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Digesto Econômico nº 441

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Janeiro e Fevereiro de 2007

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3JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

ÍNDICE

5Perspectivas do novogovernoGuilherme Afif Domingos

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r 8Riscos e oportunidadesdo segundo mandatoAmaury de Souza

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18A evolução dosindicalismoOliveiros S. Ferreira

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34O que vem por aíOlavo de Carvalho

38Pequeno manual práticoda decadênciaPaulo Roberto de Almeida

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48Na economia, ainda maisdo mesmoRoberto Fendt

54Empreendedorismo,instituições edesenvolvimentoMarcel Domingos Solimeo

60Custo da demissão equalidade do empregoHélio Zylberstajn

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70O gás natural é oprotagonista do momentoAdriano Pires 70

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4 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030CEP 01014-911 - São Paulo - SP

home page: http://www.acsp.com.bre-mail: [email protected]

Pre s i d e nteGuilherme Afif Domingos

ISSN 0101-4218

Diretor-Resp onsávelJoão de Scantimburgo

Diretor de RedaçãoMoisés Rabinovici

Ed i to r - Ch e feJosé Guilherme Rodrigues Ferreira

Ed i to re sDomingos Zamagna e Carlos Ossamu

Editor de FotografiaMasao Goto

Editor de ArteJosé Coelho

Projeto Gráfico e DiagramaçãoEvana Clicia Lisbôa Sutilo

Gerente ComercialArthur Gebara Jr.

([email protected]) 3244-3122

Gerente de OperaçõesJosé Gonçalves de Faria Filho

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I m p re s s ã oLab orgraf

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADERua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911

PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055FAX (011) 3244-3046

w w w. d co m e rc i o. co m . b r

ÍNDICE

74O futuro da tributaçãobrasileiraGilberto Luiz do Amaral

80Apectos econômicos doBrasil que saiu das urnasMichal Gartenkraut

86Um Brasil complicadoIves Gandra da Silva Martins

92Ensino para enfrentar asdesigualdadesClaudio de Moura Castro

114Digesto Econômico: seisdécadas de debateDomingos Zamagna

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5JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

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Sergio Amaral/Agencia Pixel

Guilherme AfifDomingosSecretário do Emprego eRelações do Trabalho ePresidente da AssociaçãoComercial de São Paulo

Em sua nova fase caracterizada pelotratamento abrangente dos temas, oDigesto Econômico dedica este nú-mero a debater as perspectivas do Bra-

sil neste período de governo, abordando váriosaspectos relevantes para o destinos do País.

O jornalista Domingos Zamagna sintetiza atrajetória de mais de seis décadas do Digesto,situando-o no contexto político e econômicodo período, destacando seu papel relevante nodebate dos grandes temas nacionais e na defe-sa da livre iniciativa.

Ao entrar em sua nova fase, iniciada com onúmero de setembro/outubro de 2006, baseadonos resultados do Seminário sobre Democracia, Li-berdade e o Império da Lei, ao que se seguiu o nú-mero que apresentou alentados estudos e pro-postas sobre a política do agronegócio brasileiro,esta edição do Digesto trata das perspectivas doperíodo governamental iniciado em janeiro des-te ano, e a configuração de poder resultante daeleição de 2006, tanto no tocante ao Executivo,como no Legislativo, além dos aspectos partidá-rios e regionais. As análises realizadas procuramvislumbrar as dificuldades que o País enfrentarános próximos anos para promover as reformas emudanças indispensáveis para colocar a econo-mia brasileira em uma trajetória de desenvolvi-mento acelerado e sustentado.

O professor Oliveiros Ferreira considera, emseu artigo, que as eleições de 2006 marcaram ofim de um período e o início de outro, caracte-rizado pela "crise final da classe política e dasinstituições, personificadas nos chefes dos trêsPoderes, independentes e harmônicos entre si".Após analisar a evolução histórica e as mudan-ças das fontes de poder, e do conjunto das rela-ções entre governo e grupos sociais nas últimasdécadas, Oliveiros conclui, de forma preocu-

pante, que a desmoralização do Legislativo e odesgaste do Judiciário rompem o equilíbrio dosPoderes, o que poderá permitir que o chefe doExecutivo possa mudar a Constituição para semanter no governo depois de 2010.

Para Ives Gandra da Silva Martins, o Brasil éum País complicado que, segundo RobertoCampos, “com as mentalidades dominantes,não corre nenhum risco de melhorar”. O pro-fessor Ives analisa os problemas que o País en-frenta e não vê “com otimismo o segundo man-dato do presidente Lula, que, politicamente, se-rá pressionado pelos radicais e os medíocres.Será obrigado a partilhar o poder com outrospolíticos, com os quais não tem nenhuma sin-tonia”. Considera, ainda, que o presidente “nãoterá condições — até por filosofia própria — demexer na máquina esclerosada, nem na Previ-dência “e terá pouca vontade de obstruir os vio-lentadores da lei enquistados no MST”.

O cientista político Amaury de Souza fezuma leitura dos números saídos das urnas naseleições de 2006, com uma análise profunda so-bre os riscos e oportunidades do governo Lulano segundo mandato. Na sua visão, a consoli-dação da coalizão PT-PMDB deverá assegurarao presidente ampla base de apoio no Congres-so. Se hoje é improvável uma mudança de re-gras que possibilite um terceiro mandato de Lu-la em 2010, Amaury de Souza acha "plausível ahipótese de que o presidente opte por consoli-dar um novo pólo de poder com base na aliançaPT-PMDB, o qual poderá reconduzí-lo ao gabi-nete presidencial em 2014". Afinal, diz ele, "nãolhe faltam elementos para tanto. O lançamentodo Programa de Aceleração do Crescimento(PAC) pode dar ao segundo mandato umaagenda positiva, baseada em promessas de re-tomada do crescimento com redução da pobre-

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za e desigualdades de renda, e a inexistência deum candidato natural no PT lhe dará larga mar-gem de manobra para composições."

Por outro lado, se as medidas do PAC se mos-trarem ineficientes para destravar a economia eacelerar o seu medíocre crescimento, Amauryde Souza é da opinião de que "o segundo man-dato correrá o risco de terminar mais cedo,transformando o presidente Lula em ‘patomanco’, isto é, um chefe do Executivo incapazde manter as rédeas do governo e menos aindade fazer o sucessor. A frustração de expectati-vas, que poderá traduzir-se em vertiginosa per-da de popularidade, privará o presidente Lulada autoridade necessária para imprimir coe-rência e rumo à sua eclética base parlamentar".

Frente a um Congreso desgastado por inú-meras denúncias de corrupção, Amaury lançaluz a uma importante questão: o voto distrital,proposta defendida pela ACSP e por váriospolíticos e personalidades, como o ex-presi-dente Fernando Henrique Cardoso. O votomajoritário em distritos permite relações maispróximas e densas entre os representantes esuas bases eleitorais.

O "Pequeno Manual Prático da Decadên-cia", de Paulo Roberto de Almeida, elenca ossinais que indicam o processo de decadênciade um povo ou país. Menciona diversos exem-plos históricos tidos como “ilustrativos ou em-blemáticos” desse tipo de processo, destacan-do que “não há um elemento singular ou únicoque anuncie a decadência, mas um conjuntode comportamentos e de relações que indicaforte deterioração da solidariedade social euma crescente anomia em relação aos valoresbásicos da sociedade”. Embora Almeida nãotire qualquer conclusão, parecem existir mui-tos dos sinais de decadência apontados porele, na atual situação brasileira.

Roberto Fendt considera que o Brasil quesaiu das urnas nos reserva, na economia, “maisdo mesmo”, significando que na gestão ma-croeconômica, ninguém, em sã consciência,imagina, que se possa mexer na “tríade virtuo-sa”: regime de taxa de câmbio flexível, manu-tenção de superávits primários que mante-nham aproximadamente constante a relação dí-vida pública/PIB e o regime de metas de infla-ção. Em contrapartida, “se o mote do governo édo crescimento com inclusão”, a parte do cres-cimento foi pífia no primeiro governo e, salvo oimponderável, tem tudo para continuar pífia nosegundo”. Fendt afirma ter resistência em acei-tar “programas de assistência social como pro-gramas de inclusão social”, considerando que,pela sua natureza, podem, quando muito, ali-

viar situações de pobreza extrema, em condi-ções transitórias”. Para ele, “o que inclui essasparcelas da população na cidadania são: primei-ro, o trabalho, que traz sustento e dignidade; se-gundo, o investimento em capital humano –saúde e educação – que aumenta a produtivida-de e o rendimento; terceiro, o sentimento de quesão respeitados o direito à vida, à liberdade, àpropriedade e à capacidade de cada um esco-lher seu destino”. O economista conclui que, “setudo correr bem, teremos mais quatro anos domesmo no Brasil que saiu das urnas”. Essa pre-visão de Fendt ainda depende de que o cenárioexterno continue a ser favorável aos paísesemergentes, embora o Brasil não venha tirandotodo proveito que poderia dessa situação.

Com sua experiência de setor público e deanalista da economia brasileira, Michal Garten-kraut aponta que o Brasil saiu divido das urnasem 2006, entre os que defendem a importânciados programas de transferência direta de rendae pregam sua continuidade, e os que, mesmo re-conhecendo alguns méritos nessa política, dis-cordam de seu caráter meramente assistencia-lista, considerando-o ineficiente para resolver oproblema da pobreza. Ambos grupos, no en-tanto, expressam o mesmo anseio e perplexida-de com a baixa taxa de crescimento do País, ape-sar de um cenário externo muito favorável.

Gartenkraut aponta duas razões básicaspara essa situação, destacando que elas decor-rem da atuação de muitos governos: o baixonível de investimentos, principalmente em in-fra-estrutura, e o crescimento monotônico dotamanho do setor público. Considerando nãohaver chance de que esse quadro mude no cur-to prazo, o economista acha mais provávelque, se tudo der certo, o crescimento mais ele-vado somente será atingido ao final do atualperíodo presidencial.

Gilberto Luiz do Amaral detalha em seu ar-tigo o sistema tributário brasileiro, considera-do um dos mais complexos e vorazes do mun-do, mas que traz poucos benefícios para o ci-dadão. No ano passado, os impostos somaramR$ 813 bilhões, o que significa que cada brasi-leiro trabalhou em média 145 somente para pa-gar impostos.

Ele mostra a evolução do sistema desde oImpério até os dias de hoje e faz algumas pre-visões. "A partir de 2011, os debates sobre umareforma tributária ampla se ampliarão. Istoporque, até lá, o atual modelo tributário apre-sentará esgotamento quanto ao aumento daarrecadação de vários dos principais tributos.A implantação de um IVA – Imposto sobre Va-lor Agregado moderno será a espinha dorsal

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do novo modelo tributário. Na fase anteceden-te, haverá aumento da CPMF, mas com a suatransformação em contribuição compensató-ria com outros tributos e redução da alíquotada COFINS. O IVA resultará da fusão do ICMS,COFINS, IPI e ISS, com partilha automática desua arrecadação entre os entes federados".

A possibilidade de falta de energia caso aeconomia cresça de forma mais acelerada, e asdificuldades no suprimento de gás natural sãoanalisados por Adriano Pires, que aponta asdistorções no tocante à política energética que,além dos problemas criados pelo contenciosocom a Bolívia, ainda apresentam deficiênciasdo marco regulatório e das agências regulado-ras. Também a atuação da Petrobras no tocanteao gás é criticada por Pires, chamando a aten-ção que o virtual monopólio da empresa esta-tal no setor inibe o ingresso de novos investi-mentos. Adriano Pires defende a aprovação doprojeto de lei do senador Rodolfo Tourinho pa-ra assegurar a atração de novas empresas nasvárias etapas da produção e distribuição dogás, como forma de afastar definitivamentecrises de oferta desse energético.

Hélio Zylberstajn discute um das “questõesmais controversas e complicadas do mundo dotrabalho”, que é a da demissão de empregados,que, de um lado, afeta a segurança do trabalha-dor quanto a continuidade de sua renda, en-quanto que para as empresas é importante a li-berdade de demitir, mesmo com os custos de-correntes. Zylberstajn mostra que a rotativida-de da mão-de-obra é grande no País, e que issoimplica em elevados custos para tanto para ostrabalhadores, como para as empresas. Para ostrabalhadores, porque os custos das demissõespoderiam ser incorporados à sua renda. As em-presas, por sua vez, incorrem nos custos buro-cráticos das demissões, enquanto a rotativida-de impede o treinamento do empregado e oconseqüente aumento da produtividade, o queprejudica também a economia do País. O eco-nomista propõe uma solução criativa que po-deria beneficiar alguns setores, como um con-sórcio de empregadores de jovens, como umaforma de reduzir o custo das recisões.

O papel das instituições para o desenvolvi-mento das nações é defendido por Marcel So-limeo, do Instituto de Economia Gastão Vidi-gal da ACSP, para quem a garantia do direitode propriedade e o respeito ao contrato sãocondições fundamentais para que o setor pri-vado possa investir.

Chama a atenção de que, além de regras cla-ras e estáveis, é necessário que o cumprimentodas normas seja assegurado pelo Judiciário, e

que haja consenso da sociedade em torno dosvalores que fundamentam a economia de mer-cado. Para Solimeo, o “ambiente institucio-nal” brasileiro não é favorável ao desenvolvi-mento, pois a propriedade é constantementeagredida, os contratos nem sempre são respei-tados, são freqüentes as mudanças das regras,e a burocracia e a tributação sufocam a inicia-tiva empresarial. O economista aponta que osaspectos institucionais são negligenciados pe-lo atual governo, pelo que considera muito di-fícil que o Brasil possa crescer de forma maisacelerada nos próximos anos.

A desigualdade no Brasil é analisada emsuas raízes históricas e situação atual por Cláu-dio de Moura Castro, que coloca a educação,ao longo do tempo, como principal responsá-vel pelas diferenças de oportunidades entre asdiversas camadas da população. Aponta o"abismo da qualidade" da educação pública,que se contrapôs à expansão quantitativa doensino, e o privilégio à universidade em detri-mento dos cursos fundamentais como ele-mentos que contribuíram para a manutençãodas desigualdades que, segundo ele, é umaquestão mais de pobreza do que racial. Analisaas políticas recentes na área da educação e de-fende práticas em favor dos “talentosos po-bres”, relatando experiências bem-sucedidasnesse sentido. Para Moura Castro "combater adesigualdade significa melhorar as conquistaseducacionais dos que estão na base" o que,além de ser uma questão de justiça social é,também, um “imperativo econômico”.

Baseando-se em todas essas visões, pode-seconcluir que dificilmente o Brasil irá caminharpara uma trajetória de crescimento aceleradonos próximos anos e, o que é pior, também é bai-xa a probabilidade de que sejam realizadas as re-formas fundamentais de que o País necessita.Corre-se mais uma vez o risco de perder as opor-tunidades excepcionais que o cenário externovem apresentando. Se houver, pelo menos, umapolítica efetiva e eficaz de melhora do ensinofundamental, que permita a camada mais pobreda população construir seu próprio destino, aoinvés de continuar dependente de programasassistencialistas que perpetuam a miséria e a de-pendência, o Brasil poderá, no médio prazo, as-pirar ser uma nação mais moderna e desenvol-vida, com menor desigualdade social.

Guilherme Afif Domingos

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8 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Riscos e oportunidades

Imagine que hoje é 1º de janeiro de 2010 epergunte-se quem estará tomando posse naPraça dos Três Poderes. Uma sugestão paraorganizar as idéias. De um lado, perfile os

governadores José Serra, Aécio Neves, JacquesWagner e Sérgio Cabral, o deputado federal Ci-ro Gomes, a ex-prefeita Marta Suplicy e a minis-tra Dilma Rousseff. E do outro? Ele mesmo: opresidente Luís Inácio Lula da Silva.

Trata-se, é claro, de uma hipótese. E, com osdados hoje à mão, talvez seja a menos prová-vel. A vitória de Arlindo Chinaglia (PT-SP) ede Renan Calheiros (PMDB-AL) para a presi-dência da Câmara e do Senado indica a proba-bilidade de consolidação da aliança PT-PMDB, que deverá assegurar ao presidenteLula ampla base de apoio no Congresso e pro-ver o núcleo de seu "governo de coalizão". Co-

Terá fundamentoa especulação deque o presidenteLula tem aintenção de seperpetuar nopoder? Nas fotos,os governadoresJosé Serra,Aécio Neves,Jacques Wagnere Sérgio Cabral, odeputado federalCiro Gomes,a ex-prefeitaMarta Suplicy ea ministraDilma Rousseff.

José Patrício/AE Valter Campanato/ABr Fábio Pozzebom/ABr Wilson Dias/ABr

Roosewelt Pinheiro/ABr Marcelo Ximenez/Folha Imagem Fábio Pozzebom/ABr

mo a tendência de polarização entre dois gran-des blocos — PT-PMDB de um lado e PSDB-PFL, de outro, cercados por constelações departidos menores — não dá indícios de se dis-solver, pode-se antecipar uma acirrada dispu-ta pelo poder em 2010, que apenas com dificul-dade acomodará pretensões continuístas.

Conquanto remota, a hipótese do terceiromandato, originalmente aventada por LeôncioMartins Rodrigues 1 , tem o mérito de lançar luzsobre os dilemas que o presidente Lula enfren-tará no segundo governo e as surpresas que po-derão daí advir. Perpetuar-se no poder poderáser uma delas e o próprio presidente tem dadomargem para que se alimente especulações so-bre suas reais inclinações. O continuísmo, no en-tender do professor Rodrigues, alimentar-se-iado sucesso do segundo mandato ("não é fácil

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acreditar que, dispondo de uma aprovação, di-gamos, de 60% ou 65% no seu último ano, e ten-do uma quantidade tão grande de subordinadosna máquina petista e aliada, gente que não querperder o conforto do poder, ele mande parar ascampanhas em favor de sua permanência").

Mas o sucesso torna igualmente plausível ahipótese de que o presidente Lula opte por con-solidar um novo pólo de poder com base naaliança PT-PMDB, o qual poderá reconduzí-loao gabinete presidencial em 2014. Não lhe faltamelementos para tanto. O lançamento do Progra-ma de Aceleração do Crescimento (PAC) podedar ao segundo mandato uma agenda positiva,baseada em promessas de retomada do cresci-mento com redução da pobreza e desigualdadesde renda, e a inexistência de um candidato na-tural no PT lhe dará larga margem de manobra

para composições. Contabilize-se também, nacoluna de haveres, a ambição de ser reconhecidocomo o maior estadista da história brasileira.

Suponha-se, entretanto, que as medidas pro-postas se mostrem insuficientes para "destra-var" a economia e acelerar o seu medíocre ritmode crescimento. Neste caso, o segundo manda-to correrá o risco de terminar mais cedo, trans-formando o presidente Lula em "pato manco",isto é, um chefe do Executivo incapaz de manteras rédeas do governo e menos ainda de fazer osucessor. A frustração de expectativas, que po-derá traduzir-se em vertiginosa perda de popu-laridade, privará o presidente Lula da autorida-de necessária para imprimir coerência e rumo àsua eclética base parlamentar.

Pode-se contra-argumentar que sua espeta-cular vitória nas urnas, a altíssima popularidade

Christian Knepper

Amaury de SouzaCientista político e

sócio-diretor da MCMConsultoresAssociados

do segundo mandato

Andrea Felizolla/LUZ

Quem estará recebendo a faixapresidencial na Praça dos TrêsPoderes em janeiro de 2010?

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10 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

que desfruta e o comando das duas casas do Congresso lhe as-segurarão suficiente apoio parlamentar para superar qualqueróbice à governabilidade. Idêntica ilação poderia ter sido dedu-zida de sua também retumbante vitória em 2002. Deu-se o inver-so. Um ano e meio antes das eleições de 2006, sua imensa coalizãoparlamentar de dez partidos políticos ruiu quando veio à luz o"mensalão", um amplo esquema de pagamentos, com fundos deorigem ilegal, para incentivar a troca de partidos visando arre-banhar maiorias no Congresso e assegurar que legendas fracas eindisciplinadas votassem a favor de projetos de interesse do go-verno. Para evitar o impeachment e assegurar sua sobrevivênciapolítica, o presidente Lula abandonou aliados e correligionáriosao sol e ao sereno e passou a personificar o "povo", estabelecendocom a massa de eleitores vínculos baseados mais no conceito deidentificação do que no de representação.

Este terceiro cenário sugere que não apenas o êxito econô-mico, mas também o fracasso pode reativar o "lulismo" e aspropensões plebiscitárias que existem em estado latente nosistema político. Longe de configurar um plácido interregno,pautado pela inação e mesmice, o panorama do segundo man-dato promete ser pontuado por incertezas.

São pelo menos três os dilemas cujo desfecho terá influênciasobre o curso dos acontecimentos na próxima quadra. Sem re-fletir uma ordem de importância ou precedência, são eles (1)um processo de involução institucional e política, caracteriza-do pela crescente fragmentação das forças político-partidá-rias; (2) as perdas da classe média e os limites da política de re-

distribuição sem crescimento e (3) a necessidade de se colocarum limite aos abusos de poder do Executivo e ao descrédito doCongresso perante a opinião pública.

INVOLUÇÃO INSTITUCIONAL E POLÍTICA

A acepção corriqueira de governabilidade tem a desvanta-gem de fazer crer que o Brasil seria ingovernável, não fosse aformação de coalizões majoritárias no Congresso, comple-mentada por adequada representação dos partidos aliados noministério. O que essa acepção dissimula é a natureza intrin-sicamente instável de um modelo político mais afeito a blo-quear do que a tomar decisões. 2

O nosso peculiar arranjo constitucional sobrepõe um presi-dente eleito por maioria absoluta e dotado de vastos podereslegislativos a instituições políticas criadas, para dar poder deveto a minorias. No Congresso, a representação é fragmentadaentre múltiplas legendas, impedindo a formação de maioriasestáveis, e o Judiciário não hesita em invocar o direito das mi-norias para barrar tentativas de simplificar e fortalecer o qua-dro partidário, a exemplo da recente decisão do Supremo Tri-bunal Federal, que derrubou a cláusula de barreira.

O resultado é um complexo jogo estratégico, no qual o Exe-cutivo busca contornar o Legislativo e o Judiciário (pelo abusodas prerrogativas de editar medidas provisórias e de contingen-ciar o orçamento federal), ao passo que os outros dois poderesbuscam refrear o Executivo, inflingindo-lhe derrotas pontuais

Gráfico 1

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11JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

ou, no limite, buscando deslegitimar o poder presidencial.Nem todos os presidentes desde 1988 optaram por formar

grandes coalizões parlamentares. O presidente Fernando Col-lor alternou o uso indiscriminado de medidas provisórias comapelos ao "povo" para pressionar o Congresso de fora paradentro até que o fracasso da política econômica trouxe sua po-pularidade ao rés do chão. Outros presidentes, como Fernan-do Henrique, tiveram a seu favor maiorias parlamentares im-portantes, sustentadas por três a cinco partidos.

O que distingue as coalizões de partidos que o presidente Lulaarticulou no Congresso, entretanto, é seu tamanho exagerado, di-fícil manejo político e alto custo fiscal. Entre 2002 e 2006, o númerode partidos na base governista passou de dez para onze; o núme-ro de deputados aliados ao Planalto cresceu 26% (passando de254 em 2003 para 321 agora) e o de senadores, 45% (de 31 para 45).Essas super-coalizões refletem uma tendência de crescente frag-mentação partidária do Congresso (ver o gráfico 1).

Computar o número de partidos é insuficiente para que se pos-sa aferir o grau de fragmentação na Câmara, posto que a maiorparte deles são legendas nanicas, sem expressão eleitoral ou par-lamentar. O que conta é o que a literatura especializada chama denúmero efetivo de partidos, uma medida que pondera o númerode legendas pelo número de cadeiras conquistadas. Quantomaior este número, maior a fragmentação partidária.

É fácil entender porque o número de partidos efetivos pas-sou de 2,8 para 8,7 entre 1986 e 1990. O número de cadeiras con-troladas pelos dois maiores partidos à época, o PMDB e o PFL,caiu de 77% para 37%. No governo Fernando Henrique, obser-vou-se incipiente concentração do poder partidário (o númeroefetivo de partidos caiu de 8,1 para 7,1). Mas a proliferação departidos após a eleição do presidente Lula reverteu a tendên-cia (o índice voltou a subir, passando de 8,5 para 9,

Sem um esforço deliberado para fortalecer o sistema de par-tidos, reduzindo o seu número e reforçando a disciplina, tor-na-se virtualmente impossível assegurar apoio parlamentarestável ao governo sob tais condições. Com 63% da Câmara e55% do Senado, poder-se-ia concluir que o presidente Lula temhoje suficiente apoio para aprovar sua agenda legislativa. En-tretanto, embora majoritária, a coalizão governista nem sem-pre é coesa e seu comportamento tende a acompanhar as va-riações da popularidade presidencial.

No primeiro mandato, a base lhe foi fiel enquanto o presi-dente manteve-se popular. Mas se desfez tão logo os escânda-los de corrupção passaram a corroer-lhe o prestígio popular,paralisando o Congresso. Hoje, a popularidade do presidenteLula está em alta, mas há razões para se crer que a eventualfrustração das expectativas de crescimento pode afetar o seuprestígio e mirrar sua coalizão parlamentar.

OS GANHOS DOS POBRES E AS PERDASDA CLASSE MÉDIA

Quem se debruça sobre os resultados da eleição e reeleiçãode Lula depara-se com duas discrepâncias significativas. Em2002, Lula venceu em todos os Estados, exceto Alagoas, e suavotação foi proporcionalmente mais alta nas áreas mais desen-volvidas. Em 2006, foi derrotado em onze Estados no primeiro

turno e em sete no segundo (com destaque para as regiões Sul,Sudeste e Centro-Oeste) e seu apoio foi proporcionalmentemaior nos municípios mais pobres, majoritariamente concen-trados no Norte e Nordeste e mais beneficiados pelo Bolsa Fa-mília. 3 Os gráficos 2 e 3 resumem os dados pertinentes.

O que se constata é um maciço deslocamento da base eleitoralde Lula em direção aos grotões e à massa de eleitores mais po-bres e menos escolarizados e, portanto, mais suscetíveis de se-rem influenciados por programas de transferência direta de ren-da, como o Bolsa Família e pelo aumento do salário mínimo edos benefícios previdenciários e assistenciais. Encarnando aimagem de um patriarca que pune as "elites egoístas" e zela pe-los interesses do "povo", o presidente Lula recompôs sua base deapoio, compensando as perdas da classe média do Sul e Sudestepela adesão dos pobres do Norte e Nordeste.

Ao arregimentar uma vasta clientela de excluídos, o "lulis-mo" gerou uma crise em todos os partidos, sobretudo no PT. 4

Embora eleito pela legenda, Lula mostra-se cada vez mais dis-tante dela e das bases sociais que ela reivindica representar. Suaenorme popularidade obrigou também o PSDB e o PFL a re-verem estratégias para, na pior das hipóteses, sustar a atual tra-jetória de declínio eleitoral.

É menos claro, entretanto, porque a classe média se afastou deLula em 2006 após ter cerrado fileira com os eleitores mais pobrespara lhe dar uma avalanche de votos em 2002. 5 Em geral, a res-posta tem a ver com o medíocre crescimento econômico do País.Para fins de comparação, o Brasil contabiliza desde 2000 uma mé-dia anual de crescimento de 2,7% do PIB contra 6,5% da Índia,6,7% da Rússia e 9,4% da China. A falta de dinamismo da econo-mia desvalorizou a educação como garantia de emprego e redu-ziu as chances de mobilidade social, gerando na classe média ge-neralizada apreensão quanto ao futuro.

De maneira mais específica, a classe média foi duramente afe-tada pelo processo de redistribuição sem crescimento que ocor-reu entre 2001 e 2006. Como se o déficit público fosse a forma

Após o mensalão, Lula abandonoualiados e correligionários ao sol e ao

sereno e passou a personificar o povo.

Antonio Cruz/ABr

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12 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Gráfico 2

Gráfico 3

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possível de fazer justiça social, o presidente Lula preferiu o ca-minho de intensificar uma política redistributiva baseada naforte expansão das transferências de renda e generosos reajustesdo salário mínimo, com repercussão direta sobre os benefíciosprevidenciários e assistenciais. Acoplada à inflação baixa e cré-dito farto e acessível, essa política deu resultados surpreenden-tes. Apenas em 2004, observa Marcelo Neri, "a renda média dotrabalho cresce 3,3% ao ano, mas a renda trabalhista dos pobresaumenta 16,2% somente neste ano, o que pode ser rotulado decrescimento chinês". 6

Transferir renda significa necessariamente tirar de um e dar aoutro, via de regra pelo aumento da carga tributária. O ponto asalientar é que o sucesso do Bolsa Família, do aumento do saláriomínimo e da maior oferta de empregos de baixa qualificação tevepor contrapartida o empobrecimento da classe média. 7 De 2001em diante, o poder aquisitivo da classe média desabou relativa-mente ao das classes mais pobres (ver o gráfico 4).

Estas mudanças são fontes de insegurança e incerteza, com for-te impacto sobre as percepções e o comportamento político daclasse média. O crescimento insuficiente, o aumento do desem-prego e a deterioração da qualidade de vida afastaram gradati-vamente a classe média do governo. Não é descabido imaginarque o ressentimento gerado pela perspectiva de descenso socialtenha se somado à desilusão com os escândalos de corrupção e odespedaçamento da imagem ética do PT, sintetizada na admissãopelo presidente Lula de que "o PT apenas fez o que todos os par-tidos brasileiros sistematicamente têm feito".

Paulo Pampolin/Hype

A popularidade deLula frente aoseleitores está emalta, mas afrustração dasexpectativas decrescimento podeafetar o prestígio.

Gráfico 4

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O tempo dirá se esse afastamento indica mudança mais pro-funda no ânimo político da classe média, evocando um distanteparentesco com o "udenismo" dos anos 50 e 60, ou se não passa defenômeno passageiro, que se desfará aos primeiros sinais de re-tomada mais vigorosa do crescimento. Em qualquer hipótese, osurgimento dessa clivagem forma o pano de fundo do segundomandato, prenunciando um clima volátil de opinião pública,com potencial para fazer sentir sua influência sobre a populari-dade presidencial. Sob este prisma, a questão consiste em saber seserá possível mobilizar a expectativa de crescimento e transfor-má-la em capital político para a travessia do segundo mandato.

Não são poucos nem triviais os indícios de que a meta decrescimento acelerado possa ser frustrada nos próximos anos.O que o governo se dispõe a fazer para "destravar" a economiae alcançar um crescimento de 5% ao ano é implementar o Pro-grama de Aceleração do Crescimento (PAC), um pacote de me-didas positivas, porém tímidas.

Estudo recente 8 sobre o México argumenta que suas taxasmedíocres de crescimento derivam da combinação de "armadi-lhas de desigualdade" — estruturas que perpetuam a desigual-dade econômica, social e política — com instituições demasia-damente fracas para impedir que grandes interesses empresa-riais e corporativistas continuem a usufruir rendas, mesmo queisso custe a perda de dinamismo da economia. Algo se fez parafortalecer as instituições brasileiras e o ambiente onde atuam po-líticos e partidos foi significativamente alterado pela Lei de Res-ponsabilidade Fiscal, pela modernização administrativa e pelaredução do tamanho do setor público via privatizações.

A continuidade da política macroeconômica do governoanterior pelo governo Lula assegurou expressivo aumento dosuperávit primário, estabilizou a relação entre a dívida líquidado setor público e o PIB, trouxe a inflação para os níveis maisbaixos da história recente e assegurou extraordinário aumentodo comércio exterior. Mas a falta de investimentos anula a ex-pectativa de crescimento sustentado nos próximos anos.

O cerne do problema é o aumento dos gastos correntes dogoverno federal pari passu com a expansão da carga tributária,que já beira 38% do PIB. O crescimento desenfreado da despe-sa reduziu a quase nada o investimento público. Atualmente,ele representa apenas 0,9% do PIB, enquanto os gastos corren-tes atingem mais de 18% do PIB, consumindo 6% em despesasde custeio e transferindo a subsídios, subvenções e programasprevidenciários e assistenciais outros 12,2%.

Os gastos com aposentadorias e pensões são excessivamenteelevados face às receitas e necessidades de investimento e vêmcrescendo a taxas insustentáveis. Não obstante a isto, governo nãose dispõe a empreender reformas previdenciária e trabalhista ou aestimular o investimento privado, fortalecendo as agências regu-ladoras e implementando um marco regulatório adequado. Já sevê, portanto, que as travas do crescimento têm origem política. Aatual restrição financeira da União é fruto de um longo processode conflito e acomodação entre interesses organizados e não seráfacilmente desfeita, sobretudo por um governo que considera nãoter recebido mandato para fazê-lo. 9 Ao invés disso, o presidenteLula optou por perseguir a miragem do crescimento acelerado co-mo a universal panacéia para reduzir desigualdades sociais semsubverter os arranjos que beneficiam interesses organizados.

REFORMAS E ANTÍDOTOS

Após quase uma centena de parlamentares terem sido objetode denúncias de corrupção na última legislatura da Câmara, nãosurpreende o desgaste do Congresso perante a opinião pública.Um número ínfimo de eleitores acredita que os deputados e se-nadores representam e defendem os interesses da sociedade(3%). Preguiçosos (84%), desonestos (55%), insensíveis aos inte-resses da sociedade (52%) e mentirosos (49%) são alguns dos epí-tetos que ilustram a degradação da imagem do Congresso. 10

Não obstante a isto, o Congresso está longe de ser o único ounem sequer o principal problema de governabilidade ou con-duta ética. Disseminou-se no País o descrédito do Congresso,sobre quem recaiu o desgaste gerado pelos escândalos de cor-rupção. Preservou-se o Executivo, por outro lado, a despeitoda participação decisiva de alguns de seus integrantes na mon-tagem dos referidos esquemas.

Bem mais danosa ao Congresso tem sido a assunção decompetência legislativa pelo Executivo (e crescentementepelo Judiciário) e a virtual perda do seu poder de decisão so-bre os gastos públicos devido ao "contingenciamento" da exe-cução orçamentária. Liberar o pagamento de emendas par-lamentares tornou-se instrumento de barganha do Executivopara obter votos em decisões de seu interesse no Congresso.

Adensar os vínculos de representação entre eleitores e par-lamentares e revitalizar o Legislativo, mudando padrões ins-titucionais de relacionamento com o Executivo e recompondoo equilíbrio entre os dois Poderes, devem ser as prioridades dareforma institucional neste quadriênio.

1. Reformar o sistema eleitoralEntre as limitações do modelo proporcional vigente merecem

destaque (1) a ênfase exagerada na representação de minorias, re-legando a um distante segundo plano a formação de maiorias ne-cessárias para governar; (2) a proliferação de siglas que debilita aestrutura partidária e (3) a impossibilidade de formação de vín-culos consistentes entre os eleitores e representantes eletivosquando a disputa eleitoral se dá entre centenas de candidatos, emcircunscrições excessivamente amplas ou populosas.

Quais são os resultados práticos da operação desse mo-delo? As eleições legislativas de 2006 fornecem farto mate-rial ilustrativo:

1. Apenas 32 deputados federais conseguiram superar in-dividualmente o quociente eleitoral. Os demais forameleitos pelas "sobras" do partido ou da coligação de par-tidos.

2. Partidos e coligações apresentam o maior número possí-vel de candidatos, transformando correligionários emadversários. O número médio de candidatos a uma ca-deira na Câmara Federal foi 9,8; nas Assembléias Esta-duais, 11,6.

3. O sistema atual "esteriliza" um enorme volume de votosdados a candidatos que não são eleitos. Em 2006, mais de30 milhões de votos terminaram nesta categoria.

4. As coligações dominam as eleições proporcionais. Em 2006,81% dos deputados federais foram eleitos por coligações.Apenas 97 deputados foram eleitos por um único partido.

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5. A distribuição de cadeiras não corresponde exatamenteao número de votos amealhado pelos partidos. O PT teve14,9% dos votos válidos mas elegeu apenas 83 deputados(16,2% das cadeiras). O PMDB teve menos votos (14,5%)mas elegeu 89 deputados (17,3% das cadeiras).

6. Dois meses após as eleições legislativas, as pesquisas indi-cam que um terço dos eleitores não se lembra em quem vo-tou para deputado federal ou estadual. Quatro anos maistarde, a proporção sobe para 70%.

O projeto da Comissão Especial de Reforma Política da Câ-mara de Deputados não é suficiente para superar as deficiênciasdo nosso modelo proporcional. Em essência, propõe o financia-mento público de campanhas, proíbe as coligações partidáriasnas eleições legislativas e promove a eleição de parlamentarespor lista fechada, isto é, os eleitores votam apenas na legenda e osvotos são distribuídos conforme uma lista de candidatos previa-mente hierarquizada pela convenção partidária. Em 2006, ape-nas 9,6% dos votos válidos foram dados a legendas; os demais90,4% foram dados a candidatos. Eliminar o voto personalizadopode distanciar ainda mais os eleitores do processo eleitoral.

O voto majoritário em distritos relativamente pequenosgeograficamente delimitados (uma área contígua onde resi-dam cerca de 250 mil eleitores), com a eleição de um único can-didato por distrito, tem óbvias vantagens em comparação como modelo proporcional. Eleições majoritárias em distritos uni-nominais aumentam a inteligibilidade da competição política;permitem relações mais próximas e densas entre os represen-tantes e suas bases eleitorais e facultam aos eleitores cobrar dosrepresentantes responsabilidade no encaminhamento dequestões do interesse deles. 11

Deve-se também ressaltar que o voto distrital majoritário ten-de a exercer forte influência sobre a estrutura partidária, estimu-lando a concentração de forças políticas, as quais podem even-tualmente evoluir para grandes coalizões de partidos ou até mes-mo para o bipartidarismo.

2. Restaurar o equilíbrio de poder entre oExecutivo e o LegislativoNo Brasil, o presidente da República dispõe de vastos po-

deres legislativos, que lhe permitem controlar o que é votado ecomo votam os parlamentares em relação a projetos de seu in-

Com 63% da Câmara e 55% do Senado, Lula tem hojesuficiente apoio para aprovar sua agenda legislativa.

Rafael Neddermeyer/AE

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teresse. O veto total ou parcial, que só pode ser revogado pelamaioria absoluta do Congresso, e o direito exclusivo da iniciarlegislação relacionada ao orçamento são alguns desses pode-res. Entretanto, o poder de editar medidas provisórias, comforça de lei, é o principal instrumento de controle do presiden-te sobre a agenda do Congresso.

Outro instrumento de controle sobre o Congresso é o con-tigenciamento de recursos e a discricionariedade na execuçãoorçamentária. Desde 1988, prevalece a tese de que o orçamentoé apenas autorizativo, desobrigando o Executivo de executar ototal das despesas previstas sob o pretexto de que as estima-tivas de receitas tendem a ser sistematicamente infladas peloCongresso. Assim, a inserção de emenda parlamentar ao or-çamento não assegura o efetivo pagamento da despesa, facul-tando ao Executivo barganhar politicamente a liberação de re-cursos em troca de votos em matérias de seu interesse. Nãosurpreende que a maior parte da legislação de iniciativa doExecutivo seja transformada em lei pelo Congresso.

As medidas provisórias, instrumento aparentado aos de-cretos-lei do regime militar, constituem um dos dispositivosmais controversos da Constituição de 1988. O Plano Real, porexemplo, foi implementado por medida provisória, editadaem 1994 e reeditada 65 vezes durante um período de seis anosaté ser finalmente aprovada pelo Congresso em 2000.

Os abusos se multiplicaram ao longo do tempo, com o Exe-cutivo editando medidas provisórias "comezinhas", sobre ques-tões sem aderência aos requisitos constitucionais de relevância eurgência. Em 2001, o Congresso aprovou emenda constitucionalproibindo a reedição de medidas provisórias e determinandoque elas passariam a trancar a pauta da Câmara ou de Senadocaso não fossem votadas dentro de 45 dias a contar da data de suaedição. Esperava-se que a mudança refreasse a sofreguidão doExecutivo de legislar por decreto, pois o congelamento da pautaafetaria seus projetos de lei. Ao contrário, as medidas provisó-rias continuaram a ser editadas no mesmo ritmo.

Segundo levantamento feito pela Mesa da Câmara a pedidodo site Congresso em Foco, 56% das sessões deliberativas nobiênio 2003/2004 tiveram início com a pauta trancada por me-didas provisórias. Em 2005, esse percentual subiu para 77% atéatingir em 2006 impressionantes 82%.

Em conseqüência, mudou a estratégia parlamentar de apro-var legislação para restringir o poder do governo de editar me-didas provisórias. Trata-se agora de inverter a lógica das me-didas provisórias, estabelecendo os casos em que o Executivopode editá-las. Em fevereiro de 2006, o Senado aprovou emdois turnos emenda constitucional proibindo o uso de medi-das provisórias em matéria tributária. O projeto foi encami-nhado à Câmara, onde tramita na Comissão de Constituição eJustiça. Projetos similares podem abrir caminho para a imple-mentação gradual de mudanças que culminem com a revoga-ção do poder do presidente de governar por decreto.

Se existe hoje relativo consenso a respeito da necessidade dese limitar o poder do presidente da República de editar medidasprovisórias, o debate sobre o orçamento impositivo e o contin-genciamento de gastos é, na melhor das hipóteses, incipiente.

Quando o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) pro-pôs o orçamento impositivo (PEC 22/2003), a reação foi de des-

crença e estranhamento. Como abrir mão de um instrumentoque impediu o descalabro fiscal? Como passar o comando daexecução orçamentária para as mãos de parlamentares que senotabilizaram pelo abuso de emendas paroquiais ou engaja-mento em práticas de corrupção?

A realidade é mais complexa. Destinar recursos para redutoseleitorais é uma tendência universal, pois deles dependem aschances de sobrevivência eleitoral dos parlamentares. O queconstitui anomalia é o contingenciamento de despesas pelo Exe-cutivo para barganhar o apoio dos parlamentares em votaçõesde seu interesse. Em uma democracia, o poder de decidir sobreos gastos públicos deve ser prerrogativa exclusiva de represen-tantes com mandato popular e a execução de despesas não podeestar subordinada ao arbítrio do Executivo.

A afirmação de que o orçamento já é impositivo porque aquase totalidade das receitas é vinculada, isto é, direcionadapor lei para determinado gasto (previdência e assistência so-cial, educação, saúde etc.) e a maioria das despesas é obriga-tória configura um sofisma. Na verdade, o uso indiscriminadodo contingenciamento tende a estimular a criação de novasvinculações de receitas e novas despesas obrigatórias. 1 2 A s-sim, a busca de proteção das rubricas por interesses organiza-dos engessa cada vez mais o orçamento.

O Senado deu urgência à decisão de rever as regras de elabo-ração, tramitação e execução do orçamento federal ao aprovar noano passado a emenda constitucional que torna o orçamento im-positivo e obriga sua execução tal como aprovado pelo Congres-so. O projeto não exclui, embora limite, a possibilidade de o Exe-cutivo contingenciar a execução orçamentária, matéria que deresto foi regulamentada pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

O contigenciamento total ou parcial ou mesmo o cancela-mento de dotações orçamentárias poderão ser feitos mediantesolicitação do presidente da República ao Congresso até 120dias antes do encerramento da sessão legislativa. A solicitaçãodeve ser acompanhada de justificativas de natureza técnica,econômico-financeira, operacional ou jurídica e tramitará emregime de urgência. Se não for votada nesse período, a solici-tação será considerada aprovada.

É compreensível que o governo resista ao orçamento imposi-tivo sem a mudança prévia das regras de tramitação da propostaorçamentária no Congresso, o que requer alterações que vão doRegimento Interno à Constituição. No mesmo espírito, a contra-partida do orçamento impositivo deveria ser a ampliação da li-berdade do Executivo de alocar recursos sem as amarras de vin-culações orçamentárias. A Desvinculação de Receitas da União(DRU) já demonstrou a exequibilidade dessa iniciativa. Uma es-tratégia possível seria definir as vinculações de receita no PlanoPlurianual (PPA), onde teriam validade por quatro anos, ao invésde deixá-las na Constituição, onde permanecem irredutíveis àsmudanças de prioridade que se processam na sociedade. 13

CONCLUSÃO

A experiência histórica indica que quando um presidenteimbuído da crença de que a eleição por maioria absoluta lheconfere legitimidade superior à dos demais poderes confrontaum Congresso corroído e desmoralizado pela corrupção e au-

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tocomplacência forma-se o caldo de cultura propício para amanifestação de pulsões plebiscitárias.

Vêm se avolumado em anos recentes propostas de reformatendentes a debilitar ainda mais os partidos e o Congresso.Não poucas vezes, o presidente Lula tem deixado transpare-cer o desejo de governar ao largo do Congresso. Em plena

campanha eleitoral, aderiu com sofreguidão ao que qua-lificou de "genial idéia" de juristas da OAB: a convo-

cação de uma Assembléia Constituinte exclusiva ecomposta por notáveis para aprovar a reformapolítica. Nem tem faltado em seu partido quemdefenda o direito do presidente da República

de convocar plebiscitos e referendos sem au-torização do Congresso. A tentativa de

depredação da Câmara dos Deputa-dos em 2006 por uma malta de mili-tantes do Movimento pela Liberta-ção dos Sem-Terra (MLST) tambémevidenciou a virulenta hostilidadeà atividade parlamentar que grassanas bases da organização.

Para preservar o equilíbrio institu-cional e coibir o surgimento de presi-dentes autocráticos é necessário for-

talecer o Congresso, adensando os vínculos de representaçãoentre os parlamentares e seus eleitores e devolvendo a represen-tantes eletivos a prerrogativa de fixar prioridades para os gastospúblicos. É precisamente quando o presidente aposta todas asfichas em um desenvolvimento mais vistoso, sem dar mostrasde equivalente disposição para enfrentar a tríade formada poruma Previdência deficitária, uma legislação anacrônica do tra-balho e uma administração pública ineficiente e perdulária, quetorna-se imperativo fortalecer a democracia representativa.

1 Entrevista a Gabriel Manzano Filho, "Estratégia é criar condiçõespara um terceiro mandato", Estado de São Paulo, 23 de janeiro de2007.2 Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, "O futuro da democracia:cenários político-institucionais até 2022", Estudos Avançados,20 (56), 2006.3 Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, "As bases municipais da votação deLula em 2006", Fórum Nacional Internet, 2007,w w w. f o r u m n a c i o n a l . o rg . b r / f o r u m / p f o r u m 6 2 a . a s p4 Ver, a esse respeito, a entrevista de Leôncio Martins Rodrigues,"Cientista político diz que os pobres obrigam partidos a mudar decara", Época, 24 de fevereiro de 2007.5 Dados de pesquisas de opinião são resumidos por Carlos Marchi,"Programas sociais mudaram base de Lula", Estado de São Paulo,7 de maio de 2006, e por Julia Duailibi, "Dividir para governar",Veja, 2 de setembro de 2006.6 Marcelo Neri, "Destrinchando o crescimento e a estagnaçãotrabalhistas", Valor Econômico, 30 de janeiro de 2007.7 Ver José Roberto Mendonça de Barros e Sérgio Vale, "As perdas daclasse média", Valor Econômico, 26 de dezembro de 2006. "O quese percebe é que a criação de emprego se dá nas faixas de renda até 3salários mínimos", registram os autores. "Acima dessa faixa há

destruição de emprego".8 Isabel Guerrero, Luís Felipe López-Calva e Michael Walton, TheInequality Trap and its Links to Low Growth in Mexico,manuscrito inédito, novembro de 2006. Ver também FranciscoH.G. Ferreira e Michael Walton, "The Inequality Trap", Financeand Development, 42 (4), December 2005.9 As raízes históricas do conflito entre gerar e capturar renda, esteúltimo com ativo apoio do Estado, são analisadas por BolívarLamounier e Edmar Bacha, "Democracy and economic reform inBrazil" in Joan Nelson (org.), Precarious Balance: Democracy andEconomic Reforms in Eastern Europe and Latin America, OverseasDevelopment Council, 1994.10 "Pesquisa Veja/Ibope: Os políticos no fundo do poço", Veja, 31 dejaneiro de 2007.11 Bolívar Lamounier, "Brasil, país de vários futuros" in João Paulodos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque (orgs.),Brasil, um país do futuro?, Editora José Olympio, 2006.12 Edilberto Carlos Pontes Lima e Rogério Boueri Miranda, "OProcesso Orçamentário Federal Brasileiro" in Marcos Mendes (org.),Gasto Público Eficiente, Topbooks-Instituto Fernand Braudel, 2006.13 Ver Edilberto Carlos Pontes Lima e Rogério Boueri Miranda,op.cit..

O voto distritalmajoritário permiteuma relação maispróxima entre osrepresentantes e asbases partidárias.

Fernando Barbosa/Ag. O Globo

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A evolução dosindicalismoE a mudança da relaçãocapital-trabalho

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Assembléia noEstádio de VilaEuclides, emmarço de 1979.Em cima de mesase sem microfone,Lula discursavapara os queestavam à frente,que repetiam emcoro para quemestava atrás.Foto reproduçãodo livro "Imagensda Luta".

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Se for possível dizer que há momentosna história de um país que marcam ofim de um período e o início de umoutro, melhor dizendo de um proces-

so, as eleições de 2006 foram esse momento eesse marco. Elas indicam, a um tempo, o triun-fo do Sistema e a crise final da classe política edas instituições personificadas, se assim pode-mos dizer, nos chefes dos três Poderes "inde-pendentes e harmônicos entre si" em que aConstituição de 1988, nisso seguindo todas asdemais republicanas, divide a União.

Comecemos pelo Sistema.O Sistema, hoje, deve ser visto de prisma di-

ferente daquele através do qual o enfoquei nosanos 60. Pelo que então escrevi, ele se consti-tuía de um conjunto de relações informais en-tre governo, empresário com ou sem represen-tação sindical e lideranças sindicais de traba-lhadores. Essas relações permitiam que os in-teresses de empresários e trabalhadores, que arigor poderiam ser dados como contraditó-rios, se harmonizassem no Estado em detri-mento da autonomia de ação da classe operá-ria. O Sistema se apresentou pronto e acabadoem 1943 (sendo construído durante o período1930/37), quando o governo passou a contro-lar os sindicatos operários e patronais, fiscali-zando a aplicação do Imposto Sindical. Lou-vando-me em Mannheim, dizia, então, que es-se controle retirava das relações de trabalho(que o sociólogo alemão situava no que cha-mava de matriz irracional da vida social) suacondição de elemento inovador das relaçõessociais, além de impedir o livre desenvolvi-mento das forças produtivas. Mais que isso, ocontrole da aplicação do Imposto Sindical fa-zia das lideranças operárias e patronais quase-reféns do Ministério do Trabalho.

Essa subordinação era mais sentida no se-tor operário, cujas lideranças se viam leva-das, em muitas circunstâncias, a buscar apoiopolítico nos capitães de indústria e liderançasempresariais para defender-se de pressões,políticas ou não, legítimas ou não, dos agen-tes do Ministério. Esse apoio exigia uma con-trapartida nem sempre pública: as liderançassindicais dos trabalhadores muitas vezes seviam obrigadas a atender aos interesses daslideranças empresariais e às vezes de capitães(que então agiam como tal) de setores indus-triais, e as cúpulas das organizações sindicaisa atender aos interesses imediatos do partidoque ocupasse o governo.

Essa organização sindical tinha sua contra-partida naquela da Previdência Social: os ins-titutos de aposentadoria e pensões (IAPs) das

diversas categorias profissionais eram contro-ladas pelo mesmo Ministério do Trabalho (ePrevidência Social), o que fazia dos sindicatosoperários e dos IAPs verdadeiros "currais elei-torais do governo", parafraseando a observa-ção de Engels sobre o governo de Bismarck.

Da perspectiva teórica da necessidade de asrelações de trabalho não serem controladas pe-lo governo, que era a que me inspirava naquelaépoca, nada a acrescentar ou retirar, hoje. A rea-lidade mudou, no entanto. No governo Sarneydeu-se a grande transformação nesse Sistemaem que elementos contraditórios por natureza(produtividade à parte, o operário quer melho-res salários, enquanto o patrão exige maior pro-dução ao mesmo custo) se conciliavam no pla-no do Estado. Foi naquela administração que oMinistério do Trabalho deixou de fiscalizar aaplicação do Imposto Sindical, transferindo-seesse controle para as assembléias sindicais queas direções, que se beneficiam do Imposto, ma-nipulavam a sua vontade. A organização sindi-cal saiu, assim, do controle governamental epassou na prática ao domínio das lideranças.Da mesma maneira, diminuindo a área de in-fluência dos governos, a Previdência Social foraunificada no período político anterior e no lu-gar de "n" institutos de previdência, havia ape-nas o delegado ministerial para o Estado, ten-tando pôr ordem numa organização que já da-va sinais de esclerose, provocada em grandeparte pela mudança nos critérios de contribui-ção, o Estado deixando de dar sua parte naconstituição dos fundos de pensão.

Outra grande alteração que se verificou nogoverno Sarney foi que as centrais sindicais,não previstas na CLT de 1943 (e que podiam,por não terem existência legal, ser tratadas co-mo ilegais segundo os interesses dos diferen-tes governos), passaram a ter existência para-legal: sua existência foi aceita por todos, go-verno, patrões e operários e elas passaram acompetir em representatividade (e na práticasuperando-as) com as confederações por cate-gorias previstas pela organização sindical de1943: trabalhadores na industria (CNTI), em-presários na Indústria (CNI) etc. O que não im-pediu, talvez pelo contrário tenha facilitado,que os adversários da CUT na luta pelo contro-le de mais sindicatos — portanto das verbasdestinadas às centrais sindicais — se tenhamvalido de velhas ligações para afirmar-se e so-breviver enquanto organização.

Esse novo quadro da organização sindicalcompletou-se com a Constituição de 1988 que,afora consagrar o Imposto Sindical como "con-tribuição", estabeleceu que os sindicatos (pa-

Nelson Almeida/AE

Oliveiros S. FerreiraDoutor em Ciências Sociaispela Faculdade deFilosofia, Letras e CiênciasHumanas/USP, professorda PUC-SP, escritor ejornalista

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tronais ou de operários) podem cobrar uma"contribuição confederativa" dos membrosdas categorias. Os sindicatos viram, assim, re-forçado seu poder econômico-financeiro e pu-deram, sem sacrifício das atividades normais,destinar parte da arrecadação mensal às cen-trais sindicais. A conseqüência política dessamudança estrutural foi que as lideranças dascentrais operárias passaram a ter uma posiçãode poder no jogo político geral, a qual teria si-do impossível alcançar mesmo no períodoJoão Goulart. A prova disso está na indicação— sem o menor protesto de parte dos empre-sários — de um ex-presidente da CUT para oMinistério do Trabalho no governo Lula, e naeleição de Paulinho, da Força Sindical, paradeputado federal.

Tomadas isoladamente, essas mudanças po-dem pouco significar para alguns; quando ascolocamos lado a lado e examinamos suas re-percussões na sociedade e na Política (isto é, naGrande Estratégia), seu significado é profundo,pois permitiram a alteração das relações que sedão no triedro Governo-Patronato-SindicatosOperários. Essas relações eram e são políticas,portanto de dominação e subordinação, e vi-nham pelo menos de 1943, para não dizer 1930com a subida de Vargas ao poder. E a alteraçãoteve como resultado uma maior autonomia daspartes que se relacionam com o governo — em-bora este continue tendo grande poder, na me-

dida em que controla as macropolíticas: econô-mico-financeira, fiscal e cambial e pode, sendoo caso e a oportunidade, mudar com o apoio desua maioria no Congresso a legislação sindicalpara reforçar seu poder.

As mudanças profundas na relação entre ogoverno e os sindicatos obrigam a que se revejao Sistema; tanto mais que as alterações no cam-po sindical vieram acompanhadas de profun-das transformações no terreno da economia emdois momentos distintos: um, o governo Collorcom a abertura a machado das aduanas; outro,iniciado nesse mesmo governo, continuado node Itamar Franco e consagrado no de FernandoHenrique Cardoso, com as privatizações.

A alteração nas relações entre o governo e asforças sociais afetou o Sistema — obrigando àrevisão da definição que dele dei e da descri-ção das forças sociais em presença e de como serelacionam. Introduzo, para isso, dois concei-tos que em outra oportunidade considereifundamentais para a compreensão dos pro-cessos políticos: Ordem e Revolução, formasmentais de ver o mundo e o processo social quese espelham em partidos na práxis social.

O Partido da Ordem, na definição clássi-ca, é aquele que tem como lema Propriedade,Família, Religião, Ordem. O Partido da Re-volução não tem lema, mas é facilmente ca-racterizável pelas idéias que defende. Elasnão se limitam a negar as estruturas estatais

O Estado Novo foiuma variante do

castilhismo-borgismo, que

podemos chamar decastilhismo-

varguismo, que tudofez para garantir

a Ordem e aPropriedade contraassaltos já visíveis,

especialmentedepois da IntentonaComunista de 1935.

Reprodução

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22 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Getúlio Vargas abriu asportas ao capitalestrangeiro sem reduzira influência do Estadono processo dedesenvolvimento.

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de dominação e aquelas outras espelhadasna Família, na Religião, na Propriedade e naOrdem. A Revolução pressupõe uma trans-formação radical, de fond en comble, de tudo oque existe. Os que a defendem à outrance nãotêm idéia precisa de como as instituições so-ciais se organizarão no futuro. Para eles, oprocesso revolucionário definirá o caráterdas instituições — e é sintomático que as re-voluções inspiradas no marxismo clássico emesmo no leninismo das primeiras horas te-nham tido como princípio e fim não a des-truição, mas sim o desaparecimento, o pere-cimento do Estado ao longo do processo quese iniciaria com a ditadura do proletariado.Essa era uma proposição teórica sem amparona História; daí a idéia dela ter sido semprereferida às jornadas de 1848 na França, naAlemanha, na Áustria e na Boemia, e à Co-muna de Paris de 1871.

Podemos dizer, sem receio de errar, que apartir de 1960 (pouco mais, pouco menos) oPartido da Ordem, no Brasil, deixou de insistirem "Religião e Família": na primeira, porque aTeologia da Libertação cindiu a ligação entrePropriedade e Religião; na segunda, porque arevolução dos costumes, sobretudo sexual,erodiu as bases da família tradicional. O que fi-cou do antigo lema foi "Propriedade e Ordem",esta para garantir aquela diante da desorgani-zação das estruturas sociais provocada pelasgrandes migrações internas, o aumento extre-mamente rápido da população e, não nos es-queçamos, a inflação.

A transformação seria melhor dizer suadescaracterização do Partido da Revoluçãoao longo desse processo, foi sutil. Ela não serácompreendida se não tivermos presente que,a partir da posse de Vargas na chefia do go-verno em 1930, é nitidamente visível uma va-riante no Partido da Ordem que afeta a "Pro-priedade" para garantir a "Ordem". Segundoo Gen. Góes Monteiro o castilhismo-borgis-mo inspirou todo o período 1930/45. GóesMonteiro fazia referência a dois presidentesdo Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos eBorges de Medeiros. Castilhos governoucom uma Constituição por ele feita, inspira-da, segundo dizia, nos princípios de AugustoComte, pai do Positivismo francês, princí-pios esses que se traduziam na fórmula "di-tadura republicana": centralização do Poder,serviços públicos estatais, atenção às reivin-dicações do proletariado para que pudesse seincorporar com dignidade ao Estado — cujaorganização obedeceria aos princípios do"Estado Positivo", ordenado e agindo segun-

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do princípios científicos, segundo os ensina-mentos de Comte.

Hoje é possível dizer que o Estado Novo foiuma variante do castilhismo-borgismo, quepodemos chamar de castilhismo-varguismo,que tudo fez para garantir a Ordem e a Pro-priedade contra assaltos já visíveis, especial-mente depois da Intentona Comunista de1935. Para tanto, era necessário que o Estadointerviesse não apenas no processo socialcom a CLT, mas também na ordem econômi-ca. Como "cérebro social" (cf. Comte), o Esta-do poderia (e deveria) organizar a vida socialpara que se mantivesse a Ordem. A maneirade atender aos preceitos do positivismo cas-tilhista foi garantir aos trabalhadores algunsdireitos — maneira segura, para os castilhis-tas que vinham do Sul e para a Igreja Católicada Rerum Novarum e da Quadragesimo An-no, de assegurar a Ordem. E a CLT rompia oantigo conceito de propriedade, que fazia doDominus o senhor absoluto da Casa e dos queviviam nela, a propriedade não tendo funçãoalguma a não ser satisfazer os desejos do Se-nhor, que tinha direito de vida e morte sobreos que nela viviam.

A intervenção na ordem econômica teve osentido de resguardar, no processo de desen-volvimento econômico, a predominância doEstado e, portanto, no jogo internacional, a so-berania nacional. Não importa discutir, aqui eagora, as vantagens e desvantagens dessa in-tervenção e da estatização subseqüente. O queimporta reter é que Getúlio Vargas foi o autorde uma forma de associação do Estado com osmodernos Domini, a qual permitiu que o Bra-sil se inserisse de outro modo no cenário inter-nacional, abrindo as portas ao capital estran-geiro sem reduzir a influência do Estado noprocesso de desenvolvimento econômico. Es-sa fórmula, a rigor enunciada e praticada tãosó em poucos setores, foi expressa em discur-so — creio que aquele em que Vargas anun-ciou pelo rádio o Estado Novo — e era sim-ples: o capital estrangeiro é bem-vindo sem-pre que houver, no empreendimento, a asso-ciação do governo.

Mais do que o castilhismo-borgismo, o cas-tilhismo-varguismo foi a versão brasileira daDitadura Republicana de Comte, mesmo quetivesse de violentar os princípios federativos doautor do Curso de Filosofia Positiva. O EstadoNovo caracterizou-se no plano externo pelo re-conhecimento das servidões impostas pelageografia (vale dizer, não romper com os Esta-

dos Unidos, mas buscando manter a indepen-dência, o que conseguiu até janeiro de 1942,quando rompeu relações com a Itália e a Alema-nha na esteira do ataque a Pearl Harbour), e noplano interno pelo predomínio do Executivo,pela imposição de um sistema de ensino inspi-rado no francês, mas voltado a preparar qua-dros para a sociedade moderna (a bifurcaçãoentre Clássico e Científico no sistema Capane-ma), e pela preocupação com a industrializaçãoe com a incorporação do proletariado e do pa-tronato ao Estado ao fazer dos sindicatos ór-gãos de colaboração com o poder público, comoestava na Carta de 1937: "Art. 138 A associaçãoprofissional ou sindical é livre. Somente, po-rém, o sindicato regularmente reconhecido pe-lo Estado tem o direito (de impor contribuiçõesa todos os seus associados) e exercer em relaçãoa eles funções delegadas de poder público".

(Um fato curioso, que deve vir entre parên-teses, mas cuja compreensão é fundamental pa-ra o bom entendimento do Estado Novo e doperíodo que se lhe seguiu: confiante no poderaglutinador do Estado e em sua capacidade le-gal de mobilização, o castilhismo-varguismodescurou da realidade fundamental da Políti-ca: a organização. O "queremismo" de 1945 nãoera uma "organização" como a entendiam os di-tadores europeus dos anos 30; era, no máximo,uma cópia canhestra da "Sociedade 2 de de-zembro" com que Luis Napoleão, o sobrinho doCorso, mobilizou o lump enprole tari at de Parispara seu golpe de Estado em 1852.)

Em 1954, ascidades do Rio de

Janeiro e a de SãoPaulo foram osteatros em queCarlos Lacerdaencontrou sua

audiência parafomentar a crise

que levaria aosuicídio de Vargas.

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No pensamento positivista original, a Or-dem não se confundia com a preservação dostatus quo pré-revolucionário (1789). No casti-lhismo-varguismo a idéia de Ordem confun-dia-se com o próprio regime que soube cons-truir ao longo dos anos que vão de 1930 a 1945.Esse regime tinha suas formações sociais dedefesa; permitam-me a imagem militar, eraum quadrado fortificado. Um dos lados era oExército do qual, estranhamente, Getúlio Var-gas confessava em seu diário ser prisioneiro.Outro, já depois de 1931, eram as novas lide-ranças sindicais que nasciam bafejadas porum regime que, ao defender a organização daclasse operária e criar um arcabouço legal paraproteger os trabalhadores, sustentava o direi-to de propriedade, mas num conceito não ro-mano. O terceiro lado do quadrado fortificadoem que Vargas sempre se defendeu era a asso-ciação com as lideranças empresariais de SãoPaulo seduzidas pelo seu nacionalismo, que

deixou claro no discurso com que anunciou ànação a implantação do Estado Novo. O últi-mo lado do quadrado era o mais frágil e pra-ticamente sem reservas para defendê-lo quan-do e se necessário: a tentativa de construir umanação com base na confraternização de todosos brasileiros num só povo (ainda que misci-genado). O Dia da Raça, instituído para ser co-memorado a 19 de abril, foi o esforço maiorque deu a esse lado, que sabia fraco, de seuquadrado fortificado de defesa.

Não foi difícil ao Partido de Ordem Casti-lhista (esta, creio, a definição que melhor reco-bre o castilhismo-varguismo de 1930 a 1945)vencer o Partido da Revolução. O ano de 1935,com os movimentos insurrecionais sobretudono Nordeste e no Rio de Janeiro, veio somar-se,reforçando-a, à visão diria tenebrosa que se ti-nha do bolchevismo triunfante na URSS, con-solidada pela percepção do que o comunismoateu poderia significar para países "inverte-

13 de março de1964, quandoGoulart fez ofamoso comício daCentral, protegidopelos tanques e pelaPolícia do Exército,nele pregando areforma agrária eouvindo Brizola eoutros pregarem arevolução.

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brados" como a Espanha de 1936. Se o Partidoda Ordem Castilhista pôde impor-se ao Parti-do da Revolução, não conseguiu igual tento aoter de contrapor-se aos que sustentavamidéias democratizantes e liberais. No 29 de ou-tubro de 1945 não teve como se opor aos libe-ral-democratas que, para depor a pessoa físicade Vargas aliaram-se às Forças Armadas e aquantos, interventores do Estado Novo, viramna prevista Redemocratização pelas Armas amaneira de continuarem usufruindo as benes-ses decorrentes do apoio dado a Vargas nos úl-timos três anos ou últimos meses.

Para que se compreenda o que veio depois, épreciso ver que, se o 29 de outubro permitiu aunião dos liberais e daqueles falsos democra-tas com o Exército de Dutra e a FAB de Eduar-do Gomes (Dutra e Eduardo souberam neu-tralizar Góes e o Exército castilhista na reuniãodecisiva daquele dia), o pleito de 2 de dezem-bro daquele ano permitiu o triunfo de um er-satz a um tempo de castilhismo-varguismo ede regime democrático com a eleição de Dutrae de quantos vieram das hostes getulistas paraaquele período governamental que chamo deRepública Democrática Risonha e Franca de1946 num e noutro momento, por adesão aoscargos e vantagens pessoais e sociais.

Voltando ao que nos interessa, cabe lembrarque a estrutura sindical montada pelo EstadoNovo persistiu até o governo Sarney, como as-sinalado atrás. A República Risonha e Francade 1946, porém, já não tinha mais a inspirá-la oideal castilhista — o próprio Getúlio (o presi-dente de 1951 a 1954) teve de haver-se com umsistema de governo em que o Executivo não ti-nha os poderes de decisão que a realidade re-clamava que fossem seus (não foi Café Filho,ao suceder Vargas, quem disse que com aConstituição de 1946 não era possível gover-nar?). Mais ainda, desde 1946, o ministro doTrabalho que controlava os sindicatos não eramais uma delegação da vontade do presiden-te, como em 1937/45, mas fruto de um acordopolítico-eleitoral. Por outro lado, a interven-ção do Estado na economia era cuidadosa-mente acompanhada e ferozmente criticadapor políticos e jornais, que podiam verbalizaras restrições de importantes parcelas da opi-nião pública a esse tipo de "atentado" contra odireito de propriedade.

O Sistema que o castilhismo-varguismomontara teve de ceder às injunções dos parti-dos que compunham a maioria governamentale podiam reclamar, como butim, o controle doMinistério do Trabalho "e Previdência Social", épreciso não esquecer. O Estado, assim, desde

1946 cedeu lugar ao governo (aos partidos, àadministração) quando se tratou de construirou reforçar a solidariedade dos interesses con-trários de patrões e operários, cuja oposição setornava cada dia mais evidente e dramática.

A democracia de 1946 encerrou o ciclo cas-tilhista-varguista do Sistema e a política par-tidária passou a ser o fator determinante daocupação p ro - t e m p o re do Ministério do Tra-balho. A autonomia dos sindicatos obtida nogoverno Sarney encerrou essa nova fase, emque a Previdência passou a ser cuidada comoassunto meramente técnico-administrativo.Como se apresenta, então, hoje, o Sistema,tal qual o considero?

Ainda que bancos e demais organizaçõesdo sistema financeiro tenham ocupado papelproeminente nos negócios públicos, graças àpouca atenção dada ao problema da dívida in-terna, a agricultura, a indústria, o comércio eos bancos e similares são solidários na defesade interesses consubstanciados num lemamais restrito do que o inicial do Partido da Or-dem. Agora, a solidariedade dá-se apenas emtorno de "Propriedade e Ordem". O desenvol-vimento econômico permitiu que a distribui-ção de benesses atraísse aqueles que deveriam(na formulação teórica) formar em campos ad-versos. O próprio Partido da Revolução fazparte, hoje, do Sistema, de cujos benefícios seaproveita, como demonstrou o aparelhamen-to do governo pelos quadros do PT no primei-ro mandato do sr. Luís Inácio Lula da Silva. Oimportante a registrar é que o Partido da Re-volução ingressou no Sistema (transforman-do-se no apêndice "à esquerda, populista" doPartido da Ordem) com pleno conhecimentodos "príncipes do Sistema" e todos os serviçosde informação. Os "príncipes" são aquelas per-sonalidades sociais que se beneficiam pessoalou institucionalmente do Sistema e que in-fluenciam as políticas governamentais paraque não se afastem do "reto caminho".

A rigor, esse ingresso e essa desnaturaçãoderam-se a partir de 1945, quando o PartidoComunista elegeu representantes ao Congres-so (Câmara e Senado), a Assembléias Legisla-tivas estaduais e Câmaras de Vereadores. Su-pôs-se que depois de 1947, quando o PCB teveseu registro cassado e seus representantes fo-ram afastados das Casas Legislativas, que nãoteria mais ação nem influenciaria ainda que in-diretamente a política externa (o faux pas dePrestes, dizendo, ao ser provocado por um jor-nalista, que ficaria com a Rússia: "No caso deguerra do Brasil contra a URSS, V. Exa. ficarácom quem?", foi a prova de que o partido es-

A intervenção doEstado na economia eracuidadosamenteacompanhada eferozmente criticada porpolíticos e jornais quepodiam verbalizar asrestrições de parcelas daopinião pública.

O próprioPartido daRevolução faz parte,hoje, do Sistema,de cujos benefíciosse aproveita, comodemonstrou oaparelhamento dogoverno pelosquadros do PT noprimeiro mandatodo sr. Luiz InácioLula da Silva.

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tava ligado à URSS) ou interna. O manifesto dePrestes, convocando à luta armada logo de-pois da cassação do registro do partido peloTSE, tranqüilizou a consciência dos que julga-vam a cassação necessária, embora antidemo-crática. A cassação não impediu que elemen-tos menos notórios do partido se elegessempor várias das legendas legais ou que o PCBapoiasse candidaturas presidenciais ou a go-vernos de Estados, com pleno conhecimento,de parte dos que recebiam seus votos, de queestavam lidando com um partido ilegal. O re-latório Kruchev, de 1956, denunciando os cri-mes de Stalin e abrindo crise interna nos par-tidos comunistas no mundo, serviu paraapressar a assimilação do Partido da Revolu-ção pelo Partido da Ordem. Foi o momento emque muitos intelectuais ligados ao velho par-tido stalinista, decidem mostrar sua face de-mocrática e buscam aproximar-se, desta oudaquela maneira, dos empresários "naciona-listas e esclarecidos". A "ilegalidade-legal" emque o Partido Comunista viveu pelo menos até1964 (em 1972 "descobriu-se' um vereador co-munista na cidade de São Paulo, velho mili-tante conhecido por todos como sendo do"partidão") permitiu que ingressasse alegre-mente no Sistema. Tanto mais que, no governoJK, com pleno conhecimento do governo, pas-sou a controlar sindicatos importantes e aaproveitar-se do Imposto Sindical.

Em outras palavras, em 1964, quando seabre um novo período na história do País, oPartido da Revolução tinha sido absorvido pe-lo Partido da Ordem, como, aliás, sempre su-cedera na história do Brasil. Perseguido até1979, ele voltou triunfante em 1982 (diretas pa-ra governadores) e depois em 1986 (Consti-tuinte). Mais não é preciso dizer: a Ordem ab-sorveu a Revolução, primeiro o PCB, depois oPT — ambos necessitados de sustentar umamáquina pesada, grande demais para viverdas contribuições dos seus membros.

É preciso ver, na análise de situação quepretendemos fazer, que também o PT deixou-se atrair pelos "ouropéis" (ou seriam as sedu-ções burocráticas?) do Sistema. A história doPartido dos Trabalhadores só poderá ser feita(e, melhor ainda, compreendida) da perspec-tiva da Ordem e da Revolução. Quando sur-giu nos estertores do regime dos presidentesmilitares, era visivelmente um membro doPartido da Revolução. Seus inspiradoreseram o Lênin de antes de outubro de 1917 e oGramsci dos Cadernos na leitura do Euroco-munismo italiano. Leninista, na medida emque não sabia qual socialismo construir, em-

bora soubesse que deveria chegar ao poderpara iniciar a grande transformação; segui-dor do Gramsci p rê t - à- p or t e r na medida emque procurava apresentar-se à sociedade co-mo um partido em busca de um novo pacto,que reuniria as forças consideradas demo-cráticas com aquelas que pretendiam umatransformação mais ou menos profunda dasrelações sociais. O assalto armado ao poderfoi descartado, mas o "centralismo democrá-tico" não. As mais variadas correntes nele seabrigaram, todas se unindo na condenaçãoda Ordem e do passado — tal como exige opensamento revolucionário — e a promessade um futuro que seria construído por todosao longo da luta.

A CUT, primeiro, e o MST, depois, foramsuas vanguardas. Lembrando o Partido Na-cional Socialista, a primitiva CUT foi a tropa deassalto do PT, sua SA. A ocupação violenta defábricas, especialmente montadoras, os famo-sos "chiqueirinhos", em que os trabalhadoresque não aderiam eram feitos cativos, e a quei-ma de automóveis nas ocupações caracteriza-ram um tipo de movimento a rigor pouco le-ninista, mas violento o suficiente para assustare colocar o PT como réu de crime de Lesa-Or-dem. Sucede que os líderes da CUT fizeramuma análise de situação errada: as ações vio-lentas não condiziam com o leninismo e muitomenos com Gramsci e a idéia de muitos de queapenas uma tática social-democrata poderialevar o partido ao poder.

Seria interessante verificar os passos que le-varam a CUT a desistir de fazer a revoluçãoocupando fábricas e obrigando trabalhadoresa fazer greve. Quaisquer que tenham sido osmeios de que lançou mão o Partido da Ordem,o fato é que a CUT desistiu de suas ações semque houvesse necessidade de um expurgo noestilo da "noite dos longos punhais", em que aliderança das SA foi eliminada fisicamente.Com isso, o PT pôde incorporar-se tranqüila-mente ao Partido da Ordem e daí ao Sistema,tendo como líder o sindicalista dos anos70/80, hábil negociador aceito por todos quequeriam contrapor ao sindicalismo de Vargas— sempre a figura de Getúlio a governar asações — um "sindicalismo moderno".

Assim, como por obra e graças de Pedro Ma-lasarte, a CUT voltou ao leito confortável dasnegociações, sabendo que os empresários ti-nham como arma nas negociações o "sindica-lismo de resultados" da Força Sindical. Asduas centrais integraram-se no Sistema e o PTcom elas. O proletariado, nesse jogo de sutile-zas e gentilezas, desapareceu enquanto refe-

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rência da ação do que poderia ser o Partido daRevolução; hoje, os operários juntam-se emmassa para festejar o 1º de maio na Praça Cam-po de Bagatele ou na Avenida Paulista, em SãoPaulo. Todos os anos, são milhões de trabalha-dores que se reúnem para ouvir bandas que es-tão na moda e disputar prêmios valiosos. Otriunfo da Partido da Ordem, não castilhista-varguista, deu-se com a eleição de Luis InácioLula da Silva para a presidência da República.Foi o triunfo do novo Sistema.

Outro fator que contribuiu para a mudançada face do Sistema foi a chamada globalização.Convenhamos que mais do que em decorrên-cia desse fenômeno ainda hoje mal compreen-dido e podendo ter nomes diferentes — tantochamado de globalização, quanto de mundia-lização — as transformações na economia e,via de conseqüência, na sociedade brasileirasforam devidas à abertura dos portos Collorconsule, a qual levou a que princípios de orga-nização e método (O&M) já postos em práticanos Estados Unidos e Comunidade Econômi-ca Européia passassem a ser adotados no Bra-sil com os resultados previsíveis no campo doemprego, inclusive dos bem qualificados — e,neste setor, talvez mais que em outros. Outrofator, que tem sido pouco analisado, é a inter-nacionalização da economia brasileira: cembilhões de dólares registrados no Banco Cen-tral como transferência de capitais brasileirospara aplicação direta no exterior. É este umprocesso que ao mesmo tempo em que torna asempresas menos vulneráveis a possíveis alte-rações de rumo na política governamental,

obrigará o governo, enquanto representantedo Estado, a proteger essas empresas de ex-propriações por parte de governos estrangei-ros. O fato deverá exigir redobrada atençãodos governos, especialmente quando o casoda Petrobras na Bolívia é recente e exemplar.

As mudanças registradas no mecanismo doSistema (as relações nem sempre corretas en-tre lideranças sindicais e empresariais, essas eaquelas com o governo) corresponderam aodeclínio do Estado castilhista-varguista e àstentativas de sua substituição pelo modelo li-beral (erroneamente conhecido como neolibe-ralismo) enquanto padrão de desenvolvimen-to econômico, mais ainda de ação do Estadosobre a sociedade e seu destino. Mas não foiapenas o modelo castilhista-varguista que en-trou em crise. A centralização de ações reivin-dicatórias de alguns setores da classe operárianas centrais tipo CUT ou Força Sindical, quepassaram a integrar o Partido da Ordem e, por-tanto, o Sistema, foi elemento necessário paraque o processo de acomodação aos princípiosde O&M próprios da globalização — o famoso"achatamento das hierarquias de direção" —se desse sem atritos sociais de vulto, o que fezdesaparecer do processo social seu elementopolítico, que Carl Schmitt tão bem resumiu naexpressão "amigo-inimigo".

O que pretendo dizer é que os "princípiosO&M globais" passaram a viger no Brasil semque os prejudicados por eles se organizassempara manter, no confronto direto ou indireto

Folha Imagem

O PT pôdeincorporar-se ao

Partido da Ordem edaí ao Sistema,

tendo como líder umsindicalista, hábilnegociador aceito

por todos quequeriam contrapor

ao sindicalismode Vargas.

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com os empregadores, o status quoanterior. Se-rá estudo dos mais interessante verificar comoa ideologia do denominado neoliberalismo(vamos ceder ao modismo) passou a confor-mar a consciência daqueles setores sociais nasempresas que podemos chamar de "quadros"médios e superiores. A permanência do casti-lhismo-varguismo enquanto idéia foi possíveltambém porque havia, de parte desses "qua-dros" e também da própria classe operária, aconsciência de que tinham direitos estabeleci-dos e assegurados por lei — e um deles, o maisbanal, era o da obrigação do empregador de re-gistrar o empregado para que esse pudesse go-zar, mais tarde, dos benefícios da estabilidadeou do FGTS, mas sobretudo da aposentadoria.O fenômeno novo, fruto dos "princípios de"O&M global", é que a consciência desses di-reitos como acicate para a ação desapareceu,apesar de que eles ainda sejam legalmente vi-gentes: daí a informalidade das relações de tra-balho dos "quadros" que, para assegurar o em-prego (e também em alguns casos fugir aos ri-gores do Imposto sobre a Renda), passam aconstituir sociedades por cotas limitadas emnome das quais vendem sua força de trabalho.Fato semelhante, se não idêntico, verifica-setambém no proletariado (se podemos usar apalavra): os trabalhadores e os "quadros" infe-riores se organizam em cooperativas que ven-dem, elas, a força de trabalho de seus membros— não os trabalhadores eles próprios. Nesseprocesso, em que a consciência da sobrevivên-cia prevalece sobre a do direito legal, desapa-rece a figura do "inimigo" e os "quadros" e ospróprios trabalhadores decidem aceitar as re-gras do jogo, obedecendo à primeira Lei daNatureza, que é a da sobrevivência. Mas desa-parecendo o "inimigo", diria Schmitt, desapa-rece a "Política". Este é o fato que devemos terem mente ao tentar vislumbrar o que será oBrasil daqui para a frente. Antes, porém, vol-temos a março de 1964.

Para o melhor entendimento da crise que teveseu desfecho em março de 1964, creio ser neces-sário voltar ao esquema "amigo-inimigo" deSchmitt. Voltar, porém, também no tempo, por-que março de 1964 não se compreenderá se nãotivermos em mente que ele significou, para mui-tos dos que se envolveram na ação, o fim do "ini-migo", o castilhismo-varguismo, representado,à época, por João Goulart, herdeiro de Vargas.

Getulio Vargas foi, desde 1930, o inimigoapenas de uma fração do Partido da Ordem,"inimigo" tal qual o conceituou Schmitt. O mo-

vimento liderado por Getúlio Vargas e GóesMonteiro não chegou a ser propriamente umarevolução, embora tivesse, ao longo do proces-so que culminou em 1937, lançado as bases pa-ra um ersatzde incorporação das massas traba-lhadoras na Polis. Foi essa face do castilhismo-varguismo, à qual se acrescentou o fato de quemembros do Partido Democrático de São Pau-lo haviam dado sua colaboração aos adversá-rios de Borges de Medeiros em 1923, que fezque se adensasse no horizonte paulista o fan-tasma da revolução, que os movimentos ope-rários de início do século, mas especialmentedepois de 1920 e a Intentona de 1935 já haviamfeito surgir nas névoas de um futuro incerto(na Europa). A oposição ao castilhismo-bor-gismo — e o temor da incorporação dos traba-lhadores como classe na Polis, afora, no que serefere aos Ilustrados de São Paulo (o grupo doPartido Democrático que formou com Arman-do de Salles de Oliveira), a sensação de queVargas traíra os ideais de 1930 e impedira o"progresso ilustrado" que se anunciara em1924, com a criação do Partido Democrático,além de lhes haver roubado o poder em 1937com o golpe de Estado — explica a oposiçãodesse grupo paulista a tudo o que lembrasseVargas e o antagonismo que levará os Ilustra-dos à journée des dupes de 1964. A oposição (nomelhor sentido de Schmitt) dos Ilustrados aocastilhismo-varguismo está expressa na fór-mula "Nação contra Império" (em que Nação

Moreira Mariz/Folha Imagem

A estrutura sindicaldo Estado Novo

persistiu até ogoverno Sarney. A

Constituição de1988 permitiu a

cobrança dacontribuição

confederativa,reforçando o poder

financeiro dossindicatos.

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resume a bandeira da "Civilização" que Sar-miento desfraldara contra a "Barbárie" de Fa-cundo Quiroga, que no Brasil se consubstan-ciaria no Império vindo dos Pampas).

É preciso ter presente que a oposição a Var-gas é de círculos restritos (civis e militares) queencontram, na aliança suposta entre ele e o Par-tido Comunista, motivos e razões para arrastarnas jornadas de 1954 uma parte da opinião pú-blica. Cabe observar que, se em 1945 a políticapôde traduzir-se na ação militar contra Vargas,os adversários do ditador que ia ser depostonão tinham programa substitutivo para apre-sentar, já que a nação que muitos então defen-diam era apenas uma idéia que traduzia a De-mocracia Liberal que se acreditava haver triun-fado nos campos da Europa — apesar da vitóriamilitar da URSS e eleitoral do Partido Traba-lhista na Inglaterra, derrotando Winston Chur-chill. Nem era necessário, naquele momento,um programa alternativo, pois o que motivouos generais em comando no Rio de Janeiro nãofoi o rumo político que Vargas estaria impri-mindo a seu governo, mas o temor de que, coma nomeação de seu irmão, Benjamim, para achefatura de Polícia do Rio de Janeiro, ele esti-vesse preparando um golpe em conluio com oscomunistas de 1935. As eleições de dezembrodaquele ano realizaram-se em nome da demo-cracia e da união nacional contra o fascismo ge-tulista. Se programa houve, foi para opor-se àvigência da Lei Malaia, que João Alberto haviaelaborado para conter abusos do poder econô-mico. A prova de que grupo nenhum tinha umprograma alternativo ao do Estado Novo estáem que toda a herança getulista permaneceucomo ele a deixara em outubro de 1945 — espe-cialmente a Consolidação das Leis do Trabalho,em que assentava o primitivo Sistema.

Vargas foi sempre, até 1964, o "inimigo"— deum grupo político que tinha uma determinadaidéia, ainda que vaga, de como organizar o Paísa partir da educação; uma idéia de Nação. Cabever, contudo, que embora esse grupo fosse limi-tado eleitoralmente a São Paulo, a idéia de Na-ção enquanto oposição à Barbárie de FacundoQuiroga encontrava adeptos no Sul e mesmono Nordeste, especialmente na Bahia, de ondevieram os Mangabeiras, que marcaram a Repú-blica de 1946, e Juracy Magalhães, opositor doEstado Novo — mas primeiro presidente da Pe-trobras de Vargas... E é preciso também lembrarque, para os generais que o haviam deposto epara os políticos que haviam formado na opo-sição ao Estado Novo, Vargas era o gênio do malque havia dado o golpe de 10 de novembro de1937 e poderia ter repetido a façanha (ele e o ir-

mão, Prestes e os queremistas!) se em 1945 nãotivesse sido deposto...

De 1946 a 1951, governo Dutra, Vargas foiexorcismado pelo acordo interpartidário quereuniu PSD/UDN/PR para enfrentar a ameaçacomunista, mas também, creio, a do PTB e a deVargas, que havia sido eleito senador por dezEstados da Federação. De 1950 (data de sua elei-ção) a 1954 (data do suicídio), ele foi marcada-mente o "inimigo" e contra ele se lançou o CiddoPartido da Ordem, Carlos Lacerda, e mobiliza-ram-se forças militares que trabalharam, maistarde, para impedir a posse de Juscelino e queaparentemente triunfariam em 1964, quando oherdeiro de Vargas, por isso mesmo "inimigo",foi derrotado juntamente com o que apareciacomo Partido da Revolução.

Atente-se para o fato de que o Ato Institu-cional nº 2, extinguindo os partidos políticosque existiam desde 1945, simplesmente con-sagrou o fim da classe política que não vinhaencontrando, como assinalei acima, quemrepresentasse os interesses das classes so-ciais — se é que alguma vez souberam expri-mi-los além das reivindicações vis a que sereferira, antes de Marx, um filósofo alemão.Da vigência do AI-2 à edição do Ato Institu-cional nº 5, a política desapareceu, porquenão havia "inimigos". A oposição, consenti-da e vivendo do consentimento militar, pre-tendia apenas a restauração da democracialiberal; nunca esteve em jogo, nesse período,um programa alternativo por mínimo quefosse. Entendendo-se por "programa alter-nativo" o enunciado claro de ações políticaspor parte de um novo governo, numa novaformação estatal que viesse substituir as en-grenagens políticas e jurídicas, sociais emprimeiro lugar diria Lassalle, que o Partidoda Ordem tinha estabelecido há muito.

A redemocratização em 1979 (e não em1985, como se costuma afirmar) em nada mu-dou essas engrenagens, da mesma maneiraque a Constituição de 1988 apenas as refor-çou, tendo o governo Sarney permitido, comoassinalei atrás, que os sindicatos criados pelocastilhismo-varguismo conseguissem umamaior autonomia, embora, convém deixarclaro, só sobrevivam porque o Estado lhes ga-rantiu, na Constituição, o Imposto Sindical e aContribuição Confederativa. No instante emque o PT deixou-se seduzir pelo poder e re-vestiu-se de todas as roupagens do Partido daOrdem, a política, mais uma vez, deixou deexistir. Não há, no Brasil de hoje, "amigos" e"inimigos". Não os há organizados, quero di-zer, e insistir nisso.

No instante emque o PT deixou-seseduzir pelo poder erevestiu-se de todasas roupagens doPartido da Ordem, aPolítica, mais umavez, deixou deexistir. Não há, noBrasil de hoje,"amigos" e"inimigos".

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Na República, após o episódio Florianista, apresidência foi o prêmio para os setores econo-micamente dominantes. Por isto ou por aqui-lo, quisessem ou não os presidentes que assimfosse, a presidência foi, na maior parte das ve-zes até 1930, reserva de caça dos políticos do"Ecúmeno Principal": São Paulo + Minas Ge-rais, o Estado do Rio podendo ver-se atribuí-do, às vezes, uma parte do butim. A chamada"política do café com leite" apenas consagrou,no imaginário político e popular, essa distri-buição geopolítica. A revolução de 1930, ob-tendo pelas armas o que não obtivera nas elei-ções de 1929, isto é, que se rompesse o domíniode São Paulo e Minas na presidência, alterou ageopolítica eleitoral — mas apenas enquantoVargas esteve no poder, isto é, de 1930 a 1945.

Quando o Estado Novo deu sinais de haverchegado a seu nadir — Góes Monteiro regres-sando de Montevidéu e dizendo a Vargas quevoltava para pôr fim ao regime —, não haviaorganização capaz de restabelecer a geopolíti-ca eleitoral anterior a 1930 ou de oferecer umaalternativa eleitoral e geopolítica capaz decontrapor-se a São Paulo e Minas se porventu-ra houvesse quem pretendesse reivindicar "di-reitos de primeiro ocupante".

Se em fins de 1944 ou começos de 1945, SãoPaulo, centro da oposição democrático-liberala Vargas, não conseguia apresentar-se na liçaeleitoral com um candidato civil (como sem-pre fizera) menos ainda os interventores no-meados por Vargas tinham condições de supe-rar suas diferenças regionais e econômico-so-ciais e escolher, dentre eles ou dos integrantesda confraria, quem pudesse suceder o ditadorsem mudar substancialmente suas políticas.Na ausência de uma solução civil (politica-mente natural, digamos assim), o partido anti-Vargas teve de recorrer ao militar que lhe pa-receu ser o adversário (não o inimigo) maiscredenciado para impedir que o ditador desseoutro golpe de Estado. Os outros, os do clã var-guista, igualmente recorreram a um militar,ministro de Vargas. Os candidatos apresenta-ram-se assim na liça, mas numa situação inu-sitada: ambos eram, por natureza de suas fun-ções, a negação do princípio mesmo do podercivil demoliberal (se porventura ele existisseem boa e devida forma), isto é, o debate e a bus-ca de soluções não impostas pela hierarquia.

A solução eleitoral de 1950 apenas confir-mou a debilidade organizatória (portanto polí-tico-doutrinária) do partido anti-Vargas. Inca-paz de encontrar em São Paulo ou em Minas umcandidato civil, ele teve de lançar outra vez mãode um militar (novamente Eduardo Gomes),

enquanto o clã varguista escolheu CristianoMachado, preferindo nas urnas, como era pos-sível esperar, Getúlio Vargas na tentativa deuma volta ao passado. Convém lembrar que, nabatalha pós-eleitoral, foi a posição do Exército oque impediu que o problema da maioria abso-luta fosse levado à Justiça. O Exército surgiu, em1950, como o fiel da balança entre um partidosem quadros, que em duas eleições presiden-ciais tinha ido buscar nas Forças Armadas osseus candidatos, e o "inimigo" civil que ele,Exército, tinha deposto em 1945.

Em 1954, a Geografia Política impôs suamarca: as cidades do Rio de Janeiro e a de SãoPaulo foram os teatros em que Carlos Lacerdaencontrou sua audiência para fomentar a criseque levaria ao suicídio de Vargas. O importan-te, nesta análise, não é tanto o suicídio em si,quanto o fato de o Congresso ter sido posto delado, como se fosse uma casa abandonada emal-afamada, esmagado pelo IPM da "Repú-blica do Galeão" durante cujo desenrolar, pelaforça das coisas, buscando os mandantes doassassínio do major Rubem Vaz, a FAB levouos generais do Exército a solicitarem a renún-cia do presidente.

A inorganicidade, para não dizer a incapa-cidade organizatória e de mobilização de seto-res da opinião pública do partido anti-Vargas -encobrindo a desarticulação dos grupos que sehaviam oposto a Getúlio a partir do instanteem que ele desapareceu do cenário político —manifestou-se claramente em 1955: o candida-to que conseguiu reunir em torno de seu nomecertezas de vitória e convicções de derrota foi,novamente, um general: Juarez Távora. O ou-tro partido, ainda que temendo uma reaçãomilitar, encontrou em Minas Gerais, o seu can-didato. Juscelino Kubitschek, que se aliou aGoulart, herdeiro de Vargas.

Convém nos determos um minuto paraolhar com olhos de ver e compreender o qua-dro que se desenhou de 1945 a 1955 — quadropolítico-eleitoral e geopolítico ao mesmo tem-po. Nas eleições que se seguiram ao 29 de ou-tubro de 1945, nenhum dos setores sociais e po-líticos em que o Partido da Ordem então se di-vidiu tinha condições organizatórias de apre-sentar candidatos. O temor de que Vargas nopoder pudesse subverter o processo, impôsduas candidaturas militares. O que significouque o Partido da Ordem, em conjunto, não foicapaz de encontrar quem pudesse opor ao ge-tulismo um programa que permitisse políticasalternativas às de Vargas, e que fizesse apelo àclasse média no "Ecúmeno Principal" e fora de-le que se estava alistando para as eleições de

O Exército surgiu,em 1950, como o fiel dabalança entre um partidosem quadros, que emduas eleiçõespresidenciais tinha idobuscar nas ForçasArmadas os seuscandidatos, e o"inimigo" civil que ele,Exército, tinha depostoem 1945.

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dezembro de 1945 e que, com certeza, poderiadecidi-las. Mas significou também que o Par-tido da Ordem transferiu para as Forças Arma-das (o Exército, fundamentalmente), a tarefapolítica de representá-lo.

Os processos que se desenvolvem em 1950 e1955 marcam o declínio do partido anti-Vargascomo aglutinador de interesses e vontades, in-capaz de encontrar em suas fileiras quem o pu-desse representar perante o eleitorado, queaumentara em números absolutos e no qual jáse distinguia uma maioria do "Ecúmeno Prin-cipal", mais a do "Secundário Sul". Enquantoisso, o partido pró-Vargas resistiu às crises nes-se período e conquistou o poder em 1955 comum candidato saído de suas fileiras, mas do"Ecúmeno Principal", convém notar. A candi-datura JK foi, porém, o canto do cisne dessafacção do Partido da Ordem; já em 1960 tam-bém não tinha quadros bastantes para enfren-tar o adversário eleitoral e teve de recorrer aum militar, o general Teixeira Lott. Quaisquerque tenham sido as razões que levaram o PSDa aceitar essa candidatura, juntamente com ade Goulart para a vice-presidência, o fato é queem 1960 se verifica uma inversão no quadroeleitoral histórico: o civil é candidato do grupoanti-Vargas, embora a ele nunca tivesse per-tencido; o militar é do partido pró-Vargas.

A mudança de posições no quadro eleito-ral não significa que a crise terminal do PoderCivil (que sempre deveria ser o representantedo Partido da Ordem, qualquer que fosse suafacção vitoriosa) tivesse sido superada; pelocontrário. A candidatura do general TeixeiraLott indica que também o grupo pró-Vargastinha esgotado seus quadros e que confiavaem que um militar, aclamado pela posiçãoque assumira no 11 de novembro de 1955,quando chefiara dois golpes de Estado emnome de assegurar a posse de JK, fosse sufi-ciente para mover as massas urbanas e rurais.Já o partido anti-Vargas, ao lançar a candida-tura Jânio Quadros, preferindo-a à de seuquadro mais eminente, Juracy Magalhães(que não provinha do "Ecúmeno Principal"),permitiu que se concluísse o ciclo civil da Re-pública de 1946. Ciclo repleto de lições, a pri-meira das quais é que o Partido da Ordem sóconseguiu afirmar-se diretamente enquantopoder civil quando seus candidatos (JK e Jâ-nio 1955/1960) vieram do "Ecúmeno Princi-pal". Nesse quadro, a renúncia de Jânio Qua-dros em 1961 é conjuntural; o fato estrutural éque São Paulo e Minas voltaram a ocupar aposição de que haviam desfrutado até 1930.

Ainda que o problema jamais tivesse sido

aflorado desse prisma, é com as presidênciasmilitares que se rompe, da mesma forma queem 1930, o predomínio de Minas e São Paulo. Oque permitiria dizer que a normalidade polí-tica dita democrática, melhor, a estabilidadedo Sistema, só se mantém quando a presidên-cia, prêmio maior na "Loteria Eleitoral", é ocu-pada por alguém que venha do "EcúmenoPrincipal" — na visão antiga, antes de Brasíliatornar-se capital federal.

O período das presidências militares foitambém aquele em que as Forças Armadasocuparam o poder e nele se desgastaram, fos-se na luta contra o que se chamou de "linhadura" — resultando no Ato Institucional nº17, dirigido especificamente contra os quenela formavam a juízo das chefias —, fosse nocombate às facções armadas do Partido daRevolução. O problema da hegemonia (parao qual chamei atenção vezes sem conta na-quela época) esse, nunca foi objeto de consi-deração. O resultado foi que a "abertura lentae gradual" constituiu-se numa retirada quese supôs organizada e, sobretudo, acordada,mas que na realidade apenas permitiu queaqueles que tinham sido afastados da vidapolítico-eleitoral a ela regressassem na con-dição de vencedores.

A volta dos vencidos — simbolicamente, avolta ao 13 de março de 1964, quando Goulartfez o famoso comício da Central, protegidopelos tanques e pela Polícia do Exército, nelepregando a reforma agrária e ouvindo Brizolae outros pregarem a revolução — apenas con-fundiu os atores na cena política e, sobretudo,os analistas. De parte desses, a confusão deu-

Eduardo Knapp/Folha Imagem

O que poderia ser oPartido da

Revolução, hoje osoperários juntam-se em massa para

festejar o 1º demaio para ouvir

bandas que estãona moda e disputar

prêmios valiosos.

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se, de início, com a datação da chamada rede-mocratização, jogada para 1985, quando narealidade se havia dado, como final do pro-cesso da abertura "lenta e gradual", em janei-ro de 1979. No que se refere aos que voltavamtriunfantes, não se deram conta de que eram,fisicamente, os protagonistas do processopós-anistia, mas no pensamento e na ação es-tavam sustentando posições políticas e ideo-lógicas que eram, em boa medida, a daquelesque haviam formado no partido anti-Vargas.Quero com isso dizer que, quando voltaram àcena, depois da anistia e especialmente de-pois de votada a Constituição de 1988, os der-rotados em 1964/68 sustentaram posiçõesdistintas daquelas que os havia caracterizadocomo adversários do Partido da Ordem em1963 e 1964. O Fundo Monetário Internacio-nal deixou de ser a bête noire que alimentarailusões juvenis desde 1950; exceto por algunspoucos que continuaram sustentando a ne-cessidade de o Estado continuar tendo umpapel, digamos estratégico, no desenvolvi-mento econômico e social, os velhos-novosprotagonistas aceitaram os ideais neoliberaisde privatização que se alastraram pelos seto-

res dominantes e pela classe política como fo-go em canavial seco. O esforço político-diplo-mático, financeiro e tecnológico para domi-nar o ciclo completo do átomo, o Brasil se re-c u s a n d o a a s s i n a r o Tr a t a d o d e N ã o -proliferação Nuclear que fora, em 1968, umd i k t at americano-soviético que congelara opoder mundial, foi jogado às urtigas junta-mente com tudo o que se havia feito (aindaque pouco fosse) no terreno de foguetes deduplo uso, civil-espacial e militar. Jogado àsurtigas, como depois admitiu alto funcioná-rio norte-americano, atendendo às pondera-ções de Washington. Não estranha que quan-do o partido anti-Vargas encontrou defenso-res de suas idéias nos que formavam ideolo-gicamente no clã varguista, o pêndulo daPolítica tenha parado.

No fim do governo Geisel e durante todo ogoverno Figueiredo, um novo personagemapareceu em cena: Luis Inácio Lula da Silva eseu novo sindicalismo. Estranha história dessesenhor a quem o presidente Figueiredo capitu-la nos primeiros dias de seu governo, envian-do seu ministro do Trabalho para negociar ofim de uma greve que a Justiça do Trabalho jul-gara ilegal. Esse incidente, em que a presidên-cia passou por cima da Justiça, foi ignorado pe-los que analisaram o personagem. Ele deveriaser, àquela época, importante demais para quese arriscasse uma crise institucional. De fato foi— e suas candidaturas à presidência da Repú-blica pelo PT marcaram uma trajetória dignade nota. A primeira observação que pode serfeita é a que atenta para o fato de que o candi-dato deseja ser chamado não por seu nome debatismo, mas pela alcunha com que era conhe-cido nas lutas sindicais...

O PT surgiu como o braço político do Partidoda Revolução, contra todos e tudo, tendo comodiretriz estratégica (seguramente para tranqüili-zar os burgueses) não definir o que de fato pre-tendia. A palavra de ordem era que o socialismoque defendia seria construído ao longo do pro-cesso. Na Constituinte, Lula da Silva pouco fez— além de não assinar a Constituição e desmo-ralizar o Congresso, dizendo que 300 de seusmembros não tinham condições morais de lá es-tarem. A candidatura de 1980 foi apresentada co-mo sendo a da Revolução — e por isso foi der-rotada. Vistas as coisas dos pontos de observaçãode hoje, não hesitaria em dizer que ele fez de suascandidaturas sucessivas "greves eleitorais". Ten-do sempre presente o regime econômico em queas aduanas estavam praticamente fechadas e em

José Cruz/ABr

Sindicalistas nopoder: LuizMarinho,ex-presidenteda CUT, é hoje oministro doTrabalho. Ascentrais operáriasganharam poderpolítico antesimpossível.

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que as montadoras, contra as quais jogava os tra-balhadores em busca de acordos vantajosos,pouco tinham a perder negociando com o sindi-cato que os liderava, o líder sindical sabia quepodia fazer as greves, pois um acordo, qualquerque fosse, seria conseguido. Além do que sabiaque a inflação cumpriria sua parte nesse jogo, di-ria sinistro, em que as montadoras nunca per-diam, mas os trabalhadores sim, ao longo dosmeses. O socialismo se construiria ao longo doprocesso. Mas na primeira candidatura com aresde "greve geral", Lula da Silva não encontrouquem pretendesse negociar, porque Collor deMello era o homem que pregava novas idéias eanunciava novas estruturas.

Na segunda candidatura, Lula já não era a dohomem do Partido da Revolução, ainda que os-tentasse suas bandeiras — houve quem nego-ciasse, tanto assim que se lançou novamente em1988, mas não mais o revolucionário "sapo bar-budo" a que se referira Brizola. Em 2002, a ne-gociação sobre os resultados da "greve eleito-ral" produziu efeito: Serra, defensor do desen-volvimento, favorável a uma maior interven-ção do Estado para assegurar o predomínio dochamado capitalismo nacional, não encontrouos apoios necessários à sua eleição. Muitos (epraticamente todos os que decidem em muitose importantes setores da vida econômica) pre-feriram Lula da Silva. As "greves" haviam pro-duzido os efeitos desejados e o "sindicato", o PT,mudando de rumo, incorporou-se à Ordem —esquecendo-se de que apesar de tudo ainda ha-via certas regras de comportamento que deve-riam ser obedecidas. Lula, ele, jamais delas seesqueceu, candidato ou presidente.

Com isso chegamos a 2006. A crise da políticaque muitos de nós sentimos na carne, decorre dofato de que não há mais "amigos e inimigos". Es-tão todos, de qualquer legenda e com quaisquerpropósitos, irmanados na manutenção da mes-ma ordem que veio se consolidando depois dotriunfo do neoliberalismo esposado pela social-democracia brasileira. Ao contrário de 1979 ou1985, porém, o Congresso agora está desmora-lizado. Há um fato que merece atenção: o eleito-rado que elegeu os novos (40%) e os velhos (60%)deputados ergueu-se em uníssono para criticaro aumento de vencimentos que as lideranças de-cidiram para a futura legislatura. Na crise do"apagão aéreo", um cidadão traduziu muito bema situação, ao comentar o desejo de alguns depu-tados de terem aviões da FAB à sua disposiçãopara passar as festas de fim de ano em casa: "Elesnão têm vergonha, mas afinal nós os elegemos,não?". Não foi na nova legislatura que se deu aaprovação desse aumento sem classificação;

pouco importa. O que cabe registrar é que o ci-dadão dizia simplesmente que o eleitorado ele-geu um Congresso que ninguém controla e sobrecujo comportamento não se têm dúvidas.

Há uma distância facilmente observável, pa-ra não dizer contradição, entre a "consciênciaverbal" (somos obrigados a votar e votamosneste ou naquele) e a "consciência real" (eles nãonos representam e são lobos vorazes, aves de ra-pina). É essa contradição que deve reter nossaatenção. O afastamento entre o que a lei obriga ea consciência moral exige pode criar novas si-tuações, desde que haja quem se disponha a ex-plorar o vazio de poder político criado desdeque os "inimigos" desapareceram e que ummembro da Assembléia Constituinte disse, semadmoestações, que o Congresso só tinha pes-soas de baixo nível moral. O Judiciário não es-capará da crise: afinal, não deseja aumento paraseus membros, os atuais e não os futuros?

Quem está a salvo desse desgaste, pois nãotem poder constitucional para aumentar seusvencimentos, é o presidente da República.Num clima em que a política desapareceu e emque tudo se resume à solução de assuntos ad-ministrativos, um Napoleão III tupiniquim po-de estar à vista. Diferentemente do sobrinho dogrande Napoleão, se der um golpe de Estadonão será para fechar o Congresso nem o Judiciá-rio; simplesmente manobrará para que a Cons-tituição seja reformada a fim de permitir quecontinue no poder. A fórmula é simples:

"Projeto de emenda constitucional nº.... `Oartigo... da Constituição passa a ter a seguinteredação: O mandato do presidente da Repúbli-ca é de cinco anos´".

Não se falará em reeleição nem para o simnem para o não. Simplesmente se fixará um pe-ríodo. Foi assim que Porfírio Díaz conseguiu, noMéxico, com o apoio de intelectuais "científicos",instalar o "porfiriato", que cuidou do desenvol-vimento associado com o capital estrangeiro.

A política acabou e a administração passou aser o objeto e o objetivo da atividade de todos ospartidos, todos os dias. Assim continuará, atéque a contradição entre a "consciência verbal" ea "consciência real", ao invés de paralisar a ação,sirva de acicate para quem deseje romper umasituação em que o Estado lentamente vai desa-parecendo sob os olhos lânguidos dos mem-bros dos poderes da União, que para isso mes-mo são independentes e harmônicos... Acicatepara quem deseje romper a situação, a fim derestaurar o Estado na plenitude de seus poderese funções e para fazer que a política volte a ser oalimento diário de quantos ainda pretendemser cidadãos e não apenas súditos.

Serra,defensor dodesenvolvimento,favorável a umamaior intervençãodo Estado paraassegurar opredomínio dochamadocapitalismonacional, nãoencontrou osapoios necessáriosà sua eleição.

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OQUEVEMPOR

Alexander Titorenko/AFP Photo

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À esq., mulher segura aimagem do ex-lídersoviético Josef Stálindurante um ato pró-comunista, realizado noDia Nacional de Defesada Pátria, em fevereiro.Acima, manifestação nocentro de Moscou.

Olavo de CarvalhoJornalista, escritor eprofessor de Filosofia,mora hoje nos EUA

O Brasil que emergiu dasúltimas eleições pode serresumido num conjunto dedilemas insolúveis que o

novo governo, aliás velho, terá deempurrar com a barriga por mais quatroanos a não ser na hipótese remota de queum surto de genialidade se aposse dele elhe inspire soluções.

O primeiro é o dilema geral doesquerdismo hoje em dia. Esvaziada de suasantigas propostas sócio-econômicas, quenem seus líderes mais inflamados ousamainda defender na versão originária, aesquerda mundial sobreviveu à queda daURSS e até se fortaleceu na base do puroódio cultural (anti-ocidental, antijudaico,anticristão) e do anti-americanismo nu e cru.Esses dois item mesclam-se confusamenteno slogan da "guerra contra o Império". Mas,como reconheceu o próprio teóricoesquerdista maior, Antonio Negri, o Impériojá não é americano. É supranacional. Ospilares em que se assenta são asmegacorporações e os organismosinternacionais de controle (ONU, OMC,

Unesco, OMS etc.) com sua rede de ONGsespalhadas pelo mundo, subsidiadas poraquelas mesmas corporações. Esse macro-sistema de poder não somente não seidentifica com a soberania nacionalamericana, mas luta abertamente paradissolvê-la e absorvê-la numa espécie degoverno mundial. É a teoria Garrison-Gorbachev do "império transitório" a serimolado no altar do "império definitivo". Namedida em que, por tradição ouautomatismo, o movimento esquerdistanacional se volta contra os EUA, ele serve aogoverno mundial em formação: a luta contrao "império transitório" se torna serviçoprestado à construção do "impériodefinitivo". O fato aparentemente paradoxalde que praticamente toda a esquerdamundial seja subsidiada pelas grandesfundações bilionárias integradas no projetodo governo mundial encontra aí suaexplicação. Os obstáculos mais sérios àconsecução desse projeto são as soberaniasnacionais dos EUA e de Israel. Um "anti-imperialismo" voltado contra esses doispólos é tudo o que o Império precisa para

Natalia Kolesnikova/AFP Photo

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consolidar-se às custas de milhões de idiotasúteis que imaginam combatê-lo.

De outro lado, a luta cultural anti-ocidental, incentivada e subsidiada pelospróprios condutores do processo deglobalização imperial, não tem resultado emfortalecer o Estado leigo (supostamentedestinado a constituir o modelo do Estadomundial), mas em debilitá-lo em proveito dainvasão islâmica. Quanto mais associedades ocidentais se afastam dosprincípios da civilização judaico-cristã, maisse tornam incapazes de defendersua identidade contra o assédio da"alteridade" islâmica. Não só as nações seenfraquecem, mas o próprio Estadomundial, erguendo-se sobre os escombrosdas identidades nacionais e tradiçõesreligiosas, já nasce desprovido de princípiose valores capazes de resistir à marémontante do Islam globalizado.

O dilema da esquerda mundial, que nemseus próceres mais destacados parecem terenxergado claramente até o dia de hoje,consiste em que todos os seus esforços anti-americanos e anti-ocidentais refluem embenefício do projeto imperial global e, amais longo prazo, da ascensão islâmica, quetraz em seu bojo valores simetricamenteopostos àqueles representados pela rebeliãocultural esquerdista.

Nosso governo, sendo nada mais que umpseudópodo do movimento esquerdistainternacional, vivencia esse dilema,aparentemente sem ter dele a menorconsciência. Isto significa que, faça ele o quefizer, sua única função histórica terá sido ade servir a forças cujo alcance lhe escapa porcompleto. Um papel especialmente cômico,nessa farsa inconsciente, parece estarreservada aos "nacionalistas" das ForçasArmadas, que, ansiosos para integrar-se na"guerra do povo inteiro" contra o fantasmado imperialismo americano, se tornarãocada vez mais idiotas úteis a serviço do"império definitivo", a não ser na hipótesequase impensável de que parem de se auto-hipnotizar com slogans patrióticosdeslocados da situação real, comecem aprestar atenção nas minhas análises eadquiram ao menos um vislumbre de qual éa guerra e qual é o inimigo.

O segundo dilema insolúvel que define aposição do nosso governo na ordem darealidade é o drama da violência nacionalcrescente, que não pode de maneira algumaser reprimida sem trazer danos a um dos mais

queridos parceiros ideológicos do governo, anarcoguerrilha colombiana. Mas, seconseguimos sobreviver enquanto a taxa dehomicídios no território nacional crescia paracinqüenta mil por ano, por que nãopoderemos, intoxicados de desconversas eevasivas, suportar mais cem mil ou duzentosmil? O brasileiro, afinal, parece ser mesmo opovo mais facilmente governável do universo.

O terceiro dilema é o das relações com osEUA. Esticando ao máximo a relativaindependência de política econômica epoder político, o governo tem conseguido,até agora, conciliar as exigências docapitalismo internacional com as docomunismo continental. O primeiro sinal deque essa coincidentia oppositorum começa afazer água veio na recusa oficial, polida masfirme, de realizar a mais linda esperança dadiplomacia Bush, a de que o Brasilconsentisse em servir de freio às ambiçõescontinentais de Hugo Chávez. Da minhaparte, sempre disse e escrevi que isso eraesperança utópica, que os compromissos deLula com o Foro de São Paulo (e portantocom Hugo Chávez) eram mais profundos esólidos do que a CIA podia ter soprado aosouvidos do presidente Bush. O fracasso damissão Gonzales no Brasil, por maisdisfarçada que esteja por trás de sorrisos edesconversas, foi um teste de realidade dasidéias de George W. Bush sobre a AméricaLatina, e elas não passaram no teste. Mas, seisso cria um problema para os EUA, criaoutro maior para o governo brasileiro, cujacarapaça de hipocrisia acaba de ser furada aolhos vistos, embora os assessores de Bushfaçam de conta que não perceberam nada.Nossa melhor esperança de manter boasrelações com os EUA reside em fazeralguma macumba para que o presidenteBush consinta em ingerir novas doses deanestésico diplomático e, redobrando suaimunidade aos fatos, continue sonhandoque o Brasil é seu grande aliado contraChávez. A sorte do Brasil, nesse ponto,depende de saber até onde Lula poderácontinuar realizando prodígios deelasticidade entre o compromisso socialistae o compromisso capitalista.

Dilemas insolúveis são horríveis para quemos padece, mas, para o observador que desejacompreender a situação, são preciosos. Numjogo de xadrez, como é que você faz para saberqual o próximo lance de um jogador? Vocêcomeça por analisar onde é que as peças deleestão travadas pela posição das peças do

O segundodilema insolúvel quedefine a posição donosso governo naordem da realidadeé o drama daviolência nacionalcrescente, que nãopode de maneiraalguma serreprimida semtrazer danos a umdos mais queridosparceirosideológicos dogoverno, anarcoguerrilhacolombiana.

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adversário, isto é, você exclui as jogadasimpossíveis. Em política é a mesma coisa.Exclua as jogadas impossíveis e saberá quaisas possibilidades que restam. Mas há umadiferença: o enxadrista nunca estraga depropósito o próprio jogo. Os políticos, quandose vêem travados por todos os lados, às vezesnão hesitam em arriscar as jogadasimpossíveis, ou porque não sabem que sãoimpossíveis, ou porque o suicídio nacionallhes parece o caminho da salvação. Se opresidente Lula ainda for sensato o bastantepara evitar essa hipótese, tudo o que lherestará serão quatro anos de desconversa,recheados de "programas sociais", leis inócuase muita propaganda. Ele terá falhado àquiloque considera sua "missão histórica", mas,afinal, ele já não parece ligar muito para isso.A outra hipótese, a de uma iluminação súbitaque lhe inspire soluções geniais e imprevistaspara os quatro dilemas apontados, me parecebastante remota.

Antonio Scorza/AFP Photo

Nossa melhoresperança demanter boas

relações com osEUA é que Bush

continue sonhandoque o Brasil é o seu

grande aliadocontra o presidente

Hugo Chávez.

Se os liberais e conservadores nãotivessem cuidado apenas de emascular-seideologicamente e de reduzir-se ao estatutode auxiliares da esquerda light, este seria oseu grande momento. Na luta contra umadversário preso numa rede deimpossibilidades, eles teriam todas aschances. Mas para aproveitá-las precisariamantes tratar de existir como força ideológicadefinida, e isto eles parecem não querer demaneira alguma.

Quando olho para trás e vejo que desde1993 tenho acertado em todas as minhasprevisões políticas, quando nenhum outroanalista nacional pode se gabar de feitoidêntico, e por outro lado observo arelutância suspeitosa que tantos líderes danossa "direita" opõem em seguir os meusconselhos, a única conclusão que posso tirardisso é que o seu futuro, como coletividade,não me parece muito brilhante. Restaapostar nas exceções individuais.

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Arte

: Cél

lus

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Pequenomanual práticoda decadência

(recomendável emcaráter preventivo...)

Pequenomanual práticoda decadência

(recomendável emcaráter preventivo...)

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Paulo Roberto deAlmeidaDoutor em CiênciasSociais,professor e escritor([email protected];www.pralmeida.org)

Oconceito de decadência está histórica e usualmente asso-ciado às imagens — e também às realidades — de declí-nio econômico, de disfuncionalidade política, de regres-são social, de queda relativa nos padrões de vida, de de-

sordem institucional, de involução moral, quando não ao caos geradorde conflitos exacerbados e possível elemento-motor ("gatilho") do co-lapso de toda uma sociedade. No plano histórico, é costume citar os pre-cedentes dos impérios romano, bizantino, chinês, otomano ou britâni-co como exemplos ilustrativos de decadência — processos que, por ve-zes, se arrastaram durante décadas, quando não séculos —, levando es-sas sociedades a fases de crise sistêmica ou de estagnação total,precipitando-as em "colapsos" mais ou menos prolongados e ao seu de-saparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e em-preendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citadosque tinham brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente,costuma-se citar a Grã-Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial epós-Segunda Guerra, e até mesmo a Argentina pós-1930 como exem-plos reais e acabados de processos lentos e agônicos de decadência eco-nômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos eloqüentesde decadência certamente não faltam nos livros de história.

No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as socieda-des referidas em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, ospovos e protagonistas contemporâneos dos processos gerais descritossumariamente acima. Muitas vezes, o declínio econômico e a decadên-cia política se dão em meio a extraordinários surtos de vigor artístico ede fervor intelectual, com intensos debates e mobilização social per-passando todas as categorias e classes da sociedade em questão. O es-tado de "regressão" nem é percebido como tal, uma vez que: a econo-mia consegue ainda produzir em condições quase "normais"; as trocasmateriais e os intercâmbios intelectuais se fazem ainda pelos canaishabituais; os indicadores objetivos de padrões de vida continuam aapresentar traços de "progresso" — ainda que de recuo relativo naperspectiva internacional ou regional — e que a sociedade ainda nãosoçobrou na "anomia" e na "desorganização", a que são normalmenteassociados essas noções de decadência ou de declínio.

O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos essesprocessos citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos pró-

Divulgação

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prios integrantes da sociedade em questão. Osentimento geral dos cidadãos pode ser, sim-plesmente, de um certo malaise, de um mal-es-tar vago e indefinido, partilhado por diferen-tes estratos sociais e percebido como tal por in-telectuais, mas raramente expresso de formadireta e cabal nos discursos das autoridadesou traduzidos nas propostas de ação por can-didatos alternativos ao poder político. "Entra-se" em decadência muitas vezes sem o saber,como aquele personagem de Molière, que fa-zia prosa involuntariamente.

Proponho-me, neste curto ensaio analítico,traçar os elementos principais de uma peque-na radiografia da decadência, de maneira asubsidiar, talvez, diagnósticos mais precisosde situações concretas que possam preocuparos leitores eventuais deste "manual" de iden-tificação dos sinais precursores de uma deca-dência anunciada (não necessariamente per-cebida). Assim, pode-se saber que um país, ouuma sociedade, está em decadência quando:

1. O sentimento de mal-estar se torna gene-ralizado na sociedade, ainda que possaser difuso.

2. Os avanços econômicos são lentos, oumenores, em relação a outros povos e so-ciedades.

3. Os progressos sociais são igualmente len-tos ou repartidos de maneira desigual.

4.A lei passa a não ser mais respeitada peloscidadãos ou pelos próprios agentes pú-blicos.

5. As elites se tornam autocentradas, focadasexclusivamente no seu benefício próprio.

6. A corrupção é disseminada nos diversoscanais de intermediação dos intercâm-bios sociais.

7. Há uma desafeição pelas causas nacio-nais, com ascensão de corporatismos eparticularismos.

8.A cultura da integração na corrente nacio-nal é substituída por reivindicações ex-clusivistas.

9.A geração corrente não se preocupa com aseguinte, nos planos fiscal, ambiental ouo u t ro s .

10. Ocorre a degradação moral ou ética noscostumes, a despeito mesmo de "avan-ços" materiais.

Algumas considerações rápidas sobre cadaum dos elementos listados, sumariamente,acima são necessárias, se quisermos que este"minitratado" da decadência possa ser efetiva-mente utilizado como uma espécie de manualpara sua prevenção ou para a eventual corre-

ção de curso. Serei, tanto quanto possível, con-ciso, sem ater-me a exemplos conhecidos emprocessos concretos, mais ou menos identifi-cados pelo leitor ocasional.

1. Malaise generalizado e difusona sociedade.Na verdade, o mal-estar que costuma atin-

gir sociedades e povos em decadência efeti-va é mais um resultado dos próprios proces-sos de "involução" já em curso, do que um si-nal precursor desse itinerário "regressista".De fato, o sentimento de incerteza quanto aofuturo costuma perpassar de maneira difusaos diferentes estratos sociais mobilizadosnas atividades correntes da sociedade emquestão. A literatura consegue captar, antesmesmo de diagnósticos "sociológicos", essasensação de desconforto em relação aos pa-drões vigentes, que é também vista e inter-pretada nas artes em geral, por meio de peçase demonstrações de "ruptura" em relação às

Reprodução

A polícia de Calcutádispersa

manifestantesantibritânicos em

1940, crescia odesejo de

independência daÍndia. Exemplos de

decadência nãofaltam nos livros

de história.

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normas sociais comumente aceitas e "consu-midas" pelos estratos sociais incluídos nastransações correntes. O sentimento de fi nd'une époque, ou de esgotamento de um "ci-clo", é geralmente percebido pelos espíritosmais argutos, mas o desconforto com o "es-tado reinante" das coisas se dissemina demodo generalizado em camadas mais am-plas da sociedade. Ocorre uma desafeiçãoem relação à cultura predominante, mas nãose consegue propor ou viabilizar padrões oumodelos alternativos que sejam eficientesou implementáveis. Os custos da transiçãopara "algo mais racional" são consideradospor todos como muito elevados, em vistados pactos vigentes, e a sociedade se acomo-da na resignação e no déjà vu.

2. Avanços econômicos lentos, emperspectiva comparada.A decadência não significa, necessaria-

mente, retrocesso econômico absoluto oumesmo uma deterioração das condições pre-valecentes no plano da organização social daprodução. Ao contrário, podem até ocorreravanços tecnológicos, progressos científicose melhoras nos padrões vigentes de produ-ção, tendo em vista capacidades técnicas e ha-bilidades gerenciais já acumuladas pela so-ciedade. Uma sociedade pode avançar, emsuas próprias realizações, e mesmo assim serultrapassada relativamente por outras, maisdinâmicas, empreendedoras e inovadoras. Odeclínio relativo é geralmente o resultado deuma queda nos índices de produtividade, aperda progressiva de competitividade, umrecuo nos espaços anteriormente ocupadosno âmbito internacional e um lento movi-mento para escalões inferiores em r an k i ng ssetoriais de classificação de países.

Os processos de divergência entre os povos esociedades resultam, geralmente, de longas fa-ses de crescimento (ou falta de), mais do que dealtas taxas ocasionais de expansão do produto.O desenvolvimento pode ocorrer pari -pas su abaixas taxas (mas sustentadas) de crescimentoeconômico, sendo que expansões rápidas po-dem ser contrarrestadas por surtos inflacioná-rios ou crises sistêmicas que produzem perdasdo produto social e erosão do poder de comprada moeda nacional. O elemento propulsor doprocesso de desenvolvimento são os ganhos deprodutividade, que produzem, no registro his-tórico, os fenômenos de convergência ou de di-vergência entre os povos e economias nacio-nais. As sociedades humanas progredirammuito lentamente durante os milhares de anos

de revolução agrícola neolítica e civilizacional-urbana, para conhecer, dois séculos e meio derápidos progressos nos indicadores de bem-es-tar a partir da primeira e da segunda revoluçãoindustrial. A partir desta, os progressos se tor-naram contínuos, autogerados e induzidos pe-lo próprio avanço científico-tecnológico ante-rior, configurando aquilo que, em termos mar-xistas, poderia ser chamado de "modo inventi-vo de produção". Este foi, antes de qualqueroutra, uma peculiaridade das sociedades ditas"ocidentais", mas tende a se disseminar ao con-junto do planeta, com o término dos obstáculospolíticos ao processo de globalização.

Nem todas as sociedades conseguem replicarou reproduzir, mesmo por mimetismo, o padrãode progresso tecnológico do Ocidente desenvol-vido. Mas todas elas se encontram, hoje, media-namente dotadas de condições mínimas para fa-zê-lo, a partir dos progressos dos meios de comu-nicação e de difusão dos conhecimentos cientí-ficos (amplamente disponíveis nos veículosexistentes, à diferença do know-how e da tecnolo-gia proprietária, estes bem mais restritos). O fatode uma sociedade recuar economicamente, ain-da que de modo relativo, pode ser explicado, tãosimplesmente, por sua incapacidade em dotar osseus cidadãos dos requisitos mínimos de ensinoformal e de educação elementar, suscetíveis de osconverterem em "absorvedores" do saber técnicojá disponível universalmente nos canais abertosde difusão de conhecimento. Não se trata aqui,necessariamente, de padrões de ensino pós-gra-duado ou especializado, mas basicamente daexistência de ensino fundamental de boa quali-dade para o conjunto dos cidadãos.

3. Distribuição desigual dos lentosprogressos sociais alcançados.Comportamentos "rentistas", isto é, apropria-

ção de bens públicos por grupos organizadosque têm acesso aos canais oficiais de distribuiçãode recursos, geram um desestímulo à inovação eà produção pelos agentes econômicos privados.Isso pode ocorrer, e geralmente ocorre, no casoda disponibilidade de abundantes recursos na-turais — terras, minérios, commodities primárias— que passam a ser explorados por via de algumtipo de organização estatal, mesmo indireta. Fa-la-se da "maldição do petróleo", por exemplo, co-mo um caso típico de ganhos fáceis apropriadosde maneira desigual por elites que se organizampara "redistribuir" esses recursos abundantes, oque desvia a atenção dos agentes privados de in-vestimentos em atividades alternativas: toda aatenção passa a ser focada na "captura" da rendadisponível na economia nacional.

A decadência nãosignifica,necessariamente,retrocesso econômicoabsoluto ou mesmo umadeterioração dascondições prevalecentesno plano daorganização social daprodução. Podemocorrer avançostecnológicos, científicose melhoras nos padrõesvigentes de produção.

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Mesmo na ausência de uma fonte abundantede recursos naturais, comportamentos rentistaspodem disseminar entre os estratos dominantes(ou dirigentes) na sociedade, se a regulação ins-titucional é feita mais por via estatal do que pormeio da própria sociedade. O Estado sempreconstituiu um poderoso meio de redistribuiçãoda riqueza social para os grupos que o controlame manipulam em seu favor. Não há aqui nenhu-ma prevenção a priori contra o Estado, uma vezque ele e necessário mesmo para criar o laissez-f a i re , ou seja, lutar contra os trusts e cartéis, asse-gurar a competição, garantir o cumprimento doscontratos e, de forma geral, defender os direitosde propriedade. Ocorre, porém, que o Estado étambém um forte indutor de redistributivismoregressivo, isto é, o recolhimento compulsóriode recursos de todos os cidadãos, produtores econsumidores, e o seu "redirecionamento" se-gundo critérios políticos determinados.

Em todos os casos de declínio conhecidos, oEstado serviu precisamente para esse tipo de re-distribuição perversa dos recursos públicos, ge-rando o fenômeno conhecido pelos economistascomo c ro w d i n g - o u t , isto é, a captura da poupançaprivada pelo próprio Estado e pelos rentistasprofissionais e sua apropriação pelo próprio Es-tado (e seus amigos), o que provoca desecono-mias de escala e erosão do investimento produ-tivo. Os grupos politicamente mais bem articu-lados conseguem acesso aos planejadores e le-gisladores do orçamento público, deixando aorelento os setores menos organizados. Isso geral-mente implica em concentração de renda e au-sência de um mercado interno dinâmico. Osexemplos de declínio e de estagnação coinci-

dem, justamente, com o que Veblen chamaria de"consumo conspícuo" das elites, em total indife-rença em relação ao conjunto dos cidadãos.

Não se pense, por fim, que tudo se faz em be-nefício do "grande capital monopolista" e emdetrimento da "classe trabalhadora". Sindicatossão máquinas organizadas para criar escassezde mão-de-obra e para produzir desemprego,atuando em perfeita sincronia (nem semprefuncional, é verdade) com os sindicatos de pa-trões, com vistas a extorquir recursos do resto dasociedade desorganizada. Viceja, nos casos típi-cos de declínio econômico prolongado, uma es-pécie de "pacto perverso", pelo qual ambos sin-dicatos entram em conluio — algumas vezes deforma involuntária ou até inconsciente — em fa-vor de seus ganhos respectivos, repassando oscustos para o resto da sociedade. A desigualda-de distributiva nem sempre é "aristocrática"...

4. Não acatamento da lei peloscidadãos e pelos próprios agentespúblicos.A decadência, como já afirmado, nem sem-

pre se traduz em pobreza material, ao contrá-rio, pois sociedades decadentes são, igual-mente, sistemas de relativa abundância, pelomenos para os privilegiados. Mas, a decadên-cia verdadeira sempre implica em misériamoral, a começar por um sistemático, no co-meço sutil, depois disseminado, desrespeitoà lei e às boas normas de convivência. Uma so-ciedade não começa a decair com o aumentoda delinqüência comum e com a expansão dacriminalidade de baixa extração, mas justa-mente com o desprezo pela lei por parte dospoderosos e dos próprios encarregados demanter a ordem. Sociedades patrimonialis-tas são naturalmente mais propensas a esse ti-po de corrupção moral, como evidenciado natrajetória do império Otomano, mas nemmesmo sistemas "tecnocráticos" estão imu-nes a esse tipo de evolução involutiva, se épossível este tipo de trajetória. O império chi-nês, com seu imenso corpo de mandarins bemtreinados, talvez tenha conhecido itineráriosemelhante, antes mesmo de o país ser inva-dido e humilhado pelos imperialistas ociden-tais (e depois japoneses).

O desrespeito à lei, ou mesmo a contra-venção pura e simples por parte dos podero-sos, constitui o traço mais visível do declíniomoral de uma sociedade. Quando as suas eli-tes, em especial o seu corpo dirigente, recor-rem a expedientes escusos, quando não apráticas claramente criminosas, para extrairbenefícios para si, pode-se constatar que a

O declínio relativoé geralmente o

resultado de umaqueda nos índicesde produtividade

e a perdaprogressiva da

competitividade.

Reprodução

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sociedade caminha célere para a sua deca-dência. Não se deve, porém, confundir, arti-fícios ilegais, ou no limite da legalidade, em-pregados por algumas elites econômicas —como caixa dois, elisão ou evasão fiscal ouainda pagamentos por fora — como repre-sentando necessariamente sinônimo de de-cadência. O setor produtivo pode ser espe-cialmente competitivo e gerencialmente ca-paz, apenas que penalizado por um Estadovoraz, por dirigentes políticos de comporta-mento predatório, sendo levado a utilizar-sedo recurso a esse tipo de expediente comouma forma de "defesa patrimonial". É, aliás,o que fazem a maioria dos cidadãos que bus-cam evadir o fisco, uma vez que adquiram aconsciência de que os impostos pagos dire-tamente e os tributos recolhidos indireta-mente não retornam proporcionalmente soba forma de serviços públicos.

A ilegalidade se dissemina paulatinamentena sociedade e se converte em uma "segundanatureza" do cidadão comum e do empresário:ninguém se "arrisca" a ser totalmente honesto,uma vez que isto representaria a inviabilidadedo seu negócio ou a "extração compulsória" se-ria demais onerosa no plano das rendas indivi-duais. Pouco a pouco, a corrupção e a contra-venção se instalam em todos os poros da socie-dade e ela, sem perceber, caminha rapidamentepara o que chamamos de decadência.

5. Elites distantes da sociedade efocadas no seu benefício próprio.Esta é uma outra manifestação do mesmo

comportamento descrito acima, apenas que osmeios são absolutamente legais, ainda que ile-gítimos, e redundam quase sempre nos mes-mos efeitos já referenciados no rentismo per-verso e no redistributivismo desigual. Res-ponsáveis políticos se ocupam não tanto de le-gislar para a sociedade, mas em causa própria.Os meios passam a absorver uma proporçãocrescente dos recursos voltados para determi-nados fins. Isto geralmente se dá no setor legis-lativo, mas pode perfeitamente ocorrer nosmeios judiciários e, igualmente, em corpora-ções de ofício que se organizam burocratica-mente no âmbito do poder executivo. A repre-sentação política deixa de constituir um man-dato conferido pela sociedade para o desem-penho das funções que lhe são próprias paraconverter-se em um fim em si mesmo.

Esses traços de comportamento não são ex-clusivos da representação política, embora elessempre se reproduzam no estamento político.Elites rentistas, de modo geral, desenvolvem

essa indiferença em relação à sociedade, cujasimbologia mais famosa (ainda que provavel-mente equivocada) é historicamente represen-tada pela frase de Maria Antonieta sobre osbrioches que o povo deveria comer, no lugar dopão comum. Elites aristocráticas do ancien Ré-gime, na França e na Rússia czarista, foram emgrande medida responsáveis pela desafeiçãodo povo em relação às suas elites, contribuindopara a derrocada dos respectivos regimes polí-ticos ao se operar um claro divórcio entre suasconcepções do mundo. O apartheid social, maisaté no plano mental do que no âmbito material,costuma ser construído por minorias ativas,nem todas elas privilegiadas, mas sempre elitis-tas em relação à massa da sociedade.

Por vezes, uma elite "subversiva" se apossa dopoder e passa a exibir os mesmos traços de com-portamento que o das elites antes privilegiadas,numa típica reprodução da fábula contida emAnimal Farm, segundo a qual "todos são iguais,mas alguns são mais iguais do que outros".

6. Corrupção disseminada nastransações sociais de maneira geral.O cimento mais poderoso em todas as socie-

dades organizadas é a confiança: não só na pa-lavra dada, no plano individual, mas também namoeda, na observância da lei em caráter impes-soal, no cumprimento dos contratos e, sobretu-do, na certeza da punição em caso de ações "des-viantes". O que mantém o poder de compra deuma moeda, por exemplo, não é tanto a força ab-soluta de uma economia, mas a confiança de queseu valor de face não será abalado por atos arbi-trários das autoridades emissoras, medidas in-tervencionistas que afetem sua liquidez ou algu-ma ameaça de confisco, mesmo indireto.

A incerteza jurídica — por vezes trazida pe-los próprios juízes, que não se contentam eminterpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocá-la a serviço de alguma causa "social" — está naorigem do desrespeito aos contratos e, portan-to, no aumento dos custos de transação. Seto-res da sociedade passam a desenvolver for-mas próprias, geralmente informais, de inter-câmbio, que podem englobar um volumecrescente de atividades. Sociedades decaden-tes são, geralmente, sociedades nas quais a in-formalidade recobre grande parte da popula-ção economicamente ativa e uma fração signi-ficativa do produto social. Um Estado "extra-tor" pode também ser o responsável diretopela "expulsão" do mercado formal de agenteseconômicos privados que não encontram ne-nhuma vantagem em se colocar à margem dalegalidade, mas que não conseguem se enqua-

A ilegalidade sedisseminapaulatinamente nasociedade e seconverte em uma'segunda natureza'do cidadão comum edo empresário:ninguém se 'arrisca'a ser totalmentehonesto, uma vezque representaria ainviabilidade do seunegócio.

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Joedson Alves/AE

Dida Sampaio/AECaptura de imagem Vídeo mostrou MaurícioMarinho, chefe doDepartamento de Contrataçãoe Administração de Materiaisdos Correios, recebendopropina de R$ 3 mil.

O desrespeito à lei, ou mesmo acontravenção pura e simples porparte dos poderosos, constituio traço mais visível do declíniomoral de uma sociedade.Nas fotos, à esq. abaixo, opublicitário Duda Mendonça;no centro, o publicitário MarcoValério, suspeito de ser ooperador do Mensalão; à direta,de cima para baixo, DelúbioSoares, ex-tesoureiro do PT;Silvio Pereira, ex-secretário-geral do PT; e o ex-deputadoRoberto Jefferson, do PTB-RJ.

Dida Sampaio/AE

Vidal Cavalcante/A

Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo

Captura de imagem

Celso Junior/AE

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drar nas regras existentes. Na verdade um ci-poal de regulamentos estabelecido justamen-te para vigiar o cumprimento de uma legisla-ção barroca no plano regulatório.

A sociedade como um todo passa a se acostu-mar com a modalidade informal de se comple-tarem as transações e, ao fim e ao cabo, os inter-câmbios legais passam a cobrir uma fração cadavez menor do conjunto das trocas sociais. A so-ciedade de "desconfiança" afeta a todos os par-ticipantes do mercado, gerando graus crescentesde anomia e de deterioração dos costumes bási-cos. A sociedade em questão está "pronta" paraaprofundar seu processo de decadência.

7. Avanço dos corporatismos eparticularismos, em detrimento das"causas nacionais".A fragmentação da representação política e

social nos diversos corpos constitutivos da so-ciedade cria uma colcha de retalhos de difícil ad-ministração institucional. Para que grandes re-formas estruturais se façam — e toda sociedaderequer, periodicamente, adaptação às novascondições ambientais externas e às suas própriastransformações internas, demográficas e outras—, as diferentes partes da sociedade precisamestabelecer um pacto de convivência, no qual to-dos cedem um pouco para que as mudançaspossam ser implementadas. A perseguição deobjetivos particularistas por grupos sociais or-ganizados, geralmente com vistas a se alcançarmetas setoriais e exclusivas, inviabiliza qual-quer "projeto nacional" digno desse nome (aindaque essa figura seja antes um mito do que umarealidade, pois "projetos" bem executados geral-mente resultam da ação decisiva de uma peque-na elite de "iluminados", quando não de um lídercarismático atuando como estadista).

O fato é que os processos de decadência tam-bém são caracterizados pela existência de "pro-jetos fragmentários", condizentes com o perfiljá fortemente sindicalizado dessa sociedade.Não é incomum a representação política passarda dominância de próceres cosmopolitas, daelite, mas dotados de uma visão do mundo nãoprovinciana, para "delegados de categoria",eleitos por um grupo de interesse restrito (decaráter sindical, setorial ou religioso). O proces-so legislativo se divide então em uma miríadede demandas particularistas, que esquartejamo orçamento nacional e transformam o plane-jamento público em uma assemblagem de par-tes heteróclitas. Congela-se a possibilidade deatuar nas grandes causas, pois o mercado polí-tico converte-se num bazar de compra e vendade projetos setoriais e fragmentários. Um indi-

cador fiável dessa tendência é dada por meio deconsulta a um calendário-agenda: a sociedadeestará tão mais próxima da decadência quantomais dias do ano são dedicados a homenagearcategorias profissionais...

8. Grupos sociais particularespretendem distinguir-se do conjuntoda sociedade.A chamada "identidade nacional", um con-

ceito difuso e freqüentemente mal interpreta-do, constitui um dos traços mais conspícuosda psicologia de massas. Uma sociedade di-nâmica ostenta um forte sentimento de inclu-sividade e de identificação com os símbolosnacionais, sejam eles realidades históricastangíveis, sejam eles simples mitos criadospara fortalecer o processo de Nation building.Em qualquer hipótese, o sentimento de per-tencimento ( status de appartenance ou mem-bership ) a um corpo social ou humano relati-vamente homogêneo é um poderoso cimentoda identidade nacional, o que não impede,obviamente, particularidades regionais, tra-ços étnicos ou especificidades culturais pró-prias a sociedades complexas, racialmente di-versas e dotadas de origens "multinacionais".O ideal de toda sociedade integrada e orgu-lhosa de sê-lo é, justamente, conseguir passardo estágio simplesmente "multinacional" pa-ra o de "sociedade multirracial", o que deveriaser o objetivo de toda comunidade inclusiva,uma vez que tal característica destrói as pró-prias bases de qualquer manifestação de ra-cismo ou apartheid.

A desafeição em relação à fusão dos parti-cularismos raciais ou culturais no m a i n s t re a msocial e humano nacional enfraquece a noçãode identidade nacional e reforça a noção arti-ficial de aparteísmo. Este tipo de divisor pre-cisa ser construído politicamente, uma vezque se adota como suposto básico a unidadefundamental do gênero humano. A divisão é,geralmente, obra de ativistas e militantes deuma causa que se julga legítima, cujas raízesencontram fundamentação histórica emopressões seculares, que se pretende trans-plantar para o presente, como forma de pre-servar antigas particularidades raciais, lin-güísticas ou religiosas, que já estavam pron-tas a se fundir no poderoso molde nacional. Aconformação política de uma cultura distintada nacional reforça manifestações de racismoao contrário, pois que as propostas são geral-mente feitas para eliminar supostos focos de"racismo". O apartheid também pode ser cons-truído por minorias...

O processolegislativo se divideentão em uma miríadede demandasparticularistas, queesquartejam oorçamento nacional etransformam oplanejamento públicoem uma assemblagemde partes heteróclitas.Congela-se apossibilidade de atuarnas grandes causas.

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9. Irresponsabilidadeintergeracional, nos terrenos fiscalou ambiental, entre outros.O desejo de preservar o status quo, ou a incons-

ciência quanto à constante necessidade de ajus-tes e adaptações às condições "ambientais", na-cionais ou internacionais, sempre cambiantes,fazem com que gerações do presente eventual-mente atuem de maneira irresponsável em rela-ção àquelas que as sucederão. Historicamente, oproblema sempre esteve associado à depreda-ção do meio ambiente e à extinção de espéciesanimais, alterando o equilíbrio natural e amea-çando a sustentabilidade de sistemas econômi-cos inteiros. Contemporaneamente, a questãotende a se revestir de características econômicasbem marcadas, tendo a ver com a trajetória avas-saladora do Estado moderno e sua voracidadefiscal, não em benefício próprio, obviamente,uma vez que o Estado é uma entidade impes-soal, mas em favor de grupos ou categorias dis-pondo de condições de acesso e de manipulaçãodos mecanismos de intervenção pública.

Nos casos mais graves, o conjunto da socieda-de pode atuar de maneira irresponsável, ao sus-tentar escolhas que representam uma clara pre-ferência pelo bem-estar presente, em detrimentodo amanhã. Seja nos esquemas de previdênciasocial, seja nas instituições educacionais, ou ain-da em matéria de déficits orçamentários e dívidapública, opções erradas e a visão imediatista dosresponsáveis políticos, sustentados pela incons-ciência da maioria, criam pesadas hipotecas demédio e longo prazo que deverão, em algummomento, ser resgatadas pelos sucessores, aquientendidos como o conjunto da sociedade deuma ou duas gerações mais à frente. O declíniopode até não ser visível no próprio momento dasdecisões, mas o que se está fazendo, na verdade,é "contratar" a decadência futura.

10. Degradação ética e moral,independentemente de"progressos" técnicos.Edward Gibbon, em seu justamente celebra-

do História do Declínio e Queda do Império Romano,tende a ver a decadência de Roma como o resul-tado da perda de "valores cívicos" por parte doscidadãos do império, a começar pelos patrícios,que delegaram aos bárbaros tarefas que eles de-veriam ter assumido diretamente. Ele tambématacou a influência do cristianismo, como possí-vel fator de afastamento do antigo espírito mar-cial e guerreiro, que tinha feito, no início, o suces-so da república e do império. Seja como for, a per-da de objetivos claros quanto ao futuro, certa re-signação em face das dificuldades do presente e

a busca de prazeres imediatos em lugar da fru-galidade produtiva e empreendedora podemser sinais precursores da decadência.

Curiosamente, nenhum dos exemplos histó-ricos tidos como ilustrativos ou emblemáticosdesse tipo de processo pode ser considerado uminsucesso absoluto na cultura ou nas artes. O vi-gor da produção cultural continua a todo vaporno momento mesmo em que essas sociedadespassam a enfrentar problemas na economia e nainovação. Não há um elemento singular ou úni-co que "anuncie" a decadência, mas um conjuntode comportamentos sociais e de reações que in-dica forte deterioração da solidariedade social euma crescente anomia em relação aos valores bá-sicos da sociedade. A falta de confiança nas ins-tituições políticas e a forte desconfiança das mo-tivações de outros grupos sociais fazem com quelíderes e liderados não mais se sintam compro-metidos com o mesmo conjunto de valores, pas-sando a ocorrer manifestações de introversão ede egoísmo que logo superam a identificaçãocom a pátria e a nação.

Em síntese, existe um "espírito" de decadên-cia quando os setores produtivos, em especialos empresários mais politicamente ativos, semostram resignados ante a presença avassala-dora do Estado, que lhes tolhe os movimentos,impõe regras e lhes retira a substância da ati-vidade econômica, que é o lucro e os exceden-tes para investir. Existe decadência quando osintelectuais e os universitários, de uma formageral, se conformam ante o culto à ignorânciaexibido por certos grupos sociais ou líderes su-postamente carismáticos ou "salvacionistas".Existe decadência quando autoridades nacio-nais, a começar pelos encarregados da preser-vação da ordem jurídica e institucional, dei-xam de lado suas obrigações profissionais pa-ra cuidar de prosaicos interesses pessoais, pe-cuniários antes de tudo. Existe decadênciaquando o cidadão comum não vê qualquermotivo para preservar o patrimônio coletivo,demonstrando total inconsciência quanto aodever de respeitar a herança das gerações pre-cedentes e a necessidade de repassar às que se-guirão a sua própria um ambiente melhor doque aquele recebido dos ancestrais.

Em suma, os sinais materiais, ou externos, dadecadência nem sempre são os que contam naavaliação dos "progressos" dessa inacreditávelmarcha para trás na jornada das sociedades. Ainsensatez quanto aos rumos da história tam-bém se manifesta, antes de tudo, por uma pura esimples inconsciência. Manuais práticos de de-cadência podem ser um preventivo útil na inver-são da trajetória. Basta saber consultá-los...

Historicamente,o problema sempreesteve associado àdepredação do meioambiente e extinçãode espécies animais,alterando oequilíbrio eameaçando asustentabilidade dosistema econômico.

Não há umelemento singular que'anuncie' a decadência,mas um conjunto decomportamentos sociaise de reações que indicaforte deterioração dasolidariedade social euma crescente anomiaem relação aos valoresbásicos da sociedade.

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Na economia, aindamais do mesmo

Roberto FendtEconomista, vice-presidente do InstitutoLiberal, sócio-diretorda Adef Associados ecolaborador doDiário do Comércio

Quaisquer que sejam os resulta-dos das votações dos diplomaslegais que conformam o Progra-ma de Aceleração do Cresci-

mento (PAC), o ano de 2007 não apresentarágrandes mudanças em relação à velocidade decruzeiro da economia observada no primeiromandato do presidente Lula.

Uma das razões, a mais óbvia, é que chega-mos a março e nada ocorreu até agora; restamtrês trimestres até o final do ano. A segunda é osentimento de que o PAC, embora positivo nosentido de sinalizar uma intenção de retoma-da do crescimento, em si é insuficiente. Teriasido necessário, se o objetivo é realmente "de-samarrar a economia", no dizer do senhor pre-sidente, que grandes mudançasinstitucionais tam-bém tivessem sido in-troduzidas . Essasmudanças, contudo, nãosão palatáveis nem para os atuais

Divulgação

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detentores do poder, nem para o sistema polí-tico como um todo.

Para que a economia deslanchasse em 2007seria necessário, primeiro, remover os gargalosde infra-estrutura que limitam o crescimento.Isso não ocorrerá em 2007. De fato, as duas prin-cipais restrições ao crescimento sustentado delongo prazo não foram aliviadas no primeiromandato: a primeira é dada pela oferta de ener-gia, que limita na prática o crescimento a, nomáximo e esporadicamente, 5% em um dadoano. A segunda é a asfixiante carga tributáriaque, a despeito dos vaticínios de que não podeaumentar mais, encontra meios e formas de to-do ano aumentar mais um pouquinho.

A taxa de crescimento média dos quatroanos do primeiro mandato de FHC, de 2,6%,já em si pífia, repetiu-se no primeiro mandatodo presidente Lula, a despeito da promessa

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desse último de proporcionar um "espetáculodo crescimento" em seu primeiro mandato,que terminou tão melancolicamente comoiniciou: o governo do PT começou em 2003com o PIB crescendo 0,54% — havia aquelahistória da herança maldita — e fechou 2006com um crescimento pífio de 2,9%. Ao longodos quatro anos crescemos à taxa média de2,6% ao ano. Descontado o já hoje pequenocrescimento da população, de 1,43% ao ano, ataxa de crescimento per capita anual resul-tante (0,98%) requereria mais de 70 anos paradobrarmos o PIB per capita.

Discute-se muito o PAC e menos o arcabou-ço macroeconômico em que terá que ser inse-rido. Mas, na gestão macroeconômica nin-guém, em sã consciência, imagina que a "tría-de virtuosa" da macroeconomia — o regime detaxa de câmbio flexível, a manutenção de su-perávits primários que mantenham aproxi-madamente constante a relação dívida/PIB eo regime de metas de inflação — possa sersubstituída por alguma fórmula alternativa depolítica macroeconômica.

O câmbio flexível mostrou que veio para fi-car. Não que o regime não apresente problemasnesse período de transição. A taxa de câmbio deequilíbrio aparentemente tornou-se mais baixae afetou a estrutura das exportações, privile-giando as exportações com maior conteúdo dematérias primas, em detrimento de produtoscom maior teor tecnológico. A despeito dascontínuas intervenções do Banco Central, com-prando divisas para aumentar suas reservas —que já superam 100 bilhões de dólares — e pro-curar sustentar o câmbio, este volta sempre pa-ra o seu valor mais apreciado. Não parece haversolução a curto prazo, já que toma tempo paraque os aumentos de produtividade no setor in-dustrial de bens com maior conteúdo tecnoló-gico voltem a ser competitivos.

O regime de metas de inflação pode ter sur-preendido a muitos pelo seu sucesso em que-brar a espinha da inflação e mantê-la em pata-mares europeus e mostrou-se de qualidade.Os efeitos colaterais são conhecidos (a perma-nência de altas taxas reais de juros, freando oinvestimento e o crescimento), mas decorremnão propriamente da política monetária, masdos excessos expansionistas da política fiscal.A despeito (ou por força) das críticas contra osjuros altos, esses foram reduzidos até agora emseis pontos percentuais e a expectativa é quecaiam ainda um pouco, dependendo dos ru-mos da política monetária dos Estados Uni-dos. Como se sabe, o Federal Reserve aumen-tou a taxa de juros básica dos EUA de 1% para

Apesar da boaintenção do PAC, aoferta de energialimita, na prática, ocrescimento a nomáximo 5%.Na foto, ahidrelétrica deXingó, na divisaentre Alagoas eSergipe.

Evelson de Freitas/AE

o governo do PTcomeçou em 2003com o PIB crescendo0,54% - haviaaquela história daherança maldita - efechou 2006 comum crescimento pífiode 2,9%.

O grande desafiode 2007, como de restojá vem sendo desde aConstituição de 1988, érestabelecer ascondições mínimas degovernabilidade dascontas públicas.

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5,25% ao ano, ao mesmo tempo em que redu-zíamos a Selic. Em conseqüência, o diferencialentre as duas taxas de juros reduziu-se acen-tuadamente, aproximando-se do valor quemantém aqui os fluxos financeiros internadosexatamente para beneficiar-se do diferencialde juros. Ainda há espaço para alguma redu-ção da Selic em 2007, mas esse espaço é menoragora que no passado.

O grande desafio de 2007, como de resto jávem sendo desde a Constituição de 1988, é res-tabelecer as condições mínimas de governabi-lidade das contas públicas, perdidas com asdisposições da Carta Magna.

O nó da questão é o crescimento desordena-do das despesas de custeio e a incapacidade decontinuar financiando essas despesas com oaumento da carga tributária. Esse nó já redu-ziu a capacidade de investir do Estado em in-fra-estrutura a pouco mais de 1% do PIB. Se oPAC for bem-sucedido, será possível dobraros investimentos do setor público. Mas conve-nhamos, não é passar de 1% para 2% do PIB

que fará o País retomar o rumo de crescimentoa taxas da ordem de 5% ao ano. É fundamentalaumentar de forma significativa o investimen-to privado, como, aliás, pretende o PAC. Mas,para isso é unânime o sentimento que nos faltaum marco regulatório que assegure ao inves-tidor condições similares às disponíveis emoutros mercados. Foi isso que impediu inves-timentos privados suficientes em energia aolongo de toda a gestão anterior. Disso resultaque facilmente se alcança o limite de geraçãode energia necessário para sustentar qualquertaxa de crescimento um pouco maior que asatualmente observadas. Nada indica que até omomento a definição de um marco regulatórioapropriado seja prioritária.

Se não tivemos ainda uma mudança signi-ficativa no marco institucional interno, au-mentaram as possibilidades de turbulência nocenário externo. Há uma crescente percepçãode que finalmente as autoridades chinesaspossam vir a tomar medidas para ajustar ocrescimento do país às disponibilidades desua infra-estrutura interna. A turbulência nasbolsas de valores é indicativo dessa possibili-dade e sinaliza a necessidade de maiores cui-dados com o que pode vir de fora.

Entre os potenciais prejudicados estarão osexportadores de produtos primários, nós aí in-cluídos. Nos quatro anos do governo anteriortivemos a maior oportunidade de ajustar nos-sa economia, fazer as indispensáveis refor-mas, dar um choque de capitalismo na econo-mia, e aproveitar um ambiente externo que tal-vez não esteja disponível nos próximos qua-tro. Esse ambiente foi tão benéfico, que nãosomente impulsionou a economia americana eevitou que a economia mundial caísse em no-va Grande Depressão, como a dos anos 30, massustentou também a retomada da economiaeuropéia e o crescimento quase milagroso dospaíses emergentes. Se não aproveitamos a boamaré, é porque não introduzimos as necessá-rias reformas para acompanhar o que ocorreno resto do mundo.

A Índia tornou-se um motor do crescimento;a China, até agora, ainda não conseguiu reduzirsua espetacular taxa de crescimento, que tantosproblemas já lhe causam, entre eles a concentra-ção da renda, a incapacidade da infra-estruturade acompanhar o crescimento e a deterioraçãodo meio ambiente. Todo esse quadro pode mu-dar, ou por um aprofundamento da políticaeconômica americana, de privilegiar o ajustemonetário e estancar as pressões inflacionáriasque se seguiram ao aborto da segunda GrandeDepressão, última grande obra do "maestro"

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Alan Greenspan; ou por uma abrupta desace-leração do crescimento da China.

Torcendo para que esse cenário não se mate-rialize, manda o bom senso prever para prover.Quem substituirá o "motor de crescimento" dasexportações no PIB brasileiro? Ainda em 2006, ovolume físico das exportações cresceu a uma ta-xa média superior à do comércio mundial, de15% ao ano. Crescemos onde temos vantagenscomparativas, notadamente nas atividades li-gadas ao agronegócio e intensivas no uso de re-cursos naturais. Pelas suas características, essaatividade é menos sensível às variações na taxareal de câmbio e mais robusta diante de episó-dios de valorização cambial, como o que atra-vessamos presentemente.

Não somente as exportações contribuírampara a manutenção do crescimento da produ-ção e do emprego. O enorme ingresso de divi-

sas decorrente do aumento das exportaçõespermitiu um crescimento também expressivodas importações, mais acelerado em 2006 queo próprio crescimento das exportações. O au-mento significativo das importações contri-buiu para a modernização industrial ocorridanesses últimos três anos e barateou os produ-tos destinados ao mercado interno — permi-tindo ao consumidor o acesso a produtos me-lhores e mais baratos, o que se reflete em ga-nhos de bem-estar para os consumidores.

A expectativa para 2007 é de sustentação dopatamar que já atingimos nas exportações e deaumento das importações, reduzindo o saldocomercial (recorde em 2006). A persistir a po-lítica de redução da liquidez americana, é pos-sível uma retração nas exportações, com umsaldo comercial menor.

O resultado final da balança comercial, porcerto, depende em larga medida de diversosfatores, a maior parte deles fora de nosso con-trole. Qualquer que seja a explicação para a ex-pressiva valorização do real a partir de 2003,não há dúvida que os fluxos de capital são par-te dessa explicação. Esses fluxos, ao longo dogoverno anterior, se deram pelo menos emparte em resposta ao enorme diferencial entreas taxas de juros interna e externa, mesmo le-vando em conta o prêmio de risco dos inves-timentos em real.

Estamos agora em meio a um processo de re-dução desse diferencial, tanto pela elevação dataxa de juros norte-americana, como pela redu-ção, lenta e segura, da Selic. Um forte apertomonetário nos EUA, ainda que também lento eseguro, desviaria parte dos fluxos de capitaisdo Brasil para o mercado dos países desenvol-vidos. É de se imaginar que esse redireciona-mento dos fluxos de capitais, ainda que parcial,teria algum impacto sobre a taxa nominal decâmbio, no sentido da desvalorização do real.Se isso vier a ocorrer, o efeito sobre a balança co-mercial será ambíguo, já que a redução da liqui-dez internacional reduzirá o crescimento mun-dial (afetando negativamente a demanda nosmercados de destino de nossas exportações) etornará mais caras as importações, provavel-mente reduzindo sua taxa de crescimento.

Será também interessante avaliar os efeitosde um possível estreitamento da liquidez in-ternacional sobre a inflação brasileira. A partirdo Plano Real, começamos a nos habituar aconviver com preços mais estáveis; vivemoshoje como em um país europeu, com a inflaçãofechando o ano abaixo de 3%. Taxa digna dosmelhores anos do século 19, em pleno regimede padrão-ouro.

Para desamarrara economia, comoquer o presidente,seria precisograndesmudançasinstitucionais.Nas fotos, fila decaminhões noPorto deParanaguá eacima o Porto deSantos.

Rodolfo Buhrer/Gazeta do Povo

Jonne Roriz/AE

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inclui essas parcelas da população na cidada-nia são, primeiro, o trabalho, que traz sustentoe dignidade; segundo, o investimento em ca-pital humano (saúde e educação), que aumen-ta a produtividade do trabalho e o rendimentodo trabalhador; terceiro, o sentimento de quesão respeitados o direito à vida, à liberdade, àpropriedade e à capacidade de cada um esco-lher o próprio destino.

Trabalho formal não há, porque a economianão cresce. O direito à vida é negado de formasistemática, com a crescente captura do mono-pólio do uso da força, que pertence ao Estado,por gangues rivais, contra as quais o Estadomostra-se impotente. A liberdade persiste pe-la resistência da cidadania diante de todos osesforços de sufocá-la na gestão passada, espe-cialmente no direito de livre expressão. O di-reito à propriedade é diariamente questiona-do no campo e nas grandes cidades. Sem essesdireitos, sem trabalho e sem emprego, como osmarginalizados podem ir além da mera sobre-vivência e aspirar escolher, para si e seus filhos,seus próprios destinos?

Esse é o país que o novo governo encontra. Osenhor presidente poderia, se tivesse condi-ções políticas para tanto, dar um choque de ca-pitalismo no País nos próximos quatro anos,entrando para a história como o maior presi-dente da nação. Não o fará, pelos compromis-sos que tem com os que o elegeram. Se tudocorrer bem, poderemos ter mais quatro anosdo mesmo, no Brasil que saiu das urnas.

Uma redução da liquidez internacional, porseu efeito sobre a desvalorização do real, poderáacelerar um pouco a inflação. Não acelerarámuito, contudo; a lei do Plano Real foi sábia emimpedir reajustes de contratos com duração in-ferior a um ano. Com isso, aluguéis, salários euma infinidade de contratos permanecerãoamarrados aos seus valores nominais correntes,independentemente do que possa vir a ocorrercom o câmbio — e causando, como tudo na vida,perdas e danos para um dos lados de cada umdesses contratos. Mudarão, na eventualidade deuma maior desvalorização do real, os preços dosbens transacionados internacionalmente: amaior parte dos grãos, minérios e muitos produ-tos industrializados, afetados pela elevação dospreços em reais desses produtos. E os efeitos sefarão sentir eventualmente ao longo da cadeiaprodutiva, com o passar do tempo. Nada, con-tudo, que indique uma mudança significativado patamar de inflação que o mercado já estáprevendo, em torno de 4,5% até o final do ano.

O mote do governo é o do crescimento cominclusão. A parte do crescimento, como se viu,foi pífia no primeiro governo e não haverátempo hábil para acelerar de forma significa-tiva o crescimento em 2007. Terá se salvado pe-lo menos a inclusão?

Tenho enorme resistência em considerarprogramas de assistência social como progra-mas de inclusão social. Pela sua natureza, po-dem quando muito aliviar situações de pobre-za extrema, em condições transitórias. O que

"Tenho enormeresistência emconsiderarprogramas deassistência socialcomo programas deinclusão social. Pelasua natureza,podem quandomuito aliviarsituações de pobrezaextrema, emcondiçõestransitórias".

Eduardo Knapp/Folha Imagem

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54 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007Corbis

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O Brasil vem apresentando taxasmedíocres de crescimento, tantoem relação às suas necessidadese possibilidades, como em com-

paração com o desempenho das demais naçõesconsideradas emergentes, que tem se aprovei-tado do cenário externo extremamente favorá-vel que tem predominado na última década.Em conseqüência, o país não gera recursos quepermitam melhorar de forma significativa opadrão de vida de sua população vem perden-do posições no rankingdas nações e, o que é pior,sendo, cada vez mais, relegado pelas grandesempresas multinacionais nas decisões para arealização de novos empreendimentos.

O debate dobre as razões pelas quais o Bra-sil tem tido esse baixo desempenho econômiconos últimos anos tem se centrado, regra geral,nos problemas conjunturais, que são realmen-te sérios, das altas taxas de juros e da elevadatributação, negligenciando os aspectos estru-turais que influenciam os resultados pouco sa-tisfatórios da economia brasileira.

Dentre eles, sem nenhuma dúvida, a baixaprioridade dada à educação, mas também, afalta de atenção com o papel das instituições ede reconhecimento da importância do empre-endedor como agente do desenvolvimento.

CAUSAS DO DESENVOLVIMENTO

Os historiadores e economistas pesquisamhá muito tempo quais são fatores favoráveisao desenvolvimento das nações, buscando en-tender porque alguns países são pobres, en-quanto outros, muitas vezes com condiçõessemelhantes, são prósperos, e quais as causas

Empreendedorismo,instituições e

desenvolvimento

Andrea Felizolla/LUZ

Marcel DomingosSolimeoEconomista esuperintendente do Institutode Economia GastãoVidigal da ACSP

INTRODUÇÃO que parecem condenar alguns povos ao sub-desenvolvimento. Atribuía-se, inicialmente, odesenvolvimento a aspectos geográficos, co-mo localização, clima e recursos naturais, mas,posteriormente, o progresso de países poucodotados pela natureza fez com que se buscas-sem outras explicações que, se não negavam aimportância desses fatores, incluíam outros,como a educação e a tecnologia, como contri-buições importantes para o crescimento daseconomias. Adam Smith, em sua obra A Rique-za das Nações, que se tornou a base da economiacapitalista, mostrava que a especialização e adivisão racional do trabalho permitia a inova-ção tecnológica e promovia a industrializaçãoe o desenvolvimento dos países.

Durante décadas, os economistas discuti-ram crescimento e desenvolvimento comosendo conceitos semelhantes e, dependendode sua orientação, defendiam mais Estado oumais mercado como solução. Posteriormenteos debates evoluíram para mostrar as diferen-ças entre crescimento, mais facilmente induzi-do pela intervenção estatal, e desenvolvimen-to que, mais do que a expansão do PIB duranteum período, significa a modernização e maiorcomplexidade da economia, criando condi-ções estáveis e sustentáveis, para a elevação dopadrão de vida da população.

Economistas como Douglas North e RonaldCoase, estabeleceram a relação entre Estado emercado, ao demonstrar a importância das ins-tituições (que dependem em grande parte doEstado) para o funcionamento do mercado e,portanto, para o desenvolvimento das nações.Entende-se por instituições a Constituição, asleis, as normas e regulamentos, o funcionamen-to dos órgãos públicos e do judiciário, e a pró-pria conduta da sociedade, isto é, seus valores.Para eles, as macro instituições, como os siste-

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56 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

mas legal e financeiro, fornecem a estrutura nas quaisas transações ocorrem, podendo oferecer incentivosou desincentivos para as mesmas. Assim, os "custosde transação" são afetados por obstáculos decorren-tes das instituições, como, por exemplo, o de fazercumprir um contrato ou, obter uma licença.

John Williamson, que se tornou célebre (para obem e para o mal) como autor do Consenso deWashington, afirmou que é necessário reconhecer aimportância de desenvolver a capacidade dos go-vernos de "monitorar e supervisionar o sistema fi-nanceiro, estabelecer seguro direito de propriedadee construir as instituições necessárias para o desen-volvimento econômico, incluindo um Banco Cen-tral independente, um sistema de controle do orça-mento e agências que possam promover o aumentoda produtividade industrial".

David Landes, professor de história e economiapolítica na Universidade de Harvad em seu livro ARiqueza e a Pobreza das Nações, analisa as razões por-que algumas nações, ou regiões, que foram próspe-ras no passado, não evoluíram, enquanto outrasque, no mesmo período (alguns séculos atrás),eram pobres, se desenvolveram e atualmente os-tentam um elevado padrão de vida. Landes desta-ca como fatores fundamentais, além das institui-ções, como o direito de propriedade e o respeito aoscontratos, outros, como a educação e certos valo-res, como a abertura para as inovações, que conduzao progresso tecnológico. É evidente que a abertu-ra às inovações pressupõe liberdade para empre-ender e a garantia da propriedade intelectual.

O PAPEL DO EMPREENDEDOR

Nas últimas décadas, em muitos países, especial-mente nos mais ricos, se reconhece o papel funda-mental do empreendedor para o desenvolvimento ese busca meios para estimular o surgimento, ou for-talecimento, do "espírito empreendedor". Estudos epesquisas procuram conhecer as características dosempresários, suas motivações, valores e opiniões,com vistas à adoção de políticas públicas que possamcontribuir para o "empreendedorismo".

Diversas pesquisas sobre as motivações que le-vam as pessoas a constituírem uma empresa mos-tram, embora com diferentes graus de abrangência,que: "ser seu próprio patrão", " prover uma ocupaçãopara si e para familiares" e "buscar reconhecimento eauto-realização" figuram como principais razões.

No primeiro caso, o desejo de "ser seu próprio pa-trão", reflete tanto um espírito independente, comodesejo de liberdade, rejeição a se submeter a qualquerautoridade ou hierarquia, ou uma experiência nega-tiva como empregado. A segunda razão, "criar seupróprio emprego" pode ser resultante do desempre-go ou da formatura em alguma profissão, e deve va-

Diversas pesquisas sobreas motivações que levamas pessoas a constituírem

uma empresa mostram,embora com diferentesgraus de abrangência,

que, 'ser seu própriopatrão', 'prover uma

ocupação para si e parafamiliares' e 'buscar

reconhecimento e auto-realização', figuram

como as principaisrazões. O 'desejo de ficar

rico' não aparece nasprimeiras colocações.

Milton Mansilha/Luz

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Adam Smith, autorde A Riqueza dasNações. Acima, oeconomista inglêsJohn Williamson:

os governosdevem garantir o

direito depropriedade.

Rafael Hupsel/Luz

Paulo Pampolin/Hype

Milton Mansilha/Luz

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57JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Como resultado datributação elevada, dacomplexidade einstabilidade dalegislação e a burocraciaexcessiva, verifica-seque uma parcelaextremamente grandeda economia opera nainformalidade.Igualmente contundentessão os dados dainformalidade nomercado de trabalho,onde 60% dostrabalhadores nãogozam de qualquerproteção legal.

Patrícia Cruz/Luz

riar muito em função da situação do mercado de tra-balho. O último grupo de respostas, " buscar reconhe-cimento e auto-realização" contempla duas linhas demotivações: uma que considera "ser empresário" fa-tor de projeção social, outra se refere ao objetivo detransformar em realidade uma invenção, inovaçãoou projeto. O desejo de "ficar rico" não figura entre asprincipais razões apontadas pelos entrevistados, em-bora a necessidade de obtenção de recursos para a so-brevivência tenha sido destacada. Essas pesquisasmostram que são pequenas as diferença entre as mo-tivações do empreendedor nos diversos países, eapontam para a necessidade de se estimular o "espí-rito animal" do empresário de que falava Keynes,mas rejeitam a tese do "homus economicus", isto é,que o único, ou principal, motivo do empreendedo-rismo seja apenas o da busca da riqueza. Se assim fos-se, no Brasil não haveria empresários, porque a racio-nalidade econômica levaria a todos que possuem re-cursos, a aplicá-los no mercado financeiro.

O papel das instituiçõesA história econômica dos países desenvolvidos

confirma o importante papel representado pelas ins-tituições para o surgimento e desenvolvimento deuma classe empresarial ativa, a criação de empresas, epara o desenvolvimento. Assim, mais do que planose planejamento centralizado, é necessário a existên-cia de um ambiente institucional favorável ao flores-cimento do espírito empreendedor e ao funciona-mento da atividade empresarial.

O sistema de economia de mercado, para funcio-nar, necessita de um marco institucional adequadoque possa propiciar o uso mais eficiente dos recur-sos disponíveis e promova o desenvolvimento.

Os custos de transaçãoToda atividade econômica pode ser traduzida por

intercâmbio estando sujeita aos chamados "custos detransação", os quais são parte das negociações, masnão se destinam a qualquer finalidade produtiva.Quanto menores os "custos de transação", mais as ati-vidades produtivas podem se desenvolver.

Tais custos envolvem a obtenção de informaçõesnecessárias à realização dos negócios, negociaçãode acordos e contratos, acompanhamento do cum-primento dos contratos, as sanções em caso de des-cumprimento, o atendimento das exigências buro-cráticas e fiscais, etc.

As instituiçõesOs "custos de transação" são influenciados, posi-

tiva ou negativamente, pelas instituições, que po-dem ser definidas como as "regras do jogo" sob asquais o mercado deve funcionar, bem como a formae o grau em que tais "regras" são cumpridas, e a se-gurança que oferecem para os negócios.

Luiz Prado/Luz

Pablo de Sousa/Luz

Rafael Hupsel/Luz

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58 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Assim, não é apenas a Constituição e o conjunto de leis eregulamentos que determinam o melhor ou pior "ambienteinstitucional" para a atividade empresarial, mas, também, aforma como o governo e o sistema político atuam na preser-vação do arcabouço jurídico, e como o poder judiciário fun-ciona para garantir os direitos.

Inclui-se, ainda, como parte das "instituições" o conjunto deatitudes e valores aceitos pela sociedade , e o seu grau de ade-são às "regras" do convívio social. Sem a aceitação consensualdas regras fundamentais por parte da sociedade, gera-se um"ambiente institucional" marcado pelo conflito, que produzinsegurança e incerteza.

As nações que apresentam o maior grau de liberdade eco-nômica, são as que ostentam os mais elevados níveis de "rendaper capta", demonstrando que instituições que favorecem a li-vre iniciativa constituem condição necessária para o desenvol-vimento econômico, embora não se possa ignorar outros fato-res, especialmente o grau de educação da população.

As instituições brasileirasO Brasil tem um longo caminho a percorrer para que suas

instituições possam ser equiparadas às das nações mais desen-volvidas, seja em termos de liberdade econômica, estabilidadedas regras, respeito à propriedade e aos contratos, fatores que,ao lado da educação, são fundamentais para o desenvolvi-mento econômico.

As "instituições" brasileiras não favorecem o espírito empre-sarial e o desenvolvimento econômico e social, a começar pelaConstituição que, apesar das reformas já efetuadas, ainda repre-senta sério obstáculo ao crescimento, pelo excesso de regulação,casuísmo, consagração de privilégios, manutenção de regrasoriundas de uma economia fechada e intervencionista e estabe-lecimento de uma estrutura federativa cara e desequilibrada.

Soma-se a isso uma infinidade de leis e regulamentos queoneram fortemente os "custos de transação", com exigênciasburocráticas descabidas herdadas de um Estado dirigista ecentralizador, e o enfraquecimento observado com relação àsagências reguladoras, às quais cabe normatizar, fiscalizar e ga-rantir o cumprimento dos contratos, para diversas atividadesfundamentais, cujos investimentos de longo prazo, necessi-tam de previsibilidade e estabilidade das regras.

Direito de propriedade e respeito aos contratosA garantia do direito de propriedade e do respeito aos con-

tratos se constitui em um dos pilares fundamentais da economiade mercado, juntamente com a liberdade de empreender, sem oque não se garante a credibilidade das regras do jogo e a con-fiança dos agentes econômicos. Parece claro que o direito depropriedade vem sendo relativisado no Brasil na área rural, aose definir a função social da propriedade e estabelecer critériosabstratos e absurdos para sua caracterização. Mais do que isso,ele é constantemente desrespeitado pelas invasões de proprie-dades agrícolas, em flagrante agressão a esse direito e, o que épior, sem que haja a punição dos culpados por tais atos.

Quanto aos contratos, também não se pode considerar queos mesmo sejam sempre respeitados, pois são freqüentes as in-tervenções do Executivo, (ou das agências reguladoras), e,

mesmo, do Judiciário, alterando suas condições de forma uni-lateral (planos de saúde, tarifas públicas, contratos com cláu-sula de correção cambial etc.).

O novo Código Civil introduziu a "função social dos con-tratos", o que vem enfraquecer sua força como instrumentode negociação.

Omissão do EstadoQuando o Estado deixa de cumprir sua obrigação de defen-

der o direito de propriedade, coloca em risco a convivência de-mocrática. As invasões de áreas privadas, enfraquecem o direitode propriedade no campo e geram incerteza, desestimulandoinvestimentos, especialmente externos, na atividade agrícola.

A omissão das autoridades, e a indiferença da sociedade comrelação à invasão de propriedades agrícolas, acaba estimulandooutros grupos a adotarem igual atitude em relação à imóveis ur-banos, transferindo para a cidade a insegurança em relação aopatrimônio, sem contar a violência associada a essas ações.

Incerteza e instabilidadeSomente com a estabilidade das regras ou, pelo menos de

seus princípios básicos, e a certeza de que os direitos serão ga-rantidos, o setor privado poderá ter segurança para investir comuma perspectiva de longo prazo, condição indispensável paraque o país possa se desenvolver. As freqüentes intervenções do

Leonardo Rodrigues/Hype

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59JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

governo no mercado, a falta de definições claras e as constantesmudanças de regras prejudicam a previsibilidade necessária àrealização de investimentos e negócios de longo prazo.

O papel do JudiciárioSe o Judiciário tem sido o garantidor do direito de proprie-

dade, ao determinar a reintegração de posse de áreas invadi-das, o mesmo não ocorre com relação à proteção dos contratos,não somente devido à morosidade da Justiça, mas, muitas ve-zes, decidindo contra os termos dos mesmos, a pretexto deuma hipotética "justiça social", o que traz grandes prejuízos aosetor privado, inibindo o desenvolvimento econômico.

Muitas atividades não encontram a segurança necessáriapara a realização de negócios, pois a incerteza quanto ao cum-primento dos contratos aumenta os "custos de transação", ou amorosidade na execução das garantias impede o surgimentode um mercado de hipotecas que permitiria o financiamentohabitacional e a expansão da construção civil, grande geradorade emprego e renda.

TributaçãoNo tocante à tributação, o Brasil apresentou a mais violenta

elevação da carga tributária de que se tem notícia em qualquerpaís em tempo de paz, passando a arrecadação fiscal da casados 26% no início dos anos 90 para mais de 38 % do PIB em 2006,sem que tivesse havido contrapartida em bens e serviços quepudesse justificar essa escalada tributária.

Agrava a situação a forma como o governo vem promoven-do o aumento da carga tributária, com a utilização de impostosde péssima qualidade, como as contribuições, que distorcem ofuncionamento da economia e retiram a competitividade dasempresas tanto no mercado interno como no internacional.

Burocracia e informalidadeAo aumento da carga tributária, deve-se adicionar a cres-

cente burocracia resultante da legislação tributária, criandoum emaranhado de leis, decretos, regulamentos, portarias,normas e atos a que estão sujeitas empresas e cidadãos. Comoresultado da tributação elevada, da complexidade e instabili-dade da legislação e da burocracia excessiva, verifica-se queuma parcela extremamente grande da economia opera na in-

formalidade. Igualmente contundentes são os dados da infor-malidade no mercado de trabalho, onde 60% dos trabalhado-res não gozam de qualquer proteção legal.

Observa-se uma total inadequação das exigências legais edos encargos sobre a mão-de-obra, que faz com que mais dametade da classe trabalhadora esteja na informalidade, alémde se verificar um alto índice de desemprego e subemprego.

Embora a informalidade seja, no geral, uma resposta cria-tiva aos obstáculos criados por excesso de tributos e de buro-cracia, ela implica em custos para as empresas e os trabalha-dores, reduz a eficiência na alocação de recursos e afeta a ar-recadação fiscal.

PERSPECTIVAS PARA ODESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

Apesar do empenho do presidente Lula para que a econo-mia acelere seu crescimento já em 2007, parece pouco provávelque isso venha a ocorrer, porque isso depende dos investimen-tos feitos anteriormente, cujo nível é insuficiente para a expan-são desejada das atividades econômicas. O pior é que, ao quetudo indica, nem nos próximos anos deveremos ter uma taxade crescimento do PIB elevada, apesar das condições externasextremamente favoráveis, porque o governo não mostra qual-quer preocupação com os aspectos institucionais, que são de-terminantes para a decisão dos investimentos privados.

A perplexidade do governo, e a demora em definir a estratégiapara o crescimento acelerado do país, decorrem da visão equi-vocada que tem predominado no âmbito governamental, de quecabe ao Estado promover o desenvolvimento, ao invés de ser umfacilitador e estimulador das atividades do setor privado. Emconseqüência, o governo negligencia suas funções precípuas e osaspectos institucionais relevantes para o empreendedor.

Ao ignorar o papel das instituições, e sua contribuição paraas decisões do setor privado, o governo corre o risco de quesuas projeções de investimentos não se concretizem e que, emconseqüência, a taxa de crescimento do PIB não atinja as me-tas desejadas, o que, além de aumentar a defasagem em re-lação ao desempenho das nações emergentes, pode compro-meter a situação fiscal.

Enquanto o governo não procurar melhorar o ambiente ins-titucional para o investidor, redu-zir sua participação no PIB, cortargastos e diminuir os tributos, eli-minar a burocracia desnecessária,realizar as reformas pendentes, fa-zer respeitar o direito de proprie-dade, estabelecer regras claras pa-ra os projetos de infra-estrutura efortalecer as agências regulado-ras, será difícil aumentar os inves-timentos capazes de produzir a ex-pansão e a modernização da eco-nomia, apesar do cenário externoextremamente favorável que seobserva há alguns anos, mas cujaduração é imprevisível.

O Brasil teve a maisviolenta elevaçãoda carga tributáriade que se temnotícia, passandode 26% do PIB nosanos 90 para 38%em 2006, semcontrapartida embens e serviços.Nas fotos, tenda doFeirão do Imposto,da ACSP no anopassado.

Leonardo Rodrigues/Hype

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60 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Custoda

demissão equalidade

doemprego

Hélio ZylberstajnEconomista e professor da Faculdade de

Economia e Administração da USP

1. Introdução

A demissão é uma das questões mais controversas e complicadas domundo do trabalho. Empregados e empresas têm interesses con-flitantes nessa área. A grande maioria dos empregados apreciamuito a segurança e a previsibilidade na relação de emprego. Para

eles, é muito importante saber se sua fonte de renda está assegurada por umhorizonte de tempo tão largo quanto suas necessidades futuras. Mas, para aempresa é importante ter liberdade para demitir. Nenhum empresário podehonestamente se comprometer com seus empregados a ponto de assegurarseus empregos no futuro. Afinal, o mundo dos negócios é imprevisível.

Este texto trata da questão da demissão, inicialmente descrevendo a legis-lação brasileira. Isso é feito na próxima seção. A seção 3 analisa a relação en t reo custo da demissão e o tempo de serviço e extrai algumas implicações para aempresa. A seção 4 cuida de uma atividade em que o vínculo de emprego ca-racterístico tem curta duração: a agricultura. Essa seção propõe uma solução

No Brasil, arotatividade da

mão-de-obraé grande,

principalmentenas pequenas e

médias empresas.

Renata Jubran/AE

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61JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Agliberto Lima/AE

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para compatibilizar a natureza efêmera das ta-refas agrícolas com a necessidade de reduzir cus-tos de demissão, o consórcio de empregadoresrurais. As seções seguintes estendem a propostapara duas outras situações, a construção civil e oemprego de jovens. A seção 6 apresenta uma sín-tese e algumas considerações finais.

2. O custo da demissão no Brasil

Em todos os países, de alguma forma a le-gislação e/ou a negociação tentam conciliar osinteresses do trabalho e do capital na questãoda demissão. Os mecanismos são os mais di-versos e vão desde o aviso prévio, passam, pe-la indenização na demissão e, em muitos ca-sos, chegam a restrições mais rígidas ou maisflexíveis sobre a própria liberdade de demitir.

Em muitos países os empresários precisamnegociar e justificar demissões, seja com o sin-dicato, seja com o governo. No Brasil, os em-presários têm liberdade para demitir. Nossa

legislação recepciona o conceito da "demissãosem justa causa", que simplesmente não existeem muitos países. Nossos legisladores preferi-ram enfatizar o lado da indenização ao demi-tido, preservando a liberdade de demitir doempresário. O empresário brasileiro pode de-mitir, mas tem de pagar por essa liberdade. Pa-ra demitir é preciso cumprir ou indenizar oaviso prévio de 30 dias e é preciso também re-colher a multa de 50% sobre o valor depositadona conta do FGTS do empregado.

O Aviso Prévio de 30 dias na verdade não se-ria um custo na demissão, se o empresário pre-ferisse que o demitido o cumprisse. Mas, dada adesconfiança recíproca que caracteriza as rela-ções trabalhistas no nosso País, os empresáriospreferem pagar os 30 dias. Dessa forma, o avisoprévio acaba se constituindo em uma parcela daindenização ao demitido. A outra parcela é amulta do FGTS, equivalente a 50% dos depósi-tos do FGTS feitos ao longo do período em queprevaleceu a relação de emprego. São assim,duas parcelas: uma fixa, equivalente a um salá-rio, independente da duração do vínculo. Ou-tra, variável, proporcional ao tempo em que oempregado manteve o vínculo com a empresa.

Muitos empresários incluem no custo da de-missão mais duas parcelas, o 13º proporcional eas férias proporcionais. Embora tenham de serpagas na ocasião da rescisão do contrato de tra-balho, estas duas parcelas não são causadas pelademissão. A cada mês de trabalho na empresa, oempregado acumula 1/12 do 13º e das férias. Senão fosse demitido, estas parcelas teriam de serpagas no devido tempo. O fato de pagar na res-cisão faz a percepção da "conta" ficar mais altapara o empresário, mas estas duas parcelas nãosão indenizatórias. Portanto, devem ser separa-das do custo verdadeiro da demissão.

É também um engano considerar os depó-sitos mensais na conta do FGTS como verba in-denizatória da demissão. O depósito mensaldo FGTS é simplesmente uma parte do salário,que fica retida na CEF. O trabalhador pode sa-car seus depósitos acumulados em algumas si-tuações, sendo a demissão uma delas, mas nãoé obrigado a fazê-lo quando é demitido. Claroque todos preferem sacar, pois os rendimentosdo FGTS são pouco competitivos. Mas, na es-sência, o FGTS é apenas uma parte do salárioque se constitui em poupança compulsória.Não é verba indenizatória.

Nas considerações que se seguem, incluire-mos no custo da rescisão apenas as parcelasque realmente têm natureza indenizatória pa-ra o empregador: o Aviso Prévio de 30 dias e amulta sobre os depósitos do FGTS.

Trabalhadoresque trocammuito deemprego nãosão treinados enão conseguemaumentar suaprodutividade.

Sebastião Moreira/AE

Patrícia Cruz

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3. Custo da demissão e duraçãodo vínculo 1

Quanto custa demitir no Brasil? Como vi-mos na seção anterior, o custo da demissão écomposto de duas parcelas: o Aviso Prévio e amulta do FGTS. A primeira parcela é fixa, in-dependentemente da duração do vínculo, eseu valor é sempre igual a um salário mensal.Vamos tomar um exemplo hipotético: um tra-balhador é demitido depois de permanecerseis meses no emprego. A rescisão do contratoimplica então no pagamento do Aviso Prévio eda multa do FGTS. O Aviso Prévio equivale aovalor de um salário. 2 A multa do FGTS é igualà metade dos depósitos mensais na conta vin-culada do FGTS, que equivalem a 26% de umsalário. Portanto a empresa terá de indenizarseu ex-empregado no valor de 1,3 salários.

Se o vínculo empregatício durar um ano, uti-lizando a mesma maneira de cálculo, a multarescisória subirá para 1,5 salários. Após cincoanos, valerá 3,6 salários, e após quinze anos devínculo empregatício terá chegado a 8,6 salários.Todos estes valores constam estão na coluna (A)da Tabela 1. Esta coluna indica o valor do de-sembolso para firma, quando demite um em-pregado. E é este valor que os empresários con-sideram relevante. E, como esperado, os valoresda coluna crescem linearmente com a duraçãodo vínculo. A conclusão aparentemente óbvia éque o custo da rescisão é tanto maior quantomaior o tempo de casa dos empregados.

Mas há uma outra maneira de abordar essaquestão. Ao invés de considerar o valor total de-sembolsado na rescisão do contrato, podería-mos dividir este valor pelo número de meses tra-balhados. O resultado dessa divisão forneceria ocusto mensal da rescisão. Ou seja, quanto teriacustado a rescisão em cada mês trabalhado. Ocusto mensal da rescisão aparece na coluna (B)da mesma Tabela 1. Ao contrário da coluna (A),agora os resultados são decrescentes com o tem-po de serviço. Para demitir um empregado apósseis meses, a empresa precisa pagar 21% do seusalário, em cada mês trabalhado. O custo mensalda rescisão cai para 13% do salário para vínculosque duram um ano, vai para 6% quando o vín-culo de emprego tem cinco anos e finalmente pa-ra 5% do salário quando chega aos dez anos.

Os resultados da coluna (B) indicam queempresas com menor rotatividade de mão-de-obra têm menores custos de rescisão, emboraos valores desembolsados a cada rescisão se-jam maiores. A coluna (A) apresenta os custosda demissão sob o regime de caixa, enquanto acoluna (B) nos mostra as despesas de rescisões

contratuais sob o regime de competência. Ocontraste entre as duas abordagens fica maisevidente com o auxílio dos Gráficos 1 e 2,que representam respectivamente as colunas(A) e (B) da Tabela 1. O Gráfico 1 passa apercepção de que o custo de demissão aumen-ta com o tempo de serviço, enquanto a mensa-gem do Gráfico 2 é de que o custo da rescisão

Tabela 1

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64 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Gráfico 1

Gráfico 2

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Gráfico 3

é continuamente decrescente, e fica pratica-mente estável em torno dos 5% do salário apartir do nono ano de contrato de trabalho.

A conclusão dessa simulação é simples e di-reta: a percepção do empresário que adminis-tra seu negócio sob o regime de caixa sobre oscustos da demissão no Brasil é exatamenteoposta à do empresário que opera no regimede competência.

O senso comum nos sugere que a abordagemdo regime de competência e a visão de longoprazo que este regime induz seria mais adequa-do para avaliar os custos da demissão. Sendoassim, podemos nos perguntar quais são aspossíveis implicações para a gestão da empresaque poderíamos extrair dessa conclusão.

O que ocorre quando uma empresa praticarotatividade excessiva no seu quadro de cola-boradores? Se a empresa agisse assim, que éum caso isolado, provavelmente não perma-neceria no mercado por muito tempo, pois te-ria uma desvantagem competitiva em relaçãoàs demais. Seu custo de mão-de-obra seriamaior que o das concorrentes.

Mas sabemos que no Brasil, a rotatividadeda mão-de-obra é grande. De acordo com osdados da RAIS 2, nas empresas pequenas e mé-

dias (as que têm até 249 empregados), pratica-mente metade dos empregados não permane-ce mais que um ano no emprego. Nas empre-sas grandes (com 250 ou mais empregados),1/3 dos trabalhadores saem durante seu pri-meiro ano no emprego. No conjunto de todasas empresas, a proporção de empregados queficam um ano ou menos é de 41%. É, portanto,um quadro de rotatividade crônica.

De acordo com nossa simulação, as empre-sas brasileiras pagam um preço alto por de-mitirem precocemente seus empregados. Acada mês, para cerca de 40% de seus empre-gados, sua despesa salarial é acrescida de al-go entre 13% e 26% (duas primeiras células dacoluna (B) da Tabela 1)! São números im-pressionantes, que devem ter um impacto nomercado. Provavelmente, esse grande volu-me de gastos com demissões deve provocarum processo de ajuste.

Como uma grande parte dos trabalhadoresespera ser demitida no primeiro ano de servi-ço na empresa, as verbas rescisórias fazemparte da sua "renda esperada". Afinal, é "natu-ral" trabalhar alguns meses, ser demitido e re-ceber o aviso prévio e a multa do FGTS. Paraestes trabalhadores, a renda é formada pelo sa-

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lário mensal e pelos valores recebidos a títulode indenização pela demissão. Portanto, é pro-vável que estes trabalhadores aceitem saláriosmenores, já que recebem indenizações fre-qüentes. Portanto, as demissões não "encare-cem" o custo do trabalho, porque fazem parteda renda dos trabalhadores. Se a rotatividadefosse menor, provavelmente, os salários prati-cados seriam maiores.

Mas a rotatividade implica em outro tipo decusto, que onera a economia como um todo:trabalhadores que "rodam" muito não têmtempo de serem treinados em seus empregos eassim não conseguem aumentar sua produti-vidade. Esse é o lado custoso e invisível da ro-tatividade excessiva. Gráfico 3

Do que foi exposto até aqui, podemos extrairmais uma conclusão: o mercado de trabalho bra-sileiro opera incorrendo em custos adicionais,que são de dois tipos. O primeiro é o que pode-mos chamar de custos de transação. Nesta cate-goria estão os custos burocráticos, as despesascom recrutamento e seleção dos substitutos eprincipalmente os custos das reclamações traba-lhistas induzidos pelas demissões freqüentes. Osegundo grupo de custos é constituído por todasas perdas decorrentes da restrição ao crescimen-to da produtividade. Trabalhadores que ficampouco tempo deixam de ser treinados para me-lhorar o desempenho. A "troca" de salário por in-denização acima descrita deve provocar uma in-satisfação salarial. Com menor rotatividade, aempresa poderia pagar salários maiores, sem in-

correr em custos maiores.Os trabalhadores "perce-beriam" que seus saláriossão maiores e provavel-mente responderiam commaior produtividade.

Se nossa descrição dofuncionamento do merca-do de trabalho estiver cor-reta, estamos identifican-do uma oportunidade pa-ra empresários dispostos amudar o estilo de gestão derecursos humanos. Em-presas que conseguissemreter seus trabalhadorespoderiam se aproveitardos ganhos decorrentes,enquanto seus concorren-tes continuariam a incorrernos custos acima mencio-nados. Os valores aquiidentificados indicariamque empresas que aprovei-

tassem esta oportunidade, poderiam adquirirvantagens competitivas apreciáveis.

Naturalmente, essas oportunidades existi-riam naquelas atividades nas quais empregosde longa duração fossem compatíveis com o ti-po de negócio e o tipo de mercado onde a em-presa opera. Sabemos, porém, que há ativida-des em que o vínculo de emprego é, necessa-riamente, de curta duração, como por exem-plo, a agricultura e a construção civil. Nestescasos também seria possível reduzir os custosdas demissões. Mas, para tanto, a empresa te-ria de agir coletivamente, junto com outrasempresas que operam no seu mercado, orga-nizando consórcios de empregadores, quedescreveremos na próxima seção.

4. Dividir custos e riscos da demissão:os consórcios de empregadores rurais

O emprego na agricultura é sazonal. Os fazen-deiros mantêm um pequeno número de empre-gados permanentes e contratam grandes gruposde trabalhadores para a colheita, na época da sa-fra. Os trabalhadores são contratados por um pe-ríodo curto, em geral de cinco a sete meses. Aofinal da safra, são demitidos, recebendo os doistipos de indenização descritos na seção 2, o AvisoPrévio equivalente a um salário mensal e a multado FGTS, proporcional ao número de meses tra-balhados. No ano seguinte, o fazendeiro contra-tará novamente um grande grupo de trabalha-dores. A cada final de safra, os trabalhadores

Joel Silva/Folha Imagem

No campo,começam a surgirconsórcios deempregadoresrurais paracontratação demão-de-obra. Oempregotemporário setransforma emempregopermanentecompartilhado.

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temporários são demitidos. A cada início de sa-fra, são novamente contratados. E a rotina se re-pete, ano após ano. Os custos de demissão são as-sumidos, ano após ano. Cada R$ 1,00 que os fa-zendeiros pagam a seus trabalhadores temporá-rios custa mais R$ 0,21, quando os trabalhadoressão demitidos ao final da safra.

Como os vínculos de trabalho são temporá-rios, não se criam compromissos mútuos de lon-go prazo entre a empresa e seus empregados evice-versa. Sem um horizonte de longo prazo, aempresa não investe em seus empregados: nãooferece treinamentos, não faz prevenção de aci-dentes de trabalho. O trabalhador por seu lado,não se interessa em investir no emprego, que vaiterminar muito em breve. Enfim, a empresa nãoinveste no trabalhador porque não terá tempode recuperar seu investimento. O trabalhadornão investe no seu emprego porque não sabeonde estará trabalhando daqui a pouco. A ati-tude recíproca de descompromisso inibe o cres-cimento da produtividade e de sua contra parte,o salário. Ambos perdem, mas nenhum dos doislados consegue romper o círculo vicioso.

Recentemente, alguns fazendeiros brasilei-ros perceberam que é possível reformular estejogo e construir um círculo virtuoso. Há diver-sos casos de grupos de fazendeiros que forma-ram "consórcios de empregadores rurais" comseus vizinhos nas redondezas do mesmo muni-cípio ou de municípios próximos. O consórcio éapenas um pacto entre pessoas estabelecidocom a finalidade de contratar mão-de-obra so-lidariamente. É uma espé-cie de cooperativa de em-pregadores. Os trabalha-dores são contratados paratrabalhar não para um dosfazendeiros, mas para oconjunto de todos os fa-zendeiros que compõem oconsórcio. Os fazendeirosfazem um planejamentocomum e escalonam a cro-nologia do plantio. Quan-do chega a época da colhei-ta, esta será executada namesma seqüência que foradeterminada no plantio.Os trabalhadores come-çam a colher em uma pro-priedade, depois vão paraa seguinte assim por dian-te. A colheita é "esticada"pelo planejamento e duraalgumas semanas a mais.Quando os trabalhadores

terminam o serviço em uma propriedade, nãoprecisam ser demitidos. Passam para a próxi-ma propriedade, ainda sob o mesmo vínculo deemprego. Terminada a colheita, os trabalhado-res começam o trabalho de manutenção do soloem cada uma das propriedades, sucessivamen-te. Com o tempo que sobra até a próxima safra,o consórcio de empregadores pode oferecerprogramas de treinamento, reciclagem e deeducação geral. O investimento é compartilha-do por todos e todos vão se beneficiar na safraseguinte. Ninguém precisa ser demitido, ne-nhum fazendeiro precisa pagar indenizaçõestrabalhistas por rescisão do contrato de traba-lho. O emprego temporário se transforma ememprego permanente compartilhado. Quandoalguém tem que ser demitido, as despesas serãorateadas por todos os empregadores, solidaria-mente e proporcionalmente à intensidade deutilização do empregado demitido. Os riscos eos custos de demissão não são mais bancadospor um empregador, são compartilhados portodos os fazendeiros do consórcio. Os benefí-cios também: não beneficiam apenas um, mastodos. O consórcio de empregadores rurais éuma espécie de "ovo de Colombo". Muitos em-presários rurais já o utilizam no Brasil. O maisinteressante é que qualquer grupo de empresá-rios pode formar um consórcio de empregado-res, simplesmente registrando o pacto de soli-dariedade no cartório da cidade. É um arranjosimples, viável e perfeitamente compatívelcom a nossa legislação trabalhista.

Jonne Roriz/AE

Na construçãocivil, a criação de

consórcios deempregadores,como existente

no campo,poderia ser uma

plataforma detrabalho

interessante paraentidades declasse e para

administradorespúblicos

regionais e locais.

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68 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

5. O consórcio de empregadores ruraisé replicável em outras atividades?

Há pelo menos mais dois casos nos quais oconceito de consórcio de empregadores pode-ria ser cogitado: a construção civil e o empregode jovens. A seguir, passamos a considerar es-tas duas possibilidades.

Construção civilNesta atividade o vínculo de emprego é bas-

tante curto, e os trabalhadores são substituídosà medida que a obra avança pelas suas diferen-tes fases. A cada final de etapa, a construtora de-mite os trabalhadores e incorre nos custos de in-denização já mencionados. É uma rotina muitoparecida com a da agricultura, que descreve-mos anteriormente. Os custos são também pa-recidos, igualmente causados pelo descompro-misso recíproco que caracteriza vínculos efê-meros. Empresas não investem em treinamen-to porque não recuperariam o investimento.Trabalhadores não investem na empresa por-que sabem que serão desligados muito em bre-ve. As condições são muito semelhantes às daagricultura. Mas, devemos reconhecer, há umadiferença institucional importante.

No caso da agricultura, os consórcios são for-mados por pessoas que se conhecem, que per-tencem a uma mesma vizinhança, muitas vezescom laços de amizade e mesmo de parentesco.Os agricultores não se vêem como concorrentes,muitas vezes são membros de uma mesma co-operativa de produtores e trabalham coletiva-mente. Em um grupo que se conhece ou que estámuito próximo, existem condições para embar-car em uma empreitada baseada na confiança ena solidariedade. Já na construção civil, o rela-cionamento entre os potenciais participantes doconsórcio seria bem diferente. Não há vínculosparecidos com os que unem os agricultores, pelocontrário, os empresários são, de fato, concor-rentes em um mesmo mercado. Mas, isso nãosignifica que não possam firmar um pacto de uti-lização da mão-de-obra. Talvez seja mais difícilconstruir o clima de confiança e de solidarieda-de, mas não seria impossível. Formar estes con-sórcios poderia ser uma plataforma de trabalhointeressante para entidades de classe e para ad-ministradores públicos regionais e locais.

O emprego de jovensO fracasso do Programa Primeiro Emprego

talvez tenha servido para mostrar que incenti-vos tributários são um recurso de efeito limitado,quando se trata de proporcionar oportunidadesaos jovens. Como se sabe, este programa partiu

do diagnóstico de que o custo de contratação for-mal seria elevado e inibiria a empresa de abrirvagas para jovens. O governo Lula ofereceu en-tão um "desconto" nos encargos sociais para em-presas dispostas a admitir pessoas em seu pri-meiro emprego. Depois de quatro anos, houveapenas 4 mil contratações no País todo. É muitoprovável que o diagnóstico estivesse equivoca-do. Talvez a questão do trabalho de jovens sejasemelhante aos dois casos acima apontados: du-ração efêmera de vínculos de emprego.

O jovem não se conhece e nem conhece omercado de trabalho. É natural que precisepassar por vários empregos até encontrar umavaga adequada para o seu perfil, sua persona-lidade e seu projeto de vida. Por essa razão,quando uma pessoa inicia sua vida profissio-nal, troca freqüentemente de emprego, até en-contrar uma vaga mais duradoura. Se for as-sim, devemos supor que as empresas não se-jam muito inclinadas a contratar jovens, poissabem que em pouco tempo terão de demiti-los e arcar com os custos de rescisão.

Joedson Alves/AE

O fracasso doPrograma

Primeiro Empregotalvez tenhaservido paramostrar que

incentivostributários são um

recurso de efeitolimitado, quando

se trata deproporcionar

oportunidadesaos jovens.

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69JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Caso este diagnóstico esteja correto, estamosdiante de uma situação parecida com a da agri-cultura e da construção civil. Podemos entãopensar no mesmo tipo de solução: um consórciode empregadores de jovens. Em um município,ou em um bairro, empresas formariam um pactopara empregar jovens. O consórcio contratariaum jovem e este começaria na empresa A. Se nãose adaptasse ao emprego, poderia mudar para aempresa B, e depois para a C, até encontrar umavaga que lhe fosse mais apropriada. Em nenhu-ma dessas transições de emprego haveria custosde demissão, pois o vínculo de emprego do jo-vem seria com o consórcio. Neste caso de consór-cio de jovens, seria interessante que as empresasque o formassem pertencessem a atividades dis-tintas, exatamente para proporcionar oportuni-dades mais diversificadas aos jovens.

Empresas preocupadas com os temas da res-ponsabilidade social e com a cidadania empre-sarial poderiam cogitar de integrar consórcios deempregadores de jovens. Entidades de classe eassociações poderiam se engajar em programas

desse tipo, para promover oportunidades de in-serção aos jovens trabalhadores. Até mesmo aadministração pública poderia funcionar comofacilitadora e catalisadora de tais programas.

6. Síntese e considerações finais

Neste texto, apresentamos a questão da de-missão sob duas óticas. Primeiro, analisamos ocusto de demitir e mostramos que a legislaçãobrasileira "premia" as empresas que mantémseus empregados mais tempo no emprego. Vi-mos que as empresas com altas taxas de rotati-vidade têm também altos custos de demissão.Em seguida, mostramos que o Brasil tem alta ro-tatividade de mão-de-obra e discutimos breve-mente as conseqüências negativas da rotativi-dade excessiva. Concluímos apontando que aredução da rotatividade seria uma oportunida-de para aprimorar a competitividade da empre-sa que se dispuser a mudar o padrão de relacio-namento com seus empregados.

A partir desse ponto, analisamos as situaçõesem que a relação de emprego é curta, pela pró-pria característica da atividade. Nestes casos, asempresas se vêem diante de custos altos de de-missão e não conseguem alterar o padrão, a nãoser que se juntem a outras empresas. Examina-mos inicialmente o caso da agricultura, na qual oconsórcio de empregadores rurais é uma expe-riência bem-sucedida em alguns municípios esugerimos a extensão dessa estratégia para maisduas situações: a construção civil e o emprego dejovens. Nestes dois casos, argumentamos queagindo coletivamente, empresários poderiamdiminuir o custo da rescisão e criar externalida-des positivas e interessantes para todos.

Finalmente, concluímos recomendandoque entidades de classe e a própria administra-ção pública poderiam dar suporte a essa inicia-tiva, transformando-se em facilitadores paraas iniciativas dos empresários.

1 Por simplicidade, vamos supor que o salário dotrabalhador é constante durante todo o tempo quepermanece como empregado da empresa. Essasimplificação apenas facilita o cálculo do custo darescisão e o entendimento do argumento aquia p re s e n t a d o .2 No final deste texto, o leitor poderá verificar noAnexo, a fórmula de cálculo que utilizamos para ocálculo da multa do FGTS.3 A RAIS é a Relação Anual de InformaçõesSociais, que as empresas entregam anualmente aoMinistério do Trabalho e Emprego, é umaimportante fonte de informações sobre o mercadode trabalho formal no Brasil.

CÁLCULODA MULTADO FGTS

CÁLCULODA MULTADO FGTS

O valor da multa doFGTS depende da du-r a ç ã o d o v í n c u l o :quanto maior o tem-po de serviço, maior amulta do FGTS. A cadamês trabalhado, a em-presa deposita 8% dosalário na conta vincu-lada do FGTS. Metadede 8% é 4,25%. Por-tanto, cada mês traba-l h a d o a c r e s c e n t a4,25% no valor damulta do FGTS.

Temos agora queacrescentar o valor dodepósito no FGTS re-ferente ao 13º salário.A empresa paga o 13ºno final do ano, e reco-lhe sobre ele os 8% pa-ra o FGTS. Mas, parasimplificar o que vempela frente, vamos su-por que a empresa pa-ga o 13º salário em 12p a r c e l a s m e n s a i sequivalentes a 1/12do salário. Assim sen-do, a empresa "depo-sita" 8% de 1/12 do sa-lário a cada mês. Amulta do FGTS seriaentão acrescida demetade dessa peque-na parcela adicional.

N o e x e m p l o d ovínculo que durouseis meses, o valor damulta do FGTS é:

Multa do FGTS refe-rente aos seis salários:(seis meses) x (8%) x ½= 24% do salário

Multa do FGTS refe-rente ao 13º propor-cional: (6/12) x (8%) x½ = 2% do salário

To t a l d a M u l t a d oFGTS: 26% do salário

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70 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

O gás natural é oprotagonista do momento

Divulgação

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71JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

O gás natural é o protagonista domomento. Da mesma formaque em 2001 a discussão sobre oapagão elétrico se popularizou,

apesar de todo o tecnicismo que envolvia aquestão, agora é a vez do gás natural. Desde osmenos informados sobre o assunto até os gran-des conhecedores, todos possuem uma opi-nião sobre a crise do gás natural.

Este mercado se expande rapidamente noBrasil. A participação do gás natural na matrizenergética brasileira era inexpressiva em 1974(1%), cresceu para 3% em 1994 e atingiu 9,3%em 2005. Esse crescimento foi possível devidoa quatro fatores. O primeiro foi a ampliação daoferta que se seguiu à inauguração, em 1999,do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol). O segun-do foram os investimentos em redes de distri-buição efetuados pelas concessionárias de gáscanalizado, principalmente nos Estados doSudeste a partir da década de 90, com a priva-tização da Comgás em São Paulo e da Ceg noRio de Janeiro. Essa expansão do mercadotambém foi acelerada pela suspensão dos rea-justes de preços para o gás de produção nacio-nal e importado da Bolívia, vendidos às com-panhias distribuidoras entre 2003 e setembrode 2005, o que elevou significativamente acompetitividade do gás natural. Por último, aspróprias distribuidoras efetuaram uma políti-ca de descontos de preços para o setor indus-trial, o que também contribui para o aumentoda participação do gás natural na matriz ener-gética brasileira.

Em 2005, o consumo do gás atingiu perto de47 milhões de m³/d, crescendo 14% a.a. desde2001. O gás natural já é o terceiro energéticomais utilizado na indústria brasileira, sendosuperado apenas pela eletricidade e bagaço decana. Temos, também, a segunda maior frotamundial de veículos automotores convertidosao gás natural veicular (GNV), com mais deum milhão de veículos, atrás somente da Ar-gentina. Além disso, o País possui um parquede usinas de geração térmica a gás que, segun-do dados da ANEEL, chega a 9,9 GW ou 10%da capacidade de geração instalada no Brasil.

Infelizmente, essa fase de crescimento domercado brasileiro de gás dá sinais de esgota-mento. Em 2006 a perspectiva é de um cresci-mento de apenas 5%. A produção domésticanão cresceu o bastante de modo a evitarmosuma rápida escalada da dependência de im-portações bolivianas, que já ultrapassa 50% daoferta no País. No período 2001-2005 a produ-ção doméstica de gás cresceu apenas 11% a.a.,enquanto as importações da Bolívia aumenta-

Campo deprospecção de gásnatural daPetrobras,localizado em SanAlberto, naprovíncia de GranChaco, na Bolívia.

Adriano PiresDiretor do Centro Brasileiro

de Infra-Estrutura eprofessor da UFRJ

Wilton Junior/AE

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72 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

ram 22% a.a. Na ânsia de tornar o País auto-su-ficiente em petróleo, os projetos de produçãodoméstica de gás foram todos atrasados —Manati na Bahia, Peroá , Cangoá e outros dabacia do Espírito Santo e os da bacia de Santos— e esperou-se muito tempo para decidir so-bre a construção de plantas de regaseificação.Ainda dentro da lógica de atingir a auto-sufi-ciência, foram queimados 3,6 milhões dem³/dia na bacia de Campos em 2006, o que sig-nifica 70% do consumo de GNV no Brasil. Obaixo crescimento da produção doméstica, apequena rede de gasodutos de transporte exis-tente (o último grande investimento da Petro-bras em gasoduto de transporte foi o Gasbol),o congelamento do preço do gás por tempoexagerado e a crise da Bolívia, conduziram auma situação de escassez de gás natural em to-das as regiões do País, sendo atualmente maispreocupante na região Nordeste.

No setor elétrico, essa escassez de gás natu-ral levará a uma elevação nos preços e um au-mento do risco de déficit. Recentemente, a faltade gás impossibilitou o despacho pleno de usi-nas térmicas chamadas a operar pelo Opera-dor Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Issolevou a ANEEL a publicar uma resolução mos-trando a indisponibilidade de gás para atenderas térmicas. Como a resolução daria um enor-me impacto nos preços e elevaria drasticamen-te o risco do déficit, a ANEEL voltou atrás e pre-feriu efetuar testes entre 11 e 23 de dezembropara verificar, segunda a agência, o estado ver-dadeiro da oferta de gás natural. Os resultadosmostraram que, devido a falta de combustível,as usinas conseguiram produzir apenas 2.146MW médios de um total de 4.846 MW. O resul-tado final dos testes apontou uma diferença de2.700 MW médios entre a capacidade progra-mada e a real de geração. Se a ANEEL ratificara sua decisão de retirar os 2.700 MW médios dacontabilidade de energia disponível no País, apercepção de risco de um apagão aumenta e ospreços da energia elétrica se elevarão nos pró-ximos anos. Para que o País tenha um cresci-mento médio de 4% a.a. nos próximos quatroanos, será necessário um aumento médioanual da capacidade de no mínimo 3.500 MW.Segundo Dados da ANEEL, se considerarmosapenas as usinas sem qualquer tipo de restri-ção, o aumento da capacidade média anual se-rá de apenas 1.175 MW no período 2007-2010.No período 1990-1999, que antecedeu o racio-namento de 2001, a capacidade anual médiaera de 1.591 MW. Os números são parecidos eos problemas poderão ser os mesmos.

Diante deste quadro, é preciso que tome-mos providências urgentes no sentido de evi-tar um apagão do gás natural e da eletricidade.Infelizmente, o governo tem mostrado um to-tal despreparo na gestão do setor de energia ecaminhamos para uma situação semelhante aque estamos passando no setor aéreo. Prova-velmente, daqui a pouco tempo estaremosvendo as autoridades do setor elétrico fazendoo mesmo discurso religioso das autoridadesdo setor aéreo. Ou seja, precisamos ter fé emDeus, vamos rezar para tudo dar certo.

Qual deveriam ser as medidas adotadas pe-lo governo para ultrapassarmos esses próxi-mos quatro anos, onde teremos que convivercom a escassez de gás natural? Primeiramente,o governo deveria convocar todos os agentesenvolvidos no setor de gás natural e elaborarum plano para administrar a escassez de gás.Neste plano, deveriam ser criadas condiçõespara a existência do mercado interruptível degás, garantindo margens equilibradas para asdistribuidoras; o preço do gás aumentaria deforma gradativa, de modo a não se cometer oerro de provocar elevações abruptas que darãoum sinal incorreto para troca entre fontes deenergia. A Petrobras deveria passar a utilizaróleo combustível nas suas refinarias, incentivaras indústrias a implantarem sistemas bicom-bustíveis através de financiamentos do BN-DES; dar mais transparência a real situação doPlangás da Petrobras, estabelecendo salas desituação; e elaborar, com a participação de to-dos os agentes, um plano de contingência e di-vulgar de forma clara para a sociedade a verda-deira situação, para que assim, como aconteceudurante o racionamento de 2001, todos possamajudar a superar esse período de crise.

Jonne Roriz/AE

O Brasil tem1 milhão deveículosautomotoresconvertidos aogás natural, asegunda maiorfrota do mundo,atrás somente daArgentina.

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73JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

A área exploratória hoje sob concessão noBrasil abrange 300 mil km², ou seja, apenas4,7% do total da área das 29 bacias sedimenta-res de petróleo e gás natural existentes. Há,sem dúvida, grande potencial para novas des-cobertas de jazidas de gás para elevarmos aprodução no Brasil. O que não pode acontecersão episódios como o cancelamento da oitavarodada de licitação de blocos da ANP. Pela pri-meira vez, a ANP cancela um leilão, provocan-do descrédito e mostrando um desconheci-mento por parte da agência sobre procedi-mentos a serem adotados na esfera da regula-ção da indústria do petróleo e do gás natural.As conseqüências principais desse apagão se-rão a desconfiança dos investidores para ospróximos leilões e a perda de investimentos,que ajudariam a aumentar as reservas e pro-dução de petróleo e gás natural no Brasil.

Para atendermos a crescente demanda pelogás natural, não basta produzir. Nesse sentido,é flagrante a lacuna institucional da atual le-gislação brasileira pertinente ao setor de ener-gia, a qual não trata com o detalha-mento devido a indústria degás natural. Incluído subsidia-riamente na Lei n° 9.478/97, ogás recebe tratamento similarao dado a indústria do petróleoe seus derivados, o que se evi-dencia inadequado, dado àsespecificidades técnicas eeconômicas dessa indústria,que em muito se diferem dasdo setor de petróleo.

A ausência de norma jurídi-ca específica prejudica a atra-ção dos investimentos neces-sários para o desenvolvimen-to da indústria de gás natural ea promoção da concorrênciaentre as empresas que neleatuam. A utilização do gás na-tural é vantajosa sob vários as-pectos operacionais, econômicose ambientais. Sua expansão significamodernização industrial, maior segu-rança da oferta de energia elétrica, co-modidade para os consumidores, me-lhoria do meio ambiente e da qualidadede vida. Desta forma, a aprovação de umaregulamentação federal pa-ra o gás natural é condiçãocrucial para que o Brasil usu-frua plenamente destes be-nefícios inerentes a crescentedemanda de gás natural.

Beto Barata/AE

O presidenteboliviano EvoMorales e o

presidente Lula dãoas mãos, enquanto

o País vive asincertezas de umacrise energética,tendo o gás como

protagonista.

Apesar de a Lei nº 9.748, de 1997, ter obtidoum relativo sucesso na abertura do mercadode petróleo, ela mostrou-se ineficaz na promo-ção da concorrência na comercialização de gásnatural e na atração de novos investimentosprivados para a infra-estrutura de transporte.A Petrobras mantém sua posição dominanteno mercado, respondendo por 96% da produ-ção doméstica e 90% da importação de gás,controlando praticamente toda a malha nacio-nal de gasodutos de transporte e participandoem 20 das 26 distribuidoras estaduais de gáscanalizado. Como se isso não bastasse, a esta-tal é monopolista na produção e importaçãode derivados de petróleo. Com isso, a socieda-de fica à mercê das prioridades corporativasda Petrobras para o aproveitamento das reser-vas de gás da empresa. Se for vantajoso, a es-tatal prefere vender os derivados de petróleo asubstituí-los por gás natural. Essa foi uma prá-tica utilizada pela empresa no passado e nadagarante que não voltará a ocorrer.

Para se contestar o poder de monopólio daPetrobras e implantar a concorrência no mer-

cado de gás natural, é necessário atrair em-presas para investirem nos diversos seg-mentos da indústria, particularmente nas

atividades de exploração, produção etransporte. Para que estes inves-timentos se tornem realidade, énecessário, em primeiro lugar, aexistência de um marco legalque proteja os investidores con-tra o poder da Petrobras. Já que oatual não leva em conta as carac-terísticas tecnológicas e econô-micas específicas ao gás natural.

Uma iniciativa para corrigiras distorções da atual legislação éo Projeto de Lei do Senado nº 226(PLS nº 226), de autoria do Sena-dor Rodolpho Tourinho, que tra-

mita no Congresso desde junhode 2005 e que foi aprovado no âm-

bito do Senado em 2006. O projetofoi amplamente discutido em diver-

sos foros e divulgado pela mídia, e apartir de 2007 começa a tramitar na

Câmara Federal. Vamos torcerque a Câmara entenda a sua im-

portância para o setor de gásnatural e trabalhe no sentidode aprimorá-lo, com o intuitode trazer mais investimentospara o setor e afastar defini-tivamente crises de ofertadesse energético.

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74 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

1. O NOSSO PRESENTE TRIBUTÁRIO:CARO E COMPLEXO

O Brasil possui o sistema tributário mais comple-xo e mais caro do mundo. Isto traz um custo fi-nanceiro enorme ao contribuinte e ainda causa aconstante insegurança de se estar ou não cum-

prindo com todas as obrigações exigidas pelo fisco.Cerca de 62 tributos são cobrados no Brasil, entre impostos,

taxas e contribuições. Desde os mais conhecidos, como Impos-to de Renda, IPTU, IPVA, CPMF e INSS; passando por aquelesque estão ligados às atividades empresariais, como ICMS, IPI,PIS, COFINS, CSLL e ISS; até aqueles que pouco são conheci-

dos pela população, como CIDE, Imposto de Importação, Ta-xas, Salário-Educação etc.

Para disciplinar todos estes tributos, a legislação tributária émodificada constantemente: mais de 3.200 normas estão em vi-gor — leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias,decretos, portarias, instruções etc. — ou 55.767 artigos, 33.374 pa-rágrafos, 23.497 incisos e 9.956 alíneas. Por dia útil são editadas 56normas tributárias, ou 2,3 normas tributárias por hora.

Não bastasse a enorme quantidade de normas, também éexigido o cumprimento de inúmeras obrigações acessórias (ouburocracias) por parte dos contribuintes. As empresas devemcumprir cerca de 97 obrigações acessórias para tentar estar emdia com o fisco: declarações, formulários, livros, guias etc. Ocusto que as empresas têm para cumprir com as obrigações

O futuro da tributaçãobrasileira

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75JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

acessórias é de cerca de 1,5% do seu faturamento. Assim, em2006 as empresas brasileiras tiveram aumento de custo demais de R$ 30 bilhões somente para o cumprimento da buro-cracia exigida pelo Poder Público.

E, por último, por causa da cumulatividade dos tributos:multiincidência sobre uma mesma base de cálculo e várias ve-zes na cadeia produtiva, chamado efeito cascata: CPMF que in-cide sobre o PIS/COFINS, que incide sobre o ICMS, que incidesobre o INSS, e assim por diante.

Pode-se denominar de Efeito Cascata Horizontal a incidênciarepetidas vezes de um mesmo tributo nas várias etapas da pro-dução ou circulação: a CPMF (alíquota de 0,38%) representaem média 1,7% do preço final dos produtos e ser-viços consumidos no País; o PIS e COFINS (cu-mulativos — alíquota de 3,65%) têm um cus-to no preço final de 8,02% (não-cumulati-vos = 9,65%); enquanto que o INSS en-carece o custo final em 4,05%.

c) Carga tributária sobre o Lucro: 52,23%d) Carga tributária sobre o Valor Agregado: 45%

O cidadão paga tributos sobre a sua renda (Imposto de Ren-da, Contribuição Previdenciária, Contribuição Sindical), so-bre o seu patrimônio (IPTU, IPVA, ITR, ITCMD, ITBI) e sobre oseu consumo (embutidos no preço final de mercadorias e ser-viços estão ICMS, IPI, PIS, COFINS, CPMF). Desta forma, emmédia, 39,72% do rendimento total de cada brasileiro é desti-nado ao pagamento de tributos, equivalentes a 145 dias de tra-balho por ano.

2. O NOSSO PASSADO TRIBUTÁRIO: CARGA EMEXPANSÃO

Durante o Império, a economia brasileira era eminentementeagrícola e extremamente aberta, sendo que a principal fonte dereceitas públicas era o comércio exterior. Neste período, o impos-to de importação se constituía no principal tributo, alcançandoem alguns exercícios a 2/3 de toda a receita pública (às vésperasda proclamação da República este imposto era responsável por

aproximadamente metade da receitatotal do governo).

Com a proclamação da Re-pública e a promulgaçãoda Constituição de 1891permaneceu o sistematributário existente ao fi-nal do Império, com al-

gumas adequações emface do regime federativo,

dotando os Estados e Municípios de receitas que lhes per-mitissem a autonomia financeira. Foi adotado o regime deseparação de fontes tributárias, sendo discriminados osimpostos de competência exclusiva da União e dos Esta-dos. Quanto aos Municípios, ficaram os Estados encarre-gados de fixar os impostos municipais de forma a assegu-rar-lhes a autonomia. Além disto, tanto a União como os Es-

tados tinham poder para criar outras receitas tributárias.Competia à União a cobrança dos seguintes tributos: impos-

tos sobre a importação de procedência estrangeira; direitos deentrada, saída e estadia de navios; taxas de selo; taxas dos cor-reios e telégrafos federais.

Já aos Estados competia a cobrança dos seguintes tributos:imposto sobre a exportação de mercadorias de sua própria pro-dução; imposto sobre Imóveis rurais e urbanos; imposto sobretransmissão de propriedade; imposto sobre indústrias e pro-fissões; taxas de selos quanto aos atos emanados de seus res-pectivos Governos e negócios de sua economia; contribuiçõesconcernentes aos seus telégrafos e correios.

O Imposto de Renda foi instituído no Brasil através da Lei nº4.625/1922, sendo que a primeira declaração exigida foi referen-te ao exercício de 1924. No exercício de 1922 foi criado o impostosobre vendas mercantis, mais tarde denominado imposto devendas e consignações e transferido para órbita estadual.

Durante todo o período anterior à Constituição de 1934, oimposto de importação manteve-se como a principal fonte

Gilberto Luiz doAmaralAdvogado tributarista,contador, professorde pós-graduação emDireito, Planejamentoe Gestão Tributária,presidente do IBPT -Instituto Brasileiro dePlanejamentoTributário

Patrícia Cruz/LUZ

Denomina-se de Efeito Cascata Verti-cal a incidência de um determinado tributosobre o valor de outros tributos. A CPMF incidesobre o montante do ICMS, do IPI, do PIS e CO-FINS, do INSS, do Imposto de Renda, da Contribuição Socialetc. O PIS e a COFINS incidem sobre o valor do ICMS, do INSS,do IRPJ e da Contribuição Social.

Conforme estudos do IBPT a carga tributária brasileira atin-giu em 2005 o índice 37,82% em relação ao PIB. A arrecadaçãotributária ultrapassou R$ 553 bilhões em 2003, atingiu R$650,15 bilhões em 2004 e chegou a R$ 733 bilhões em 2005. Em2006, a arrecadação ultrapassou a R$ 813 bilhões.

Verifique-se a evolução da carga tributária brasileira a partirde 1986, separada por governos na Tabela 1.

A arrecadação tributária está assim dividida entre a União,Estados e Municípios, também separada por governos (veja aTabela 2).

Quanto às empresas brasileiras, a sua carga tributária globalé a seguinte:

a) Carga tributária sobre o Faturamento: 33,25%b) Carga tributária sobre o Total de Custos/Despesas:

47,14%

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76 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

de receita da União. Até o início da Primeira Guerra Mun-dial, ele foi responsável por cerca de metade da receita totalda União, enquanto o imposto de consumo correspondia aaproximadamente 10% da mesma. A redução dos fluxos decomércio exterior devido ao conflito obrigou o governo abuscar receita através da tributação de bases domésticas.Cresceu então a importância relativa do imposto de consu-mo e dos diversos impostos sobre rendimentos, tanto devi-do ao crescimento da receita destes impostos — definitivono primeiro caso e temporário no segundo — como à redu-ção da arrecadação do imposto de importação. Terminada aguerra, a receita do imposto de importação tornou a crescer,mas a sua importância relativa continuou menor que no pe-ríodo anterior (em torno de 35% da receita total da União nadécada de 20 e inicio dos anos 30).

Na órbita estadual, o imposto de exportação (inclusive dasvendas realizadas para outros Estados) era a principal fonte dereceita, gerando mais que 40% dos recursos destes governos.Outros tributos relativamente importantes eram o imposto detransmissão de propriedade e o imposto sobre indústrias eprofissões. O último era também a principal fonte de receita tri-butária municipal, secundado pelo imposto predial.

A Constituição de 1937 pouco modificou o sistema tribu-tário estabelecido na Constituição anterior. Em relação a es-ta, os Estados perderam a competência privativa para tribu-tar o consumo de combustíveis de motor de explosão e aosMunicípios foi retirada a competência para tributar a rendadas propriedades rurais.

Em 1946, o imposto de vendas e consignações já era respon-sável por cerca de 60% da receita tributária estadual. Nos Muni-

Tabela 1

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77JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

cípios, os impostos sobre indústrias e profissões e predial perma-neceram como os mais importantes, correspondendo a poucomenos que 40% e 30% da receita tributária, respectivamente.

Em 1946, o imposto de consumo era responsável por apro-ximadamente 40% da receita tributária da União e o IR (Impos-to de Renda), cuja arrecadação chegou a superar a do impostode consumo em 1944, representava cerca de 27% da mesma.

A Constituição de 1946 trouxe poucas modificações no queconcerne ao elenco de tributos utilizados no País. Ela mostra,entretanto, a intenção de aumentar a dotação de recursos dosMunicípios. Dois novos impostos são adicionados à sua áreade competência: o imposto sobre atos de sua economia ou as-suntos de sua competência (imposto do selo municipal) e oimposto de indústrias e profissões, o último pertencente an-

teriormente aos Estados, mas já arrecadadoem parte pelos Municípios.

Embora não tenha promovido uma refor-ma da estrutura tributária, a Constituição de1946 modificou profundamente a discrimi-nação de rendas entre as esferas do governo,institucionalizando um sistema de transfe-rências de impostos.

A partir da década de 50, com as políticas dedesenvolvimento regional, houve uma criseeconômica, tornando-se necessária a reformado aparelho arrecadador, para fazer frente aocrescimento sistemático dos gastos públicos.Em 1963 foi ampliada a tributação dos rendi-mentos de capital, já que havia excesso de car-ga sobre o setor produtivo, devido à cumula-tividade e ao progressivo aumento do impostode renda das pessoas jurídicas.

Durante o período 1946/1966, cresce a im-portância relativa dos impostos internos sobreprodutos. Às vésperas da reforma tributária, oimposto de consumo é responsável por maisde 45% da receita tributária da União, o impos-to de vendas e consignações corresponde aquase 90% da receita tributária estadual e o im-posto de indústrias e profissões, que se torna-ra, na prática, uma versão municipal do im-posto de vendas e consignações, gera quase45% da receita tributária dos municípios. Emconjunto, eles perfazem 65% da receita tribu-tária total do País. Entretanto, não são suficien-tes para cobrir as necessidades de dispêndiodos três níveis de governo.

Desde 1947 (um ano após a CF de 46) se cla-mava por uma reforma tributária, a qual foipreparada e posta em prática entre 1963 e1966. A verdadeira razão para ela ter ocorridoé a perda de arrecadação e a impossibilidadede fazer face ao aumento das despesas, queatingiu no início da década de 60 o índice de13% do PIB (era 8% no final da década de 40).Em 1945 havia 1.669 municípios, chegandoa 3.924 em 1966.

Com a Revolução de março de 1964, a reforma tributária ad-quiriu impulso, com um novo sistema tributário criado a partirdesta data, ocorrendo:

a) Revisão do IR, com vigoroso crescimento daa r re c a d a ç ã o ;

b) O imposto sobre o consumo foi reformulado, dandoorigem ao IPI;

c) O IVC se transformou no ICM.

Até 1978, a carga tributária ficou ao redor de 25% do PIB,com a União arrecadando 3/4 do total e após as transferênciaspara Estados e Municípios ficava com 2/3. Em 1970, houvecriação do PIS para fazer face à concessão de incentivos e be-nefícios fiscais.

Tabela 2

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78 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Desde 1975 o sistema mostrava sinais de exaustão, em facedestes incentivos e benefícios fiscais.

Durante a década de 80 houve impressionante quantidadede alterações processadas na legislação para manter o nível dearrecadação. Em 1982, foi criado o FINSOCIAL, o qual seriaprovisório, mas tornou-se permanente, sendo substituídoposteriormente pela COFINS.

3. O NOSSO FUTURO TRIBUTÁRIO: SISTEMAMODERNO, MAS INJUSTO

"A civilização tem isto de terrível: o poderindiscriminado do homem, abafando os valores da

Natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma baseestável ao Direito (e, no fundo, essa é a razão do

Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trágica inversão,sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para

salvar a natureza que morre".(Miguel Reale, Memórias, São Paulo:

Saraiva, 1.987, v. 1, p. 297).

A arrecadação tributária brasileira está fortemente concen-trada nos tributos sobre a produção de bens e serviços (que setraduz na tributação sobre o consumo) e na tributação diretasobre os salários.

A tributação sobre a produção — consumo (ICMS, PIS, CO-FINS, IPI, parte da CPMF, parte do IOF) — resulta em 49% detoda a arrecadação tributária nos três níveis, enquanto que atributação sobre salários (Imposto de Renda, ContribuiçãoPrevidenciária e Sindical) arrecada 27% do total. Na seqüên-cia, temos a arrecadação sobre capital e outras rendas (Impostode Renda das empresas, parte do IOF, parte da CPMF), com16% do total; comércio exterior (Imposto de Importação, Im-posto de Exportação, taxas alfandegárias) com 3% do total; pa-trimônio (IPTU, IPVA, ITCMD, ITBI) com 2% da arrecadaçãototal; e 3% para os demais tributos.

Ao longo da história, o sistema tributário brasileiro cami-nhou a reboque das experiências de outros países, baseado nafacilidade de arrecadação e sem uma preocupação maior em secumprir com uma justiça tributária.

É certo que os países pobres ou em desenvolvimento concen-tram suas arrecadações nos tributos embutidos no preço final demercadorias e serviços (denominados tributos sobre o consu-mo), já que a renda média da população é pequena, o que difi-culta a cobrança de tributos sobre a renda e sobre o patrimônio.

Mas, tal proceder torna o sistema tributário injusto, pois one-ra de maneira elevada as populações mais pobres, sem que osmais ricos contribuam na sua exata capacidade econômica. As-sim, a tributação sobre o consumo é regressiva, ao contrário datributação sobre renda e patrimônio, que são progressivas.

O cenário político-econômico de 2007/2010 está moldadoem gastos públicos elevados, juros em queda, dívida externacontrolada, dívida interna em elevação, baixa inflação, falta deinvestimentos substanciais em infra-estrutura, apreciação doreal em relação ao dólar, dificultando as exportações de manu-faturados e incentivando as importações.

A criação e majoração de tributos ocorrida a partir de 2002,

No Brasil, sãoeditadas 2,3

normais tributáriaspor hora. Em 2006,

as empresastiveram aumento de

custo de mais deR$ 30 bilhões parao cumprimento da

burocracia.Nas fotos, a

mobilização dasociedade em 2005

contra a MP 232,que aumentaria a

carga tributáriapara prestadores

de serviços.

Leonardo Rodrigues

Marcos Fernandes/ LUZ

Alexandro Auler/AE

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79JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

dão ao governo federal algum fôlego de caixa para ir tocandosua política de ampliação de gastos sociais, mas o impede defazer grandes investimentos em obras de infra-estrutura.

Já os Estados vêem sua principal fonte de arrecadação (oICMS) dar sinais de esgotamento. Em 2006, praticamente nãohouve crescimento da arrecadação deste imposto em relaçãoao PIB, após sucessivos anos de expansão. Em virtude de o go-verno federal estar privilegiando o aumento das contribuiçõesem detrimento dos impostos partilhados, muitos governos es-taduais enfrentarão dificuldade de caixa neste período.

Os municípios também enfrentarão dificuldades com suascontas, pois a sua participação nas receitas federais vem dimi-nuindo, e a sua possibilidade de aumento de arrecadação dostributos municipais é muito pequena.

Nestes quatro anos, deve haver a prorrogação da CPMF e daDRU (desvinculação das receitas da União), sendo que os Es-tados pressionarão para também serem agraciados com um sis-tema de desvinculação das suas receitas. Provavelmente, have-rá a aprovação da PEC 285/2004, que federaliza a legislação doICMS, diminuindo a guerra fiscal dos Estados.

Provavelmente, face ao aquecimento global e os reflexos eco-nômicos das mudanças climáticas, haverá a criação de um tributoambiental, que pode ser a CIDE Ambiental, nos moldes propos-tos pelo Ministério do Meio-Ambiente. Haverá a mudança gra-dual da incidência do INSS sobre a folha de pagamento para ofaturamento, como já está previsto no texto constitucional.

Com a implementação da Super-Receita (Receita Federal doBrasil), haverá forte combate fiscal às terceirizações e ao paga-mento de benefícios extra-folha de pagamento. O governo fe-deral continuará a reduzir a incidência do IPI sobre produtosindustrializados.

A partir de 2011, os debates sobre uma reforma tributáriaampla se ampliarão. Isto porque, até lá, o atual modelo tribu-tário apresentará esgotamento quanto ao aumento da arreca-

dação de vários dos principais tributos.A implantação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado)

moderno será a espinha dorsal do novo modelo tributário. Nafase antecedente, haverá aumento da CPMF, mas com a suatransformação em contribuição compensatória com outros tri-butos e redução da alíquota da COFINS.

O IVA resultará da fusão do ICMS, COFINS, IPI e ISS, com par-tilha automática de sua arrecadação entre os entes federados.

O aspecto inovador do IVA brasileiro é que ele considerarácomo crédito o montante da folha de pagamento. Isto será umaverdadeira revolução no conceito mundial de imposto sobrevalor agregado.

A tributação ambiental será intensificada, com a utilização dealíquotas maiores para as atividades que tragam impacto am-biental, com a conseqüente diminuição sobre as atividades deproteção e recuperação do meio-ambiente.

Os tributos sobre o patrimônio terão elevação de alíquotas,pois os entes federados dependerão mais da sua arrecadação.Apesar de previsto constitucionalmente, atualmente o impos-to de exportação tem baixa incidência sobre o comércio exte-rior, sendo a sua arrecadação praticamente inexistente. Com areforma tributária, vários produtos e serviços voltarão a ser ta-xados por ele.

Haverá uma menor quantidade de tributos, com a simpli-ficação na arrecadação de muitos deles. A carga tributária irádiminuir paulatinamente, até chegar a 30% do PIB em 2020.

Mas, um sistema tributário mais simples e menos burocrá-tico não quer dizer que será mais justo do que o existente hoje.Ele continuará fortemente concentrado na tributação sobre oconsumo e salários. Passados alguns anos da implantação doIVA, haverá a criação de um imposto específico sobre o consu-mo de determinados bens e serviços, como fumo, bebidas, per-fumes e sobre o comércio eletrônico. Também, haverá novaampliação da CPMF, já como contribuição permanente.

Luludi/LUZ

O Impostômetro,instalado no prédioda ACSP, mostraquanto de impostosa sociedade vempagando. Em 2006,foram mais deR$ 813 bilhões.Cada brasileirotrabalha oequivalente a 145dias para pagarseus impostos.

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80 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Aspectos Econômicos

MichalGartenkrautEconomista,professor e consultoreconômico

No campo econômico, o Brasil queemergiu das urnas de outubropode ser caracterizado, ao mes-mo tempo, unido e dividido. Es-

te aparente paradoxo prende-se a dois aspectosmarcantes de análise bem delineados. Em pri-meiro lugar, um Brasil nitidamente dividido noque diz respeito à prioridade e à metodologiado combate à pobreza e da redistribuição darenda. De um lado, o Brasil que defende a im-portância conferida pelo governo Lula aos pro-gramas de transferência direta de renda, em es-pecial o Bolsa Família, apóia seus métodos eprega a continuidade da estratégia. Do outro la-do, os que, mesmo reconhecendo alguns méri-tos nesses programas, discordam da estratégiaadotada e do seu modus operandi, a consideraminsuficiente e, por seu caráter meramente assis-tencialista, ineficiente para resolver de formadefinitiva o problema da pobreza.

Segundo a visão do primeiro grupo, o pro-blema da pobreza não pode esperar por umasolução definitiva — demorada pela próprianatureza —, requerendo assim ações emergen-ciais, ainda que parciais e transitórias. Afinal,afirmam, trata-se de gente literalmente mor-rendo de fome. Já os integrantes do segundogrupo defendem a tese de que somente o pro-cesso de crescimento econômico será capaz deretirar definitivamente da pobreza o enormecontingente de pessoas que ainda sobrevive nonosso país com renda abaixo do mínimo mini -morum. E, quanto mais acentuado o crescimen-to, mais rápido o progresso na erradicação dapobreza. O conflito entre as duas visões estabe-lece-se na medida em que, por perda de eficiên-cia geral do sistema econômico, a alocação derecursos segundo as prioridades da primeiravisão sacrificam o ritmo de crescimento da eco-nomia, postergando assim a solução eficaz e de-finitiva do problema da eliminação da pobrezae da promoção da justiça social.

Do ponto de vista exclusivamente técnico, éimpossível não reconhecer doses de razão emcada uma das duas visões, sugerindo que pro-vavelmente a solução dos graves problemasda pobreza e da péssima distribuição de rendapassa por um compromisso entre as duas es-

tratégias, em um mix a ser definido em nego-ciações no campo da Política, não da Econo-mia. O que a análise técnica isenta pode garan-tir é que o Brasil reúne as condições necessáriaspara promover, de forma simultânea, um rit-mo razoável de crescimento econômico e abusca de uma distribuição mais justa de renda,em especial a eliminação da exclusão social.

No primeiro grupo encontra-se a grandemaioria dos beneficiários, diretos e indiretos,dos programas sociais do governo federal,contingente da população concentrado geo-graficamente principalmente nas regiõesNorte e Nordeste e que certamente votou ma-ciçamente em Lula. O segundo agrupo, ali-nhado à oposição, é majoritário no Sul e Su-deste. Como se viu, o primeiro gupo prevale-ceu numericamente nas urnas, conferindo vi-tória à reeleição do presidente.

A segunda característica no contexto econô-mico identifica um Brasil unânime na aspira-ção por um crescimento econômico mais vigo-roso, um clamor claramente demonstrado aolongo da campanha.

Divulgação

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81JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Neste aspecto, ninguém discorda de que oprimeiro mandato de Lula gerou um cresci-mento econômico medíocre: efetivamente, ocrescimento real do PIB brasileiro nos quatro

anos do período 2003-2006 acumulou ape-nas 10,8%, resultando em uma médiaanual de 2,6%. Este desempenho é frus-trante sob qualquer ponto de vista: seja nacomparação com a nossa capacidade decrescer, demonstrada na história anteriora década de 80 (no pós-guerra o País cres-

ceu a uma taxa anual de 7%, a mais alta domundo); seja no requisito de geração de em-

pregos — o número de empregos cresce àaproximadamente metade da taxa de cresci-mento do PIB; ou, ainda, na comparação aocrescimento da economia mundial, que cres-ceu, no mesmo período a 4,9% ao ano (o con-traste é ainda mais desfavorável quando seconsidera o grupo de países chamados deemergentes, cujo crescimento médio no perío-do foi de nada menos que 7,3% ao ano).

Há unanimidade, portanto, de que urgeadotar providências para acelerar o processode crescimento da economia brasileira, sinali-zação que parece ter sensibilizado o presiden-te reeleito, com sua capacidade intuitiva deperceber os ventos da opinião pública.

Mas a unanimidade vem acompanhada deuma certa perplexidade e logo desaparecequando se passa dos anseios ao diagnósticodas causas desse desempenho insuficiente.Tem-se, novamente, um Brasil dividido. Deum lado, os que atribuem a responsabilidadea uma suposta "herança maldita" dos gover-nos anteriores, especialmente do períodoFHC, cujos erros estratégicos teriam com-prometido a capacidade do País de se de-senvolver de forma saudável; para estegrupo, composto provavelmente so-mente de apoiadores da reeleição, Lulaassumiu o primeiro mandato com aeconomia brasileira em condiçõesprecárias e teve que promover um es-

do Brasil queSaiu das Urnas

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82 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

forço extraordinário de ajuste, cujo reconhe-cido sucesso comprometeu boa parte do nos-so potencial de crescimento, mesmo em umperíodo caracterizado por um raro cenário fa-vorável da economia mundial.

Do outro lado estão os que responsabili-zam diretamente o próprio governo Lula. Pa-ra eles, o grosso do ajuste necessário já haviasido feito (estabilização, ajustes do balançode pagamentos e do fiscal) pelos governosanteriores, devendo o agravamento da situa-ção econômica em 2002 ser debitada ao risco-Lula, percepção de medo criada pelo discur-so radicalizante de décadas do PT e do pró-prio Lula. Nesta segunda visão, o mérito deLula é de ter praticamente mantido as linhasmestras da política econômica, esvaziandoassim, já ao longo de 2003, os efeitos deleté-rios da elevação da percepção de risco no am-biente econômico. Restaria assim, nesta vi-são, a total incapacidade estratégica do go-verno de se aproveitar do melhor cenário in-ternacional dos últimos 50 anos e alavancarum salto de qualidade que poderia não sócompletar o ajuste já implementado, mascompensar inclusive a virtual estagnaçãodas últimas décadas. Some-se a isso a in-competência, ou falta de vontade, emmontar uma máquina governamentalenxuta e eficiente, para não falar das tra-palhadas e escândalos na seara política,e tem-se uma avaliação bastante nega-tiva do primeiro mandato de Lula. Al-guém que esposa esse diagnóstico di-ficilmente votou nas últimas elei-ções para reeleger o presidente.

Não importa com que grupo nosidentificamos, nosso anseio unâni-me por mais crescimento vem as-sociado a uma perplexidade so-bre as razões que nestes últimosanos vêm obstaculizando noBrasil um ritmo mais alenta-do de expansão das ativi-dades econômicas. Porque, todos se perguntam,o país que já cresceu a ta-xas mais altas do mundo,que se livrou do flageloinflacionário, que acer-tou as suas contas exter-nas, que resolveu o pro-blema da dependênciaenergética na área do pe-tróleo, não consegue fa-

zer com que sua economia apresente desem-penho similar aos demais países emergentes,que, afinal, também apresentam muitos dosdemais problemas que ainda nos afligem emesmo assim estão crescendo a um ritmomais do dobro do nosso?

A resposta a essas indagações pede uma re-flexão bem mais abrangente do que sugeremas duas visões polares a respeito das contri-buições de cada governo recente para o atualcenário. De uma coisa podemos ter certeza:na medida em que a situação presente é o re-sultado da somatória de todas as ações dopassado, o muro que vem obstaculizando onosso crescimento econômico agrega parce-las de contribuções de todos os governos. En-tre as mais importantes, duas dessas contri-buições 1 podem ser observadas ao longo deum período bastante prolongado, sendo,pois, comuns a todos os governos desde a cri-se de 1982: um patamar insuficiente de inves-timento, principalmente em infra-estrutura;e o crescimento quase monotônico do tama-nho do setor público 2. No período mais re-cente, embora se trate de um fator de curtoprazo, não se pode deixar de mencionartambém os efeitos devastadores da overdosede política monetária.

O investimento é o motor do cresci-mento econômico. Em especial, são ex-tremamente importantes os investi-mentos na capacidade de produçãodos principais insumos da economia,como a energia elétrica, o petróleo eseus derivados, comunicações, a in-fra-estrutura de transporte e assimpor diante. O investimento é, tal-

vez, o fator mais críticopara a sustentação de umprocesso de crescimentoeconômico, pois é o res-ponsável pela adição decapacidade de produçãode bens e serviços da eco-nomia. Em um dado mo-mento, a economia pode-rá até crescer acelerada-mente sem investimento,se houver capacidadeociosa, não uti l izada;mas é certo que essa ex-pansão terá vida curta,somente até atingir o li-mite da capacidade. Apartir desse instante, da-

Jarbas Oliveira/AE

Rosewelt Pinheiro/ABr

Henrique Meirelles,presidente do Banco

Central e o prédiodo BC em Fortaleza:

efeitosdevastadores da

overdose de políticamonetária.

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83JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

Gráfico 1

Gráfico 2

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Gráfico 3

das as restrições de capacidade, toda tenta-tiva de crescer se traduzirá em pressões in-flacionárias e/ou sobre o balanço de paga-mentos, em função do aumento de importa-ções, sendo apenas uma questão de (pouco)tempo até que o processo de crescimento sejaabortado, por bem ou por mal.

A principal condição necessária para queum processo de expansão econômica sejasustentável, isto é continuado ao longo dotempo, é que ele seja acompanhado de umpatamar consistente de expansão da capaci-

dade da economia, em outras palavras, deinvestimento. Uma aritmética simples mos-tra que, sob hipóteses razoáveis, uma taxa decrescimento do PIB da ordem de 4% a 5% aoano requer uma taxa de investimento da or-dem de 25% do PIB. Ora, como se observa nográfico abaixo, nos últimos muitos anos oBrasil vem investindo abaixo de 20% do PIB,patamar que somente foi atingido no últimoano. (Gráfico 1)

Mais grave ainda: caiu muito a sua parcelamais importante, o investimento em infra-es-trutura, que até agora não recuperou nem osníveis mínimos requeridos para sustentar omedíocre ritmo de crescimento atual 3 . Segui-da por anos a fio, essa trajetória produziu umenorme estrago: uma redução permanente nanossa capacidade de expandir a produção. Arespeito, existem estudos recentes mostrandoevidências de que a redução prolongada do in-vestimento em infra-estrutura na América La-tina afetou de modo estrutural a sustentabili-dade do crescimento econômico; no caso doBrasil, esse processo retirou nada menos que 3pontos porcentuais do potencial de longo pra-zo de crescimento do PIB 4 .

O crescimento do setor público brasileiro aolongo dos últimos anos pode ser ilustrado pelaelevação da carga tributária, que acabou finan-ciando o aumento de gastos, uma vez esgota-das as outras fontes (endividamento e infla-ção). Como se observa no gráfico abaixo, a car-ga tributária sofreu elevação de mais de 10pontos porcentuais, atingindo patamares in-compatíveis com o nível de renda do país.(Gráfico 2 e Gráfico 3)

Esta enorme concentração de recursos nasmãos do setor público retirou capacidade deinvestir do setor privado. Uma justificativaplausível para este movimento seria se os no-vos recursos em poder do Estado fossem ca-nalizados para um esforço de investimento(público). Como se viu, não foi isso o queocorreu, pois o investimento público decres-ceu de forma expressiva no período. Os re-cursos extras extraídos do setor produtivoacabaram financiando uma substancial ele-vação do consumo do governo, isto é de gas-tos correntes, como pode ser observado nográfico a seguir. Note que, neste quesito, in-clusive, o Brasil destacou-se dos demais pai-ses semelhantes, muitos dos quais experi-mentaram problemas análogos nestas últi-mas décadas. (Gráfico 4)

Fica claro, assim, que a agenda econômicamínima para o País voltar a exibir, de formasustentável, taxas razoáveis de crescimento

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85JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

econômico, consiste em elevar, e manter, opatamar anual de investimento em 5 pon-tos porcentuais do PIB (aos preços atuais,cerca de R$ 100 bilhões a mais, todo ano),com boa parte desse aumento dedicado a in-vestimentos em infra-estrutura. O conjuntode tarefas necessárias para o atendimentodesse objetivo requer dois movimentos bási-cos: de um lado, ajustar todos os instrumen-tos de política pública no sentido de promo-ver uma redução do nível geral de incertezana economia, com atenção especial para aconsistência da política econômica e a qua-lidade do ambiente regulatório, elementosfundamentais para a redução do nível de ris-co dos empreendimentos privados e a me-lhoria da atratividade do setor privado paraos investimentos em infra-estrutura; de ou-

tro, promover uma expressiva redução dosgastos correntes do governo, nos três níveis,visando abrir espaço para uma recuperaçãodo investimento público.

É um objetivo ambicioso, sem dúvida, e astarefas são gigantescas e complexas, compos-tas de ações de reformas estruturais, de ajustesde consistência nos principais instrumentosde política econômica, de planejamento, demobilização de recursos, de formação de par-cerias e de implementação, todas envolvendomúltiplos agentes, requerendo, sobretudo,um bom tempo para sua execução.

Sem chance de vermos esse novo quadro ma-terializar-se de uma hora para outra, ou mesmono decorrer de apenas um ano. Mais provável éque, se tudo der certo, isto somente será atingidoao final do segundo mandato presidencial.

1 Apenas as mais importantes no campo exclusivamente econômico.Naturalmente, existem outras igualmente importantes em outrasáreas, como por exemplo o preocupante déficit educacional.2 Não por coincidência, na tradicional classificação dos paisessegundo o nível de competitividade do World Economic Forum, sãojustamente estes os principais fatores responsáveis peladesfavorável classificação do Brasil. Ver em www.weforum.org.

3 Ver Afonso, Araújo & Biasotto - "Fiscal Space and Public SectorInvestment in Infrastructure: A Brazilian Case Study". IPEA,Texto de Discussão # 1141, dezembro 2005, disponível emw w w. i p e a . g o v. b r.4 Ver, por exemplo, Calderón, Easterly & Servén - "InfrastructureCompression and Public Sector Solvency in Latin America" in"The Limits of Stabilization", World Bank, Washington, 2003.

Gráfico 4

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86 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

Celso Junior/AE

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87JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

UM BRASILCOMPLICADO.

IVES GANDRADA SILVA

M A RT I N S ,Jurista, professor

Emérito dasUniversidade

Mackenzie e daEscola de Comando e

Estado Maior doExército, Presidente

da AcademiaPaulista de Letras e do

Centro de ExtensãoUniversitária - CEU.

Paulo Pampolin/Digna Imagem

A vitória do presidente Lula e aderrota de seu partido — que fezapenas 83 deputados e 11senadores entre 513

parlamentares da Câmara e 82 do Senado— faz com que o futuro governo tenha quebuscar o perfil de uma frente ampla.

Indiscutivelmente, o PT, ainda comprofundos resquícios de radicalismospassados e ultrapassados, embora abriguetambém uma ala moderada e conscientede que o País vive no século 21, e não maisno século 19, perdeu completamente suaestatura de partido ético e derepresentante do pensamento de modernaesquerda social.

Aqueles que, no passado, pretenderamimpor sua ideologia através da luta armadafizeram do tempo da guerrilha um excelentenegócio. À custa dos contribuintesbrasileiros, que nada tiveram a ver com osgovernos impostos durante o período deexceção, obtiveram fantásticasindenizações, que fariam inveja aos efeitosespeciais dos filmes de Spielberg, tal seunível de pirotecnia financeira. Todosficaram milionários, em decorrência deprocessos que não acabam nunca eproliferam como cogumelos. Certamente, seesses guerrilheiros tivessem trabalhado,como os comuns mortais, jamaisconseguiriam amealhar o que estãorecebendo dos contribuintes brasileiros.

Transitam, de outro lado, pelas fileirasdo partido, muita gente que procuracaracterizar os delitos descobertos no seioda agremiação, como inocentes erros deconduta, não tendo nenhuma preocupaçãoem apurar a origem do oceano de recursosdesviados dos setores público e privado,que percorre os cofres do partido, de seusdirigentes e dos amigos beneficiários domaior escândalo de corrupção da históriapolítica do Brasil, em todos os tempos.

O que espanta é que a maioria doscompanheiros tem orgulho de se

autoproclamar admiradora e aliada dogenocida Fidel Castro, que, com Pinochet,forma a dupla de maiores assassinospolíticos da América Latina, no século 20.Os "paredons", para os quais muitas pessoasforam levadas, sem direito a defesa, porFidel Castro, para serem fuziladas, no inícioda revolução cubana — e até recentemente— ficarão para sempre registrados nahistória dos crimes contra a humanidade.É, também, aliada de Chávez e de Morales,cujo esporte predileto tem sidodesmoralizar o presidente Lula e o Brasil,além de dedicar-se, ainda, a incentivarmovimentos de estupro à lei, nos moldesdaqueles que o MST promove, em númerocrescente e estupendamente alto, nogoverno Lula.

O presidente Lula tem de conviver comesses correligionários. Sempre que declaraser um homem de centro, vê este ramominoritário, preconceituoso e sem respeito àordem jurídica, açulado, porque não admiteque o Brasil avance, como ocorre com osdemais países emergentes. Deseja que oPaís volte à economia primitiva dosneandertalenses, mas permaneça refém de

Celso Júnior/AE

O Congresso, queperdoa os imorais,

só por seremparlamentares, se

auto-outorgafantásticos

aumentos desubsídios.

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88 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

suas ambições pessoais. Essas pessoasrepresentam o avanço da pré-história e, ameu ver, apesar de estarem ao lado de Lula,só terão forças no governo, se a economiacomeçar a despencar, pelo pesoincomensurável da burocracia esclerosadado Brasil, da indecente carga tributária e dosexcessivos encargos sociais e trabalhistas.Nesta hipótese, procurarão bodes expiatóriosde seus monumentais erros, que serão,certamente, os empresários, profissionaisliberais, além do terceiro setor, hoje objetopreferencial da sanha tributária.

Por outro lado, o PMDB — ao contrário doPT, cujo perfil no primeiro mandato, pelosescândalos avassaladores que povoaram osjornais do Brasil e do exterior, ficouirremediavelmente maculado —, é umpartido de firme ideologia. O único, aliás,com ideologia inquestionável. "Há poder,somos poder". Foi governo com Sarney,Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula eserá com qualquer governo que suceder aLula. O seu apoio, todavia, é marcado poruma fantástica ação fisiológica e absolutafalta de metas. Sua única meta é ser governo.

À evidência, para governar, Lulaprecisará do PMDB, e fará as concessõesnecessárias, a bem do poder, e não,necessariamente, a bem do País.

Terá, ainda, de negociar com os pequenospartidos, para manter a maioria noCongresso, que poderá ser flutuante,conforme haja ou não interesses conflitantes.Estará, portanto, limitado, em suas metas dedesenvolvimento, de crescimento, de tornaro País uma nação próspera.

Já a oposição, demonstra fantásticainabilidade em ser oposição. PSDB e PFLsaíram atordoados das eleições e seu papelainda precisa ser reescrito. Talvez afragilidade da oposição é que impeça umaclara visualização da enorme debilidade edificuldade convivencial das alianças queLula fez e fará, à luz dos interesses dospartidos aliados, e não do País.

O congresso, prevalecendo a falta deliderança — com o cinismo próprio de umfalso companheirismo, que perdoa osimorais, só por serem parlamentares —,escandalosamente se auto-outorgafantásticos aumentos de subsídios que, em

Leonardo Wen/Folha Imagem

Politicamente, opresidente Lulaserá pressionadopor radicais e pelosmedíocres (...) Terápouca vontade deobstruir violentado-res da lei enquista-dos no MST.

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89JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

qualquer outro país sério, levaria àconvocação imediata de uma novaAssembléia, para repor um mínimo de éticaa um parlamento extraordinariamenteaético. Felizmente, a Suprema Corteatalhou os indecentes benefíciosconcedidos pro domo sua.

E, como o mau exemplo é contagiante, oLegislativo de parte dos 26 estados e dos5.500 municípios aproveitou para aumentarseus vencimentos, na proporçãoconstitucional (25% do que ganham osdeputados federais, para os estaduais, e 25%do que ganham os deputados estaduais,para os vereadores, respeitando-se, apenas,o percentual constitucional dos orçamentosmunicipais, de acordo com sua população),com o que os contribuintes brasileiros, jásufocados por uma carga tributária que é amaior do planeta, se relacionada com osserviços públicos prestados, teriam quepagar ainda mais, para sustentar a falta deética, a inoperância e escassez depatriotismo de seus representantes, quetudo representam, menos o povo, salvoclaríssimas exceções. A reação popular

contra tal indecência não se fez esperar, e oPretório Excelso derrubou o escandalosoauto-aumento.

Neste quadro, o presidente da Repúblicanão terá como baixar a carga tributária, atépor que não pretende mexer em doisgargalos da economia, ou seja, a máquinaadministrativa — inchada e quase inútil,geradora de múltiplas e desnecessáriasobrigações suportadas pelo cidadão — e aprevidenciária, lembrando-se que, oproblema previdenciário é causado,principalmente, pelo custo dasaposentadorias da burocracia oficial e dospolíticos, que geram seu fantástico deficit.

Sem mexer nesses dois gargalos, não hácomo a economia crescer, principalmente,levando-se em consideração que o Brasil é opaís com os mais elevados encargos sociaisdo mundo. Para cada empregado que écontratado, há que se pagar por dois,segundo José Pastore, visto que os encargoscorrespondem a outro salário.

Em outras palavras, o Brasil começa adeixar de ser um país atrativo parainvestimentos, perdendo para muitos

Apesar da cargatributária elevada,

não há recursospara investimentos

estruturais,correndo o Brasil o

risco de um apagãode energia,

semelhante aoapagão aéreo,

gerando prejuízos.

Fábio Motta/AE

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90 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

outros paises emergentes, principalmenteseus mais diretos concorrentes (Índia,China, Russia e México).

Amargamos uma medíocre elevação doPIB, em período de "céu de brigadeiro", naeconomia mundial, e em todos os índiceseconômicos, estamos atrás (crescimento doPIB, índices sociais, combate a corrupção,qualidade de vida, educação, cultura etc.).

A própria Bolsa Família — programameramente assistencialista — é modeloesgotado, criticado pela CNBB pordesestimular o trabalho, não incentivar oestudo e retirar recursos que poderiam serinvestidos em infra-estrutura, embora tenhasido o maior cabo eleitoral para a reeleiçãodo presidente.

Assim, apesar da carga tributária elevada,não há recursos para investimentosestruturais, correndo o Brasil o risco, seprogredir um pouco mais do que amediocridade atual indica, de ter,novamente, um apagão em energia elétrica,semelhante ao apagão aéreo, que acaba dedemonstrar como a falta de investimentos nainfra-estrutura aérea pode gerar fantásticosprejuízos para o País.

O próprio PAC, na sua timidez, poderátrazer alguma sensação de melhora, maspadece do vício de manter intocável o cancroda esclerosada máquina administrativa.

Acresce-se que o Poder Judiciário, nadaobstante a qualidade de seus membros, não écomposto de humanistas, mas de juristas.Nem sempre seus componentes têm a visãoda problemática nacional, principalmentenos Tribunais Superiores, cuja função maiornão é administrar justiça (isto se faz nasinstâncias inferiores), mas manter aestabilidade das instituições. A carência deconhecimentos de economia, nos brilhantesministros que compõem os TribunaisSuperiores, termina, muitas vezes, levando-os a interpretar a lei de forma a gerar maisinsegurança jurídica que estabilidade, nadaobstante, repito, estejam as cortes compostaspor pessoas de inatacável moral, o que nemsempre se encontra nos demais poderes. É, delonge, o melhor dos poderes da República,apesar de ainda não adaptado aos desafiosdo século 21, por sua visão do direito aindademasiadamente formalista e odesconhecimento em profundidade deoutras áreas das ciências sociais. Nesteparticular, há excelentes faculdades deDireito, que não ultrapassaram o limite daforma jurídica, repudiando o estudo mais

aprofundado de realidades objeto de outrasciências, que o direito regula. E muitos denossos magistrados saem destas excelentesfaculdades, que ainda vivem o Direito doinício do século 20, e continuam a decidir àluz do formalismo kelseniano, hoje merareferência bibliográfica na Europa, nadaobstante seu excepcional papel, na evoluçãoda dicção jurídica.

Acrescente-se o papel do MinistérioPúblico, cuja preocupação de fiscal da leileva, muitas vezes, seus cultos integrantes auma exegese tão apegada à letra da norma,que acaba por redundar em atuaçõesdissociadas da realidade. Sem falar que, nãopoucas vezes, pressionados pelos holofotesda mídia e pela opinião pública, dão início aprocessos que, depois, se revelaminsubsistentes, com sérias violências adireitos fundamentais do cidadão,principalmente os da privacidade. Quantasvezes cidadãos são presos preventivamente,sem nenhuma culpa formada, mas emvirtude de supostos crimes tributários, nãohavendo sequer a lavratura de um auto deinfração. Neste particular, nada obstante sejaincontestavelmente integrada por elementosde grande preparo e reputação ilibada, talcomo ocorre com o Ministério Público, aPolícia Federal violenta o direito àprivacidade, desventrando suspeitas comose fossem realidades, pelos canaisespetaculares da imprensa, com lesãoirrecuperável à imagem das pessoas, que têmtal direito assegurado pela Constituição.

Infelizmente, a preocupação e o empenhodo Ministério Público e da Polícia Federal ematingir figuras da sociedade, suspeitas daprática de supostos delitos, não são osmesmos no que diz respeito ao combate aocrime organizado, este ainda o maiorproblema a solucionar. Aí sim, nada obstante,repito, o valor das duas instituições (MPFederal e Estadual e Polícias Federal eEstaduais), o fracasso é fantástico, vivendo, apopulação, em permanente sobressalto, porfalta de segurança mínima para sobrevivernas grandes cidades.

Imagem arranhada

No plano externo, o País vai muito mal.De líder dos países emergentes , em 2003,Lula passou a ser mero co-adjuvante de umhistriônico líder de um país de 16 milhõesde habitantes, do tamanho da Bahia,sobre ser constantemente humilhado

A carência deconhecimentos deeconomia nosbrilhantes ministrosque compõem osTribunais Superiorestermina, muitasvezes, levando-os ainterpretar a lei deforma a gerar inse-gurança jurídica.

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91JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

pelo iletrado presidente do tempo dascavernas, que governa a Bolívia e quepretende determinar, inclusive, o que oBrasil pode ou não explorar dentro de suaspróprias fronteiras!

Perdemos em todas as frentesinternacionais, principalmente por nãopercebermos que os nossos principaisconcorrentes fizeram a opção maisinteligente de se aproximar e negociarabertamente com os países ricos, levandofantástica vantagem sobre a nossapreferência por países menos desenvolvidosque o nosso, especializados em desmoralizaro presidente Lula, no plano internacional(Argentina, Venezuela e Bolívia).

O Brasil ainda tem sido salvo pelacoerência dos Ministros Furlam e Meirelles, oprimeiro, mantendo razoável performancede exportações, embora muito inferior à doMéxico, que é duas vezes superior a doBrasil. Ao que parece, entretanto, não poderámanter por muito tempo tal performance.O segundo, administra uma políticamonetária coerente, que poderá ser abaladaagora, que os ínclitos ministros do STFtransferiram para 12 mil magistrados

espalhados pelo Brasil a possibilidade dedefinir a taxa de juros de cada contrato, semqualquer balizamento, numa inacreditávelcontribuição para a perturbação de qualquerpolítica de estabilização monetária no País.O velho Octavio Bulhões dizia que moedaé matéria tão séria, e que poucos são oseconomistas que sabem como tratá-la.Imagine-se o que ocorrerá com esse item damacro-economia sendo tratado pormagistrados que, apesar de excelentesjuristas, certamente não são economistas.Nossa política monetária passará a sermais difícil e exótica do que em qualqueroutro país. A não ser que ocorra, no Brasil,o que já ocorreu na França, em que ocorrentista que contesta taxa de juros emjuízo, dificilmente consegue novo contratode empréstimo bancário.

Não vejo, portanto, com otimismo osegundo mandato do presidente Lula.Politicamente, será pressionado pelosradicais e pelos medíocres. Será obrigado apartilhar o poder com outros políticos com osquais tem pouca ou nenhuma sintonia. Nãoterá condições (até por filosofia própria) demexer na máquina esclerosada, nem naPrevidência, principalmente nasaposentadorias oficiais. Terá pouca vontadede obstruir os violentadores da leienquistados no MST. Começo já a perceberfuga de investimentos e de empresas, que setransferem do Brasil para fora. A admissão dedois novos sócios atrabiliários no Mercosul,poderá transformar uma união aduaneira emcentral política de radicalização anti-americana.

Estou convencido de que, sem redução damáquina administrativa, nenhum plano darácerto no Brasil, porque o que mata o País é acarga burocrática geradora de todas asdemais, inclusive a tributária.

E a tentativa do Ministério da Previdênciade descompassar o terceiro setor, criandoinexistentes dívidas tributárias, quando aConstituição o quis a salvo de tributação,pode prejudicar o País no único segmentoque faz o que o Governo deveria fazer com osnossos impostos e não faz.

Esta é a razão pela qual, no momento emque escrevo este artigo vejo com pessimismoo segundo mandato, quaisquer que sejam osministros que o presidente escolha oumantenha.

Como dizia Roberto Campos: "Com asmentalidades dominantes, o Brasil não correnenhum risco de melhorar".

Bruno Stuckert/Folha Imagem

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Paulo Pampolin/Hype

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Ensino para enfrentaras desigualdades

Claudio deMoura Castro *Educador,economista, escritore presidente doConselho Consultivoda FaculdadePitágoras

* O autor agradece as sugestões de Simon Schwartzman.Texto original em inglês. Tradução: Rodrigo Garcia

O Brasil tem uma longa históriade desigualdade e a educaçãotem muito a ver com esse as-sunto. A herança de injustiça

se origina do status colonial e dos estilos ibé-ricos de colonização. Este ensaio tenta traçaras raízes da desigualdade, apresentar al-guns números relevantes para mesurá-la emostrar o que está sendo feito para melhorara situação por via do ensino.

Para que fique claro, só falamos daquelasdesigualdades que estão associadas à injus-tiça. Escolas católicas, judias e protestantespreparam de forma diferente seus alunos. Eo futuro deles será diferente. Mas como nãohá nenhuma injustiça nisso, não é assunto dopresente ensaio.

Quando olhamos para a nossa história, ve-mos que as relações sociais e raciais foram tem-peradas por um alto grau de miscigenação epela falta de nitidez das linhas étnicas. Alémdisso, o País escapou de guerras sangrentas,tanto internas quanto contra inimigos exter-nos. Soluções pacíficas para os problemas so-ciais têm sido encontradas, a maioria por meiode negociações e não por conflitos violentos.Não se podem deixar de lado essas caracterís-

ticas da sociedade brasileiras, que tendem a serpositivas, embora possam ter também seus as-pectos negativos.

Ao longo dos tempos, o desempenho edu-cacional tem sido o ponto mais fraco no desen-volvimento brasileiro. Esse ensaio afirma queesta é a principal raiz da atual desigualdadebrasileira. O País herdou de Portugal o seu sis-tema de educação, que sempre foi muito atra-sado. Ao longo do séculos, o progresso foi mui-to lento. Só nos últimos 50 anos houve mudan-ças mais profundas e a educação começou acrescer rapidamente. Mas apesar do notávelprogresso recente, a situação atual não é, demodo algum, satisfatória.

I. RAÍZES E A PERMANÊNCIA DADESIGUALDADE

A. Raízes históricasPortugal não colonizou o Brasil estabele-

cendo entrepostos comerciais e os protegen-do com fortificações, como o fez na África ena Índia. Tal como fizeram a Grã-Bretanha ea Holanda na África do Sul, os portuguesestambém migraram em números considerá-veis. Esses dois casos contrastam com o sis-

Divulgação

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tema de entrepostos comerciais portuguesese britânicos em muitos países africanos, on-de pequenos enclaves de expatriados admi-nistravam as colônias. Isso significa que Bra-sil e África do Sul são países fortemente eu-ropeus em sua cultura e maneira de ser, emcontraste com a Índia, onde o legado inglês émuito mais superficial.

Durante três séculos, o Brasil foi uma colô-nia de Portugal. No início do século 19, comoconseqüência das Guerras Napoleônicas, elese tornou a sede do Império Português. As-sim, em um nível muito profundo, a herançaportuguesa está por todas as partes, com seusresultados positivos e negativos. Se Portugaldeu ao Brasil uma herança positiva, em ter-mos de tolerância e coabitação entre culturasbastante diferentes, o mesmo não pode ser di-to sobre o legado educacional. Países coloni-zadores são freqüentemente criticados porprejudicarem a educação de suas colônias.Esse é também o caso de Portugal no ensinosuperior. Porém, a principal razão pela qualos portugueses deram pouca importância àeducação no Brasil foi porque eles própriosnão a tinham em quantidade ou qualidade.Assim, o País herdou de Portugal um sistemaescolar muito fraco e esse tem sido um dosproblemas mais graves do Brasil.

Por aproximadamente quatro séculos emeio, a educação brasileira se manteve maisou menos em linha com a pobreza geral doPaís. Durante o rápido crescimento econômi-co que ocorreu no século 20, a educação melho-rou, mas não foi capaz de acompanhar a eco-nomia. Como resultado, o País permaneceu

bem mais atrasado na educação do que pode-ria corresponder à sua renda per capita.

O ritmo da expansão educacional se acele-rou na segunda metade do século 20. Aliás, elese tornou extremamente rápido na última dé-cada. Mas havia muito a ser alcançado em tãopouco tempo, pois a economia brasileira cres-ceu mais rápido do que a de qualquer outropaís durante o século 20.

A urbanização também foi extremamenterápida, talvez uma das mais rápidas do mun-do. Como conseqüência, a vida nas grandes ci-dades trouxe todas as tensões e crises resultan-te da sua incapacidade para acomodar corre-tamente os novos moradores. Tampouco aeducação foi capaz de socializar esses gruposdeslocados e problemáticos

Os ricos se tornaram mais ricos e numerosos,não há dúvidas sobre esse aspecto. Mas é pre-ciso também entender que a situação dos po-bres melhorou continuamente, ao longo do sé-culo 20. Todos os indicadores clássicos de bem-estar social avançaram muito. Por outro lado, adistância entre os dois grupos não diminuiusignificativamente. De uma sociedade atrasadae reprimida, o Brasil se tornou uma nação dinâ-mica, turbulenta e com um grave abismo social.É essa a chamada "dívida social".

Escolas melhores poderão atenuar a desor-ganização e a anomie provocada por essa urba-nização tão rápida? Poderão ajudar a criar ocrescimento econômico indispensável paramelhorar o bem-estar de todos?

B. Burocracia educacional ineficienteÉ ingenuidade culpar a burocracia por to-

dos os males da educação. Ela tem de existir e,nas sociedades modernas, a necessidade deuma burocracia substancial não pode ser su-bestimada. A questão é se o País está sendobem servido pela que tem.

A burocracia brasileira é descendente diretado formalismo ibérico. Ela ainda mistura aprestação de serviços com as práticas cliente-lísticas e patrimonialistas de muitos servido-res públicos. Porém, não se trata de um sistemahomogêneo.

No caso da educação, alguns segmentos daburocracia são modernos e eficientes, como é ocaso dos setores que lidam com a pós-gradua-ção e as ciências. Em contrapartida, os sistemasde ensino básico, particularmente nos municí-pios, podem ser muito tradicionais, ineficien-tes e vítimas da politicagem.

Quando falamos de superar desigualda-des e reformar o ensino, a questão principal éa associação estreita que existe entre a quali-

Reprodução

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dade da burocracia pública e as conquistaseducacionais do nível correspondente. Após-graduação tem sempre tido a melhor emais eficiente administração, tanto no Mi-nistério da Educação quanto nas agências in-dependentes que financiam as pesquisas(FINEP, CNPq, FAPESP etc.). A graduaçãosofre com uma burocracia frondosa e pesa-da. Mas alguns setores dentro dela funcio-nam relativamente bem.

Em contraste, as máquinas administrativasque lidam com a educação fundamental e mé-dia têm sido, desde sempre, cronicamente fra-cas, tanto nos níveis federal, estadual ou mu-nicipal. São ideologicamente mais ingênuas,menos conectadas ao que se passa no mundo ea execução dos seus programas se arrasta apasso de lesma. Previsivelmente, sua capaci-dade de inovação é ínfima.

Um país que precisa desesperadamente me-lhorar a qualidade da educação fundamentalnão é bem servido pela burocracia federal cor-respondente. Pior, no nível municipal, a máqui-na pública tende a ser ainda mais ineficiente einfestada por politicagem eleitoreira e patrimo-nialista. As melhores intenções em reduzir a de-sigualdade se chocam contra uma máquina ad-ministrativa travada e incompetente.

C. O avanço da educação é ruimpara os que ficam atrásSempre pensamos na educação como uma

coisa boa e este artigo segue esta linha. Porém,há alguns aspectos perversos no avanço educa-cional. Em uma sociedade tradicional, pessoasinteligentes e trabalhadoras podem aprenderum ofício, abrir um negócio e crescer, mesmocom níveis de escolaridade muito modestos.Entretanto, a modernidade progressivamentefecha as portas a quem não tem níveis satisfa-tórios de escolaridade, mesmo se o que alme-jem é desempenhar profissões muito simples.

A economia brasileira avançou muito. Suasofisticação aumentou consideravelmente e, atécerto ponto, os níveis de escolaridade responde-ram. Amplos setores da economia são moder-nos e altamente competitivos, tanto na indús-tria, nos serviços quanto no agronegócio.

Porém uma conseqüência pouco auspiciosada modernidade é que o acesso a quase todosos empregos tem agora um filtro de escolari-dade. As posições mais procuradas exigemmais educação. Porém, até os trabalhos que di-ficilmente precisariam de um conhecimentoescolar, como o de gari, têm processos seleti-vos nos quais se exigem níveis consideráveisde escolaridade. Quando pensamos na natu-

Multidão faz filapara se inscrever noconcurso para gari

no Sambódromo doRio de Janeiro. Até

os trabalhos quedificilmente

precisariam deconhecimento

escolar, exigemescolaridade.

reza do trabalho, tais exigências são bobas e ab-surdas. Mas o fato é que elas existem e se ge-neralizam cada vez mais. O resultado é que oprogresso individual sem educação formal fi-cou bem mais difícil.

Portanto, quem não consegue sucesso na es-cola está automaticamente derrotado fora de-la, quando chega ao mercado de trabalho. Defato, sabemos que a relação entre nível de es-colaridade e renda é muito estreita.

Por essas razões, o determinante mais sério dosucesso ou do fracasso na vida profissional é odesempenho escolar. Reconhecer os filtros queexistem dentro das escolas e que impedem osavanços pessoais no mercado de trabalho é fun-damental para entender a desigualdade e desen-volver as políticas necessárias para combatê-la.

Chris von Ameln/Folha Imagem

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II. FACE DA DESIGUALDADE

A. Trajetória históricaPor qualquer padrão que se tome, o Brasil

está atrasado em matéria de educação, em quepesem os progressos espetaculares dos últi-mos anos. No começo do século 20, apenas cer-ca de 10% da faixa etária correspondente àeducação primária ia à escola. No meio do sé-culo, aproximadamente 50% recebiam educa-ção. Na entrada do século 21, 97% da faixa dos7-14 anos freqüentavam a escola. Ainda maisnotável, a matrícula na educação média tripli-cou nos últimos 10 anos.

Embora atrasada, a virtual universalizaçãoda matrícula na faixa dos 7-14 anos foi uma proe-za importantíssima. Ela é, de longe, o instrumen-to mais importante para reduzir a desigualdade.Entretanto, o trabalho está longe de terminar.Apenas 84% dos estudantes concluem a quartasérie e só 57% concluem os oito anos de educaçãobásica. No final da educação média, apenas 37%dos que entraram obtêm o diploma.

O aspecto mais perverso dessa evasão esco-lar é sua natureza seletiva. Entre os 20% maispobres, a presença na escola cai de 95% na faixade 7-14 anos para 73% no grupo de 15-17 e para28% na faixa 18-24 anos. Já a freqüência no gru-po dos 20% mais ricos se mantém constante emtodas as idades. Em outras palavras, o rico so-be a escada educacional e dificilmente encon-tra tropeços ou problemas, enquanto que qua-se três quartos dos pobres enfrentam dificul-dades e abandonam a escola.

O Brasil praticamente não tinha escolas pú-blicas de nenhum nível no século 19, excetopor umas poucas instituições de ensino supe-rior. De fato, um pequeno número de faculda-des de Medicina, Engenharia e Direito foi cria-do no começo do século 19, mas a expansãosubseqüente foi muito lenta. Nesse mesmo pe-ríodo, muitas centenas de cursos superioresestavam sendo criados nos Estados Unidos.

Foi somente no começo do século 20 que arede de escolas públicas foi ampliada. Mas aexpansão foi muito rápida, daí para frente.Partindo praticamente do zero, as matrículasagora se aproximam da totalidade da faixa etá-ria correspondente ao nível fundamental. Asmatrículas no ensino médio hoje correspon-dem a quase dois terços da faixa etária.

Em contrapartida à rápida expansão da edu-cação pública no ensino básico, nas últimas dé-cadas, o crescimento da universidade públicase desacelerou e, na última década, praticamen-te parou. O hiato no ensino superior foi preen-chido pelo setor privado, que se expandiu bem

mais rápido do que o público, atingindo hoje70% das matrículas. Observe-se que é um setorrealmente privado, sem subsídios públicos demonta. Os alunos pagam os custos integrais desua formação e um número crescente de insti-tuições declara seus fins lucrativos.

Para resumir, o atraso brasileiro na educa-ção vem do passado. Comparações históricascom a Europa mostram um enorme abismo.Porém, mesmo em comparação com países co-mo Argentina e Uruguai, as diferenças eramenormes, já que esses países começaram a semover para a universalização da escola emmeados do século 19. Comparado com eles, oBrasil teve um atraso de quase um século.

Pouco aconteceu até a Segunda GuerraMundial. Porém, o que veio depois foi deverasimpressionante — embora haja pouca cons-ciência disso, mesmo nos meios educacionais.Em menos de um século, o Brasil está se enca-minhando muito rapidamente para alcançaros melhores desempenhos na região (Uruguai,Argentina e Chile), tanto em quantidade quan-to em qualidade.

O Brasil pode e deve festejar esse desempe-nho espetacular. Contudo pairam questõesdesagradáveis que não podem ser ignoradas.Uma expansão rápida significa muitos erros,desperdícios e mal-entendidos. Será que po-deriam haver sido evitados? Seria possívelcrescer tão rápido e, ao mesmo tempo, evitar osescorregões e quedas ocasionais?

B. Abismo da qualidadeEnquanto o sistema de educação pública era

pequeno, a qualidade tendia a ser ao menos ra-zoável. Havia relativamente poucos alunos e es-tes eram predominantemente de classe média. A

Alaor Filho/AE

No final do quartoano do ensino

básico, menos dametade dos alunosestá alfabetizada.

Em teoria, quasetodos deveriam

estar alfabetizadosno final da

primeira série.

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maioria das escolas se localizava nos bons bair-ros de cidades relativamente prósperas e tinhaprofessores decentes. De fato, uma das razõespara isso era ser o magistério a única profissãosocialmente aceita para jovens de boa origem.

A explosão do crescimento da matrícula, nasegunda metade do século 20, dinamitou essesistema pequeno e tradicional. Como se nãobastasse a velocidade estonteante da expan-são, houve pouca atenção para a qualidade doensino básico. Todos os olhos estavam postosna construção de uma rede de universidadesespantosamente ricas e bem instaladas.

Ao que parece, a qualidade da educação bá-sica caiu bastante, ainda que dados quantita-tivos não estejam disponíveis. Ao mesmo tem-po em que a educação se tornava menos elitis-ta e recrutava alunos com menos capital inte-lectual, o que se oferecia aos novos usuáriosera cada vez mais inadequado.

Contrastando com a queda de qualidade apartir da década de 70, a extraordinária expan-são de matrículas, em todos os níveis, ocorridanos anos 90 resultou em pouca ou nenhumadegradação na qualidade. Isso pode ser consi-derado como uma das mais excepcionais con-quistas do período. Aliás, este autor previuuma séria deterioração na qualidade — feliz-mente, suas previsões estavam erradas.

A partir do começo dos anos 90, uma quan-tificação confiável do desempenho escolar setornou possível com o SAEB, uma pesquisapor amostragem que cobre a quarta e a oitavaséries do ensino fundamental e mais o últimoano do ensino médio. De acordo com os dados,coletados de dois em dois anos, a qualidadepermanece essencialmente a mesma.

Ao mesmo tempo em que isso foi uma faça-nha, é preciso entender que esses níveis dequalidade que não sofreram mudanças sãoinaceitavelmente baixos. No final do quartoano do ensino básico, menos da metade dosalunos está completamente alfabetizada. Emteoria, quase todos os estudantes deveriam es-tar alfabetizados no final da primeira série. Se-gundo os resultados do PISA, o desempenhode um brasileiro típico corresponde ao de umeuropeu com quatro anos de escolaridade amenos. O Brasil, aliás, obteve o pior resultadono teste do Pisa em 2001.

C. Estrutura educacional brasileiraSendo uma federação, o Brasil tem um po-

der central, 27 Estados relativamente inde-pendentes e cerca de 5.500 municípios, tam-bém bastante independentes. Na educação, adivisão de responsabilidades é bastante com-

plexa e pouco consistente. O Ministério daEducação opera uma rede de universidadespúblicas e tem pouca jurisdição sobre os sis-temas locais. Não obstante, repassa fundospara reforçar os gastos municipais. O minis-tério tem também um mandato oficial de es-tabelecer políticas educacionais, avaliar alu-nos e escolas, bem como coletar e analisar es-tatísticas educacionais.

Cada Estado tem a sua Secretaria da Edu-cação, com seus próprios professores, admi-nistração e recolhimento de impostos. Pro-gressivamente, os Estados estão focalizandosua ação nas de ensino médio, mas muitosainda têm escolas fundamentais sob sua res-ponsabilidade.

Os municípios também possuem Secreta-rias de Educação e coletam os impostos corres-pondentes. Predominantemente, cuidam ape-nas do ensino fundamental.

Os currículos são nacionais, bem como a le-gislação sobre o número de hora/aula por ano.Mas a administração é local, como também é aquestão de salários e carreira do magistério.Para complicar ainda mais a questão, algunsmunicípios têm escolas de ensino médio e unspoucos Estados possuem instituições de ensi-no superior. Por exemplo, a melhor universi-dade do Brasil, a Universidade de São Paulo, éuma instituição estadual.

Cerca de 15% dos alunos dos níveis funda-mental e médio freqüentam escolas particula-res. Em contraste, perto de 70% dos alunos decursos superiores estão em cursos privados.Como já foi mencionado, não há subsídios pú-blicos para a educação privada. Os estudantestêm de pagar pelo custo total de sua educação.

As escolas particulares de ensino funda-mental e médio são consideravelmente me-lhores do que públicas — além de muitas ou-tras razões, recebem alunos com maior capi-tal intelectual. No nível superior, há uma si-tuação oposta. As universidades públicastêm um custo muito mais alto e recebem osmelhores alunos. Em compensação, as parti-culares são bem mais baratas, cerca de um ter-ço do que custam as públicas.

Como demonstrado pelo Provão, um testeaplicado a universitários perto de se gradua-rem, os cursos de qualidade excepcional estãopredominantemente em universidades públi-cas. Entretanto, na maioria dos cursos (doisterços do total), as diferenças entre as públicase as privadas são mínimas, se é que existem.

De uma perspectiva de eqüidade, o sistemaé muito injusto. Os mais ricos freqüentam es-colas privadas, nos níveis fundamental e mé-

Contrastandocom a queda dequalidade a partirda década de 70,a extraordináriaexpansão dematrículas ocorridanos anos 90resultou em poucaou nenhumadegradação naqualidade, quetodavia continuabaixa.

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dio. Os restantes 85% vão para as públicas.Quando chega a hora de entrar no ensino su-perior, os que puderam pagar as escolas priva-das estão mais bem preparados para os exa-mes e obtêm mais da metade das vagas nasuniversidades públicas, ainda que sejam só15% dos que completam o nível médio. Em ou-tras palavras, os que puderam pagar por umaeducação básica privada estão mais de três ve-zes e meia sobre-representados nas universi-dades públicas que são gratuitas.

Vendo a questão do ponto de vista dos sub-sídios públicos envolvidos, os universitários,de classe média, têm uma educação gratuitaque custa mais de dez vezes o que custa um anode educação básica ou média no setor público.

D. Ênfase prematura naeducação superiorComo já foi dito, a educação no Brasil levou

quatro séculos e meio para despertar. Antesdisso, ela vegetava, ficando atrasada em todosos aspectos, até comparada a dos nossos vizi-nhos mais pobres.

A educação básica, finalmente, começou acrescer nos anos 50. Entretanto, o Brasil decidiuque tinha de desenvolver uma rede de univer-sidades públicas, com pesquisas e cursos depós-graduação, a fim de preparar mais profes-sores e líderes para um futuro crescimento.

Nessa época, o papel de lideranças bem pre-paradas foi enfatizado, justificando os grandesinvestimentos para criar, pelo menos, uma uni-versidade federal em cada capital estadual. Ain-da que a implementação de planos educacionaistenha uma longa tradição de permanecer no pa-pel, no caso do ensino superior, o desempenhodo Ministério da Educação foi exemplar. Cam-pus maravilhosos foram construídos e milharesdos mais talentosos alunos foram enviados aoexterior, para fazerem mestrados e doutorados.Com o retorno deles, iniciado nos anos 70, maisde mil cursos de graduação foram criados.

O plano de expansão obteve tanto sucessoque o crescimento e maturação do ensino supe-rior criou um grave desequilíbrio entre os ní-veis de ensino. O Brasil estabeleceu uma sériarede de universidades públicas, incluindo al-guma de excelente qualidade, bem antes de quemetade das crianças estivessem na escola ini-cial. Um resultado imediato foi que não haviaestudantes suficientes para permitir que as ma-trículas no ensino superior continuassem cres-cendo. Por aproximadamente duas décadas, onúmero de matrículas em universidades públi-cas praticamente se estagnou. Observe-se quenos anos 80, mais de 60% dos que se formaram

em cursos médios foram para o su-perior. Essa é uma taxa de transiçãomais alta do que a de praticamentequalquer outro país do mundo.

No passado, teria havido umaoportunidade de construir um sis-tema educacional de baixo para ci-ma. Mas em vez de criar uma sóli-da rede de escolas primárias e apartir daí movimentar-se para osníveis mais altos, o Brasil dedicoupraticamente todos os seus esfor-ços no ensino superior e na pós-graduação.

Não há consenso acerca dasconseqüências para o futuro doBrasil dessa opção por uma forteênfase na criação de universida-des, pós-graduação e pesquisa, àsexpensas de um básico universal esólido. Estão em moda as compa-rações com a Coréia e outros paí-ses bem-sucedidos do SudesteAsiático, já que estes optaram porcomeçar universalizando umaeducação básica de qualidade. Pa-rece razoável supor que o Brasil te-nha cometido um erro estratégicoe que hoje paga por ele. Ainda as-sim, não se podem negar os bene-fícios muito tangíveis do impactode lideranças bem formadas e doaumento vertiginoso da capacidade de pes-quisa científica do País.

Mas no que diz respeito ao tema do presenteensaio, essa política criou pelo menos duasquestões de eqüidade. A primeira foi a decisãode gastar com um nível de educação ao qualapenas os alunos mais ricos têm acesso, por-que são eles os que terminam o ensino médio.O outro problema foi não investir nos níveisiniciais de educação, onde se constroem osfundamentos de um sistema mais eqüitativo.

Só nos anos 90, o desequilíbrio quantitativoentre um ensino superior gigantesco e uma pe-quena educação básica desapareceu. Curiosonotar que a maioria dos educadores nem sedeu conta da hipertrofia do superior e nem desua subseqüente correção. Mas o desequilíbriosumiu apenas no quesito quantitativo. Aindaestá faltando muito na qualidade.

E. Gênero é um problema — para osmeninosNos paises de Primeiro Mundo, a igualdade

dos sexos foi um das grandes questões sociais doséculo 20. Depois de uma longa história de dife-

Como ocorreu nasÍndias Ocidentais,

pode haver espaçopara uma ação

afirmativa a favordos meninos,

particularmente noensino secundário.

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Só depois, elas conseguiram alcançá-los.O Brasil ficou atrasado durante um longo

tempo. Nesse período, obviamente, as meninastambém estavam atrás dos meninos na educa-ção. Mas, sobretudo, os dois sexos estavamatrasados. Quando finalmente a educação che-gou, a expectativa de igualdade de gênero já ha-viam aflorado na sociedade e o crescimento fa-voreceu tanto meninos quanto meninas.

Graças ao acelerado crescimento das matrícu-las, a diferença de sexos foi rapidamente elimi-nada. É instrutivo observar que não houve ne-nhum esforço consciente para equiparar as ma-trículas por gênero e, ainda menos, alguma po-lítica específica para tal. O movimento feministanão foi particularmente beligerante. A equipara-ção simplesmente ocorreu, espontaneamente.

Mas esse movimento espontâneo para aeducação feminina não parou na igualdade.As mulheres agora são mais escolarizadas doque os homens, em todos os níveis (menos nodoutorado). A diferença de 10 pontos porcen-tuais no final do ensino médio é preocupante,pois esse desequilíbrio pode causar efeitos de-sestabilizantes na sociedade.

Como ocorreu nas Índias Ocidentais, podehaver espaço para uma ação afirmativa a favordos meninos, particularmente no ensino se-cundário. Mas ninguém ainda se preocupouseriamente com esse assunto.

F. Problema é ser negro ou serpobre?Após o descobrimento, o próspero negócio

da cana-de-açúcar precisava de mão-de-obrapara os canaviais e os engenhos. Sucessivastentativas de escravizar os índios com essepropósito não tiveram sucesso certo. Os índioseram nômades e seu temperamento arrediotornou a missão praticamente impossível. Issolevou os portugueses a trazerem escravos afri-canos para trabalhar nos canaviais. Maisadiante, foram para as minas de ouro nas Mi-nas Gerais. Na segunda metade do século 19,os escravos se tornaram indispensáveis nasplantações de café. Eles somavam um terço dapopulação brasileira em 1850.

Porém, o tráfico de escravos foi sendo pro-gressivamente coibido, ao longo do século 19.Por motivos que provavelmente envolvemmuito mais do que direitos humanos, a Grã-Bretanha promoveu ações militares contra otráfico de escravos no Oceano Atlântico. Asconseqüências disso no Brasil foram, de início,criar uma escassez de escravos recém-impor-tados. Mas a oposição à escravidão progressi-vamente fincou raízes no País e os movimen-

Monalisa Lins/AE

renciação, os países ricos modificaram suas re-gras, dando às mulheres mais direitos políticos emais educação. Progressivamente, as diferençasentre os gêneros na educação diminuíram e de-sapareceram. Foi muito depois de terem siste-mas educacionais maduros e de boa qualidadeque as questões de gênero foram encaminhadase resolvidas.

O Brasil tomou um caminho diferente, poisisso aconteceu bem antes de haver alcançado osníveis de educação e desenvolvimento econô-mico dos países industrializados. Tradicional-mente, as diferenças entre os gêneros eramenormes, como se esperaria. Mas tudo se pas-sava dentro de um sistema minúsculo. A gran-de revolução educacional ocorreu no Brasilmuito tarde, na segunda metade do século 20,um período de crescimento econômico muitorápido, com a urbanização e modernizaçãotambém chegando a ritmo rápido.

Como o País estava atrasado demais, elenão acompanhou o modelo antigo da Europa.Ou seja, primeiro os europeus desenvolveramsistemas educacionais para os meninos, en-quanto as meninas foram deixadas para trás.

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tos de liberação foram tomando corpo. Taismovimentos levaram à aprovação de uma le-gislação cada vez mais restritiva às práticas es-cravagistas. Leis restringiram o uso de escra-vos, libertaram todos os seus filhos e facilita-ram esquemas para torná-los livres. Final-mente, em 1888, a escravidão foi totalmenteabolida. O fato não provocou maiores terre-motos na sociedade ou na economia. Em con-traste, poucas décadas antes, o mesmo assuntomergulhou os Estados Unidos em uma dasguerras civis mais fratricidas da história dahumanidade, com 620 mil soldados mortos.

Contudo, quase nada foi feito para apoiar osescravos recém-libertos. E menos ainda foioferecido em termos de educação. Afinal, aeducação também não era oferecida aos bran-cos pobres. Assim, há pouco mais de um sécu-lo, milhões de escravos foram libertos, massem qualquer educação. Ou seja, não recebe-ram os instrumentos para superar seu atrasonos anos futuros. Obviamente, constituíam-seno segmento mais pobre da sociedade.

Por isso, não é surpresa ver que os negros,que eram os antigos escravos, permaneceram,em sua grande maioria, dentre os grupos mais

pobres da sociedade. Não poderia ser diferen-te. Inevitavelmente, o seu nível educacional,na média, continuou muito baixo. Isso ocorreuem outros lugares, até mesmo nos EstadosUnidos, onde a diferenças de educação e rendaentre grupos étnicos é ainda enorme.

Do ponto de vista do debate atual, o que im-porta é quantas gerações serão necessárias pa-ra levar esse grupo ao mesmo nível social eeconômico do restante da sociedade. De fato,está demorando muito. Comparações simplesentre negros e não-negros mostram, em mé-dia, diferenças muito significativas. Não obs-tante, as estatísticas melhoram. As taxas deanalfabetismo — que refletem bastante o pas-sado — eram 2,5 maiores dentre os negros em1992. Atualmente, essa diferença é o dobro.

Essas diferenças devem ter sido causadaspor muitos motivos. Nos Estados Unidos, asleis Jim Crow endossaram muitas formas dediscriminação. Elas tornaram muito mais difí-cil para os negros superarem as diferenças.

O Brasil nunca teve leis que discriminassemcontra os negros. Aliás, a ideologia oficial é depromover a integração e muitas leis tornarama discriminação uma ofensa grave. Em con-

Debret/Reprodução

Quase nada foifeito para apoiaros escravosrecém-libertos. Emenos ainda foioferecido emtermos deeducação.

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traste, a educação brasileira tem sido, atravésda história, muito fraca, se é que existia. E, cla-ramente, pouco beneficiou os pobres e os quemoram longe das capitais.

Já que os negros nasciam muito pobres,eles tinham pouco acesso à educação. A faltade escolas e, pior, a falta de boas escolas dãoespaço a uma pergunta muito séria, do pontode vista das políticas de superação das desi-gualdades raciais: As chances de sucesso es-colar para um negro pobre são piores dos queas de um branco pobre?

Muitos pesquisadores têm tratado essaquestão no passado recente. Há tentativas ho-nestas de clarear o assunto, no meio de tiroteiosemocionais de alguns grupos militantes.

Nos melhores estudos, os pesquisadores in-troduziram controles estatísticos, isolando osefeitos da educação dos pais, das condiçõeseconômicas e da geografia. Os resultados sãobem sugestivos. Do ponto de vista da fração davariância explicada pelas equações de regres-são, ser pobre é bem mais prejudicial do queser negro. Em outras palavras, os filhos debrancos pobres estão em situação quase tãoruim quanto a dos filhos de um negro pobre.Ou seja, o grande problema é ser pobre, poucopiora a situação ser também negro. Esses re-sultados não merecem bastante confiança.

A questão em aberto é o tamanho desse "qua-se". As pesquisas mostram que ainda há uma di-ferença. Até que ponto isso é resultado de outrasvariáveis sócio-econômicas que não foram in-cluídas na análise? Até onde é resultado da dis-criminação? Até onde é "autodiscriminação" oubaixa auto-estima? Essas questões continuamcontroversas em sem boas respostas.

Ocorreu uma mudança significativa nosnúmeros. O aumento das matrículas nas últi-mas décadas trouxe uma melhoria significati-va na situação dos negros. Desde que o ensinofundamental se universalizou, a distânciaeducacional entre negros e brancos pratica-mente desapareceu nesse nível. De fato, hápouca diferença na taxa de matrículas de ne-gros e brancos no segmento dos 7-14 anos, 93%e 96%, respectivamente. Esse é um avanço sig-nificativo, considerando que a diferença erade 13 pontos porcentuais, ainda em 1992. Maso processo de reduzir a desigualdade está sóno começo, já que a diferença racial nos níveissuperiores continua alta.

G. Onde estão os índios?Há duas formas diferentes de identificar os

índios brasileiros. Existem índios morandoem tribos, a maioria em áreas remotas. E há os

brasileiros com sangue indígena. A diferençanos números é enorme.

A quantidade de índios ainda em vida tribalou com contatos próximos à sua nação de ori-gem tem sido estimada entre 200 mil e 400 mil.Comparados com a população brasileira de180 milhões, os índios assim definidos corres-pondem a uma proporção muito pequena. Pa-ra comparação, registre-se que no Chile quase10% da população é indígena.

Mas há os outros "índios". No século 17, o ter-ritório atualmente correspondente ao Estadode Pernambuco foi entregue a um homem cha-mado Cavalcanti de Albuquerque que, logo emseguida, se casou com a filha do cacique local.Assim, os seus descendentes são parte portu-gueses e parte índios. Essa mistura de índios eportugueses já tinha começado antes, com Ca-ramuru e continuou pelos séculos afora.

Uma afirmativa segura é que quase todos osnordestinos têm uma proporção significativade sangue indígena. O biótipo facilmente con-firma essa hipótese. Assim sendo, qualqueração afirmativa para beneficiar os índios, de-finidos como pessoas com algum sangue indí-gena, pode deixar de fora bem poucos dos 50milhões de habitantes do Nordeste brasileiro.Pelo critério de sangue, quase toda a elite da re-gião seria beneficiada por qualquer ajuda quese oferecesse aos 'índios'. Para aumentar o qüi-proquo racial, muitos índios vivendo em re-servas protegidos pela lei têm olhos azuis.

Portanto, qualquer política para os 'índios'se torna absurda e caricata, a não ser que seaplicasse apenas aos grupos que mantêm aidentidade cultural e a vida tribal. A questão écomplicada e desafia respostas simples. Algu-mas tribos não conseguiram manter suas lín-guas originais e costumes. Outras se mantêmviolentas e além do alcance da civilização. En-tre elas, há todas as possibilidades.

Um número significante de tribos está nafronteira de regiões que apenas com muito boavontade podemos chamar de "civilizadas". Estáem regiões conturbadas e, de certa forma, alémdo alcance efetivo da lei. Há muitas disputaspor terra e os brancos são uma mistura de ban-didos, aventureiros e colonos. Com certeza, osíndios não estão ganhando essas disputas.

Durante muito tempo, o tamanho das tri-bos estava diminuindo. Prostituição e alco-olismo eram talvez os piores problemas. Nosúltimos anos, a população tribal se estabili-zou e agora está crescendo novamente. Isso éconsiderado uma grande conquista das po-líticas indianistas.

Apesar de ser sempre bastante criticada, a

Qualquer políticapara os 'índios' se tornaabsurda e caricata, anão ser que se aplicasseapenas aos grupos quemantêm a identidadecultural e vida tribal. Aquestão é complicada edesafia respostassimples.

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FUNAI, dedica todos os seus esforços para aju-dar as tribos remanescentes. Pelo que podemosjuntar de testemunhos dispersos, a FUNAI ofe-rece aos índios uma educação decente. Em anosmais recentes, as escolas começam com a línguanativa e, progressivamente, passam para o por-tuguês. É razoável supor que as escolas indíge-nas assistidas pela FUNAI têm melhor ensinodo que recebem as crianças não-índias que vãoas escolas públicas adjacentes.

Para resumir, do ponto de vista quantitati-vo, os índios constituem uma fração muito pe-quena da população brasileira. Parece segurodizer que, em muitas reservas, estão sendo su-ficientemente bem cuidados e suas escolas sãobastante razoáveis.

É claro, isso não quer dizer que a questãoindígena esteja resolvida. Os que estão pertoda civilização continuam muito pobres e, atécerto ponto, discriminados pelos pobresbrancos ou nem tão brancos. Pior, pela sualocalização remota, tanto os índios pobresquanto os não-índios estão fora do alcancedos programas sociais que hoje beneficiamquase todos os brasileiros.

III. ATUAIS POLÍTICAS DE COMBATE ÀDESIGUALDADE

A. Educação básica para todosSem dúvidas, a arma mais potente contra a

desigualdade é um sistema de educação básicaeficiente e universal. Isso, como todos nós sa-bemos, é o que está levando demasiado tempopara o País conseguir. Aliás, no passado recen-te, o Brasil ficou para trás até dos países maispobres da região, como o Paraguai e a Bolívia.Quando tomamos hoje aquelas estatísticasque incluem a população total, como a escola-ridade média, as taxas de analfabetismo e opercentual da população com esse ou aquelenível de educação, estaremos medindo a edu-cação do passado. Consequentemente, aindamostram o Brasil em uma posição atrás dessesdois países. Isto porque, elas refletem a escola-ridade que não tiveram todas as coortes emque ainda há sobreviventes. Octogenáriasanalfabetas de origem rural estão puxando pa-ra baixo as médias nacionais — que hoje in-cluem novas coortes, onde praticamente nãohá mais analfabetos.

Reprodução

Quase todos osnordestinos têmuma proporçãosignificativa desangue indígena.Na imagem, ospadres José deAnchieta e Manoelda Nóbregacatequisando osíndios tamoios.

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É mérito da atual geração que essa situa-ção tenha se revertido nas últimas duas dé-cadas. Em todas as estatísticas (de fluxos, is-to é, do que está acontecendo com a faixa etá-ria em idade escolar), o Brasil está se aproxi-mando da Argentina, Chile e Uruguai, ospaíses mais avançados em questões educa-cionais da região. Como já foi dito, na viradado milênio, cerca de 97% da faixa de 7-15anos estava na escola.

Foi uma grande conquista. Significa que, emtermos quantitativos, pobres e ricos, negros ebrancos ainda estão na escola quando comple-tam 15 anos. Não há caminho melhor para re-duzir a desigualdade. Foram precisos muitosséculos para se conseguir isso e não se pode me-nosprezar essa grande conquista.

Naturalmente, ainda há muito para se fazer.A qualidade do ensino é péssima e as escolasque recebem os pobres e as que estão em áreasremotas são muito piores do que as outras. Háum longo caminho a percorrer, a fim de reduziras diferenças no desempenho escolar entre osdiferentes grupos da sociedade.

Não é só isso. Nos níveis médio e superior,persistem as diferenças de participação entreas classes sociais. Atualmente, somente 57%da faixa etária correspondente concluem os oi-to anos do ensino básico. Inevitavelmente, aevasão ocorre principalmente nas famíliasmais pobres. Como pode ser facilmente pre-visto, uma fatia significativamente menor dosmais pobres termina o nível médio.

No ensino superior, as desistências conti-nuam a reduzir o tamanho da matrícula. Nosanos iniciais a matrícula bruta chega a 20% e,nos finais, a 10%.

Ademais, o sistema é tão ruim que quandoos alunos chegam às faculdades eles já sãoadultos, bem além da idade prevista. Mas oreverso da medalha é que o sistema agorapermite à geração anterior ter uma segundachance para entrar no ensino superior. De-pendendo da ideologia, uma ou outra expli-cação será escolhida.

Ainda que nada espetaculares, esses nú-meros são imensamente melhores do que osde uma década atrás. O caminho para redu-zir as desigualdades no ensino superior é omesmo observado na educação primária: es-colaridade para todos. Como mencionado, opróximo passo é melhorar a qualidade, deresto, um tarefa muito difícil. Para resumir,nenhuma outra política educacional alter-nativa pode substituir esse esforço global demelhorar a abrangência e a qualidade da es-cola acadêmica.

B. FUNDEF, um fundo para reduzir adesigualdade nos gastos em educação

O Fundo de Manutenção e Desenvolvimen-to do Ensino Fundamental e de Valorização doMagistério (FUNDEF) foi um dos mais pode-rosos instrumentos para reduzir as desigual-dades geográficas dos gastos educacionais. Defato, realmente beneficiou os Estados e muni-cípios mais pobres.

Em termos simples, o FUNDEF criou duasregras. (1) As cidades que investem em educa-ção o porcentual do orçamento definido naConstituição, mas que não alcançam um deter-minado nível de gastos per capita, ganham odireito de receber do fundo o necessário paracobrir a diferença. (2) Os municípios que nãoinvestem a fatia legal devem pagar ao fundo adiferença entre o que foi gasto e o que deveriahaver sido gasto.

Cerca de 2 mil localidades, responsáveis por66% das matrículas municipais, são beneficia-das com as transferências. No Nordeste pobre,os gastos cresceram 89% e os salários dos pro-fessores, 49%. No total, o FUNDEF criou 153mil novos empregos, a maioria para professo-res. Num país com uma forte tradição de gas-tos públicos fracassados, o FUNDEF é uma ex-ceção brilhante.

O FUNDEF está restrito ao ensino básico. Oatual governo pretende substitui-lo pelo FUN-DEB, um projeto equivalente, mas engloban-do também a pré-escola e o nível médio. Apósa aprovação final do projeto, estão pendentesas regras para dividir as verbas entre os níveis.Trata-se de uma partilha politicamente delica-da e conflitante. Erros nas regras de distribui-ção podem ter conseqüências funestas paraum ou outro nível de ensino.

C. Bolsa Escola — bolsas parapermanecer na escolaO Brasil é um dos primeiros países, se não

for o primeiro, a experimentar o repasse deverbas para famílias, condicionado a que elasmantenham as crianças na escola. O Bolsa Fa-mília consiste em entregar dinheiro a famíliaspobres enquanto elas mantiverem as suascrianças matriculadas na escola, com freqüên-cia regular e notas aceitáveis. Em alguns casos,o programa inclui a criação de uma cadernetade poupança para a família, que só poderá serresgatada se a criança completar o ciclo escolarc o r re s p o n d e n t e .

Esse programa começou em Brasília e se espa-lhou pelo País. Nos anos 90, uma versão federalfoi lançada. Na virada do milênio, cerca de 8 mi-lhões de estudantes estavam inscritos nele. O la-

O FUNDEF estárestrito ao ensinobásico. O atualgoverno pretendesubstitui-lo peloFUNDEB, um projetoequivalente,mas englobandotambém apré-escola e onível médio.

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do negativo dessa expansão é que a fiscalizaçãodos condicionantes para receber as bolsas se tor-na muito mais problemática. Além disso, muitospaíses latino-americanos, incluindo a Argenti-na, adotaram projetos parecidos. O Banco Mun-dial e o BID têm mostrado grande interesse emreplicar o programa em outros países.

Há duas formas de ver esses programas.Mas, antes de tudo, precisamos considerarque são caros. O custo por estudante pode sertão alto quanto o custo por aluno na escola pú-blica. Nesse sentido, eles dobram o custo de semanter um estudante na escola. Esse foi o casodas primeiras versões em Brasília, as únicasque chegaram a ser avaliadas com um mínimode rigor. Bolsas mais baratas foram adotadasem outras situações.

Se uma secretaria de educação tem verbas epode gastá-las como quiser, é muito provávelque o Bolsa Escola não seja a melhor forma deusar esses recursos. As escolas públicas ope-ram com níveis ínfimos de gastos. Freqüente-mente, faltam materiais e equipamentos indis-pensáveis — até giz falta. A enorme verba ne-cessária para criar programas de algum im-pacto por via do Bolsa Escola, se usada parareforçar o que se gasta na escola, traria uma re-volução no aspecto físico, no conforto e no apa-relhamento das salas de aula.

Para que pudesse ser justificado, quandocomparado a outras formas de alocação de re-cursos, seria necessário demonstrar que o pro-grama causa uma enorme redução na evasãoescolar. Infelizmente, a demonstração estatís-tica dessa queda está longe de ser convincente.Para começar, não sabemos quantos dos alu-nos que recebem a bolsa sairiam da escola se aajuda não existisse. O melhor que poderíamosdizer é que, em alguns casos, deve haver algu-ma associação entre estar na escola e receber oauxílio. Mas os números não permitem tal oti-mismo. Consideremos apenas que, na faixados 8-13 anos, perto de 100% das crianças vão àescola, independentemente de haver ou nãoBolsa Escola. Ou seja, não há o que reduzir naevasão, já que é muito pequena. No nível mé-dio poderia haver um impacto maior. Mas estápara ser demonstrado.

Entretanto, há outras formas de ver o progra-ma que o tornam bem mais atraente. Num paíspobre e desigual como o Brasil, o governo estásempre procurando os melhores meios de aju-dar diretamente as famílias. Um programa detransferência de renda para alunos de escolaspúblicas é uma forma muito eficiente para de-finir e controlar quem se beneficia dele. Em ou-tras palavras, o governo poderia simplesmente

Uma segundachance para osestudantes pobresA combinação da degradação das escolas públicas com o

preconceito contra os testes seletivos e o dogma da integração dassalas de aula criou uma situação injusta para os pobres mais brilhantes.As escolas públicas não lhes oferecem uma chance para crescer — porserem muito fracas. Há resistência para permitir o uso dos testes que osidentifiquem — para que lhes seja oferecido algo mais. E há umacrença de que, não importa o quanto eles sejam talentosos ou as escolasmedíocres, esses estudantes têm de permanecer onde estão.

Mas algumas instituições do Terceiro Setor estão reagindo. Nasúltimas décadas, muitas iniciativas foram registradas e, nos últimosanos, bem mais tem sido feito. Veja alguns exemplos:

1. Fundação José Carvalho: educação de elitepara pobres do sertão baianoO engenheiro e empresário José Carvalho criou uma próspera fundição

de não-ferrosos na Bahia, a Ferbasa. Começou do nada e depois de ficarmuito rico, concluiu que tudo o que tinha era graças à excelente educaçãoque recebeu ao longo de sua vida. Sendo assim, ele quis pagar sua dívidamoral. Como costuma dizer, "morrer rico é falta de imaginação". Em 1975,montou uma fundação com 94% das ações que tinha da Ferbasa. Comessa doação, foi erguido um campus rural. Dentro dele foi criada umaescola técnica extraordinária, com foco em mineração e línguas.

Seus caça-talentos cruzavam o interior da Bahia, visitando escolaspúblicas e buscando os alunos pobres mais talentosos. Com essemétodo, conseguiu reunir um grupo de estudantes que eram, ao mesmotempo, muito pobres e muito brilhantes. Sendo um pioneiro, nem tudofuncionou como se previa. Mas por tudo que se sabe, ele provou quemuito pode ser feito em benefício de crianças talentosas que foramresgatadas da mediocridade de suas casas e de seu ambiente escolar.

A Fundação ainda existe, mas mudou consideravelmente suaslinhas de atividade. Ela hoje administra 12 escolas, atendendo a cercade 12 mil estudantes na Bahia, Pernambuco e Sergipe. José Carvalhocontinua um marco nos esforços para dar uma chance melhor aosestudantes pobres com talentos superiores.

2. Bom Aluno: de pneus recauchutados à ajuda parapobres talentososFrancisco Simeão é o proprietário de uma grande rede de reforma

de pneus no Brasil, a BS Colway. Junto com Luis Bonacin, criou em1993 um programa muito interessante e bem sucedido paraselecionar estudantes das escolas públicas e lhes dar bolsas deestudo para freqüentarem boas instituições privadas.Aproximadamente mil estudantes participam do programa,espalhados por sete cidades brasileiras.

O programa Bom Aluno seleciona estudantes da quinta série,apenas dentre os alunos pobres. Eles são escolhidos segundo a suaaptidão escolar, o apoio familiar e a sua forte disposição para o sucesso.

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usar a escola para criar mecanismos de transfe-rência de renda para os pais de crianças pobres.Tal forma de montar programas de transferên-cia tem certas vantagens, quando comparada aoutras opções. E se, além de ter uma base con-fiável para as transferências, o programa pudercriar incentivos para que as crianças permane-çam na escola, essa é uma grande vantagem.

Em outras palavras, como programa cujoobjetivo principal é melhorar as escolas e a suafreqüência, os argumentos a favor da Bolsa Es-cola são muito frágeis. Porém, torna-se umprograma atraente se for concebido como ummecanismo de transferência de renda que,além dos seus benefícios intrínsecos, ajuda areduzir a evasão escolar. Tal argumento se sus-tenta desde que os recursos não sejam tiradosdos orçamentos da educação.

D. Pescando os talentosos pobresQuando o ensino público atendia apenas a

uma pequena fatia da população, havia mui-tas escolas excelentes. Afinal de contas, comoeram poucas, o País podia facilmente arcarcom seus altos custos. Além disso, seus alunoseram, em sua grande maioria, das classes mé-dia e alta. Contudo, também iam a essas esco-las um pequeno número de crianças talento-sas, vindas de famílias mais pobres.

A grande expansão na educação pública foialcançada ao custo da erosão da qualidade edo prestígio dessas escolas públicas de primei-ra linha. Educação para todos passou a signi-ficar educação pública medíocre para todos. Olado bom é que as chances de uma criança po-bre freqüentar uma escola se multiplicaram. Olado ruim é que as opções dessas mesmascrianças de freqüentar uma escola de boa qua-lidade diminuíram espantosamente, pois pra-ticamente não há mais públicas de qualidade.A educação de qualidade passou a ficar muitoconcentrada nas escolas privadas. Como nãotêm praticamente nenhum subsídio público (anão ser modestas isenções fiscais) as escolasprivadas são forçadas a cobrar de todos os alu-nos. Pouquíssimas bolsas de estudo são ofere-cidas para os pobres no setor privado.

Programas para remediar essa situação fica-ram em um limbo durante décadas. Curiosa-mente, a esquerda parece ser parcialmente res-ponsável por essa situação. Os sindicatos deprofessores e os gurus educacionais, a partir dadécada de 80, foram contra os testes de desem-penho educativo. Acontece que eles são um ins-trumento quase indispensável para selecionaros alunos mais talentosos das escolas públicas.

Solidamente instalada nas administrações

Durante três anos, participam de um programa fora da escola parareforçar suas habilidades acadêmicas, o domínio do currículo oficial, aleitura e escrita, além das competências pessoais. Os que nãoconseguem manter os padrões academicamente altos exigidos sãoconvidados a deixar o programa.

Aos estudantes que completam o programa são oferecidas bolsas deestudo integrais em escolas privadas, para que continuem a suaeducação. O programa, Instituto Bom Aluno do Brasil, mostra umrespeitável histórico. De fato, ele exibe um desempenhoimpressionante: 100% dos que concluem o programa têm sido aceitosem universidades públicas e privadas.

4. ISMART: da cervejaria ao patrocínio da excelênciaMarcel Telles é um empresário de sucesso no ramo bancário e

cervejeiro. Após a fusão com um grupo belga, a nova empresa, a InBev,tornou-se a maior fabricante de cervejas do mundo. Há cerca de cincoanos, ele criou a ISMART, uma instituição do Terceiro Setor com umobjetivo muito claro: identificar os alunos mais brilhantes das escolaspúblicas e matriculá-los em um programa próprio de reforço escolar. Aidéia era aumentar as chances de eles passarem no vestibular dasmelhores universidades brasileiras.

Depois de funcionar por uns poucos anos no Rio de Janeiro, umprograma alternativo foi criado em São Paulo. Em vez de administrarseu próprio centro, o que se revelou uma operação muito cara, oISMART assinou convênios com as melhores escolas privadas dacidade, pagando as mensalidades dos alunos selecionados. Mas antesde os alunos terem condições de participarem das aulas regularesdessas escolas, recebem aulas especiais durante um ano, para quepossam dominar os conteúdos dos currículos. Isso é feito como umajoint-venture entre escolas privadas e o ISMART, que paga a conta.

No total, perto de mil estudantes participam de alguma das muitasmodalidades do programa. As operações iniciais selecionavam osestudantes quando estavam na quarta série. Mas se descobriu que mantê-los por sete anos é caro demais e havia muitas perdas. A preferência atualé selecioná-los um ano antes de entrarem no nível médio.

Ainda é muito cedo para avaliar os resultados, já que poucosparticipantes terminaram o ensino médio. Porém, segundo impressõesiniciais, os resultados são promissores. Recentemente, o ISMARTassinou um acordo para ter seus alunos avaliados por um testerespeitado, permitindo uma análise comparativa. Os e s c o re s obtidospelos participantes do ISMART são extraordinários e permitemantecipar um bom desempenho no vestibular.

Há um acordo informal com o Educar, uma instituição irmã, peloqual os alunos capazes de entrar em cursos universitários de primeiralinha, se necessário, irão receber bolsas de estudo. Mas aimplementação desse esquema só virá mais adiante, quando os alunosdo programa terminarem o seu curso médio.

É muito instrutivo observar que, tanto no Rio quanto em São Paulo, nasprincipais bases de operação dos programas do ISMART têm havidomuitas dificuldades no processo de seleção dos alunos. Em ambas ascidades, as Secretarias de Educação não querem desagradar os seusquadros administrativos, que são contra testes e contra programas dessetipo. Daí as inúmeras dificuldades para permitir que o ISMART aplicassetestes nos estudantes das redes públicas. As permissões foramconseguidas depois de muita pressão. Houve um momento no qualparecia que toda a operação estava ameaçada, pela recusa de permitir aaplicação dos testes que selecionaria os melhores alunos.

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educacionais, a esquerda tem se manifestado ve-ementemente contra a idéia de selecionar os po-bres talentosos e transferi-los para escolas me-lhores. A ideologia predominante é a de "inte-gração", ou seja, talentosos e medíocres devemficar na mesma sala de aula. Na prática, isso sig-nifica manter os alunos talentosos em ambientesescolares medíocres, sem quaisquer estímulospara que se desabroche o seu potencial.

Nos últimos anos, a situação começou a mu-dar, graças mais à filantropia privada do quepor ações governamentais. O Terceiro Setorempresarial criou programas para selecionaros alunos mais talentosos e levá-los para ins-tituições privadas de primeira grandeza.(Mais informações no boxe)

Ainda é cedo para se ter um julgamento de-finitivo sobre esses programas, mas os resulta-dos iniciais parecem encorajadores. Talvez, nolongo prazo, a melhor conseqüência indiretasejam as reflexões e os debates que surgemcom essas iniciativas. No caso, a idéia de sele-cionar os mais talentosos e transferi-los parainstituições de excelência está se tornando

5. Rede Pitágoras se associa ao ISMARTO Sistema Pitágoras é a terceira ou quarta maior instituição de

educação privada no Brasil. Depois de abrir quase 20 escolas de nívelbásico, criou a Rede Pitágoras, hoje com quase 600 escolas associadas.Como nas outras redes desse tipo, o Pitágoras prepara todos os textosusados no programa, prepara os professores nos conteúdos e nasmelhores formas de usar os livros, oferece cursos e workshops e,recentemente, passou a avaliar o desempenho acadêmico dosestudantes. Como seus concorrentes, trata-se de um sistema que seaproxima a uma franquia.

Há menos de dois anos, o Pitágoras se uniu ao ISMART para criar umprograma de apoio a estudantes talentosos de escolas públicas. OISMART fornece o método e os instrumentos para pesquisar escolaspúblicas em busca dos alunos mais brilhantes. O Pitágoras ajuda nacoordenação do programa e oferece os livros gratuitamente. As escolas darede são convidadas a doar bolsas de estudos aos estudantes escolhidos.

O esquema já tem quase 200 alunos. Em um país compouquíssimas chances para alunos talentosos de escolas públicas,esse é um bom começo.

6. Escola Embraer-PitágorasA Embraer é um das maiores fabricantes de aviões de passageiros do

mundo. Instada pelos seus financiadores para criar programas sérios deresponsabilidade social, seus dirigentes decidiram criar uma escola de

Divulgação

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ensino médio que fosse um modelo para o país.Mas também, que atendesse exclusivamenteaos alunos que completam o ensino básico emescolas públicas. Para realizar o projeto,terceirizou a operação da escola à redePitágoras, que já tinha experiência emadministrar escolas em nome de grandesempresas brasileiras. A Embraer queria versuas tradições gerenciais plasmadas no DNAda escola, acreditando que uma boaadministração é vital tanto nas empresas de altatecnologia quanto nas escolas.

Foi assim criado o Colégio EngenheiroJuarez Wanderley, oferecendo tudo que umaescola deve ter, de computadores alaboratórios e excelentes professores. Estáabrigado em um prédio construído na áreaindustrial da Embraer. O turno na escola élongo, 9 horas por dia. Os estudantes têm de

Alunos do ColégioEng. JuarezWanderley: osdirigentes daEmbraer decidiramcriar uma escola deensino médio quefosse modelo parao País. O exame deadmissão é difícil eos alunos devem virde escolas públicase morar em SãoJosé dos Campos oucidades vizinhas.

ler muito e os registros da biblioteca mostramuma média mensal de cinco livros tomadosemprestados por aluno.

Além do currículo oficial, os estudantes seengajam em muitas outras atividades. Otrabalho voluntário passou a mobilizar a veiacriativa de muitos alunos. Cinco alunas daescola Embraer apresentaram, em inglês, o seuprojeto de trabalho voluntário no banquetefinal da convenção do Tech Prep, em Orlando.

Essa é uma escola criada para promover ajustiça social. Assim sendo, logo se concluiuque seus alunos deveriam vir da redepública. Sem essa condição, o colégio ficarialotado de estudantes das classes mais altas,vindo das melhores escolas privadas do país.Os alunos também têm de ser de São José dosCampos, onde a fábrica está localizada, oudos municípios vizinhos.

Não era intenção da Embraer criar umaescola apenas para os alunos mais talentosos.Porém, sendo uma das melhores escolas doensino médio a que uma criança de escolapública possa aspirar, ela termina com osmelhores estudantes. O exame de admissão émuito difícil e seleciona os mais aptos (27candidatos competem por cada vaga). Assimsendo, apesar da intenção de apenas oferecerum bom ensino para os alunos da rede pública,terminou sendo um centro de excelência, comalunos particularmente talentosos.

Não é fácil quantificar os resultadosglobais desse esforço. Entretanto, seobservarmos alguns números ouconversarmos com os alunos, há boas razõespara acreditar que a Embraer está tendosucesso em transpor sua filosofia empresarialpara a escola. Em particular, a escola estádentre as 15 melhores do Brasil no teste doENEM e 94% dos graduados da segundaturma conseguiram entrar em cursossuperiores de difícil acesso.

Serão todas essas iniciativas apenasminúsculas ilhas de excelência, indo contraas tradições educacionais brasileiras? Ouestão forjando novos rumos, quebrandotabus, abrindo as portas para iniciativasparecidas? As políticas públicas serãoafetadas por essas idéias heréticas?

Parece ser cedo demais para dar respostasdefinitivas. Mas há alguns sinais sutis de que sequebrou o tabu de não ser aceitável oferecerchances melhores aos mais talentosos. AlgunsEstados estão tentando recuperar suascelebradas escolas médias do passado. E algunsmunicípios começaram a se preocupar com osseus alunos mais talentosos.

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mais aceitável para a sociedade.Não apenas isso, mas também alguns Esta-

dos estão desenterrando a velha idéia de terpelo menos uma escola pública de alta quali-dade, com o inevitável 'vestibulinho' para se-lecionar os melhores candidatos. Pelo menos,Sergipe e Pernambuco vão nessa direção.

Toda essa discussão se refere ao destino deuns poucos milhares de estudantes, em umapopulação estudantil de mais de 40 milhões.Portanto tal questão não é a mais central quan-do discutimos o problema da equidade. Aindaassim, não podemos descartá-la. Para come-çar, os jovens realmente talentosos são poucos.Tendo em vista a falta de boa educação pré-es-colar e básica, na época em que a seleção ocor-re, muitas mentes talentosas já terão saído dosistema. Considerando o número de alunos ta-lentosos de origem pobre, as vagas em tais pro-gramas não precisam ser muitas.

Há outro aspecto da questão. O fato de essesprogramas existirem tem um valor simbólicoconsiderável. Significa que se um aluno mos-tra excepcional desempenho em uma escolapública, terá uma grande chance de freqüentaras melhores escolas do País. Isso é um incen-tivo considerável.

E. Programas para facilitar o acessoà educação superiorTanto quanto sabemos, o porcentual de jo-

vens pobres que chegam à educação superiorparece haver crescido pouco, nas últimas dé-cadas. Infelizmente, os dados existentes sãopouco adequados para tais comparações. Gra-ças ao rápido aumento na escolaridade da po-pulação, em 20 anos, a escolaridade média dospais dos estudantes universitários cresceu emmuitos anos. Portanto, não há como comparar.Se hoje todos os pais têm mais escolaridade,não se pode concluir que a educação superiorestá ficando ainda mais elitista.

O status da ocupação exercida é um indica-dor mais estável e que poderia esclarecer bas-tante a composição social das matrículas. Po-rém, raramente ele é definido da mesma formanas estatísticas, tornando impossível compa-rar. Como indicador de pobreza, a renda fami-liar é um grande pesadelo, por causa de subes-timações desconhecidas nas respostas às pes-quisas, além das dificuldades estatísticas paraeliminar o efeito da inflação através dos anos.

Apesar das limitações dos dados disponí-veis, os números parecem indicar que a pre-sença dos pobres no ensino superior se estag-nou. Isso ocorreu, em que pese o grande cres-cimento do ensino superior, que matriculou

107 mil pessoas em 1962 e atingiu aproximada-mente 4,5 milhões de alunos em 2005.

A impressão que se tem é que não houvemuitas mudanças na composição dos alunos.O aumento das matrículas veio, inicialmente,da presença maior das mulheres (que hoje sãoconsideravelmente mais numerosas que oshomens). Progressivamente, houve a entradade alunos vindo de famílias apenas um poucomais pobres do que aquelas que antes já man-davam seus filhos para as universidades.Usando termos pouco rigorosos, parece que ogrande crescimento vem do segmento maispobre da classe média.

De fato, dado o crescimento acelerado noensino médio, a matrícula no ensino superiorse aproxima da metade da faixa etária que ter-mina o ensino médio. Isso é uma fatia da po-pulação bem maior do que o terço ou quartodos brasileiros considerados de "classe mé-dia". Assim sendo, estão tendo cada vez maisacesso à educação superior os mais pobres daclasse média. Contudo, a presença da classeoperária é ainda muito limitada.

A razão pela qual esse porcentual de filhos deoperários não parece crescer mais rápido é bas-tante clara. As universidades públicas não co-bram mensalidade, ainda que tenham custosmais ou menos equivalentes aos dos países daOCDE (ou seja, muito elevados para um país derenda média como o Brasil). Como os jovensbem preparados das classes mais altas da socie-dade lutam ferozmente para garantir uma vaganelas, sobram poucas para os mais pobres.

Já a educação privada está totalmente ocupa-da por estudantes que pagam para freqüentá-la.Portanto, nelas os pobres têm poucas opções.

Portanto, sobram-lhes duas alternativas. Po-dem competir pelo número relativamente pe-queno de vagas em carreiras menos procuradasnas universidades públicas. Ou, podem fazerum grande esforço para pagar as mensalidadesdas instituições privadas menos caras.

Carreiras de prestígio em universidadespúblicas são duplamente mais difíceis para ospobres, mesmo que não tenham de pagar men-salidade. Primeiro, como freqüentaram esco-las públicas de qualidade duvidosa, não têmcondições de se sair bem nos vestibulares daspúblicas, que podem ter até 30 candidatos porvaga. Segundo, eles têm de trabalhar, o que éincompatível com os cursos que exigem a de-dicação em tempo integral (como Medicina).

Instituições privadas de ensino superiorsão a alternativa para a grande maioria dosque atingem o nível de renda familiar permi-tindo pagar as mensalidades. Tais cursos são

Estão tendocada vez maisacesso à educaçãosuperior os maispobres da classemédia. Contudo, apresença da classeoperária é aindamuito limitada.

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109JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

predominantemente noturnos, já que para pa-gar as mensalidades esses alunos precisamtrabalhar em tempo integral.

Apesar do grande crescimento nas matrícu-las, parece razoável dizer que um númeromuito significativo de candidatos potenciaisao ensino superior são barrados, por não te-rem condições de pagar uma mensalidade de300 a 800 reais.

Essa discussão mostra o enorme espaço queteriam programas que facilitassem o acesso deestudantes mais pobres ao ensino superior. Es-sa é uma questão que se tornou mais visívelnos últimos cinco anos.

1. Programas de crédito educativoFaz algumas décadas que o MEC opera um

programa de crédito educativo para estudan-tes (FIES). Esse programa vinha acumulandoinadimplências nos pagamentos e operavasob uma burocracia espessa. Mas parece havermelhorado bastante nos últimos anos. Omaior problema é que o seu porte permaneceuestagnado por muito tempo, alcançando nãomais do que 15% das matrículas no superior.

Muitas instituições privadas têm seus pró-

prios programas de créditos educativo. E ban-cos estão entrando também no setor. Mas as ta-xas de juros são muito altas e a sua cobertura éainda bem modesta.

Também existem, há muito tempo, institui-ções sem fins lucrativos que oferecem créditoeducativo para nível superior. Um caso quechama atenção é a APLUB, do Rio Grande doSul, criada para conceder créditos educativos acustos razoáveis. Mas seu porte é ainda bas-tante limitado.

2. PROUNI — bolsas de estudo emtroca de isenção fiscalO PROUNI é um programa que concede

isenção fiscal para faculdades privadas, emtroca de bolsas de estudos para alunos pobres.Foi uma decisão inesperada, por parte de umgoverno que se diz de esquerda, criar um pro-grama para financiar a educação privada.Muitos segmentos da esquerda não gostaram,mas optaram por não protestar com veemên-cia. Os donos das faculdades privadas gosta-ram, mas negociaram por muito tempo os de-talhes de implementação. Finalmente, o pro-grama está a todo vapor e o primeiro grupo de

Wilton Junior/AE

O teste do ENEM éum importanteinstrumento do

Ministério daEducação para

garantir aqualidade dos

alunos do PROUNI,pois trata-se de um

exametecnicamente muito

competente.

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110 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

pobres seria melhorar a qualidade da educaçãobásica. Seja o que for que o País ofereça como fa-cilidade de acesso ao ensino superior, não serámais do que um paliativo, incapaz de reduzirsignificativamente a injustiça do sistema.

A próxima questão pendente tem a ver como princípio que privilegia a excelência e a me-ritocracia. Todo sistema de ensino superior sé-rio tem esses dois princípios entre seus pilares.Um sistema de cotas que milita contra eles éuma derrota para os objetivos clássicos de umauniversidade.

Assim sendo, há uma pergunta essencialem qualquer mecanismo desse tipo. Os bene-ficiários das cotas serão escolhidos de uma for-ma que preserve a meritocracia e evite umaqueda da qualidade? Aqui, o que importa nãosão os princípios, mas os mecanismos de im-plementação. Ou seja, as fórmulas para sele-cionar os estudantes que entrarão nas cotasvão garantir que haja, ao mesmo tempo, justi-ça, meritocracia e excelência?

O Ministério da Educação propôs um meca-nismo simples: reservar 50% das vagas paraalunos das escolas públicas. Diante da comoçãoque as cotas provocaram no meio universitário,foi feita uma estimativa de uma provável dete-rioração nos padrões acadêmicos. Definindoalguns cenários plausíveis, a Universidade deSão Paulo estimou que a qualidade de seus cur-sos de Medicina e de Direito poderia cair bas-tante. Há argumentos na direção oposta, o pro-blema é que não são acompanhados de estima-tivas confiáveis. A confusão piorou, graças àfalta de clareza quanto à aplicação das cotas. Se-rão alocadas para cada curso da universidadeou para as matrículas como um todo? As res-postas permanecem obscuras.

Em paralelo a essa discussão acalorada, aUniversidade de Campinas e, depois, a Univer-sidade de São Paulo, adotaram uma aborda-gem mais atraente. Por esse esquema, os alunosda rede pública recebem um bônus de 30 pon-tos no vestibular. Esse prêmio pode ajudar jus-tamente àqueles estudantes que ficaram ligei-ramente abaixo do ponto de corte, que determi-na quem entra ou não no curso considerado.Uma pesquisa anterior revelou que os estudan-tes mais pobres, que no vestibular tenham tidouma pontuação semelhante às dos outros, têmum desempenho tão bom quanto ao de alunosde classe mais alta. Afinal, tais alunos são ex-cepcionais, no sentido de que superaram seubaixo status sócio-econômico. Assim sendo, háboas razões para crer que as cotas da Unicampnão causam queda na qualidade do alunado.

Ainda mais interessante é o programa ado-

estudantes chega a quase 150 mil.Os críticos do programa (de direita e de es-

querda) reclamam que ele irá baixar a qualida-de dos alunos. Evidência totalmente satisfató-ria ainda não está disponível. Porém, os núme-ros recolhidos por algumas faculdades suge-rem que os alunos beneficiados pelo PROUNIsão tão bem preparados quantos os demais e, aolongo do curso, vêm mostrando um desempe-nho semelhante. Mas faltam dados para umaanálise mais confiável. O teste do ENEM é umimportante instrumento do Ministério da Edu-cação para garantir a qualidade dos alunos doPROUNI, pois trata-se de um exame tecnica-mente muito competente, aplicado ao final doensino médio. O que talvez possa preocupar éuma deserção maior, ao longo do curso, resul-tante da incapacidade dos alunos de arcar comos custos adicionais de cursar uma faculdade.

No geral, o programa é um grande sucesso.Até os críticos mais ácidos do atual governoacreditam que essa é a iniciativa mais bem-su-cedida de aumentar o acesso dos mais pobres.

3. Cotas para alunos de escolaspúblicasEnquanto o PROUNI está mostrando resul-

tados sólidos, a idéia de cotas para minorias ealunos de escolas públicas permanece envol-vida em controvérsias e ambigüidades. Come-cemos discutindo as cotas para estudantes doensino público, mais simples e muito mais fá-ceis de implementar.

Do puro ponto de vista de equidade, há mé-ritos em qualquer mecanismo que aumente aschances dos estudantes mais pobres (ou de esco-las públicas) de entrar nas universidades públi-cas. Porém, há mais assunto nessa questão doque o simples fato de que a equidade melhora.

Primeiro e acima de tudo, existe uma dimen-são política na escolha do programa de cotaspara o ensino superior. Esse nível causa muitobarulho, é visível e atuante, chamando muitaatenção para as políticas governamentais. Ouseja, foi uma escolha política e não uma decisãode beneficiar a maioria dos pobres.

A crítica pertinente é ser tarde demais parauma política de ação afirmativa oferecer cotaspara o ensino superior. De fato, quatro dentrecinco dos estudantes mais pobres já terão sidoexpulsos do sistema educacional, nos níveisprecedentes. Assim, é uma ação afirmativaque beneficia uma pequena fatia da populaçãoque se pretenderia atingir.

Muitos observadores, incluindo este autor,têm argumentado que a forma mais drástica eprofunda de uma ação afirmativa para ajudar os

Do puro pontode vista daequidade, háméritos em qualquermecanismo queaumente as chancesdos estudantes maispobres (ou deescolas públicas) deentrar nasuniversidadespúblicas.

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tado pela Universidade Federal de Santa Ma-ria, no Rio Grande do Sul. Em vez de reduzir abarreira de entrada, ela criou um grande pro-grama para apoiar escolas públicas de ensinomédio na região. O programa melhora a edu-cação dada nessas escolas e prepara melhorseus alunos para o vestibular. Como resultado,dois terços dos estudantes da Universidade deSanta Maria vêm de escolas públicas, um por-centual bem maior do que qualquer outra uni-versidade pública brasileira.

Um sinal encorajador é a mudança na novaversão da proposta da Reforma Universitária,enviada ao Congresso pelo Ministério da Edu-cação. Ao contrário das versões anteriores, eladeixar de mencionar mecanismos e números,onde havia referências a cotas, e deixa livre pa-ra as universidades públicas decidirem as for-mas a serem usadas para aumentar a partici-pação de alunos da rede pública.

4. Cotas para negros e índiosJunto com as cotas para alunos das escolas

públicas, o Ministério da Educação tambémpropôs cotas para negros e índios. Em outraspalavras, o componente étnico foi adicionadoà já espinhosa questão das cotas.

Há duas questões em discussão. A primeiraé de procedimento: Como determinar quem énegro ou índio? De acordo com as estatísticasoficiais, cerca de 5% dos brasileiros teriam san-gue negro puro, acompanhado de todas as ca-racterísticas visuais de sua ancestralidadeafricana. Cerca de metade da população bra-sileira é visualmente branca ou caucasiana. Osrestantes 40% teriam origens étnicas miscige-nadas, geralmente, europeu, negro e índio.

Uma pesquisa recente com DNA desarru-mou essa divisão. Dificilmente um brasileirotem "sangue puro", seja lá o que isso signifique.Além disso, a correspondência entre os resul-tados do DNA e os aspectos visuais não é ne-cessariamente óbvia. Pessoas com aparênciacaucasiana podem ter sangue negro e vice-versa. Embora seja a única alternativa com ba-se científica, se o país optar por usar o DNA pa-ra implementar cotas raciais, poderá criar umaimensa confusão.

Portanto, uma cota racial teria de considerarou os aspectos visuais ou a ancestralidade. A de-finição de raças pelo aspecto visual segue a tra-dição brasileira. Quem parece branco é branco. Evice-versa. Essa tem sido a forma de os brasilei-ros lidarem com a raça, há séculos. Mas quem vaiolhar e decidir? Onde está o limite, nos casos in-termediários? A Universidade de Brasília exigeuma fotografia do candidato para checar se a ra-

ça declarada combina com a que aparece na foto.A exigência causou uma forte reação de muitossetores, mas a UnB se mantém inflexível.

A política oficial é aceitar a auto-identifica-ção. Quem se classifica como negro é negro. Ne-nhuma pergunta é feita. A implementação ini-cial dessa política mostrou alguns abusos, de-nunciados pela imprensa. O pesadelo jurídicocriado por candidatos contestando a identifica-ção racial poderá vir a sufocar o sistema.

Inevitavelmente, as cotas raciais estãocriando muita apreensão na sociedade brasi-leira. Não que o debate seja ruim em si mesmo.Pelo contrário. Mas como está sendo conduzi-do, não sabemos se o resultado será positivo.

Um aspecto muito difícil da questão é quepode criar a tendência de polarizar as raças, al-go que a sociedade brasileira sabiamente evi-tou, até o momento. Alguns observadoresqualificados parecem acreditar que o Brasilpoderá conquistar melhores níveis de igualda-de racial sem destruir a coabitação pacífica e aautêntica tradição de minimizar os conflitosde origem étnica no País.

Muito preocupante é a tendência de tomaremprestado dos americanos a definição de ne-gro, como alguém que tenha qualquer quantida-de de sangue negro. Politicamente, tem a conse-qüência de aumentar a proporção de negros de5% para metade da população. Mas como con-siderar metade dos habitantes uma minoria?

E a qualquer um pode ocorrer a pergunta ló-gica: se ¼ de sangue negro define um negro,por que ¾ de sangue branco não é branco? Maisainda, por analogia, a presença de sangue índiodeveria definir a pessoa como índia. Por quenão? Mas se isso for feito, quase todos os 50 mi-lhões de nordestinos e mais os que migrarampara o Sul não deveriam também ser índios?

O principal temor de muitos observadoresqualificados é que controvérsias e disputas so-bre quem é de que cor, às portas do ensino su-perior, podem ter um impacto muito prejudicialnas relações raciais. É muito cedo para se saber,mas há razões suficientes para se preocupar.

F. Vencendo a desigualdadeespacialO Brasil tem mais de 7 milhões de quilôme-

tros quadrados. Enquanto esse enorme espaçooferece um potencial ilimitado de crescimentoeconômico e demográfico, cria um desafiomuito grande para o desenvolvimento da edu-cação superior fora das grandes cidades.

Nos anos 60, a rede de universidades públi-cas federais cresceu muito. Em cada Estado, pe-lo menos uma universidade federal foi criada.

Junto com as cotaspara alunos dasescolas públicas, oMinistério da Educaçãotambém propôs cotaspara negros e índios.Em outras palavras,o componente étnicofoi adicionado àjá espinhosa questãodas cotas.

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Isso foi um excelente salto para frente, tendo emvista o que estava então disponível. Porém, dei-xou o Brasil com uma rede de universidadesapenas nas capitais, em país onde isso pode sig-nificar que a faculdade mais próxima pode es-tar a milhares de quilômetros. Em outras pala-vras, são 27 capitais com universidades fede-rais e 5.500 municípios sem ensino superior.

O sistema federal funciona com custos muitoaltos por estudante e não teve capacidade de seexpandir mais, para se estabelecer também foradas capitais. Diante disso, o setor privado apro-veitou e se distanciou das capitais, para ocuparum mercado virgem. Esse movimento começouhá duas décadas. Atualmente, há cerca de 2 milinstituições de ensino superior. Uma enorme fa-tia delas está longe das capitais. Muitas cidadescom poucas dezenas de milhares de habitantesjá têm suas faculdades.

Como dito, a diminuição da desigualdadegeográfica começou com a iniciativa do gover-no federal de pôr uma universidade em cadacapital. Mas ficou para o setor privado se mo-

ver para cidades menores e mais distantes.Nos últimos anos, outro passo importante

está sendo dado para reduzir ainda mais a in-justiça espacial: a educação a distância. Desdeo começo dos anos 80, o Brasil tentou reprodu-zir o modelo da Universidade Aberta, criandouma rede de universidades a distância. Porémhouve forte resistência de muitos setores, le-vando ao fracasso todas as tentativas de ven-cer a barreira legal.

Vinte anos depois, a pressão pela educação adistância está voltando, com ímpeto. Nos últi-mos cinco anos, o setor privado tem se movi-mentado muito rápido para oferecer uma gran-de variedade de programas de educação a dis-tância. Há alguns anos, o Ministério da Educa-ção tinha feito uma tentativa, que não foi muitolonge. Sua única oferta importante estava cen-trada no treinamento de professores. No passa-do mais recente, um grande programa federalfoi lançado com metas ambiciosas.

Para resumir, após sofrer oposição por duasdécadas, a educação a distância está crescendo

Manter-secompetitivo é umaquestão de vida ou

morte para aeconomia brasileira.Para conseguir isso,é importante que a

força de trabalhoesteja mais bem

preparada.Regina Agrella/Folha Imagem

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113JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

muito rápido, agora liderada pelo setor priva-do. Estimativas das matrículas atuais mostramnúmeros próximos de 300 mil estudantes.

É interessante observar que a modalidadede e-learning permanece muito limitada. A so-lução preferida são as aulas pela TV, transmi-tidas por satélite. Isso parece ser resultado daintimidade dos brasileiros com a televisão e daexperiência bem-sucedida em oferecer educa-ção básica e de jovens e adultos pela TV. Do la-do negativo, o e-learning é prejudicado pelaslimitações nas competências de leitura dosalunos, chaga que se origina nos primeirosanos de escolaridade.

IV. CENÁRIOS FUTUROSVejamos algumas considera-

ções sobre o mundo da econo-mia. Há uma tendência genera-lizada de que a competiçãointernacional fique ain-da mais dura. Qual-quer país que queirase dar bem e sobrevi-ver em um ambienteeconômico cada vezmais competitivo tem de sepreocupar muito com o nível de capacitação desua força de trabalho. Aliás, os concorrentes doSudeste Asiático estão erodindo a competitivi-dade brasileira em áreas como eletrônicos, têx-teis e calçados. Brinquedos já são quase um casoperdido. A nossa próspera indústria automoti-va já está sofrendo com a concorrência do LesteEuropeu e da China.

Manter-se competitivo é uma questão de vi-da ou morte para a economia brasileira. Paraconseguir isso, é quase desnecessário salientara importância de que a força de trabalho estejamais bem preparada. Cada vez mais se tornadifícil competir com a China e, ainda mais,com países como o Vietnã, em produtos quedependem de mão-de-obra barata. Os custossociais no Brasil são altos e as indústrias mo-dernas têm aumentado os seus salários. Alémdisso, os custos indiretos, o chamado "CustoBrasil", aumentam ainda mais o preço dos pro-dutos brasileiros. Uma taxa de câmbio sobre-valorizada pode ser uma condição passageira,mas ela já dura alguns anos.

Assim sendo, o Brasil precisa de uma forçade trabalho muito bem preparada, para manterseus nichos de mercado e conquistar outros,com produtos mais sofisticados. Para produtosde mais alto valor adicionado, precisam-se detrabalhadores melhor qualificados. Poucos vãodiscordar de tais afirmativas.

Sob tanta pressão para competir, que prio-ridade deve ser dada para a meta de combatera desigualdade? A resposta aponta para umcírculo virtuoso. Não há mais uma situação"ou isso ou aquilo".

Quase não existe mais no Brasil a situaçãoonde as empresas são administradas por exe-cutivos e técnicos altamente gabaritados e, aomesmo tempo, a base da produção é formadapor semi-analfabetos. Na economia atual,muitas das empresas usando tecnologia avan-çada são pequenas. Além disso, nas grandesempresas, as hierarquias são mais horizontais.Os operários do chão-de-fábrica têm de tomar

decisões que podem ser relativamente com-plexas. Isso tudo leva a uma força de tra-

balho que precisa ter considera-velmente mais compe-

tências, mesmono chão-de-

fábrica.C om ba-

ter a desi-g u a l d a d e

significa me-lhorar as con-

quistas educa-cionais dos queestão na base. Esseé um objetivo me-

ritório em si mes-mo. Ele deve ser rea-

lizado por motivosde justiça social, antes

de mais nada.Porém, sob as atuais condições, é

também um imperativo econômico.Melhorar a eficiência e a competitivida-

de da economia exigem consideráveis,senão drásticas, melhorias nos níveis edu-

cacionais dos que estão na base.Assim, a clássica disputa — eficiência ver-

sus justiça — parece haver desaparecido. O Bra-sil precisa das duas. Mas o lado bom é que as po-líticas que levam à eficiência não são muito di-ferentes daquelas que promovem a justiça.

O verdadeiro desafio agora não é o impassede escolher uma ou outra prioridade, mas simas difíceis questões de implementação. Aquestão real é saber se, depois de uma longahistória de desenvolvimento educacional len-to, em todos os níveis, o país será capaz de semover mais rápido. Muito foi conquistado naúltima década. O processo vai continuar? Osúltimos quatro anos não foram encorajadores,já que o crescimento das matrículas se desace-lerou e pouco ocorreu com a qualidade.

Robe

rto A

lvar

enga

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DigestoEconômico:seis décadasde debate.Domingos ZamagnaJornalista e professor de Filosofia

A revista bimestral Digesto Econô-mico, da Associação Comercial deSão Paulo, há mais de sessentaanos discute os principais proble-

mas do Brasil e do mundo, trazendo para osempreendedores econômicos e sociais daACSP e para um público mais amplo, mesmode leigos, em linguagem acessível, os comple-xos fenômenos da atualidade, suas tendênciase rumos. Esse compromisso foi assumido pelaACSP, através de seu presidente em 1944, Bra-sílio Machado Neto, e renovado pelo atual pre-sidente, Guilherme Afif Domingos, por oca-sião da inauguração da nova fase da revista (nº439, set/out/2006).

Numa visão retrospectiva, quais as circuns-tâncias que levaram uma entidade de caráterfrancamente econômico a fundar e manter portão longa trajetória, num País onde nem sem-pre se dá muito apreço à memória e às inicia-tivas longevas, um instrumento de informa-ções pertinentes para a defesa da livre inicia-tiva e o esclarecimento ideológico?

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115JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

O BRASILA grave crise que afetou os Estados Unidos

em 1929, com repercussões em todo o continen-te americano, só chegou totalmente ao fim nasegunda guerra mundial. Pois a guerra propor-cionou um novo surto de prosperidade, não sóaos norte-americanos, mas também a diversaspartes da América Latina na década de 40.Caíam as importações, mas desenvolviam-seas exportações, provocando o crescimento in-dustrial e urbano. Camadas da elite agrária de-ram um passo na constituição de uma incipien-te burguesia industrial, ao mesmo tempo emque surgiam massas urbanas que acabaram porinfluir na vida política de muitos países.

O desejo de incorporar as massas urbanasao processo político contribuiu bastante para oaparecimento de governos populistas. O po-pulismo foi um fenômeno típico das décadasde 30 e 40, tendo sua maior expressividade naArgentina de Juan Domingo Perón e no Brasilde Getúlio Vargas.

Três fatores conduziram Perón à presidên-cia argentina em 1946: sua atividade de minis-tro do Trabalho em 44/45, arregimentando efavorecendo o proletariado; a sustentação dosjovens oficiais de tendências fascistas; e oapoio dos católicos de tendências franquistas.

Pode assim aperfeiçoar o Justicialismo, queprocurava neutralizar os conflitos de classes eincrementar uma legislação trabalhista decaráter assistencialista.

O Brasil tinha conhecido desde novembrode 1937, data do golpe que instaurou o Esta-do Novo, o significado de uma ditadura: fe-chamento do Congresso Nacional, imposi-ção de uma constituição (a "Polaca"), ame-drontamento da classe média com propa-ganda anti-comunista, centralizaçãopolítica, censura aos meios de comunica-ção, repressão da atividade política, per-seguição e prisão de adversários, atrela-mento dos sindicatos, medidas econômicas na-cionalizantes, nomeação de interventores emtodos os níveis da administração etc.

Do ponto de vista das relações trabalhistas,o Estado Novo se caracterizou pela implanta-ção de um sindicalismo corporativista. Proi-bidas as greves como arma de pressão nosantagonismos entre capital e trabalho, ostrabalhadores deviam se sujeitar à justiçatrabalhista. O 1º de maio tornou-se datamagna, com pomposos anúncios de leistrabalhistas, geralmente no estádio de fu-tebol do Vasco da Gama no Rio de Janeiro(em 1940, Vagas anunciou a Lei do SalárioMínimo; em 1942, o Imposto Sindical; em

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116 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

1943, a CLT), exceto o de 1944, que foi celebradoem São Paulo. O chefe do governo, através deampla propaganda, foi mitificado a tal pontoque até hoje há quem dê prossegui-mento a um discurso sobre Getúlio"pai dos pobres", "doador da legis-lação trabalhista" etc. Surge assima ideologia do Trabalhismo, desti-nada a cooptar as massas trabalhis-tas para os desígnios do Estado.Identificavam-se as figuras do che-fe com a do Estado. Numa palavra: atendência do Estado Novo era absor-ver o indivíduo pelo Estado.

Em 27/12/1937, pelo decreto-lei nº 1915, foicriado o DIP (Departamento de Imprensa e Pro-paganda), subordinado diretamente à autori-

dade do presidente. Atuando em todos os cam-pos de manifestação cultural, tornou-se os olhose os ouvidos da ditadura varguista, importan-tíssimo instrumento do processo de legitimaçãodo regime, para o que contribuiu a criação da"Hora do Brasil", de grande audiência, pois osdiscursos do presidente eram transmitidos aolado de programas musicais (Chico Alves, Hei-tor dos Prazeres, Carmem Miranda etc).

Rádio e imprensa eram os veículos modernosde que o Estado soube fazer uso para a sua legi-timação pela cooptação das massas. Obviamen-te a ditadura não poderia comportar uma im-prensa livre e independente. Basta relembrarque o papel de imprensa era monopólio do Es-tado e quem coordenava a sua distribuição era oDIP. A ocupação do prédio de O Estado de S.Paulo, que exercia constante crítica ao regime deVargas, é o emblema de como procedia o DIP emcasos de resistência. Só em 1945 acabou a censuraao jornal, quando então Júlio de Mesquita pôdevoltar do exílio e reassumir sua direção.

Desde 1943, porém, o regime var-guista começou a dar sinais de en-fraquecimento. A entrada do Bra-sil na guerra acirra as contradi-ções acumuladas em vários seto-res do governo. O Estado senteque começa a perder a hegemo-nia; de admirador do "Eixo" Ro-

ma-Berlim-Tóquio, o governo foiforçado pelos Estados Unidos a to-

mar posição em favor dos "Aliados" (o "estado deguerra" com a Alemanha e a Itália foi decretadopor Vargas em 1942). Ora, lutar contra a ditadurana Europa não podia combinar com a permissãode uma ditadura dentro do Brasil. Tanto que oManifesto dos Mineiros (1943) — embora bas-tante comedido, como tudo o que vem de Minas— já denota de um lado a falta de apoio social doEstado Novo, e de outro lado o afastamento deVargas das classes produtoras. Nem mesmo o"Queremismo", que chegou a pleitear uma"Constituinte com Getúlio", foi capaz de deter aonda liberalizante, que culminou impondo aVargas a renúncia e a entrega do governo ao pre-sidente do Supremo Tribunal Federal, ministroJosé Linhares, que convocou eleições para02/12/1945. Foi eleito o marechal Eurico GasparDutra com 55% dos votos, a maioria deles em SãoPaulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e MinasGerais. O segundo colocado, brigadeiro Eduar-do Gomes, não teve mais que 35% dos votos.

O ano de 1946 começa, portanto, com a pos-se de Dutra em 31 de janeiro, mas ainda na vi-gência da Constituição de 1937, um diplomade inspiração fascista.

O cotejo entrealguns artigosde primeiranecessidadee saláriosvigorantes entre1920 e 1944.Abaixo, a cidadesentia a necessi-dade de ummetropolitano.

Fotos: reprodução

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117JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO

O ESTADO E A CIDADE DE SÃO PAULONo início da década de 30, a capital do Es-

tado conheceu uma crise política e administra-tiva, que se caracterizou por um processo dedemolição de instituições. Um sintoma signi-ficativo da instabilidade: entre 1930 e 1934, acidade teve 12 prefeitos, uma média de 87 diasde exercício de mandato para cada um. Porquase duas décadas a cidade perdeu parcialou totalmente sua autonomia, pois aos 12 pre-feitos nomeados seguiram-semais 9, completando 21 prefei-tos nomeados antes que o pri-meiro prefeito eleito to-masse posse, mas so-mente em 1953!

O novo regime fe-deral tinha tendênciasi n e q u i v o c a m e n t ecentralizadoras, queincidiram na organi-zação dos Estados emunicípios, através demecanismos de controlee planejamento, sendo os organismos legis-lativos substituídos pelas imposições do exe-cutivo. Somente em São Paulo esse autorita-rismo federal foi confrontado, pois a elitepaulista do café ainda mantinha o controlepolítico local. O ápice da reação paulista, co-mo se sabe, deu-se com a Revolução Consti-tucionalista de 32. Não obstante a derrota doEstado, a prefeitura da capital logrou realizar

várias mudanças administrati-vas e foi com estruturas maissimples e enxutas que se torna-ram possíveis as profundas in-tervenções urbanísticas reali-zadas em São Paulo durante oEstado Novo, inicialmente porFábio da Silva Prado (1934-1938) e sobretudo por FranciscoPrestes Maia (1938-1945), sob

i n t e r v e n t o r i a d eAdhemar de Barros.Esses prefeitos sou-beram assumir ummodelo de planeja-mento técnico, enca-rado como política esocialmente neutro.O Estado e a capitalapresentaram desdeentão, em face da na-ção, um intenso pa-drão de crescimento que seria do-ravante o seu sinal distintivo. Um

crescimento tão explosivo, que alguns quise-ram orientá-lo, criando a Sociedade Amigosda Cidade (SAC), certamente a antecessoradas Sociedades de Amigos do Bairro, de im-portante papel político e reivindicatório nasdécadas de 40 e 50.

O fato é que Prestes Maia, uma das glóriasda Escola Politécnica de São Paulo, passoupara a história como o primeiro prefeito pau-lista a merecer a imagem de "mestre de obras"competente, austero e íntegro, que mais tarde

ACSP, um prédiode 12 andareslocalizado na

Rua Boa Vista, 51,para comemorar o

seu cinqüentenário.Pedra fundamental:1939. Conclusão da

obra: 1944.

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118 DIGESTO ECONÔMICO JAN/FEV 2007

lhe valeu a maior votação até en-tão recebida por um homem pú-blico, para o mandato de 1961-1965. Certamente a cidade devea ele o bom ambiente para os no-vos empreendimentos enceta-dos, malgrado a situação com-plexa que a segunda guerra mun-dial trouxe para a economia.

O DIGESTO ECONÔMICOAAssociação Comercial de São Paulo, fun-

dada em 1893, dispunha de um jornal, o Diáriodo Comércio, por sua vez fundado em 1924.Os historiadores não deixam de assinalar queo DC é o único jornal diário de uma entidadede classe no Brasil. Desde o começo deu mos-tras de vanguardismo, pois a preocupação ini-cial, quando ainda se chamava "Boletim Con-fidencial", era a constituição de uma rede deproteção, através de informações, que tornas-se seguros os empreendimentos dos associa-dos. O DC tem, portanto, nos seus mais de oi-tenta anos, um lugar de destaque na trajetória

da imprensa brasileira,sendo um baluarte doe m pre e n d ed o r i sm o ,da livre iniciativa, dojornalismo cívico.

O Digesto Econô-m ic o, editado a partirde 1944, na concepçãodos seus fundadores,correspondia a umanecessidade dos novostempos no fim da guer-ra. Isso se confirma len-do os primeiros artigosdo Digesto, com gran-de destaque para os es-tudos sobre "economiade tempos de guerra",já que ainda pairavasobre as redações o fan-tasma da censura var-guista.

O gênero jornalístico"digesto" sempre tevealgumas vantagens.Pois ele consiste funda-mentalmente num re-

sumo ou condensação, numa compilação sele-cionada e ordenada de temas relevantes paraum determinado público. O "digesto" coloca-va, portanto, ao alcance dos associados daACSP, o material necessário para um aprofun-damento temático, mas em sintonia com o flu-

A ACSP foipioneira nadefesa dosinteresses docomércio eindústria. Abaixo(dir.) emissõeselevavam custode vida.

xo contínuo de infor-mações geradas pelo"diário". Uma ars com-b i n a to r i a muito propí-cia para os tempos con-fusos do fim de uma

ditadura, num mundorealmente conturbado.

De fato, o Brasil e o mundo estavamem desordem econômica, política e ideologi-camente. As principais instituições da nação,cada vez mais compromissadas com a demo-cracia ainda sufocada pelo governo federal,sentiam a necessidade de criticar medidas ar-caicas, aliviar tensões, repensar modelos,propor alternativas, alicerçar valores, olharpara o futuro com clarividência, aplainar oscaminhos esburacados pelo Estado Novo. AACSP, naquela época já mais que cinqüente-nária, tinha experiências a transmitir, convic-ções para externar.

A revista surge exatamente para se inserirnum recomeço, num mutirão que o Brasil pre-cisava realizar para a construção de um novotempo de paz. E os empreendedores econômi-cos não poderiam se furtar de suas responsa-bilidades. Acredita alguém que é possível apaz sem um sólido estofo econômico que pro-picie a independência? Alguém acredita queum país economicamente frágil e à mercê dasoscilações ideológicas possa usufruir dos be-nefícios da liberdade?

A l inha editor ia l que aACSP quis imprimir ao D i-gesto, porém, foi a de umaeconomia que seja capazde trazer ao ser huma-no o lastro que lhe as-segure a liberdade. Li-berdade para empre-ender, e até mesmoousar, sem entravesde qualquer nature-za, já que o feitio daentidade é trabalharpela livre iniciativadentro dos parâme-tros éticos que em seus113 anos de histórianunca se mostrarama n a c rô n i c o s .

Assim, o Di ges tonasceu num momen-to de compro-vada maturida-de da ACSP, co-irmão do Di á-

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rio do Comércio, destinado a ser um veículode diálogo e esclarecimento, com a profundi-dade que a estrutura e urgência industriaisdo jornal nem sempre podem propiciar.

Não será difícil ao historiador das idéias,sobretudo das idéias econômicas, acompa-nhar a evolução e os percalços verificados nahistória recente do Brasil através das páginasdo Digesto. Mais do que isso: pode-se acom-panhar desde a evolução dos costumes, dospadrões de jornalismo, do nosso idioma, dalinguagem publicitária... até os índices deprodutividade, novos equipamentos, a bi-bliografia, os prognósticos econômicos, os ce-nários políticos, as incidências e a superaçãodas crises e impasses da nação, a transferên-cia da capital do País, as consultas popularessobre presidencialismo e parlamentarismo,as campanhas cívicas ..., fazendo o elenco dosprincipais autores e teses que expressaram aliderança paulista e nacional.

O leitor bem pode avaliar o acervo de milha-res de artigos, ensaios, conferências, resenhas,relatórios etc. sobre o pensamento econômico-financeiro e político do Brasil e do mundo. Oacadêmico Alberto Venâncio Filho assim sin-tetizou o trabalho realizado pelo Digesto: "ODigesto Econômico é o maior repositório deestudos sobre a realidade brasileira" (nº 369, p.23). E acrescentou: "Se examinarmos o panora-ma desde o Império, poucas revistas atingi-ram a duração do Digesto Econômico".

Seus diretores de primeira hora foram osjornalistas Ruy Bloem e Ruy Nogueira Mar-tins. A partir de 1947, por 26 anos, o Digesto foidirigido pelo publicista e historiador AntônioGontijo de Carvalho. A partir de 1973, a publi-cação passou à direção dos jornalistas João deScantimbugo, Paulo Edmur de Souza Queiroze Wilfrides Alves de Lima. Com a morte dosdois últimos, ficou a direção do periódico sob aresponsabilidade do escritor João de Scantim-burgo, o qual, desde 1992, foi também alçado àcondição de membro da Academia Brasileirade Letras, o que sem dúvida trouxe aindamaior prestígio para a publicação.

Obviamente, em sessenta anos o Brasilmudou bastante. E o Digesto p ro c u ro uacompanhar todas as transformações pelasquais passou a nossa sociedade: economia,legislação, tributação, política, educação,cultura, saúde, agricultura, religião, urba-nismo, sindicalismo, administração etc. Asmudanças, contudo, não impediram a sobre-vida de muitas das características de paíssubdesenvolvido e periférico. Surprenden-temente, constatamos que o País é rico, po-rém, injusto. Exatamente por ser uma naçãoque abriga tantas contradições, precisamosproporcionar aos que têm as mesmas preo-cupações com a livre iniciativa e as institui-ções democráticas, um espaço em que se ex-primam livremente, sem a camisa de forçado ranço socialista que caracteriza a maiorparte dos ambientes de educação e culturado País e do continente. Essa foi a trajetória,esse tem sido o compromisso e esforço do D i-gesto Econômico: um ininterrupto fórum dedebates de seis décadas, a serviço da econo-mia e do humanismo.

A coleção doDigesto mostra a

evolução dalinguagem

publicitária.Abaixo,

ilustração doauxílio dos EUA

aos Aliados: oobjetivo moral da

vitória sobre oEixo falava mais

alto que o lucropecuniário.

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