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Leonor Branco Jaleco Direito Administrativo II 1 Direito Administrativo II O Procedimento Administrativo (PA) Divisão em duas grandes partes: 1. A parte geral; 2. A parte especial. O Procedimento Administrativo é um caminho, uma via. O percurso que conduz a uma decisão. Temos estudado princípios que regem uma decisão (art. 266 CRP) contudo, não é apenas importante o conteúdo da decisão, mas também o caminho que leva a essa decisão. Ex: Alguém cometeu na realidade um crime, mas a confissão do crime é feita através da tortura. O facto de se ter descoberto a confissão através da tortura, faz com que a aplicação da lei penal não possa ser aplicada. O procedimento administrativo é também uma forma de limitar o poder porque define os termos em que o poder se forma, expressa ou executa uma vontade. A definição de procedimento administrativo encontra-se no art. 1º CP - Todo o agir administrativo tem uma decisão material (o conteúdo da decisão) e uma decisão procedimental (o caminho que leva a decisão). O CPA não esgota as normas de natureza procedimental, mas é o direito subsidiário: quando não há normas, encontramos a sua disciplina no CPA. E se não houver aqui nada que regule a situação em causa? Então, encontra-se a resposta por via analógica ou no funcionamento dos órgãos colegiais - e, quando não há norma específica no âmbito do funcionamento dos órgãos colegiais, aplica-se o Regimento da Assembleia da República. O procedimento administrativo pode ser: De 1º grau- quando pela primeira vez se pede a análise de determinada matéria/situação; De 2º grau- quando se pede a revisão modificação ou substituição de uma matéria já vista; De natureza declarativa- diz o Direito; De natureza executiva- quando se aplica uma anterior decisão materializando os procedimentos que podem ser materializados em suporte de papel ou eletrónicos ou mistos; Simples; Complexos/federativos- ex: licenciatura, porque é o conjunto de uma pluralidade de procedimentos. Cada disciplina em cada semestre é um procedimento autónomo. Questão: É um procedimento ou vários? P.O: Trata-se de um único procedimento - o propósito que unifica é o fim (o licenciar alguém em algo) + a média do curso. NOTA: o procedimento administrativo distingue-se do processo contencioso (que se passa nos tribunais) e do processo administrativo (que encontra a sua definição no art. 1º/2 CPA) $ Evolução do Procedimento Administrativo: Começou por ser uma preocupação do séc. XX- havia que regular o caminho da AP. A Constituição de 76 impõe também a regulamentação dessa preocupação. Exigência de reserva de lei.

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Leonor Branco Jaleco Direito Administrativo II

1

Direito Administrativo II

O Procedimento Administrativo (PA)

Divisão em duas grandes partes:

1. A parte geral;

2. A parte especial.

O Procedimento Administrativo é um caminho, uma via. O percurso que conduz a uma decisão. Temos

estudado princípios que regem uma decisão (art. 266 CRP) contudo, não é apenas importante o conteúdo da

decisão, mas também o caminho que leva a essa decisão.

Ex: Alguém cometeu na realidade um crime, mas a confissão do crime é feita através da tortura. O facto de se

ter descoberto a confissão através da tortura, faz com que a aplicação da lei penal não possa ser aplicada.

O procedimento administrativo é também uma forma de limitar o poder porque define os termos em que o

poder se forma, expressa ou executa uma vontade.

A definição de procedimento administrativo encontra-se no art. 1º CP - Todo o agir administrativo tem uma

decisão material (o conteúdo da decisão) e uma decisão procedimental (o caminho que leva a decisão).

O CPA não esgota as normas de natureza procedimental, mas é o direito subsidiário: quando não há normas,

encontramos a sua disciplina no CPA. E se não houver aqui nada que regule a situação em causa? Então,

encontra-se a resposta por via analógica ou no funcionamento dos órgãos colegiais - e, quando não há norma

específica no âmbito do funcionamento dos órgãos colegiais, aplica-se o Regimento da Assembleia da

República.

O procedimento administrativo pode ser:

De 1º grau- quando pela primeira vez se pede a análise de determinada matéria/situação;

De 2º grau- quando se pede a revisão modificação ou substituição de uma matéria já vista;

De natureza declarativa- diz o Direito;

De natureza executiva- quando se aplica uma anterior decisão materializando os procedimentos que

podem ser materializados em suporte de papel ou eletrónicos ou mistos;

Simples;

Complexos/federativos- ex: licenciatura, porque é o conjunto de uma pluralidade de procedimentos.

Cada disciplina em cada semestre é um procedimento autónomo. Questão: É um procedimento ou

vários? P.O: Trata-se de um único procedimento - o propósito que unifica é o fim (o licenciar alguém

em algo) + a média do curso.

NOTA: o procedimento administrativo distingue-se do processo contencioso (que se passa nos tribunais) e do

processo administrativo (que encontra a sua definição no art. 1º/2 CPA)

$ Evolução do Procedimento Administrativo:

Começou por ser uma preocupação do séc. XX- havia que regular o caminho da AP. A Constituição de

76 impõe também a regulamentação dessa preocupação.

Exigência de reserva de lei.

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Leonor Branco Jaleco Direito Administrativo II

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Existindo um código de procedimento, não pode deixar de existir o mesmo código a regular a mesma

matéria — podem as normas ser revogadas, modificadas, mas não podem deixar de existir num todo

- art. 267º/5 CRP.

O procedimento administrativo limita a arbitrariedade.

O procedimento administrativo legitima a decisão (legitima democraticamente).

O procedimento administrativo permite uma previsibilidade do agir.

Fontes fundamentais do procedimento administrativo:

1. A natureza interna (Direito Constitucional);

2. A CEDH (DIP de natureza procedimental art.6, nº1);

3. A Carta dos Direitos Fundamentais da UE.

O Procedimento Administrativo pode ter um propósito só de interesse privado - licença para construir uma

melhoria -, de interesse público ou de interesse misto – Ex: concurso para catedráticos - interesse público:

Universidade, interesse privado: o do candidato.

Natureza do Procedimento Administrativo:

Atividade administrativa;

Atividade instrumental;

Cria uma relação jurídico-procedimental;

Fontes do Procedimento Administrativo:

o CPA;

o Leis avulsas;

o Usos, procedentes, costumes;

o Uma margem de discricionariedade;

o Regulamentos (art. 20º/3 CPA), atos legislativos (art. 78º/3 CPA) ou via contratual (art. 57º e 78º CPA).

NOTA: Nem todas as normas do Procedimento Administrativo são injuntivas- prova: art. 57º CPA; e mesmo as

normas injuntivas podem ceder em casos de estados de necessidade administrativa- art.3º/2 CPA e, existem

ainda normas de caráter extra-jurídico.

Principais regras interpretativas a ter em consideração:

1. Princípio da interdição/proibição do formalismo excessivo - art. 8º e art. 108º/2 CPA;

2. Princípio proactione - deve prevalecer a decisão sobre o mérito. Na dúvida, opta-se pela decisão

material - art. 108º e 109º CPA;

3. Princípio da economia processual - não se deve impor diligências inúteis - art. 60º/2 CPA;

4. Princípio da segurança e tutela da confiança;

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5. Princípio do justo procedimento/procedimento equitativo/devido procedimento legal - fundamento:

art. 266º/2 CRP. Começou por ser sustentado pelo Tribunal Europeu dos direitos do homem com base

no art. 6º/1 da CEDH que consagra o devido processo legal.

Estabelece-se então que as pessoas devem ser julgadas respeitando as normas legais. Este devido processo

legal não deveria ser só utilizado pelo tribunal, mas também em determinados processos administrativos - AP

em matéria de sanções está obrigada a respeitar este princípio.

A carta dos direitos humanos da UE consagra o mesmo no seu art. 41º/1.

P.O.: Este princípio deixou de ser um princípio geral para passar a ser um direito fundamental.

Natureza das Normas Procedimentais:

Art. 56º CPA: o Procedimento Administrativo tanto tem normas jurídicas injuntivas como normas jurídicas

supletivas: sem embargo da disponibilidade aplicativa do conteúdo destas últimas, a verdade é que ambas as

categorias de normas produzem efeitos imperativos- as normas dispositivas se não forem afastadas e

substituídas por outras, são tão imperativas quanto as normas injuntivas.

A área de imperatividade das normas procedimentais delimita negativamente:

1. A esfera de discricionariedade do responsável pela direção do procedimento na respetiva

estruturação e a margem de autonomia dos diversos intervenientes na prática dos atos instrumentais

e preparatórios do ato conclusivo;

2. A competência do órgão competente para essa decisão final.

Nem toda a imperatividade das normas procedimentais goza, no entanto, da mesma força jurídica ou do

mesmo tipo de desvalor jurídico em caso de violação: a desconformidade do agir administrativo face às

normas procedimentais, correspondendo a casos de violação da imperatividade da sua estatuição, pode obter

como resposta a nulidade ou a anulabilidade dos atos ilegais.

A regra é a da anulabilidade, uma vez que a nulidade, envolvendo um regime mais gravoso de privação de

efeitos dos atos ilegais que dela enfermam, fica reservada aos casos mais graves de violação da imperatividade

das normas jurídicas- as normas procedimentais cuja violação acarrete a nulidade têm uma força jurídica

reforçada face às normas procedimentais cujo desvalor resultante da sua violação se reconduz à

anulabilidade.

Em segundo lugar, o art. 163º/5 CPA dispõe que, mesmo dentro da anulabilidade, há casos em que, apesar de

existir violação da normatividade, não se produz o efeito anulatório:

a) Se o conteúdo do ato não pode (legal ou factualmente) ser outro;

b) Se, apesar da preterição da exigência procedimental ou formal, o fim desta foi alcançado;

c) Se, sem o vício, o ato teria sido praticado com esse mesmo conteúdo.

Em tais casos, a imperatividade da norma procedimental conhece um último nível de debilitação: o efeito

anulatório decorrente da violação de tais normas é afastado pela lei, numa expressão do aproveitamento dos

atos inválidos, num claro “esvaziamento do princípio da legalidade e dos direitos procedimentais dos

interessados”- ocorre aqui um “golpe” às garantias dos cidadãos, passível de lesar o princípio constitucional

da tutela jurisdicional efetiva.

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Este artigo torna-se, assim, uma verdadeira cláusula de inexecução legítima de normas procedimentais,

gerando um triplo efeito:

(i) Um aparente sistema rígido de resposta à violação da imperatividade das normas procedimentais

encontra aqui uma abertura flexibilizadora da sua vinculatividade;

(ii) A ilegalidade cede lugar à mera irregularidade ou, formalmente, a uma anulabilidade que não

produz efeito anulatório;

(iii) Desenvolve-se uma atividade administrativa contra legem que, sem produzir efeito anulatório,

acaba sendo aceite pela ordem jurídica.

◊ Os cidadãos como destinatários das normas procedimentais

O procedimento administrativo tem dois destinatários típicos:

1. Estruturas administrativas e tribunais;

2. Particulares que se relacionam com a Administração Pública.

As normas procedimentais devem, neste sentido, refletir clareza, objetividade, simplicidade e percetibilidade

para o cidadão comum, caso contrário, haverá um cumprimento defeituoso da vinculação emergente do art.

267º/5 CRP.

As normas procedimentais, impondo condutas aos cidadãos ou regulando o modo como a obtenção de

determinadas vantagens depende do cumprimento de certas previsões, mostram-se suscetíveis de serem

desrespeitadas: a violação das normas procedimentais pelos cidadãos não conhece um único modelo de

sanções. É possível recortar três diferentes efeitos decorrentes dessa violação:

a) Pode significar a preclusão ou preenção do exercício de uma posição jurídica de vantagem ou de um

ónus do particular;

b) Pode, em sentido diferente, o desrespeito habilitar o exercício de um poder de livre apreciação da

conduta em causa pela Administração ou, em alternativa, justificar a rejeição liminar do requerimento

ou o seu indeferimento liminar, o paralisar do procedimento ou a sua extinção, incluindo fundamentar

a ausência de dever de resposta;

c) O desrespeito poderá ainda consubstanciar efeitos sancionatórios de natureza pecuniária.

A conduta procedimental da Administração face a um caso concreto não se mostra isenta de produzir efeitos

extraprocedimentais- salvo declaração de reserva, essa conduta:

1. Assume um papel autovinculativo para o seu autor;

2. Revela-se passível de servir de base material de gestação de um precedente;

3. Podem alicerçar-se nela situações de investimento da confiança de terceiros.

Mas também os atos jurídicos preparatórios ou instrumentais, assim como meros comportamentos factuais

da Administração Pública ao longo do procedimento, habilitam que, por indução, se possa extrair uma regra

de conduta aplicável a futuras intervenções administrativas procedimentais.

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$ Âmbito aplicativo do CPA

- Aplicação Subjetiva- art. 2º CPA:

❖ Órgãos de todas as entidades públicas, desde que exerçam funções administrativas a título principal

(art. 2º/4);

❖ Autoridades públicas que, sem integrarem a Administração Pública, exerçam uma atividade regulada

por disposições de Direito Administrativo (art. 2º/1);

❖ Entidades privadas que exerçam poderes públicos ou pautem a sua conduta de modo específico por

normas de Direito Administrativo (art. 2º/1).

NOTAS:

1. O CPA pode ainda ser aplicado por privados que não exerçam poderes de autoridade, desde que, ao

abrigo da autonomia da vontade, tenham convencionado ou determinado a aplicação das suas

normas.

2. Por força de normas de conflitos estrangeiros, desde que remetam para a aplicação do Direito

Procedimental português, o CPA pode ser aplicado por autoridades administrativas estrangeiras face

a condutas transnacionais e que tenham conexão com a OJ portuguesa.

- Aplicação Material

Nem todas as normas do CPA são aplicáveis por igual a todas as estruturas orgânicas submetidas ao seu

complexo normativo:

1. Há normas procedimentais que gozam de aplicação geral, aplicam-se a todas as entidades públicas e

privadas que exerçam poderes públicos ou cuja regulação se faça pelo Direito Administrativo:

- Princípios gerais da atividade administrativa (incluindo a atividade técnica e a de gestão privada);

- Normas do CPA que concretizam preceitos constitucionais.

Ou seja, a Parte I, III e IV do CPA são aplicáveis a quase todas as entidades, por força do primeiro critério do

art. 2º/1 CPA.

2. Há normas que apenas são aplicáveis a certos tipos de atividade administrativa:

- As normas sobre o funcionamento de órgãos (arts. 20º a 52º CPA- Parte II) apenas se aplicam aos órgãos da

Administração Pública, devendo deles se excluir:

a) Os órgãos do Estado e das regiões autónomas que não exercem funções administrativas a título principal e,

por maioria de razão, aqueles órgãos que nem sequer exercem quaisquer funções administrativas;

b) Os órgãos de entidades privadas que, apesar de exercerem funções administrativas, não integram, à luz do

art. 2º/4 CPA, a Administração Pública, salvo e na medida em que exerçam poderes de autoridade.

As normas do CPA são ainda aplicáveis, a título subsidiário, aos procedimentos administrativos especiais (art.

2º/5), devendo entender-se que as disposições que reconhecem garantias apenas poderão ser aplicáveis se

aumentarem essas garantias e não se comportarem uma redução ou diminuição face às garantias que já

decorrem das normas procedimentais especiais.

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- Aplicação Temporal

O art. 8º/1 do diploma que aprovou o CPA de 2015 (DL nº 4/2015 de 7 de janeiro), estabelece um regime de

aplicação no tempo das suas disposições que se resumem nos seguintes termos:

1. A totalidade das disposições do CPA só será aplicável aos procedimentos que se iniciem após a entrada

em vigor do novo CPA;

2. Os arts. 53º a 76º e 82º a 134º não se aplicam aos procedimentos administrativos em curso à data da

entrada em vigor do CPA de 2015, continuando estes a reger-se, nos referidos domínios dispositivos,

pelas normas do CPA de 1991.

- Aplicação Territorial

Não integra o CPA qualquer norma referente à aplicação no espaço das normas procedimentais, numa

reiterada omissão de regulação de situações administrativas transnacionais, talvez no pressuposto (errado)

de que tais normas apenas se mostram aplicáveis no território português, sem prejuízo da sua aplicabilidade

nas embaixadas dos portugueses no estrangeiro.

O art. 116º/4 CPA reconhece a aplicabilidade em Portugal de leis procedimentais estrangeiras.

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Princípios gerais do Procedimento Administrativo

Princípios Regra do Procedimento Administrativo

1. Princípio do Procedimento Equitativo ou Devido Procedimento Legal

Envolve as ideias de justo procedimento ou devido procedimento legal: é uma decorrência do princípio da

justiça e, por essa via, do Estado de Direito material.

Fonte Externa: Tribunal Europeu, ampliado pela Carta da UE e depois, em Portugal- art.262º/2 CRP e, cláusula

aberta.

Em matérias passíveis de produzir efeitos lesivos para os destinatários, o princípio supra mencionado envolve

8 corolários:

a) Audição prévia dos destinatários- quem é destinatário de uma decisão ou efeito lesivo deve sempre

ser chamado a pronunciar-se (Participação Defensiva). Ex: Universidade Inglesa em que o aluno foi

expulso e não foi ouvido. O ato foi destruído judicialmente.;

b) Direito de acesso dos interessados aos documentos- a pessoa deve ter conhecimento prévio sobre

aquilo que vai ser ouvido. Não basta ter acesso aos documentos, a pessoa tem de dominar a língua

em que os documentos se encontram;

c) Faculdade que a pessoa tem de ser acompanhado por um advogado- documentos são escritos em

linguagem jurídica. As pessoas não podem criar situações embaraçosas - reforça o procedimento

equitativo;

d) Decisão final- esta tem de ser emanada por alguém que é imparcial e que respeita o princípio da

igualdade. Estes são elementos essenciais para compor a decisão final;

e) Fundamento da decisão - parte integrante do processo equitativo;

f) Prazo razoável- para tudo: estudar os documentos, dar respostas, etc. Não dar um prazo violável viola

o processo equitativo;

g) Publicidade- procedimentos secretos é tudo menos um procedimento equitativo. A transparência e

clareza são dadas pela publicidade;

h) Acesso à justiça- a melhor garantia de um justo procedimento é a faculdade de “bater à porta” de um

tribunal.

Conclui-se então, o porquê de o princípio em causa ter começado por ser um princípio geral e, ser agora, um

direito fundamental. Sem um procedimento equitativo, não haverá efetiva vinculação administrativa ao

princípio da justiça, tal como o art. 266º/2 CRP estipula.

A violação do princípio do procedimento equitativo, traduzindo-se na ofensa ao direito fundamental a um

procedimento equitativo, mostra-se suscetível de, sem prejuízo de responsabilidade civil por danos morais,

gerar um efeito invalidante das respetivas condutas administrativas: se essa violação atingir o “conteúdo

essencial” do direito fundamental, a lei determina a nulidade do ato jurídico.

2. Princípio da Adequação Procedimental- art. 56º CPA

Significa que as normas do procedimento têm de ter flexibilidade, têm de poder ser adaptadas a cada fim do

procedimento. Significa instrumentalidade das normas do procedimento. Este princípio procura respeitar

quatro ideias:

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1. Participação;

2. Eficiência;

3. Economicidade;

4. Celeridade.

Este princípio revela-se instrumental e garantístico de um procedimento equitativo: a adequação

procedimental existe ao serviço do devido procedimento legal ou de um modelo de procedimento justo e

equitativo.

O responsável pela direção do procedimento encontra-se vinculado a exercer os seus poderes discricionários

no sentido de estruturar o procedimento administrativo visando a busca da melhor solução ou daquela que

se revele mais adequada, idónea e justa ao fim decisório em causa.

Notas:

a) O erro no procedimento: uma falsa representação da adequação do procedimento ao propósito, o

escolher o procedimento que não é o mais idóneo.

b) Desvio de poder no procedimento: significa que se alcança um propósito que não é permitido através

da instrumentalização do procedimento. Por exemplo, imagine-se que por lei não é permitido o

despedimento de funcionários públicos; se eu não despedir, mas extinguir o serviço, com o propósito

de pôr termo aos contratos de trabalho subjacentes, estou a utilizar um procedimento para alcançar

um fim que é diferente do previsto pela lei.

3. Princípio do Inquisitório- art. 58º CPA

A distinção entre a função administrativa e a função jurisdicional é que a função administrativa toma a

iniciativa, não tem como característica a passividade. Ao contrário dos juízes, que apenas decidem os casos

que lhes são submetidos, a Administração caracteriza-se pela possibilidade de não aguardar pela participação

dos administrados, pode ela mesma desencadear diligências para apurar a factos, cujo conhecimento seja

necessário e adequado à tomada de decisão. Não tem de aguardar pelo que se chama princípio do dispositivo.

Para além disto, pode ainda recorrer a todos os meios de prova admitidos em Direito.

O princípio do inquisitório, reforçando a centralidade das estruturas administrativas na instrução (fase de

apuramento de factos), confere-lhes uma dupla competência:

a) Poder de definir o início do procedimento e/ou de dirigir a sua tramitação- dimensão formal do

princípio do inquisitório;

b) Poder de conhecer, selecionar, valorar e ponderar o material instrutório apurado- dimensão material

do princípio do inquisitório.

Limites deste princípio:

a) A intervenção do órgão instrutor tem de se mostrar idónea e adequada face ao propósito da sua

atuação, não podendo revelar-se excessiva (art. 58º CPA), nem violadora dos limites decorrentes do

art. 117º/2 CPA;

b) A intervenção deve conformar-se com o propósito de um procedimento justo, visando a tomada de

uma decisão legal e dentro de um prazo razoável- art. 115º/1;

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c) Salvo tratando-se de factos notórios (art. 115º/2 CPA) ou daqueles cujo responsável do procedimento

tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções (art. 115º/3), não pode o instrutor

substituir-se aos interessados na prova de factos que estes tenham alegado- art. 116º/1;

d) No âmbito de procedimentos desencadeados pelos cidadãos, a intervenção decisória da

Administração apenas pode incidir sobre coisa diferente ou mais ampla do que a pedida se existirem

motivos de interesse público justificativos- art. 13º/3 CPA.

A distinção entre a função administrativa e jurisdicional é relevante ao nível dos concursos públicos

académicos: os membros do júri devem estar limitados às informações que os candidatos apresentam

(princípio do dispositivo), ou devem utilizar conhecimentos que têm sobre os candidatos mas que eles

omitiram nos CV (princípio do inquisitório). Ex: normalmente os regulamentos destes concursos dizem que

compete ao candidato dizer as 5 obras que devem ser avaliadas: o júri pode autonomamente tomar em

consideração outras obras que o candidato não mencionou?

Por um lado, isto pode beneficiar o candidato, na medida em que este era distraído e se esqueceu de

mencionar obras de que é autor. Mas por outro lado, pode haver contrainteressados, que vêm defender que

o candidato não deve ser avaliado por aquilo que não apresentou.

Assim, se o júri tomar em consideração uma obra que o candidato não mencionou e alguém decide que isso

não é válido, isso irá viciar a decisão final. Como resolver? O elemento probatório é, portanto, o alicerce de

qualquer decisão administrativa. Todas as decisões administrativas são baseadas numa realidade factual.

E como se faz a prova? O art. 115º CPA dispõe que em Direito Administrativo são admissíveis todos os meios

de prova permitidos pelo Direito. Quem formula a acusação é que tem de provar que a outra pessoa cometeu

determinada infração, sendo que a pessoa que está a ser acusada tem direito a refutar as ditas provas e a

provar a sua inocência.

A própria Administração, como dispõe o art. 117º, pode solicitar provas. E há ainda ónus, como dispõe o art.

116º.

Livre convicção do decisor- não basta utilizar os meios de prova, é também necessário a apreciação da prova,

que está sujeita ao princípio da livre apreciação:

i. O decisor administrativo pode apreciar livremente a admissibilidade e o valor em concreto das

provas recolhidas, tendo em consideração a sua atendibilidade e a sua concludência face às

circunstâncias, assim como pode, à luz do seu próprio critério, conferir prevalência a uma prova em

detrimento de outra;

ii. Há aqui um apelo à íntima convicção do decisor, alicerçada no material probatório recolhido, numa

valoração racional e crítica, à luz de regras de lógica, de máximas de experiência e do saber científico,

num propósito de alcançar a verdade material.

Convém referir que nem todos os meios de prova têm o mesmo peso, daí que o decisor possa apreciar

livremente- liberdade probatória- através de um juízo de ponderação na apreciação dos dados sempre tendo

como fim o encontrar uma decisão justa.

Note-se que a livre apreciação da prova não se reconduz à discricionariedade administrativa:

a. Não há aqui qualquer escolha entre duas ou mais soluções legalmente possíveis, antes existe um juízo

que envolve uma operação intelectual de natureza subjetivo-valorativa ou técnico-valorativa;

b. Fala-se, neste contexto, em “liberdade probatória”, que se mostra um conceito operativo em toda a

atuação administrativa: trata-se de uma “liberdade de apreciação e fixação de factos”, sem envolver

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“a escolha de uma entre várias decisões possíveis”, mas antes vinculada a escolher a solução justa,

segundo o prudente juízo do decisor;

c. A liberdade probatória, sem ser uma verdadeira liberdade, reconduz-se a uma ponderação valorativa

probatória a cargo da Administração Pública.

O ideal é que a verdade procedimental seja igual à verdade real, mas nem sempre isso acontece. Podem dar-

se como provados factos que não ocorreram e dar-se como não provados factos que realmente aconteceram.

Cada vez há mais problemas no Estado Preventivo, aquele que antecipa riscos, que procura antecipadamente

combater os danos e perigos que antecipa. O princípio da precaução conduz a que muitas vezes, ante a

natureza perigosa ou potencialmente perigosa de determinada conduta, tenham de se tomar medidas. Ex:

riscos para a saúde decorrentes de determinado tipo de medicamentos; não é preciso que se prove que o

medicamento provocou um determinado dano para que seja retirado do mercado.

Inversão do ónus- a Administração não terá o ónus de provar que aquela atuação é perigosa, podendo atuar

como medida de precaução. Devolve para os interessados o ónus a demonstrar que assim não sucede.

4. Princípio da Colaboração- art. 11º CPA

A colaboração procedimental entre todos os intervenientes, visando obter, dentro de um propósito de

brevidade e eficácia, a decisão final, podendo falar-se no procedimento como uma “comunidade de trabalho”,

desdobra-se em três mecanismos de colaboração :

- Colaboração da Administração com os particulares- art. 60º e 11º;

- Colaboração dos particulares com a Administração- art. 60º;

Três deveres:

1. Dever de legalidade- a intervenção procedimental dos interessados insere-se num contexto de

“obtenção de decisões legais e justas”, motivo pelo qual não deverão formular pretensões ilegais ou

contrárias à justiça.

2. Dever de veracidade- os particulares só devem colaborar com base na veracidade e devem promover

o esclarecimento dos factos e a descoberta da verdade.

3. Dever de eficiência- os interessados estão obrigados a não requerer diligências inúteis ou recorrer a

expedientes dilatórios, visando que a instrução e a decisão ocorram num prazo razoável.

- Colaboração entre os órgãos da Administração- art. 66º.

5. Princípio da Preferência pela Utilização dos Meios Eletrónicos- art. 61º CPA

A instrução dos procedimentos deve ser feita, preferencialmente, através de meios eletrónicos, visando um

aumento das garantias, uma melhor acessibilidade, mais eficiência e maior celeridade.

Não pode levar a uma situação de desigualdade entre quem domina os meios eletrónicos e quem não domina.

6. Princípio da Participação dos Interessados- art. 267º CRP

É expressão de um modelo democrático de Administração Pública alicerçado na cidadania administrativa e

traduz uma exigência do procedimento regulamentar e também dos atos administrativos, sendo essa

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participação garantida nos contratos através da sua sujeição a procedimentos administrativos concursais.

Concretiza princípios constitucionais. Esta participação pode ser individual (uma ou várias pessoas

individualmente consideradas) ou coletiva (associações, ex: ordem dos advogados).

A participação é uma manifestação de colaboração, pode ser uma expressão do direito ao contraditório (sendo

aqui um direito fundamental).

A participação procedimental dos interessados assume ainda a natureza de princípio geral do agir

administrativo, sujeitando a conduta da Administração a um duplo dever:

a) O dever de colaborar no sentido de garantir uma efetiva participação aos interessados: prestando

informações, apoiando e estimulando as iniciativas, sugestões e informações dos particulares;

b) O dever de audiência prévia (art. 12º CPA), envolvendo a obrigação de ponderar os interesses e a

factualidade que os interessados “transportam” para o procedimento, à luz da prossecução do

interesse público e das coordenadas de um procedimento equitativo.

7. Princípio da Boa Administração- art. 5º CPA

Boa administração tanto pode ser quanto a uma boa decisão final- vertente substantiva da administração-

ou quanto ao caminho- vertente procedimental da administração.

A boa administração encontra-se hoje, por força do art. 41º Carta dos Direitos Fundamentais da UE,

subjetivada, falando-se num “direito a uma boa administração”, o qual envolve a noção de procedimento

equitativo:

i) Postula uma dimensão procedimental do agir administrativo que garanta o direito fundamental a um

procedimento equitativo;

ii) Uma conduta procedimental atentatória da boa administração, sendo passível de lesar os princípios

da equidade, imparcialidade, celeridade, contraditório, fundamentação, transparência e publicidade,

pode bem consubstanciar-se numa simultânea violação de direitos fundamentais.

Concretiza-se em:

o Desburocratização- simplicidade e simplificação de atos e de trâmites procedimentais;

o Eficiência- ótima utilização dos meios, uma maximização dos resultados;

o Economicidade- exige o mínimo de custos e o máximo de vantagens;

o Celeridade- apelo à razoabilidade de prazos de decisão;

o Aproximação dos serviços às populações.

Art. 77º a 81º- mecanismos que visam reunir os órgãos decisores ad hoc nas conferências procedimentais.

8. Princípio da Decisão- art. 13º/1 CPA

Toda a pretensão que for dirigida à Administração merece uma resposta. É uma consequência do princípio da

participação: não teria utilidade se todos pudessemos participar e a Administração olhasse para o lado.

Alicerça-se numa postura de respeito administrativo pelos seus interlocutores, expressão do entendimento

de que se está perante cidadãos e não súbditos ou simples administrados.

Este princípio não implica o direito a uma decisão favorável, significa apenas o direito a uma resposta.

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Corresponde a um direito fundamental de todos os cidadãos, que resulta do art. 268º/6 da CRP e

implicitamente do 52º/1 CRP.

Tipos de decisão que podem existir:

i. Decisão de rejeição liminar ou indeferimento liminar- a Administração nem olha para o conteúdo do

que se pede, nem se vai pronunciar sobre o que é pedido. Ex: quando um pedido de revisão é

apresentado extemporaneamente ou quando o pedido formulado por A relativamente a saber as

notas de B.

ii. Solicitar o aperfeiçoamento- antes de apreciar o conteúdo pedido, solicita a legitimidade de tal

pedido.

iii. Pronuncia-se sobre o conteúdo do pedido, deferindo ou indeferindo o pedido.

Há ainda casos em que o pedido foi feito a órgão incompetente, sendo que a AP deve informar o requerente

que remeteu o pedido para o órgão competente; e casos em que há um dever de informar que não existe o

dever de decidir (art. 13º/2).

O direito a obter uma resposta da Administração Pública tem sempre como referência um prazo razoável de

decisão:

a) Um atraso injustificado de resposta equivale a uma recusa de decisão;

b) A exigência de que as decisões administrativas sejam proferidas num prazo razoável é hoje, por força

do art. 41º CDFUE, um direito fundamental.

9. Princípio do Caso Decidido (ou Julgado) Administrativo

As decisões administrativas que põem termo ao procedimento são modificáveis ou imodificáveis? Quando a

Administração decide um caso concreto, essa sua decisão que põe termo ao procedimento, não pode voltar a

ser discutida, formando caso decidido administrativo; ou, pelo contrário, as decisões podem sempre ser

modificadas?

Estão em causa dois princípios: o da tutela da confiança e da segurança jurídica (que apontam para a

imodificabilidade) e o da melhor prossecução do interesse público (que aponta para a modificabilidade).

É importante ter em conta:

1. Se a imodificabilidade da decisão se refere apenas a questões de índole procedimental ou processual,

sem ter que ver com o conteúdo do ato, numa situação de impossbilidade de o ato ser impugnado,

envolvendo apenas as partes desse mesmo procedimento em concreto, diz-se que estamos diante de

um caso decidido formal.

2. Se a imodificabilidade da decisão diz respeito à relação material ou substantiva subjacente, incidindo

sobre o conteúdo do ato, numa eficácia que extravasa o procedimento em que foi proferida,

assumindo uma natureza erga omnes, deparamos com um caso decidido material.

Então, podem as decisões administrativas resistir a futuras decisões contrárias? Podem ser revogadas ou

anuladas pela própria Administração? Se a resposta for não, então há imodificabilidade e caso decidido

administrativo. À luz da conceção tradicional, o caso decidido ocorre sempre que, precludido o prazo para as

decisões administrativas serem objeto de impugnação, o tribunal (ou a própria Administração) deixe de as

poder remover da OJ: a partir de tal momento, as decisões administrativas seriam imodificáveis.

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Para responder à questão, há uma distinção que é essencial: O ato administrativo constitui direitos ou não?

Porque se constitui direitos e estes foram constituídos validamente, a regra no direito português é a sua

imodificabilidade, exceto casos de concordância do interessado.

Mas se o ato administrativo não constitui direitos, se está em causa situações de facto, e se essa situação

variar, poderá haver modificabilidade da decisão; mas se a situação de facto é invariável, reportada ao

passado e insuscetível de ser alterada no futuro, a regra é a de que a decisão administrativa é imodificável e

formou caso decidido.

Por exemplo, A termina a licenciatura pela feitura da última cadeira. A feitura da última cadeira leva à

licenciatura e, a partir desse momento, A tem uma situação de facto imodificável.

10. Princípio da Administração Aberta- art. 17º/1 CPA

Significa uma Administração visível e transparente. O art. 17º/1 CPA, seguindo o postulado pelo art. 268º/2

CRP, reconduz a administração aberta ao direito que os cidadãos têm de acesso aos arquivos e aos registos

administrativos, assim como direito a uma cópia desses documentos, procurando inteirar-se da atividade

desenvolvida pelas estruturas administrativas.

Este princípio tem limites, como a segurança, o segredo de Estado ou a investigação criminal, o sigilo fiscal e

a privacidade das pessoas.

Ex: num concurso público aparecem 3 candidatos para uma vaga. Esses 3 são avaliados: pode o candidato A

tomar conhecimento da avaliação de B, nomeadamente para averiguar se foi respeitada a imparcialidade?

Haverá aqui um princípio de transparência?

11. Princípio da Gratuitidade do Procedimento Administrativo- art. 15º/1 CPA

Por via de regra, o procedimento administrativo é gratuito, salvo se a lei impuser o pagamento de taxas por

despesas, encargos ou outros custos suportados pela Administração: esse é o alcance imediato do art. 15º/1.

Noutro sentido, o mesmo artigo permite extrair a criação de um princípio geral de reserva de lei na derrogação

ao postulado da gratuitidade:

i. Se não existirem leis especiais a prever o pagamento de taxas ou outras despesas decorrentes do

procedimento administrativo, nenhum regulamento as poderá criar;

ii. Quaisquer atos que criem a obrigação de pagamento de uma taxa ou qualquer despesa

procedimental, sem estar prevista em lei, são nulos- art. 161º/2 k).

12. Princípio do Uso da Língua Portuguesa- art. 54º CPA

O art. 54º impõe o uso da língua portuguesa, o que traduz um elemento concretizador da identidade cultural

prevista na Constituição.

Se as entidades públicas impuserem, na sua relação com os cidadãos, a língua estrangeira, essa atitude é

inválida e qualquer decisão administrativa dela emergente também será inválida.

Será, então, admissível que uma faculdade possa lecionar em língua inglesa uma cadeira de direito português

a alunos portugueses? Claramente que não.

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Outra questão relevante é a do acordo ortográfico e se alguém poderá ser penalizado por não utilizar o acordo

ortográfico.

13. Princípio da Cooperação Leal na UE- art. 19º CPA

Tendo a sua fonte no Tratado da UE, o princípio da cooperação leal vincula a Administração Pública portuguesa

a relacionar-se com a Administração dos outros Estados-membros e, por identidade de razão, com a

Administração da própria UE, dentro do prazo que tenha sido estabelecido ou, na sua falta, dentro do prazo

razoável a uma cooperação leal.

A cooperação leal pode envolver a prestação de informações, o apresentar de propostas ou quaisquer outras

formas de colaboração entre as Administrações públicas da UE e dos restantes Estados, devendo o seu

conteúdo ser densificado, interpretado e integrado de harmonia com o Direito da UE.

$ Princípio Exceção do Procedimento Administrativo: o Estado de Necessidade Administrativa

O princípio exceção signfica que aquilo que é a legalidade normal seja afastada por circunstâncias excecionais

e imprevisíveis, passíveis de suscitar perigos, ameaças ou lesões a pessoas, bens ou instituições e que

requerem a necessidade e a urgência de medidas administrativas tendentes a defender, conservar ou fazer

cessar tais ameaças, sendo para tal indispensável usar uma legalidade excecional ou extraordinária- Estado

de Necessidade Administrativa, art. 3º/2 CPA. Este estado tanto pode justificar a derrogação das regras

procedimentais, como também pode justificar que o conteúdo das decisões seja contrário ao da legalidade

normal.

Pressupostos do Estado de Necessidade Administrativa:

1. Existência de circunstâncias de facto extraordinárias- é relevante para a Administração agir e para os

tribunais ajuizarem sobre a atuação da Administração, na medida em que tem obrigatoriamente de

haver esta circunstancialidade extraordinária;

2. Ameaça ou efetivo perigo de dano a bens ou interesses essenciais da coletividade- ou seja, “perigo

iminente e atual”;

3. Tem de se demonstrar que é indispensável- tem de se demonstrar que é urgente a atuação;

4. A intervenção administrativa só pode ser feita pelo afastar das regras procedimentais normalmente

aplicadas à Administração Pública- levanta a questão: pode afastar tudo ou há limites?

Uma coisa é preterir as regras do caminho (regras procedimentais), outra coisa é preterir as regras do

resultado. É a primeira que nos interessa.

A falta de qualquer um dos pressupostos determina a ausência de fundamento legal justificativo do recurso à

figura do estado de necessidade administrativa e a consequente invalidade da sua invocação ou utilização

como habilitação de um agir administrativo contra legem.

Há, no Estado de Necessidade, um juízo de prognose feito pela Administração Pública que envolve uma

metódica ponderativa pautada pelos postulados de adequação e necessidade entre meios e fins.

O Estado de Necessidade Administrativa pode ocorrer em vários cenários:

1. Quando há estado de exceção constitucional- nestes casos, o Estado de Necessidade Administrativa é

absorvido pela figura mais importante que é o Estado de Sítio ou de Emergência;

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2. Quando há um clima de grave anomalia constitucional, passível de conduzir a uma situação de estado

de sítio, se que tenha existido, contudo, declaração formal nesse sentido;

3. Quando há estado de emergência económico-financeira;

4. Sem qualquer situação (declarada ou material) de estado de exceção constitucional ou de emergência

financeira- fala-se aqui em estado de necessidade tout court.

O estado de necessidade procedimental habilita também a derrogação de normas jurídico-positivas de

competência, permitindo, atendendo à essencialidade dos bens ou interesses materiais em perigo, que órgãos

normalmente incompetentes se substituam aos órgãos normalmente competentes para a prática dos atos

que a necessidade e a urgência impõem- substituição extraordinária.

NOTA: a Administração tem de fazer um juízo:

a) De ponderação: o grave risco de perigo ou dano justifica que se afastem as normas legais

normalmente aplicáveis?

b) De prognose: ao afastar as normas legais, consegue efetivamente evitar-se o perigo?

c) De adequação.

Há três limites intransponíveis:

1. O Estado de Necessidade Administrativa tem de respeitar o procedimento legalmente previsto,

mesmo que não na sua totalidade;

2. Respeito pelos princípios gerais da atuação administrativa, nomeadamente o da igualdade, o da

proporcionalidade, o da imparcialidade e o da boa fé;

3. Respeito pelos preceitos do CPA que concretizam esses mesmos princípios.

Toda a atuação administrativa está sujeita a controlo judicial, mesmo em casos de Estado de Necessidade

Administrativa.

→ Natureza do Estado de Necessidade Administrativa: estamos perante uma legalidade alternativa.

Estamos não perante uma exceção à legalidade, mas sim perante uma legalidade excecional.

Princípios Materiais do Procedimento Administrativo

Há uns que estão expressamente formulados na CRP e outros que não estão. Vamos atentar sobre os

segundos.

1. Princípio da Proibição do Arbítrio

Em Direito Público, arbitrário é tudo aquilo que se revela decidido com desprezo patente e manifesto pelo

Direito e pela justiça: normalmente, diz-se que a decisão arbitrária é sempre violadora do princípio da

igualdade. PO discorda, afirmando que há casos em que assim não sucede. Por exemplo, estabelece-se que

todos os alunos que façam prova oral sem utilizar gravata estão reprovados; se o Prof. reprovasse todos os

alunos que não levassem gravata, estaria a respeitar o princípio da igualdade. Contudo, esta não deixa de ser

uma decisão arbitrária, uma vez que a roupa que o aluno veste em nada tem a ver com os seus conhecimentos

sobre a cadeira.

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A qualificação de uma decisão como arbitrária não exige, todavia, consciência da violação da juridicidade,

sendo certo que todas as decisões arbitrárias são ilegais, mas nem todas as decisões ilegais são arbitrárias, há

ainda que distinguir:

a) A arbitrariedade pode localizar-se na própria norma legal que a Administração é chamada a aplicar,

falando-se aqui em arbitrariedade derivada ou consequente;

b) Ou a arbitrariedade pode ser o resultado autónomo de uma decisão administrativa, sem que as

normas que a habilitam ou conformam sejam arbitrárias, falando-se agora em arbitrariedade

originária ou própria.

2. Princípio da Concorrência

A concorrência, sendo um conceito de origem económica relacionado com a livre entrada de novos agentes

no mercado, a sua atomicidade ao nível da formação de preços e a transparência da informação, não

circunscreve a sua operatividade ao domínio exclusivamente económico: o princípio da concorrência apela às

ideias de:

o Liberdade de exercício de uma atividade;

o Não discriminação de de condições de acesso e de tratamento entre os intervenientes;

o Conhecimento de toda a informação por todos os intervenientes.

Este princípio é hoje um referencial axiológico emergente da Constituição e do Direito da UE, segundo decorre

do espírito do sistema de uma economia social de mercado, visando a criação e o funcionamento do mercado

interno europeu.

Este princípio goza de uma operatividade que, sem se limitar ao agir administrativo nas suas relações com os

cidadãos, se projeta, igualmente ao nível das relações que, regidas pelo Direito Privado, os particulares

estabelecem entre si.

A defesa da concorrência visa impedir situações de vantagem injustificada entre concorrentes que se

encontram numa situação lícita, proibindo condutas e impondo comportamentos à Administração Pública:

proteger e promover a concorrência é hoje um interesse público a cargo da Administração.

Sempre que está em causa a atribuição pela Administração de um bem que é escasso, porque não é apto à

satisfação da generalidade, a Administração deve exigir concorrência entre os potenciais interessados, deve

abrir um procedimento concursal, para garantir que todos têm condições idênticas de acesso. Este

procedimento exige:

✓ Publicidade;

✓ Igualdade de oportunidades no acesso dos cidadãos;

✓ Proibição de obstáculos à livre concorrência;

✓ Proibição de favorecimento indevido ou de preferência discriminatória entre concorrentes;

✓ Uma avaliação com base na concorrência pelo mérito;

✓ Proibição genérica de alteração das propostas;

✓ Acesso dos interessados à informação.

A concorrência passa também por limitações à margem de autonomia decisória em serem concedidos auxílios

que, direta ou indiretamente, falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou

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certas produções, assim como se encontra vedada a utilização de instrumentos fiscais tendentes a favorecer

ou proteger produtos nacionais face a produtos similares provenientes de outros Estados-membros da UE.

3. Princípio da Ponderação

Numa Administração pautada por critérios decisórios alicerçados em princípios, num cenário crescente de

normatividade principialista, tendo de gerir interesses pretensivos e opositivos num contexto de escassez de

recursos, a ponderação surge como metodologia procedimental de decisão e conteúdo ou resultado decisório

final.

A ponderação pode ocorrer, assim, em dois momentos:

1. Uma metodologia decisória- um caminho para decidir. Isto porque há necessidade de se articularem

diversas normas, de pôr estas normas a testemunhar sobre um determinado caso.

2. Conteúdo ou resultado final da decisão- hoje há uma estrutura multinível no âmbito da atuação do

poder. O fundamento do princípio da ponderação decorre da natureza compromissória das normas

constitucionais e da sua aplicação, assim como das normas internacionais e do Direito da União

Europeia.

Noutro sentido, pode dizer-se que o princípio da ponderação se alicerça nos princípios da juridicidade e da

proteção da confiança ao nível das legítimas expectativas, havendo até quem fale em “princípio da justa

ponderação”.

Três ideias em relação à ponderação, que traduzem vicissitudes na ponderação:

a) Recusa de ponderação- há uma norma que, expressa ou implicitamente, impõe a ponderação, mas a

Administração recusa a ponderação. Se a Administração se recusa a ponderar, incorre em violação da

lei.

b) Erro sobre a ponderação- pode ser dois tipos de erro: (i) a Administração pensa que não tem de

ponderar, mas tem; (ii) erro sobre o conteúdo da ponderação: pensa que tem de ponderar A com B,

mas tem de ponderar B com C.

c) Omissão de ponderar- a Administração nem se apercebe que tem de ponderar, não há uma violação

direta. Pura e simplesmente, a Administração nem tem consciência de que tinha de ponderar. Neste

caso, há uma violação omissiva da lei.

Em qualquer uma destas hipóteses, a decisão administrativa encontra-se viciada, sendo passível de controlo

administrativo e judicial o procedimento de ponderação e o resultado da ponderação.

Duas dimensões da ponderação:

a) A ponderação pode ser feita pelo próprio legislador- ex: o art. 163º/5: o ato é anulável mas deixa de

se produzir efeito anulatório. É o legislador que faz a ponderação, a Administração apenas tem de

cumprir.

b) A ponderação pode ser feita pela própria Administração- ex: art. 162º/3: possibilidade de, em certos

casos de atos nulos, a Administração reconhecer alguns efeitos. Aqui a ponderação é remetida pelo

legislador para ponderação Administrativa.

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4. Princípio da Atendibilidade da Situação Factual

A factualidade, além de possuir uma intrínseca função genética de novas pautas paramétricas de conduta (ex:

o costume, o uso, o precedente) – incluindo de fontes formais da legalidade jurídico-positiva, por captação de

impulsos sociais -, ajuda sempre a interpretar e aplicar as normas jurídicas, assim como a compreender as

instituições jurídicas: a dinâmica dos factos, fazendo emergir verdadeiras “imposições fáticas”, molda também

o Direito Administrativo e, em especial, o procedimento administrativo.

Todo o agir administrativo assenta numa determinada factualidade, projeta efeitos sobre situações de facto e

torna-se, ele próprio (o agir), um facto:

a) A factualidade subjacente à atuação administrativa configura-se, juridicamente, como pressuposto do

seu agir, tenha como referência factos passados ou presentes ou envolva ainda um juízo de prognose

relativamente a factos futuros;

b) As situações factuais sofrem os efeitos das ações ou das omissões administrativas, tenham estas uma

natureza jurídica ou material;

c) Toda a ação ou omissão administrativa é sempre, em si e por si, um facto integrante do mundo da

factualidade jurídica.

A atendibilidade das situações de facto como fundamento do agir administrativo justifica a atenção que a OJ

confere à fase da instrução dos procedimentos (arts. 115º a 120º), num propósito de recolha e prova dos

factos e interesses habilitantes da preparação configurativa do conteúdo de uma decisão a tomar.

São, portanto, as circunstâncias de facto que estão na base da decisão administrativa.

o Alteração de circunstâncias de facto- pode conduzir a uma modificação da disciplina jurídica de uma

situação.

o Erro nos pressupostos- tenho uma determinada configuração da realidade, mas essa configuração é

uma falsa representação da realidade. Vai viciar a decisão.

o Projeção dos próprios factos no conteúdo da decisão- os factos podem funcionar como parâmetro da

decisão. Ex: o princípio da igualdade- só sei se uma decisão viola o princípio da igualdade se comparar

duas situações factuais; arbitrariedade- só sei se uma decisão é arbitrária consoante a situação factual

à qual a arbitrariedade é aplicada; precedente- só sei se há precedente se analisar a factualidade

subjacente a cada uma das decisões.

Uma incompleta recolha dos elementos factuais ou uma deficiente ponderação dos factos relevantes,

levantando dúvidas sobre os próprios pressupostos de facto de uma determinada conduta administrativa,

atinge o núcleo do princípio da imparcialidade, levando à sua invalidade.

A atendibilidade das situações de facto como parâmetro decisório habilita a ter em consideração o seguinte:

a) Os precedentes administrativos relativamente à decisão de situações concretas (presentes ou futuras)

factualmente idênticas e no âmbito da vigência do mesmo quadro normativo;

b) A relevância dos postulados da adequação, necessidade e razoabilidade na conformação da decisão

faz-se à luz da situação de facto subjacente;

c) A vinculação material ao princípio da boa administração atende aos potenciais efeitos da decisão a

adotar, num juízo de prognose, face à realidade factual envolvida.

Saber se os factos são ou não atendíveis não é uma questão de facto, é uma questão de Direito.

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5. Princípio da Sustentabilidade

Este princípio diz-nos que o agir administrativo, apesar de ter como referencial decisório e de produção de

efeitos o tempo presente, nunca pode deixar de ponderar, à luz de um juízo de prognose, os efeitos no futuro

e, num propósito de acautelar as gerações futuras, deve ter o seu conteúdo ajustado em conformidade- aqui

se expressa a designada administração de preservação ou administração preventiva.

É a consequência do desenvolvimento científico e tecnológico que permite antecipar factos futuros; e do valor

jurídico-constitucional que têm hoje as gerações futuras: a preservação intergeracional dos recursos, por um

lado, e o princípio do desenvolvimento, por outro, equacionam a projeção dos efeitos no futuro.

Subjacente ao princípio da sustentabilidade está uma afirmação de responsabilidade administrativa

direcionada para o futuro, falando-se em justiça intergeracional ou princípio material de quidade

intergeracional.

Haverá violação do princípio da sustentabilidade, por omissão, desde logo se a Administração não proceder a

qualquer ponderação sobre os efeitos previsíveis de uma sua conduta em termos de preservação

intergeracional de recursos, alheando-se da existência de tais interesses ou, tendo consciência da sua

presença, recusar-lhes qualquer relevância ponderativa.

Mostra-se mesmo possível formular um postulado de necessidade justificativa de qualquer retrocesso quanto

ao nível de proteção já alcançado, retirando-se ao decisor (legislador e administrativo) a discricionariedade ou

liberdade conformadora de conteúdos de decisão em sentido diminuidor da proteção existente, vinculando

qualquer reversibilidade de soluções a uma justificação pautada pelas vertentes do princípio da

proporcionalidade.

A sustentabilidade das decisões administrativas pode ser um problema:

o Originário- a sustentabilidade serve de pressuposto aferidor da viabilidade e, nesse sentido, da

própria legalidade das decisões administrativas a adotar;

o Superveniente- um novo juízo de sustentabilidade decorrente de novos conhecimentos técnicos e

científicos pode habilitar a revogação de decisões tomadas à luz de um diferente pressuposto de

sustentabilidade- art. 167º/2 c).

6. Princípio da Precaução

Parte da verificação da seguinte realidade: a sociedade atual é uma sociedade de múltiplos riscos e, por isso,

a Administração deve, no âmbito de um Estado interventivo e social, agir no sentido de prevenir, atenuar os

riscos. O valor segurança ganha hoje um relevo que era insuspeito há 20 ou 30 anos atrás.

A segurança determina que a Administração, perante situações de risco, não possa ficar parada- proíbe a

omissão:

Na área da saúde pública;

Na área da alimentação- saber se determinado alimento tem ou não toxinas que possam prejudicar a

saúde conduz a que a Administração proíba a importação deste ou daquele bem;

A preocupação com os medicamentos- basta ter uma suspeita de que a utilização de determinado

medicamente tem determinado efeito secundário prejudicial, para que deva suspender a importação

ou até a comercialização do medicamento.

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O princípio da precaução mostra-se, assim, passível de ser formulado nos seguintes termos: sempre que

existam riscos potenciais ou efetivos passíveis de lesar interesses da coletividade, a Administração Pública

encontra-se adstrita a adotar as medidas apropriadas ou adequadas a evitar ou minorar os seus possíveis

efeitos.

Se a Administração não acautelar o princípio da precaução e daí resultarem danos, é a própria Administração

que irá suportar esses danos.

Assim, temos assistido a uma transição do Estado Social para o Estado Preventivo. A Administração passa a

ter um dever novo: o de prever e antecipar riscos.

As providências administrativas fundadas no princípio da precaução comportam diversas particularidades:

a) São medidas administrativas que se podem basear em condições de incerteza, sem que sejam

inteiramente evidentes as relações entre a situação potencialmente de risco, a sua configuração exata

e os seus efeitos danosos a prevenir;

b) Poderá mesmo não existir conhecimento suficiente ou consenso na comunidade científica sobre os

fenómenos geradores de risco e os seus potenciais ou previsíveis efeitos danosos;

c) Dominadas pela prudência, estas decisões administrativas devem alicerçar-se nos conhecimentos

científicos e técnicos que se encontrem disponíveis à data ou, no limite, naqueles que mereçam maior

reconhecimento atual pela comunidade científica e técnica. Compreende-se, assim, que a

superveniência de melhores conhecimentos gere a revogabilidade de tais decisões.

Quais são as consequências procedimentais?

Inversão do ónus da prova- quem alega um facto, compete-lhe a prova desse facto. Contudo, pode ocorrer

que nestas áreas de preocupação se inverta o ónus da prova porque é possível a presunção de certas condutas

como condutas que envolvem o risco de gerar danos que, em nome do interesse público, importa evitar. Ex:

basta a dúvida quanto a um efeito secundário de um medicamento que possa ser nocivo para que se possa

impedir a circulação desse medicamento: passará a caber ao comerciante desse medicamento ilidir essa

presunção. Outro ex: quem viaja para a Síria, goza da presunção de que vai para lá não para fazer coisas boas,

mas para pôr em causa a segurança nacional.

7. Princípio (material) da Boa Administração

Independentemente da sua projeção procedimental, a dimensão material ou substancial do princípio da boa

administração diz-nos que o conteúdo das decisões administrativas não se basta com uma qualquer

prossecução do interesse público, antes exige uma conduta eficiente, dotada de economicidade, revelando-

se apta a alcançar a melhor solução, à luz de uma prossecução ótima do interesse público.

A boa administração, determinando a subordinação do agir administrativo a pautas normativas extrajurídicas,

numa aproximação metodológica da gestão dos recursos públicos aos critérios de gestão de empresas

privadas, envolve dois diferentes juízos avaliativos, em dois momentos distintos:

i) Pressupõe um relacionamento entre os objetivos fixados, os meios usados e os resultados esperados,

num juízo a priori sobre o mérito das medidas a adotar, que, socorrendo-se dos postulados da

adequação ou do balanço custos/vantagens, usa a proporcionalidade ao serviço da boa administração;

j) Acarreta, agora num juízo a posteriori, um confronto entre os objetivos iniciais, os meios usados e os

resultados alcançados pelas soluções decisórias adotadas, podendo as decisões e os efeitos da sua

execução mostrar-se desproporcionadas (por desadequação, inutilidade, excesso ou defeito) e, neste

sentido, o seu mérito ser atentatório da boa administração.

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A aferição da boa administração assenta, em qualquer caso, num juízo ponderativo que usa o princípio da

proporcionalidade como instrumento determinativo da diligência ou acerto do mérito da conduta

administrativa, em termos de eficiência e economicidade das soluções.

A violação do princípio da boa administração, desde que aferida à luz dos postulados da proporcionalidade,

determinando decisões administrativas carecidas de mérito, mostra-se passível de controlo judicial.

O mérito tornou-se, assim, indiretamente, por força da boa administração, uma questão de legalidade.

Contudo, essa intervenção dos tribunais, sempre feita no respeito pela separação de poderes, nunca pode

envolver o exercício de um poder judicial substitutivo da esfera decisória reservada à Administração Pública.

8. Princípio da Moralidade Administrativa

Significa, em primeiro lugar, que a Administração não pode adotar condutas violadoras dos bons costumes,

enquanto expressão de um princípio geral de direito ou de moralidade pública. Significa a vinculação da

Administração à honestidade e à seriedade, incluindo o dever de respeitar a palavra dada, honrando as

promessas feitas; a submissão da Administração a uma ética de serviço público, incluindo o dever de lealdade.

A violação de pautas de honestidade e seriedade do agir administrativo, sendo passível de assumir relevância

criminal por vantagem indevida que envolveu a favor do funcionário público ou, em alternativa, pelo prejuízo

que comportou para o erário público, consubstancia uma situação de improbidade administrativa: a violação

do princípio da moralidade administrativa gera a invalidade da conduta decisória da Administração e sujeita o

respetivo funcionário a responsabilidade disciplinar.

CURIOSIDADE: Por força do princípio da proporcionalidade, o titular de um órgão não pode nomear familiares

seus para o auxiliarem no seu cargo. Ora, o Brasil e outros países desenvolveram um mecanismo em que o pai

1 combina com o pai 2 que este (1) nomeia o filho 2 e que o pai 2 nomeia o filho 1. Apesar de não violar a lei,

viola uma norma de moralidade administrativa.

Traição administrativa- tem duas figuras:

a) Agente provocador- aquele que se infiltra numa organização criminosa, não para praticar os atos, mas

para instigar essa prática, para apanhar essas pessoas que estariam dispostas a praticar o ato;

b) Radares nas estradas sem prévia indicação de que há radar- situações em que há controlo da

velocidade, sem que, previamente, os automobilistas tenham conhecimento desse facto. Há uma

violação por parte do próprio Estado de uma norma de ética.

9. Princípio (material) do Estado de Necessidade Administrativa

O princípio material do estado de necessidade administrativa configura-se como vertente ou dimensão

setorial do princípio geral do estado de necessidade administrativa: comunga com a vertente procedimental

o mesmo conceito e a mesma natureza, residindo a diferença na circunstância de o princípio material do

estado de necessidade administrativa, em vez de incidir sosbre os aspetos formais relativos ao procedimento

e à competência, dizer respeito ao conteúdo ou objeto material das decisões.

Em que termos é que o estado de necessidade administrativa pode justificar o conteúdo de decisões que sejam

decisões que, em cenários habituais, seriam decisões inválidas. Até que ponto é que o estado de necessidade

administrativa permite que, decisões que normalmente são inválidas, possam ser aplicadas em nome desse

mesmo estado de necessidade administrativa.

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O art. 163º/5, que diz que não se produz o efeito anulatório, mesmo que o ato seja anulável, permite extrair

que, se em situações de normalidade, é possível a prática de um ato anulável que não produza efeitos

anulatórios, por maioria de razão, em estado de necessidade administrativa, podem-se praticar atos anuláveis.

E, indo mais longe, será que é possível, em estado de necessidade administrativa, praticar atos nulos?

PO- sim, mas com quatro limites:

a) Existência de ponderosas razões de necessidade- apelo ao princípio da proporcionalidade;

b) Respeito pela proporcionalidade no conteúdo da decisão- a proporcionalidade quer nos pressupostos

quer no conteúdo da decisão;

c) Nunca é possível violar o art. 19º/6 e 7 da CRP, porque são situações que nem em estado de exceção

constitucional podem ser beliscados e, por maioria de razão, também não o poderão ser em situação

de estado de necessidade administrativa

d) Submissão a controlo judicial e, de todos os danos que resultem da atuação em estado de necessidade

administrativa haverá sempre responsabilidade civil da Administração Pública. E, à luz da CRP, esta

responsabilidade civil da Administração é solidária entre a pessoa coletiva e o titular do órgão.

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Formas de Atividade Administrativa e Procedimento

◊ Voluntariedade da Conduta

Se é certo que, normalmente, a Administração tem ou desenvolve uma conduta voluntária, também é verdade

que o Direito Administrativo permite observar que nem todos os efeitos jurídicos resultam de uma conduta

voluntária da Administração, que a atividade administrativa se pode assumir como um puro facto:

1. Meros factos jurídicos- traduzem acontecimentos ou circunstâncias independentes da vontade que,

apesar de não corresponderem a um querer administrativo, podem produzir efeitos que determinem

um agir administrativo- por exemplo, o decurso do tempo: a anulabilidade consolida-se na OJ se não

for destruída num determinado prazo; decorrido esse prazo, tudo se passa como se fosse válido. Este

é um efeito administrativo que não está dependente da vontade da Administração.

2. Factos jurídicos objetivos- a conduta administrativa, sendo sempre uma conduta voluntária, pode ter

na sua origem factos alheios a qualquer atuação humana e, neste sentido, involuntárias. Por exemplo,

efeitos administrativos de inundações ou de crise financeira externa.

3. Fattispecie de elementos de facto- a atuação administrativa poderá ser desencadeada não por um

único facto, mas antes por uma pluralidade ou um concurso de factos entre si relacionados por uma

norma jurídica.

A relevância da vontade da Administração depende sempre da sua exteriorização. Sem a sua exteriorização,

sem que a vontade seja declarada, estamos diante de condutas que nunca nasceram para o Direito- em vez

de um ato, temos um “não-ato”, enquanto ausência ou falta de manifestação exterior de uma vontade. Por

exemplo, no desvio de poder, o motivo determinante da conduta não é exteriorizado. Mas é precisamente

pelo motivo da pessoa na sua conduta que se afirma se ela está ou não em desvio de poder.

Como se apura a relevância da intenção? Através da prova.

A intervenção da vontade pode dar origem, por efeito da distribuição da competência, a atos simples ou, em

alternativa, a atos complexos:

- Os atos simples traduzem a expressão da vontade de uma única estrutura decisória, enquanto os atos

complexos conjugam a intervenção participativa decisória de duas ou mais estruturas orgânicas, numa

articulação integrativa entre vontades concorrentes de diferentes titulares de um poder decisório partilhado;

- Nos atos complexos, a intervenção participativa dos titulares do poder decisório pode fazer-se numa posição

de igualdade (ex: situações de coautoria) ou, em sentido diferente, numa posição de desigualdade, sendo que

uma delas é determinante e a outra (ou outras) assume natureza condicionante ou formal (ex: a intervenção

do PR em decretos de competência do Governo).

As decisões administrativas podem ter:

1. Uma ou algumas pessoas determinadas- o ato da Administração pode dirigir-se a uma ou várias

pessoas determinadas ou determináveis, envolvendo uma situação concreta, gozando, por isso, de

uma eficácia subjetiva individual ou inter partes, dizendo-se que estamos diante de um ato não

normativo.

2. Uma pluralidade de pessoas indetermináveis- o ato da Administração pode ter como destinatários

uma pluralidade indeterminável de pessoas, assumindo generalidade, gozando de uma eficácia erga

omnes, caso em que deparamos com um ato normativo.

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Nem sempre a vontade administrativa é suficiente para produzir todos os efeitos desejados:

a) A atuação administrativa pode carecer da intervenção, da colaboração da vontade dos cidadãos,

assuma esta uma natureza propulsora (ex: pretensão formulada pelo interessado), consentida (ex:

aceitação de nomeação) ou coconstitutiva (ex: celebração de um contrato).

b) Poderá mesmo ocorrer que, ante a ausência de acordo ou de vontade concordante dos cidadãos, a

Administração tenha de recorrer aos tribunais para fazer vingar os efeitos decorrentes da sua vontade;

c) A transformação da realidade física ou social não se basta com a simples emissão de atos jurídicos,

exigindo ainda atuações físicas ou materiais que, agindo sobre as situações fáticas da vida,

implementam no terreno a vontade decisória administrativa- por exemplo, não basta dizer que a

construção ilegal tem de ser demolida, é necessário que efetivamente se proceda a essa demolição.

Apesar de toda a conduta administrativa se alicerçar sempre numa norma habilitante e conformadora do seu

agir, verifica-se diversidade de formas de desenvolvimento de uma tal atividade:

❖ A tradicional centralidade da figura do ato administrativo nunca pode conduzir a uma identificação

redutora desta forma de agir com toda a atividade desenvolvida pela Administração Pública: o ato

administrativo não esgota as formas que podem revestir a conduta administrativa;

❖ Nem toda a atividade resultante da Administração Pública se reconduz à prática de atos jurídicos: a

par da atuação jurídica, também pode ser exercida uma atividade sem caráter jurídico;

❖ Por outro lado, nem toda a atividade jurídica se rege materialmente, em termos exclusivos, pelo

Direito Público: o Direito Administrativo não tem o monopólio regulador do agir administrativo, nem

os demais ramos juspublicísticos- há formas da atividade administrativa regidas pelo Direito Privado.

A própria inércia administrativa, numa situação de inatividade perante as suas responsabilidades

determinadas pela juridicidade, mostra-se também passível de assumir significado jurídico e relevância

procedimental.

Há condutas de facto que são juridicamente relevantes. Há condutas que traduzem comportamentos,

declarações negociais implícitas- comportamentos factuas concludentes.

Por outro lado, existem condutas de facto que são juridicamente irrelevantes: por exemplo, as palavras de

circunstância num ato oficial.

$ Formas da Atividade Administrativa Jurídico-Pública:

Circunscrevendo-se a análise às formas de atividade administrativa jurídica pública, verifica-se que estamos

diante de um agir administrativo que se consubstancia na produção de efeitos jurídicos e cuja essência

reguladora se encontra sujeita a um regime substantivo de Direito Público.

Temos, portanto, dois requisitos:

1. Produção atos jurídicos- sejam manifestações de vontade ou manifestações de ciência, desde que

aptas a produzir efeitos de Direito.

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Eficácia dos efeitos:

Os efeitos podem produzir-se exclusivamente dentro da própria Administração, esgotando a sua

eficácia no âmbito do aparelho organizativo- atos internos, que se subdividem em:

- Atos internos com eficácia intrassubjetiva- esgotam os efeitos dentro da pessoa coletiva que os

emanou;

- Atos internos com eficácia intersubjetiva- os efeitos relacionam uma ou mais entidades públicas.

- Atos internos puros- ex: ordem ou instrução;

- Atos internos com relevância externa- ex: parecer de um procedimento de licenciamento industrial.

A eficácia dos efeitos pode, em termos diversos, passar a “fronteira” da Administração, colocando em

contacto esta e os cidadãos- atos externos, aqui se recortando ainda os atos cujos efeitos se integram

(i) em relações gerais de poder, (ii) em relações especiais de poder ou (iii) em relações jurídico-

administrativas.

Podemos diferenciar, tendo em conta o alcance da vontade administrativa, duas grandes categorias de atos

jurídicos:

a) Situações em que o seu autor quer a conduta, independentemente de querer ou prever os resultados,

havendo aqui uma mera vontade de celebração do ato, pois os seus efeitos produzem-se ex lege,

funcionando como verdadeiro “resultado de facto”- atos jurídicos simples ou atos não negociais;

b) Situações em que o autor quer a conduta e quer também os resultados dela decorrentes, num querer

que abrange também as finalidades da conduta, existindo uma vontade de celebração e uma vontade

de estipulação de efeitos, numa conduta que é uma síntese entre a intencionalidade e o seu fim- atos

jurídicos intencionais ou negócios jurídicos.

2. Regulação material pelo Direito Público- nem toda a atividade administrativa se rege pelo Direito

Público e nem toda se expressa em formas jurídico-administrativas típicas:

- A Administração também desenvolve atividades ao abrigo do Direito Privado e usando formas jurídicas

privadas;

- A utilização do Direito Público não nos garante uma inevitável forma jurídica de atuação administrativa

integralmente pública: torna-se também necessário que a regulação substantiva ou material da situação se

faça pelo Direito Administrativo (ou outro ramo de Direito Público).

A essencialidade da qualificação de um ato jurídico como fazendo parte da atividade jurídica pública da

Administração centra-se na circunstância de o seu regime material ou substantivo se fazer à sombra do Direito

Administrativo (ou de qualquer outro ramo do Direito Público) e não do Direito Privado.

Sublinha-se, contudo, que não é necessário que todo o regime material do ato jurídico da Administração se

faça ao abrigo do Direito Público, bastando que sejam os seus principais aspetos regulados pelo Direito

Administrativo (ou outro ramo do Direito Público).

Podem existir as seguintes formas de expressão:

a) Regulamentos

b) Ato administrativos

c) Meras declarações negociais

d) Contratos administrativos

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e) Convénios administrativos

f) Atos processuais da Administração Pública.

NOTA: Podem existir formas cruzadas. Por exemplo, podem existir regulamentos que são, ao mesmo tempo,

contratos.

◊ Regulamento

É um ato normativo, que é emanado no exercício da função administrativa- distinguindo-se, por isso da lei,

que é emanada no exercício da função legislativa-, independentemente de o seu autor ser um órgão

administrativo, um órgão público sem natureza administrativa, desde que esteja a exercer um poder regulado

pelo Direito Administrativo, ou uma entidade privada a exercer funções administrativas.

No Direito português vigente, somente no âmbito da atuação do Governo e das assembleias legislativas das

RA, atendendo a que são órgãos simultaneamente com competência legislativa e administrativa, se acumula

o exercício de poderes normativos sob forma legislativa e regulamentar. Em relação a todos os restantes

órgãos nacionais, a existência de competência legislativa exclui a titularidade de poder regulamentar, sem

prejuízo de a titularidade de poder legislativo habilitar sempre a possibilidade de definir normas de

competência regulamentar.

O Governo é o único órgão nacional que pode escolher entre a emanação de um ato legislativo, sob

forma de decreto-lei ou, em alternativa, de um regulamento diretamente fundado na CRP, sob a

forma de decreto regulamentar.

A regulamentação pelas RA das leis e DLs da República que não tenham reservado para os órgãos de

soberania o poder regulamentar, reveste sempre a forma de decreto legislativo regional.

As normas integrantes dos regulamentos podem assumir:

i) Natureza injuntiva ou supletiva- integrando o hard law;

ii) Normas dotadas de um mero conteúdo orientador de condutas sociais, por força de expressa

referência legal (art. 136º/4)- soft law, podendo ter como denominação “diretiva”, “recomendação”,

“instruções”, etc.

Tipos de regulamentos:

a) Regulamentos internos e regulamentos externos: os internos não passam a fronteira da

Administração, os externos relacionam a Administração com os particulares

b) Regulamentos de execução e regulamentos independentes: os primeiros são aqueles que densificam,

pormenorizam a lei, que lhes dão aplicabilidade. Os segundos, que se caracterizam por serem

independentes do conteúdo da lei, dividem-se em duas categorias:

- Regulamentos independentes fundados na lei

- Regulamentos independentes fundados na CRP- art. 199º/g).

c) Regulamentos de operatividade imediata e regulamentos de operatividade mediata: os primeiros

produzem efeitos diretamente, sem a necessidade de qualquer ato de aplicação. Os segundos

produzem efeitos indiretamente, ou seja, carecem de um ato administrativo que lhes dê execução.

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Pode ainda existir regulamentos de base contratual ou bilateral- regulamentos que assentam num prévio

contrato- “contratos normativos”. Por exemplo, o contrato de concessão para a exploração de uma

autoestrada.

Pode também existir um regulamento de base convencional, assente num prévio vínculo de consenso.

A competência para a feitura de regulamentos internos não carece de expressa norma legislativa habilitante,

vigorando no silêncio da lei um poder geral de auto-organização interna das estruturas administrativas.

→ Regime jurídico dos Regulamentos:

A matéria vem regulada no CPA- arts. 135º e ss. O CPA só regula, contudo, os regulamentos externos. Em

relação aos regulamentos internos, houve uma desprocedimentalização da atividade regulamentar interna, o

que originou uma lacuna: assim, deve aplicar-se, por analogia e desde que seja compatível com a sua natureza,

o regime dos regulamentos externos.

Esta desprocedimentalização traduz, em relação ao CPA de 91, um retrocesso na implementação da exigência

constitucional, uma vez que a disciplina legal do procedimento administrativo é uma exigência da Constituição,

no seu art. 267º/5. Gera assim uma inconstitucionalidade, visto que deixa sem execução parcial uma norma

constitucional que estava antes a ser implementada.

◊ Ato Administrativo

Em Portugal, a evolução do conceito “ato administrativo” resume-se, desde o séc. XIX, em três momentos

principais:

(i) Em termos legislativos, remonta a 1827, ao “Projeto de lei orgânica da Administração Geral das

Províncias do Reino”, a introdução da expressão “atos administrativos”;

(ii) A nível doutrinal, o “ato administrativo” começou por ser entendido com a amplitude designativa de

todos os atos da Administração, compreendendo também os regulamentos, razão pela qual, em 1833,

apesar de dogmaticamente autonomizado, continuava a compreender “todas as medidas,

providências ou resoluções” tomadas pelas estruturas administrativas, nele se reconduzindo os atos

regulamentares, os atos contratuais e os atos especiais ou administrativos propriamente ditos;

(iii) Em termos constitucionais, seria a Constituição de 1933 que, na sequência da revisão de 1971,

consagraria, pela primeira vez, a expressão “ato administrativo”, posteriormente acolhida pela

Constituição de 1976.

As conceções tradicionais, expressando posições diferenciadas entre a Escola de Lisboa e a Escola de Coimbra,

centram-se no enquadramento dos efeitos internos do conceito de ato administrativo:

a) Escola de Coimbra- protagonizada pelo Prof. Pedro Gonçalves e Rogério Soares. Ato administrativo

será “a estatuição autoritária, relativa a um caso individual, manifestada por um agente da

Administração no uso de poderes de Direito Administrativo, pela qual se produzem efeitos jurídicos

externos, positivos ou negativos. Esta é a escola que foi vencedora no CPA de 2015, e é por isso que

o art. 148º está muito próximo desta formulação, ao definir ato administrativo como a decisão que,

no exercício de poderes jurídico-administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos numa

situação individual e concreta.

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Do art. 148º, resultam as seguintes características do ato administrativo:

1. É um ato jurídico unilateral- a estrutura do ato não depende da intervenção constitutiva ou estrutural

de qualquer outra vontade, salvo a do seu autor;

2. É proveniente de estruturas que exercem poderes administrativos- o autor do ato podem ser (i) órgãos

da Administração, (ii) estruturas decisórias públicas que, não integrando organicamente a

Administração, praticam atos em matéria administrativa, exercendo um poder regulado pelo Direito

Administrativo, e ainda (iii) entidades privadas que exercerem funções públicas;

3. Procura definir direta ou instrumentalmente o direito aplicável numa situação concreta e individual;

4. Visa produzir efeitos sem necessidade de assentimento dos destinatários- o ato administrativo é,

tipicamente, uma estatuição autoritária, obrigando os seus destinatários independentemente da sua

vontade e vinculando-os ao seu cumprimento.

b) Escola de Lisboa- protagonizada pelo Prof. Marcello Caetano e Prof. Freitas do Amaral. Ato

administrativo será o “ato jurídico unilateral praticado no exercício do poder administrativo por um

órgão da Administração ou outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz

a decisão de um caso considerado pela Administração, visando a produção de efeitos jurídicos sobre

uma situação individual e concreta”. Foi a solução consagrada no CPA de 91.

☼ Figuras controvertidas

A. Atos coletivos

São atos que, tendo por base uma situação concreta, têm como destinatário uma estrutura colegial, tomada

na sua unidade e que, por essa via, produzem efeitos reflexos face a todos os seus membros ou titulares, os

quais surgem como um conjunto unificado de pessoas determinadas ou determináveis.

Por exemplo, o ato de dissolução de um órgão colegial administrativo.

B. Atos plurais

São atos que, envolvendo a produção de efeitos iguais a uma pluralidade de pessoas determinadas ou

determináveis, se encontram exteriorizados formalmente num mesmo ato formal, o qual equivale, em termos

substanciais, a tantos atos individuais quantos os seus destinatários.

No ato plural há uma única declaração formal de vontade que, aplicando-se homogeneamente a todos os seus

vários destinatários, só aparentemente assume natureza plurissubjetiva. São, afinal, um simples feixe de uma

pluralidade de atos individuais todos unificados.

Por exemplo, o ato que suspende por dois dias todos os alunos da turma X, valendo como se fossem tantos os

atos individuais de suspensão quantos os alunos dessa mesma turma.

C. Atos gerais

São atos que, tendo por base uma situação concreta, são de aplicação imediata a um conjunto inorgânico de

pessoas determinadas ou determináveis de imediato num certo local, razão pela qual se pode dizer que

produzem efeitos plurissubjetivos com eficácia erga omnes.

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No entanto, a determinabilidade dos seus destinatários e a circunstância de esgotarem os seus efeitos de

imediato, sem possuírem face aos destinatários de cada momento uma aplicação continuada, permite

diferenciar os atos administrativos gerais e os atos normativos que têm como característica a generalidade.

Por exemplo, as ordens de polícia para o dispersar de uma manifestação.

D. Sinais de trânsito

Discute a doutrina se os sinais de trânsito assumem a natureza de verdadeiros atos administrativos ou, pelo

contrário, de genuínos regulamentos.

Indiscutivelmente que cada sinal de trânsito exterioriza uma regra de conduta, a qual tem como destinatários,

à partida, uma pluralidade indeterminada e indeterminável de pessoas: o sinal de trânsito deverá ser

configurado como um regulamento de operatividade direta ou imediata.

Note-se, porém, que a decisão de colocação de um determinado sinal de trânsito, tendo um específico

conteúdo, num determinado local, consubstancia um ato administrativo: o sinal de trânsito revela-se, deste

modo, como um regulamento que tem por base ou fundamento um ato administrativo.

E. Atos administrativos (parcialmente) regulamentares

Em tempos de formas híbridas do agir administrativo, observa-se que também podem existir atos

administrativos que comportem um conteúdo parcialmente normativo, numa combinação entre ato e

regulamento: a existência de um (ou vários) destinatário determinado (ou determinável/eis) e face a uma

situação concreta não inviabiliza que essa forma de atuação administrativa também seja suscetível de integrar

soluções decisórias que produzam efeitos (diretos ou colaterais) a uma pluralidade indeterminada ou

indeterminável de destinatários e de situações.

Por exemplo, uma medida de resolução aplicada a uma instituição bancária.

☼ Principais espécies

a. Atos administrativos decisórios vs atos administrativos instrumentais- os atos decisórios comportam

a resolução de uma situação concreta, criando, modificando ou extinguindo uma posição jurídica,

enquanto os atos instrumentais visam preparar ou implementar a decisão tomada através dos atos

decisórios.

Os atos instrumentais, assumindo um papel auxiliar, podem ser anteriores ou posteriores aos atos decisórios,

funcionando como seu pressuposto, complemento, execução ou declaração.

Os atos decisórios podem projetar os seus efeitos no exterior da Administração (atos externos) ou podem ficar

dentro das fronteiras administrativas (atos internos).

b. Atos administrativos constitutivos vs atos administrativos declarativos- os atos constitutivos são

aqueles que introduzem inovações na ordem jurídica, podendo assumir-se como atos primários

(envolvendo a primeira disciplina de uma certa matéria) ou como atos secundários (têm por objeto

outros atos anteriores). Os atos declarativos são aqueles que não visam produzir efeitos jurídicos

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inovadores na OJ, limitando-se a formular juízos vinculados de conhecimento, ciência ou de valor

sobre factos ou situações jurídicas já existentes.

Todos os atos decisórios são atos constitutivos, assim como todos os atos declarativos são atos instrumentais.

Por exemplo, o certificado das cadeiras feitas num semestre é um ato declarativo. Já o ato pelo qual sou

aprovada numa cadeira é um ato constitutivo. O ato pelo qual sou aprovada à última cadeira da licenciatura é

um ato duplamente constitutivo: introduz a alteração de estar aprovada naquela cadeira e, com a aprovação

àquela cadeira, introduz a alteração ainda de obter a licenciatura.

c. Atos administrativos consensuais vs atos administrativos não consensuais- os atos consensuais

assentam numa anterior forma de autovinculação bilateral administrativa, traduzida num acordo ou

contrato com os interessados ou destinatários do ato (acordo endoprocedimental), visando a

definição dos termos deste. Os atos não consensuais não têm por base qualquer prévio acordo com

os interessados ou destinatários, traduzindo a expressão de uma vontade solitária e autoritária da

Administração.

Por exemplo, a fixação das datas dos exames é um ato administrativo consensual.

d. Atos administrativos com objeto passível de contrato administrativo vs atos administrativos sem

objeto passível de contrato administrativo- na base desta dicotomia encontra-se o conceito de

“contrato com objeto passível de ato administrativo”, enquanto vínculo bilateral cujos efeitos

reguladores de uma determinada situação jurídica também seriam suscetíveis de gestação por via de

ato administrativo. Os atos administrativos com objeto passível de contrato administrativo,

expressando a comunicabilidade entre estas duas formas de atividade administrativa, num princípio

geral de paridade ou alternatividade entre o contrato e o ato na prossecução das atribuições

administrativas, são atos administrativos que poderiam, todavia, ser contratos administrativos. Os

atos administrativos sem objeto passível de contrato administrativo, são atos que, atendendo aos

efeitos das relações que visam estabelecer, nunca poderiam ser, por lei ou pela sua própria natureza,

contratos administrativos.

e. Atos administrativos com autotutela executiva vs atos administrativos sem autotutela executiva- os

atos com autotutela executiva, em caso de incumprimento voluntário pelo destinatário, permitem à

Administração pode proceder à sua implementação ou execução, utilizando meios coercivos,

independentemente de qualquer título judicial habilitante, falando-se em privilégio de execução

prévia. Em casos de atos sem autotutela executiva, perante a resistência ao cumprimento, a respetiva

execução carece sempre de um prévio título judicial.

☼ Quadro referencial do regime jurídico

Sem prejuízo da sujeição genérica de todos os atos administrativos aos princípios gerais de Direito resultantes

do regime comum aplicável aos atos jurídicos, os atos administrativos decisórios e que produzem efeitos

externos encontram o seu regime no CPA (art. 148º), não obstante a situação especial de certos atos com

objeto passível de contrato público.

No entanto, perante o conceito restritivo de ato administrativo utilizado pelo CPA de 2015, suscitam-se

dúvidas sobre o regime aplicável aos atos provenientes do exercício de poderes jurídico-administrativos sem

conteúdo decisório e ainda aos atos que produzem efeitos jurídicos internos:

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(i) É certo que o CPA regula, por exemplo, a convocatória e a ata de um órgão colegial (arts. 24º, 34º e

35º), o “ato de delegação” (art. 47º), os pareceres (arts. 91º e 92º): estamos diante de realidades

jurídicas que, não sendo atos administrativos, à luz do conceito do CPA (art. 148º), deixam a dúvida

sobre a sua natureza e o interesse do legislador em proceder à sua regulação, se não fossem atos

administrativos;

(ii) O CPA introduz, por efeito do conceito restritivo de ato administrativo que adota no art. 148º,

incerteza na definição do regime dos atos administrativos que não assumem conteúdo decisório ou

que não produzem efeitos jurídicos externos, lesando a segurança jurídica.

Uma vez que o CPA de 2015 deixou de regular os atos instrumentais e os atos internos, dizemos que, em

relação ao CPA de 1991, houve um retrocesso na implementação que já estava em curso do art. 267º/5 CRP,

razão pela qual a solução atual se revela inconstitucional.

Ante a lacuna do regime aplicável aos atos instrumentais e aos atos internos, existem três pontos de referência

que determinam a aplicação do preceituado no CPA:

a) O art. 2º/1 CPA sujeita às suas disposições respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à

atividade a conduta de quaisquer entidades adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de

modo específico pelo Direito Administrativo: a atividade instrumental e a atividade interna da

Administração Pública estão, por isso, submetidas ao preceituado no CPA;

b) O regime dos atos instrumentais, atendendo à sua natureza acessória face aos atos decisórios, está

também, por força do postulado accessorium sequitur suum principale, sujeito às regras aplicáveis aos

atos decisórios;

c) Os atos internos encontram a sua disciplina, numa aplicação analógica, no regime aplicável aos atos

decisórios a que se refere o art. 148º do CPA, sempre com as necessárias e devidas adaptações.

Os atos administrativos (parcialmente) regulamentares, uma vez que combinam elementos de natureza

individual e normativa, têm um regime misto: uma parte disciplinada pelo regime dos atos administrativos e

outra, aquela que reveste natureza normativa, pelo regime aplicável aos regulamentos.

◊ Meras declarações negociais

Nem todo o agir administrativo unilateral, face a situações concretas, gera atos administrativos. Pode existir

uma atuação administrativa unilateral que produza efeitos apenas para uma situação concreta, para pessoas

determinadas ou determináveis, ou seja, simples declarações de vontade, que têm a particularidade de não

criar situações jurídicas subjetivas.

Sempre que a Administração atua unilateralmente sem ser por via autoritária, sem autotutela declarativa, ela

emite uma mera declaração negocial. São atos decisórios externos, que não têm a força de atos

administrativos.

Na falta de acordo do destinatário com o comando da Administração, esta só tem uma via para fazer vingar a

sua atuação: através dos tribunais. Há então uma perfeita igualdade entre quem emite a declaração e o

destinatário dessa declaração. A Administração não pode impor pela força a sua definição de Direito, uma vez

que essa definição não é autoritária, não tem ius imperii, não comportando por isso a imposição de vinculações

ou a obrigatoriedade de condutas a que seja devida obediência por parte dos destinatários.

Estamos, então, perante atos cuja produção depende:

a) Do assentimento ou acordo dos destinatários;

b) Ou, em alternativa, de intervenção judicial (ou arbitral) habilitante.

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Sem qualquer uma dessas intervenções, a Administração Pública carece de força implementadora do seu

conteúdo decisório.

Exemplos:

1. Art. 307º/1 Código dos Contratos Públicos. Tem a ver com a interpretação e sobre os juízos de validade

dos contratos administrativos (vínculo entre uma entidade pública e uma entidade privada).

Imaginemos que há um vínculo entre a entidade pública x e a entidade privada y. A entidade pública

x emite um ato pelo qual interpreta a cláusula 1ª do contrato: este ato é uma mera declaração

negocial, porque se a entidade y discordar, a discórdia desta tem o mesmo valor jurídico da expressão

interpretativa da entidade pública x. Se a entidade x quiser fazer vingar o seu sentido interpretativo,

terá de ir a tribunal para que este se pronuncie. O mesmo se passa em relação à validade dos contratos

administrativos.

Se a Administração teimar em tratar estas meras declarações negociais como verdadeiros atos

administrativos, impondo-os à força, incorrerá em usurpação de poderes, uma vez que se está a substituir à

função judicial na definição do Direito aplicável.

2. Fixação no valor da responsabilidade civil- se a Administração, perante um caso de responsabilidade

civil, dizer que só paga x, quando o particular reivindica y, a Administração não pode impor esse x ou

dizer que não paga nada. Isto é, pode dizê-lo, mas essa declaração não tem valor jurídico. Só através

de uma ação, nos prazos previstos, é que se fixa esse valor.

As meras declarações negociais serão, então, os atos jurídicos unilaterais externos que, produzidos por

estruturas decisórias no exercício de poderes administrativos, expressam uma determinada posição jurídica

face a uma situação concreta e que, sem a concordância do seu destinatário ou de intervenção judicial

habilitante, não gozam de força obrigatória ou efeitos vinculativos.

» Comportamentos factuais concludentes:

As meras declarações negociais também podem ser o resultado de comportamentos factuais concludentes.

Sem embargo de um comportamento factual não ser diretamente um meio normal de expressão ou de

comunicação de uma vontade, o certo é que, pressupondo a realização de uma conduta voluntária, acaba por

permitir extrair, por ilação ou interpretação indireta, um determinado sentido declarativo de uma vontade.

O juízo concludente não impede, porém, a faculdade administrativa de reserva ou protesto que, funcionando

como contradeclaração, exclui a relevância concludente da conduta factual ou circunstancial em causa da

Administração: a reserva ou protesto não permite estabilizar ou assegurar expectativas fundadas na conduta

administrativa factual, afastando a relevância operativa do princípio da tutela da confiança.

Regime:

O regime destas meras declarações negociais está no CC, uma vez que, apesar de expressarem o exercício de

poderes administrativos, seguem o regime típico do agir entre entidades privadas, assente que está a sua

produção de efeitos vinculativos no princípio do consenso e a posição paritária entre autor e destinatários.

O CPA não será aplicável integralmente a estas declarações negociais, sem prejuízo da vinculação do seu

autor, enquanto estrutura situada no âmbito subjetivo de aplicação do CPA, ao disposto no seu art. 2º/1 e 3.

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◊ Contrato administrativo

É anterior ao séc. XIX (época da legislação de Mouzinho da Silveira), e o séc. XX veio trazer o alargamento da

figura do contrato administrativo.

O agir administrativo nem sempre assenta numa estrutura unilateral, traduzindo a intervenção decisória uma

única vontade ou, por possuírem interesses iguais, de uma única parte: existem casos em que o agir

administrativo se expressa num ato multilateral (ou bilateral), envolvendo um acordo entre duas ou mais

vontades, expressando interesses opostos e adotando a forma final de um contrato. Assim, em regra, sempre

que a Administração pode praticar um ato administrativo, também pode celebrar um contrato administrativo;

há uma igualdade entre as duas formas.

A atividade contratual da Administração Pública é, todavia, variada e heterogénea: nem todos os contratos da

Administração Pública se podem qualificar como contratos administrativos, pois, ao lado destes, a

Administração também pode celebrar contratos de Direito Privado.

Pelos contratos administrativos passa a defesa da concorrência e a criação de um mercado único. Estes

contratos são um instrumento importante ao nível da defesa destas duas vertentes.

Características:

a) Vínculo jurídico plurilateral;

b) Uma das partes é sempre um contraente público- ou é (i) um órgão de uma entidade administrativa,

ou (ii) uma estrutura decisória pública exercendo poderes administrativos, ou (iii) uma entidade

privada exercendo funções públicas ou sujeita a uma influência pública dominante;

c) Tem de estar, em termos substantivos, regulado pelo Direito Público- sobretudo, pelo Direito

Administrativo.

Podem existir vários tipos de contratos administrativos:

(i) Entre uma entidade pública (ou uma estrutura exercendo poderes administrativos ou uma

entidade sujeita a influência pública dominante) e uma ou várias entidades privadas;

(ii) Contratos interadministrativos (entre entidades públicas).

Quanto ao objeto podem ser:

(iii) Contratos de atribuição- a prestação principal está a cargo de uma entidade pública, envolvendo

uma certa vantagem a favor do cocontratante que por isso, suporta uma determinada

contrapartida. Por exemplo, o fornecimento de água;

(iv) Contratos de colaboração- a prestação principal está a cargo do particular, tendo como

contrapartida uma determinada remuneração. Por exemplo, a empreitada de obras públicas;

(v) Contratos de cooperação, envolvendo duas ou mais entidades públicas (ou sujeitas a influência

pública dominante), que visam a disciplina, em termos paritários com os particulares, de

interesses recíprocos relativamente a tarefas de exercício conjunto ou que justificam a

coordenação de meios;

(vi) Contratos de efeito regulamentar, que definem regras de conduta destinadas a servir de pauta

reguladora de futuros comportamentos das partes ou de terceiros.

Quanto aos seus reflexos orçamentais:

(vii) Contratos ativos- visam a Administração arrecadar receitas. Por exemplo, a locação de bens

públicos;

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Leonor Branco Jaleco Direito Administrativo II

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(viii) Contratos passivos- envolvem a realização de despesas por parte da Administração. Por exemplo,

a aquisição de bens ou serviços;

(ix) Contratos mistos- conjugam aspetos próprios dos contratos ativos e dos contratos passivos. Por

exemplo, o empréstimo público.

Quanto à natureza:

(x) Contratos administrativos organizatórios- acordos que, traduzindo convenções com reflexos

organizativos, permitem efetuar uma gestão consensual de serviços públicos envolvendo

diferentes entidades públicas ou habilitando a emergência de novas realidades organizativas. Por

exemplo, um consórcio ou uma sociedade;

(xi) Contratos administrativos procedimentais- consubstanciando acordos endoprocedimentais,

regulam aspetos formais, envolvendo a resolução de divergências entre vários interessados, e/ou

visam a regulação de aspetos materiais relativos à determinação do conteúdo discricionário de

um futuro ato. Por exemplo, o previsto no art. 57º CPA;

(xii) Contratos administrativos contenciosos- acordos que visam disciplinar os termos em que se

deverá desencadear, desenvolver ou cessar uma determinada lide judicial ou arbitral, assumindo

uma dimensão essencialmente processual. São regulados no Código de Processo Civil e na lei da

arbitragem voluntária. Por exemplo, a convenção de arbitragem ou o contrato de transação

judicial;

(xiii) Contratos administrativos substantivos- são, por exclusão de partes e em termos residuais, todos

aqueles vínculos bilaterais que não assumem natureza procedimental nem contenciosa.

Regime:

Se o objeto do contrato diz respeito a prestações submetidas à concorrência, o regime processual e

substantivo está no Código dos Contratos Públicos, salvo lei especial- arts. 1º/6 e 16º CCP.

Se as prestações não estão submetidas à concorrência, salvo lei especial:

a) O regime procedimental está no CPA- art. 201º/3 CPA;

b) O regime substantivo está no art. 202º/2 do CPA, que remete para o CCP;

c) O regime contencioso está regulado pela lei processual ou pela lei da arbitragem voluntária.

◊ Convénios interorgânicos

São vínculos jurídicos, acordos entre dois ou mais órgãos ou serviços de uma mesma entidade pública. O que

os diferencia dos contratos administrativos é que estes últimos põem em confronto duas ou mais pessoas

jurídicas; os convénios interorgânicos põem em confronto apenas uma pessoa jurídica, operam no interior

dessa pessoa jurídica, ainda que envolva mais do que um órgão ou mais do que um serviço, isto é, são meros

vínculos intrassubjetivos, envolvendo instituições localizadas no interior de uma mesma entidade pública.

O propósito dos convénios interorgânicos é o de regular aspetos da organização e/ou funcionamento relativos

ao modo de exercício dos poderes de tais estruturas orgânicas.

Regime:

Não há regime geral disciplinador desta forma de atuação administrativa: não estão previstos no CPA, porque

não são atos externos e também não estão no CCP, porque não são contratos.

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Pode existir lei especial e, assim, o problema está resolvido. Mas quando não há lei, onde encontrar?

O CPA regula três tipos de convénios interorgânicos:

i. Art. 57º- acordos endoprocedimentais;

ii. Art. 66º- auxílio administrativo;

iii. Arts. 77º e ss.- conferências procedimentais.

Os restantes casos regulam-se pelos princípios gerais da atividade administrativa do CPA e nas normas deste

que concretizem preceitos constitucionais e ainda nas demais normas que, referentes ao procedimento e à

atividade, se mostrem adequadas.

Estamos perante vínculos jurídicos duplamente imperfeitos, uma vez que lhes falta um regime geral e não se

podem judicialmente exigir, salvo nota em sentido contrário.

◊ Atos processuais da Administração Pública

Nem toda a atuação administrativa assume natureza substantiva, isto é, nem todo o agir administrativo regula

situações da vida social ao abrigo de normas materiais de Direito Administrativo: ao lado desta Administração

substantiva, existe uma Administração processual que, tendo por objeto a defesa de posições jurídicas

administrativas em litígios judiciais ou arbitrais, se reconduz a condutas de natureza processual.

Quando alguém vai a tribunal, esse alguém pratica atos jurídicos. Por exemplo, se vou a tribunal desencadear

uma ação contra A, eu tenho de fazer a petição inicial, em que dirijo ao Tribunal o pedido, invoco o

fundamento e peço que o Tribunal diga se me reconhece ou direito ou não. Já se a ação for desencadeada

contra mim, eu tenho de me defender, e esse ato de defesa chama-se contestação.

Isto são atos processuais, que podem ser praticados por um advogado em nome da Administração ou podem

ser praticados diretamente por estruturas administrativas. Se os atos são praticados em nome da

Administração, os efeitos desses atos ser-lhe-ão imputados.

Assim, os atos processuais da Administração são atos jurídicos que expressam junto de um tribunal a posição

da estrutura decisória que, exercendo poderes administrativos, é parte num determinado processo judicial ou

arbitral.

Principais espécies:

Atos postulativos vs atos constitutivos (ou dispositivos):

- Os atos postulativos são aqueles que, requerendo ou solicitando algo ao tribunal, envolvem a necessidade

de o juiz proferir uma decisão sobre a pretensão formulada, à luz de juízos valorativos de admissibilidade

processual ou fundamentabilidade substantiva, podendo diferenciar-se entre atos de petição (ex: petição

inicial), atos de alegação (ex: alegações de facto e de direito) e atos de prova (destinados a formar a convicção

do juiz).

- Os atos constitutivos (ou dispositivos), em sentido diferente, produzem os seus efeitos criadores,

modificativos ou extintivos imediatamente, sem a necessidade de qualquer posterior decisão do juiz (ex:

confissão do pedido, desistência, a renúncia ao recurso).

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Regime:

Têm o seu fundamento no Código de Processo Civil ou na Lei da Arbitragem Voluntária, sem prejuízo da sua

dimensão material poder encontrar regulação em preceitos de Direito substantivo, assim como da projeção

vinculativa de normas administrativas:

- A montante destes atos processuais tem sempre de existir um título jurídico-administrativo habilitador.

- Problema controvertido e carente de estudo aprofundado consiste em saber os efeitos processuais que pode

acarretar a ausência ou a invalidade da habilitação jurídico-administrativa para a prática de atos processuais,

designadamente face a processos em curso e a decisões judiciais (ou arbitrais) ainda não transitadas em

julgado.

Os atos processuais da Administração, uma vez que são juridicamente imputáveis a esta, mostram-se sempre

passíveis de produzir efeitos reflexos de natureza substantiva:

(i) Revelam-se aqui particularmente importantes as questões em torno da boa fé e da coerência

administrativas entre a sua conduta processual e a sua conduta substantiva;

(ii) Nem se poderá excluir a existência de casos de mútua interdependência de influências: a atuação

administrativa substantiva pode condicionar o agir processual da Administração, assim como a

sua conduta processual pode limitar a margem de autonomia decisória substantiva;

(iii) No limite, poderá até ocorrer uma atuação processual administrativa ferida de desvio de

poder, visando, por exemplo, alcançar através de uma conduta processual intencionalmente

negligente aquilo que, em termos substantivos, se encontrava já impedida de alcançar.

$ Formas de Atuação Jurídico-Privada:

Em vez do modelo de atuação administrativa assente numa exclusiva regulação pelo Direito Administrativo,

verifica-se, cada vez mais, até por efeito de uma certa lógica neoliberal que tem impregnado a Administração

Pública nas últimas décadas, a existência de áreas de flexibilização reguladora envolvendo a aplicação do

Direito Privado:

a) A otimização do agir administrativo também passa pela utilização de formas jurídico-privadas de ação,

reforçada pela privatização das estruturas organizativas;

b) Ao lado de uma tradicional Administração Pública sob forma pública fou emergindo,

progressivamente, uma Administração Pública sob forma privada;

c) A Administração Pública sob forma privada, funcionando como “satélite” de entidades com

personalidade de Direito Público, tem a vantagem de envolver a captação e participação de capitais

privados, sem uma tão marcada presença dos partidos políticos, num modelo de gestão alheio à lógica

burocrático-administrativa.

Toda a atuação ao abrigo do Direito Privado é uma atuação publicizada- art. 2º/3 CPA.

A aplicação do direito privado pressupõe uma articulação e uma intercomunicação normas de Direito

Administrativo:

- A sua aplicação só pode ser com base numa norma pública habilitante e num ato jurídico-público de opção

decisória pela via jurídico-privada; ainda é o Direito Público que habilita a aplicação do Direito Privado.

- Noutro sentido, verifica-se que todas as entidades públicas, além de uma natural capacidade regulada pelo

Direito Público, também possuem uma capacidade de Direito Privado. Contudo, inexiste qualquer norma a

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consagrar uma liberdade de escolha da forma do agir administrativo, nem se mostra admissível que a

Administração Pública possa usar a seu favor a autonomia da vontade constitucionalmente reconhecida aos

cidadãos.

Qualquer atuação de uma entidade pública aplicando Direito Privado, desde que fora das suas atribuições,

isto é, desde que desnecessário à prossecução dos seus fins, produzirá sempre atos inválidos: são atos ultra

vires.

» Formas que reveste a atuação jurídico-privada

As formas de atividade administrativa privada traduzem o agir administrativo que se consubstancia na

produção de atos jurídicos cuja disciplina substantiva é regulada pelo Direito Privado.

A atuação administrativa jurídico-privada mostra-se suscetível de assumir três diferentes formas:

1. Atos jurídicos simples- há vontade da declaração, mas não há relevância da vontade para a

estipulação dos efeitos, isto é, são atos cujos efeitos surgem independentemente de terem sido

previstos ou pretendidos pelo seu autor. Ex: situações de interpelação do devedor por parte da

Administração (credora) ou as declarações de voto produzidas pelos titulares de órgãos colegiais de

entidades privadas sujeitas a influência pública dominante.

- Os efeitos produzem-se ex lege, atendendo à natureza imperativa e inamovível das normas que os fixam,

sem margem para intervenção modeladora da vontade;

- O seu autor limita-se a produzir um verdadeiro pressuposto para que se verifiquem os efeitos previstos na

lei, sem gozar de qualquer autonomia determinativa do conteúdo desses efeitos.

Regime: CC- art. 295º e CPA- art. 2º/3.

2. Negócios jurídicos unilaterais- há não apenas vontade de declaração, mas também vontade quanto à

configuração dos efeitos, o que leva a que o regime se encontre no CC, mas também no CPA, no art.

2º/3. Exs: quando um município aceita uma herança, essa aceitação é um negócio jurídico unilateral;

quando a Administração denuncia um contrato de arrendamento.

Nestes casos, a Administração manifesta uma vontade conformadora do conteúdo e dos efeitos do seu agir:

há aqui uma margem de valoração subjetiva face a uma situação concreta, envolvendo o exercício de uma

atividade administrativa criativa.

Regime: encontram a sua regulação substantiva genérica no CC, sem prejuízo da possibilidade de existirem

leis especiais também aplicáveis e do disposto no art. 2º/3 CPA. Os negócios jurídicos unilaterais que envolvam

a atribuição de vantagens ou benefícios têm o seu procedimento de formação pautadod pelas regras do CCP.

3. Negócios jurídicos plurilaterais- consubstanciam acordos que, envolvendo sempre entidades

integrantes da Administração Pública ou entidades desenvolvendo funções administrativas, visam

regular e coordenar interesses contrapostos, encontrando-se a sua disciplina substantiva sujeita ao

Direito Privado.

Relevância dos contratos de direito privado da Administração: o que os distingue dos contratos

administrativos não são os sujeitos intervenientes (entidades públicas) nem o procedimento que leva à

celebração dos contratos, mas sim o regime substantivo e o regime material:

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- Os contratos de direito privado da Administração são regulados pelo Direito privado.

- O contrato administrativo está regulado pelo Direito Administrativo

Estes contratos estão regulados no art. 202º/2 CPA. Desta norma resulta que estes são contratos de direito

privado, que estão, em relação à sua substância, sujeitos ao regime de direito privado. Mas quanto ao

procedimento administrativo há uma distinção a fazer: estão sujeitos ao Direito Administrativo.

Se o objeto desse contrato envolver prestações submetidas à concorrência, ele estará regulado pelo Código

dos Contratos Públicos, nos termos do seu art. 1º. Se o objeto não envolver prestações submetidas à

concorrência, se atribuírem vantagens ou algo que substitui uma atuação unilateral da Administração,

também estará sujeito ao CCP. Todos os restantes contratos estão sujeitos ao regime do CPA.

A atividade jurídica de Direito Privada desenvolvida pela Administração Pública não deixa de estar pautada

pela prossecução do interesse público:

(i) Trata-se de uma atividade que tem natureza privada, sem deixar de ser administrativa, isto é,

desenvolvida por entidades da Administração Pública, tanto mais que o art. 266º/1 CRP não

diferencia o tipo de atividade administrativa;

(ii) Por via da prossecução de um fim de interesse público, a intervenção administrativa sob a égide

do Direito Privado nunca se poderá comparar à atividade desenvolvida pelos particulares.

Para além disto, a atividade administrativa de natureza jurídico-privada encontra-se sempre vinculada ao

respeito pela juridicidade no seu todo:

(i) Encontra-se vinculada à aplicabilidade direta das normas constitucionais sobre direitos, liberdades

e garantias, desde que constantes do Título 2º da Parte I da CRP ou referentes a “direitos

fundamentais de natureza análoga”;

(ii) Está adstrita a respeitar os princípios gerais da atividade administrativa e ainda as disposições do

CPA que concretizam preceitos constitucionais que são diretamente aplicáveis ao agir

administrativo de gestão privada;

(iii) A vinculação ao Direito da UE – designadamente às normas referentes à liberdade e igualdade de

concorrência - permite indiferenciar as formas jurídicas privadas e as formas jurídicas públicas do

agir administrativo.

O exercício da atividade administrativa de natureza jurídico-privada pressupõe uma norma de habilitação que

radica sempre em preceitos de Direito Administrativo:

a. A estrutura administrativa que desenvolve uma atividade regulada pelo Direito Privado alicerça-se

numa norma de competência, a qual permite a imputação dos efeitos de tais atos à própria

Administração Pública;

b. Deve entender-se que, sem pagarem uma justa indemnização, as autoridades administrativas

contratualmente vinculadas não podem invocar ou fazer prevalecer a sua incompetência para

incumprir as obrigações assumidas por via do Direito Privado.

A determinação do título habilitante do agir administrativo à luz do Direito Privado, envolvendo o recorte da

capacidade de agir da entidade em causa, pressupõe a diferenciação entre duas situações:

1. Se se trata de uma entidade dotada de personalidade jurídica de Direito Público, a utilização de

formas jurídicas privadas de agir carece sempre de uma habilitação normativa específica: a

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personalidade de direito público faz do direito administrativo o ordenamento-regra ou normal do seu

agir, motivo pelo qual a utilização do Direito privado carece de uma norma jurídico-administrativa

permissiva;

2. Se, ao invés, estamos diante de uma entidade com personalidade jurídica privada e que, apesar disso,

integra a Administração Pública sob forma privada, a expressão de uma capacidade de utilização de

formas jurídico-privadas deve ter-se como inerente à natureza da sua personalidade como entidade

privada, sem embargo de a lei poder limitar ou excluir esse recurso direto e imediato ao Direito

Privado.

O desenvolvimento, por empresas públicas, de uma atividade empresarial (comercial ou industrial), em

mercado concorrencial, envolve, por força dos princípios da igualdade e da concorrência resultantes da CRP e

do DUE, a imperatividade aplicativa do Direito Privado: há aqui uma “reserva de direito privado” que impõe

a utilização normal de formas jurídico-privadas por parte destas entidades empresariais da Administração

Pública.

$ Formas de Atividade Administrativa Não Jurídica

A Administração não se limita a agir juridicamente: pode não praticar atos jurídicos. Existe, numa área paralela

à atividade jurídica desenvolvida pela Administração, uma ampla zona de atuação administrativa sem caráter

jurídico, falando alguma doutrina em atos reais, envolvendo uma conduta factual, incidindo sobre coisas.

Mesmo a atuação não jurídica tem duas particularidades:

a) Alicerça-se sempre numa norma jurídica- toda a atividade não jurídica só pode ser desenvolvida por

quem se encontra munido de título válido de competência;

b) Pode sempre produzir efeitos jurídicos laterais ou colaterais- ex: responsabilidade civil, criminal ou

disciplinar.

◊ Principais tipos de atividade não jurídica:

1. Operações materiais- a atuação administrativa exige a sua materialização física, num agir que se

traduz na produção de um resultado material ou técnico: a operação material visa modificar um

estado ou situação de facto- toda e qualquer operação material é uma transformação da realidade

factual. Por exemplo, dar uma aula numa escola pública, uma rusga policial, uma operação de

vacinação, o combate aos incêndios.

As operações materiais são condutas voluntárias, sendo discutível que se limitem a exigir uma simples vontade

natural de ação, sem qualquer relevância do aspeto psíquico da ação humana, antes se devendo considerar

que o seu autor tenha sempre de querer ou entender a conduta que produz.

As operações materiais levantam vários problemas jurídicos:

(i) Pode sempre extrair-se delas uma conduta- no fundo servem de facto concludente. Há nelas uma

projeção de efeitos jurídicos. A atuação física da Administração incorpora uma determinada

decisão jurídica, não se podendo dizer que as operações materiais traduzem uma realidade “sem

relevância na ordem jurídica”. Ex: dar uma aula de Direito Administrativo incorpora uma série de

decisões jurídicas, por exemplo, o escolher o programa, a fixação do horário e da sala.

(ii) Muitas das operações materiais materializam, conferem efetividade a normas jurídicas,

nomeadamente a normas de Direitos Fundamentais: por exemplo, dar uma aula corresponde à

efetivação do direito à educação. As operações materiais são assim o instrumento principal de

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efetivação dos direitos fundamentais, tendo, neste caso, de respeitar o princípio da precedência

de lei, especialmente se assumirem um papel lesivo, restritivo ou invasivo da esfera pessoal ou

patrimonial dos cidadãos, assim como, se tiverem reflexos financeiros, têm sempre de respeitar a

legalidade financeira aplicável.

(iii) A própria atuação material obedece a princípios jurídicos e está sujeita a controlo, podendo gerar

responsabilidade.

(iv) Não se pode ainda esquecer que, sendo condutas voluntárias, o autor das operações materiais

tem sempre de agir ao abrigo de uma norma de competência que lhe é conferida pela ordem

jurídica.

Principais tipos de operações materiais:

Operações materiais com relevância constitucional vs operações materiais sem relevância

constitucional- as primeiras são aquelas que implementam direitos fundamentais e todas as demais

que, apesar de terem projeção constitucional, não envolvem direitos fundamentais;

Operações materiais preparatórias vs operações materiais que executam decisões jurídicas- no

primeiro caso temos, por exemplo, uma inspeção local ou um estudo técnico preliminar. No segundo

caso temos os exemplos do pagamento de uma bolsa ou o abate de animais doentes;

Operações materiais instantâneas (atos materiais) vs operações materiais duradouras (operações

continuadas);

Operações materiais internas vs operações materiais externas- as primeiras esgotam os seus efeitos

dentro da Administração (ex: impressão de textos e envios de cartas), enquanto as segundas

extravasam a fronteira da Administração (ex: vacinação de crianças ou adultos);

Operações materiais tituladas vs operações materiais não tituladas- é uma operação jurídica titulada

aquela que tem um ato jurídico a sustentá-la; pelo contrário, é não titulada quando carece de título

jurídico prévio, quando este se encontra ferido de uma invalidade radical (nulo ou juridicamente

inexistente) ou se ultrapassa os termos definidos pelo título (operações a descoberto). Por exemplo,

a Administração tem apenas que ordenar x e resolve alargar o âmbito da sua atuação, e ordena x e y,

em relação ao y há um excesso, uma via de facto.

Regime: Todas as operações materiais se submetem ao art. 2º/3 do CPA (princípios fundamentais).

Estão também sujeitas ao art. 266º CRP.

As garantias contenciosas ao nível das operações materiais podem passar por ações judiciais visando,

designadamente, os seguintes propósitos:

a) A condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar (ex: pagamento de quantia);

b) A intimação da Administração a prestar informações, permitir a consulta de documentos ou passar

certidões;

c) A solicitação judicial da adoção de providências cautelares adequadas;

d) O ressarcimento de danos resultantes da execução das operações materiais ou da sua indevida

omissão.

Perante casos de via de facto, os cidadãos gozam dos seguintes mecanismos de tutela:

(i) Desencadeamento de ações de condenação da Administração, visando a remoção das situações

constituídas ao seu abrigo, adotando-se as condutas necessárias ao restabelecimento de direitos

ou interesses violados;

(ii) Ação de responsabilidade civil visando o ressarcimento dos danos resultantes da via de facto;

(iii) A utilização, como último recurso, ao direito de resistência.

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Problemas em sede de responsabilidade civil: quando a Administração age em via de facto, quem deve ser

responsável pela sua conduta? A própria pessoa coletiva ou o titular do órgão?

- As operações materiais adotadas ou praticadas no exercício das funções públicas ou por causa desse

exercício, mostra-se um critério determinante no traçar da fronteira entre as operações materiais que são

imputáveis à entidade pública;

- Os atos que não sejam imputáveis à entidade pública assumem o estatuto de atos privados praticados pelo

titular ou agente da estrutura administrativa em causa.

2. Atuação informal- a satisfação da complexidade das tarefas a cargo da moderna Administração

Pública não encontra resposta suficiente na utilização exclusiva das tradicionais formas autoritárias

de decisão: a prossecução de algumas tarefas exige, por vezes, formas de ação flexíveis, consensuais,

negociadas. Nem sempre tudo na Administração obedece a um formalismo, a um procedimento. Há,

no fundo, uma atuação marginal às normas do procedimento administrativo. Por exemplo, os

conselhos que a Administração dá, as recomendações ou as advertências ou as informações que se

dão. É também a expressão de uma atuação informal da Administração se esta afirmar, por exemplo,

“se conduzir, não beba”.

Está em causa a ideia de “medidas livremente consentidas”. A atuação informal da Administração alicerça-se

num princípio da subsidariedade da autoridade pública, num privilegiar de mecanismos de cooperação e

consenso entre Administração e cidadãos.

A atividade informal, permitindo uma variabilidade de condutas habilitadoras da adaptação do Direito à

realidade factual, flexibiliza o agir administrativo, legitimando-o numa procura de consenso decisório: a

negociação e a colaboração substituem a decisão ou o agir fático unilateral de autoridade.

O que está na sua base é o princípio da precaução, em que a Administração age preventivamente, evitando o

risco, afastando o perigo. Por vezes é ténue a linha que diferencia a flexibilidade informal e a imperatividade.

Por exemplo, os pais devem ou não estar obrigados a vacinar os filhos: está em causa a diferença entre uma

atuação informal, em que a Administração diz “recomenda-se que se vacinem as crianças com a vacina do

sarampo” e uma atividade imperativa, que diz “devem ser vacinadas todas as crianças com a vacina do

sarampo”.

Principais espécies:

Atividade administrativa externa sem caráter imperativo- envolvendo a transmissão de conselhos,

recomendações, advertências e informações, desde que feita sem uma específica norma habilitadora

ou a simples tolerância relativamente a situações de facto;

Negociação ou concertação- no contexto do procedimento administrativo decisório típico unilateral

(procedimento de atos administrativos) ou plurilateral (procedimento contratual), incluindo a

produção de normas integrantes de um “Direito regulador” e a preparação de decisões

administrativas de elevada complexidade;

Atividade administrativa interna de natureza imperativa ou não imperativa.

Há ainda atuação informal que pode ser praeter legem, se for por ação e até mesmo contra legem, se for por

omissão. A questão é saber se esta atuação contra legem poderá criar uma nova normatividade. Na opinião

de PO, uma reiterada atuação informal contra legem da Administração, desde que acompanhada da ausência

de qualquer sancionamento judicial, se não mesmo confirmada pela jurisprudência administrativa, poderá

fazer emergir de um tal comportamento factual constante uma pauta normativa informal.

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Regime: só por erro se pode pensar que a atuação informal consubstancia um modelo de agir administrativo

desvinculado da juridicidade, numa espécie de zona juridicamente desregulada e imune ao controlo

contecioso. A atuação informal, apesar de ilustrar um enfraquecimento da juridicidade, não conduz a uma

ausência de qualquer vinculatividade.

Toda a atividade administrativa se encontra sujeita aos princípios fundamentais da atividade administrativa e

às normas do CPA que concretizam preceitos constitucionais- art. 2º/3.

3. Atuação política- com o decurso do tempo verificou-se que a existência de atos políticos não é uma

realidade exclusiva das estruturas de topo do executivo. Desde logo, vinculadas todas as autoridades

públicas a aplicar a CRP, numa expressão de um princípio da constitucionalidade positiva, falando-se

em “constitucionalismo administrativo”, passou a existir aqui um espaço de exercício da função

política a cargo de tais autoridades.

Por exemplo, a Administração age politicamente sempre que está direta e imediatamente vinculada à CRP. Há

ainda muitos casos em que o agir da Administração obedece a uma direção política. Por exemplo, saber se se

deve privilegiar o transporte das crianças para as escolas ou dos idosos para os lares é uma opção política.

Escolher o Diretor A ou B com base num programa político é também uma opção política.

O ato político, conformando-se com o quadro jurídico vinculativo, norteia-se por puros critérios de

oportunidade. Se, em sentido diferente, estiver em causa a produção de efeitos jurídicos que imponham um

“sacrifício especial de direitos” a um cidadão, o ato nunca se poderá reconduzir ao conceito de ato político ou,

em alternativa, nunca poderá estar imune a controlo jurisdicional.

Se, independentemente de envolver efeitos lesivos de pessoas individualmente consideradas, a atuação

política violar parâmetros normativos vinculativos, estaremos diante de uma atuação política inválida.

Sabe-se, porém, que a invalidade de uma conduta jurídico-pública não significa necessariamente a existência

de mecanismos judiciais de controlo: os atos políticos revelam, neste contexto, um acentuado défice

processual de controlo, encontrando-se apenas sujeitos à apreciação crítica por parte da opinião pública e

das assembleias representativas.

Os atos políticos da Administração traduzem, então, linhas programáticas ou opções fundamentais no domínio

do agir administrativo que, visando ser norteadoras da conduta futura dos órgãos decisórios, exercendo uma

função de “indirizzo” político, carecem de implementação e visam a produção de efeitos jurídicos ou materiais.

Espécies de atos políticos:

Atos políticos unilaterais- ex: resolução do Conselho de Ministros;

Atos políticos bilaterais- ex: um pacto municipal;

Puros atos políticos- ex: geminar a cidade portuguesa x com a Suíça;

Atos políticos mistos- atos políticos e simultaneamente jurídicos. Ex: negociação e celebração de um

acordo internacional sobre pescas.

Regime: conformidade com a CRP (arts. 3º, 18º, 111º, 266º), respeito pelos princípios do art. 2º/3 CPA e

limitadamente sujeitos a controlo judicial (sempre que a atuação política gerar lesões individualmente

identificáveis, num exercício violador de posições jurídicas subjetivas, os lesados têm à sua disposição o direito

a uma tutela jurisdicional efetiva).

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$ A Inatividade Administrativa

A Administração adota, por vezes, uma conduta omissiva: são os casos de inatividade, de silêncio, de inércia.

Casos em que a Administração não decide, não age. Por aqui passa uma das mais graves disfunções do agir

administrativo, traduzindo uma forma de inexecução da lei, sem embargo de também existirem casos em que

a própria lei vincula a Administração a abster-se de agir ou em que a cautela o justifica.

Uma primeira manifestação histórica contra inércia do poder perante pretensões formuladas pelos

particulares remonta à Magna Carta, de 1215: se, nos 40 dias subsequentes ao exercício do direito de petição,

não for dada satisfação, permite-se que o rei tenha os seus bens embargados e deixe de ser obedecido, até

que a pretensão seja atendida.

Bem mais recentemente, ante pretensões formuladas pelos cidadãos junto da Administração Pública, a

ausência de qualquer resposta, suscitava a impossibilidade de o particular recorrer aos tribunais. Visando

obviar tal efeito, o Direito francês estabeleceu que, quando alguém pedia alguma coisa à Administração, esta

podia fazer uma de três coisas:

1. Podia deferir, dizer que sim;

2. Podia indeferir, dizer que não;

3. Indeferimento tácito- Quando não queria dar o que lhe era pedido, o melhor era não dizer nada.

Deste modo, o particular não podia ir a tribunal impugnar. Se, no final de um determinado prazo, a

Administração nada disser, presume-se que a Administração indeferiu.

Em Portugal, a figura do ato tácito de indeferimento foi introduzida pelo art. 58º do Regimento do Conselho

Superior das Colónias. A relevância do silêncio administrativo começou, neste sentido, por assumir uma

dimensão contenciosa, procurando fornecer um mecanismo de tutela perante situações de inércia

administrativa: hoje, além desta vertente, a omissão de resposta administrativa a uma pretensão dos cidadãos

consubstancia também a violação do direito a uma resposta (art. 52º/1 e 268º/2 CRP).

A inércia administrativa é sempre a violação do devido procedimento, uma vez que se viola o prazo de uma

decisão razoável.

Nem toda a inércia administrativa assenta, todavia, num dever legal de decisão subsequente a assuntos que

tenham sido apresentados pelos interessados: a inércia administrativa pode também ser a expressão do não

exercício de uma competência administrativa que é independente de qualquer prévia pretensão ou

comunicação dos interessados. Neste caso, há uma inércia em que relação a um comportamento factual.

Assim, a inércia administrativa, consubstanciando uma conduta omissiva da Administração, envolve a

ausência de qualquer ação ou decisão expressa ou implícita, numa inatividade que, ultrapassando o prazo

legal ou razoável da decisão, traduz o não exercício de uma competência face a determinada situação.

Espécies:

a) Inércia declarativa- omissão de uma declaração jurídica. Pode ser:

- Inércia de base pretensiva- inércia perante assuntos que lhe tenham sido apresentados pelos particulares,

trauzida numa ausência de resposta ou decisão expressa face a interesses pretensivos, violando o dever legal

de se pronunciar que recai sobre a Administração Pública;

- Inércia sem base pretensiva- inércia sem qualquer solicitação ou interpelação pretensiva dos cidadãos,

revelando o não-exercício ex officio de um poder de agir a que a Administração se encontrava vinculada e é

independente de pretensão, comunicação, petição, representação ou queixa dos particulares.

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b) Inércia material- omissão de uma conduta física, de natureza material ou técnica. Pode ter três

configurações:

- Omissão de uma autotutela executiva- ex: é declarada que são construções ilegais as que se localizam na ilha

formosa. A autotutela executiva traduz-se, neste caso, na demolição dessas construções.

- Inexecução de uma sentença judicial- algumas sentenças exigem a prática de uma operação material. No

limite, esta inércia pode consubstanciar-se na prática de um crime;

- Inatividade prestacional administrativa ou paralisia dos serviços públicos- a Administração está obrigada a

prestar, a satisfazer direitos fundamentais ou subjetivos dos cidadãos (ex: está obrigada a dar aulas), mas pode

ocorrer que haja uma inércia de natureza prestacional. O exemplo típico é o tema do direito à greve: em que

termos é possível conciliar o direito a exercerem o direito à greve e o princípio da continuidade dos serviços

públicos. Esta conciliação será feita através dos serviços mínimos e, no limite, através de um poder excecional

do Governo de obrigar à prestação mesmo quem está em greve, que são os casos de requisição civil.

A inércia administrativa pode ainda incidir sobre diferentes formas de exercício da atividade administrativa,

salientando-se as três principais:

1. Omissão regulamentar;

2. Omissão contratual ou de convénios orgânicos;

3. Omissão de ato administrativo.

Regime comum: há traços comuns a estas figuras:

(i) Constitui sempre o incumprimento de um dever legal, de uma vinculação- a conduta omissiva é

sempre ilegal, uma vez que há um dever legal de agir.

(ii) Nem sempre há tutela jurisdicional efetiva- nem sempre um tribunal pode agir no sentido de se

substituir à Administração. Ex: a Administração está obrigada a dar uma resposta a uma revisão de

uma prova escrita; se a Administração passar o prazo, pode ir-se a tribunal, mas o tribunal não se pode

substituir ao professor na revisão da prova. Há, então, dois limites à tutela jurisdicional efetiva:

- A tecnicidade da respetiva atividade;

- O princípio da separação de poderes impede que o juiz se possa substituir ao decisor administrativo que

se encontra numa situação de inércia, tornando-se ele administrador.

Por isto, pode dizer-se que é mais fácil controlar o agir ilegal por ação do que por omissão.

A Administração encontra-se vinculada, porém, a conferir eficácia às decisões judiciais, sob pena de crime de

desobediência, sem prejuízo (i) da existência de causas legítimas de inexecução e (ii) de poder discutir a

validade constitucional da norma habilitante do tipo de intervenção judicial sobre a esfera administrativa,

designadamente à luz da separação de poderes.

(iii) Se há uma lesão e essa lesão não é passível de ser satisfeita através da reconstituição da situação, só

há uma solução: responsabilidade civil administrativa. Nem se pode excluir que, perante uma

situação de inércia administrativa geradora de incumprimento de obrigações emergentes do Direito

da UE, essa conduta seja passível de gerar a responsabilidade do Estado Português junto das instâncias

da UE.

A verificação de uma situação de inércia não obsta a que a Administração possa, em momento posterior, agir,

adotando a conduta legalmente devida, uma vez que, por via de regra, o decurso do prazo legal ou de um

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prazo razoável de decisão não determina a extinção dos poderes decisórios face ao caso concreto, salvo em

duas situações:

1. Se o prazo legal, em procedimento de iniciativa oficiosa, assumir a natureza de prazo máximo, tiver

sido estabelecido como garantia do cidadão a obter uma definição administrativa da sua situação

jurídica em cenários passíveis de conduzir a uma decisão com efeitos desfavoráveis (ex: face à sua

honorabilidade), o decurso do prazo faz caducar o procedimento;

2. Se, entretanto, se tiver verificado uma vicissitude ao nível da competência, até por força do princípio

da tutela da confiança face a uma reiterada e prolongada inércia administrativa.

(iv) Tutela da confiança- pode suscitar relevância positiva da inércia, ou seja, uma omissão administrativa

pode ser fonte de posições jurídicas favoráveis, através de três figuras:

- Toleratio (tolerância) administrativa- traduzindo uma condescendência ou indulgência decorrente da

ausência de atuação administrativa face a certos comportamentos ilegais ou ilícitos dos particulares, numa

inércia sancionatória da violação de normas por via da criação de uma “distância entre as leis e a sua

aplicação”, mostra-se passível, desde que consciente, estável e duradoura, de criar direitos subjetivos

amparados na tutela da confiança e da boa fé. Ex: colocar o carro num sítio em que é proibido e pedir ao

polícia que o permita durante uns minutos e o polícia conceder essa tolerância. Se o polícia multar a pessoa,

a pessoa pode invocar que o polícia criou nele uma confiança legítima, ao permitir que o carro ficasse

estacionado naquele sítio por uns minutos. Noutro exemplo, se o polícia concedesse essa tolerância a x, se a

y fosse recusada essa mesma tolerância, este poderia novamente invocar esse argumento.

- Supressio- determina que, em nome da tutela da confiança, uma abstenção de exercício de certa

competência durante um período prolongado de tempo, desde que a mesma devesse ser no caso concreto

exercida e disso o respetivo órgão tivesse perfeito conhecimento, gere a representação ou a convicção no

cidadão de que essa competência não seria mais exercida, funcionando a conjugação do decurso do tempo

nessa inatividade como a expressão de um factum proprium que, apesar de ilegal, não poderia ser, por força

do princípio constitucional da boa fé, contrariado, salvo indemnizando os danos decorrentes da frustração da

confiança.

- Surrectio- assumindo-se como fenómeno reflexo da supressio, tendo a sua base legal no princípio da boa fé,

traduz a situação em que um cidadão beneficia diretamente com o não exercício de uma competência

administrativa, especialmente quando esta envolveria a prática de atos ablativos, adquirindo uma vez mais

por efeito da conjugação entre o decurso do tempo e a tutela da confiança decorrente da inércia, um direito

subjetivo que se constitui ex novo.

A inércia pode não ser a expressão de uma intencionalidade, mas se o for, se expressar uma intencionalidade

que configura como um ato jurídico com a natureza de negócio jurídico, a conduta omissiva mostra-se passível

de ser convertida numa forma de agir administrativo:

Em vez de decidir expressamente, por exemplo, emitindo um ato escrito de deferimento, o órgão

competente, pretendendo produzir esse efeito e sabendo que com o silência haverá um deferimento

tácito, prefere aguardar silêncio, ficando inerte;

O exercício de tal preferência será agora a expressão de uma permissão implícita para o exercício de

uma conduta omissiva contra legem: há aqui, por via de tais atos tácitos de deferimento, uma forma

alternativa e preferencial de os órgãos administrativos exercerem a sua atividade.

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◊ Omissão regulamentar- ex típico: uma lei que diz “esta lei deve ser regulamentada no prazo de

60 dias”; passam 60 dias e a lei continua sem ser regulamentada. Ocorrendo no âmbito da atuação

normativa da Administração, pode consistir numa situação (i) de inércia relativamente ao

cumprimento de formalidades procedimentais respeitantes à emanação de um regulamento

(inércia formal ou procedimental) ou (ii) numa inércia traduzida na ausência absoluta de

regulamento (inércia material ou substantiva). Em qualquer dos casos há ilegalidade.

A omissão regulamentar compreende, deste modo, duas realidades jurídicas diferentes:

a) A omissão pode versar sobre o procedimento administrativo de feitura de normas regulamentares,

desde a ausência de resposta ao pedido de elaboração, modificação ou revogação de regulamentos,

até ao incumprimento por omissão de quaisquer atos ou formalidades legalmente previstos;

b) A omissão poderá incidir sobre a própria emanação do regulamento, sempre que a sua adoção

corresponda a um dever de conferir exequibilidade a um ato legislativo, dentro do prazo

especificamente fixado ou, na sua falta, no prazo geral de 90 dias.

A omissão regulamentar pode ter por base a violação de três diferentes tipos de legalidade:

(i) Legalidade interna- enquanto normatividade produzida e vigente exclusivamente dentro da

Administração, numa omissão geradora de responsabilidade disciplinar do órgão subalterno;

(ii) Legalidade externa nacional- determinando essa omissão uma violação de lei portuguesa, passível

de acionar responsabilidade política e civil;

(iii) Legalidade internacional ou da União Europeia- produzindo uma violação agravada da legalidade,

suscetível de gerar responsabilidade internacional do Estado.

Noutro sentido, a omissão regulamentar substantiva ou material pode ser total ou parcial, consoante envolva

a ausência de qualquer norma ou, em alternativa, uma regulação incompleta, lacunar ou imperfeita.

Note-se, porém, que nem sempre a incompletude regulamentar traduz, necessariamente, uma omissão ilegal:

(i) A incompletude poderá revelar uma forma de reconhecimento de um espaço de autonomia

normativa para entidades públicas ou menores ou, em alternativa, de um espaço de autonomia

da vontade autorreguladora para setores da sociedade civil;

(ii) Neste sentido, a incompletude regulamentar poderá mesmo concretizar um imperativo

constitucional, traduzindo o exercício de uma limitação à amplitude do poder regulamentar.

Regime específico:

A omissão de um regulamento, por efeito do decurso do prazo devido para a sua emanação, pode conduzir a

duas vias de ação:

1. Uma via administrativa, verificando-se que todos aqueles que se sentem prejudicado pela omissão

podem solicitar ao órgão competente a sua emissão- direito de petição (art. 137º/2 CPA);

2. Uma via judicial, visando obter de um tribunal administrativo a condenação da Administração à

emissão das normas devidas, destinadas a “dar exequibilidade a atos legislativos carentes de

regulamentação”.

A omissão de quaisquer atos ou formalidades legalmente previstos no procedimento regulamentar mostra-se

passível de gerar a invalidade do regulamento, mostrando-se suscetível de alicerçar dois mecanismos judiciais

garantísticos:

(i) Uma ação autónoma de impugnação da validade do regulamento, visando a sua declaração de

ilegalidade com força obrigatória geral;

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(ii) Uma impugnação judicial de natureza incidental da validade do regulamento sempre que, numa

situação concreta, se suscite a respetiva aplicação.

◊ Omissão contratual e de convénios- se uma das partes não cumpre, será admissível a figura da

exceção do não cumprimento? Ex: no âmbito de uma concessão de transportes públicos em que há

uma entidade pública que paga mensalmente a uma entidade privada. Se a entidade pública não

pagar, será admissível à entidade privada ficar “estrangulada” por não ter verbas para pagar aos seus

empregados, para pagar a gasolina? Será legítimo que esta deixe de transportar os cidadãos? Poderá

haver, neste caso, um limite à exceção do não cumprimento, por razões de interesse público.

A omissão pode ter lugar no momento da formação dos vínculos bilaterais, dizendo respeito a situações de

inércia na emanação de atos ou na prática de formalidades anteriores à celebração do contrato ou convénio,

incluindo a sua própria não celebração; ou com o momento da execução desses vínculos, versando agora a

inércia administrativa relativamente ao cumprimento de obrigações legais, contratuais ou convencionais que,

sendo posteriores à celebração do vínculo, dizem respeito ao desenvolvimento da relação estabelecida.

No domínio da execução contratual, a inércia administrativa pode envolver duas distintas hipóteses:

a) Pode traduzir uma omissão de cumprimento dos deveres que a Administração possui perante o seu

cocontratante, numa situação de inércia lesiva da relação contratual e da posição jurídica deste último

– inércia de efeitos intracontratuais;

b) Pode consistir numa ausência de fiscalização ou de imposição de uma correta execução do vínculo

contratual junto do cocontratante, lesando essa inércia os cidadãos que se encontram insatisfeitos

com a conduta prestacional do cocontratante – inércia de efeitos extracontratuais.

A inércia contratual ou convencional pode traduzir-se na violação de três distintos parâmetros de referência:

Desrespeito de vinculações internacionais ou provenientes do Direito da UE, numa omissão geradora

de uma ilegalidade agravada;

Preterição de normas imperativas emergentes de atos legislativos, num cenário de omissão violadora

de vinculações ditadas pelo legislador;

Preterição omissiva de normas regulamentares ou de um vínculo contratual que, funcionando como

acordo-quadro ou contrato-base, determina uma violação de anterior vinculação administrativa.

Regime especial:

Esta matéria tanto pode ser regulada pelo Direito Administrativo como pelo Direito Privado, uma vez que os

contratos podem ser de Direito Privado. Em qualquer caso, há sempre que tomar em consideração os

princípios gerais do Direito Comum em matéria de contratos, igualmente aplicáveis aos convénios

interorgânicos, sem prejuízo da especificidade destes vínculos e do seu âmbito de operatividade intra-

administrativo.

A inércia administrativa quanto à outorga de um contrato público (e, por identidade de razões, se for de Direito

Privado) pode originar dois efeitos distintos:

(a) O adjudicatário pode desvincular-se da proposta, readquirindo a caução prestada e o direito a ser

indemnizado de todas as despesas realizadas com a elaboração da proposta e a prestação da caução;

(b) O adjudicatário poderá, em alternativa, exigir judicialmente a celebração do contrato.

Durante a execução do contrato, a omissão administrativa pode recair sobre os deveres acessórios a cargo do

contraente público (ex: satisfazer os pedidos de informação formulado pelo cocontratante) ou essa omissão

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pode incidir sobre as prestações que constituem a execução do próprio objeto do contrato a cargo do

contraente público.

◊ Omissão de ato administrativo- a Administração deveria decidir o caso do particular e não o fez. A

omissão referente a situações individuais configura-se como categoria residual, compreendendo

todas as formas de omissão administrativa que não se reconduzem a situações de inércia da

Administração no âmbito da sua atividade regulamentar, contratual ou convencional.

Em relação às omissões de natureza individual: (i) ou está em causa a falta de atos administrativos, (ii) ou está

em causa a falta de declarações negociais, (iii) ou está em causa a falta de atos processuais, (iv) ou está em

causa a falta de atos unilaterais privados, (v) ou está em causa a falta de operações materiais.

Esta matéria é regulada tanto pelo Direito Administrativo, como pelo Direito Privado, como pelo Direito

Processual Civil, assim como pelo Direito Processual Penal.

A estrutura explicativa do quadro delimitativo do regime da omissão administrativa referente a situações

individuais deve fazer-se partindo da dicotomia que separa (i) a inércia de base pretensiva e (ii) a inércia sem

base pretensiva:

→ No âmbito do CPA, e em relação aos casos de inércia de base pretensiva, a regra geral é a de que, se

alguém formula um pedido e a Administração não responde, não há deferimento. O silêncio vale

como recusa do pedido formulado. É o que resulta do art. 129º do CPA – requisitos:

a) Existência da formulação de um pedido, de uma pretensão, a um órgão administrativo (não necessita

de ser ao órgão competente, uma vez que existe o dever de remeter oficiosamente ao titular do órgão

competente, caso o pedido seja formulado a um órgão incompetente);

b) Existência de um dever legal de agir- por exemplo, se o que se pedir for inválido ou fora de prazo, ou

se quem pede não tem legitimidade para pedir, não há dever legal de decidir, mas haverá um dever

legal de informar que esse pedido é inválido;

c) Existência de um decurso de prazo;

d) Existência desse período de tempo sem uma decisão da Administração.

A inércia administrativa surge assim como um puro facto concludente de uma declaração tácita de

indeferimento ou rejeição da pretensão formulada.

A tutela jurisdicional deste tipo de inércia administrativa faz-se por via da ação para obter a condenação da

entidade competente à prática do ato administrativo ilegalmente omitido, sendo o objeto do processo a

pretensão do interessado.

» Deferimento tácito:

Há, contudo, casos em que o silêncio significa deferimento- casos do art. 130º/1 CPA, salientando-se a

seguinte particularidade:

(i) O deferimento tácito deixou de depender da simples falta de decisão dentro do prazo legal,

passando a tomar como referência a ausência de notificação da decisão final sobre a pretensão;

(ii) Deste modo, ainda que tenha existido uma decisão expressa de indeferimento, se não tiver sido

expedida a notificação até ao primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo legal de decisão, a falta

de notificação (ou a notificação tardia) equivale a deferimento, sem prejuízo de se poder discutir

se a posterior notificação da decisão expressa, sem sentido contrário, equivale a uma implícita

revogação.

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O deferimento tácito pode ser externo, se envolver um particular, ou um deferimento tácito interno, se

ocorrer dentro das fronteiras da Administração.

Regime:

1. O deferimento tácito tem natureza excecional, apenas existindo nos casos expressamente indicados

na lei ou em regulamento, razão pela qual nunca se mostra passível de interpretação analógica;

2. A ocorrência de deferimento tácito depende ainda de a pretensão formulada ser conforme com a lei,

ter sido instruída com toda a documentação legalmente exigida e de se verificarem todos os demais

pressupostos legais;

3. O deferimento tácito, investindo o seu destinatário numa posição jurídica ativa, reconduzível à

titularidade de um direito subjetivo, encontra-se sujeito ao regime jurídico aplicável aos atos

administrativos constitutivos de direitos.

O deferimento tácito traduz uma forma de exercício de uma competência decisória administrativa,

expressando, se incidir sobre pretensões dos cidadãos, uma linha implementadora de uma política de

simplificação administrativa e liberalização da atividade privada.

Para além disso, os atos tácitos positivos traduzem uma forma de materialização do incumprimento do dever

procedimental de decisão expressa e, simultaneamente, assumem-se como atos administrativos criados por

lei; neste último sentido, são a expressão de uma implícita permissão ou habilitação legal para o exercício de

uma conduta omissiva contra legem.

» Comunicação prévia:

Num propósito de simplificação dos mecanismos de controlo administrativo, assumindo uma natureza

substitutiva dos tradicionais procedimentos autorizativos, a lei pode sujeitar o início de certas atividades

privadas a comunicação administrativa prévia do interessado, removendo ou reduzindo os obstáculos de

ordem burocrática: esse é o sentido do art. 134º CPA, visando, deste modo, liberalizar o exercício de certas

atividades privadas, consagrando uma manifestação de subsidariedade da intervenção administrativa.

A comunicação prévia do início de uma atividade permite uma substituição do princípio autoritário pelo

princípio da autorresponsabilidade do interessado, numa expressão de um fenómeno de autoadministração

por parte dos privados: a lei investe os particulares da faculdade de avaliar a existência dos pressupostos legais

ou requisitos para o exercício de uma determinada atividade, comunicando depois o resultado à

Administração Pública.

Há, contudo, duas condições de operatividade:

1. Não ser necessária a existência de qualquer fase probatória envolvendo valorações técnicas por parte

da Administração.

2. Inexistirem limites numéricos ou contingentes máximos para o exercício da atividade em causa.

A autoridade administrativa pode sempre opor-se ao exercício da atividade em causa, considerando não se

encontrarem preenchidos os pressupostos legais e regulamentares, segundo a declaração efetuada pelo

interessado, num verdadeiro “poder de veto”.

Se, porém, a autoridade administrativa nada disser face à comunicação prévia de início de atividade, durante

um determinado prazo, apesar de não existir a formação de um ato de deferimento tácito, haverá uma

declaração tácita de não objeção a que o interessado desenvolva a atividade pretendida. Mas nada disso

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impede, todavia, que a Administração venha, em momento posterior, exercer os seus poderes de fiscalização,

pondo em curso os meios adequados.

A ausência de objeção inicial da Administração ao início de uma atividade privada, por efeito da inércia

decisória face a uma comunicação prévia, não impede a suscetibilidade de terceiros se considerarem lesados

ou prejudicados pelo desenvolvimento dessa atividade, desempenhando o papel de contrainteressados:

Os terceiros que se considerem lesados ou prejudicados podem pedir que a Administração adote

providências contrárias ao seu comportamento omissivo e, ante a recusa ou o seu silêncio, podem agir

judicialmente;

Deve mesmo admitir-se a utilização direta de meios judiciais pelos terceiros lesados ou prejudicados

(ou que venham, previsivelmente, a sê-lo) pela inércia habilitante de um silêncio face ao início do

exercício de uma atividade privada.

A comunicação prévia de início de atividade pode tratar-se de uma mera comunicação ou comunicação prévia

sem prazo, consubstanciando-se numa mera comunicação de uma atividade que se encontra já, efetivamente,

iniciada, verificando-se que a habilitação para o seu desenvolvimento decorre de uma legitimação ex lege; ou

pode tratar-se de uma comunicação prévia com prazo, que incide sobre uma atividade que se deseja iniciar,

verificando-se que o seu início se encontra dependente do decurso de um prazo sem que a Administração se

tenha oposto.

A comunicação prévia traduz o exercício de um dever jurídico-administrativo que recai sobre o titular de um

direito condicionado: sem a comunicação prévia (ou contra a oposição expressa administrativa), o exercício

da atividade privada em causa será ilícito, pois não se encontra removida a condição a que se encontra sujeita

o início (ou a continuação) da atividade que a lei subordina a comunicação prévia.

» O silêncio declarativo privado:

A omissão decisória da Administração pode também alicerçar-se numa pretensão ou numa comunicação de

factos regulados pelo Direito Privado – estaremos aqui diante de uma situação de silêncio declarativo privado

de entidades administrativas.

O silêncio declarativo privado da Administração resulta, portanto, de uma conduta omissiva de entidades

administrativas perante pretensões ou a comunicação de factos formulados por entidades privadas e cuja

disciplina é pautada por normas de Direito Privado.

O silêncio declarativo privado da Administração tem o seu valor definido nos termos do art. 218º CC e na

demais legislação de Direito Privado aplicável:

a) O valor do silêncio, enquanto declaração negocial, é aqui aquele que resultar da lei, uso ou de

convenção;

b) Na ausência de lei, uso ou convenção atribuindo valor ao silêncio, ele mostra-se juridicamente

irrelevante como declaração.

→ É controverso se, à luz de lei, uso ou convenção, aquele que ficou em silêncio, podendo e devendo

ter-se manifestado, exercendo um ónus, aceita a proposta ou, em alternativa, se haverá apenas o

incumprimento de um dever de se expressar, gerando eventual dever de indemnizar a frustração da

confiança de quem pensava receber uma resposta: na opinião de PO, consente tacitamente quem,

podendo opor-se a uma medida ou conduta, se cala.

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Não se revela pacífico que, por via convencional, se possa atribuir ao silêncio declarativo privado da

Administração Pública um sentido diferente daquele que teria, em igualdade de circunstâncias,

designadamente perante vínculos contratuais privados passíveis de serem objeto de contratos

administrativos, por via das normas de Direito Administrativo.

→ Inércia sem base pretensiva

☼ Inércia administrativa ex officio: os atos de emanação obrigatória

A inércia pode traduzir-se na violação de um dever de ação que vincula ex officio a Administração e é

independente de qualquer impulso dos particulares.

A inércia administrativa sem base pretensiva pode reconduzir-se a duas principais situações:

(a) Pode tratar-se de uma inércia procedimental, traduzida na omissão (i) em iniciar um procedimento

devido, (ii) em dar-lhe continuação ou (iii) em colocar-lhe termo;

(b) Pode, em sentido diferente, reconduzir-se ao plano substantivo ou material, envolvendo a omissão

da prática de atos administrativos de emanação obrigatória. Pode traduzir-se na omissão de exercício

de uma competência administrativa de autotutela declarativa ou, nos casos em que seja legalmente

possível, na omissão do exercício da autotutela executiva.

Em qualquer das hipóteses, desde que exista um prazo máximo de decisão administrativa criado a favor ou

como garantia do cidadão contra intervenções desfavoráveis na sua esfera jurídica, a inércia administrativa

pode produzir efeitos preclusivos sobre o exercício de poderes administrativos.

A inércia administrativa ex officio pode encontrar a origem do seu dever de agir em diferentes fontes e, neste

sentido, traduzir variados níveis ou efeitos de violação da ordem jurídica, salientando-se os seguintes:

(i) O dever de ação pode alicerçar-se em normas constitucionais dotadas de aplicabilidade direta

junto da Administração Pública: a inércia aqui gera uma situação de inconstitucionalidade;

(ii) Pode resultar de uma norma da UE, de convenção internacional, de ato legislativo, regulamentar

ou de uma cláusula contratual administrativa, reconduzindo-se a inércia a uma típica situação de

violação de lei;

(iii) Pode basear-se numa sentença judicial, traduzindo a inércia numa situação de inexecução de

uma sentença, que, se consubstanciar a ausência de causa legítima, se reconduz a uma

inexecução ilícita, passível de gerar responsabilidade criminal por crime de desobediência

qualificada;

(iv) Pode resultar de um ato administrativo que, carecendo de execução, por via de outros atos

administrativos ou de operações materiais, geram uma inércia traduzida na incompletude (ilegal)

de uma anterior decisão administrativa;

(v) Pode ainda radicar em comandos hierárquicos, diretivas ou recomendações, integrando uma

genérica legalidade intra-administrativa que será violada pela inércia das estruturas encarregues

da sua implementação;

(vi) Poderá, por fim, emergir de atos jurídicos privados vinculativos da atuação administrativa,

traduzindo a sua omissão um caso de inércia na prática de atos jurídicos privados.

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Mecanismos garantísticos face a inércia administrativa ex officio:

◊ A omissão do dever de omissão de atos administrativos externos que resulta diretamente da lei ou de

vínculo contratual poderá sempre habilitar que os interessados lancem mão da ação administrativa

de condenação à prática do ato devido;

◊ Não estando em causa a omissão de atos administrativos externos, o contencioso administrativo

encontra como resposta as ações de condenação da Administração à adoção de comportamentos, das

condutas necessárias ao restabelecimento dos direitos ou interesses violados ou ao cumprimento de

outros deveres de prestar;

◊ Etc.

☼ Inércia processual administrativa

Sem ter na sua base uma imediata pretensão dirigida ou formulada à Administração, nem se consubstanciar

numa omissão de um ato de emanação obrigatória, a circunstância de a atividade administrativa também

compreender uma dimensão processual ou contenciosa, agindo juntos dos tribunais na defesa do interesse

público, expressando a prática de atos processuais, mostra-se também passível de gerar situações de inércia.

A inércia processual administrativa não traduz, em termos imediatos ou diretos, a violação de um dever

inerente ao exercício de uma competência vinculada, antes revela o não cumprimento de um ónus, podendo

daí resultar efeitos negativos para as posições jurídicas sustentadas pela Administração junto dos tribunais:

(i) A inércia processual administrativa tem subjacente o exercício de posições jurídicas processuais

ou contenciosas por parte da Administração que podem comportar situações de vantagem para

o seu entendimento do que seja o interesse público;

(ii) O entendimento administrativo do interesse público encontra-se, todavia, sujeito ao contraditório

da outra parte processual, numa posição jurídica de igualdade, à luz das regras decorrentes do

devido processo legal, competindo a decisão final a um órgão imparcial ao litígio – o tribunal.

Pode ainda suceder, no âmbito da inércia relativa a situações individuais, que se verifique uma situação de

dupla inércia, cruzando cumulativamente as figuras anteriormente traçadas:

a) Pode ocorrer que, num primeiro momento, existia uma situação de inércia sem base pretensiva,

verificando-se que a Administração omite o cumprimento de um dever legal de agir ex officio ou de

atuação processual junto dos tribunais;

b) E, num segundo momento, ante essa inércia inicial, um particular solicita junto da Administração que

esta adote a conduta até então omitida, permanecendo esta, agora numa situação de base pretensiva,

numa continuada inação.

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Regime Comum do Procedimento Administrativo

» Aspetos comuns:

1. Competência

Um primeiro nível de competência diferencia uma esfera de ação do poder público (hemisfério do público) e

uma esfera própria da sociedade civil (hemisfério do privado). Se a esfera do público se imiscuir na esfera do

privado e vice-versa, o ato será nulo.

Um segundo nível de competência localiza-se dentro do âmbito do Hemisfério do Poder público, envolvendo

uma repartição de áreas de intervenção decisória à luz do princípio da separação de poderes, enquanto

garantia constitucional de autonomia decisória de cada um dos poderes e de todos entre si, razão pela qual

uma intervenção do poder administrativo na esfera de ação dos poderes legislativo ou judicial, traduzindo

uma situação de usurpação de poderes, consubstanciará a prática de um ato nulo.

Um terceiro nível de competência localiza-se dentro do âmbito do poder administrativo, apelando às normas

de repartição de atribuições ou fins entre diferentes entidades públicas e, no âmbito do Estado, entre os

diferentes ministérios, razão pela qual uma intervenção decisória violadora de tais normas, gerando uma

situação de incompetência absoluta, determinará a nulidade do agir administrativo (art. 161º/2 b).

→ A incompetência absoluta pode assumir duas vertentes:

- Incompetência absoluta interna – incompetência absoluta dentro do contexto das entidades que integram a

Administração Pública portuguesa; ex: a CM Lisboa pratica um ato que é da competência da CM de Setúbal.

- Incompetência absoluta externa – incompetência absoluta num contexto de progressiva transnacionalidade

do agir administrativo, envolvendo a intervenção indevida de entidades administrativas estrangeiras, da UE

ou internacionais sobre a esfera decisória da Administração Pública portuguesa, ou vice-versa; ex: uma

empresa pública da Catalunha participa num concurso público em Portugal. Essa entidade tem fins que se

limitam a prestar atividade circunscrita ao território da comunidade da Catalunha. Assim, não podia participar

em concursos públicas fora da Catalunha (em Espanha) e, muito menos, fora do território do Estado (em

Portugal).

Um quarto nível de competência – agora em sentido próprio – diz respeito à repartição de poderes entre as

diferentes estruturas orgânicas existentes no interior de uma mesma entidade administrativa, registando-se

que, se um órgão age sobre a esfera de poderes de um outro órgão dessa mesma entidade, sem para o efeito

estar legalmente habilitado, em termos materiais ou territoriais, haverá uma situação de incompetência

relativa, reconduzível à prática de um ato anulável.

Há alguns problemas que se colocam ao nível da incompetência relativa (órgãos da mesma entidade pública):

a) No âmbito da competência conjunta- a lei atribui os poderes a dois órgãos e ambos têm de ter

intervenção. Ex: a portaria depende de despacho conjunto do ministro A e do ministro B; e se o

despacho só é praticado por um deles? Há incompetência relativa mas é menos grave, uma vez que

ao menos um dos órgãos interveio, podendo falar-se em incompetência relativa parcial.

b) No âmbito da competência delegada- quando um órgão que a lei identifica como potencial delegado

age sobre poderes que são delegáveis mas que não lhe foram delegados, existe apenas uma situação

de incompetência delegada.

c) Erro sobre a competência- pensa que é competente sobre a matéria, mas não é. O erro é desculpável

quando existem múltiplas normas e não se sabe exatamente qual a norma que se deve aplicar. Já se

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um órgão, conhecedor de não possuir competência ou admitindo essa hipótese como muito plausível,

invadir a área decisória de outro órgão, haverá ilicitude da incompetência.

A incompetência relativa pode ainda ser positiva, quando dois ou mais órgãos reivindicam competência sobre

aquela matéria; ou negativa, quando dois ou mais órgãos acham que não são (ou sabem que não são)

competentes sobre determinada matéria, quando na realidade o são.

Regime do CPA:

Nos termos do CPA, sendo a competência fixada no momento em que se inicia o procedimento (art. 37º/1),

são irrelevantes as modificações de facto e de direito à competência que ocorram posteriormente ao início do

procedimento, salvo verificando-se uma das seguintes situações relativamente ao órgão a quem estava

confiado o procedimento (art. 37º/2):

o Se ocorrer a sua extinção ou deixar de ser competente, hipótese em que o processo deve ser remetido

ao novo órgão competente (art. 37º/3);

o Se, sendo inicialmente incompetente, esse órgão vier entretanto a adquirir a competência.

O CPA vincula cada órgão administrativo, antes de qualquer decisão, a proceder a um autocontrolo da sua

própria competência face à questão a que é chamado a conhecer (art. 40º/1), sem prejuízo de também o

problema poder ser arguido pelos interessados, tendo presente os seguintes limites:

a) Se as dúvidas sobre a competência resultam de uma eventual invalidade da norma legal habilitante, o

órgão administrativo não tem normalmente competência para desaplicar a lei, devendo proceder à

sua aplicação, considerando-se competente para decidir a matéria em causa;

b) No âmbito do relacionamento hierárquico, nenhum órgão subalterno pode recusar a execução de um

comando proveniente do seu superior em matéria de serviço, desde que integrante das atribuições

da pessoa coletiva em que se encontra inserido, com o argumento da sua própria incompetência ou

da incompetência do superior sobre a matéria;

c) Em casos de delegação de poderes, o delegado não pode recusar o exercício da competência com o

argumento da indelegabilidade dos poderes em causa ou na incompetência do delegante para emitir

o ato de delegação;

d) Qualquer decisão de um órgão administrativo sobre a sua própria competência é sempre passível de

controlo judicial.

Nos casos em que, à luz do art. 40º/1, os órgãos administrativos podem exercer o autocontrolo da sua própria

competência, importa ter presentes os seguintes efeitos:

i. Sem embargo dos mencionados limites, reconhece-se um poder genérico de todos os órgãos

controlarem a sua própria competência, em termos tais que o órgão incompetente tem sempre

competência para aferir e suscitar a sua própria incompetência – art. 40º/2;

ii. Não obstante ser interessado na decisão da matéria, o órgão perante o qual é suscitada ou arguida

a sua incompetência não se encontra impedido de conhecer da questão sobre a sua própria

incompetência – art. 40º/2;

iii. Em caso de se reconhecer como incompetente, e independentemente de estar em causa uma

pretensão formulada por um interessado, o art. 41º/1 formula um princípio geral: o órgão

incompetente está vinculado a enviar, oficiosamente, a documentação ao órgão que entende ser

competente e, se for o caso, notificar o particular disso mesmo.

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Em situações de conflito de atribuições e de competência, podendo a sua resolução ser suscitada

oficiosamente ou pelos interessados (art. 52º/1), o CPA define as seguintes regras relativas à distribuição da

competência para a sua resolução:

▪ A resolução de todos os conflitos de atribuições e de competência encontra-se sempre sujeita a

intervenção judicial;

▪ Integra a reserva decisória dos tribunais administrativos a resolução de conflitos entre órgãos de

diferentes pessoas coletivas (desde que não se encontrem sujeitas a superintendência) ou entre

órgãos de autoridade administrativas independentes – art. 51º/1 a);

▪ São de resolução governamental os conflitos de atribuições envolvendo pessoas coletivas sujeitas a

superintendência do Estado (art. 51º/1 c)) ou das RA (art. 51º/1 e)), assim como os conflitos entre

órgãos de diferentes ministérios (art. 51º/1 b)) ou, ao nível das RA, entre diferentes secretarias

regionais (art. 51º/1 d));

▪ Se o conflito de competência ocorrer entre órgãos hierarquizados da mesma entidade pública, deverá

a sua resolução ser feita pelo órgão de menor categoria hierárquica que supervisione os órgãos

conflituantes – art. 51º/2.

Três regras para a resolução de conflitos de atribuições e de competência:

O decisor está vinculado a proceder à audição das estruturas orgânicas envolvidas no conflito, salvo

se estes já se tiverem pronunciado – art. 52º/2;

A resolução de conflitos deverá ser proferida no prazo de 30 dias – art. 52º/2;

Em casos de conflito de competência territorial, deve a solução encontrar-se ao abrigo ao postulado

da “localização mais adequada do órgão decisor para a eficiente resolução do assunto” – art. 39º.

» Princípio da legalidade da competência:

Não obstante o art. 36º/1 permitir que, além da lei, a competência possa também ser definida por

regulamento, a verdade é que a competência administrativa pode também resultar de outras fontes:

a) As normas constitucionais dotadas de aplicabilidade direta podem servir de habilitação ao agir

administrativo;

b) Também as normas do Direito da UE com aplicabilidade direta podem conferir competência aos

órgãos administrativos dos Estados-membros;

c) Podem ainda normas consuetudinárias ou princípios gerais de direito servir de fonte habilitadora do

exercício de competência administrativa.

A definição da competência administrativa pela juridicidade nem sempre é feita em termos expressos ou

inequívocos, observando-se a progressiva existência de normas encobertas e outras dotadas de uma abertura

que as torna pouco explícitas, debilitando-se, por essa via, o sentido tipicamente liberal do princípio da

legalidade da competência:

➢ Existem, por um lado, situações de competência administrativa presumida, tal como sucede (1) com

o poder de direção e o vínculo hierárquico, (2) o poder de auto-organização administrativa interna e

(3) os poderes implícitos;

➢ Existem, por outro lado, cláusulas gerais de competência que, por referência, (1) a áreas setoriais (ex:

cláusula depoderes de polícia) ou (2) a poderes residuais (ex: cláusula constante do art. 199º/g) CRP),

investem os seus titulares de competências dotadas de considerável grau de indefinição normativa.

» Irrenunciabilidade e inalienabilidade da competência:

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A proibição de renúncia e de alienação da competência pelo titular do respetivo órgão encontra o seu

fundamento remoto na venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos que, ao longo da Administração

renascentista-barroca, se desenvolveu em termos informais, conduzindo à progressiva patrimonialização dos

ofícios públicos: a ideia de que a competência não é um direito subjetivo do seu titular exige a sua inerente

irrenunciabilidade e inalienabilidade (art. 36º/1).

A competência traduz uma posição jurídica que, conferida por lei, tem o seu exercício sempre vinculado

exclusivamente a razões de interesse público. Isto diz-nos também que a validade de todas as modificações

ao exercício da competência tem sempre de encontrar expressa habilitação legal.

A irrenunciabilidade da competência não impede, todavia, que, tendo um órgão o poder discricionário de

exercer ou não determinada competência, resolva não a exercer: este não-exercício da competência, sem

consubstanciar um caso de renúncia, traduz antes uma forma de exercício legal da competência.

A proibição de alienação da competência tem ainda hoje reflexos ao nível da configuração jurídica da

delegação de poderes:

(i) A delegação de poderes apenas pode ocorrer se prevista na lei e dentro dos poderes legalmente

identificados como sendo delegáveis;

(ii) O delegante pode sempre continuar a exercer os poderes que delegou, assim como pode interferir

sobre o modo como o delegado se encontra a exercer os poderes delegados (art. 49º);

(iii) A delegação nunca pode ter por objeto a globalidade dos poderes do delegante (art. 45º/a)),

excluindo-se a sua utilização como mecanismo indireto ou fraudulento de efeito análogo a uma

alienação temporária e precária de poderes a favor do delegado.

» Flexibilidade das Normas de Competência:

Tradicionalmente etendia-se que as regras de competência obedeciam a um esquema rígido: ou pertence ou

não pertence àquele órgão aquela competência. Contudo, hoje em dia já não existe esta rigidez: a flexibilidade

das normas de competência, sendo sinónima de modernidade do agir administrativo, comporta uma

debilitação da tradicional configuração do princípio da legalidade da competência. No entanto, são razões

atinentes às vantagens de um modelo flexível das regras de competência, ao nível da realização das tarefas

administrativas e da tutela dos particulares, que justificam esse reformular configurativo do princípio da

legalidade da competência.

Esta flexibilidade é visível em três exemplos:

1. Princípio da subsidariedade- em duas vertentes: na relação entre o Estado e as restantes entidades

públicas (art. 6º CRP) e nas relações entre a UE e os Estados membros. Este princípio tem uma

dimensão que tanto pode ser centrífuga (descentralização) ou centrípeta (centralização).

2. Supletividade do Direito do Estado- na ausência de norma produzida pelo ente supraestadual, aplica-

se o Direito do Estado, e este pode não ser apenas em forma de ato legislativo, pode também ser

regulamento.

3. Princípio da prevalência do Direito do Estado- em certos casos, o Direito do Estado impõem-se sobre

as atribuições das entidades infraestaduais.

O princípio da flexibilidade das regras de competência expressa-se em três postulados nucleares:

a) A elasticidade das normas definidoras de atribuições;

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b) A mobilidade das regras de distribuição do exercício da competência;

c) A excecionalidade da definição legal de um único órgão exclusivamente competente sobre certa

matéria.

A ideia de flexibilidade das regras de competência transparece também das próprias normas do CPA, podendo

falar-se num princípio de mobilidade das regras de distribuição do exercício da competência, visível em

quatro institutos:

1. A delegação de poderes (arts. 44º a 50º) – permitindo que o delegante alargue ou comunique o

exercício da competência ao delegado, sem que aquele deixe de poder exercer os poderes delegados,

encontrando-se ainda o delegado vinculado a respeitar as orientações e instruções do delegante,

flexibiliza um modelo rígido de regras de exercício da competência;

2. A substituição (art. 43º) – enquanto permissão legal para um órgão (substituto) suceder, em termos

temporários ou pontuais, no exercício da competência pertencente a outro órgão (substituído), traduz

uma outra modalidade de flexibilidade das regras de exercício da competência, uma vez que,

investindo o substituto de uma competência própria que se consubstancia no exercício de poderes

que normalmente pertencem ao substituído, revela a mobilidade das regras de distribuição do

exercício da competência;

3. A competência sobre questões prejudiciais (art. 38º) – permitindo que o órgão competente para a

decisão final conheça uma questão integrante da esfera de competência da estrutura decisória

competente para a resolução da questão prejudicial, a ordem jurídica, numa preocupação de

continuidade da ação administrativa, institui uma forma de substituição: trata-se da designada

substituição prejudicial;

4. As conferências procedimentais (arts. 77º a 81º) – as regras de competência para os órgãos

intervenientes poderem participar e decidir em termos vinculativos no âmbito do funcionamento das

conferências procedimentais, possibilitando a intervenção nas conferências procedimentais de órgãos

delegados de órgãos colegiais titulares da competência originária ou permitindo-lhes o exercício

conjunto das competências envolvidas, demonstram outra manifestação da sua flexibilidade legal.

» Excecionalidade da definição legal de um único órgão como exclusivamente competente sobre certa

matéria:

No Direito português, é excecional que exista só um órgão exclusivamente competente sobre a mesma

matéria. A regra é a de que, sobre a mesma matéria, há mais do que um órgão competente. Isto é comprovado

por alguns exemplos:

(i) Cláusulas gerais de delegação de poderes, instituindo formas de competência comum alternativa

entre os órgãos envolvidos;

(ii) Cláusulas gerais de substituição- art. 43º CPA ou art. 199º/g) CRP;

(iii) Questões prejudiciais previstas no art. 38º CPA;

(iv) Conferências procedimentais- arts. 77º e 81º CPA;

(v) Identidade de competência revogatória e anulatória dos atos praticados pelo subalterno (art.

169º/2 e 3 CPA - tanto podem cessar a sua vigência pelo autor do ato (subalterno) como pelo

superior hierárquico;

(vi) Conhecimento da nulidade do ato por qualquer autoridade administrativa, assim como da sua

declaração por todos os órgãos competentes para a anulação - art. 162º/2 CPA.

Em todos estes casos, o que há são situações de competência administrativa comum.

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Não há, contudo, risco de conflito no exercício da competência; isto porque existem duas regras que previnem

ou resolvem situações de colisão do exercício da intervenção administrativa sobre uma mesma matéria por

diferentes órgãos competentes:

1. Há competência comum de exercício sucessivo ou subsidiário- é comum mas só pode exercer quando

o primeiro não quer, não pode ou não faz. É o exemplo de todas as situações prejudiciais ou de

substituição.

2. Efeito preclusivo da competência- quando um decide, os outros deixam de poder decidir sobre aquela

matéria, dizendo-se que fica “prevenida a jurisdição”, determinando qualquer posterior intervenção

decisória destes uma situação de incompetência. Ex: quando o delegante decide, o delegado vê

precludir o exercício da sua competência.

→ Competência e Habilitação da Intervenção do Titular do Órgão

A competência, envolvendo um conjunto de poderes objetivamente definidos de intervenção, pressupõe que

o seu exercício se faça por via de um órgão cujo titular se encontra regularmente investido do cargo:

o A investidura no cargo determina a existência de um título jurídico válido que, procedendo à sua

designação, habilita essa pessoa física a exercer os poderes inerentes à titularidade do órgão. Antes

dessa investidura, qualquer ação do titular estará ferida de incompetência ratione temporis;

o Cessada a vigência do título habilitante (ex: demissão, aposentação), a pessoa física que era titular do

órgão, agora transformado em seu ex-titular, deixa de ter aptidão para exercer essa competência.

a) O que acontece se alguém que é titular do órgão, mas não foi ainda investido, resolver agir? Ou seja,

sabe-se que é titular mas ainda não houve um ato formal de investidura- a regra é que há uma situação

de incompetência em razão do tempo. E se já cessou o título habilitante? Haverá uma situação de

acompetência.

b) Casos em que não tem qualquer título- É um falso titular, que pode exercer o poder em dois cenários

diferentes:

- Tem um exercício doloso, consciente, sabendo que não é titular- é um problema de usurpação de funções

públicas (crime).

- Age num caso de Estado de Necessidade- funcionário de facto: aquele que, agindo sem título, tem a sua

conduta justificada pelas circunstâncias de excecionalidade.

c) Pode suceder que as pessoas tenha todos os requisitos, mas se encontre numa situação em que não

exerce efetivamente as suas funções- o funcionário público foi suspenso: se ele praticar atos durante

a suspensão, serão os atos válidos ou inválidos? PO: inválidos, pois será uma situação de

acompetência.

d) Situações de competência diminuída;

e) Pode ainda a invalidade do título, por efeito do decurso do tempo, consolidar-se na OJ, se o mesmo

for anulável ou, em casos de nulidade, verificando-se a existência de boa-fé, gerar uma situação de

prescrição aquisitiva ou “usucapião” habilitante do exercício de poderes.

Assim, não basta, para habilitar a intervenção administrativa do titular de um órgão, que ele possua um título

válido (ou consolidado na ordem jurídica) e um ato de posse ou compromisso de honra:

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(a) É ainda necessário que o titular se encontre no exercício efetivo de funções, não podendo ocorrer

qualquer vicissitude que obste a esse exercício em termos genéricos (ex: suspensão disciplinar);

(b) É também indispensável que não ocorra uma vicissitude específica que, expressão de conflito de

interesses, gere uma situação de falta de legitimidade de intervenção face ao procedimento em

concreto (ex: impedimento);

2. Vontade

Toda a atuação administrativa envolve ou pressupõe uma vontade proveniente de estruturas da

Administração Pública e essa vontade, sendo imputável a uma entidade coletiva, por via dos seus órgãos e

agentes, assenta num procedimento: pode falar-se em “vontade procedimental”.

A vontade só tem relevância quando é objeto de uma declaração: a intenção, não sendo ainda vontade por

não ter sido ainda exteriorizada, surge como momento psíquico antecedente, preparatório da vontade. A

vontade é sempre a vontade das pessoas coletivas, sendo no procedimento administrativo que se verifica a

formação e a preparação desta vontade.

Há dois fenómenos de imputação em relação à vontade:

a) A vontade psicológica do titular é imputada ao órgão;

b) A vontade do órgão é imputada à pessoa coletiva.

Temos aqui uma dupla imputação ou uma dupla ficção.

O tema da vontade no agir administrativo adquire, tendo sempre presentes critérios teleológicos baseados na

prossecução do interesse público, uma nova centralidade dogmática ao nível da existência e perfeição da

formação e declaração da vontade administrativa, em três vertentes de análise:

(i) Na liberdade e esclarecimento da vontade – se a vontade individual dos titulares dos órgãos

administrativos sofre qualquer vicissitude que perturbe a sua liberdade, esclarecimento ou

ilicitude, será sempre a vontade da respetiva pessoa jurídica que ficará viciada;

(ii) Na licitude dos motivos, na aferição das motivações subjacentes à intenção gestante da vontade

por esses mesmos titulares, à luz das finalidades legais dos poderes cujo exercício pelo órgão

administrativo está em causa;

(iii) Na convergência entre a vontade real e a vontade declarada dos titulares e, por arrastamento, do

órgão administrativo.

Toda a vontade administrativa tem sempre de incidir sobre uma qualquer esfera funcional de competência

pública: a vontade administrativa não se confunde nem reconduz aos atos privados ou pessoais dos seus

funcionários, antes diz respeito às matérias de serviço ou por causa desse serviço.

Tem ainda relevância a distinção entre zonas de discricionariedade e zonas de vinculação. Nas zonas de

vinculação, a “vontade é dirigida pela lei”. Mas, mesmo não tendo a Administração liberdade de escolha do

conteúdo, a vontade continua a ser relevante, uma vez que o CPA determina que a coação física ou a violência

gera a nulidade do ato – art. 161º/2 f). Por maioria de razão, isto aplicar-se-á aos atos discricionários (PO).

A relevância jurídico-administrativa da vontade comporta consigo, em termos de situações patológicas, as

tradicionais questões em torno dos (i) vícios na formação da vontade, (ii) da ilicitude ou desvio da motivação

face aos fins da competência em concreto e (iii) das divergências entre a vontade real e a vontade declarada.

Salvo no que diz respeito às regras de funcionamento dos órgãos colegiais, a importância dogmática do tema

da formação e declaração da vontade pelos órgãos administrativos não é acompanhada de uma especial

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atenção do legislador em sede de procedimento administrativo. Porém, a existência de um imperativo

constitucional de fundamentação expressa das decisões administrativas lesivas de posições jurídicas

subjetivas mostra um claro indício da relevância que a formação da vontade psicológica do decisor

administrativo assume no OJ.

Importância da formação da vontade dos órgãos colegiais:

Se a vontade administrativa provém de um órgão colegial, ao invés do que sucede face aos órgãos singulares

em que apenas importa apurar a sua vontade individual, a determinação da vontade é o resultado de um

processo jurídico visando apurar a unidade das vontades dos membros desse colégio: a complexidade de

formação da vontade colegial, impedindo que cada titular possa deliberar sem ser em união com os demais

titulares, determina ainda que a vontade da maioria dos seus titulares seja tida, em termos unitários, como

vontade do órgão.

O CPA disciplina o procedimento relativo aos órgãos colegiais nos seus arts. 21º a 35º.

→ Uma primeira e central preocupação diz respeito à constituição do próprio órgão, exigindo a lei a

presença de um nº mínimo de membros, correspondendo à noção de quorum, sem a qual não existe

a formação de qualquer vontade: a ausência de quorum determina a nulidade das deliberações

tomadas (art. 161º/2 h)), podendo discutir-se, todavia, se, não estando validamente constituído o

órgão, a falta de quorum não deveria determinar a inexistência da deliberação.

→ Uma segunda preocupação, reunido que esteja o quorum, diz respeito à maioria exigível nas

deliberações, valendo aqui a regra da maioria absoluta dos votos dos membros presentes (art.

32º/1): a inobservância da maioria legalmente exigível determina a nulidade da deliberação em causa

(art. 161º/2 h)).

O CPA não contempla, contudo, normas relativas à formação da vontade psicológica dos titulares dos órgãos

colegiais, devendo entender-se o seguinte:

(a) São aqui aplicáveis os princípios gerais de direito sobre a matéria, o que significa que se exige uma

vontade livre e esclarecida, uma motivação conforme à juridicidade e convergência entre a vontade

real e a vontade declarada;

(b) A preterição de qualquer uma destas exigências determinará uma vicissitude que se mostra passível

de inquinar a vontade expressa pelo órgão colegial em zonas de vontade “não dirigida pela lei”;

(c) No entanto, só ocorrerá invalidade da vontade colegial se a vicissitude for comum a todos ou, pelo

menos, à maioria dos titulares do órgão colegial ou, ainda que não o seja, se, atendendo à discussão

ocorrida antes da votação, a intervenção daquele membro que tinha a vontade viciada foi

determinante para a formação e apuramento do sentido decisório do órgão (“contaminação”).

- A vontade administrativa, expressa por estruturas orgânicas inseridas em pessoas coletivas, tendo sempre o

seu fundamento numa norma jurídico-positiva, mostra-se passível de assumir diferentes configurações:

Nem todas as vontades têm o mesmo peso- ex: a vontade do superior hierárquico tem um peso

superior em relação à vontade do subalterno;

A vontade manifestada pelos órgãos administrativos não goza de uma exigência de liberdade decisória

comparável à vontade do ser humano.

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Importância da vontade psicológica do titular do órgão

Em toda a atividade administrativa (vinculada ou discricionária), a falta absoluta de vontade de ação do titular

do órgão decisório torna qualquer “decisão” inexistente, assim como a falta absoluta de exteriorização de

uma vontade se reconduz a uma situação de inexistência: ao invés da nulidade, “só a categoria da inexistência

exprime devidamente esta figura”.

❖ Nos casos de coação física ou violência sobre os titulares dos órgãos administrativos, envolvendo a

“supressão da vontade do agente através de meios físicos”, identificada com a falta de vontade de

ação e de declaração, determina a exteriorização de uma declaração sem qualquer vontade: assim,

não obstante a lei administrativa dizer que os atos praticados sob coação física são nulos (art. 161º/2

f)), a verdade é que estamos perante uma declaração que “não produz qualquer efeito”, reconduzível

à inexistência jurídica do ato da Administração (opinião de PO).

❖ Também a falta de intenção ou de consciência da declaração, gerando uma exteriorização voluntária

sem que o seu autor queira ou tenha a intenção de fazer o que a declaração aparenta, se reconduz a

uma situação que, envolvendo o exercício de poderes administrativos vinculados ou discricionários,

não produz qualquer efeito.

❖ Em situações de incapacidade acidental do titular do órgão administrativo, afetando pontualmente a

respetiva capacidade intelectual de discernimento ou entendimento, haverá também um caso de falta

de vontade na declaração, devendo entender-se que, ao invés do regime da mera anulabilidade

consagrado no CC, a atuação administrativa estará ferida de inexistência jurídica.

❖ Igualmente quanto às declarações não sérias, na medida em que possam existir no âmbito da atuação

administrativa, estamos diante de declarações a que não corresponde qualquer vontade negocial,

carecendo por isso de qualquer efeito, reconduzindo-se a situações de inexistência, sem prejuízo de,

na medida em que a sua aparência induzir o destinatário a nela confiar, ser passível de gerar

responsabilidade civil.

Requisitos da vontade:

A existência de uma vontade psicológica dos titulares dos órgãos administrativos, sendo um elemento

indispensável face a toda a atividade que envolve ou se reconduz a declarações, passa pela respetiva

declaração de vontade. Torna-se inevitável, deste modo, que o processo de formação da vontade e da sua

declaração obedeça a requisitos de validade:

1. A vontade tem de ser livre;

2. A vontade tem de ser esclarecida – sem obstáculos ao discernimento, no sentido de ter uma correta

representação da realidade (factual e jurídica), excluindo as situações de ignorância e de falsa ideia da

realidade: o erro vicia a vontade administrativa;

3. Tem de ter subjacentes motivos que não sejam contrários ao Direito (sob pena de gerar uma situação

de ilicitude da causa) e que correspondam ao fim que em concreto a lei teve em vista em atribuir essa

competência (se assim não suceder, haverá desvio de poder);

4. Não pode haver divergência entre a vontade real e a vontade declarada.

» Erro na formação da vontade

O erro na formação da vontade por parte do titular do órgão administrativo, atingindo a exigência de se tratar

de uma vontade esclarecida, desfigurando-a e viciando-a por ignorância ou falsa representação da realidade,

acaba por traduzir ainda uma manifestação de relevância do motivo subjacente à formação da vontade: há

aqui uma motivação anómala ou desviada, pois encontra-se fundada em erro.

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Nem sempre, porém, o erro sobre a motivação ou os pressupostos motivadores da intenção decisória do

titular do órgão assume relevância invalidante da vontade formada:

(i) Se se tratar de um erro sobre motivos internos ou sobre “motivos-pressupostos” de incidência

subjetiva, isto é, que envolvem apreciações e valorações de natureza subjetiva, sem que tenham

sido explicitados como cláusulas do agir administrativo, a sua não correspondência à realidade

não invalida a vontade decisória;

(ii) O erro na formação da vontade apenas releva se incidir sobre motivos exteriorizados ou

pressupostos de incidência objetiva.

O erro tem sempre subjacente uma realidade cronológica contemporânea ou pretérita à formação da

vontade, nunca podendo incidir sobre uma realidade futura. Para além disso, a relevância jurídica do erro

depende sempre da verificação de um requisito de causalidade ou essencialidade.

NOTA: o erro que incida sobre uma conduta administrativa que se pensa ilegal, por efeito de estar em causa

uma norma que o decisor reputa inválida e que, por isso, desaplica, quando essa norma já foi, afinal, revogada

ou declarada inválida com força obrigatória geral, numa situação de disfunção putativa, não gera qualquer

efeito invalidante.

Tipos de erro:

O erro pode ser:

a) De facto – incide sobre as circunstâncias materiais ou a factualidade em que a vontade foi formada ou

refere-se a toda a realidade de facto que foi tida como pressuposto motivador de formação da

vontade;

b) De direito – versa sobre normas ou outro tipo de atos jurídicos, podendo aqui falar-se em:

- Erro sobre a existência, determinação ou validade da norma aplicável;

- Erro sobre o sentido interpretativo ou aplicativo da norma;

- Erro sobre a existência de lacuna ou seu critério integrativo.

Atendendo ao autor gerador do erro, pode diferenciar-se entre:

(i) Erro espontâneo ou simples – expressão de uma conduta do próprio titular do órgão

administrativo, sem qualquer intervenção indutiva de terceiro;

(ii) Erro provocado – enquanto resultado de atuação de outrem sobre o titular do órgão

administrativo, seja ele outro órgão administrativo ou um particular, podendo a conduta indutiva

errónea ser ou não dolosa.

À luz do regime jurídico, o erro pode ser:

(a) Simples – aquele que apenas gera a invalidade da conduta se recair sobre elementos essenciais e o

declaratário conhecer ou dever conhecer essa mesma essencialidade;

(b) Qualificado por dolo – existindo na sua base uma conduta (positiva ou omissiva) ardilosa e ilícita de

alguém no sentido de induzir ou manter em erro o autor da declaração, regista-se uma dupla

causalidade geradora da invalidade: o dolo tem de ser determinante do erro e o erro, por sua vez,

determinante do agir administrativo.

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Em relação à realidade sobre o qual versa, o erro pode ser:

o Sobre a competência – abrange o erro sobre a existência e o sentido da norma habilitante de

competência, assim como do ato de delegação de poderes e dos poderes delegados ou substitutivos,

e ainda o erro sobre a natureza vinculada ou discricionária dos poderes a exercer;

o Sobre o destinatário – compreende o erro sobre a identidade e o erro sobre as características ou

qualidades:

o Sobre o objeto – inclui-se o erro sobre a identidade do objeto, as suas qualidades ou características,

assim como o erro sobre a configuração do conteúdo decisório do ato;

o Sobre os pressupostos – inclui o erro sobre as circunstâncias ou a base factual de exercício dos

poderes, assim como o erro sobre os motivos determinantes da vontade;

o Sobre a causa – designadamente, os casos de erro relativo aos pressupostos de facto escolhidos para

alicerçar uma decisão administrativa, num cenário de “divergência entre a fundamentação e a

realidade”;

o Sobre o fim – compreende o erro sobre as atribuições a cargo da entidade pública em que o órgão se

encontra inserido, assim como o erro sobre o fim em concreto associado ao exercício da competência

em causa;

o Sobre a forma e/ou formalidades – integra o erro sobre as diversas exigências de natureza

procedimental, o erro sobre o sentido interpretativo dos atos que as definem e ainda o erro sobre o

seu já efetivo cumprimento.

Regime:

Sobre esta matéria o CPA não tem regime específico. O CCP remete para o CC e, na realidade, deve aplicar-se

a título subsidiário as normas do CC, na falta de regime no CPA. O CC mostra uma regulamentação passível de

ser resumível em duas regras essenciais:

1. O erro na formação da vontade gera, por via de regra, a invalidade da respetiva declaração;

2. A invalidade da declaração de vontade ferida de erro na sua formação tem sempre a anulabilidade

como desvalor jurídico.

Pode, contudo, extrair-se uma norma implícita do CPA: do art. 168º/1, de onde implicitamente se extrai que

o erro do agente é causa de anulabilidade do ato. Para além disto, extrai-se que o início da contagem do prazo

para anulação do ato ferido de erro, em vez de ser feito da data do conhecimento da causa de invalidade pelo

órgão competente, toma como referência o momento de cessação do erro. Se, durante os 6 meses

subsequentes à cessação do erro, o ato não for anulado, nem se o erro for conhecido nos 5 anos subsequentes

à data de emissão do ato, a invalidade do ato consolida-se na OJ, já não podendo ser anulado, sem prejuízo

de se dever admitir a sua revogação, salvo, por via de regra, tratando-se de ato constitutivo de direitos.

O art. 168º/1, dizendo expressamente que o erro é fonte de invalidade, não toma posição sobre se o erro se

reconduz ao contexto autónomo dos designados vícios da vontade ou se traduz uma situação integrável no

vício (residual) de violação de lei: a primeira destas soluções, autonomizando os vícios da vontade como

categoria própria de invalidade, mostra-se, na opinião de PO, dogmaticamente preferível.

» Divergência entre a vontade real e a vontade declarada

O princípio geral é que, em Direito Administrativo, deve dar-se prevalência à vontade declarada, com base

no argumento da tutela da confiança do destinatário. Com duas exceções:

a) Se o destinatário conhecer a divergência não pode invocar a tutela da confiança;

b) Se o próprio destinatário induziu ou colaborou nessa divergência.

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Esta divergência pode ser intencional (divergência unilateral- reserva mental – ou bilateral) ou não

intencional.

3. Causa

Pode dizer-se que a causa é sempre uma realidade jurídica que, sendo anterior a uma determinada conduta

(ativa ou omissiva), funciona como impulso ou condicionamento a um determinado agir, moldando-o,

parametrizando-o ou predeterminando-o.

Será, então, a causa um elemento jurídico? PO: sim, porque a causa é juridicamente uma relação entre a

conduta administrativa e duas realidades que lhe são anteriores:

- Realidade objetiva – circunstâncias factuais ou objetivas, pressupostos objetivos da conduta administrativa,

que podem ser de facto ou de Direito;

- Realidade subjetiva – razões determinantes do sentido da vontade psicológica do titular do órgão.

Na causa, tudo é incerto, até a própria existência da causa.

A causa é a adequação da conduta com os pressupostos objetivos e subjetivos. A causa estabelece uma relação

que pressupõe uma adequação (a conduta administrativa tem de ser adequada a estes pressupostos), um

juízo de existência, de validade: a causa estabelece um nexo ponderativo ou de conformidade entre o agir

administrativo e as circunstâncias factuais e jurídicas subjacentes (pressupostos objetivos), assim como as

motivações do titular da respetiva estrutura administrativa (pressupostos subjetivos).

No âmbito do agir administrativo, a grande diferença entre os pressupostos objetivos e os pressupostos

subjetivos subjacentes à causa reside no seguinte:

o Os pressupostos objetivos, apesar de subjetiváveis pela representação psíquica que deles faz o

decisor, são sempre passíveis de controlo face à sua objetividade de partida;

o Os pressupostos subjetivos, reconduzindo-se aos motivos do agir administrativo, apenas se mostram

controláveis face aos fins legais fixados para o exercício dos poderes em causa.

A causa envolve, para além de tudo isto, um juízo sobre a existência, a validade, a idoneidade dos

pressupostos objetivos e subjetivos do conteúdo de uma determinada conduta.

→ Não compreende a causa, no entanto, as situações de falsa representação dos pressupostos objetivos

por parte do decisor administrativo; antes a causa se assume como realidade jurídica diferente da

vontade. Por exemplo, o erro sobre a causa é um problema de formação da vontade: a causa limita-

se a agir e a habilitar que os pressupostos objetivos e subjetivos de uma determinada conduta

administrativa existam, sejam válidos e idóneos, por um lado, e, existindo, se assumem ou assumiram

relevância conformadora ou parametrizadora da conduta específica.

Através da causa capta-se a intenção decisória (animus), que não se reconduz a uma questão de liberdade e

esclarecimento da vontade ou de convergência entre o pretendido e o declarado.

Casos de relevância da intenção: desvio de poder (traduz uma disfunção do motivo principalmente

determinante da conduta administrativa face ao fim legal da competência em causa), dolo, responsabilidade

disciplinar.

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As vicissitudes ao nível da causa, sendo passíveis de invalidar o agir administrativo, por via da projeção

relacional dos pressupostos-motivos desse agir, podem configurar-se como envolvendo uma dupla

divergência:

(i) Divergência entre os pressupostos abstratos fixados na lei e os pressupostos reais face à situação

factual concreta;

(ii) Divergência entre os pressupostos-motivos exteriorizados e a intenção real ou “motivos efetivos”

exteriorizados pela conduta do agente decisor.

O agir administrativo baseia-se, portanto, num princípio de coerência racional. Os termos como o CPA impõe

a existência de uma nota justificativa dos projetos de regulamentos (art. 99º) e o modo como configura o

dever de fundamentação dos atos administrativos, envolvendo a indicação dos fundamentos de facto e de

direito (art. 153º/1) e determinando a proibição de contradição entre razões fundamentadoras (art. 153º/2),

indiciam a relevância operativa dos pressupostos-motivos do agir administrativo, à luz da pressuposição de

regras lógicas de atuação procedimental.

Este princípio de coerência racional que a ordem jurídica postula ao agir administrativo, podendo também ser

extraído do princípio da boa administração, encontra hoje expresso fundamento constitucional: a causa torna-

se, por isso, um elemento estrutural do agir administrativo alicerçado na Constituição.

» Pressupostos objetivos:

Os pressupostos objetivos, resultando identificados de uma norma jurídica ou sendo elencados pelo decisor,

traduzem individualizações da sua inicial formulação abstrata perante uma situação concreta, falando-se em

“pressupostos individualizados”, servindo sempre de causa da conduta administrativa

A subjetivação dos pressupostos objetivos, por efeito da sua necessária representação mental pelo decisor,

não inviabiliza o seu controlo, em diferentes e sucessivos parâmetros:

1. Será que os pressupostos que em cada caso concreto foram adotados, existem?

2. Serão estes válidos?

3. Sendo válidos, será que têm a configuração mental que o decisor lhes deu?

4. Estes pressupostos são idóneos para se alcançar o fim em vista?

5. A conduta administrativa conformou-se a esses pressupostos?

6. Essa conformação terá sido a mais adequada?

A exigência legal de fundamentação das decisões administrativas surge como instrumento revelador dos

pressupostos do agir administrativo e, simultaneamente, de “janela” aferidora da adequação desse agir face

aos pressupostos da ação.

Os pressupostos objetivos podem ser:

1. De Direito – são situações de direito que, identificadas em normas ou demais atos jurídicos, habilitam

determinada conduta administrativa. Exercem, por isso, uma função propulsora, justificativa ou

legitimadora do agir, servindo de sua base legal.

A sua configuração pode ser feita através de duas diferentes técnicas jurídicas:

- Usando realidades precisas, perfeitamente determinadas ou determináveis através de uma operação

intelectual objetiva de concretização; por exemplo, para alguém se candidatar a determinado lugar, tem de

ser maior de idade e ter a licenciatura em medicina.

- Mediante a utilização de conceitos vagos ou indeterminados, envolvendo operações de densificação jurídica

ou técnico-científica de natureza extrajurídica que, apelando a circunstâncias factuais, convicam uma margem

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de apreciação subsumível na autonomia administrativa; por exemplo, um caso em que, para se poder agir,

tem de haver uma situação de “urgência e necessidade”.

Noutro sentido, os pressupostos de direito podem assentar em normas jurídicas, obedecendo a uma lógica de

“tudo ou nada” face à realidade material subjacente, ou, em sentido diferente, envolver a aplicação de normas

que determinam a realização prévia de operações de avaliação ou escolha de informação pertinente e ainda

de ponderações casuísticas, visando apurar o sentido último dos pressupostos do agir administrativo.

Requisitos de validade e eficácia:

o Têm de corresponder a situações alicerçadas num título jurídico que sirva de base legal;

o Se o título jurídico existir, não poderá estar ferido de uma invalidade que permita a Administração

proceder à sua desaplicação;

o Se o título existe e não padece de uma invalidade radical habilitadora da sua desaplicação

administrativa, é ainda necessário que já esteja em vigor ou ainda tenha vigência;

o A ausência de base legal, a sua invalidade radical, ineficácia ou erro sobre a sua existência determinam

a invalidade do agir administrativo.

2. De facto – são as realidades do mundo da factualidade que, captadas intelectualmente pelo decisor

administrativo, nos termos de uma norma legal, são tomadas como fundamento direto do agir

administrativo.

Podem ser de dois tipos:

a) Factos passados ou presentes;

b) Previsões sobre a evolução futura de determinada pressuposição material mutável (juízo de

prognose).

Nem sempre os pressupostos de facto, porém, resultam expressa e diretamente da lei; podem, em áreas de

discricionariedade, ser criados pela própria Administração. Por exemplo, abrir um concurso para catedrático

em ciências jurídicas e “afins” – o que são “afins”? A escolha pela Administração das circunstâncias geradoras

da sua ação exige a existência e a exatidão dos pressupostos de facto escolhidos e a adequação face à concreta

conduta administrativa.

Havendo desarmonia entre os pressupostos de facto escolhidos e a conduta da Administração, gerarar-se-á

invalidade. Por exemplo, exigir-se para um concurso para catedrático em Direito a carta de condução válida.

Requisitos de validade:

Os factos têm de existir, devem ser materialmente exatos, comprovados e ainda qualificados de modo

a saber se preencheram ou não a previsão legal;

Devem ainda mostrar-se adequados à conduta administrativa adotada, num duplo sentido: se os

factos justificam a medida e se a medida é aquela que deveria ser tomada face a tais factos;

Os factos inexistentes, materialmente inexatos ou falsos, não comprovados devidamente e ainda os

que tenham sido erradamente qualificados ou que se mostrem inadequados, desde que tenham

servido de pressuposto de um concreto agir administrativo, determinam a respetiva invalidade.

As circunstâncias de facto que foram tomadas em consideração no momento inicial do agir administrativo

podem, todavia, sofrer alterações com o decurso do tempo.

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» Pressupostos subjetivos:

Os pressupostos subjetivos de decisão, traduzindo as razões justificativas da intenção decisória ou

determinantes da formação da vontade psicológica de quem decide, reconduzíveis ao conceito de motivos,

envolvem um novo campo de operatividade da causa, abrindo a pesquisa em torno da indagação das intenções

subjetivas do agir administrativo.

Nem sempre, porém, as intenções reais subjacentes à vontade psicológica são exteriorizadas – a determinação

da intenção encontra aqui uma considerável dificuldade.

Três tipos de motivações:

Conformes à lei;

Utilização de critérios de motivação alheios ao fim que a lei definiu para o exercício da competência

concreta – estamos à porta da figura do desvio de poder;

Há uma pluralidade de critérios teleológicos concorrentes na motivação – para agir, existem vários

motivos. Como é que a OJ trata estes casos? Só é relevante, num caso de pluralidade de motivos, o

motivo principalmente determinante.

Só haverá, contudo, desvio de poder, se:

a) Incidir sobre o motivo principalmente determinante da conduta administrativa;

b) O órgão em causa for competente.

Há, portanto, uma separação entre o vício de incompetência e o vício de desvio de poder: se ele é

incompetente, o vício de incompetência prevalece sobre o vício do desvio do poder.

◊ Motivações não são reconduzíveis ao desvio de poder

Motivações administrativas dolosas e negligentes:

Excluídas as situações de desvio de poder, são todas as restantes motivações do agir administrativo que:

(i) Não se reconduzem ao motivo principalmente determinante;

(ii) O órgão não é competente.

Isto tem relevância em sede de responsabilidade civil e em sede de responsabilidade disciplinar. Mas não é

só, na visão de PO: são ainda relevantes as situações de graduação da culpa, a distinção entre dolo e

negligência e os tipos de cada, a ilicitude dolosa da causa (dolo mau) e, ainda, em sede de responsabilidade

criminal por abuso de poder.

Três casos em que aparentemente os casos são iguais, mas na realidade são diferentes:

a) O órgão colegial aprova uma deliberação, pensando os seus titulares que eram competentes sobre a

matéria, mas na realidade não o eram – há uma situação de incompetência, por erro na formação da

vontade.

b) O órgão colegial, constituído integralmente por juristas, aprova uma deliberação, sabendo que não

era o órgão competente sobre a matéria – também há incompetência, mas neste caso existe

incompetência dolosa.

c) O órgão colegial universitário, composto por juristas, aprova uma proposta sobre matéria fora da sua

competência (claramente uma situação de incompetência dolosa – sendo juristas, não é desculpável

que não conhecam a lei), cujo propósito prejudicar uma pessoa, ou seja, um próposito de vingança

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pessoal, visto que a pessoa em causa é sua adversária política. É uma situação típico de dolo malicioso,

que corresponde a ilicitude dolosa da causa, que é reconduzível a crime, por abuso de poder;

ultrapassa a censurabilidade ética do desvio de poder.

◊ Motivações reconduzíveis ao desvio de poder

Em Direito Administrativo, o desvio de poder traduz sempre uma forma de subordinação dos pressupostos

subjetivos de ação administrativa à vontade do legislador, por via de uma vinculação teleológica da motivação

subjacente à formação da vontade psicológica do decisor.

O desvio de poder diz-nos que o órgão administrativo competente não pode, ao nível da motivação

principalmente determinante da vontade psíquica do seu titular, prosseguir fins distintos daqueles que, à luz

das normas legais, justificam o poder decisório conferido ou o procedimento definido: se o fizer, a ilicitude

teleológica da causa do agir administrativo determinará a sua invalidade, sob a forma de desvio de poder.

Há dois tipos de desvio de poder:

(i) Dentro do interesse público – ex: caso de um município que concede uma licença de construção

de um conjunto de moradias, com o propósito de o empreiteiro em causa construir um jardim

infantil e, essa construção, torna-se o motivo principalmente determinante da licença de

construção. Nestes casos, gera-se anulabilidade.

(ii) Para fins de interesse privados – ex: (no mesmo exemplo) eu dou a licença, mas tem de me

construir uma piscina na minha casa. Nestes casos, gera-se nulidade. Art. 161º/2 e) CPA.

4. Objeto

Toda a atividade administrativa tem um objeto, entendido numa dupla aceção:

(i) Em termos de objeto imediato ou conteúdo, traduzindo os efeitos jurídicos a que se destina, aqui

residindo a substância do agir administrativo. Os efeitos do agir administrativo podem assumir

natureza constitutiva ou natureza declarativa;

(ii) Em termos de objeto mediato ou objeto stricto sensu, enquanto realidade sobre a qual incidem

esses efeitos. A ação administrativa pode dizer respeito, em termos separados ou conjuntos, a

coisas, prestações ou pessoas.

O objeto pode ter zonas vinculadas (expressão da força reguladora através de normas injuntivas) e zonas

discricionárias (de autonomia pública). É nas zonas discricionárias que têm relevância as cláusulas acessórias:

elementos facultativos do objeto decisório que podem ser introduzidos no agir administrativo, mas sempre

dependentes de previsão normativa: art. 149º e ss.

Requisitos das cláusulas acessórias:

→ O seu conteúdo deve ser conforme à lei;

→ Têm de se mostrar adequadas ao fim da atuação onde se integram, em concreto;

→ Têm de possuir uma relação direta com o conteúdo principal do ato;

→ Têm de se conformar ao princípio da proporcionalidade e a todos os demais princípios gerais do agir

administrativo.

Por vezes, as cláusulas acessórias são verdadeiramente essenciais: se as mesmas não existirem, não existiria

ato principal. Nestes casos, levantam-se alguns problemas em casos em que há invalidade na cláusula

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acessória, de saber se aí será possível haver uma redução do negócio, expurgando a cláusula acessória inválida.

Tudo dependerá da interpretação.

» Requisitos de validade quanto ao objeto:

a) Possibilidade – pode ser entendida como uma possibilidade de facto (ex de uma impossibilidade de

facto: um regulamento que determine o regime das pensões de sangue às viúvas dos combatentes da

Batalha de Aljubarrota) ou uma possibilidade jurídica (ex de uma impossibilidade jurídica: proibição

de ser alienado um bem do domínio público ou a revogação de um ato nulo).

A impossibilidade pode ainda ser (i) pessoal ou moral, (ii) subjetiva ou objetiva, (iii) originária ou

superveniente, (iv) total ou parcial, (v) temporária ou definitiva.

b) Determinabilidade – prende-se com as ideias da compreensibilidade e da sua inteligibilidade. A

existência de um conteúdo comunicativo envolve a determinação de um sentido informativo e, por

isso, a indeterminação do sentido comunicativo torna impossível o seu conhecimento e a sua

execução.

A determinabilidade do conteúdo do agir administrativo exige, por ação, que exista clareza e inteligibilidade

na determinação do seu objeto, assim como não se omitam os elementos suficientes para a determinação de

um sentido decisório compreensível.

Se chegarmos à conclusão que o objeto é ininteligível, o ato é nulo, por força do art. 161º/2 c).

c) Legalidade – o objeto do agir administrativo deverá ainda ser conforme à juridicidade, no sentido

jurídico e material do conceito de objeto, isto é, nunca poderá envolver a “ultrapassagem” ou violação

de regras ou princípios injuntivos do ordenamento jurídico, isto tanto em relação à legalidade

imediata (normatividade jurídica), como em relação à legalidade mediata (normas extrajurídicas).

A legalidade do objeto obedece a um princípio de tipicidade, sendo apenas admissível aquilo que a lei permite.

Note-se, contudo, que se as normas integrantes da juridicidade vinculativa do agir administrativo assumirem

natureza supletiva, a Administração Pública poderá proceder ao afastar da sua regulação, substituindo-a por

uma autorregulação própria, sem que essa conduta contrária à normatividade traduza uma ilegalidade.

Casos em que a ilegalidade do objeto gera nulidade (art. 161º/3):

Ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental;

Se a atuação administrativa envolver a prática de um crime;

Se ofender caso julgado;

Se o objeto se traduzir na certificação de factos falsos ou inexistentes;

Se criar sanções pecuniárias não previstas na lei.

A impossibilidade, a indeterminabilidade ou inteligibilidade e a ilegalidade do objeto do agir administrativo,

gerando sempre situações de violação de lei, determinam a invalidade da ação administrativa.

» Efeitos do agir administrativo:

Os efeitos do agir administrativo não são homogéneos ou uniformes, nem têm sempre a mesma duração.

(i) De natureza permissiva – autorizam, habilitam a adoção de uma conduta;

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(ii) De natureza imperativa – impõem ou proíbem a conduta;

(iii) De natureza propulsora – estimulam, promovem uma conduta;

(iv) De natureza declarativa – verifica a conduta, valora-a, em termos de declaração de conhecimento

ou de ciência, comunicando-a.

Um segundo critério tipológico habilita que se diferencie entre (i) o agir administrativo que introduz alterações

na ordem jurídica, falando-se em efeitos positivos e, em sentido contrário, (ii) o agir que se recusa a introduzir

quaisquer alterações, falando-se em atuação de efeitos negativos.

Um derradeiro critério permite ainda distinguir entre (i) as atuações administrativas dotadas de eficácia

interna, abrangendo aquelas que esgotam os seus efeitos no interior da Administração Pública e (ii) as

atuações administrativas com eficácia externa, compreendendo todas aquelas em que o agir administrativo

se relaciona com os cidadãos, ultrapassando os seus efeitos as fronteiras da Administração.

Neste último domínio, as atuações administrativas dotadas de eficácia interna podem assumir (i) uma

natureza intrassubjetiva, se esgotam os seus efeitos dentro da própria entidade pública cuja atuação está em

causa, ou, em sentido diverso, (ii) se projetam os seus efeitos entre diferentes entidades públicas, assumem

uma natureza intersubjetiva.

» Requisitos de eficácia:

1. Publicação – pode ser em jornal oficial, ou como notificação aos destinatários, ou ainda

disponibilizando os documentos para consulta pública ou pelos interessados. A falta de publicação

gera a ineficácia jurídica, desde que a exigência de publicidade seja exigida por lei; nos restantes

casos, a falta de publicidade determinará a sua não oponibilidade aos interessados.

Os atos constitutivos de direitos produzem efeitos mesmo que não tenham sido notificados; basta que se saiba

da sua existência válida, sem prejuízo da sua não oponibilidade a terceiros se, em cenário de efeitos poligonais

ou multipolares, envolver ou projetar efeitos negativos ou lesivos.

Pode haver outros requisitos de eficácia:

1. A aprovação por outro órgão;

2. A necessidade de visto pelo Tribunal de Contas a uma atuação administrativa geradora de efeitos

financeiros;

3. A aceitação pela outra parte;

4. Casos em que a lei determina que a eficácia de um ato depende de referendo.

A eficácia da atuação administrativa pode ainda encontrar-se dependente da verificação de condição

suspensiva ou de termo inicial.

» Dimensão temporal da eficácia:

Por princípio, os efeitos da atuação administrativa produzem-se desde a data em que foi praticada a decisão

em causa ou a partir de um momento posterior a essa data; a regra é que o agir administrativo não tem

natureza retroativa. Só apenas em casos excecionais é admissível a natureza retroativa.

Sem a definição do objeto a que se refere o conteúdo de uma decisão administrativa, assim como sem a

identificação do seu autor, não se pode considerar que tenha sido adotada uma decisão (art. 155º/2) ou que

exista a aparência da prática de uma decisão.

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O ordenamento jurídico diz-nos que a retroatividade do agir administrativo pode resultar de três principais

fatores imediatos:

a) Ser uma imposição da própria lei;

b) Traduzir o resultado da natureza interpretativa da decisão face a uma anterior conduta administrativa

(art. 156º/1 a));

c) Expressar a vontade do autor da atuação administrativa, em termos unilaterais (art. 156º/2) ou,

conjugada com a vontade da outra parte, agora em termos bilaterais.

Contudo, a retroatividade nunca pode envolver a lesão de posições jurídicas dos cidadãos, nem pode

contrariar normas injuntivas ou afetar a segurança jurídica e a proteção da confiança.

» Interpretação e integração:

A interpretação jurídica pode versar sobre enunciados linguísticos ou pode incidir sobre puras

condutas factuais, visando a revelação do seu sentido presente e a sua projeção normativa futura.

A determinação do objeto da atuação administrativa, partilhando naturais temáticas comuns à interpretação

jurídica em geral, desde que versando sobre um enunciado linguístico, obedece aos seguintes postulados:

(i) A interpretação parte sempre da letra e, salvo em casos de interpretação ab-rogante, terá de

chegar a um sentido que tenha um mínimo de correspondência literal;

(ii) Sem que exista uma graduação rígida, o processo interpretativo serve-se dos elementos

sistemático, teleológico e histórico-comparativo, visando deles extrair um sentido do enunciado;

(iii) Na interpretação de enunciados sem natureza normativa, assumem especial relevância as

circunstâncias factuais e procedimentais subjacentes à formação e declaração da vontade

administrativa;

(iv) As praxes administrativas revelam um assinalável papel na elucidação do sentido habitualmente

conferido à conduta de uma determinada estrutura administrativa;

(v) Em qualquer caso, a interpretação administrativa tem sempre de se fazer em conformidade ao

interesse público legalmente definido, sem embargo do respeito devido às posições jurídicas

subjetivas dos cidadãos.

A interpretação da vontade administrativa, se é certo que visa determinar o sentido que o seu declarante lhe

pretendeu conferir, à luz de uma conceção subjetiva, a verdade é que também tem de tomar em consideração,

por força do princípio da tutela da confiança, aquilo que um destinatário normal, se colocado na posição real

do destinatário, poderia deduzir ou compreender diante da conduta do declarante (art. 236º CC).

A interpretação feita pela Administração só goza da força obrigatória decorrente da sua autotutela

declarativa se incidir sobre regulamentos e atos administrativos, e desde que assuma idênticas formas de

expressão decisória: a interpretação de quaisquer outras formas de atuação administrativa tem a natureza de

mera declaração negocial, pelo que, na falta de acordo dos destinatários, apenas goza de força obrigatória por

via judicial, sob pena de usurpação de poderes.

A integração pressupõe a existência de uma lacuna e a lacuna só começa quando um determinado

enunciado administrativo se revela omisso quanto a um ponto que, segundo a lógica do plano

subjacente à regulação em causa, deveria ter sido objeto de disciplina. Se, por ação consciente do

decisor, uma determinada matéria não se encontra juridicamente regulada, não há lacuna passível de

integração.

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A integração de lacunas em normas administrativas obedece aos princípios resultantes do art. 10º CC, tendo

presentes duas circunstâncias:

(i) A existência de lacunas em normas administrativas infraestaduais pressupõe a inoperatividade do

princípio da supletividade do Direito do Estado;

(ii) Nem todas as normas admitem a existência de lacunas, pois a tipicidade normativa afasta a

ocorrência de lacunas: a ausência de previsão normativa significa a proibição de agir

administrativo.

» A modificação de efeitos:

A regra é que, em tudo no Direito Administrativo, é passível de mutabilidade intencional. Em regra, todas as

decisões administrativas podem ser alteradas. E isto com base em três motivações:

a) Porque a lei o impõe;

b) Porque um Tribunal o determina;

c) Porque a Administração quer.

As modificações do objeto da atuação administrativa pode ter na sua base:

(a) Razões de pura legalidade, visando impedir o início ou a continuação da produção de efeitos de uma

solução inválida;

(b) Razões atinentes ao mérito, à conveniência ou oportunidade da solução inicialmente consagrada,

procurando-se implementar uma nova visão interpretativa sobre uma melhor ou mais adequada

prossecução do interesse público;

(c) Razões decorrentes de situações de erros de cálculo e de erros materiais na expressão da vontade,

desde que manifestos, sendo reconduzíveis a casos de mera irregularidade.

Há sempre uma cláusula implícita em todo o agir administrativo: cláusula da alteração de circunstâncias – em

caso de uma alteração anormal das circunstâncias, desde que não se encontre coberta pelo risco, nem se

verifique uma atuação de má fé, produzir-se-á uma modificação (ou cessação) do objeto do agir

administrativo, independentemente da necessidade de a sua operatividade se encontrar dependente de

intervenção administrativa ou judicial.

Por princípio, a modificação do agir administrativo fundada em puras razões de interesse público não possui

eficácia retroativa, ao invés da que se alicerça em razões de ilegalidade ou irregularidade, sem prejuízo de se

reconhecer a existência de exceções.

» Cessação dos efeitos:

O agir administrativo pode cessar os seus efeitos:

a) Por vontade da Administração;

b) Por decisão judicial;

c) Por mecanismos informais integrantes da legalidade “não oficial”.

A cessação pode ser (i) de natureza automática ou carecer de um ato específico para o efeito, (ii) total ou

parcial, (iii) normal ou anormal.

O reconhecimento da possibilidade de cessação de efeitos de anteriores decisões administrativas, por

alteração dos parâmetros densificadores do interesse público, mostra-se passível de sofrer limitações

decorrentes da tutela da segurança jurídica e da proteção da confiança dos destinatários de efeitos favoráveis.

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Em igual sentido, tratando-se de efeitos inválidos, desde que, por efeito do decurso do tempo, se tenham

consolidado na ordem jurídica, a sua cessação, por decisão administrativa, pode conhecer limitações

decorrentes da tutela da segurança jurídica, da boa fé e da proteção da confiança: em tal cenário, inválido

será o ato de cessação dos efeitos inválidos entretanto consolidados.

A cessação de efeitos administrativos, enquanto ato jurídico autónomo, encontra-se sujeita ao seguinte

regime jurídico:

i) Se essa cessação de efeitos não teve uma eficácia retroativa, poderá ainda envolver uma posterior

intervenção decisória visando remover os efeitos pretéritos que tenham permanecido na ordem

jurídica, salvo se aquela primeira cessação resultou de intervenção judicial e formou caso julgado

(art. 161º/2 i));

ii) Pelo contrário, se a cessação de efeitos teve uma eficácia ex tunc, resulta daqui a exclusão da

possibilidade de existir nova cessação de efeitos (art. 166º/1 c)), uma vez que se reconduziria a

um ato sem objeto e, por isso, juridicamente nulo (art. 166º/2 c));

iii) A cessação de efeitos de uma determinada atuação administrativa pode, ela própria, ser objeto

de uma cessação de efeitos – cessação de cessação -, sendo discutíveis, em caso da situação ser

passível de reconstrução, os termos genéticos e operativos do efeito repristinatório (art. 171º/2 a

5).

5. Forma e Formalidades

❖ Formalidades

Dizem respeito ao itinerário do agir administrativo. Se esquecermos a atuação informal, toda a atuação jurídica

da Administração Pública desenvolve-se com base num conjunto de exigências procedimentais, que têm a ver

com o caminho e com a forma jurídica da decisão.

Estas formalidades podem ser:

a) Anteriores à decisão – têm a ver com a preparação da decisão;

b) Simultâneas à decisão – justificam o sentido da decisão;

c) Posteriores à decisão – complementam, publicitam a decisão.

O princípio do paralelismo das formalidades determina que, salvo norma em sentido contrário, a modificação

ou cessação administrativa de vigência de anteriores formas do seu agir obedeça às formalidades legalmente

exigidas para a prática do ato inicial, sem prejuízo da dispensabilidade de todas aquelas formalidades cuja

razão de ser deixe de se justificar.

O princípio que norteia esta matéria é o da proibição do formalismo excessivo, do qual surge uma distinção

entre:

➢ Formalidades essenciais – aquelas que são legalmente tidas como indispensáveis, gerando a sua falta

invalidade ou a ineficácia da atuação delas carente;

➢ Formalidades não essenciais – aquelas que são dispensadas, ou cuja omissão ou incumprimento

parcial se reconduz a uma mera irregularidade, sem afetar a validade ou a eficácia da decisão

administrativa.

Num contexto de proibição ou interdição do formalismo excessivo, a criação legal e a exigência administrativa

de formalidades obedece a um princípio de necessidade, de justificação. Aliás, o efeito resultante da

preterição das formalidades nunca pode deixar de ter em conta as circunstâncias de facto subjacentes, pois

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estas podem tornar justificável a conduta, atenuar ou converter a invalidade em mera irregularidade, o que

significa uma desvalorização das normas jurídicas que “impõem” essas formalidades (soft law).

Num sentido ainda mais desvalorizador do “peso” das formalidades, existem três disposições legais:

a) Art. 163º/5 CPA;

b) Art. 285º/4 CCP;

c) Art. 283º/4 e 285º/1 CCP.

Estas disposições, afastando o efeito anulatório de condutas administrativas anuláveis, por preterição das

formalidades, possibilitando que continuem a produzir efeitos como se fossem atuações conformes à

juridicidade, traduzem uma manifestação de prevalência da materialidade decisória sobre a formalidade.

O incumprimento (total ou parcial) das formalidades pode ser:

(i) Suprível ou não suprível – será suprível se, em momento posterior, o trâmite em falta ou

deficientemente praticado puder ser corrigido; será insuprível se, em caso algum, se puder

remediar o corrigir, sendo irrepetível ou insanável o propósito que a justificava;

(ii) Total ou parcial;

(iii) Ultrapassável – ex típico: pareceres obrigatórios (art. 92º/5 CPA): a própria lei diz que o parecer é

obrigatório mas que se não for emitido no prazo estipulado isso não extingue o procedimento.

Razões para existirem formalidades:

As formalidades não existem por si só e não se autojustificam, antes têm uma valia dependente de objetivos

ou propósitos que as extravasam, participando da unidade sistemática do ordenamento jurídico-

administrativo:

1. Participação e legitimação da decisão – é uma forma de legitimar tecnicamente, politicamente uma

decisão, no âmbito de uma democracia participativa;

2. Necessidade de se explicar a decisão – a racionalidade da decisão, que tem a ver com a sua motivação.

É uma forma de elucidar, de informar as razões da decisão;

3. Transparência administrativa – publicitação da decisão ou dos pressupostos que justificaram a decisão

(causa da decisão).

NOTAS:

A) A exigência de formalidades pode ser uma consequência do devido procedimento legal, adequado ao

tipo de decisão a adotar – pode ser a expressão da ideia do procedimento equitativo. Sempre que a

preterição das formalidades atinja um procedimento equitativo (lese ou ponha em causa o

procedimento equitativo), gera violação de lei. No limite, pode traduzir-se na violação do núcleo

essencial de um direito fundamental, cuja consequência é a nulidade.

B) Há situações que justificam a preterição de formalidades, caso em que não se gerará invalidade.

Exemplos: (i) o Estado de Necessidade Administrativo e (ii) podem ser materialmente irrealizáveis

(impossibilidade formal).

→ A função dialógica da participação dos interessados:

A participação dos interessados na atividade administrativa, traduzindo um imperativo constitucional, num

reforço da abertura comunicativa entre o poder e a sociedade civil ou os cidadãos, consubstancia uma

formalidade do procedimento que pode assumir uma dupla função:

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1. A participação coconstitutiva, expressando um postulado de paridade entre a vontade administrativa

e a vontade dos cidadãos dentro do procedimento, faz desta última um elemento estrutural da

existência ou da eficácia da decisão administrativa;

2. A participação dialógica, alicerçada numa concretização de mecanismos de diálogo entre a

Administração e os destinatários das suas decisões, fazendo estes contribuir com a sua visão do

interesse público para o procedimento, transportando também os seus interesses próprios para uma

ponderação decisória final a cargo das estruturas administrativas. A participação dialógica pode

assumir duas feições:

(i) Audiência prévia dos interessados – arts. 121º a 124º CPA. Sempre que a Administração toma

uma decisão que é desfavorável ao particular, a Administração está obrigada a ouvir previamente

o particular. Ninguém pode ser objeto de uma decisão desfavorável sem que previamente tenha

tido a chance de ser ouvido. É uma manifestação do princípio do contraditório e do procedimento

equitativo.

Existem três casos em que a preterição da participação tem como consequência a violação do núcleo essencial

de direitos fundamentais (o direito a um procedimento equitativo), ou seja, a nulidade:

o Quando estão em causa decisões de natureza sancionatória – ex: procedimentos disciplinares;

o Decisões ablativas do direito de propriedade – ex: uma nacionalização, uma expropriação;

o Decisões lesivas de uma liberdade – ex: recusa da entrada de um estrangeiro em território nacional.

A audiência prévia é, aqui, um direito fundamental de defesa que, além das situações de aplicabilidade direta

nos procedimentos sancionatórios emergentes da CRP, por via da cláusula aberta do art. 16º/1, assume uma

natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

A audiência prévia dos interessados tem como alicerçe o princípio da participação e, por isso, fora destes

casos, a sua preterição não tem como consequência a nulidade e sim a anulabilidade.

A convalidação da ilegalidade decorrente da preterição da audiência prévia dos interessados mostra-se

admitida pela jurisprudência do STJ, numa manifestação do princípio do aproveitamento: a ilegalidade pode

ser expurgada por via da efetiva realização da audiência ou, em alternativa, pela revelação objetiva dos

pressupostos de inexistência ou dispensa desse dever de audiência.

A audiência prévia tem situações em que se justifica a sua preterição – art. 124º - casos de dispensa de

audiência prévia. Compete à Administração a prova de que se está perante um dos casos de dispensa. O

interessado tem legitimidade para contestar a validade da decisão de dispensa de audiência prévia.

(ii) Consulta pública – art. 124º/1 d). Se o número de interessados tornar impraticável a audiência

prévia, a lei prevê a sujeição a consulta pública de projetos de regulamento ou de atos

administrativos. Esta também pode estar sujeita às situações de dispensa aplicáveis à audiência

prévia e a sua preterição determina um vício de forma gerador de anulabilidade.

» Fundamentação:

Tem a ver com a justificação e a transparência da decisão. Tem dois propósitos:

1. É um dever da Administração – impor à Administração que demonstre a coerência do seu percurso

decisório; que demonstre, pela justificação, que aqueles pressupostos conduzem àquela decisão. É

através da fundamentação que podemos ter presente a causa do ato. É a adequação entre os

pressupostos e a decisão.

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2. É uma garantia dos cidadãos – não só sabemos o porquê, como a Administração tem de demonstrar

um nexo lógico entre os pressupostos e a decisão. É uma janela que se abre para ver a racionalidade

e a coerência da atuação administrativa.

Requisitos da fundamentação – art. 153º:

(a) Tem de ser clara – tem de utilizar uma linguagem percetível, acessível ao cidadão comum;

(b) Tem de ser coerente – entre as razões que justificam e o conteúdo da decisão. É por isso que a decisão

obedece a regras de lógica, não pode ser contraditória;

(c) Tem de se mostrar adequada – mas adequada qb (o quanto baste para justificar a decisão), ou seja,

tem de ser idónea e suficiente para dar a conhecer as efetivas justificações ponderativas que

estiveram subjacentes à decisão.

Duas regras:

- Se a decisão não for clara, ou não for congruente ou não for suficiente, determina-se a falta de

fundamentação.

- A fundamentação é um imperativo constitucional, cuja preterição consubstancia, quando estão em causa

atos lesivos de posições jurídicas dos cidadãos, a violação do conteúdo essencial de um direito fundamental

(procedimento equitativo), ou seja, a nulidade.

Nos casos em que a fundamentação não tem a ver com atos administrativos lesivos de posições jurídicas ativas

dos cidadãos, a sua preterição gera apenas anulabilidade:

- Quando traduz um imperativo legal;

- Quando traduz a expressão do exercício de um puro poder discricionário do decisor.

A jurisprudência do STA admite, todavia, por força do princípio do aproveitamento dos atos, o seguinte:

a) Tratando-se de um ato vinculado, e desde que se tenham respeitado os seus pressupostos legais, se

torne irrelevante a existência de vícios de ilegalidade na fundamentação concreta utilizada;

b) Em igual sentido, verificando-se o mesmo quadro, o juiz não se encontra impedido de negar relevância

invalidante à errada fundamentação.

» Publicidade:

A publicidade do agir administrativo, visando informar, num propósito definidor de condutas e,

simultaneamente, sujeitar a Administração a escrutínio público, incluindo a controlo judicial imediato, traduz

um corolário inerente a um modelo de Estado democrático e a uma sociedade aberta. O propósito é dar a

conhecer, tornar transparente a atuação administrativa.

A ausência de publicidade (ex: art. 110º/2 CPA), nunca podendo deixar de ser pautada pelo princípio da

proporcionalidade, segundo as suas vertentes da necessidade e da adequação, apenas se justifica ante a

ocorrência de iguais valores resultantes da CRP, do Direito Internacional geral ou do DUE (ex: segurança do

Estado, reserva da intimidade ou vida privada dos cidadãos, etc).

A publicidade do agir administrativo, sendo passível de incidir sobre o início do procedimento ou face ao

projeto de decisão e, num momento posterior, sobre a própria decisão final, incluindo se esta revestir natureza

bilateral, permite diferenciar duas realidades autónomas:

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(i) O ato que confere publicidade – ex: notificação ou publicação no jornal oficial, exteriorizando uma

declaração de vontade administrativa. O ato de publicidade, sendo a expressão de um

subprocedimento formalmente autónomo daquele que esteve subjacente à formação do ato

publicitado, mostra-se passível de ter vicissitudes próprias que não se repercutem sobre a

validade ou regularidade do ato publicitado.

(ii) O ato que foi publicitado – ex: o regulamento, o ato administrativo, o contrato, enquanto

realidade decisória que é objeto da comunicação ou transmissão por via da publicidade.

Meios de publicidade:

a) Notificação.

b) Publicação em jornal oficial – seja ele o Diário da República (arts. 101º/1, 112º/4 e 139º), publicação

oficial da entidade pública (arts. 101º/1 e 139º) ou Jornal Oficial da União Europeia.

c) Publicação na internet – usando-se o site institucional da entidade administrativa (art. 101º/1 in fine).

d) Disponibilização dos atos para consulta dos interessados num serviço público.

e) Afixação nos locais adequados

f) Notificação por meio eletrónico.

Por força do art. 268º/3 CRP, todos os atos que afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, têm de

ser notificados, o que os torna atos recetícios. Recorta-se aqui um direito fundamental à decisão. A falta de

notificação de tais atos torna-os inoponíveis aos respetivos destinatários, inexistindo qualquer dever de

obediência ou se sofrer os seus efeitos.

A lei pode ampliar as situações de notificação obrigatória, passando a compreender também decisões que não

afetem direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo até a notificação de terceiros face aos

destinatários do objeto da notificação, passando aqui a existir um direito fundamental, por via da cláusula

aberta do art. 16º/1 CRP.

A notificação obedece a requisitos de conteúdo, falando-se em elementos obrigatórios – art. 114º/2:

o A identificação do procedimento, autor e data;

o O corpo da decisão objeto de notificação – o texto ou dispositivo decisório e, se for o caso, a sua

fundamentação;

o Os meios de impugnação da decisão e o respetivo prazo.

A falta de publicidade gera ineficácia jurídica do ato, sendo inoponível o seu conteúdo desfavorável aos

respetivos destinatários (art. 160º), devendo aplicar-se este mesmo regime às situações de publicidade

absolutamente insuficiente e às situações de publicidade que enfermem de uma deficiência lesiva do seu

propósito comunicativo típico.

Os atos constitutivos ou ampliadores de direitos produzem efeitos, independentemente de publicação, desde

que conhecidos dos seus interessados. Significa que a vinculação do autor a tais atos é independente da sua

publicação ou notificação, encontrando-se proibido de livremente os revogar durante esse intervalo de tempo

❖ Forma

Tem a ver com o revestimento externo, com a aparência desses atos. Todas as decisões comportam sempre

uma dupla dimensão:

a) Há uma vontade dotada de um conteúdo decisório (decisão material), no caso administrativa formada

num determinado contexto procedimental;

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b) Há uma vontade de exteriorizar esse conteúdo decisório material (decisão formal), correspondendo

à fase final de um procedimento administrativo ou a uma derradeira subfase autónoma de

formalização externa da decisão.

Em Direito Administrativo, a forma traduz o modo de apresentação ou comunicação da manifestação da

vontade administrativa.

Há 5 mecanismos que podem dar expressão à forma:

1. Forma escrita – pode ser em suporte de papel ou por via eletrónica;

2. Forma verbal;

3. Formas luminosas ou simbólicas – ex: semáforos ou os demais sinais de trânsito;

4. Formas gestuais ou acústicas – ex: gestos do polícia sinaleiro ou os toques de campainha da escola;

5. Comportamentos factuais concludentes.

A exigência de uma determinada forma especial de exteriorizar a vontade administrativa, sendo dominada

por razões de interesse público (sem prejuízo de visar também a proteção de posições jurídicas dos cidadãos),

pode assumir diversos propósitos:

Garantir maior ponderação de interesses e de argumentos ao autor ou autores, numa aplicação atenta

do direito;

Assegurar um reforço da certeza de conteúdo e de autoria dos destinatários;

Facilitar a prova da sua existência e efeitos;

Tornar mais acessível o seu controlo público.

Em Direito Administrativo, a validade da declaração de vontade administrativa encontra-se dependente do

respeito pela forma legalmente prevista, assumindo tais normas uma natureza injuntiva.

Regime no Direito Administrativo:

a) A forma escrita é a regra geral, atendendo a razões de segurança. Para efeitos probatórios, é um

documento autêntico. A forma escrita pode ser imposta pela natureza do ato, sem que exista uma

norma expressa a impor esse modelo de exteriorização (ex: se a lei impõe a publicação ou notificação

do ato). Contudo, existem exceções à forma escrita:

- As deliberações dos órgãos colegiais, salvo preceito legal em contrário, são praticadas sob forma oral,

encontrando-se a sua eficácia dependente, todavia, de serem exaradas em ata – art. 150º/2;

- Certos contratos que, expressamente por lei, se encontram dispensados de redução a escrito;

- As ordens de polícia, atendendo a exigências de imediata execução ou obediência;

- O exercício do poder de direção no âmbito hierárquico mostra-se passível de assumir forma verbal, sem

prejuízo da faculdade de o subalterno pedir a transmissão por escrito das ordens ou instruções – art. 271º/2

CRP;

- Os comportamentos factuais concludentes.

b) A cessação ou modificação de uma decisão administrativa deve revestir a forma legalmente prescrita

para as declarações iniciais (forma devida, art. 170º/1) – princípio do paralelismo ou identidade das

formas – salvo se inicialmente a lei não tiver estabelecido qualquer forma ou tiver sido usada uma

forma mais solene do que a legalmente prevista, caso em que deverá ser esta a adotada (forma

efetiva, art. 170º/2).

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c) A preterição da forma legalmente exigida gera vício de forma que, em certas circunstâncias, pode ter

como consequência a nulidade. Por exemplo, art. 161º/2 g). Nos outros casos, a regra é a

anulabilidade (art. 163º/1). Todavia, a falta de certos elementos essenciais de natureza formal pode

gerar nulidade ou até inexistência jurídica (ex: a falta de promulgação ou de referenda ministerial de

decreto regulamentar).

Temos ainda de ter presente que pode bem suceder que deparemos com a injustiça resultante de uma

invocação da invalidade formal ser feita por quem, tendo dado azo a essa mesma invalidade, vir agora

aproveitar-se desse vício, num cenário de “abuso de direito”, violador do princípio da boa fé, à luz da proibição

de venire contra factum proprium. Ou, em alternativa, a invocação ser feita num quadro em que todas as

partes tenham combinado não observar a forma legalmente devida, num consenso de informalidade e num

mútuo investimento na confiança.

Em tais casos, num apelo à tutela da materialidade dos interesses em causa decorrentes da unidade do sistema

jurídico e ainda dos princípios da justiça e da boa fé, sem prejuízo do possível reforço argumentativo

decorrente dos efeitos decorrentes da prescrição aquisitiva, deve entender-se admissível a figura das

inalegibilidades formais: a injuntividade das normas sobre formas, ao nível dos efeitos típicos da nulidade da

preterição da forma legalmente devida, cede perante a tutela da confiança e a proibição do abuso de direito.

- Os arts. 283º/4, 283º-A/2 e 3 e 285º/1 CCP e o art. 163º/5 CPA, afastando o efeito anulatório de formas

bilaterais e unilaterais do agir administrativo, utilizando argumentação fundada na ideia de ponderação de

efeitos, incluindo à luz da proporcionalidade e da boa fé, mostra-se um afloramento da operatividade das

inalegabilidades formais no âmbito do procedimento administrativo.

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Invalidades e desvalores jurídicos do agir administrativo

A invalidade do agir administrativo é a outra face da vinculação à juridicidade. A Administração está sujeita ao

Direito, mas se ela desrespeita essas vinculações, cairá em invalidade. A invalidade consubstancia sempre uma

conduta que não respeita todos os requisitos que lhe são impostos pela juridicidade.

A resposta da OJ à atuação administrativa “desviante” do padrão normativo de vinculação, considerando-a

inválida, revela a força formal negativa da juridicidade, enquanto “capacidade de resistir ou reagir a atos

doutra natureza, não se deixando modificar, suspender, revogar ou destruir por eles”.

A força negativa da juridicidade perante a Administração também expressa uma postura política de

subordinação da vontade administrativa ao querer de uma estrutura decisória dotada de maior legitimidade

democrática ou a uma normatividade axiologicamente prevalecente.

A desconformidade da conduta administrativa face à juridicidade pode traduzir uma situação de:

(i) Contrariedade;

(ii) Incompletude – o ato simplesmente incompleto nunca deixa de envolver também uma

contrariedade do parâmetro normativo que lhe impunha a completude.

A invalidade é sempre um juízo negativo, que traduz dois tipos de juridicidade:

a) Juridicidade rígida;

b) Juridicidade flexível ou soft law:

- Existem normas integrantes de um soft law que já nasceram dotadas de uma flexibilidade aplicativa ou de

uma debilidade de tutela judicial, sem possuírem uma força ordenadora injuntiva, antes assumindo o caráter

de meras recomendações ou parâmetros de conduta não vinculativos;

- O soft law pode ainda ser o resultado de normas que, tendo nascido dotadas de força vinculativa, se regista

que a OJ deixou de sancionar a sua contrariedade com a invalidade, desconsiderou a sua força formal negativa,

reconduzindo a situação a uma mera irregularidade.

Nem sempre a violação da juridicidade envolve a invalidade, isto porque:

- A OJ pode comportar normas ou cláusulas habilitadoras de atuação administrativa contra legem – ex:

cláusula de Estado de Necessidade administrativa.

- A Administração pode estabelecer ponderações que levam a que haja valores e interesses que, apesar

de se ter violado a juridicidade, não existe como resposta a invalidade – art. 163º/5 CRP e art. 285º/4 CCP.

Este último artigo é uma cláusula aberta que permite afastar a invalidade por uma ponderação de

interesses – este artigo vem ainda admitir que interesses privados possam afastar o efeito anulatório.

Assim, a força vinculativa da juridicidade não significa que exista apenas um único padrão normativo de

determinada conduta administrativa, uma vez que, em termos paralelos à juridicidade habitualmente aplicada

em situações normais do agir administrativo (juridicidade de primeiro grau), a OJ admite a existência de uma

juridicidade alternativa, vivendo na sombra da juridicidade de primeiro grau e passível de aparecer em

diferentes cenários (juridicidade de segundo grau).

Igualmente razões de segurança jurídica, de tutela da confiança, envolvendo o decurso do tempo, podem

conduzir à consolidação na OJ de situações administrativas criadas à margem da juridicidade, justificando o

tratamento como válidos de atos originariamente inválidos, ou mesmo a atribuição de efeitos jurídicos a puras

situações factuais.

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A juridicidade revela-se, por isso, dotada de elasticidade ou permeabilidade à ponderação de diferentes

valores ou interesses, envolvendo a suscetibilidade de a sua violação nem sempre determinal uma integral ou

irreversível proscrição de efeitos.

No entanto, a parametrização constitucional da juridicidade vinculativa da Administração não habilita

automaticamente os órgãos administrativos a rejeitarem a aplicação das normas desconformes com a

Constituição ou a lei, motivo pelo qual, sem uma competência semelhante aos tribunais para recusar aplicar

normas inválidas, o agir administrativo encontra-se vinculado, por regra, a aplicar normas inconstitucionais

e ilegais.

Tipos de invalidade:

o Condutas intencionalmente inválidas – a intencionalidade de um agir administrativo desenvolvido

em termos dolosos ou negligentes em sentido contrário à juridicidade reconduz-se a uma situação de

ilicitude;

o Situações de erro – a atuação administrativa é inválida, mas a Administração pensa que é válida: o

erro de Direito pode resultar de (i) aplicação de uma norma inaplicável, (ii) da interpretação errónea

de uma norma aplicável ou (iii) da errónea aplicação dessa norma em abstrato aplicável (ex: erro de

qualificação de factos);

o Substantiva – diz respeito à substância ou conteúdo da decisão, envolvendo a violação de normas

materiais ou de fundo;

o Formal – refere-se ao procedimento ou à forma, num cenário de violação de normas adjetivas ou

processuais;

o Total – a invalidade que incide sobre a decisão principal acarreta a invalidade de toda a declaração de

vontade administrativa;

o Parcial – a invalidade que atinge as cláusulas acessórias ou os elementos acidentais só gera efeitos

sobre toda a decisão se aqueles assumirem a natureza de condição sine qua non do sentido subjacente

à decisão principal;

o Originária – à data em que foi adotada, já era desconforme com a OJ

o Superveniente – a conduta começou por ser conforme à OJ, mas as leis mudaram e, nesta mudança

do parâmetro normativo, atinge-se as condutas administrativas que já estavam em vigor. Ex: a

conduta era permitida e passou, à luz da lei nova, a ser uma conduta proibida.

o Própria ou direta – conduta administrativa que é imediatamente desconforme com a juridicidade;

o Derivada, consequente ou reflexa – resulta da receção ou aplicação de um parâmetro inválido. Nos

seguintes cenários:

- Aplicação de um pressuposto normativo inválido e relativamente ao qual a Administração é totalmente

alheia – ex: a norma é inconstitucional, a Administração deve aplicar na mesma essa norma, mas a sua

atuação é inválida.

- Invalidade resultante de, a montante, servindo de seu pressuposto, se encontrar uma outra conduta

administrativa cuja invalidade inquinou, num fenómeno de arrastamento ou cascata, todas as decisões

consequenciais, executivas ou meramente confirmativas;

- Invalidade resultante do acolhimento de uma invalidade decorrente do agir de um particular, inquinando

esta última a atuação administrativa nela alicerçada – ex: se a proposta de um particular apresentada num

procedimento concursal é, por aplicação do art. 294º CC, nula, o ato de ajudicação que sobre ela recair

também será nulo, assim como padecerá de nulidade o contrato alicerçado em adjudicação nula.

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o Presente – diz respeito a condutas administrativas que ainda produzem efeitos ou, pelo menos, já

foram formalmente exteriorizadas (todos os casos que foram mencionados);

o Pretérita – tem como padrão de referência uma norma que já não está a vigorar, mas que vigorou à

data em que o ato foi emanado.

Níveis de garantia da juridicidade: a dimensão constitucional dos desvalores

Se os desvalores jurídicos vão da inexistência à anulabilidade, passando pelo meio pela nulidade, e se a regra

em Direito Administrativo é a anulabilidade, então, uma vez que a nulidade e a inexistência são a resposta

que traduz o grau máximo de vinculação ao Direito (porque se a Administração violar estas disposições, os

seus atos não produzirão efeitos) e não é essa a regra em Direito Administrativo, então, para a OJ portuguesa,

o cumprimento da juridicidade pela Administração nunca é muito relevante, uma vez que se esta for violada,

a regra é a anulabilidade.

Ou seja, a configuração da anulabilidade como forma de invalidade típica do agir administrativo inválido

permite extrair que a OJ, num gesto de menor exigência, consagra uma debilitação da juridicidade vinculativa

da Administração Pública.

A diferenciação de desvalores jurídicos da conduta administrativa inválida, permitindo extrair graus

diversificados de intensidade da vinculação da Administração ao Direito, acaba por conduzir a uma hierarquia

da força vinculativa das componentes da juridicidade:

a) As normas cuja preterição é sancionada com a nulidade ou a inexistência jurídica, gozando da garantia

decorrente do mais severo regime de invalidade, traduzem parte do “núcleo duro” da juridicidade

vinculativa da Administração, expressão integrante de um ius cogens administrativo.

b) As normas cuja violação é sancionada com a anulabilidade, em sentido inverso, encontrando-se

afastadas do referido “núcleo duro” da juridicidade, mostram-se hierarquicamente subalternizadas,

ocupando uma posição jurídica de menor projeção vinculativa ou, pelo menos, de menor garantia

sancionatória em caso de violação.

Isto levanta uma dúvida de índole constitucional: se a resposta-regra no direito português é a anulabilidade,

quando estão em causa valores ou interesses que são objeto de tutela constitucional, a OJ portuguesa pode

dizer que o desvalor é a anulabilidade? Ou, nestes casos, haverá uma imposição constitucional de que o

desvalor seja a nulidade?

- Ora, a atribuição de desvalores jurídicos a condutas administrativas contrárias à juridicidade não pode ser

deixada ao puro arbítrio do legislador, nem se mostra adequado estabelecer, sem quaisquer limites, uma

cláusula geral que reconduza a anulabilidade a desvalor-regra da invalidade da conduta administrativa.

- Num Estado de juridicidade, a Constituição não pode deixar de projetar efeitos vinculativos sobre as opções

legislativas em matéria de desvalores jurídicos aplicáveis às condutas administrativas violadoras da

juridicidade.

- Nem se poderá excluir que, num confronto entre os bens, interesses ou valores tutelados pelas normas cuja

violação a lei sanciona com a nulidade, face a normas cuja preterição administrativa é sancionada com a

anulabilidade, a disparidade do tratamento, conferindo maior proteção jurídica às primeiras face aos bens,

interesses e valores subjacentes às situações de anulabilidade, se mostre passível de um juízo de

inconstitucionalidade.

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❖ Irregularidade

Nem sempre a conduta administrativa que é contrária à juridicidade gera invalidade; esta pode gerar mera

irregularidade. A irregularidade inverte o princípio da invalidade: reduz-se ainda mais a relevância da

juridicidade, consubstanciando um agir administrativo contra legem admitido pelo sistema jurídico.

Temos, então, um direito cuja violação não gera um efeito invalidante – direito imperfectum.

A irregularidade traduz a resposta menos grave face a uma conduta administrativa desconforme à juridicidade,

assumindo por isso uma natureza excecional ou marginal em Direito Administrativo.

A conduta irregular produz os mesmos efeitos que a conduta válida – a irregularidade diz que o cumprimento

da primeira norma (a que impõe o comportamento omitido) é afastada. A irregularidade apenas tem como

efeito afastar a invalidade, ou, como alternativa, flexibilizar a imperatividade da norma que impunha a

conduta.

A atuação administrativa irregular pode, por isso, ser corrigida, mas não pode ser anulada pela Administração

ou pelos Tribunais com fundamento na sua irregularidade: a irregularidade elimina, por isso, a valência

destrutiva de efeitos que a invalidade acarreta.

A irregularidade não envolve sanções sobre os atos em causa, sem prejuízo de não excluir que o seu autor

seja responsabilizado, por ter violado o dever de agir regularmente.

O fundamento da irregularidade encontra-se numa conjugação entre:

(i) Princípio da proporcionalidade;

(ii) Princípio da proibição do excesso de formalismo;

(iii) Princípio do aproveitamento das condutas jurídicas.

A irregularidade diz-nos, no seu confronto com a invalidade, que a OJ estabelece dois tipos de elementos

vinculativos do agir administrativo:

a) Se se trata de elementos essenciais, a sua preterição gera a invalidade da conduta desconforme;

b) Se, em sentido diferente, esses elementos não são essenciais, a respetiva violação apenas determina

a irregularidade da conduta que deles se apartou.

Tipos de irregularidade:

◊ Formal – incide sobre a forma ou o procedimento;

◊ Material – incide sobre o conteúdo decisório;

◊ Por ação;

◊ Por omissão;

◊ Erros involuntários – ao nível da exteriorização ou da formulação de juízos não determinantes da

essência decisória, cometidos por inadvertência (ex: erros de cálculo, de redação), incluindo erros

materiais manifestos ou patentes, sobre factos ou normas jurídicas: desde que não intervenha sobre

o núcleo duro do conteúdo dispositivo da decisão, a Administração poderá proceder à sua correção

ou retificação, em termos retroativos (art. 174º/2) e a todo o tempo (art. 174º/1);

◊ Depreciação do vício de forma – numa degradação da forma e/ou das formalidades essenciais em

não essenciais, acaba por, segundo uma lógica material de aproveitamento das condutas

administrativas, substituir a anulabilidade pela irregularidade;

◊ Apesar de violada a juridicidade, a OJ afasta o efeito anulatório – (i) a decisão administrativa não

poderia ter sido outra, à luz de um juízo de prognose póstuma, (ii) o fim visado pela norma preterida

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Leonor Branco Jaleco Direito Administrativo II

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foi atingido por outra via, (iii) mesmo sem o vício, a decisão teria sido adotada com o mesmo conteúdo,

(iv) numa ponderação dos interesses em causa e a gravidade da violação, a anulação se mostre

desproporcionada ou contrária à boa fé

→ A quem compete a definição do que é um ato irregular?

a) Indiscutivelmente, o legislador pode definir os atos de irregularidade: mas será uma reserva do

legislador?

b) Podem os tribunais autonomizar novas situações de irregularidade, sem qualquer base legal jurídico-

positiva habilitante, exercendo o juiz um poder substitutivo da vontade do legislador e da sua

ponderação sobre se, atendendo à unidade do sistema jurídico, a violação da juridicidade se deve

reconduzir a uma situação de invalidade ou de mera irregularidade? A prática seguida tem sido no

sentido de os tribunais assumirem tal faculdade, degradando a invalidade em irregularidade, numa

valorização do princípio do aproveitamento dos atos jurídicos, o que poderá suscitar dúvidas de

conformidade à garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva;

c) Por força do art. 163º/5, a própria Administração passa a gozar da faculdade de definir os casos de

irregularidade, de negar o efeito anulatório a condutas administrativas inválidas.

Poderá haver responsabilidade disciplinar, se, por exemplo, o superior hierárquico disser que o subalterno

violou a lei e este contestar, invocando o art. 163º/5?

O art. 163º/5 tornará lícito aquilo que à partida era ilícito? Ou continuará a ser ilícito, mas não produz efeitos

anulatórios?

A recondução de uma determinada conduta administrativa a um caso de invalidade ou, em sentido diverso, a

uma situação de irregularidade, consubstancia sempre, salvo nos casos inequívocos de irregularidade

expressamente previstos na lei (arts. 28º e 48º/2), um prévio processo de ponderação.

A transformação legal da invalidade em irregularidade comporta sempre dois efeitos colaterais:

1. Exclui uma intervenção judicial anulatória da conduta administrativa em causa – reforça-se, por isso,

a exigência de reserva de reserva de lei para a criação de situações de irregularidade;

2. Exclui a competência administrativa para anular as condutas irregulares.

No limite, poderá mesmo discutir-se se, precludido o prazo para a impugnação judicial de uma conduta

administrativa (arts. 144º/2 e 163º/3) ou tornando-se a mesma insuscetível de ser anulada pela própria

Administração (arts. 144º/2, 163º/4 e 168º), a consolidação da invalidade na OJ, por efeito do decurso do

tempo, não terá o significado de uma conversão legal da invalidade em irregularidade: a invalidade converteu-

se, por efeito conjugado da lei e da preclusão do prazo da sua remoção da OJ por ilegalidade, numa situação

material de irregularidade. A partir desse momento da transformação da invalidade em irregularidade,

inválida passará a ser a anulação judicial ou a anulação administrativa da conduta administrativa alvo da

transformação.

❖ Anulabilidade

Regra geral, a anulabilidade é o desvalor dos atos administrativos que violam a juridicidade. A atuação

administrativa sem natureza normativa que seja regida pelo Direito Administrativo, ao contrário do que

sucede no âmbito do Direito Privado, desde que desconforme com a juridicidade encontra na anulabilidade o

seu desvalor-regra, assumindo, por isso, a natureza de “desvalor residual”.

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A residualidade da anulabilidade determina que a sua utilização deva ser antecedida de uma busca sobre a

existência de diferente desvalor jurídico aplicável à situação concreta de invalidade: só ante a ausência de

solução jurídica diferente se torna admissível a recondução da invalidade a uma situação de anulabilidade.

➢ Nem sempre a anulabilidade da conduta administrativa ilegal se traduz em desvantagem ou malefício

para os cidadãos: a violação da juridicidade pela Administração poderá mesmo residir num conferir

de vantagens ou posições jurídicas ativas a quem, segundo da lei, não tem suporte legal para delas

beneficiar, violando-se assim o princípio da igualdade, o interesse público ou até, especificamente, o

erário público.

➢ Mas também não se mostra admissível afirmar que a anulabilidade é, em termos comparativos face à

nulidade, mais vantajosa para os cidadãos: se a ilegalidade da conduta administrativa se

consubstanciar na criação de uma posição jurídica negativa para o cidadão, a nulidade defende-o

melhor do que a anulabilidade, uma vez que na anulabilidade, se não houver reação num determinado

prazo, o ato inválido consolida-se na OJ, ainda que seja desfavorável ao particular.

Regime jurídico:

Os atos anuláveis produzem todos os seus efeitos como se fossem válidos – “invalidade incompleta”

(art. 163º/2);

A anulabilidade não deixa de gerar obrigatoriedade e o inerente dever de obediência ao conteúdo

dispositivo inválido dos respetivos atos: funcionários públicos e cidadãos estão vinculados ao seu

cumprimento;

Salvo intervenção judicial, a execução forçada das condutas administrativas anuláveis não pode ser

alvo de resistência;

Os atos anuláveis gozam de presunção de legalidade – até serem destruídos, gozam da presunção de

que são conformes à lei, por razões de segurança e de estabilidade jurídicas;

Estes atos tanto podem ser anulados pela Administração (anulação administrativa), como pelos

tribunais (anulação judicial). A anulação judicial, ao invés da anulação administrativa, encontra-se

dependente de impulso dos interessados, num duplo sentido:

a) Há que desencadear uma ação judicial junto dos tribunais administrativos, impugnando a conduta

administrativa inválida;

b) Há ainda que arguir a anulabilidade que vicia a conduta administrativa impugnada, pois não é de

conhecimento oficioso pelo juiz.

Em regra, a anulação é retroativa, envolvendo o dever de reconstituir a situação atual que existiria se

tal ato não tivesse sido emanado;

Contudo, pode haver modulação de efeitos – se, em sede de inconstitucional é possível a modulação

de efeitos, não será possível também em casos de legalidade? O art. 163º/5 não cria a possibilidade

de existirem atos nulos que produzam efeitos?;

O ato de anulação tem um prazo e, findo esse prazo, o ato consolida-se na OJ. A consolidação das

condutas administrativas anuláveis na OJ por efeito do decurso do prazo não significa porém a

sanação da invalidade subjacente: as decisões apenas se tornam inimpugnáveis judicialmente,

excluindo-se a intervenção fiscalizadora dos tribunais e, por essa via, limitando-se o direito à tutela

jurisdicional efetiva contra tais atuações administrativas. Ocorre aqui uma conversão da invalidade

geradora de anulabilidade numa situação equiparada à mera irregularidade;

A anulabilidade pode ser sanada por intervenção administrativa retroativa, consubstanciada na

ratificação, reforma ou conversão da decisão inválida (art. 164º): sem prejuízodas situações de

unilateralidade decisória administrativa, tratando-se da sanação de contratos administrativos

anuláveis, a natureza plurilateral do ato impõe específicas exigências procedimentais.

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❖ Nulidade

A nulidade é o desvalor jurídico que, num cenário de “falha estrutural” de uma conduta decisória, visa

sancionar as violações mais graves da juridicidade pela Administração Pública: os atos nulos traduzem assim

uma intolerância da OJ.

A nulidade obedece a duas regras:

a) Tipicidade legal – só há nulidade nos casos expressamente elencados na lei. PO – também há

nulidades por natureza: não resultam de uma norma escrita, mas naturalmente têm de ser nulos,

nomeadamente quando violem normas constitucionais e quando violem normas de DUE, por força do

Primado da UE.

b) Reserva de lei – a criação de situações de invalidade do agir administrativo que gerem nulidade, assim

como a definição dos traços do seu regime jurídico, integram o domínio da reserva de lei.

Se, numa análise das causas de invalidade de determinada conduta administrativa, existir a concorrência de

situações geradoras de nulidade e de anulabilidade, deverá prevalecer a aplicação do regime da nulidade,

atendendo à essencialidade dos bens, valores ou interesses lesados através dessa conduta desconforme com

a juridicidade.

Os casos de nulidade:

A nulidade traduz um desvalor grave de invalidade, mas não comporta sempre uma evidência identificativa: o

ato nulo pode ter aspeto de um ato válido. A recondução das situações de invalidade administrativa a casos

de nulidade não pode excluir a existência de erro de qualificação.

A nulidade pode ser:

(i) Absoluta – tendo a conduta em causa diversos destinatários, é operativa face a todos os

destinatários do ato;

(ii) Relativa – diz respeito a apenas um dos destinatários.

No âmbito da atuação administrativa sem natureza normativa e regida pelo Direito Administrativo, a nulidade

assume natureza excecional como desvalor de condutas contrárias à juridicidade. Os atos administrativos são

nulos sempre que:

a. Resultem de norma expressa, sendo que existe uma enumeração genérica de casos de nulidade (art.

161º/2) que, sem esgotar todas as situações, compreende vícios incidindo sobre todos os elementos

da estrutura dos atos (ex: art. 168º/2).

b. Em relação aos regulamentos, a regra é a nulidade (art. 144º).

c. Os contratos administrativos serão nulos se:

(1) Os atos administrativos procedimentais em que se baseou a sua celebração também o forem;

(2) Tiverem um objeto passível de ato administrativo e a nulidade for o desvalor do ato com o mesmo

objeto e idêntica regulamentação;

(3) A falta e os vícios da vontade tiverem, nos termos no CC, a nulidade como desvalor jurídico;

(4) O contrato preencher algum dos casos geradores de nulidade à luz do CPA.

d. A nulidade também é a regra para os atos da Administração regidos pelo Direito Privado (art. 294º

CC).

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Regime jurídico (art. 162º CPA):

Os atos nulos, ao invés dos casos de anulabilidade, determinam ab initio a ausência de produção de

quaisquer efeitos jurídicos (art. 162º/1) – “improdutividade de todo o efeito”;

Os atos nulos não têm força jurídica, tudo se passando como se nunca tivessem existido

Não gozam de presunção de legalidade e, por isso, desde que não revistam natureza normativa, nem

são obrigatórios, nem há privilégio de execução prévia – (i) os funcionários administrativos não devem

obediência a atos nulos, não podendo por isso ser sancionados disciplinarmente, (ii) a falta de

cumprimento pelos particulares de atos nulos nunca habilita o recurso à autotutela executiva, antes

estes gozam de um direito de resistência perante o uso da força, (iii) excluído o sancionamento

administrativo da falta de cumprimento de atos nulos, encontrar-se-á ferida de invalidade

consequente qualquer medida sancionatória;

Por não produzirem efeitos jurídicos, os atos nulos são insuscetíveis de anulação ou revogação (art.

166º/1 a));

Sem prejuízo de certas situações atípicas, a nulidade pode ser invocada, conhecida e declarada a todo

o tempo (art. 162º/2 1ª parte):

- A invocação da nulidade, por qualquer interessado, podendo ser feita no momento do seu conhecimento,

da execução ou da simples referência ao ato nulo, consubstancia um direito subjetivo a formular uma

pretensão nesse sentido, a título principal ou acessório, junto da Administração ou dos tribunais;

- O conhecimento da nulidade habilita qualquer autoridade administrativa e qualquer tribunal a, verificando

ou reconhecendo a existência de um ato nulo, proceder, a título prejudicial e em termos fundamentados, à

sua desaplicação: a lei estabelece aqui uma ampla competência concorrencial entre todas as autoridades

administrativas e todos os tribunais e, deste modo, entre os poderes administrativo e judicial;

- A declaração da nulidade, visando promover a certeza na OJ, goza de um eficácia erga omnes – deixa de

existir, a partir desse momento, qualquer dúvida sobre a efetiva nulidade da conduta.

Só podem declarar a nulidade os tribunais administrativos ou a Administração, através dos órgãos

competentes ((1) próprio autor do ato, (2) o seu superior hierárquico, (3) tendo sido o ato nulo

praticado ao abrigo de delegação de poderes, o órgão delegante, (4) órgãos que exerçam poderes de

superintendência ou tutela) – art. 161º/2 2ª parte. Os restantes tribunais que não os administrativos

devem conhecer e recusar a aplicação de atos nulos, mas não podem proceder à declaração de

nulidade, exceto o TC (no âmbito da sua competência de fiscalização sucessiva abstrata da

inconstitucionalidade ou da “ilegalidade equiparada ao regime da inconstitucionalidade”) e os

tribunais judiciais (tratando-se de atuação administrativa regida pelo Direito Privado e que seja nula);

A declaração de nulidade tem sempre caráter retroativo e natureza meramente declarativa;

A declaração de nulidade, se emitida por uma autoridade administrativa, é sempre passível de

impugnação contenciosa.

Este regime pode admitir situações especiais: casos de nulidade atípica (art. 162º/3):

o O legislador poderá sujeitar a invocação da nulidade a um determinado prazo, findo o qual o ato deixa

de poder ser objeto de impugnação judicial ou de declaração administrativa de nulidade (ex: art.

144º/2);

o Em vez de carecer de uma total ineficácia, tendo a sua declaração efeitos ex tunc, podem reconhecer-

se alguns efeitos de um ato nulo: é o que sucede em matéria de declaração de invalidade de

regulamentos face a atos que nele tiveram o seu fundamento (art. 144º/4);

o Casos de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos (art. 162º/3) –

juridificação da nulidade.

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Tradicionalmente, sempre se tem afirmado que a nulidade é insanável, por via de ratificação, reforma ou

conversão: a verdade, porém, é que, nos últimos anos, se veio admitir que a nulidade não impede a

reabilitação de efeitos:

(i) Os atos administrativos nulos podem ser objeto de reforma ou conversão – art. 164º/2;

(ii) Os contratos administrativos nulos são suscetíveis de ser objeto de redução ou conversão – art.

285º/2 CCP;

(iii) Deve entender-se, todavia, que sob pena de se estar diante de uma falsa nulidade, a reforma, a

conversão ou a redução apenas podem ocorrer em cenários de nulidade parcial.

→ Juridificação da nulidade

O decurso do tempo, a tutela da confiança e a boa fé podem justificar um reconhecimento de efeitos jurídicos

a atos nulos (art. 162º/3): está em causa, por razões de justiça e de tutela da aparência perante a força da

materialidade dos factos, uma mitigação da permanente ineficácia das condutas feridas de nulidade.

O art. 162º/3 do CPA admite a possibilidade, à luz dos princípios da boa fé, da proteção da confiança, da

proporcionalidade e de outros princípios gerais, se conferir relevância ao decurso do tempo, numa espécie de

prescrição aquisitiva, atribuindo-se efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos: não há

aqui uma genuína convalidação ou legalização do ato nulo, antes se regista uma juridificação de simples efeitos

fáticos criados à sombra da nulidade.

A atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos trata-se de uma decisão que

assume natureza constitutiva, pois consubstancia a introdução de uma inovação na OJ.

Atente-se, contudo, que nem todas as situações de facto decorrentes de atos nulos são passíveis de atribuição

de efeitos jurídicos: por exemplo, decisões administrativas atentatórias do núcleo essencial da dignidade

humana, decisões administrativas usurpadoras da função judicial, decisões administrativas que envolvam a

prática de crimes.

Em qualquer caso, a decisão administrativa de atribuição de efeitos jurídicos a atos nulos é sempre suscetível

de impugnação judicial, sem prejuízo de também ser passível de revogação ou anulação administrativa.

Atribuídos efeitos jurídicos a uma determinada situação de facto emergente de um ato nulo, nem sempre é

fácil perceber o alcance dos efeitos extraprocedimentais da respetiva decisão concreta:

a) É uma competência discricionária ou vinculada?

b) Reconhecidos os efeitos do ato nulo, ele cria precedente?

c) Isso constitui na esfera jurídica de terceiros um direito subjetivo a, perante semelhantes situações de

nulidade, reivindicar, por via judicial ou administrativa, igual tratamento: haverá um direito à

igualdade na juridificação da nulidade?

d) Os efeitos jurídicos reconhecidos no ato nulo podem amanhã ser revogados? Ou mantêm-se para toda

a eternidade? Se os efeitos válidos podem ser revogados por uma melhor ponderação do interesse

público, será que os efeitos jurídicos de um ato nulo jamais poderão ser modificados pela

Administração?

Há ainda que reparar que, se a nulidade não for contestada por ninguém, nem conhecida ou declarada pela

Administração ou pelos tribunais, a verdade é que nada distinguirá essa situação daquela que resulta de um

ato válido: desde que goze de aparência de validade, o ato nulo é tomado, até intervenção declarativa da sua

nulidade, como uma qualquer decisão administrativa passível de produzir “efeitos” e de ser inteiramente

executada.

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❖ Inexistência

A inexistência jurídica surge à margem da lei, visando atingir as situações de invalidade ou imperfeição que

não tinham sanção explícita numa norma. Não existe, por isso, um elenco legal de causas geradoras de

inexistência ou um regime legal específico para os casos de inexistência.

Na inexistência jurídica faltam elementos que constituem requisitos de existência da conduta administrativa

em causa e, por essa falta de “requisitos mínimos” que consintam o reconhecimento da sua aparência, o OJ

rejeita a sua qualificação como ato jurídico: a conduta inexistente é uma simples situação de facto.

Apesar de muitos autores negarem a existência de inexistência jurídica, PO defende que esta existe. E isto,

desde logo, por um argumento que quem diz que não existe inexistência desconhece: o que é que sucede se

uma lei não é promulgada (art. 137º CRP); ou se a promulgação de uma lei não é referendada (art. 140º/2

CRP); ou se a AP aplicar uma lei inexistente? A consequência para todos estes casos é a inexistência.

É sempre possível, por isso, o agir administrativo estar ferido de inexistência:

a) Quando se aplicam normas que são inexistentes – ex: se a Administração aplicar uma lei ou um

regulamento objeto de revogação retroativa, ou que tenha sido objeto de declaração de invalidade

com força obrigatória geral;

b) Quando o ato carece em absoluto de reconhecibilidade – nem sequer há um corpus de atuação

administrativa que tenha uma materialidade reconduzível a um tipo decisório da Administração

Pública. Ex: a deliberação camarária aprovada em jantar natalício ou o ato administrativo emitido por

motivos didáticos ou em situações cénico-teatrais.

O CPA de 2015, apesar de não fazer referência à inexistência, o certo é que, tendo deixado de entender que a

nulidade resulta dos atos “a que falte qualquer dos elementos essenciais”, abre a porta para que as situações

de falta dos “elementos essenciais” de uma determinada atuação administrativa seja fonte geradora de

inexistência jurídica:

A indeterminação do que sejam “elementos essenciais” nunca poderá impedir o intérprete de

qualificar a situação e, se for o caso, de a reconduzir a uma situação de inexistência – o juiz será o

último decisor da qualificação;

Assim, a falta de elementos mínimos de essencialidade orgânica de um ato como sendo proveniente

de uma estrutura da Administração Pública reconduz-se a uma situação de inexistência jurídica (ex: o

ato administrativo, o regulamento ou o contrato praticado em usurpação de funções públicas,

proveniente de organismos sem existência legal ou praticado por membro de órgão colegial como se

fosse uma deliberação deste), tal como se traduz numa situação de inexistência a falta absoluta de

vontade de ação do decisor.

A combinação dos arts. 151º e 155º/2 leva a que alguns autores (nomeadamente, Mário Aroso de Almeida)

defendam que, se não for possível identificar o autor e o destinatário e o objeto, não há sequer um ato

administrativo; haverá inexistência.

Regime jurídico:

Há quem diga que se aplica o regime da nulidade, com a exceção de não se aplicar o regime do

reconhecimento de certos efeitos jurídicos do art. 162º/3 e de na inexistência haver direito de resistência.

PO não concorda, porque:

i. A inexistência diferencia-se da nulidade, uma vez que a nulidade, em regra, só existe quando uma

norma jurídica a habilita ou quando por natureza há um caso de nulidade; já a inexistência pode existir

mesmo num caso em que não há norma jurídica;

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ii. Os atos inexistentes podem beneficiar outros, pelo reconhecimento de efeitos previstos no art. 162º,

nos casos de inexistência derivada ou consequente.

Contudo, o Prof. não deixa de admitir que as situações de conduta administrativa ferida de inexistência jurídica

se encontram genericamente submetidas ao regime da nulidade:

(a) Os atos inexistentes não produzem quaisquer efeitos jurídicos normais ou típicos, falando-se numa

“improdutividade total”, encontrando-se atingidos por uma ineficácia originária e absoluta;

(b) Não possuem, por isso, presunção de legalidade, nem lhes é devida qualquer obediência, por parte

dos cidadãos e dos funcionários da Administração Pública;

(c) Não podem ser objeto de execução coerciva;

(d) A inexistência é invocável a todo o tempo, podendo ser conhecida igualmente a todo o tempo, por

qualquer autoridade (administrativa ou judicial);

(e) A inexistência pode, a todo o tempo, ser declarada pelos tribunais administrativos e pelos órgãos

administrativos competentes para a anulação.

» Reabilitação dos efeitos inválidos

A existência de condutas administrativas inválidas, passíveis de serem retroativamente destruídas ou

declaradas inválidas, atendendo à sua própria desconformidade face à juridicidade, mostra-se suscetível de

lesar, por efeito da sua intervenção radical sobre o tráfico jurídico entretanto desenvolvido ao abrigo dessas

situações de invalidade, a segurança jurídica e a proteção da confiança: as ideias de estabilidade das relações

constituídas e o preservar da ordem, numa pacificação dos vínculos estabelecidos poderá justificar, à luz de

um juízo de proporcionalidade, a reabilitação de efeitos inválidos.

A conservação dos efeitos de atos inválidos, expressando uma decorrência de um postulado cuja origem

remonta ao Direito Romano, visa conferir a máxima utilidade económica às situações de invalidade e assume-

se como princípio geral de direito. Assim, sempre que seja possível e dentro da medida do possível, devem

subsistir ou aproveitar-se os efeitos dos atos jurídicos inválidos.

A reabilitação dos efeitos inválidos pode até tornar-se, atendendo aos valores da segurança jurídica e proteção

da confiança que a conservação ou aproveitamento de atos inválidos convoca, uma vinculação decorrente da

ponderação concreta de princípios constitucionais: pode assim ser a expressão de valores alicerçados na

própria Constituição.

Daqui decorre que os efeitos da atuação administrativa inválida possam ser, em momento posterior,

“repescados” para dentro da juridicidade ou reenquadrados à luz de novos parâmetros da juridicidade.

Atente-se que a reabilitação permite que condutas inválidas possam manter-se na OJ, sem já poderem ver

questionada a sua desconformidade com a juridicidade.

Em termos gerais, tomando em consideração a dimensão da eficácia temporal, a reabilitação de efeitos

inválidos administrativos pode comportar dois tipos de incidência:

1. A intervenção pode ter uma eficácia ex nunc, significando que, a partir de um determinado momento

para o futuro, os efeitos das condutas desconformes com a juridicidade passam a estar reabilitados;

2. A intervenção pode, sem sentido mais radical, possuir uma eficácia ex tunc, determinando que, desde

o seu início, isto é, em termos retroativos, ocorre a reabilitação dos efeitos inicialmente inválidos.

A reabilitação de efeitos inválidos pode fazer-se através de quatro vias distintas:

(i) Intervenção do legislador;

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(ii) Intervenção administrativa;

(iii) Intervenção judicial;

(iv) Simples decurso do tempo.

1) Intervenção legislativa: a validação superveniente ou sucessiva

Se através das situações de invalidade superveniente, subsequente ou sucessiva poderá ocorrer a invalidação

de uma conduta administrativa que nasceu conforme à juridicidade, a OJ poderá, em sentido contrário, por

via legislativa, remover retroativamente o obstáculo que invalidava a conduta administrativa ou os efeitos

decorrentes dessa invalidade, tudo se passando como se esse obstáculo ou esses efeitos nunca tivessem

existido, gerando-se uma validação superveniente ou sucessiva de efeitos inicialmente inválidos, por terem

“nascido” desconformes com os parâmetros da juridicidade então vigente.

A lei que procede à validação retroativa de efeitos inválidos da conduta administrativa pode assumir uma

dupla operatividade jurídica:

a. Procede à convalidação dos efeitos da conduta administrativa, desempenhando uma função análoga

ao bill de indemnidade;

b. Revela-se passível de sanar os vícios dos atos praticados ou, pelo menos, de estabelecer uma

presunção absoluta de legalidade.

A validação legislativa de uma conduta administrativa inválida poderá envolver, no entanto, várias

formulações jurídicas de eficácia retroativa:

➢ A validação poderá consistir na pura e simples declaração de que determinadas formas do agir

administrativo, apesar de desconformes com a juridicidade, se devem considerar, desde sempre ou

desde determinada data, como válidas: haverá como que uma autorização legal a posteriori de tais

condutas, numa espécie de “autorização tardia” da lei, num propósito legislativo de ratificação-

saneadora da invalidade;

➢ Pode versar sobre as condições legais de atribuição ou de exercício de uma determinada competência

administrativa, simplificando-as, suprimindo-as ou flexibilizando o seu cumprimento em sentido

conforme à conduta administrativa efetivamente adotada: o legislador procederá aqui a uma

reconfiguração retroativa da juridicidade vinculativa do agir administrativo, harmonizando aquela a

este último;

➢ Pode, sem alterar as condições de atribuição ou exercício de determinada competência, incidir sobre

o desvalor jurídico das condutas até aí desconformes, impedindo que a contrariedade da juridicidade

gere os efeitos típicos da invalidade, convertendo a ilegalidade numa mera irregularidade;

➢ Pode conduzir, se estiver em causa uma situação de invalidade parcial, a uma redução legal do ato,

regulamento ou contrato envolvendo a Administração Pública, sacrificando-se “a parte doente para

salvar a restante”;

➢ Pode ainda envolver a conversão legal de uma conduta administrativa que é inválida, à luz de um

determinado quadro normativo aplicável ao tipo de ato em causa pretendido, sendo essa conduta

transformada ou aproveitada pelo legislador num tipo sucedâneo.

Não se poderá excluir, noutro sentido, que a validação legislativa superveniente possa operar em termos

indiretos:

(i) Por via de lei interpretativa, o legislador procede a uma interpretação da lei anterior, num sentido

conforme ao adotado pelo agir administrativo, afastando deste modo um sentido diferente

acolhido pelos tribunais e invalidante da conduta administrativa;

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(ii) A lei pode estabelecer uma vinculação para os órgãos administrativos converterem, reformarem

ou ratificarem anteriores atos inválidos, excluindo a possibilidade da sua anulação administrativa;

(iii) A lei pode impor aos tribunais a salvaguarda dos efeitos favoráveis já produzidos pelas condutas

inválidas submetidas à sua apreciação ou, numa solução passível de suscitar reservas

constitucionais, através do pagamento de justa indemnização, ser compensada a manutenção de

efeitos inválidos lesivos.

Limites:

1. A validação nunca pode fazer-se com sacrifício das normas constitucionais e internacionais relativas a

direitos fundamentais, à garantia da separação de poderes e às reservas de competência legislativa

fixadas pela Lei Fundamental;

2. Nunca pode ocorrer se estiver em causa a violação de atos de DUE vinculativos para os Estados-

membros em geral, ou especificamente para Portugal;

3. Tratando-se de leis de validação com eficácia retroativa, uma vez que se encontra proibida a

retroatividade de normas que traduzam a restrição do exercício de posições jurídicas subjetivas

fundamentais, tal como das normas que envolvam a imposição de sacrifícios de natureza pessoal ou

patrimonial, assim como de todas aquelas normas cuja retroatividade se mostre lesiva, em termos

intoleráveis, pois arbitrária ou desproporcionalmente onerosa, da segurança e da proteção da

confiança, a validação nunca pode lesar tais postulados;

4. A retroatividade nunca pode pôr em causa o direito de acesso aos tribunais contra as condutas

administrativas ilegais, em termos de tutela jurisdicional efetiva, nem impedir ações de indemnização

decorrentes das lesões, entretanto ocorridas, por efeito da invalidade da conduta administrativa

objeto de convalidação.

2) Intervenção administrativa: a sanação de efeitos ilegais

O princípio da juridicidade determina que, ante uma conduta administrativa ilegal, a Administração, num

propósito de reposição a posteriori da legalidade violada, nunca podendo ficar numa situação de inércia, possa

optar por uma de duas vias:

(i) A Administração poderá anular ou declarar a nulidade (ou inexistência) da sua anterior conduta;

(ii) A Administração poderá, desde que não se trate de um caso de inexistência ou de nulidade

integral, proceder a um aproveitamento parcial da conduta viciada, desencadeando a sanação da

invalidade dos seus efeitos.

Em qualquer das alternativas, o fundamento da competência administrativa reside sempre na própria

autotutela administrativa, expressando o poder de definir o direito face às diferentes situações e

independentemente de qualquer prévia intervenção judicial para a sua produção de efeitos.

A escolha da via que conduz à sanação administrativa de efeitos inválidos deve sempre envolver uma

ponderação à luz do princípio da proporcionalidade:

◊ A sanação deve considerar-se excluída se, atendendo aos interesses em presença, as suas

desvantagens são superiores às que resultariam da anulação (ou declaração de nulidade) do ato;

◊ A sanação pressupõe uma valoração e ponderação do interesse público em manter e reabilitar os

efeitos de condutas originariamente inválidas.

Não é possível a anulação ou a sanação de atos já objeto de anulação contenciosa: a anulação administrativa

ou a sanação pressupõem a persistência de efeitos na OJ.

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Por princípio, a intervenção administrativa reabilitadora de efeitos inválidos possui eficácia retroativa,

significando que retroage à data da conduta sobre a qual incide, sem prejuízo dos seguintes limites:

a) É necessário não ter ocorrido alteração do regime jurídico, caso em que se admite limitar a

retroatividade;

b) Mesmo em caso de alteração do regime legal, existe a possibilidade de destruição dos efeitos lesivos

anteriores, se se encontrar um processo impugnatório pendente e os atos forem constitutivos de

posições jurídicas passivas ou sancionatórios.

A reabilitação administrativa de propósitos sanatórios de uma anterior conduta da própria Administração

pode operar pelas seguintes formas:

▪ Ratificação;

▪ Reforma;

▪ Conversão;

▪ Anulação ex nunc.

☼ Ratificação

Pressupõe uma manifestação de vontade de eliminar um determinado vício (animus ratificandi) e encontra-

se circunscritas às condutas feridas de anulabilidade, podendo visar reabilitar os efeitos jurídicos inválidos

em duas diferentes situações:

1- Em casos de incompetência relativa, permitindo ao órgão competente sobre determinada matéria,

anteriormente objeto de decisão por um órgão incompetente, confirmar e adotar essa conduta como

sua, assumindo a sua autoria, sanando a respetiva invalidade orgânica.

2- Em casos de vícios de forma que não se reconduzam a nulidade ou inexistência, a repetição do ato,

num propósito convalidante de anterior ato, respeitando-se agora a formalidade preterida ou

invertendo-se a sequência da sua ordem procedimental, fazendo o órgão cujo ato autorizativo

preterido venha a intervir a posteriori, sana a conduta inválida.

☼ Reforma

Envolve uma redução da conduta inválida, por efeito de lhe expurgar a parte anulável ou nula, pressupondo

a sua divisibilidade e a viabilidade autónoma da sua parte sã, num sacrificar parcial do seu conteúdo ou objeto

(ex: a supressão de cláusulas acessórias ilegais). Assim permite, por efeito de se conservar ou aproveitar a

parte sem ilegalidade, reconstruir com eficácia ex tunc uma nova solução decisória.

☼ Conversão

Traduz um aproveitamento da parte não viciada de uma anterior conduta administrativa, permitindo, ao

tomar como referência esses elementos já existentes e válidos, construir um novo tipo de decisão

administrativa, dizendo-se que “o ato muda de figura”, tem um “conteúdo novo” (ex: transformação de uma

concessão ilegal numa licença precária).

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Limites:

a) É necessário que a conversão vise o mesmo fim e tenha um resultado análogo ao ato convertido,

podendo dizer-se que o novo ato deverá estar implicitamente contido no ato originário.

b) Não é possível a conversão se o novo ato obedecer a um procedimento decisório distinto ou se o ato

convertido for a expressão de um poder vinculado e o ato de conversão manifestar o exercício de um

poder discricionário.

☼ Anulação administrativa ex nunc

É permitida pelo art. 171º/3 2ª parte, possibilitando que a cessação de efeitos de uma anterior conduta

administrativa inválida não tenha retroatividade. Assim, habilita que o seu autor apenas lhe atribua eficácia

para o futuro, numa situação de salvaguarda dos efeitos pretéritos, desde que o ato se tenha tornado

inimpugnável por via judicial.

Consubstancia assim uma forma de modulação administrativa dos efeitos da anulação.

Regimes:

O CPA, abstendo-se de traçar um regime próprio para a ratificação, a reforma e a conversão, remete

parcialmente para o regime da anulação administrativa: contudo, a remissão legal circunscreve-se às normas

que regulam a competência e a tempestividade.

Não sendo possível a reabilitação dos efeitos inválidos, a reconstrução positiva de qualquer solução

administrativa passa, desde que não tenha existido uma invalidade de natureza substantiva, pela renovação

ou repetição (válida) da conduta decisória antes viciada – já não se estará aqui, todavia, perante uma situação

de sanação, nem a mesma assumirá natureza retroativa.

A “ratificação” de um ato nulo ou inexistente, assim como a “reforma” ou “conversão” de um ato

integralmente nulo ou inexistente, uma vez que nenhuns efeitos existem que possam ser reabilitados ou

sanados, poderá ser interpretada, todavia, como a conclusão de uma nova decisão com igual conteúdo ou

objeto.

3) Intervenção judicial: a modulação de efeitos

Uma forma clássica de modulação judicial de efeitos inválidos encontra-se nas tradicionais figuras da redução

e da conversão dos atos jurídicos, enquanto mecanismos de Direito Comum destinados ao aproveitamento

de atuações ilegais – arts. 292º e 293º CC. Regista-se, deste modo, que, ao lado da conversão e da reforma

administrativas, existe também uma conversão e uma reforma (ou redução) judiciais de atuações

administrativas anuláveis ou nulas.

Também se deve admitir que os tribunais possam modular os efeitos destrutivos da retroatividade decorrente

da procedência da ação judicial relativa à (in)validade de atuações administrativas:

(i) Trata-se de uma solução que se fundamenta num princípio geral emergente do art. 282º/4 CRP e,

por um argumento de identidade ou maioria de razão, se estende às situações de nulidade e

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anulabilidade administrativas: há valores do sistema jurídico que permitem ao juiz reabilitar

efeitos inválidos do agir administrativo;

(ii) O Direito ordinário positivou várias normas que, relativamente às principais formas de atuação

administrativa, conferem ao juiz poderes de modulação de efeitos inválidos:

- Relativamente aos regulamentos – art. 76º/2 CPTA;

- Relativamente aos atos administrativos – arts. 162º/3 e 163º/5 CPA;

- Relativamente aos contratos administrativos – arts. 283º/4 e 283º-A/2 a 5 CCP.

Em todas as situações de modulação de efeitos dos atos inválidos pelo juiz, o tribunal é chamado a fazer

uma ponderação dos interesses em presença, submetida ao princípio da proporcionalidade, entre os

efeitos decorrentes da retroatividade da anulação ou do reconhecimento declarativo da nulidade e, por

outro lado, os princípios da segurança jurídica, da tutela da confiança, da boa fé, da equidade e de

interesse público de excecional relevo.

4) Decurso do tempo

Numa conjugação com expressa disposição legal, o decurso do tempo pode começar por suprir efeitos normais

da falta de certas formalidades, tal como sucede com a exigência de pareceres obrigatórios (art. 92º/5) ou

mesmo vinculativos (art. 92º/6), numa antecipação preventiva da necessidade de reabilitar futuros efeitos

inválidos: o legislador decidiu aqui, em vez de paralisar a conduta administrativa ou de a sujeitar a vício de

forma, dispensar a formalidade, flexibilizando a exigência do seu cumprimento ou os efeitos normais

decorrentes do seu incumprimento.

Nada disto impede, porém, eventuais efeitos disciplinares para os titulares dos órgãos envolvidos na conduta

omissiva que representou o incumprimento da regra geral.

Num sentido mais profundo, o simples decurso do tempo mostra-se passível de reabilitar efeitos inválidos de

conduta administrativa em três diferentes cenários:

(1) Em casos de anulabilidade, por efeito da preclusão do prazo para a sua invocação judicial ou para a

anulação administrativa das condutas em causa;

(2) Em casos de nulidade, se existir um prazo para a sua arguição, num cenário de “nulidade atípica”, ou,

em termos gerais, permitindo até que, por efeito conjugado com outros princípios gerais do

ordenamento, se possam atribuir efeitos jurídicos a condutas nulas, justificando-as;

(3) Em situações de inexistência derivada ou consequente, numa aplicação dos princípios gerais

subjacentes ao art. 162º/3, o decurso do tempo pode conduzir à atribuição de certos efeitos jurídicos.

O decurso do tempo não tem como efeito, porém, sanar a invalidade dos efeitos das condutas administrativas

em causa, tornando-as válidas:

a) As situações de anulabilidade não deixam de ser inválidas, antes se observa que o poder judicial deixou

de ter a faculdade de as controlar para efeitos de anulação, assim como a Administração Pública

deixou de poder proceder à sua anulação.

b) A excecional atribuição de efeitos jurídicos aos casos de nulidade ou até de inexistência derivada, por

decurso do tempo, sempre em conjugação com outros princípios gerais do ordenamento atendíveis,

não elimina a invalidade das condutas, antes habilita a tutela da aparência e a proteção da confiança,

numa modelação de efeitos apostada na justiça do caso concreto.

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Num certo sentido, pode dizer-se que o decurso do tempo, tornando inimpugnável judicialmente uma

situação de invalidade, excluindo a sua anulação administrativa ou, por efeito da atribuição de efeitos jurídicos

em casos de nulidade, impedindo a sua declaração de nulidade (ou inexistência derivada), gera uma preclusão

da relevância operativa da causa geradora da invalidade. Isto conduz à consolidação de situações geradoras

de efeitos inválidos ou até à atribuição de efeitos jurídicos a puras situações de facto que, subsistindo há

muito, a OJ entende proteger, atendendo até a que a vida administrativa se habituou a que existissem.

O decurso do tempo mostra-se passível, deste modo, de transformar uma pura situação de facto numa

situação jurídica, mostrando a sua capacidade de situações nascidas à margem da juridicidade, fora da

juridicidade ou contra a juridicidade, serem integradas dentro do sistema jurídico, justificando-as.

→ A retificação – art. 174º

A retificação, tendo como propósito repor ou estabelecer a integridade ou genuidade de um enunciado

linguístico, fazendo-o corresponder ao texto original ou à declaração de vontade efetiva do decisor, limita-se

a harmonizar a declaração errada com a vontade real.

Por este motivo, não assume um papel destrutivo ou modificativo de uma anterior vontade decisória, nem

visa sanar um vício na formação da vontade; antes tem como único propósito corrigir erros materiais de

expressão da vontade real e que sejam facilmente detetáveis ou comprováveis.

A retificação pressupõe a existência de um erro material que, tendo atingido a perfeição da exteriorização ou

declaração da vontade administrativa, não gera uma situação de invalidade, pois a gravidade dessa

imperfeição mostra-se inidónea a causar uma anulabilidade, antes se consubstancia numa mera

irregularidade.

Assumindo sempre natureza retroativa (art. 174º/2), a retificação pode ser praticada a todo o tempo (art.

174º/1) e pode ser desencadeada por iniciativa da própria Administração ou a pedido dos cidadãos. Uma vez

verificada, vincula o órgão competente a retificar: há um dever jurídico de retificar as condutas administrativas

feridas de erro material.

Uma vez que a retificação pode ser feita a todo o tempo, poderá suceder que, em cenário de “erros

essenciais”, registando-se uma longa vigência do ato passível de ser retificado, se tenham alicerçado situações

jurídicas à sombra do erro material, criando expectativas e permitindo investimentos nessa formulação do

enunciado jurídico:

- Em tais casos, por força dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, num propósito de

tutela da aparência, a retificação nunca poderá deixar de ressalvar efeitos já produzidos, desde que mais

favoráveis ou, pelo menos, fora dos casos de aplicação da lei mais favorável por imperativo constitucional, de

fazer criar um direito indemnizatório a favor dos cidadãos lesados.

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REGULAMENTOS

i) Competência – quem pode emanar regulamentos?

Competência regulamentar alicerçada na CRP – não está na disponibilidade do legislador.

As estruturas com competência regulamentar alicerçada na CRP são:

(a) Governo – tem dois tipos de competência regulamentar:

- Competência regulamentar complementar (de execução) – é uma competência que visa pormenorizar

aquilo que a lei definiu;

- Regulamentos independentes – são aqueles que não estão diretamente relacionados com uma única

lei: podem estar relacionados com várias leis ou alicerçarem-se no art. 199º/g) CRP.

Os regulamentos do Governo são os mais importantes, pelo posicionamento que o Governo tem na estrutura

da Administração Pública, pelo conjunto de competências materiais que a CRP atribui ao Governo e porque o

Governo, no âmbito dos regulamentos independentes, pratica os decretos-regulamentares (forma mais

solene de regulamentos, porque são sujeitos a promulgação por parte do PR).

(b) Regiões autónomas – têm dois tipos de competência regulamentar:

- Regulamentam a legislação regional – regulamentam os decretos-legislativos regionais e regulamentam,

em termos independentes, os regulamentos independentes regionais (alicerçados no próprio estatuto

político-administrativo);

- Competência regulamentar das leis da República – sempre que os órgãos da República não reservem

para o Governo da República essa mesma regulamentação. Esta competência não é apenas das leis da

República da área concorrencial: mesmo as das de reserva parlamentar estão sujeitas.

(c) Autarquias locais – tem fundamento na CRP, mas, apesar disso, não há regulamentos autárquicos

alicerçados na CRP, ou seja, carecem sempre de precedência de lei.

Os regulamentos das autarquias têm de respeitar os regulamentos das entidades de tutela e o poder

regulamentar das autarquias tem ainda de obedecer aos regulamentos dos respetivos municípios.

(d) Universidades Públicas – têm competência regulamentar (art. 76º/2), com duas particularidades: (i)

a autonomia regulamentar das Universidades é não só uma competência, mas um direito

fundamental e (ii) a competência regulamentar das Universidades limita a reserva de lei, porque a lei

não pode esvaziar nem evadir a área de competência das Universidades, designadamente a

autonomia estatutária (cada Universidade tem o poder de autodefinição das regras sobre a sua

organização e funcionamento). Tudo isto, sem prejuízo de o legislador poder sempre emanar normas

que tenham aplicação a título supletivo (supletividade do Direito do Estado).

(e) Associações Públicas e Autoridades Administrativas Independentes (que resultem da CRP).

- Competência regulamentar alicerçada na lei. Tem a configuração que o legislador lhe queira dar.

Problemas:

1. Será admissível a transferência legal ou a delegação de poderes regulamentares atribuídos pela CRP

a outros órgãos? – ex: a CRP atribui competência ao Governo para emanar regulamentos de execução

da lei: poderá o Governo emanar uma norma a dizer que, em matéria de telecomunicações, tal

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competência passará a ser da competência da ANACOM? PO: não, a competência atribuída pela CRP

não pode ser transferida nem delegada (ou seja, renunciada), salvo se tal for previsto pela própria

CRP.

Competência regulamentar alicerçada na lei ordinária

Têm competência regulamentar alicerçada na lei ordinária:

i. Órgãos das entidades da Administração indireta

ii. Órgãos das entidades da Administração periférica

iii. Órgãos das autoridades administrativas independentes que não se alicerçam na CRP.

Princípio do paralelismo da competência – art. 142º/1: quem tem competência para emanar um

regulamento, tem competência para interpretar, para modificar e para suspender. Ou seja, quem tem

competência dispositiva, tem competência interpretativa, revogatória e modificativa.

Regras não escritas:

1. Todas as entidades públicas têm sempre competência regulamentar.

2. No interior de cada entidade pública há sempre uma competência regulamentar interna – e esta

competência é a que fundamenta, por exemplo, o poder que o superior hierárquico tem de criar

diretivas e instruções, que são regulamentos internos. Ou seja, não é necessário que a lei

expressamente diga que ele tem competência para emanar regulamentos internos. No silêncio da lei,

os órgãos colegiais têm competência para elaborar os próprios regimentos.

ii) Formas e formalidades

Em relação à iniciativa:

1. Pertence à Administração, mas também pode ser desencadeada pelos interessados – art. 97º/1: pode

resultar de petições para elaborar um novo regulamento ou para revogar ou modificar um

regulamento já existente;

2. Art. 78º/1 – necessidade de publicação do início do procedimento por via da internet;

3. Participação dos interessados na feitura dos regulamentos – arts. 98º a 101º: tanto pode ser feita por

audiência prévia ou por consulta pública;

4. Art. 99º - a aprovação de um regulamento exige uma nota justificativa – fundamentação: um

regulamento, para ser aprovado, tem de ser objeto de uma fundamentação, onde está integrada uma

ponderação.

Forma dos regulamentos

- Do Governo:

» A forma mais solene é o decreto-regulamentar, que carece de promulgação e de referenda;

» Decretos simples;

» Resoluções do Conselho de Ministros;

» Portaria;

» Despacho normativo.

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- Das Regiões Autónomas:

» Em relação aos regulamentos das RA, os regulamentos das leis da República revestem a forma de

decreto legislativo regional. São uma competência exclusiva da Assembleia Legislativa.

- Das Autarquias Locais:

» Posturas municipais.

- Das Universidades Públicas:

» Estatutos Universitários;

» Regimentos;

» Circulares.

o Forma patológica – casos de ilegalidade em matéria de forma e formalidades – art. 144º/2: os

regulamentos que enfermem de irregularidade formal ou procedimental, do qual não resulte a sua

inconstitucionalidade, só podem ser impugnados no prazo de 6 meses a contar da data da respetiva

publicação, salvo os casos de carência absoluta de forma.

iii) Validade e eficácia

Art. 143º - os regulamentos são inválidos se forem desconformes com a CRP, com a lei, com princípios gerais

de Direito ou com o Direito Comunitário.

São inválidos os regulamentos que desrespeitem regulamentos emanados por órgãos superiores (art. 143º/2).

Resulta do art. 138º relações de prevalência entre regulamentos:

a) Entre regulamentos do Governo face a regulamentos regionais e autárquicos – art. 138º/1;

b) Entre regulamentos de autarquias locais – art. 138º/2;

c) Entre regulamentos intragovernamentais – art. 138º/3.

O art. 142º/2 consagra o princípio da inderrogabilidade singular dos regulamentos: um regulamento não

pode ser afastado de um caso concreto. As normas têm vigência geral por isso, em nome do princípio da

imparcialidade, não podem ser afastadas num caso concreto.

Regras:

1- Art. 146º/2 – os regulamentos de execução de uma lei não podem ser objeto de revogação simples,

isto é, uma lei que está a ser executada não pode deixar de ser executada porque lhe falta um

regulamento. Só podem ser objeto de revogação substitutiva.

2- Art. 137º - quando, para dar execução a uma lei, seja necessário um regulamento, esse regulamento,

na falta de outro prazo, deve ser emanado nos 90 dias subsequentes à lei, sob pena de ilegalidade por

omissão. Esta omissão regulamentar é “irmã” da constitucionalidade por omissão.

As outras formas de invalidade são sempre em cenários de invalidade por ação:

Regras quanto à invalidade por ação:

a) É invocável a todo o tempo – art. 144º/1;

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b) Se for uma ilegalidade formal ou procedimental da qual não resulte a sua inconstitucionalidade, só é

invocável nos 6 meses subsequentes ao regulamento, salvo se (i) for uma inconstitucionalidade, (ii)

houver carência absoluta de forma legal e (iii) se houver preterição da consulta pública obrigatória.

c) Efeitos da declaração de invalidade de um regulamento – art. 144º/3 e 4:

- A declaração de invalidade tem eficácia retroativa e envolve efeito repristinatório;

- Não há repristinação quando as leis a repristinar sejam também elas ilegais ou tenham deixado de vigorar

por outro motivo;

- A retroatividade não afeta os casos julgados, os atos administrativos que se tenham tornado inimpugnáveis

(que se tenham consolidado), salvo se forem atos desfavoráveis para os destinatários. A declaração de

invalidade de um regulamento não obsta a que certos efeitos se mantenham.

Eficácia:

- O art. 139º impõe a publicidade;

- Art. 141º.

iv) Cessação de vigência

Os regulamentos cessam:

(a) Por revogação – art. 146º, cujo limite é não poder deixar inexequível a lei em vigor ou norma de Direito

da UE (art. 146º/2). Caso isto não seja observado, consideram-se ainda em vigor, até ao início da

vigência do novo regulamento, as normas regulamentares do diploma revogado de que dependa a

aplicabilidade da lei exequenda (art. 146º/3).

(b) Por caducidade – ex: verifica-se a condição resolutiva ou a lei que ele visava regulamentar é revogada.

(c) Por intervenção do legislador – revogando a lei (revogação simples) ou revogando substitutivamente,

se o regulamento velho for incompatível com a lei nova (contra a regra geral do art. 145º).

(d) Por declaração de invalidade – pode ser feita pela Administração ou pelos Tribunais, incluindo o TC.

ATOS ADMINISTRATIVOS

Estrutura dos Atos Administrativos

Tem na sua base a dicotomia entre:

1. Atos administrativos constitutivos – todos aqueles que introduzem alterações na OJ.

As alterações podem ser introduzidas por:

1.1 Atos administrativos primários – aqueles que pela primeira vez se pronunciam sobre uma

determinada matéria. São atos que vêm disciplinar uma matéria jurídica, sem que antes tenha sido

objeto de qualquer regulação jurídica.

Há três tipos, que podem ter três naturezas diferentes:

1.1.1. Atos de natureza impositiva – impõem uma conduta, que tanto pode ser por ação como por

omissão/abstenção. Podem três naturezas: (i) atos ablativos, que envolvem a privação de direitos

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ou de liberdades (ex: nacionalização, expropriação), (ii) atos obrigacionais, que impõem o

cumprimento de um dever, de uma determinada prestação (ex: ato tributário) ou (iii) atos

sancionatórios, que aplicam uma sanção, que pode ser pecuniária ou não pecuniária (ex:

aplicação de uma coima ou pena de suspensão).

Nestes atos impositivos, tem especial relevância o princípio do devido procedimento legal.

1.1.2 Atos de natureza permissiva – limitam-se a permitir uma determinada conduta, não impõem mas

facultam, habilitam. Existem: (i) autorização, que se destingue de uma (ii) licença por se permitir

o exercício de uma atividade que é normalmente lícita, ao contrário da licença, em que se permite

uma atividade que normalmente é proibida, como o porte de armas, (iii) concessão, que tanto

pode ser um ato administrativo como pode ser um contrato, com a particularidade de, se deles

decorrer regras de direito concorrencial, estarão sujeitos ao CCP, (iv) admissão, (v) delegação, (vi)

dispensa, em que alguém isento do cumprimento de um dever legal, ou (vii) renúncia, através da

qual o próprio dispõe de uma posição jurídico, sendo que só será possível se a posição jurídica for

disponível, e a renúncia tanto pode ser da parte do particular, como da Administração.

1.1.3 Atos propulsores – através dos quais se procura incitar, desencadear uma conduta de terceiro.

Podem ser: (i) pedido, que pode ser feito por uma autoridade administrativa dirigido a uma outra

autoridade administrativa ou a um particular (ex: pedido de apresentação da certificação de

conclusão do ensino secundário), (ii) proposta, através da qual se solicita um comportamento

decisório face a algo que ainda não é uma decisão, valendo a proposta apenas como um esboço

daquilo que poderá vir a ser o possível conteúdo de uma decisão, com a ressalva de que

normalmente não são vinculativas (quando o são, a dúvida que se coloca é quem é afinal o autor

material da decisão, o que releva para efeitos de responsabilidade), (iii) diretiva, em que se fixa o

fim e se dá a liberdade de meios para atingir esse mesmo fim, (iv) recomendação, que se distingue

da (v) advertência, por se apelar a que exista uma determinada conduta, enquanto que na

advertência, apesar de também se apelar a uma determinada conduta, esse apelo tem subjacente

um efeito negativo se não for adotado.

1.2 Atos administrativos secundários – atos que incidem sobre anteriores atos, isto é, que têm como

objeto anteriores regulações jurídicas. Podem incidir sobre esses atos com três propósitos:

1.2.1 Atos integrativos – acrescentam-lhe algo que anteriormente não tinham. Podem acrescentar eficácia:

(a) a aprovação, que pode ser expressa ou tácita, (b) a homologação, em que o órgão que decide

aceita e faz sua uma proposta de decisão apresentada por outro órgão, passando a ser esse órgão o

autor desse ato (ex: homologação pelo superior hierárquico), (c) confirmação, através da qual há um

gesto de concordância, de um órgão que expressa a ideia de que aquele ato tem de tal modo mérito

que, se fosse ele a decidir, decidiria do mesmo modo, (d) ratificação-confirmativa, em que o órgão

competente decide intervir sobre um ato praticado por outro órgão ao abrigo de uma competência

extraordinária.

1.2.2 Atos desintegrativos (arts. 165º a 172º) – visam cessar efeitos de anteriores atos. Reconduzem-se a

duas figuras:

a) Revogação - em ambos os casos o objetivo é cessar os efeitos. Contudo, a revogação prende-se com

a cessação de efeitos com fundamento no mérito da decisão.

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A revogação pressupõe dois atos: o ato revogado, aquele cujos efeitos passam a estar extintos; e o ato

revogatório, aquele que cessa os efeitos do ato anterior.

A revogação distingue-se da suspensão, sendo esta última a cessação temporária de efeitos, enquanto que na

revogação a cessação é definitiva.

Tipos de revogação:

1. Revogação por iniciativa da Administração vs a requerimento dos interessados – se a revogação é feita

por iniciativa da Administração, a revogação é oficiosa (pode ser feita pelo autor do ato – retratação

– ou por outro órgão). Se a revogação for feita pelo interessado (art. 169º/1), será uma reclamação,

se for feita a pessoa que tem poderes de supremacia sobre o autor, será um recurso hierárquico.

2. Revogação simples vs revogação substitutiva – a primeira é aquela que apenas tem efeitos destrutivos,

a segunda implica que a disciplina jurídica do anterior ato é substituída por uma nova disciplina

jurídica.

3. Revogação com eficácia ex nunc (ou abrogatória) vs revogação com eficácia ex tunc (ou retroativa) –

a primeira produz efeitos para o futuro, a segunda produz efeitos retroativos (desde o início da

produção dos efeitos do ato revogado). A regra é a primeira hipótese (art. 171º/1). A revogação

apenas terá eficácia retroativa apenas nos casos previstos no mesmo artigo.

Quem pode revogar os atos administrativos?

a) O seu autor – o autor tem sempre competência revogatória, ao abrigo da sua competência dispositiva

(art. 169º/2). Pode ocorrer que o órgão competente deixe de ter competência para revogar: se houver

recurso hierárquico da decisão de A para B, em princípio A (subalterno) já não terá competência, que

passou para B (superior hierárquico); ou se houver uma revogação da delegação de poderes, caso em

que o delegado já não poderá revogar.

b) O superior hierárquico – pode revogar o ato nos termos do art. 169º/2 parte final, mas não o poderá

fazer se a competência for exclusiva do subalterno. O superior hierárquico tanto pode revogar o ato

por iniciativa do interessado (recurso hierárquico), como avocando a revogação, sem necessidade que

o particular interessado tenha interposto recurso. PO tem dúvidas que possa haver exclusão da

competência de revogação do superior hierárquico nos casos de competência exclusiva do subalterno:

isto porque, afinal, quem é o responsável pela totalidade da função do subalterno? É o superior

hierárquico. Contudo, há uma forma de o superior hierárquico contornar esta proibição: dar uma

ordem ao subalterno para que este revogue o seu ato.

c) O delegante – o delegante pode sempre revogar os atos praticados pelo delegado, como o delegado

(nos casos de subdelegação) pode sempre revogar os atos praticados pelo subdelegado (art. 169º/4).

d) O órgão que exerce poderes de superintendência e de tutela – art. 169º/5. O órgão de

superintendência e o órgão de tutela podem, cada um deles, revogar os atos. O artigo diz que é só nos

casos previstos na lei, mas PO duvida, em função da aplicabilidade direta do direito fundamental de

petição.

e) O órgão competente preterido – aquele que viu os seus poderes invadidos por outro órgão em sede

de incompetência relativa – art. 169º/6. Por exemplo, a CML pratica um ato que é da competência da

Assembleia Municipal de Lisboa: a situação é de incompetência relativa (dois órgãos da mesma pessoa

coletiva). Quem pode revogar, neste caso? O art. 169º/6 diz que pode o ato ser revogado pelo órgão

legalmente competente, isto é, aquele que viu a matéria da sua esfera invadida. Se assim fosse,

haveria um efeito positivo na incompetência: impedir o órgão competente de exercer a sua

competência.

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Regime:

Existem atos que não podem ser revogados – há casos de revogação impossível. São esses os

mencionados no art. 166º/1: os atos nulos, os atos anulados contenciosamente e os atos revogados

com eficácia retroativa.

Imagine-se que, perante um ato nulo, há um ato que diz “é revogado o ato x”: de que vício padece o ato de

revogação? Será uma situação de impossibilidade jurídica, de violação de lei, uma vez que o ato não tem

objeto. O ato será, assim, nulo – art. 161º/2 c).

Quando é que um ato já revogado pode ser objeto de revogação? Art. 166º/1 c) – se o ato B revogar o ato A

com eficácia ex nunc, poderá acontecer que o ato C venha revogar o ato A com eficácia ex tunc: está assim a

revogar um ato que já foi revogado, revogando agora os efeitos decorridos entre a data da publicação do ato

A e da publicação do ato B.

Os atos válidos são livremente revogáveis, com fundamento em razões de mérito – art. 167º a

contrario. Com três exceções:

- Não são livremente revogáveis os atos que resultarem de uma vinculação legal;

- Não são livremente revogáveis os atos que criem obrigações legais ou direitos irrenunciáveis para a

Administração;

- Não são livremente revogáveis os atos constitutivos de direitos. O conceito vem expresso no art. 167º/3

– é constitutivo de direitos todo o ato que reúna uma de três características:

1. Confira uma posição jurídica favorável;

2. Liberte o particular de uma situação jurídica passiva;

3. Amplie uma situação jurídica já existente.

Há dois atos que não são constitutivos de direito:

a) Atos precários – sendo estruturalmente constitutivo de direitos, estão sujeitos a uma condição ou

termo. Estes podem ser livremente revogáveis, verificando-se a cláusula acessória que lhes confere a

precariedade - arts. 167º/2 d) e 167º/3 parte final. Ou seja, estes atos têm como cláusula acessória a

sua revogabilidade.

b) Atos verificativos – são atos de comprovação. A lei nada diz sobre estes, são uma construção

doutrinária jurisprudencial, segundo a qual os atos de verificação são estruturalmente não

constitutivos de direitos (e por isso são declarativos), mas seguem o regime dos atos constitutivos de

direitos.

Regime dos atos constitutivos de direito:

a) Proibição de revogação, com a exceção do art. 167º/2, que permite a revogação:

-

- Se todos os destinatários derem a sua concordância e o direito não for indisponível

- Se houver a superveniência de conhecimentos técnico-científicos ou a alteração de circunstâncias,

mas apenas pode haver revogação se à data em que o ato foi praticado ele não deveria ter sido

praticado. Esta revogação também só poderá ser feita no prazo de 1 ano (prerrogável por mais dois,

nos termos do art. 167º/4).

b) Art. 167º/5 – haverá direito a indemnização pela revogação nos casos em que exista boa fé.

c) O art. 167º/6 densifica o conceito de boa fé nesta sede.

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d) Forma e formalidades para a revogação: paralelismo das formas – o ato de revogação deve seguir as

formalidades que foram adotadas para o ato revogado. Exceções: art. 170º/2 e 3.

e) Efeitos da revogação: BEA

b) Anulação administrativa – o cessar de efeitos tem um fundamento: a ilegalidade. Através da anulação

visa-se cessar os efeitos do ato ilegal.

Coloca-se a questão de saber se a anulação administrativa é um ato vinculado: perante um ato ilegal, o que

deve a Administração fazer?

- Há quem diga que não deve fazer nada, não é um ato vinculado, devendo a Administração contemplar de

braços cruzados o ato ilegal – esta solução será violadora do princípio da legalidade.

O ato não é, contudo, vinculado: perante um ato ilegal, a Administração pode sempre escolher um de dois

caminhos: (i) anular ou (ii) sanar o ato ilegal.

A anulação administrativa só tem por objeto atos anuláveis.

Figuras afins:

(a) Anulação administrativa vs anulação judicial - ambas têm o mesmo propósito (cessar os efeitos de

um ato ilegal). Se é uma autoridade administrativa, designa-se anulação administrativa; se for um

tribunal, será uma anulação judicial. A anulação administrativa obedece a um processo administrativo,

enquanto a anulação judicial obedece a um processo judicial.

(b) Anulação administrativa vs declaração de nulidade – a anulação é sempre um ato constitutivo, uma

vez que introduz a cessação de efeitos de ato inválido; já a declaração de nulidade é um ato

declarativo, que se limita a declarar que aquele ato nunca produziu efeitos. Contudo, a declaração de

nulidade pode ter uma componente constitutiva, quando por razões de boa fé/decurso do tempo, se

conferem efeitos jurídicos ao ato nulo.

Espécies de anulação administrativa

Os tipos de anulação administrativa são os mesmos que os da revogação:

- anulação administrativa oficiosa – art. 169º.

- anulação administrativa por iniciativa do particular – arts. 191º a 199º.

- anulação administrativa ex tunc – arts. 163º/2 e 171º/3 1ª parte.

- anulação administrativa atípica – apenas produz efeitos (1) para o futuro, ou seja, eficácia ex nunc (arts.

168º/4 b) e 171º/3 2ª parte), (2) modelação de efeitos: o ato, apesar de anulável, produz alguns efeitos (art.

163º/5), (3) direito de indemnização aos destinatários pela anulação (art. 168º/6).

A anulação administrativa tem dois fundamentos:

1. Repor a legalidade violada.

2. Dar uma chance à Administração antes da intervenção dos tribunais – simplificar a intervenção dos

tribunais.

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Quem pode anular um ato?

o As mesmas entidades que têm competência para revogar, com duas especialidades:

- O órgão incompetente pode anular o ato que praticou (art. 169º/3 CRP?) – esta disposição vem criar um

paradoxo na OJ: se o órgão que praticou o ato, depois de o praticar, se apercebe que não tinha competência

para o praticar, fica com um dever de o anular (princípio do autocontrolo da legalidade).

- Superior hierárquico.

Regime da anulação administrativa

Resume-se a cinco ideias:

1- Existem atos administrativos cuja anulação administrativa é impossível: os mesmos que são de

revogação impossível (os do art. 166º/1).

2- A invalidade dos atos administrativos só fundamenta a sua anulação durante um certo prazo. Não é

possível anular um ato administrativo fora do prazo legal – art. 168º/1:

- A anulação só pode ocorrer dentro dos 5 anos subsequentes à prática do ato – art. 168º/3. Se o ato for

anulado 1 dia depois, será inválido o ato que anula, por violação de lei.

- O prazo de 5 anos pode ser encurtado se o órgão competente para anular tiver conhecimento da invalidade.

Neste caso, apenas terá 6 meses a partir da data em que tem conhecimento da invalidade (dentro do prazo

de 5 anos).

- Se a causa da invalidade for erro, os 6 meses não se contam da data da prática do ato, mas da data em que

se soube do erro (dentro do prazo de 5 anos).

- Estes prazos podem ser encurtados se o ato for objeto de impugnação contenciosa – art. 168º/4.

- Se o ato não pode ser impugnado perante um tribunal, só pode ser anulado por iniciativa da Administração

e não por pedido do particular – art. 168º/5.

- Existe um regime especial para os atos constitutivos de direitos – em que há prazos mais pequenos, numa

lógica de maior estabilidade.

3- Os atos constitutivos de direitos só podem ser anulados no prazo de um ano a contar da respetiva

emissão – art. 168º/2. Mas há alguns que estão sujeitos a um prazo de 5 anos: quando se verificam

as hipóteses do 168º/4. Pode também não haver prazo para a anulação – casos do art. 168º/7.

4- Se o ato inválido passou o prazo para ser anulado, consolida-se esse ato na OJ, já não podendo ser

anulado, mas pode continuar a ser revogado. Isto porque se os atos que são originariamente válidos

podem ser revogados, os atos que são originariamente inválidos e que se consolidaram na OJ também

poderão ser.

O que acontece se o ato é anulado fora do prazo? Será inválido (por violação da lei que dizia que o prazo era

x) o ato de anulação, uma vez que é extemporâneo. Mas, apesar de ser inválido, o ato de anulação é anulável,

e, por ser anulável, produz efeitos como se fosse válido. Isto é, ele acaba por produzir efeitos (anular o outro

ato), só deixando de produzir quando for anulado por um ato posterior.

Concluindo, se se consolidar na OJ a invalidade do ato de anulação pelo decurso do tempo, passando o prazo

em que podia ser impugnado judicialmente, o ato estará sujeito às regras da revogação dos atos válidos (art.

167º).

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O regime da anulação que resulta do CPA de 2015 suscita dúvidas de constitucionalidade:

a) O art. 168º/7, na opinião de PO, viola o princípio da intangibilidade do caso julgado;

b) O novo regime que é mais desfavorável à anulação dos atos inválidos, aplica-se mesmo aos atos

inválidos anteriores a 2015 – há lesão do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança,

porque não há normas de transição em relação aos casos de invalidade.

Efeitos da anulação administrativa:

i. Efeitos temporais – a anulação administrativa produz efeitos retroativos (art. 171º/3). Há, porém,

três exceções:

- Não há efeito retroativo se o ato era constitutivo de direitos, envolvia prestações periódicas, no âmbito

de uma relação continuada (art. 168º/4 b)).

- Situações que, em nome da dignidade, segurança jurídica, do interesse público de excecional relevo, se

permite restringir os efeitos retroativos (art. 171º/3 2ª parte).

ii. Efeitos materiais – anulado o ato, a Administração deve reconstituir a situação atual hipotética,

aquela que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado – art. 272º/1.

Às vezes surgem dificuldades em reconstituir a situação atual hipotética e, por isso, há limites à reconstituição

da situação atual hipotética – exemplos:

1) Foi movido um processo disciplinar a um aluno de medicina e a AP apercebeu-se 4 anos depois de que

o ato que expulsou o aluno (que não era constitutivo de direitos) era inválido. Passados esses 4 anos,

a AP vem anular esse ato. Como se reconstitui a situação atual hipotética? Segundo limites de ordem

natural: ele não passaria a ser médico, apenas se poderia reconstituir a situação através da

responsabilidade civil.

2) Foi anulada uma decisão da FPF que resolveu desqualificar uma equipa que jogava na 1ª liga, sendo

desqualificada para uma liga abaixo. A AP vem-se a aperceber anos depois que afinal o ato (que não

era constitutivo de direitos) era inválido e vem agora, passado anos, anular o ato. Como se reconstitui

a situação atual hipotética? Passa automaticamente para a 1ª liga?

iii. Efeitos em relação aos particulares – desde que estes estejam de boa fé, a anulação dos atos pode

reconhecer-lhes posições jurídicas ativas, com fundamento no art. 172º/3. No caso de serem

funcionários, a situação está prevista no art. 172º/4.

NOTA: O mesmo ato pode, para uns, ser constitutivos de direitos e, para outros, não o ser. Ex: concurso

público, só há uma vaga e candidataram-se dois: ganha o concurso o candidato A – para este, o resultado do

concurso é um ato constitutivo de direitos – e para B? Já não o será. O ato investe um numa posição jurídica

favorável e o outro numa posição jurídica desfavorável.

Neste caso, qual será o regime aplicável à anulação do ato? Ao dos atos constitutivos de direitos? Ou não?

1.2.3. Atos modificativos – são aqueles que, incidindo sobre anteriores atos, não se limitam a completá-los

ou a modificar os seus efeitos, mas antes têm o propósito de reconfigurar anteriores atos. São uma

classe residual. Podem ter o propósito:

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1.2.3.1. Atos modificativos com caráter saneador – resolvem uma situação de invalidade – (arts. 164º e

173º/2 e 3) – (i) ratificação-sanação, (ii) reforma, em que se expurga o aspeto inválido e (iii) conversão.

1.2.3.2. Atos modificativos sem caráter saneador (art. 173º/1) – (i) a alteração em sentido estrito, (ii) a

suspensão (que se pode traduzir numa falsa suspensão) e (iii) a retificação.

1.3 Atos consensuais – têm por base um acordo/consenso entre o autor (Administração) e os destinatários.

São atos unilaterais, mas assentam num prévio acordo, que pode incidir sobre:

1.3.1 Atos consensuais procedimentais – o acordo incide sobre regras procedimentais;

1.3.2 Atos consensuais de natureza substantiva – o acordo incide sobre o próprio conteúdo da decisão

material.

Regime dos atos consensuais:

1. Vícios que ocorram no acordo projetam-se no respetivo ato. Ou seja, irregularidades/invalidades a

montante têm efeitos a jusante – invalidade derivada.

2. Alterações de circunstância – podem ocorrer sobre a base em que se alicerçou o acordo. A alteração

de circunstâncias do acordo projeta-se sobre o próprio ato consual, podendo determinar a cessação

de efeitos ou justificar a sua modificação.

3. O acordo que está na base do ato consensual pode pressupor uma natureza bilateral das obrigações

– não só obrigações por parte da Administração, mas também por parte dos destinatários desse ato.

Isto é relevante, uma vez que pode acontecer que haja incumprimento por uma das partes e é

necessário saber se isso será relevante para suscitar a temática da exceção do não cumprimento no

âmbito do acordo prévio, mas que se projeta depois na decisão administrativa.

4. A interpretação e a integração destes atos administrativos deve fazer-se de harmonia com o respetivo

acordo.

Os atos consensuais têm, portanto, a sua “vida” pautada pelo acordo que está na base da sua emanação.

1.4 Atos tácitos – os que resultam do silêncio administrativo (arts. 129º e 130º).

2. Atos administrativos declarativos – são os que nada acrescentam de novo à OJ. Todavia, os atos

declarativos podem ter três configurações:

2.1. Atos de verificação – limitam-se a verificar/tomar conhecimento de uma realidade factual e

simultaneamente emitem uma declaração de ciência:

(a) Atos que comprovam – registo, inscrição, atas (art. 34º), reconhecimentos notariais.

(b) Atos que certificam – certidões (arts. 83º/3 e 84º), declarações, autenticação, visto.

(c) Atos que aclaram.

(d) Atos de verificação constitutiva – verificam a existência de um facto e certificam esse facto. Discute-

se na doutrina se são verdadeiramente de verificação ou se ficam a meio caminho entre os atos

declarativos e os atos constitutivos.

As regras aplicáveis são as regras gerais dos atos administrativos, com as devidas adaptações.

Os atos verificativos poderão ser livremente revogáveis? Ex: pode a certidão de cadeiras feitas ser revogada?

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2.2. Atos de valoração – não se limitam a apreender factos, mas procedem a uma valoração/avaliação

desses factos.

i. Juízo qualificativo – pode ser um juízo de estimativa técnica (apreciação técnico-científica).

ii. Pareceres (arts. 90º e 91º) – são uma opinião. São obrigatórios mas não vinculativos.

iii. Informações (arts. 11º/2, 61º/3, 62º/1 a) e 82º a 85º) – uma coisa é a informação oral, outra coisa é a

informação escrita. Esta última implica responsabilidade civil caso não coincida com a realidade.

iv. Relatórios.

2.3. Atos de transmissão – visam comunicar um facto. Podem ser:

(a) Publicação (arts. 139º e 158º a 159º)

(b) Notificação (arts. 110º a 114º e 160º)

(c) Intimação

(d) Comunicação

Regulamentação no CPA: a regra é que o CPA é omisso. Mas tem um regime geral, que se aplica aos diversos

atos administrativos.

☼ Marcha do procedimento – como se tramita o procedimento administrativo?

Em matéria de procedimento, podemos encontrar três temas:

1- Procedimento declarativo típico;

2- Procedimento de recurso gracioso;

3- Procedimento de execução dos atos.

1- Procedimento declarativo típico:

a) Iniciativa:

Pode iniciar-se:

- Oficiosamente – por iniciativa da AP (art. 53º). Neste caso, a AP deve comunicar aos interessados (art. 110º),

mas nem sempre o deve fazer: quando o procedimento é de natureza secreta ou a comunicação compromete

o procedimento, a AP não deve comunicar (ex: numa investigação sobre droga);

- Por iniciativa do particular (art. 53º) – os particulares desencadeiam o procedimento através de um

requerimento (art. 102º), que deve ser apresentado nos termos previstos nos arts. 102º, 103º e 104º. A AP

deve registar o procedimento (art. 105º) e o particular deve pedir recibo da entrega do requerimento (art.

106º).

Pressupostos procedimentais do requerimento – art. 109º a contrario:

- Competência – p pedido tem de ser apresentado ao órgão competente

- Legitimidade dos requerentes – compreende um interesse direto e pessoal, ou um interesse por

representação;

- Tempestividade do pedido;

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- O direito do particular não tenha caducado.

A falta de qualquer um destes pressupostos leva a indeferimento liminar – art. 109º

b) Instrução (art. 105º) – serve para apurar os elementos de facto, ver se aquilo que está na base do

pedido ou da iniciativa da AP alicerça uma decisão. A AP vai recolher provas, valendo aqui o princípio

do inquisitório (art. 58º).

Diligências instrutórias típicas da AP:

Averiguações (art. 115º);

Solicitar informações aos particulares (art. 117º) ou a outras estruturas administrativas (ex: auxílio

administrativo – art. 66º). Se o particular não der as informações solicitadas pela AP, o regime está

regulado nos arts. 117º a 119º;

Solicitar a apresentação de documentos ou de coisas (art. 117º);

Determinar inspeções (art. 117º);

Peritagens (art. 115º)– desencadear intervenções de peritos;

Solicitar pareceres (art. 91º e 92º).

Podem ser os particulares a provocarem diligências instrutórias, autonomamente (art. 116º):

Juntar alegações;

Juntar documentos;

Juntar pareceres;

Provar factos;

Requerer diligências;

Produção antecipada da prova (art. 120º) – antes da instrução.

c) Preparação da decisão final - a AP já recolheu todas as provas, já apurou os factos. Agora vai preparar

a decisão.

Significa ouvir os particulares – realização da audiência prévia, que pode ser escrita ou oral, e que envolve um

dever de fundamentar: o projeto de decisão, as razões pelas quais não atende ao que os particulares disseram

na audiência prévia, e também, em alguns casos, o porquê de dispensar a audiência prévia.

d) Extinção

Pode ser por decisão expressa (art. 93º e 94º), decisão tácita (art. 129º e 130º), por acordo substitutivo do

procedimento, por desistência ou renúncia (art. 131º), por deserção (art. 132º), por impossibilidade ou

inutilidade superveniente (art. 95º) ou por falta de pagamento de taxas ou despesas.

2- Procedimento de recurso gracioso (da nova intervenção da AP sobre uma matéria sobre a qual já se

pronunciou ou não o fez e deveria tê-lo feito) – arts. 184º e ss:

Pode acontecer que o particular ache que a decisão administrativa é inválida ou não tem mérito. Pede assim

que a AP repondere e veja se há ou não fundamentos para alterar a decisão.

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O procedimento típico é o do recurso hierárquico (arts. 184º a 190º) – normas comuns, quer ao recurso

administrativo (que é a da decisão de uma autoridade administrativa para outra), quer à reclamação.

→ Como se desencadeiam estes mecanismos?

Através de um requerimento inicial (art. 184º/3):

a) Podem existir normas que estabeleçam regras procedimentais diferentes destas – ex: regulamento da

faculdade sobre a revisão de provas.

b) Este requerimento pode ser feito em suporte de papel, mas cada vez mais é feito online, através da

AP eletrónica.

c) Neste requerimento deve identificar-se o recorrente, o objeto do recurso, o fundamento (razões de

facto ou de direito) e o pedido (o que se está a requerer).

d) A interposição do pedido cria dois efeitos:

o Dever legal de decisão.

o Efeito suspensivo da decisão – quando há uma decisão administrativa que goza de eficácia e o

destinatário formula um pedido, ao fazê-lo suspende-se o dever de acatar a decisão? Art. 189º:

se a decisão em causa é passível de impugnação judicial imediata, não há efeito suspensivo; se a

decisão administrativa não é passível de ser impugnada judicialmente, haverá efeito suspensivo.

e) Pressupostos para o recurso – art. 196º a contrario:

- O ato deve ser pedido ao órgão competente;

- O ato deve poder ser objeto de impugnação;

- Quem pede deve ter legitimidade para isso;

- Tem de respeitar o prazo legal.

A falta de qualquer um destes requisitos leva a indeferimento liminar.

f) Art. 195º - impõe o dever de serem notificados os contrainteressados quando a decisão administrativa

do recurso possa ter efeitos lesivos para esses.

g) Obrigação de intervenção do autor do ato (art. 195º) – se é um recurso hierárquico, é o superior que

deve decidir, mas deve ouvir sobre os fundamentos do recurso por parte do subalterno.

→ Decisão administrativa:

Pode ser com dois conteúdos diferentes:

i. Improcedência do recurso – tem natureza confirmativa do ato recorrido.

NOTA: há possibilidade de a AP reformar para pior? Nos casos de pedido de revisão de nota, não é possível

quea nota seja inferior. Há que, neste âmbito, fazer a seguinte distinção:

▪ Não há reforma para pior na área discricionária.

▪ Na área da legalidade – quem decidiu, decidiu violando uma lei. Ex: nos termos da lei, o subsídio

máximo a dar é 50, o particular recebeu 52 mas ainda assim está insatisfeito e quer mais. O superior

hierárquico deve repor a lei e tirar os 2 que o particular ganhou a mais, ou não o deve fazer, por tornar

a situação mais desfavorável ao particular? Coloca-se então o problema da obrigatoriedade ou não de

reforma para pior nas situações em que a decisão administrativa viola a legalidade – confronto entre

o art. 195º/4 (que proíbe a modificação para pior) e o art. 197º/1 (que a admite).

▪ Situações de erro material e de erro de cálculo – o subsídio máximo é de 50, mas ao passar para

computador, em vez de se ter escrito 50 escreveu-se 500. Sendo um erro material, deve ser reformado

para pior? PO – sim.

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ii. O órgão para o qual foi interposto o recurso, dá procedência ao recurso – ou é revogada, ou é

anulada a anterior decisão. A revogação ou a anulação podem ser totais ou podem ser meramente

parciais (a lei só permite que o subsídio seja 50 e o particular recebeu 52).

Prazo da decisão – art. 198º - da decisão do recurso gracioso, cabe ou não novo recurso gracioso? Isto é,

recurso gracioso de 2º nível. A regra é de que da decisão do recurso não cabe novo recurso. Exceções: art.

191º/2 (omissão de pronúncia) ou quando exista contradição entre duas decisões de casos semelhantes.

Execução do ato administrativo:

Perante uma decisão administrativa que define o direito no caso concreto (dotada de autotutela declarativa),

pode acontecer que o particular tenha resistência a essa decisão. Nestes casos, de nada serve a AP poder

decidir se, perante a resistência, a desobediência, não haja mecanismos que permita à AP executar a sua

decisão.

Há que fazer uma distinção entre as obrigações em causa – arts. 175º e ss:

(1) Obrigações pecuniárias – ex: pagamento de impostos. A AP não pode ir a casa do particular e retirar

os seus bens. É necessário ir a tribunal.

(2) Entrega de coisa certa (art. 180º);

(3) Prestação de um facto (art. 181º).

A regra é a de que as medidas de polícia que envolvam coação direta estão fora do procedimento coativo da

AP.

Princípio geral – art. 176º - a AP só pode atuar coercivamente, utilizando a força, nos casos e segundo as

formas expressamente previstas na lei. A AP deve recorrer previamente aos Tribunais. Resulta daqui que o

CPA em 2015 veio abolir o privilégio da execução prévia como regra.

Na lei, estão previstas as situações de urgente necessidade pública – art. 176º/1. Só nestes casos é possível

haver privilégio de execução prévia. Nos outros casos, a regra é a de que, se a AP quer utilizar a força para

fazer executar o seu direito, tem de se dirigir previamente a Tribunal.

Procedimento de execução:

1º. Tem previamente de haver um direito a executar – art. 177º. Com uma exceção: situações de estado de

necessidade (art. 177º/2).

2º. Não basta exigir um título declarativo, é necessário que exista uma decisão que mande executar. Isto tem

dois efeitos: fixa o conteúdo do que há a fazer e os termos em que deve ser feito.

3º. Não basta a existência desta decisão de proceder à execução, é necessária a notificação dos destinatários

– a AP tem de comunicar individualmente aos administrados que deve executar, dando-lhes um prazo razoável

para executar – arts. 177º/3 e 4. O particular pode reagir, impugnando.

4º. Se o particular não executar voluntariamente, a AP terá de passar à execução coerciva. A AP

tradicionalmente não precisava de ir a tribunal para isso; hoje, com o CPA 2015, a AP tem de se dirigir

previamente ao Tribunal.

5º. Existência de um título executivo judicial, que permite que a AP possa executar o ato.

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112

A realidade, contudo, é diferente. No diploma preambular que aprova o CPA 15, no art. 8º/2 afirmava que o

art. 176º/1 deste código (que remete a AP para os Tribunais), só entra em vigor quando for elaborada uma lei

que concretize como a AP deve ir a tribunal pedir o título executivo, no prazo de 60 dias. Este diploma entrou

em vigor no dia 8 de abril de 2015, tendo já passado os 60 dias definidos para a emissão desse diploma.

Não havendo diploma, a lei diz que há regime transitório que, nos termos do art. 6º e 8º do diploma

preambular, é o de que se mantém o regime da execução do CPA de 91. Ou seja, a AP mantém hoje o privilégio

da execução prévia.

A norma que pára a aplicação do art. 176º/1 não constava da lei de autorização legislativa que autorizou a

revisão constitucional. Estamos, assim, perante uma “norma a descoberto” de autorização legislativa, e isto

significa que afinal é inconstitucional a manutenção em vigor do regime do CPA 91. A AP continuar hoje a ter

pacificamente autotutela executiva viola a CRP organicamente.

Saber se a execução de uma decisão pode ser feita pela AP sem intervenção dos Tribunais ou com intervenção

dos Tribunais é um problema de separação de poderes: à luz da lei nova, a exigência de um título executivo

judicial fez com que a matéria até então da esfera exclusiva do poder administrativo passasse previamente

para a esfera do poder judicial. Então, a AP não está a impor coercivamente uma obrigação violando a

separação de poderes? Se a resposta for sim, então o particular tem um direito de resistência, de não acatar

com fundamento na CRP.

Para além disto, a lei de elaboração, a ser publicada, iria provocar um bloqueio dos próprios tribunais.

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Responsabilidade civil da Administração Pública

Quem gera um dano constitui-se no dever de o reparar.

Essa reparação deve ser feita, preferencialmente, através da reconstituição natural. Não sendo esta possível,

entra a indemnização, a compensação pecuniária.

A responsabilidade civil da Administração Pública alicerça-se num princípio de justiça e no conceito de Estado

de Direito.

Notas históricas:

1. Em Portugal, a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos só ficou consolidada em 1930. Até

aí, o princípio geral era o da irresponsabilidade.

2. Só em 1967 é que foi emanado o primeiro diploma que regula a responsabilidade extracontratual do

Estado.

3. 2007 é o ano em que é emanada a lei da responsabilidade extracontratual dos poderes públicos,

através da lei 67/2007 de 31 de dezembro. Tecnicamente, era mais perfeito o diploma de 67 que o de

2007.

Tipos de responsabilidade civil da Administração Pública:

a) Danos de natureza patrimonial vs danos sem natureza patrimonial.

b) Condutas regidas pelo Direito Administrativo vs condutas regidas pelo Direito Privado – se a conduta

que gera a responsabilidade está regulada pelo Direito Privado, será o CC a regular a situação.

c) Violação de normas técnicas – a conduta pode ser a mesma, mas desde que o Direito que a regule seja

outro, as consequências serão diferentes.

d) Responsabilidade civil subjetivista (assente na culpa do lesante, do agente) vs responsabilidade civil

objetiva – a tendência é a passagem para a responsabilidade objetivista.

e) Responsabilidade contratual vs responsabilidade extracontratual – a responsabilidade extracontratual

pode ser sobre a formação, a execução ou a extinção do contrato.

A responsabilidade no âmbito da formação dos contratos é uma responsabilidade pré-contratual (culpa

in contrahendo).

Pode haver responsabilidade num momento posterior à celebração do contrato, nomeadamente quando

haja deveres acessórios (extracontratual). A responsabilidade extracontratual pode assentar em três

fundamentos:

i. Responsabilidade por facto ilícito – que pode, por sua vez, ser um comportamento concreto

de um particular ou de um funcionário ou consequência de um mau funcionamento do serviço

(art. 7º/3).

ii. Responsabilidade por facto lícito ou pelo sacrifício (art. 16º) – a conduta é válida mas gera

um prejuízo para o destinatário. Ex: a expropriação. Esta responsabilidade tem como

fundamento direto o art. 62º/2 CRP: quando há expropriação ou requisição há lugar a um

direito a uma justa indemnização (que é um direito fundamental). O conceito constitucional

de expropriação não é apenas a privação da propriedade privada, mas sim a privação de todo

e qualquer direito de conteúdo patrimonial privado por razões de interesse público. Ex: a AP

celebra com um particular um contrato por um período de 10 anos e o particular cumpre

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validamente o contrato. Mas, de um momento para o outro, a AP entende que há uma razão

de interesse público que justifica a rescisão do contrato: nesse caso, o particular tem o direito

a uma justa indemnização, uma vez que neste caso também há a privação de um direito de

conteúdo patrimonial.

Na base deste entendimento há um princípio constitucional – princípio da justa repartição dos

encargos públicos: se são razões de interesse público que justificam que A seja lesado em nome da

coletividade, então é justo que toda a coletividade indemnize aquele que foi sacrificado em benefício

da coletividade.

Como é que a coletividade suporta?

1) Através dos impostos

2) Através do recurso ao crédito público – remeter para as gerações futuras o pagamento da justa

indemnização.

iii. Responsabilidade pelo risco (art. 11º) – a existência de serviços especialmente perigosos. Ex:

o funcionamento de uma barragem ou de uma central nuclear.

f) Responsabilidade pessoal vs responsabilidade institucional – quem responde pelos danos é o

património do titular do órgão administrativo (pessoal) ou, pelo contrário, deverá responder o

património da pessoa coletiva pública em que insere esse titular. A resposta está no art. 22º CRP, que

estabelece o princípio da solidariedade – o lesado tanto pode pedir a indemnização à pessoa coletiva

ou ao titular do órgão. Qualquer um deles responde, com duas ideias:

- Se o decisor administrativo decidiu ou não decidiu, e a sua conduta produziu danos, em termos de uma

negligência, ainda que seja a entidade pública a satisfazer a indemnização ao particular, essa entidade terá

direito de regresso sobre o titular do órgão que tomou a decisão (art. 271º/4 CRP).

g) Responsabilidade intra-administrativa – (i) entre duas pessoas coletivas distintas (responsabilidade

civil intersubjetiva) ou (ii) responsabilidade civil dentro da mesma pessoa coletiva (responsabilidade

civil intrassubjetiva) (iii) entre o funcionário e a entidade pública.

Questão: a responsabilidade entre titulares de órgãos colegiais é uma responsabilidade intrassubjetiva ou de

direito privado? Ex: o titular A acha que o titular B é teimoso e, numa reunião pública, ofende-o. Essa ofensa

gera responsabilidade, mas será responsabilidade administrativa ou responsabilidade de direito privado?

Limites à responsabilidade civil da Administração Pública:

(a) Limites financeiros – justificam que exista um dever fundamental de pagamento das indemnizações,

mas que nunca pode conduzir à ruína do Estado.

(b) Em situações de Estado de emergência financeira justifica-se uma restrição ao dever de pagamento

das indemnizações.

Regime:

A lei 67/2007 trata não apenas da responsabilidade administrativa, mas também no âmbito da função

legislativa e da função judicial.

Resulta do art. 9º a definição do que são atos ilícitos. A ilicitude assenta na ideia de que são ilícitas as condutas

que violam a legalidade.

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Presume-se a existência de culpa leve na prática de atos ilícitos (art. 10º). Se há culpa leve, a responsabilidade

é exclusiva da entidade pública. E se o particular, ao abrigo do art. 22º CRP desencadeou a ação contra o

titular do órgão? Ele pode fazê-lo, quem responde pelo dano é o funcionário, mas depois tem direito de

regresso em relação à entidade pública, se houver culpa leve. Se não houver culpa leve, será o património do

titular a responder pela indemnização.

Requisitos da responsabilidade civil da Administração:

1. Existência de ilicitude

2. Existência de culpa

3. Existência de prejuízo

4. Existência de nexo de causalidade

Em relação ao prazo, o art. 5º remete as regras de prescrição para o art. 498º CC, que prevê um prazo de 3

anos.

A limitação quanto aos danos indemnizáveis na responsabilidade por facto ilícito vem no art 2º (apenas os

danos especiais e anormais são indemnizáveis).

Causas de exclusão da responsabilidade extracontratual das entidades públicas:

Não vêm na lei, mas existem causas de exclusão da responsabilidade extracontratual das entidades públicas.

As causas podem ser:

a) Ligadas à justificação da ilicitude – ex: a legítima defesa ou o exercício de um direito ou o

consentimento do ofendido.

b) Ligadas à exclusão da culpa – pode ser por um erro desculpável da AP ou a própria conduta pode ser

desculpável.

c) Ligadas à interrupção do nexo de causalidade – pode ser feita por um facto de força maior, por um

facto fortuito, em consequência de um dano que é resultado de um comportamento da vítima (ex:

um anúncio dizendo “a estrada está cortada ao trânsito por neve” e a pessoa afasta o sinal e avança

de carro, tendo um acidente – neste caso, a vítima não poderá vir reclamar uma indemnização).

d) Que tornam irrelevante o prejuízo – há prejuízo, mas é irrelevante. Pode ser por duas hipóteses:

(i) Casos em que a lei exclui a relevância do prejuízo – art. 2º da lei 67/2007 que diz que só

são indemnizáveis os prejuízos especiais ou anormais.

(ii) A vítima não tem direito a ser melhor tratada, a ser indemnizada – ex: a ilicitude da

situação do dano da vítima – por exemplo, a polícia faz uma rusga, encontra droga e

destrói-a: o proprietário da droga, apesar de ter visto o seu direito de propriedade violado,

não tem direito a indemnização. O mesmo se passa em relação à apreensão de bens de

contrabando.

A responsabilidade das entidades públicas não pode ser uma porta aberta para se delapidarem recursos

públicos.