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É a consciência um processo cerebral? * U. T. Place Resumo A tese de que a consciência é um processo no cérebro é proposta como uma hipótese científica sensata, que não pode ser recusada apenas por motivos lógicos. São discutidas as condições sob as quais dois conjuntos de observações são tratados como observações do mesmo processo, ao invés de observações de dois processos independentes e correlatos. Sugere-se que nós podemos identificar a consciência com um certo padrão de atividade cerebral, se formos capazes de explicar as observações introspectivas do sujeito através da referência aos processos cerebrais com os quais elas estão correlacionadas. Afirma-se que a “falácia fenomenológica” – a equivocada idéia de que as descrições das aparências das coisas são descrições dos estados reais das coisas em um misterioso ambiente interno – faz com que o problema de fornecer uma explicação fisiológica das observações introspectivas pareça mais difícil do que ele realmente é. I- Introdução A visão de que existe uma classe separada de eventos – os eventos mentais – que não podem ser descritos em termos dos conceitos empregados pelas ciências físicas não tem mais, como antigamente, uma aceitação universal e incondicional entre filósofos e psicólogos. Entretanto, o moderno * Título do original inglês: “Is Consciousness a Brain Process?”. British Journal of Psychology, XLVII: 44-50, 1956. Traduzido por Saulo de Freitas Araujo.

É a consciência um processo cerebral?

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Texto clássico do filósofo australiano U. T. Place, no qual é feita a defesa da identidade mente-cérebro.

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a Conscincia um Processo Cerebral

a conscincia um processo cerebral?*

U. T. Place

Resumo

A tese de que a conscincia um processo no crebro proposta como uma hiptese cientfica sensata, que no pode ser recusada apenas por motivos lgicos. So discutidas as condies sob as quais dois conjuntos de observaes so tratados como observaes do mesmo processo, ao invs de observaes de dois processos independentes e correlatos. Sugere-se que ns podemos identificar a conscincia com um certo padro de atividade cerebral, se formos capazes de explicar as observaes introspectivas do sujeito atravs da referncia aos processos cerebrais com os quais elas esto correlacionadas. Afirma-se que a falcia fenomenolgica a equivocada idia de que as descries das aparncias das coisas so descries dos estados reais das coisas em um misterioso ambiente interno faz com que o problema de fornecer uma explicao fisiolgica das observaes introspectivas parea mais difcil do que ele realmente .

I- Introduo

A viso de que existe uma classe separada de eventos os eventos mentais que no podem ser descritos em termos dos conceitos empregados pelas cincias fsicas no tem mais, como antigamente, uma aceitao universal e incondicional entre filsofos e psiclogos. Entretanto, o moderno fisicalismo, diferentemente do materialismo dos sculos dezessete e dezoito, behaviorista. Segundo esse ponto de vista, a conscincia ou um tipo especial de comportamento comportamento modelo ou comportamento de trs para frente, como afirma Tolman (1932, p. 206) ou uma disposio para se comportar de um certo modo, sendo uma coceira, por exemplo, uma propenso temporria a coar. No caso de conceitos cognitivos, como conhecer, acreditar, compreender, relembrar, e conceitos volitivos, como querer e intencionar, no h muita dvida de que uma anlise em termos de disposies para se comportar (Wittgenstein, 1953; Ryle, 1949) faz muito sentido. Por outro lado, parece haver um resduo intratvel de conceitos relativos s noes de conscincia, experincia, sensao e imaginao, onde algum tipo de relato sobre processos internos inevitvel (Place, 1954). obviamente possvel que uma explicao behaviorista satisfatria desse resduo conceitual seja um dia encontrada. Entretanto, para os nossos presentes propsitos, eu assumirei que isso no pode ser feito e que sentenas sobre dores e pontadas, sobre como as coisas parecem ser, sobre coisas sonhadas ou imaginadas no olho da mente, so sentenas referindo-se a eventos e processos, que so, em algum sentido, internos ou privados para o indivduo que as expressa. A questo que eu desejo levantar se, ao fazer essa suposio, ns estamos inevitavelmente comprometidos com uma posio dualista, em que as sensaes e imagens mentais formam uma categoria separada de processos para alm dos processos fsicos e fisiolgicos com os quais nos sabemos que eles se correlacionam. Eu afirmarei que a aceitao de processos internos no implica o dualismo e que a tese de que a conscincia um processo no crebro no pode ser recusada por motivos puramente lgicos.

II- O da definio e o da composio

Eu quero enfatizar, desde o incio, que ao defender a tese de que a conscincia um processo cerebral, eu no estou tentando argumentar que quando ns descrevemos nossos sonhos, nossas fantasias e sensaes ns estamos falando de processos em nossos crebros. Em outras palavras, eu no estou afirmando que sentenas sobre sensaes e imagens mentais so redutveis a ou analisveis em termos de sentenas sobre processos cerebrais, no modo pelo qual sentenas sobre a cognio so analisveis em termos de sentenas sobre o comportamento. Dizer que sentenas sobre a conscincia so sentenas sobre processos cerebrais totalmente falso. Isto sabido a) pelo fato de que voc pode descrever suas sensaes e sua imaginao sem saber nada sobre seus processos cerebrais ou mesmo se tal coisa existe; b) pelo fato de que sentenas sobre a conscincia de algum e sentenas sobre os processos cerebrais de algum so verificadas de modos inteiramente diferentes; c) pelo fato de que a sentena X tem uma dor mas no h nada acontecendo no seu crebro no encerra nenhuma autocontradio. O que eu quero de fato asseverar, no entanto, que a sentena a conscincia um processo no crebro, embora no seja necessariamente verdadeira, no necessariamente falsa. Essa sentena, segundo meu ponto de vista, no nem autocontraditria nem auto-evidente; uma hiptese cientfica sensata, do mesmo modo que a sentena o relmpago um movimento de cargas eltricas tambm uma hiptese cientfica sensata.

A viso bastante difundida de que uma assero de identidade entre conscincia e processos cerebrais pode ser eliminada com base apenas na lgica origina-se, penso eu, de um fracasso em distinguir entre o que ns podemos chamar de o da definio e o da composio. A distino que eu aqui tenho em mente uma diferena entre a funo da palavra em sentenas do tipo o quadrado um retngulo equiltero, vermelho uma cor, entender uma instruo ser capaz de agir adequadamente nas circunstncias adequadas, e sua funo em sentenas do tipo sua mesa um caixote velho, seu chapu um monte de palha amarrada com um cordo, uma nuvem uma massa de gotculas de gua ou de outras partculas em suspenso. Esses dois tipos de sentenas envolvendo o tm uma coisa em comum. Em ambos os casos, faz sentido acrescentar a qualificao e nada mais. Nesse sentido, elas diferem daquelas sentenas em que o um de predicao; as sentenas Toby tem 80 anos e nada mais, seu chapu vermelho e nada mais ou as girafas so altas e nada mais, por exemplo, no tm qualquer sentido. Essa caracterstica lgica pode ser descrita dizendo que em ambos os casos tanto o sujeito quanto o predicado so expresses que fornecem uma caracterizao adequada do estado de coisas ao qual elas se referem.

Em um outro sentido, porm, os dois grupos de sentenas so bastante diferentes. Sentenas do tipo um quadrado um retngulo equiltero so sentenas necessrias, que so verdadeiras por definio. Sentenas do tipo sua mesa um caixote velho, por outro lado, so sentenas contingentes, que tm que ser verificadas por observao. No caso de sentenas do tipo um quadrado um retngulo equiltero ou vermelho uma cor, existe uma relao entre o significado da expresso que compe o predicado e o significado da expresso que compe o sujeito, de modo que sempre que o sujeito for aplicvel, o predicado tambm deve ser. Se voc pode descrever algo como vermelho, ento voc tambm deve poder descrev-lo como colorido. No caso de sentenas do tipo sua mesa um caixote velho, por outro lado, no h uma tal relao entre os significados das expresses sua mesa e caixote velho; acontece simplesmente de, nesse caso, ambas expresses serem aplicveis ao mesmo objeto e, ao mesmo tempo, fornecerem uma adequada caracterizao dele. Aqueles que afirmam que a sentena a conscincia um processo cerebral logicamente insustentvel baseiam sua afirmao, eu suspeito, na suposio equivocada de que se os significados de duas sentenas ou expresses no se relacionam, eles no podem fornecer uma caracterizao adequada do mesmo objeto ou estado de coisas: se algo um estado de conscincia, ele no pode ser um processo cerebral, uma vez que no existe nenhuma autocontradio em supor que algum sente uma dor quando no h nada acontecendo dentro de seu crnio. Da mesma maneira, ns podemos ser levados a concluir que uma mesa no pode ser um caixote velho, j que no h nenhuma autocontradio em supor que algum tem uma mesa, mas no tem um caixote velho.

III- A independncia lgica de expresses e

a independncia ontolgica de entidades

Existe, claro, uma importante diferena entre o caso da mesa/caixote e o caso da conscincia/processo cerebral, no sentido de que a sentena sua mesa um caixote velho uma proposio particular que refere-se apenas a um caso particular, enquanto que a sentena a conscincia um processo no crebro uma proposio geral ou universal que se aplica a todos os estados de conscincia. muito evidente, eu penso, que se ns vivssemos em um mundo no qual todas as mesas, sem exceo, fossem caixotes, os conceitos de mesa e caixote no teriam, em nossa linguagem, o seu presente status de independncia lgica. Em um mundo assim, uma mesa seria uma espcie de caixote, assim como o vermelho uma espcie de cor. Parece ser uma regra da linguagem que sempre que uma certa variedade de objeto ou estado de coisas tem duas caractersticas ou dois conjuntos de caractersticas, uma ou um dos quais pertence exclusivamente variedade de objeto ou estado de coisas em questo, a expresso usada para referir caracterstica ou ao conjunto de caractersticas que define a variedade do objeto ou estado de coisas em questo implicar sempre a expresso utilizada para referir outra caracterstica ou ao outro conjunto de caractersticas. Se essa regra no admitisse exceo, qualquer expresso que logicamente independente de outra expresso, que caracteriza unicamente uma certa variedade de objeto ou estado de coisas, deveria referir-se a uma caracterstica ou a um conjunto de caractersticas que no est normalmente ou necessariamente associado com o objeto ou estado de coisas em questo. porque essa regra se aplica quase universalmente, eu sugiro, que ns normalmente temos a justificativa de passar da independncia lgica de duas expresses para a independncia ontolgica dos estados de coisas aos quais elas se referem. Isso explicaria tanto a fora indubitvel do argumento de que conscincia e processos cerebrais devem ser entidades independentes porque as expresses utilizadas para se referir a eles so logicamente independentes quanto, em geral, o curioso fenmeno pelo qual questes relativas s entidades bsicas do universo so freqentemente discutidas e no raro decididas meramente pela lgica.

O argumento que, a partir da independncia lgica das duas expresses, conclui pela independncia ontolgica das entidades s quais elas se referem fracassa no caso dos processos cerebrais e da conscincia, segundo eu penso, porque este um dos poucos casos em que a regra acima referida no se aplica. Essas excees devem ser encontradas, sugiro eu, naqueles casos em que as operaes que devem ser realizadas para verificar a presena dos dois conjuntos de caractersticas inerentes ao objeto ou estado de coisas em questo raramente podem ser feitas simultaneamente. Um bom exemplo aqui o caso da nuvem e da massa de gotculas ou outras partculas em suspenso. Uma nuvem uma grande massa semitransparente com uma textura lanosa, suspensa na atmosfera, cuja forma est sujeita mudana contnua e caleidoscpica. Quando observada bem de perto, entretanto, descobre-se que ela consiste em uma massa de minsculas partculas, normalmente gotas dgua, em contnuo movimento. Com base nessa segunda observao, ns conclumos que uma nuvem uma massa de minsculas partculas e nada mais. Mas no existe uma conexo lgica na nossa linguagem entre uma nuvem e uma massa de minsculas partculas; no h nada de autocontraditrio em falar de uma nuvem que no composta de minsculas partculas em suspenso. No h contradio envolvida em supor que as nuvens consistem em uma massa densa de tecido fibroso; de fato, uma tal consistncia pode ser deduzida a partir das vrias funes realizadas pelas nuvens em histrias encantadas e na mitologia. Est claro ento que os termos nuvem e massa de minsculas partculas em suspenso significam coisas bastante diferentes. Entretanto, ns no conclumos, com base nisso, que deve haver duas coisas, a massa de partculas em suspenso e a nuvem. A razo para isso, eu sugiro, que embora as caractersticas de ser uma nuvem e ser uma massa de minsculas partculas em suspenso estejam invariavelmente associadas, ns nunca realizamos simultaneamente as observaes necessrias para verificar a sentena aquilo uma nuvem e as observaes necessrias para verificar a sentena isto uma massa de minsculas partculas em suspenso. Ns podemos observar a micro-estrutura de uma nuvem apenas quando ns estamos envolvidos por ela, uma condio que nos impede efetivamente de observar aquelas caractersticas que, distncia, levam-nos a descrev-la com uma nuvem. De fato, essas duas experincias so to diferentes, que ns utilizamos diferentes palavras para descrev-las. Aquilo que uma nuvem quando ns observamos distncia torna-se uma neblina ou uma nvoa quando ns estamos envolvidos por ela.

IV- Quando dois conjuntos de observaes

so observaes do mesmo evento?

O exemplo da nuvem e da massa de minsculas partculas em suspenso foi escolhido porque um dos poucos casos de uma proposio geral envolvendo o que eu chamei de o da composio e que no nos leva a discusses tcnicas. Ele til porque revela a conexo entre os casos da vida cotidiana com o da composio como o exemplo da mesa/estojo e os casos mais tcnicos, como o o relmpago um movimento de cargas eltricas, em que a analogia com o caso da conscincia/processo cerebral mais marcante. A limitao do caso da nuvem/minsculas partculas em suspenso que ele no revela de modo suficientemente claro o problema crucial de como estabelecida a identidade entre os estados de coisas referidos pelas duas expresses. No caso da nuvem, o fato de que algo uma nuvem e o fato de que algo uma massa de minsculas partculas em suspenso so verificados pelos processos normais da observao visual. Pode-se argumentar, alm disso, que a identidade das entidades referidas pelas duas expresses estabelecida pela continuidade entre os dois conjuntos de observaes, na medida em que o observador se move em direo nuvem ou dela se afasta. No caso dos processos cerebrais e da conscincia no h uma tal continuidade entre os dois conjuntos de observaes em questo. Um escrutnio introspectivo jamais revelar a passagem de impulsos nervosos em milhares de sinapses do mesmo modo que um escrutnio de uma nuvem revelar uma massa de minsculas partculas em suspenso. As operaes necessrias para verificar sentenas sobre a conscincia e sentenas sobre processos cerebrais so fundamentalmente diferentes.

Para encontrarmos um paralelo para essa caracterstica, ns temos que examinar outros casos em que se afirma a identidade entre algo cuja ocorrncia verificada pelos processos ordinrios da observao e algo cuja ocorrncia estabelecida por procedimentos cientficos especiais. Por causa disso eu escolhi o caso em que ns dizemos que o relmpago um movimento de cargas eltricas. Como no caso da conscincia, por mais de perto que olharmos o relmpago, ns nunca seremos capazes de observar as cargas eltricas. Alm disso, assim como as operaes para determinar a natureza do estado de conscincia de algum so radicalmente diferentes daquelas operaes envolvidas na determinao da natureza dos processos cerebrais de algum, as operaes para determinar a ocorrncia do relmpago tambm so radicalmente diferentes das operaes envolvidas na determinao da ocorrncia de um movimento de cargas eltricas. O que que nos leva, portanto, a dizer que os dois conjuntos de observaes so observaes do mesmo evento? No pode ser meramente o fato de que os dois conjuntos de observaes esto sistematicamente correlacionados, de tal forma que sempre que houver um relmpago, haver tambm um movimento de cargas eltricas. Existem inumerveis casos de tais correlaes em que ns no nos sentimos tentados a dizer que os dois conjuntos de operaes so observaes do mesmo evento. H uma correlao sistemtica, por exemplo, entre o movimento das mars e as fases da lua, mas isso no nos leva a dizer que os registros dos nveis das mars so registros das fases da lua ou vice-versa. Ao invs disso, ns falamos de uma conexo causal entre dois processos ou eventos independentes.

A resposta aqui parece ser que ns tratamos os dois conjuntos de observaes como observaes do mesmo evento naqueles casos em que as observaes cientficas, realizadas no contexto apropriado de uma teoria cientfica, fornecem uma explicao imediata das observaes feitas pelo homem comum. Assim, ns conclumos que o relmpago no nada mais do que um movimento de cargas eltricas porque ns sabemos que um movimento de cargas eltricas pela atmosfera, tal como acontece quando o relmpago relatado, gera o tipo de estimulao visual que levaria um observador a relatar um relmpago. No caso mar/lua, por outro lado, no h uma tal conexo direta entre as fases da lua e as observaes feitas pelo homem que mede o nvel da mar. A conexo causal se d entre a mar e a lua, e no entre a lua e a medio da das mars.

V- A explicao fisiolgica da introspeco

e a falcia fenomenolgica

Se esta abordagem estiver correta, seria lgico esperar que, para se estabelecer a identidade entre a conscincia e certos processos cerebrais, seria necessrio mostrar que as observaes introspectivas relatadas pelo sujeito podem ser explicadas em termos de processos que seguramente ocorreram em seu crebro. luz dessa sugesto, extremamente interessante descobrir que, quando um fisiologista, diferentemente de um filsofo, acha difcil entender como a conscincia poderia ser um processo cerebral, o que o preocupa no uma suposta autocontradio qualquer envolvida em tal suposio, mas a aparente impossibilidade de explicar os relatos fornecidos pelo sujeito acerca de seus processos conscientes em termos das propriedades conhecidas do sistema nervoso central. Sir Charles Sherrington colocou o problema da seguinte maneira:

A seqncia de eventos que vai desde a radiao solar entrando no olho at a contrao dos msculos da pupila, por um lado, e at as perturbaes eltricas no crtex cerebral, por outro, so, todos eles, passos simples em uma seqncia de causao fsica, que so inteligveis graas cincia. Mas na segunda seqncia serial, que se segue ao estgio da reao cortical, acontece um evento ou um conjunto de eventos praticamente inexplicveis para ns, em que a cincia, nem no que diz respeito natureza deles, nem no que diz respeito ligao causal entre eles e o que os precede, no nos auxilia; um conjunto de eventos aparentemente incomensurveis com quaisquer outros eventos que poderiam ger-los. O eu v o sol; ele sente um disco bidimensional de claridade, localizado no cu, sendo esse ltimo um campo de menor claridade, cuja forma superior parece uma abbada achatada, encobrindo o eu e uma centena de outras coisas visuais. No h qualquer pista de que isso esteja dentro da cabea. A viso apresenta essa estranha propriedade chamada de projeo, a inferncia de que aquilo que se v est a uma distncia do eu que v. J foi dito o suficiente para enfatizar que, na seqncia de eventos, h um passo em que uma situao fsica no crebro leva a uma situao psquica, que no contm qualquer vestgio do crebro ou de qualquer outra parte do corpo ... . preciso supor, ao que parece, duas sries contnuas de eventos, uma fsico-qumica e a outra psquica, havendo s vezes uma interao entre elas (Sherrington, 1947, pp. xx-xxi).

Assim como o fisiologista provavelmente no vai se impressionar com a ressalva do filsofo de que h uma autocontradio envolvida na suposio de que a conscincia um processo cerebral, o filsofo tambm no ficar impressionado com as consideraes que levaram Sherrington a concluir que existem dois conjuntos de eventos, sendo um fsico-qumico e o outro psquico. O argumento de Sherrington para todo esse apelo emocional depende de um erro lgico bsico, que infelizmente cometido muito freqentemente por psiclogos e fisiologistas, do qual os prprios filsofos tambm foram vtimas algumas vezes no passado. Esse erro lgico, que eu chamarei aqui de falcia fenomenolgica, o erro de supor que quando o sujeito descreve sua experincia, quando ele descreve como v, ouve, cheira, toca e sente as coisas, ele est descrevendo as propriedades literais de objetos e eventos em um tipo peculiar de tela interna de cinema ou televiso, normalmente referida na moderna literatura psicolgica como o campo fenomenal. Se ns presumirmos, por exemplo, que quando um sujeito relata uma ps-imagem verde ele est afirmando a ocorrncia dentro dele de um objeto que literalmente verde, claro que ns temos em nossas mos uma entidade para a qual no h lugar no mundo da fsica. No caso da ps-imagem verde, no h qualquer objeto verde no ambiente do sujeito que corresponda descrio que ele fornece. Tambm no h qualquer coisa verde em seu crebro. Certamente no h nada que pudesse ter emergido quando ele relatou a aparncia da ps-imagem verde. Os processos cerebrais no so o tipo de coisa qual os conceitos de cor possam ser adequadamente aplicados.

A falcia fenomenolgica, sobre a qual este argumento se baseia, depende da suposio equivocada de que, uma vez que a nossa capacidade de descrever coisas em nosso ambiente depende da nossa conscincia deles, nossas descries das coisas so, em primeiro lugar, descries de nossas experincias conscientes e, apenas em segundo lugar, descries indiretas e inferenciais dos objetos e eventos em nossos ambientes. Presume-se que, devido ao fato de ns reconhecermos coisas em nosso ambiente pela sua aparncia, pelo seu som, cheiro e gosto, ns comeamos descrevendo suas propriedades fenomenais as propriedades das aparncias, dos sons, dos cheiros e dos gostos e inferimos suas propriedades reais a partir dessas propriedades fenomenais. Na verdade, o que acontece exatamente o contrrio. Ns comeamos aprendendo a reconhecer as propriedades reais das coisas em nosso ambiente. Ns aprendemos a reconhec-los, claro, pela sua aparncia, pelo seu som, pelo seu cheiro e pelo seu gosto, mas isso no significa que ns temos que aprender a descrever a aparncia, o som, o cheiro e o gosto das coisas antes de podermos descrever as prprias coisas. De fato, somente aps termos aprendido a descrever as coisas em nosso ambiente que ns aprendemos a descrever nossa conscincia delas. Ns descrevemos nossa experincia consciente no em termos das mitolgicas propriedades fenomenais, que supostamente so inerentes aos objetos mitolgicos no mitolgico campo fenomenal, mas sim em referncia s propriedades fsicas reais dos objetos, eventos e processos fsicos concretos, que normalmente, mas no no presente momento, geram o tipo de experincia consciente que ns estamos tentando descrever. Em outras palavras, quando ns descrevemos a ps-imagem como verde, ns no estamos dizendo que h algo, a ps-imagem, que verde; ns estamos dizendo que estamos tendo o tipo de experincia que ns normalmente temos, e que ns aprendemos a descrever assim, quando olhamos para um ponto verde luz.

Assim que nos livramos da falcia fenomenolgica, ns compreendemos que o problema de explicar as observaes introspectivas em termos de processos cerebrais est longe de ser insupervel. Ns compreendemos que no h nada que o sujeito que realiza a introspeco diga a respeito de sua prpria conscincia, que seja incompatvel com aquilo que o fisiologista possa querer dizer sobre os processos cerebrais que causam sua descrio do ambiente e sua conscincia desse ambientem da maneira que ele faz. Quando o sujeito descreve sua experincia dizendo que uma luz, que de fato est parada, parece mover-se, tudo o que o fisiologista ou o psiclogo fisiolgico tem a fazer para explicar as observaes introspectivas do sujeito mostrar que os processos cerebrais responsveis pela descrio de sua prpria experincia so o tipo de processo que normalmente ocorre quando ele est observando um objeto real em movimento e que, portanto, normalmente o leva a relatar o movimento de um objeto em seu ambiente. Uma vez que seja descoberto o mecanismo pelo qual o indivduo descreve o que est acontecendo em seu ambiente, tudo o que necessrio para explicar a capacidade que um indivduo tem de fazer observaes introspectivas , em primeiro lugar, uma explicao de sua capacidade de discriminar entre aqueles casos em que seus hbitos usuais de descrio verbal so apropriados situao do estmulo e aqueles casos em que eles no so; em segundo lugar, uma explicao de como e por que ele aprende, naqueles casos em que a adequao de seus hbitos descritivos normais est em dvida, a emitir seus protocolos descritivos habituais precedidos por uma expresso qualificativa como parece que, soa como, etc.

Eu devo muito aos meus alunos que participaram de uma srie de discusses informais sobre este tpico, realizadas no Departamento de Filosofia da Universidade de Adelaide, em especial ao Sr. C. B. Martin por suas crticas persistentes das minhas primeiras tentativas de defender a tese de que a conscincia um processo cerebral, ao Professor D. A. T. Gasking, da Universidade de Melbourne, por tornar claro muitas das questes lgicas envolvidas, e ao Professor J. J. C. Smart pelo apoio moral e pelo encorajamento em relao quilo que parecia uma causa perdida.

REFERNCIAS

PLACE, U.T. (1954). The concept of heed. Brit. J. Psychol., 45: 243-55

RYLE, G. (1949). The concept of mind. London: Hutchinson

SHERRINGTON, SIR CHARLES (1947). Foreword to the 1947 edition of The Integrative Action of the Nervous System. Cambridge University Press

TOLMAN, E. C. (1932). Purposive behaviour in animals and men. Berkeley and Los Angeles: University of California Press

WITTGENSTEIN, L. (1953). Philosophical investigations. Oxford: Blackwell

* Ttulo do original ingls: Is Consciousness a Brain Process?. British Journal of Psychology, XLVII: 44-50, 1956. Traduzido por Saulo de Freitas Araujo.

NT: o termo ps-imagem designa a experincia visual que se tem quando o estmulo original no est mais presente. Por exemplo, quando olhamos para o sol e, logo em seguida, fechamos os olhos, temos certas sensaes visuais.