parciais sobre a concretizao da Constituio 79

    3. JURISDIO CONSTITUCIONAL, SEPARAO DE PODERES

    E MODULAO DOS EFEITOS TEMPORAIS DAS DECISES

    DECLARATRIAS DE INCONSTITUCIONALIDADE

    85

    3.1. Consideraes gerais 85

    3.2. Jurisdio constitucional. Julgar ou legislar? 88

    3.2.1. Sistema poltico, sistema jurdico e jurisdio 95

    3.2.2. A Jurisdio constitucional no Estado Democrtico

    de Direito

    114

    3.3. Supremacia constitucional e modulao temporal dos

    efeitos das declaraes de inconstitucionalidade.

    132

    4 FUNDAMENTOS DOGMTICOS PARA A MODULAO DOS

    EFEITOS TEMPORAIS DAS DECLARAES DE

    INCONSTITUCIONALIDADE EM MATRIA TRIBUTRIA.

    151

    4.1 - Sistema constitucional tributrio: panorama geral 151

    4.2 Os princpios tributrios potencialmente relacionados

    com a modulao dos efeitos temporais das declaraes de

    inconstitucionalidade proferidas em sede de ao direta.

    166

  • 7

    4.2.1. Consideraes iniciais 166

    4.2.2. A proteo da confiana como princpio que

    embasa a modulao a favor dos contribuintes.

    168

    4.2.3. Modulao temporal das declaraes de

    inconstitucionalidade em favor da Fazenda Pblica.

    Possibilidade?

    178

    5 CONCLUSES 189

    6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 198

  • 8

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS UTILIZADAS

    ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade

    CF Constituio Federal

    CTN Cdigo Tributrio Nacional

    ICMS Imposto sobre a circulao de mercadorias e sobre prestaes de

    servios de transporte interestadual e intermunicipal e de

    comunicao

    STF Supremo Tribunal Federal

  • 9

    (...) Fala claro, interrompeu Jesus, No possvel, disse

    Deus, as palavras dos homens so como sombras, e as

    sombras nunca saberiam explicar a luz, entre elas e a luz

    est e interpe-se o corpo opaco que as faz nascer (...).

    (Jos Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo)

    (...) as pessoas que tm excessiva certeza de que h um s

    caminho e uma s verdade, verdade que lhes inteiramente

    conhecida, so perigosas e propensas e todo tipo de crime.

    Saber da verdade e querer imp-la aos outros, num mundo

    onde tudo muda e tudo se encobre por toda sorte de

    aparncias, uma grave espcie de loucura. (Joo Ubaldo

    Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro)

  • 10

    Aos meus pais, Valdir e Ceclia, com quem aprendi a

    valorizar, como virtude maior, o esforo contnuo da

    depurao espiritual, dinamizada atravs do dilogo, da

    leitura e da reflexo incansveis.

    s minhas irms, Flvia e Cristiane, pelo carinho com que

    me presentearam desde sempre.

    Ao pequeno Heitor, menino hoje, homem amanh, que,

    espero, conhecer um Brasil mais justo e solidrio que o do

    presente.

    Fabola, amor da minha vida, sempre...

  • 11

    AGRADECIMENTOS

    praxe afirmar que um trabalho acadmico no fruto de um esforo

    individual.

    Nada mais verdadeiro. H, de fato, pessoas sem as quais o presente trabalho

    jamais seria produzido.

    Agradeo, em primeiro lugar, ao Professor Doutor Werther Botelho Spagnol,

    que, com maestria, orientou a conduo da presente pesquisa. A ele cabem os mritos

    que porventura sejam vislumbrados no trabalho; no lhe podem ser imputados, contudo,

    os defeitos que, certamente existem, e que devem ser creditados apenas ao autor.

    Sinto-me no dever de enaltecer a importncia da posio que o Professor

    Werther desempenhou na minha vida acadmica e profissional, representando, para

    mim, um modelo de professor e de advogado a ser sempre perseguido. Tive o privilgio

    de com ele conviver desde os tempos do bacharelado, no Grupo de Estudos Tributrios,

    onde adquiri o especial interesse pelo Direito Tributrio que, depois, jamais me viria a

    abandonar.

    Agradeo, ainda, aos meus colegas do escritrio e da Procuradoria-Geral do

    Distrito Federal. Especialmente, destaco o apoio indispensvel que me foi concedido

    pelo amigo Andr vila, que, ao concordar prontamente com o meu afastamento

    temporrio das atividades na Banca, tornou possvel que, na reta final dos trabalhos, eu

    me dedicasse com maior concentrao presente pesquisa. Agradeo, ainda, amiga

    rsula Figueiredo, que me convidou a integrar o prestigiado Ncleo Consultivo

    Tributrio da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, tornando vivel, assim, que o

    presente trabalho se visse enriquecido com conhecimentos que somente podem ser

    hauridos na vivncia imediata da atividade fiscal do Estado.

  • 12

    Agradeo, ainda, ao meu pai, Valdir Peres, e ao meu amigo, irmo, Otto

    Carvalho, meus procuradores em Belo Horizonte, que muito gentilmente contriburam

    na conduo de providncias instrumentais, indispensveis freqncia do Curso de

    Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como a efetivao

    de matrculas, o preenchimento e a entrega de formulrios, etc.

    Por fim, agradeo, em especial, Fabola, que, alm de me confortar ao longo de

    toda essa caminhada com o seu amor e o seu carinho, contribuiu tecnicamente com a

    produo das reflexes aqui transcritas. Com ela pude debater os resultados que foram

    sendo obtidos, passo a passo, nessa caminhada. A ela devo, ainda, a reviso de todo o

    texto.

    Muito obrigado a todos!

  • 13

    I - INTRODUO

    1.1. O contencioso constitucional tributrio

    O Direito Tributrio brasileiro se caracteriza, particularmente, pelo detalhamento

    com que o texto constitucional forja os contornos normativos que embasam o exerccio

    vlido e legtimo do poder de tributar.

    Controvrsias acerca do significado das normas constitucionais que estruturam o

    sistema tributrio nacional, em tal contexto, so sobremaneira comuns. A litigiosidade

    entre a Fazenda Pblica e os contribuintes, engendrada a partir de divergncias em torno

    do real alcance das limitaes constitucionais ao poder de tributar, notria e dispensa

    comprovao atravs de dados estatsticos.

    Especificamente no mbito do controle concentrado de constitucionalidade,

    consulta breve e informal base de dados do Supremo Tribunal Federal mostra-se

    suficiente para a imediata deteco da enorme quantidade de atos normativos tributrios

    cuja validade foi impugnada, perante aquele Corte, pelos legitimados arrolados nos

    incisos do art.103 da Constituio (que sistematicamente lanam mo de instrumentos

    processuais em defesa de suas concepes acerca do real alcance das normas

    constitucionais tributrias).

    Com efeito, a cada diploma normativo que editado, positivando novas regras

    instituidoras de tributos, ou modificadoras dos j existentes - ou mesmo cuidando

    apenas de regimes de arrecadao e procedimentos de fiscalizao - arrojam-se as

    autoridades e rgos, legitimados a impulsionar o monitoramento concentrado de

    constitucionalidade das leis, a questionar a validade da recm-editada medida,

    deduzindo, perante o Supremo Tribunal Federal, argumentos, em geral, diretamente

    ligados a supostas violaes aos direitos fundamentais dos contribuintes e ao

    desrespeito s limitaes constitucionais ao poder de tributar. Confederaes

    representantes de categorias econmicas, o Procurador-Geral da Repblica,

    Governadores de Estado, enfim, toda uma gama de autorizados propositura de aes

    diretas de inconstitucionalidade no se acovardam em questionar a validade de

  • 14

    inovaes introduzidas no sistema tributrio nacional, fazendo uso intenso dos

    mecanismos de controle que a Constituio, democraticamente, ps ao alcance de

    inmeras autoridades e entidades, amplamente representativas dos segmentos que

    formam a matizada sociedade brasileira.

    A agenda da jurisdio constitucional, no Brasil, assim, repleta de litgios

    acerca da validade de normas tributrias. Os direitos e garantias fundamentais

    outorgados aos contribuintes, bem como a exaustiva discriminao de competncias e a

    aposio de rgidos requisitos formais e materiais para o exerccio do poder impositivo,

    presentes no prprio texto constitucional, perfazem a munio argumentativa da qual a

    sociedade faz legitimamente uso para, no mbito dos processos predispostos a tanto,

    suscitar a invalidade de regras tributrias.

    No raramente, os argumentos apresentados pelos contribuintes, ou por outro

    dos legitimados propositura da ao direta, so acolhidos em juzo, sendo os atos

    normativos impugnados expurgados do ordenamento jurdico.

    * * *

    As decises proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, acolhendo argies

    diretas de inconstitucionalidade propostas em face de normas tributrias, representam

    verdadeiras inovaes no ordenamento jurdico, que passa a no mais contar, no seu

    repertrio de fontes, com o texto expurgado. O sistema jurdico-tributrio, assim, sofre

    modificao em sua composio estrutural, passando a reger a vida social de maneira

    distinta daquela que, at ento, vinculava a conduta dos destinatrios da norma, que

    passam a contar com horizonte distinto acerca das conseqncias jurdicas dos seus

    atos.

    O Direito se insere no cotidiano dos cidados, das empresas e dos rgos

    estatais; vivaz, e define previamente as opes de conduta possveis de todos os

    membros da sociedade. Sua desobedincia acarreta sanes. Sua modificao resulta na

    alterao das prprias perspectivas de aes juridicamente viveis por parte das pessoas.

    As estruturas sociais so pontualmente alteradas quando uma deciso proferida em

    controle concentrado reconhece a invalidade de um dado texto normativo tributrio.

  • 15

    Enfim, o Direito vige aqui e agora, no uma entidade transcendental presente apenas

    nos cdigos adquiridos nas livrarias; no puramente abstrato, nem pode sofrer

    modificaes sem que isso desge em resultados prticos diretos e imediatos.

    No que se refere, especificamente, s relaes jurdico-tributrias, as alteraes

    normativas provocadas pelas decises proferidas em aes diretas resultam em aguda e

    incomum alterao do cotidiano dos destinatrios das normas. Empresas planejam suas

    estratgias de atuao no mercado a partir da existncia de uma determinada carga de

    impostos, taxas e contribuies. O Estado, igualmente, erige o oramento vislumbrando

    uma determinada arrecadao. Tais previses so bsicas na racionalizao da vida

    econmica de tais agentes. A modificao do panorama normativo, digamos, no meio

    do caminho, pode acarretar graves conseqncias para ambos.

    Neste contexto, a possibilidade de modulao temporal dos efeitos das decises

    que reconhecem a invalidade de normas, a partir de um juzo fundamentado do Supremo

    Tribunal Federal, passou a ser sria e amplamente considerada na literatura e na

    jurisprudncia, em ntido distanciamento da clssica frmula adotada no

    constitucionalismo brasileiro, que sempre apregoou a nulidade ex tunc de qualquer

    princpio ou regra que viessem a ser editados em contrariedade Constituio. A

    supervenincia de uma soluo legislativa para a questo no tardou.

    1.2. A modulao dos efeitos das decises declaratrias de inconstitucionalidade

    O art. 27 da Lei n. 9.868/99 veio consagrar expressamente, no Direito brasileiro,

    tcnica de deciso, aplicvel ao controle concentrado de constitucionalidade1, cuja

    1 O Supremo Tribunal Federal vem aceitando, tambm, analogamente tcnica instituda no mbito do

    controle abstrato, a modulao de efeitos das declaraes de inconstitucionalidade proferidas no mbito

    do controle difuso de constitucionalidade (cf., por todos, o RE n. 197.917-8, Rel. Ministro Maurcio

    Corra, DJ 07.05.2004, no qual se afastou, por inconstitucional, a aplicao da Lei Orgnica do

    Municpio de Mira Estrela SP, que fixava, para a composio de seu Poder Legislativo, nmero de vereadores incompatvel com os parmetros estabelecidos na CF). Tal questo, a par de sua inegvel

    relevncia, no ser aqui abordada, contudo, para no se induzir a necessidade de discusses processuais

    polmicas em torno da adequao da modulao de efeitos ao controle difuso de constitucionalidade, vez

    que o objeto do trabalho, como mais adiante se ver, outro, e se situa mais no plano do direito material,

    especificamente na necessria relao de adequao que deve haver entre a modulao de efeitos no

    tempo, os direitos fundamentais do cidado contribuinte e as limitaes constitucionais ao poder de

    tributar. E o paradigma processual que permite a modulao de efeitos o controle concentrado, na

    medida em que h soluo legislada ainda que polmica que assim dispe. Enfim, levar a discusso

  • 16

    utilizao j era observada em inmeros pases, e que permite ao rgo julgador

    modular, no tempo, os efeitos das declaraes de inconstitucionalidade das leis. Nestes

    casos, o Supremo Tribunal Federal poderia, mesmo ao reconhecer a

    inconstitucionalidade, por exemplo, de uma dada lei, determinar que os efeitos de sua

    deciso nulificante de regra provida de eficcia ex tunc sobreviessem somente a

    partir de um determinado instante no passado (eficcia ex tunc mitigada), do trnsito em

    julgado do acrdo (eficcia ex nunc), ou em outro momento ulterior fixado pela Corte

    (eficcia pro futuro).

    A par da clssica discusso em torno da nulidade ou da anulabilidade dos atos

    normativos inconstitucionais, fato que se evidenciou o nascimento, na jurisprudncia

    dos Tribunais Constitucionais, a partir da avaliao prudente da prpria complexidade

    das situaes concretas enfrentadas, de argumentos acerca da necessidade de serem

    criadas frmulas decisrias que adequassem, no tempo, os efeitos do reconhecimento da

    invalidade de diplomas editados em contrariedade Constituio. Mais singelamente,

    imps-se a assertiva de que o reconhecimento inflexvel da nulidade das leis

    inconstitucionais, com efeitos ex tunc, longe de ser providncia neutra, poderia servir de

    mote a reviravoltas de situaes consolidadas em sintonia com as normas nulificadas, de

    tal magnitude, que no poderiam ser consideradas de acordo com o texto constitucional.

    Tratar-se-ia, assim, do reconhecimento, j retratado acima, da vivacidade do fenmeno

    jurdico, e de sua inexorvel insero no tempo social, o que reclamaria alternativas

    decisrias, disposio da jurisdio constitucional, que melhor se adequassem

    incomensurvel complexidade dos fatos.

    Daniel SARMENTO, em artigo acadmico no qual abordara o tema, procedeu a

    uma precisa exposio acerca da adoo, no direito comparado, da possibilidade de

    modulao temporal dos efeitos das decises que reconhecem a inconstitucionalidade de

    atos normativos. Ressaltou o autor, em seu estudo, que a regra geral, na maioria dos

    pases, a eficcia ex tunc das decises declaratrias da inconstitucionalidade das leis

    (A grande maioria dos pases que adotou o controle jurisdicional de

    constitucionalidade optou, no que tange aos efeitos temporais da deciso, pelo modelo

    norte-americano, onde a decretao da inconstitucionalidade produz efeitos

    para o mbito para o controle difuso terminaria por desviar as atenes do cerne do problema aqui

    tratado, que basicamente de direito material, para intrincados problemas processuais.

  • 17

    retroativos. [2002: 14]), destacando, todavia, que em quase todos h vlvulas de

    escape que permitem que, em casos excepcionais, a regra da nulidade dos atos

    normativos inconstitucionais, e a sua congruente projeo no tempo, sejam amenizadas

    em prol de outros princpios constitucionais, derivados diretamente, em geral, da idia

    de segurana jurdica. Compem este grupo, segundo o professor citado, dentre outros,

    Portugal2, Espanha

    3 e Alemanha

    4.

    A positivao de tal possibilidade, no Direito brasileiro, teve em Gilmar Ferreira

    MENDES um de seus mais notrios estimuladores. Em obra paradigmtica sobre o

    assunto, resultante do curso de doutoramento que o autor conclura, na Alemanha, no

    final da dcada de oitenta (intitulada Jurisdio Constitucional), MENDES

    demonstrara com flego exaustivo - sobretudo a partir da casustica do Tribunal

    Constitucional Federal Alemo - como a frmula tradicional, que oscila radicalmente

    entre a rejeio da argio de inconstitucionalidade ou a declarao da invalidade da

    lei atacada com efeitos retroativos, seria insuficiente para se atingir uma soluo justa

    para inmeras controvrsias constitucionais.

    O autor, em tal contexto, apesar de reconhecer que a tradio do

    constitucionalismo brasileiro apontaria no sentido da nulidade ex tunc das leis

    declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal5, pontuou que razes

    2 Em Portugal, por exemplo, estabelece o texto constitucional:

    Artigo 282 - (Efeitos da declarao de inconstitucionalidade ou de ilegalidade). 1. A declarao de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com fora obrigatria geral produz efeitos

    desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinao das

    normas que ela, eventualmente, haja revogado.

    2. Tratando-se, porm, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infrao de norma constitucional

    ou legal posterior, a declarao s produz efeitos desde a entrada em vigor desta ltima.

    3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo deciso em contrrio do Tribunal Constitucional quando a

    norma respeitar a matria penal, disciplinar ou de ilcito de mera ordenao social e for de contedo

    menos favorvel ao argido.

    4. Quando a segurana jurdica, razes de equidade ou interesse pblico de excepcional relevo, que

    dever ser fundamentado, o exigirem, poder o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da

    inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos ns. 1 e 2. 3 (...) houve caso em que a jurisprudncia constitucional espanhola declarou a inconstitucionalidade de

    uma lei que dispunha sobre o imposto de renda, atribuindo deciso apenas efeitos prospectivos, sob o

    duvidoso argumento de os recursos pblico obtidos j teriam sido gastos pelo Estado. (SARMENTO, 2002: 16) 4 Idem, 2008: 16-17.

    5 O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence tradio do direito brasileiro. A teoria da

    nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas. (...)

    Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional

    importaria na suspenso provisria ou parcial da Constituio. (MENDES, 2005: 317-318)

  • 18

    derivadas do princpio da segurana jurdica, com sede no prprio texto constitucional,

    poderiam, tambm no Brasil, servir de esteio para a modulao temporal dos efeitos das

    decises que acolhem argies de inconstitucionalidade. Todavia, isto somente poderia

    se dar a partir de um juzo severo e fundamentado por parte do STF, que, sopesando o

    princpio da nulidade da lei inconstitucional com outros princpios presentes na

    Constituio, tendo por pano de fundo a idia de proporcionalidade, conclusse pela

    necessidade de, em determinado caso, conferir efeitos ex nunc sua deciso, ou at

    mesmo protrair a sua eficcia para algum outro ponto no tempo (efeitos pro futuro).

    Afirmou MENDES:

    Tal como observado, o princpio da nulidade continua a ser a regra tambm no direito brasileiro. O afastamento de sua incidncia

    depender de um severo juzo de ponderao que, tendo em vista anlise

    fundada no princpio da proporcionalidade, faa prevalecer a idia de

    segurana jurdica ou outro princpio constitucionalmente relevante

    manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como

    no direito portugus, a no-aplicao do princpio da nulidade no se

    h de basear em considerao de poltica judiciria, mas em fundamento

    constitucional prprio. (MENDES, 2005: 394-395)

    Tal soluo, conforme assinalado no incio deste tpico, veio a ser objeto de

    disciplina explcita na Lei n. 9.868/99, que, em seu art. 27, assim disps:

    Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse

    social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros

    de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que

    ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro

    momento que venha a ser fixado.

    Comentando tal disposio, ainda Gilmar Ferreira MENDES (2005: 317)

    ressaltou ser notrio que o legislador optou conscientemente pela adoo de uma

    frmula alternativa pura e simples declarao de nulidade.

    Ou seja, consagrou-se, no direito positivo infraconstitucional, norma processual,

    disciplinadora das decises proferidas nos processos objetivos de monitoramento da

    constitucionalidade das leis, que faculta ao Supremo Tribunal Federal, em determinados

    casos e sob quorum qualificado, restringir temporalmente a eficcia de seus acrdos

    declaratrios da inconstitucionalidade de atos normativos; possibilidade esta que

  • 19

    derivaria da existncia de princpios constitucionais que, contrapostos ao princpio da

    nulidade das leis inconstitucionais, sobressairiam, ao menos parcialmente, na resoluo

    de determinados litgios.

    A recepo da tcnica, no mbito do STF, pode ser ilustrada a partir da seguinte

    passagem de voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski, nos autos do Recurso

    Extraordinrio n. 370682/SC:

    Como a inconstitucionalidade pode ser argida a qualquer tempo, no difcil imaginar que a adoo sistemtica da sano de nulidade

    acarretaria graves transtornos s relaes sociais, visto que a prpria

    certeza do direito poderia ser colocada em xeque. A anulao da norma

    inconstitucional, com a modulao dos efeitos temporais da deciso,

    surge assim como precioso instrumento que permite temperar o

    princpio da supremacia constitucional com outros valores socialmente

    relevantes, em especial o da segurana jurdica.

    A necessidade de preservar-se a estabilidade de relaes jurdicas pr-

    existentes, levou o legislador ptrio, inspirado nos modelos alemo e

    portugus, a permitir, nas Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e

    9.882, de 3 de dezembro de 1999, que o Supremo Tribunal Federal

    regule, ao seu prudente arbtrio, os efeitos das decises proferidas nas

    aes declaratrias de constitucionalidade, nas aes diretas de

    inconstitucionalidade e nas argies de descumprimento de preceito

    fundamental.

    (...)

    Recorde-se, ademais, que o STF ao proceder, em casos excepcionais,

    modulao dos efeitos de suas decises, por motivos de segurana

    jurdica ou de relevante interesse social, estar realizando a ponderao

    de valores e princpios abrigados na prpria Constituio.

    * * *

    A soluo legislativa (conforme assinalado, defendida na literatura

    constitucional por vrios autores, e j amplamente adotada no direito comparado),

    entretanto, no isenta de incisivas objees. Numeroso grupo de constitucionalistas,

    com efeito, deduz crticas consistentes adoo da frmula que permite a modulao

    temporal dos efeitos das decises declaratrias de inconstitucionalidade.

    Segundo tais estudiosos, a possibilidade de se modular no tempo os efeitos das

    declaraes de inconstitucionalidade das leis equivaleria ao reconhecimento da

    suspenso temporria da vigncia da Constituio, no tocante ao perodo com referncia

  • 20

    ao qual se conferiu legitimidade aos efeitos produzidos por normas que viriam a ter sua

    invalidade reconhecida. Com o reconhecimento da aplicao da lei inconstitucional ao

    longo de um dado intervalo, ter-se-ia a inverso temporria da hierarquia das fontes

    integrantes do ordenamento jurdico, sobressaindo, num tal contexto, a eficcia de uma

    norma invlida sobre a fora normativa da prpria Constituio. Situaes ilegtimas se

    consolidariam, suportadas por foras apcrifas emanadas do domnio ftico, que

    sustentariam a aplicao intermitente de normas inconstitucionais e submergiriam a

    prpria noo de supremacia da Constituio, sustentculo do Estado de Direito.

    Ainda segundo os crticos da frmula, a possibilidade da modulao dos efeitos

    das declaraes de inconstitucionalidade que, ao cabo, equivaleria a uma faculdade de

    se condicionar a vigncia da prpria Constituio no se inseriria dentre os feixes de

    atribuies que poderiam ser legitimamente conferidos aos rgos encarregados da

    Jurisdio Constitucional. A estes, como rgos judiciais que inquestionavelmente so,

    responsveis pela aplicao do direito positivo a partir do cdigo sistmico lcito-ilcito,

    no seria dada a prerrogativa essencialmente poltica de, a partir de frmulas genricas

    como segurana jurdica ou relevante interesse social, deliberar sobre a

    convenincia e a oportunidade de se deixar de aplicar, com referncia a dado intervalo

    de tempo, o texto constitucional. Junte-se a isso o fato de que poucos so os membros

    das Cortes Constitucionais, sendo, no caso do Brasil, o Supremo Tribunal Federal

    integrado por onze Ministros, que, por mais cultos e justos que fossem mesmo, alis,

    se idealmente perfeitos ainda assim no deteriam a prerrogativa de deixar de aplicar a

    Constituio, norma bsica que se sustenta sobre a mais ampla base de legitimidade

    poltica e pertence a todo o povo, no sendo a sua fora normativa, assim, sujeita a

    disponibilidade por parte da jurisdio constitucional.

    Integra o grupo de estudiosos que sustenta a inconstitucionalidade da norma que

    conferiu ao STF a possibilidade de modular os efeitos temporais das declaraes de

    inconstitucionalidade, o professor Marcelo Andrade Cattoni de OLIVEIRA, que, em

    artigo publicado em 20026, externou as seguintes observaes:

    6 Reflexo profunda do autor sobre o tema, no mesmo sentido aqui referido, consta, ainda, da obra Devido

    Processo Legislativo, na qual, sob a tica da teoria do discurso, so tecidas cidas crticas s disposies

    da Lei n. 9.868/99).

  • 21

    Por fim, e nesse sentido, tambm preciso reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 9.868/99, que pretende descaracterizar o

    controle difuso, ao buscar alterar o artigo 482 do Cdigo de Processo

    Civil, e por intentar transformar as decises em ao direta de

    inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal federal num meio

    esprio de suspenso da ordem constitucional, ao pretender atribuir a

    esse Tribunal o poder de restringir o contedo e de fixar os efeitos

    temporais de suas decises, flagrantemente invertendo a hierarquia das

    fontes ao poder determinar, cidadania, Administrao Pblica e aos

    demais juzes e tribunais, a obedincia a leis e atos normativos

    declarados inconstitucionais pelo prprio Tribunal, com base em razes (?) de segurana jurdica ou de excepcional interesse social (art. 27, da Lei n. 9.868/99). (OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Jurisdio constitucional: poder constituinte permanente? in SAMPAIO, Jos

    Adrcio Leite Sampaio e CRUZ, lvaro Ricardo de Souza (org.).

    Hermenutica e jurisdio constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,

    2002. p. 77)

    lvaro Ricardo de Souza CRUZ, por sua vez apesar de, ao final, concluir pela

    convenincia da adoo da tese da anulabilidade das normas inconstitucionais, nos

    moldes propostos por KELSEN (1998) e em dissonncia com a tradio constitucional

    brasileira , na obra intitulada Jurisdio Constitucional Democrtica, expe relevantes

    observaes, que denotariam, sob a tica da Teoria Discursiva do Direito, o carter

    poltico, e no jurdico, da modulao de efeitos temporais das decises que acolhem

    argies de inconstitucionalidade. Segundo o autor, se a supremacia da Constituio

    deixa de ser admitida em favor da teoria da aparncia, para fins de proteo de

    terceiros de boa-f, da coisa julgada ou do princpio do equilbrio econmico

    financeiro, na verdade, o Judicirio estaria abandonando o Direito e passando a

    operar exclusivamente por meio de argumentos pragmticos, ou seja, politicamente

    (CRUZ, 2004: 254-255). Logo a seguir, o estudioso conclui o seu raciocnio:

    Em decorrncia, inadmissvel que razes de convenincia ou oportunidade possam determinar que uma norma declarada

    inconstitucional continue gerando efeitos durante algum tempo, ou seja,

    prospectivamente. Isso seria admitir a validade de um ato ilcito, o que certamente uma contradio em si mesma. (2004: 255)

    Mesmo no mbito do Supremo Tribunal Federal, a tcnica no foi acolhida com

    simpatia por todos os Ministros, e, em alguns casos, a sua aplicao vem ocasionando

    acalorados debates no Plenrio da Corte. Por exemplo, durante o julgamento do RE n.

    370.682/SC, em que se discutia a possibilidade de aproveitamento, na sistemtica do

  • 22

    Imposto sobre Produtos Industrializados, de crditos decorrentes da aquisio de

    insumos no-tributados, isentos, ou sujeito a alquota zero, quando levantada questo de

    ordem acerca da possibilidade de ser conferido efeito meramente prospectivo deciso

    que ali era proferida, por razes de segurana jurdica, posicionou-se o Ministro Marco

    Aurlio, ao negar a viabilidade de tal providncia, no sentido de que a modulao de

    efeitos levaria a uma situao em que sobrelevariam duas Constituies Federais, uma

    anterior ao julgamento e uma posterior; como se houvesse disciplinas distintas, a

    anterior, contemplando o crdito, e a posterior, afastando-o. Mais adiante, prosseguiu

    Sua Excelncia em seu substancioso voto:

    A segurana jurdica est, na verdade, na proclamao do resultado dos julgamentos tal como formalizada, dando-se primazia Constituio

    Federal e exercendo o Supremo o papel que lhe reservado o de preservar a prpria Carta da Repblica e os princpios que a ela so

    nsitos, como o da razoabilidade e o do terceiro excludo.

    (...)

    De minha parte, pouco importando os interesses individuais e

    momentneos em jogo, sufrago o entendimento, sempre e sempre, da

    preponderncia da ordem jurdica. o preo a ser pago em um Estado

    Democrtico de Direito, e mdico. Concluo pela eficcia das decises

    tal como proferidas.

    No mbito do direito comparado, sintoma primeiro da complexidade ou,

    poder-se-ia mesmo afirmar, do carter polmico do problema da modulao temporal

    dos efeitos do acolhimento das argies de inconstitucionalidade so as prprias

    oscilaes da tcnica no mbito da jurisprudncia da Suprema Corte Norte-Americana,

    que, ao contrrio do que se verifica nos Tribunais Constitucionais Europeus, no a

    incorporou, em definitivo, ao seu rol de tcnicas decisrias potencialmente utilizveis.

    Nos Estados Unidos, conforme exps Daniel SARMENTO, a Suprema Corte, a

    partir da dcada de sessenta, passou a admitir a modulao temporal dos efeitos do

    reconhecimento da inconstitucionalidade das leis no no que tange ao caso concreto

    no qual a deciso foi proferida, mas sim perante os terceiros que sofreriam os efeitos

    retroativos do precedente vinculante (stare decisis). Contudo, mais recentemente,

    aponta o autor um retorno da Suprema Corte americana aplicao irrestrita da regra da

    nulidade ex tunc dos atos inconstitucionais, o que, diz, liga-se composio mais

    conservadora que a Corte veio a possuir j na dcada de oitenta (Com efeito, em

  • 23

    Griffith v. Kentucky, a Suprema Corte, sob a presidncia do Juiz Rehnquist, j afastara

    a doutrina da no retroatividade, afirmando que, ao resolver controvrsias

    constitucionais, os juzes declaram o direito pr-existente e no legislam. [2002: 20]).

    Conclui o autor, referindo-se questo nos EUA:

    Portanto, aps a admisso, durante certo perodo, do seu poder de mitigar os efeitos retroativos das decises no controle de

    constitucionalidade, a Suprema Corte voltou atrs, insistindo na tese

    ortodoxa da retroatividade plena dos seus julgados. (2002: 21)

    * * *

    Deixando o aprofundamento nas duas posies logo acima expostas a favor e

    contra a possibilidade de modulao de efeitos nas declaraes de inconstitucionalidade

    para mais adiante, oportunidade em que sero os argumentos deduzidos por ambas,

    difusamente ao longo de toda a exposio, analisados com mais vagar, fato que,

    conforme assinalado, a frmula recebeu consagrao legislativa expressa no direito

    brasileiro e vem sendo utilizada pelo Supremo Tribunal Federal.

    Trata-se, portanto, de uma tcnica que efetivamente compe, hoje, o repertrio

    de possibilidades decisrias do qual o Supremo Tribunal Federal pode, amparado em

    lei, lanar mo, realidade esta que no pode ser estoicamente ignorada, mxime num

    trabalho que, como o presente, ambiciona ser essencialmente dogmtico.

    De toda sorte, isso no impede que os impactos e a convenincia da adoo da

    frmula sejam analisados criticamente, especificamente com relao ao Direito

    Tributrio, na busca reflexiva de parmetros normativos que se mostrem mais

    consistentes, e que at mesmo equacionem as divergncias acima expostas. H, com

    efeito, variveis que, nas relaes jurdico-tributrias, podem induzir construo de

    balizas adicionais a serem argumentativamente enfrentadas, pelo Supremo Tribunal

    Federal, sempre que formulada proposta de restrio temporal da nulificao de normas

    impositivas invlidas.

    Eis o ponto de partida do presente trabalho: a presena efetiva, na legislao e na

    jurisprudncia enfim, no ordenamento jurdico-positivo brasileiro da tcnica

  • 24

    decisria que permite a modulao temporal dos efeitos das decises que declaram a

    inconstitucionalidade de diplomas normativos, frmula esta que ser criticamente

    apreciada, inclusive no que toca sua adequao constitucional, tendo por pano de

    fundo as peculiaridades que marcam as relaes jurdico-tributrias, os direitos

    fundamentais do contribuinte e as limitaes constitucionais ao poder de tributar.

    1.3. A possibilidade da modulao de efeitos das decises proferidas em aes

    diretas de inconstitucionalidade e seu impacto nas relaes tributrias

    Os diversos ramos especializados do ordenamento jurdico apresentam

    singularidades que induzem existncia de diferenciaes no que se refere aplicao

    da tcnica da modulao temporal de efeitos, a depender da configurao normativa das

    relaes que so afetadas pela deciso proferida no controle concentrado de

    constitucionalidade.

    A possibilidade de se reconhecer a produo de efeitos, ainda que restrita no

    tempo, por uma lei declarada inconstitucional, pode se contrapor no apenas ao

    princpio da nulidade dos atos normativos assim qualificados, mas tambm a direitos

    fundamentais dos cidados e a princpios especficos, nucleares num dado subsistema

    normativo. A chancela da eficcia de um diploma tido por contrrio Constituio

    pode, com efeito, ter por resultado situaes inusitadas, que merecem ser estudadas em

    separado, com o fim de se aperfeioar os parmetros normativos que devem reger a

    modulao temporal dos efeitos das decises que acolhem argies de

    inconstitucionalidade.

    No Direito Administrativo, por exemplo, desapropriaes - que representam uma

    forma de interveno pblica na propriedade privada - podem ter se aperfeioado com

    base em atos normativos invlidos; multas podem ter sido aplicadas com esteio em leis

    editadas contrariamente Constituio. No Direito Processual Civil, um rgo

    jurisdicional pode haver tido a sua composio definida por uma lei ofensiva, v.g., ao

    princpio do juiz natural, cuja inconstitucionalidade veio a ser declarada muito aps

    diversas decises terem sido proferidas pelo referido, e hipottico, rgo judicante. A

    manuteno de tais situaes pode, ou no, dar-se a partir de um juzo discricionrio do

    Supremo Tribunal Federal, que modularia, eventualmente, com efeitos ex nunc ou pro

  • 25

    futuro, as leis exemplificadas, cuja invalidade teria sido reconhecida pela Corte? O

    manejo no tempo dos efeitos das declaraes de inconstitucionalidade, nas hipteses

    tecidas, se ajustaria ao texto constitucional?

    Os exemplos que melhor traduzem, prima facie, o que aqui se pretende ilustrar,

    situam-se no mbito do Direito Penal. Suponhamos que cidados tenham sido

    condenados, atravs de sentenas transitadas em julgado, pela prtica de um crime cuja

    tipificao legal veio a ser supervenientemente declarada inconstitucional pelo Supremo

    Tribunal Federal. Poderia a Corte, numa tal circunstncia, ressalvar os efeitos da

    declarao de inconstitucionalidade apenas para o futuro, no abrindo chance a que os

    condenados proponham revises criminais em face dos provimentos jurisdicionais

    atravs dos quais se viram apenados? Daniel SARMENTO (2002: 34) chegou a tratar

    do tema, e assim exps seu pensamento:

    Cabe ainda indagar se a faculdade de modular os efeitos das decises no controle de constitucionalidade das leis estende-se a todos os

    domnios normativos. Em que pese o silncio da lei, entendemos que, no

    mnimo, as normas incriminadoras do Direito Penal esto excludas

    deste campo. O princpio da legalidade, no Direito Criminal, assume um

    rigor absoluto, tornando absolutamente inaceitvel admitir-se a punio

    de algum pela prtica de suposto ilcito tipificado em legislao

    inconstitucional, e portanto desprovida de valor jurdico. O relevo

    superior atribudo pela Constituio liberdade, e a filosofia penal

    garantista, que se deixam entrever na obra do constituinte, permitem que

    se conclua, sem sombra de dvida, que as decises no controle de

    constitucionalidade que beneficiarem acusados ou condenados tero

    forosamente que retroagir.

    A utilidade de se recorrer ao direito comparado, na tentativa de se responder s

    perguntas acima externadas, limitada, pois so as ordens jurdicas especficas de cada

    pas, mxime suas Constituies, que serviro de base resoluo das questes

    propostas. Entretanto, no deixa de ser curioso, diante das colocaes de Daniel

    SARMENTO, o fato de que a Suprema Corte Americana, em oportunidade marcante, ao

    atribuir efeitos apenas prospectivos s suas decises, o fez justamente em um caso

    penal, negando o pedido de reviso criminal de um cidado que havia sido condenado

    definitivamente a partir de provas produzidas em moldes que ulteriormente viriam a ser

    considerados inconstitucionais pelo Tribunal (caso Linkletter vs. Walker, 1965). Em

    outras palavras, a Suprema Corte Americana quando veio a aplicar inicialmente a

  • 26

    modulao de efeitos, tcnica da qual, como visto acima, no mais lana mo conferiu

    efeitos prospectivos justamente inconstitucionalidade de disposies processuais

    penais, e negou pedidos rescisrios de condenaes que teriam se perpetrado a partir de

    procedimentos de instruo considerados invlidos pelo Tribunal em casos idnticos.

    O Direito Tributrio igualmente oferece inmeras peculiaridades que podem se

    contrapor possibilidade irrestrita de serem conferidos efeitos meramente prospectivos

    s declaraes de inconstitucionalidade de normas tributrias. A primeira indagao que

    se faz deriva do princpio da legalidade estrita em matria tributria, o qual tem por

    contedo bsico a diretriz de que o contribuinte somente poderia ter o seu direito

    fundamental propriedade privada restringido, pelo exerccio do poder tributrio, nos

    casos da existncia de uma lei vlida que embasasse a atuao da Fazenda Pblica. A

    Constituio, de fato, no permite que os cidados sejam forados a canalizar parte de

    seus recursos privados para os cofres pblicos, a ttulo de tributo, seno quando uma lei

    legitimamente assim dispuser (simetricamente ao que se d no campo penal, em que

    ningum pode se sujeitar a uma sano privativa da liberdade, a no ser pela prtica de

    um ilcito criminal legalmente definido). Neste contexto, se a lei que embasou a

    arrecadao de um imposto, por exemplo, durante um dado perodo, vem a ter a sua

    constitucionalidade negada pelo Supremo Tribunal Federal, poderia a Corte modular os

    efeitos de sua deciso, consolidando os recolhimentos que se procederam sob o plio da

    legislao invlida?

    E se uma lei tributria for declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal

    Federal por violao ao princpio da igualdade, ou ao princpio da capacidade

    contributiva, que nada mais so que o desdobramento de direitos fundamentais gerais no

    mbito do sistema tributrio? Pode a arrecadao, procedida mediante a aplicao de

    uma norma tal, ser mantida inclume, a partir de um juzo de ponderao efetuado pelo

    Supremo Tribunal Federal, atravs do qual a Corte optasse por conferir efeitos ex nunc

    sua deciso?

    Ainda no mbito tributrio, e vista a questo de outro ngulo, o Supremo

    Tribunal Federal poderia arrimar-se, como fundamento para modular os efeitos de uma

    declarao de inconstitucionalidade de uma determinada lei tributria, nas dificuldades

    financeiras que seriam enfrentadas pelo Estado, caso fossem atribudos efeitos ex tunc

  • 27

    ao acrdo? Ou tal argumento seria de ndole meramente econmica, de modo que o seu

    emprego se traduziria, ao cabo, na dissoluo da normatividade do sistema jurdico no

    seu ambiente, comprometendo a prpria funo que o Direito e, mais especificamente,

    a Constituio desempenha na sociedade moderna?

    Sobre a possibilidade especfica das dificuldades de caixa do Poder Pblico

    servirem de esteio modulao de efeitos, Misabel Abreu Machado DERZI, por

    exemplo, rechaa-a com veemncia:

    Se as perdas do Estado com a compensao dos tributos pagos, com base em lei inconstitucional, se tornarem o parmetro para a modulao

    de efeitos das decises, ento os direitos e garantias fundamentais dos

    contribuintes sero letra morta. (DERZI, 2009: 520)

    No obstante, o Supremo Tribunal Federal efetivamente modulou, em favor da

    Unio, os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade das regras que instituam

    prazos diferenciados de decadncia e de prescrio para a constituio e execuo de

    crditos referentes s contribuies sociais incidentes sobre a folha de salrios (Recurso

    Extraordinrio n. 559.882/RS7, no qual fora examinada a constitucionalidade das regras

    constantes da Lei n. 8.212/91, que estabeleciam prazos de dez anos para a

    Administrao lanar e cobrar os tributos disciplinados naquele diploma legal, em

    contrariedade s disposies do CTN, que afirmam serem os referidos interregnos

    qinqenais). Ao faz-lo, a Corte, ainda que no o haja declarado expressamente, teve

    em mira, provavelmente, evitar que a Fazenda Pblica Federal se visse embaraada com

    a necessidade proceder devoluo de ingente montante de contribuies que, segundo

    os prazos fixados pelo Cdigo Tributrio Nacional, haviam sido pagas quando j

    fulminadas pela prescrio.

    * * *

    Enfim, quais so os parmetros que devem ser observados pelo Supremo

    Tribunal Federal, quando da modulao de efeitos no tempo das declaraes de

    inconstitucionalidade de leis tributrias?

    7 Apesar de se tratar de controle difuso de constitucionalidade, a fundamentao desenvolvida no acrdo,

    bem como os debates travados em Plenrio, referente aos parmetros para se proceder modulao de

    efeitos, so compatveis com o controle concentrado, sendo, assim, pertinente a sua anlise neste trabalho.

  • 28

    A definio de tais balizas normativas de fundamental importncia para o

    aperfeioamento e contnua democratizao da atividade exercida pela Jurisdio

    Constitucional. O mero recurso s clusulas genricas da segurana jurdica e do

    relevante interesse social, tal como dispostas no art. 27 da Lei n. 9.868/99, no se

    mostra suficiente para sustentar medida to grave como a manuteno de atos de

    aplicao de uma lei tributria declarada inconstitucional.

    O estabelecimento de parmetros normativos mais precisos, que possam ser

    utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, luz das peculiaridades do

    domnio normativo em que se insere a lei cuja invalidade reconhecida, surge como

    providncia de todo relevante, na medida em que intenta contribuir, com repercusses

    prticas imediatas, para o incremento do conhecimento em torno das tcnicas decisrias

    que podem ser empregadas pela Corte.

    Note-se que a modulao de efeitos, desde o incio das discusses em torno da

    possibilidade de sua adoo no direito brasileiro, sempre foi vislumbrada como uma

    medida absolutamente excepcional, contraposta regra geral aplicvel s decises

    declaratrias de inconstitucionalidade, que a da eficcia ex tunc. Esta posio foi

    muito bem exposta pelo Ministro Seplveda Pertence no seguinte voto:

    Sou em tese favorvel a que, com todos os temperamentos e contrafortes possveis e para situaes absolutamente excepcionais, se

    permita a ruptura do dogma da nulidade ex radice da lei

    inconstitucional, facultando-se ao Tribunal protrair o incio da eficcia

    erga omnes da declarao. Mas, como aqui j se advertiu, essa soluo,

    se generalizada, traz tambm o grande perigo de estimular a

    inconstitucionalidade. (ADI 1.102, Rel. Maurcio Corra, DJ 17.11.1995)

    No obstante isso, o Supremo Tribunal Federal, em alguns julgados, tem

    modulado os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade de leis sem se

    desincumbir de maiores nus argumentativos, reflexo, talvez, justamente da falta de

    estabelecimento de parmetros mais efetivos, aptos a moldar o emprego de tal frmula

    decisria.

  • 29

    Voltemos, por exemplo, ao Recurso Extraordinrio n. 559.882/RS, que teve por

    objeto a questo ligada constitucionalidade da fixao de prazos prescricionais e

    decadenciais diferenciados para a constituio e cobrana de contribuies

    previdencirias. Naquele processo, como visto acima, o STF reconheceu a

    inconstitucionalidade dos prazos decenais previstos na Lei n. 8.212/91 (Plano de

    Custeio da Seguridade Social). Ressalvou, todavia, com base no princpio da segurana

    jurdica, todos os pagamentos j efetivados e ainda no questionados em juzo tendo

    por base o diploma legal invlido, chancelando, assim, situao em que tributos que

    teriam sido quitados quando j decados ou prescritos no mais poderiam ser reavidos.

    E, ao faz-lo, o Tribunal praticamente no exps qual seria o contedo da segurana

    jurdica que ali era protegida. Com efeito, aps tecer consideraes acerca da

    aplicabilidade da modulao dos efeitos no controle difuso, o Ministro Gilmar Mendes,

    Relator, no que toca especificamente ao contedo da segurana jurdica que, naquele

    caso concreto, deveria ser protegida atravs da modulao de efeitos do reconhecimento

    da nulidade da lei, asseverou apenas que:

    Na espcie, a declarao de inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/91 pode acarretar grande insegurana jurdica quanto aos

    valores pagos fora dos prazos qinqenais previstos no CTN e que no

    foram contestados administrativa ou judicialmente.

    A supremacia da Constituio, traduzida no princpio da nulidade das leis

    inconstitucionais, no caso especfico, foi afastada sem que para tanto fossem

    apresentados fundamentos suficientemente consistentes, o que destaca a relevncia da

    busca de parmetros mais seguros que definam as potencialidades legtimas de

    aplicao do art. 27 da Lei n. 9.868/99.

    Como visto acima, cada domnio normativo do ordenamento jurdico oferecer

    singularidades que recomendam a anlise, em separado, das possibilidades de aplicao

    da modulao de efeitos com relao aos efeitos produzidos por leis inconstitucionais

    em dado interregno. Os impactos da tcnica, conforme expusemos, se diferenciam

    conforme se trate de leis penais ou administrativas, sendo, assim, mais conveniente, do

    ponto de vista cientfico, que a avaliao da adequao, da legitimidade e dos limites do

    emprego da modulao de efeitos se faa separadamente, tendo por paradigma

    investigativo determinado ramo do ordenamento jurdico. O objetivo do presente

  • 30

    trabalho, em tal contexto terico, colaborar para a fixao de parmetros dogmticos

    concretos, que devam ser observados quando se cogite acerca da aplicao da

    mencionada frmula decisria aos casos em que for declarada a inconstitucionalidade

    de normas tributrias.

    * * *

    O estabelecimento dos nus argumentativos do qual o Poder Judicirio deve se

    desincumbir, quando chancela os efeitos que uma lei inconstitucional produziu durante

    certo intervalo de tempo, passa, necessariamente, pela avaliao crtica de elementos

    tericos bsicos, conjugada com reflexes em torno do prprio texto constitucional

    brasileiro.

    O primeiro trecho do itinerrio investigativo, em busca de parmetros mais

    efetivos para a aplicao da modulao de efeitos em casos tributrios, buscar

    investigar os fundamentos hermenuticos que envolvem a construo do sentido das

    normas constitucionais. Tal ponto de partida se justifica na circunstncia de que a

    deciso judicial representa o momento aplicativo do direito por excelncia.

    Compreender o seu funcionamento, nesse contexto, equivale a clarificar como os textos

    normativos e os fatos que lhes so subjacentes se relacionam quando do julgamento

    de uma ao direta de inconstitucionalidade, dando ensejo ao nascimento de pretenses

    ligadas modulao temporal dos efeitos da deciso que reconhece a ilegitimidade da

    norma impugnada.

    A segunda etapa da pesquisa se consubstanciar em incurses no prprio papel

    que cabe jurisdio constitucional concentrada exercer no Estado Democrtico de

    Direito. Neste ponto, a discusso induz reflexes em torno da diferenciao funcional

    entre o direito, a poltica e a economia, como subsistemas sociais diferenciados, e dos

    prprios limites da legitimidade da atividade judicante, mais precisamente daquela que

    se debrua sobre controvrsias acerca da adequao de diplomas normativos gerais ao

    texto constitucional, e que, autorizada por lei, pretende modular no tempo os efeitos de

    suas decises.

    Enfim, h que se verificar qual seria a base de legitimidade constitucional

    extrada paradigmaticamente da noo de Estado Democrtico de Direito detida pelo

  • 31

    Supremo Tribunal Federal quando decide aes diretas de inconstitucionalidade. A

    verificao do papel do juiz constitucional na sociedade brasileira contempornea,

    bem como a pesquisa em torno de quais seriam os fundamentos constitucionais que

    embasariam, em geral, as discusses em torno da validade e da aplicao, ou no, do art.

    27 da Lei n. 9.868/99, ser capaz de situar adequadamente a posio que o STF ocupa

    frente a essa temtica, o que, espera-se, contribuir para a fixao de parmetros

    decisrios para a atuao da Corte.

    De posse de elementos tericos pr-definidos acerca do papel que o Supremo

    Tribunal Federal, no exerccio do controle concentrado, desempenha no

    constitucionalismo brasileiro atual, assim como assumida uma posio no debate

    existente, em torno da validade e da legitimidade da modulao de efeitos no tempo,

    estaremos aptos a adentrar na ltima fase da investigao, na qual procederemos ao

    cotejo do texto constitucional, mais especificamente das limitaes constitucionais ao

    poder de tributar, com os dados anteriormente depurados.

    Conforme j assinalado acima, a Constituio brasileira prdiga de

    dispositivos que, atravs da positivao de princpios e regras de garantia, condicionam

    o exerccio do poder estatal de tributar. Este amplo arcabouo normativo, dentre outras

    diretrizes, consagra inmeras e preciosas aquisies jurdicas da sociedade brasileira,

    expressas em princpios como o da legalidade, da igualdade, da capacidade contributiva,

    do no-confisco, da anterioridade, enfim, todo um feixe de normas especificamente

    referidas atividade impositiva do Estado, que no podem ser deixadas de lado nos

    casos em que for considerada a modulao, no tempo, dos efeitos da declarao de

    inconstitucionalidade de uma lei tributria.

    Enfim, articularemos, a partir de agora, num dilogo terico recproco, as quatro

    variveis acima expostas (teoria da interpretao constitucional - teoria da jurisdio

    constitucional no Estado Democrtico de Direito - teoria da manipulao temporal da

    eficcia das declaraes de inconstitucionalidade - teoria das limitaes constitucionais

    ao poder de tributar), postura metodolgica que, pretendemos, revelar parmetros

    dogmticos consistentes, aptos a balizar as potencialidades da modulao de efeitos, no

    tempo, pelo Supremo Tribunal Federal, das decises que declaram a

  • 32

    inconstitucionalidade de normas tributrias no mbito dos processos objetivos de

    controle.

  • 33

    2. REVELANDO O SENTIDO DA CONSTITUIO: A INTERPRETAO

    JURDICA NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO

    2.1. O texto constitucional e a concretizao da Constituio. Entre fatos e normas.

    No se sustenta hoje em dia, como antanho, que os juzes, ao decidirem casos

    concretos que lhes so submetidos, atuem de forma neutra, como a boca da lei, ou seja,

    como agentes de uma operao de subsuno direta envolvendo fatos e normas8. J

    Hans KELSEN (1998), no derradeiro captulo de sua Teoria Pura, externava lio que

    tinha por substrato o reconhecimento do carter relativamente indeterminado da

    linguagem atravs da qual o direito vertido, ao admitir a possibilidade de, pela via

    interpretativa de um dado texto, erigir-se uma moldura de variados sentidos possveis da

    norma; definida a moldura, restaria ao aplicador, no exerccio de uma vontade

    inescrutvel, optar, dentre aqueles extraveis do texto, pelo sentido que lhe aprouvesse,

    concretizando, assim, a norma do caso9.

    Essa indeterminao parcial da linguagem10

    natural (assim entendida aquela que

    usamos para falar, ou seja, para nos fazermos entender uns perante os outros no dia-a-

    dia), por meio da qual se externam as comunicaes jurdicas11

    12

    13

    , intuitiva, e

    8 Desde O. Blow, cedio afimar o rduo papel criador do juiz. O abandono de uma caduca

    concepo de aplicao da lei, como um silogismo lgico dedutivo, em favor de uma compreenso

    jurdica, parece ser uma aquisio definitiva. (DERZI, 2009: 49) 9 O Direito a aplicar forma, em todas estas hipteses, uma moldura dentro da qual existem vrias

    possibilidades de aplicao, pelo que conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desse

    quadro ou moldura, que preencha essa moldura em qualquer sentido possvel. (KELSEN, 1998: 390) 10

    Segundo Arthur KAUFMANN, (...) a linguagem a auto-expresso da pessoa, ela a origem do esprito humano e da sua personalidade, s com a faculdade de falar comea o ser humano a ser humano

    em sentido prprio e profundo: a tomar posse de si e do seu mundo (o que no significa, que o

    merecimento de tutela jurdica s comece neste momento e no j a sua potencialidade para ser pessoa).

    Por esta razo no adequado o cogito ergo sum de Descartes como ponto de partida para a descoberta do mundo exterior. O ponto de partida para o homem que se busca a si mesmo e ao mundo o seu mundo a linguagem. No princpio era o verbo. A linguagem pura e simplesmente o humanum.

    (...)

    Atravs da linguagem, diz Oksaar, constri o homem a sua concepo sobre a realidade envolvente, e

    cita uma frase notvel de Karl Kraus: o mundo peneirado atravs da peneira das palavras. No mesmo sentido tambm se falou da verbalidade do mundo. (2004: 165 - 166) 11

    Inegavelmente, a linguagem jurdica, enquanto um tipo de linguagem ordinria ou natural especializada e no uma linguagem artificial, ambgua e vaga, o que d ensejo a interpretaes

    divergentes. (NEVES, 2006: 204) 12

    A linguagem, portanto, um instrumento de compreenso, j que, como afirma Santaella, nosso acesso sensvel ao mundo sempre como que vedado por essa crosta sgnica, e tambm de comunicao, servindo para a sugesto de estmulos de significaes e sentidos de um ser humano para

    o outro. O Direito, portanto, sendo interferncia intersubjetiva de comportamentos, sendo a imposio de

  • 34

    aprendemos a reconhec-la desde a infncia. H uma antiga brincadeira, popular entre

    as crianas, chamada telefone sem fio, cujo fito justamente a diverso de se detectar

    como uma mensagem simples pode ser desvirtuada, na exata medida em que na sua

    transmisso vo se interpondo novos interlocutores. Nessa interao ldica, perfilam-se

    diversas crianas; da primeira parte uma frase simples, que deve ser repetida ao longo

    da cadeia de pequenos mensageiros; o resultado que, pela dcima criana, a frase

    simples emitida no incio j se desvirtuara completamente (por exemplo, a expresso

    na hora do recreio iremos ao parquinho se transfigura em na hora do passeio

    comeremos um pouquinho). Num tal contexto, representativo da contingncia

    lingstica que se nos impe cotidianamente, assoma como imperdovel ingenuidade

    crer que uma mensagem escrita uma lei, v.g. emanada dos rgos soberanos do

    Estado, ser apreendida com sentido uniforme pelos integrantes de toda a sociedade.

    Lidar e aceitar essa indeterminao, inerente ao direito, tarefa difcil e

    invocadora de pretenses ambguas, que dialeticamente disputam espao ao longo do

    vivenciar do fenmeno jurdico. De um lado, busca-se segurana atravs da cunhagem o

    mais precisa possvel dos textos normativos. De outro, intenta-se resguardar a

    capacidade do ordenamento de dar respostas adequadas e adaptadas s circunstncias

    das situaes concretas reguladas atravs de princpios e diretrizes gerais, cuja

    densidade semntica somente se completa vista de um caso determinado. Isso

    demonstra de plano a tenso interna que pulsa ininterruptamente no interior da ordem

    jurdica, e que se apresenta como elemento propulsor de seu contnuo evolver: de um

    lado a segurana; de outro, a justia.

    Partindo-se de KELSEN (1998), no itinerrio em busca da compreenso dos

    fundamentos da interpretao jurdica, capazes de explicar saciedade os seus

    mecanismos e peculiaridades mais ntimas, no se pode contentar com as teses expostas

    na Teoria Pura. Na verdade, o aperfeioamento contnuo da hemernutica jurdica se

    modelos de expectativas de comportamento pelos agentes do poder a terceiros, inevitavelmente um

    fenmeno de linguagem e de comunicao, ou, como afirma Arthur Kaufmann, el derecho se produce a travs del lenguage. (CAYMMI, 2007: 26) 13

    Toda linguagem, e a jurdica no exceo, possui trs dimenses ou enfoques semiticos, que so a semntica, a sinttica e a pragmtica. A semntica estuda a relao do signo com o seu objeto ou

    significado; a sinttica ou sintaxe estuda, a relao dos signos entre si; e a pragmtica, a relao dos

    signos com a realidade social no processo de sua utilizao, levando em conta a relao emissor-

    receptor dos sujeitos da relao comunicativa. (idem, 2007: 31)

  • 35

    impe como necessidade emergente da prpria evoluo paradigmtica do direito, agora

    revestida de um complexo horizonte chamado Estado Democrtico de Direito. A

    superao das concluses de KELSEN, todavia, no tarefa fcil; nem por isso,

    contudo, deve ser posta de lado.

    KELSEN ofereceu duas noes bsicas para a compreenso da interpretao do

    direito. A primeira delas, vista logo acima, consubstanciou-se no reconhecimento de que

    um texto normativo pode oferecer possibilidades hermenuticas diversas, capazes de

    formar um quadrante definido dos sentidos possveis que podero ser conferidos

    norma do caso. A segunda, incidindo no momento que se segue imediatamente

    definio da moldura de interpretaes potenciais do texto, representada pela renncia

    da cincia do Direito pesquisa das razes que levam o aplicador a optar por um ou

    outro dentre os sentidos possveis anteriormente apurados. Em outras palavras, o autor

    preceitua a possibilidade do controle metdico do instante inicial do processo de

    revelao do sentido da ordem jurdica, quando a razo permitiria delimitar

    precisamente as possibilidades semnticas que um dado texto oferece, mas no do

    segundo, quando o juiz ou administrador, por exemplo, optariam livremente por um

    daqueles sentidos num primeiro momento detectados. Ou seja, a revelao do sentido da

    ordem jurdica, procedida inicialmente com controle, exatido e rigor cientfico na

    definio das interpretaes possveis que um dado texto permitiria, desaguaria, ao

    final, num timo, em descontrole e decisionismo, ainda que restritos aos lindes da

    moldura semntica previamente definida. Isso tudo, claro, da perspectiva da cincia

    do Direito, que o objeto das atenes daquele consagrado autor.

    A prtica judiciria parece confirmar, num primeiro momento, as bases lanadas

    por KELSEN. O contato diuturno com a resoluo de conflitos de interesses pelo Poder

    Judicirio deixa entrever, com efeito, certo descontrole metdico na realizao das

    opes hermenuticas por parte dos julgadores. Suas convices ntimas e histrias de

    vida parecem, de fato, se sobrepor a qualquer possibilidade racional de se definir a

    priori parmetros de controle para esse momento ntimo, representado pelo derradeiro

    instante, pela opo final, que redunda na norma individual que reger enfim o caso.

    Contribuies crticas obra de KELSEN vm sendo copiosamente produzidas

    h dcadas, e abarcar toda a literatura que hoje trata do assunto tarefa impossvel.

  • 36

    Selecionar informaes imprescindvel. Como o nosso objeto de anlise aqui ,

    primordialmente, a hermenutica constitucional, recuemos um pouco no tempo e

    voltemos a um famoso texto de Ferdinand LASSALLE, antes de adentrarmos nas

    crticas efetivamente oponveis, no particular, Teoria Pura do Direito.

    * * *

    At que ponto os fatos regulados pelo direito influenciam na sua prpria

    interpretao? Interpretar a Constituio uma tarefa que envolve apenas, como se

    poderia inferir das lies de KELSEN, um texto e o seu leitor? no itinerrio da busca

    de respostas a tais indagaes que se faz necessrio o recuo a LASSALE, e sua

    famosa, e polmica, assertiva, no sentido de que a constituio seria uma mera folha

    de papel, destituda de potencial normativo suficiente para regular as foras polticas

    efetivamente vigentes na sociedade.

    Para LASSALE, a verdadeira Constituio seria formada no por um texto

    normativo, mas sim pelas relaes de poder existentes, de fato, na sociedade. O texto

    constitucional somente adquiriria normatividade, isto , capacidade de incidir sobre

    situaes reais, disciplinando-as juridicamente, se e na medida em que correspondesse

    s relaes de poder regentes, hic et nunc, das interaes entre os atores polticos. Ao

    contrrio, se o texto constitucional deixasse de simplesmente projetar essas mesmas

    relaes de poder, seria por elas simplesmente sobrepujado. O poder regulador, enfim,

    seria dos fatores polticos estruturantes da sociedade, e no do texto constitucional. Eles,

    e somente eles, ao cabo, estabilizariam as expectativas dos integrantes de determinado

    corpo social, no que se refere s relaes de poder nele existentes. O texto

    constitucional seria redundantemente nada mais que um texto. No por outra razo,

    o autor em questo assevera que onde (...) a constituio escrita no corresponder

    real, irrompe inevitavelmente um conflito que impossvel evitar e no qual, mais dia

    menos dia, a constituio escrita, a folha de papel, sucumbir necessariamente, perante

    a constituio real, a das verdadeiras foras vitais do pas. (LASSALE, 2001: 33)

    Mais adiante, na Essncia da Constituio, apresenta-se a concluso radical

    de que os problemas constitucionais no so problemas de direito, mas do poder; a

    verdadeira Constituio de um pas somente tem por base os fatores reais e efetivos do

  • 37

    poder que naquele pas vigem e as constituies escritas no tm valor nem so

    durveis a no ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na

    realidade social: eis a os critrios fundamentais que devemos sempre lembrar.

    (LASSALE, 2001: 40)

    A base do raciocnio do autor reproduz, em parte, ainda que implicitamente, uma

    famosa diferenciao que veio por dcadas a ser objeto de anlise por parte da literatura

    jurdica, entre Constituio formal e Constituio material14

    . A primeira seria, grosso

    modo, representada pelo texto normativo, abordado e reificado friamente como coisa

    isolada dos fatos sociais por ele regulados; a segunda, por sua vez, na viso da

    LASSALE15

    16

    , equivaleria efetiva relao existente entre as foras reais de poder num

    14

    LASSALE no usa a expresso constituio material para identificar as estruturas de poder vigentes,

    qualificando-as como constituio real, contraposta constituio escrita, sistematizao que em tudo remete classificao existente entre constituio material (em sentido amplo) e constituio formal,

    assim sinttica e didaticamente exposta por Jos Afonso da SILVA (1998: 42-43): A constituio material concebida em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, identifica-se com a

    organizao total do Estado, com regime poltico. No segundo, designa as normas constitucionais

    escritas ou costumeiras, inseridas ou no num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a

    organizao de seus rgos e os direitos fundamentais. Neste caso, constituio s se refere matria

    essencialmente constitucional; as demais, mesmo que integrem uma constituio escrita, no seriam

    constitucionais.

    A constituio formal o peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um

    documento solenemente estabelecido pelo poder constituinte e somente modificvel por processos e

    formalidades especiais nela prpria estabelecidos. 15

    Que no se identifica, como se ver abaixo, com a noo de Constituio Material de outros autores,

    como, por exemplo, Jorge MIRANDA (2005: 321-322), para quem tal conceito exprime no o sentido de

    relaes de poder existentes na prtica, mas sim aqueles contedos que so considerados como

    tipicamente objeto de disciplina constitucional. Vejamos:

    I H duas perspectivas por que pode ser considerada a Constituio: uma perspectiva material e que se atende ao seu objeto, ao seu contedo ou sua funo; e uma perspectiva formal em que se atende posio das normas constitucionais em face das demais normas jurdicas e ao modo como se

    articulam e se recortam no plano sistemtico do ordenamento jurdico.

    A estas perspectivas vo corresponder diferentes sentidos, no isolados, mas interdependentes.

    II De uma perspectiva material, a Constituio consiste no estatuto jurdico do Estado ou, doutro prisma, no estatuto jurdico do poltico, estrutura o Estado e o Direito do Estado.

    (...)

    Tendo em ateno, contudo, as variaes histricas registradas, justifica-se enumerar sucessivamente

    uma acepo ampla, uma acepo restrita e uma mdia.

    A acepo ampla encontra-se presente em qualquer Estado; a restrita liga-se Constituio definida em

    termos liberais, tal como surge na poca moderna; o sentido mdio o resultante da evoluo ocorrida

    no sculo XX, separando-se o conceito de qualquer direo normativa pr-sugerida.

    Para salientar mais claramente as diferenas entre a situao antes e aps o advento do

    constitucionalismo, pode reservar-se o termo Constituio institucional para a Constituio no primeiro

    perodo e o termo Constituio material para a Constituio no segundo perodo; Constituio

    institucional ali, porque identificada com a necessria institucionalizao jurdica do poder;

    Constituio material aqui, porque de contedo desenvolvido e reforado e suscetvel de ser trabalhado e

    aplicado pela jurisprudncia.

    Como hoje a Constituio material comporta (ou dir-se-ia comportar) qualquer contedo, torna-se

    possvel tom-la como o cerne dos princpios materiais adotados por cada Estado em cada fase de sua

    histria, luz da idia de Direito, dos valores e das grandes opes polticas que nele dominem. Ou seja:

  • 38

    dado corpo social. Ou seja, contrapostos ao texto constitucional haveria os fatos

    constitucionais bsicos, a Constituio real, a servir de fundamento estrutural central

    das relaes de poder existentes na sociedade, e a reger, empiricamente, as condutas dos

    polticos profissionais e o exerccio da cidadania. A fonte bsica de apreenso do

    Direito Constitucional, assim, no seria o texto constitucional, os princpios e as

    declaraes de direito atravs dele positivados, objetivados como simples formalizaes

    de boas intenes expresses, digamos, de certo romantismo poltico-social mas sim

    as relaes sociais de poder empiricamente constatveis na sociedade. Estas sim seriam

    responsveis pela estabilizao de expectativas acerca das estruturas direcionadoras dos

    processos decisrios ou seja, da configurao das relaes polticas num dado

    Estado.

    primeira vista, os regimes totalitrios da primeira metade do sculo XX

    parecem ter dado razo s assertivas de LASSALE. O fracasso, especialmente, da

    Constituio de Weimar, com a instalao do regime nacional socialista e o predomnio

    dos fatores reais de poder vigentes sobre o texto constitucional, assomam, num primeiro

    lanar de olhos, como uma comprovao emprica irrefutvel das afirmaes daquele

    autor17

    . No Brasil, outrossim, pode-se vislumbrar exemplos neste sentido no to

    a Constituio em sentido material concretiza-se em tantas Constituies materiais quanto os regimes

    vigentes no mesmo pas ao longo dos tempos ou em diversos pases ao mesmo tempo. E so

    importantssimas, em mltiplos aspectos, as implicaes desta noo de Constituio material conexa

    com a de forma poltica.

    III A perspectiva formal vem a ser a de disposio das normas constitucionais ou do seu sistema diante das demais normas ou do ordenamento jurdico em geral. Atravs dela, chega-se Constituio em

    sentido formal como complexo de normas formalmente qualificadas de constitucionais e revestidas de

    fora jurdica superior de quaisquer outras normas. (MIRANDA, 2005: 321-322) 16

    J BONAVIDES parece identificar as noes de constituio sociolgica ( similitude da concepo de LASSALE de constituio real) e de constituio material como expresso que remete ao contedo normativo tipicamente constitucional: Do ponto de vista material, a Constituio o conjunto de normas pertinentes organizao do poder, distribuio da competncia, ao exerccio da autoridade, forma de governo, aos direitos da pessoa

    humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, contedo bsico referente composio

    e ao funcionamento da ordem poltica exprime o aspecto material da Constituio.

    Debaixo desse aspecto, no h Estado sem Constituio, Estado que no seja constitucional, visto que

    toda sociedade politicamente organizada contm uma estrutura mnima, por rudimentar que seja. (BONAVIDES, p. 80-81) 17

    Diz Konrad HESSE (1991: 10): A concepo sustentada inicialmente por Lassale parece ainda mais fascinante se se considera a sua aparente simplicidade e evidncia, a sua base calcada na realidade o que torna imperioso o abandono de qualquer iluso bem como a sua aparente confirmao pela experincia histrica. que a histria constitucional parece, efetivamente, ensinar que, tanto na prxis

    poltica cotidiana quanto nas questes fundamentais do Estado, o poder da fora afigura-se sempre

    superior fora das normas jurdicas, que a normatividade submete-se realidade ftica. Pode-se

    recordar, a propsito, tanto o conflito relativo ao oramento da Prssia (Budgetkonflikt), referido por

    Lassale, como a mudana do papel poltico do Parlamento, subjacente resignada afirmao de Georg

  • 39

    evidentes, claro ao longo de sua histria constitucional. O texto de 1891, por

    exemplo, mergulhado em relaes de poder refratrias aos ideais subjacentes ao regime

    republicano, foi absorvido pelo coronelismo e por outras prticas sociais absolutamente

    excludentes18

    . O texto de 1946, por sua vez, parece jamais ter conseguido se estabilizar

    minimamente; vigeu ameaado por quase vinte anos, num vaivm institucional marcado

    historicamente por diversas tentativas de golpe de estado e por um presidente da

    Repblica que veio a se suicidar; naufragou definitivamente em 1964, a partir de

    quando passou, irrefutavelmente, humilhante condio de mera folha de papel19.

    A tese de LASSALE, contudo, peca pela simplificao, ao pretender se amparar

    em suposta realidade que se auto-evidencia, destacada a partir de um corte

    metodolgico que pe margem importantes fatores nsitos no s idia de

    constitucionalismo, mas tambm ao prprio fenmeno jurdico.

    Direito antes de tudo norma; dever-ser, e no ser, como j defendia

    KELSEN em sua Teoria Pura. Ou seja, sistema regido pela noo de imputao, e no

    de causalidade. O argumento jurdico traz nsito em si, nesse contexto, a possibilidade

    do comando normativo no ser cumprido. A lei jurdica, ao contrrio da lei da natureza,

    no perde automtica validade quanto negada pelos fatos. Se as afirmaes acerca da

    gravidade no se confirmassem na prtica, a lei da gravidade jamais teria entrado em

    vigor; se tais afirmaes, noutro giro, aps j haverem sido confirmadas, fossem em

    seguida confrontadas pela realidade cientificamente apurada, em revelao tida

    Jellineck, ou ainda o exemplo da dbcle da Constituio de Weimar, em, em virtude de sua evidncia,

    revela-se insuscetvel de qualquer contestao. 18

    Paulo BONAVIDES e Paes de ANDRADE enfatizam:

    Entre a Constituio jurdica e a Constituio sociolgica havia enorme distncia; nesse espao se cavara tambm o fosso social das oligarquias e se descera ao precipcio poltico do sufrgio manipulado,

    o que fazia a inautenticidade da participao do cidado no ato soberano de eleio dos corpos

    representativos. (2006: 260) 19

    Em outras palavras, a Constituio de 46 no logrou se fazer presente no dia-a-dia do povo, nem mesmo demonstrar que era instrumento de participao e mudana. A ditadura do Estado Novo criou o

    mito de que as conquistas, como a legislao, por exemplo, no significavam conquistas, mas ddivas do

    poder e do seu chefe. A maioria das lideranas polticas, ao invs de trilharem o duro caminho do

    esclarecimento e da penetrao dos mecanismos de deciso democrtica pelo tecido social, preferiram o

    caminho fcil do populismo, no estilo inaugurado por Vargas. As excees, as honrosas excees,

    sempre existiram e sempre existiro, mas a verdade que a grande maioria no optou por realizar,

    tornar efetivo os princpios consagrados pela Constituio, e que deveriam ser as aspiraes mximas de

    nosso povo.

    O fato ento que a conscincia autoritria no se viu atacada em sua raiz, e o populismo se fez uma

    alternativa trilhada de maneira irresponsvel. Ningum percebeu que a Constituio por si s no

    poderia garantir os princpios expressos em seu texto. No se percebeu sobretudo que essa ambigidade

    se tornaria insustentvel por muito tempo. (idem, 2006: 416)

  • 40

    intersubjetivamente como mais prxima da verdade, a lei da gravidade seria

    instantaneamente ab-rogada. No direito, contudo, o problema mais complexo, na

    medida em que a prpria noo de norma se erige a partir da possibilidade de o

    comando nela contido se manter hgido, mesmo quando descumprido. Ao contrrio do

    que LASSALE diz, portanto, o descumprimento da Constituio, apurado na realidade

    dos fatos, no pode, por si s, levar concluso de que inexista uma norma

    constitucional posta e vinculante, que se sustenta em vigor mesmo quando descumprida.

    Afirmar que so as relaes de poder empiricamente existentes que determinam, ao

    cabo, os rumos da sociedade, no significa, nesse contexto, defender uma concepo

    real de Constituio, mas sim negar a juridicidade ou seja, a noo da Constituio

    como um documento que veicula tpicas normas jurdicas que o constitucionalismo

    inaugurado no sculo XVIII veio atribuir s pretenses de controle do poder. A noo

    de LASSALE, portanto, simplesmente no se coaduna com o que viemos a entender

    como sendo uma Constituio, aps as revolues americana e francesa. Sua

    Constituio real, enfim, simplesmente no Constituio, ao menos do ponto de

    vista jurdico. O referido autor, assim, arrojou teoria demasiado ambiciosa, que

    pretendeu ser mais realista do que a prpria realidade que pretendia retratar, qual seja, a

    realidade jurdica, que normativa, e, portanto, no se rege por nenhuma espcie de

    causalidade sociolgica, cujos mecanismos sejam definveis a priori.

    O constitucionalismo, como aquisio evolutiva20

    , unge as constituies a um

    patamar normativo diferenciado. Norma das normas, regramento e principiologia do

    exerccio do poder, acoplamento estrutural entre direito e poltica, a Constituio o

    repositrio das pretenses de liberdade e de igualdade da sociedade. o texto

    constitucional, ou melhor, a normatividade conferida quele documento, que suporta

    que, ao longo do tempo, pessoas e grupos possam traduzir, sob diferentes paradigmas, a

    sua vontade de liberdade e igualdade em lutas por direitos de liberdade e de igualdade,

    ou seja, pela efetivao prtica de uma justia que j lhes , supe-se, assegurada

    juridicamente ainda que atravs de normas providas de contedo fluido. Nesse passo,

    o discurso constitucional, porquanto normativo, potencial e instrumentalmente

    assestado transformao das relaes de poder excludentes, que porventura se

    encontrem diludas em formas de vida ou ancoradas no ethos dominante. Destituir a

    20

    Cf. LUHMANN, 1996.

  • 41

    juridicidade da Constituio, adstringindo o seu conceito s relaes de poder por ela

    disciplinadas ( realidade poltica pura, pois), assim, significa desarmar a cidadania da

    chancela jurdica que conferida s suas pretenses de emancipao, lanando-a na

    sorte certa das disputas de poder travadas margem de qualquer disciplina normativa: a

    vitria do mais forte.

    Por outro lado, as discusses em torno das assertivas de LASSALE acerca da

    Constituio real, apesar de no confirmarem a exatido de tal conceito, denotam uma

    realidade irrefutvel, que se auto-evidencia a partir dos referidos debates, qual seja, a de

    que h, com efeito, relaes de implicao recproca entre o texto constitucional e a

    realidade poltica por ele regulada. Mesmo para KELSEN, uma constituio formal

    que nada regulasse, ou seja, que