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201 Subcapítulo 2.3 Valores Diversos como Justificações de Diferentes Ordens Sociais 2.3.1. O Político e o social como esferas autónomas Com as transformações sociais, económicas e religiosas iniciadas no século XVI, e sobretudo desde a revolução liderada por Cromwell em 1640, os fundamentos da ordem social e política vigentes havia séculos foram fortemente abalados, o que deu origem a uma série de obras em que se discutiam esses fundamentos e procurava alternativas e que constituem a moderna filosofia política. Desde a revolução em Inglaterra que a nova ordem social e política, vinha sendo teorizada por autores como, Hobbes (1642, 1651), Locke (1690), Vico em Principi di una scienza nuova (1721), Mandeville em A Fábula das Abelhas (1723), Pascal e outros jansenistas, como Nicole (1733), Hume no Tratado da Natureza Humana (1739) e “Acerca do Comércio” (publicado em Discursos Políticos), Hutcheson, no Inquiry Concerning Virtue, Montesquieu em Esprit des lois (1748), Quesnay, o Abade Gabriel Bonnot de Mably, Steuart em Inquiry into the Principles of Political Oeconomnie (1767), Adam Smith no Tratado dos Sentimentos Morais (1759), Pudendorf em Direito da Natureza e das Gentes (1771). Mas foi noutra obra de A. Smith, Inquérito sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações (publicada pela primeira vez em 1776), que foram tratadas de forma mais sistemática as questões relativas ao que ficou conhecido como economia política, pelas relações estreitas que a teorização da actividade económica tinha com a filosofia política e a ética 1 . A economia política, tal como estes filósofos a teorizaram, desenvolveu-se a partir do quadro da filosofia política. A lógica do mercado e da acumulação da riqueza como base para o ordenamento da sociedade no seu conjunto só pode ser compreendida a partir da problemática da refundamentação da ordem social, com base na autonomização da lógica política em relação à religião e à ética.. Hobbes ou Rousseau? No estudo que Dumont fez sobre o individualismo, e que aqui se vinha analisando até se recorrer a Weber para estudar os desenvolvimentos puritanos da doutrina calvinista e a sua relação com as transformações que durante os séculos XVI a XVIII ocorreram na actividade económica, na legitimidade política e no lugar do trabalho na ordem social, é dado particular destaque às filosofias políticas de Hobbes e de Rousseau, sobretudo pelo seu contributo para a constituição do político como esfera que emergiu na sociedade com relativa autonomia; mostrando ao mesmo tempo como a teorização dos processos sociais, embora despontasse, sobretudo na filosofia de Rousseau, permanecia subjacente e subordinada à lógica do domínio político – a uma lógica do ordenamento social, da soberania, fundada na vontade autónoma de indivíduos. No Subcapítulo 2.1, já foi feita referência a uma mudança radical no modo de conceber a fundamentação da lei e da ordem social, quando Guilherme de Occam pôs em causa a concepção de uma ordem social (resultante da acção dos homens comuns) em conformidade com a ordem que Deus teria imprimido na natureza (tal com a interpretavam os teólogos). Viu-se então como, ainda para Tomás de Aquino, o homem 1 No seu conjunto, a obra de Smith (e de Hume) pretende fazer a legitimação a nível filosófico/ético de uma realidade económica emergente, mostrando como a paz social resulta da riqueza geral, mas pondo o assento na mediação de uma relação mercantil e nas instituições.

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Subcapítulo 2.3 Valores Diversos como Justificações de Diferentes Ordens Sociais

2.3.1. O Político e o social como esferas autónomas Com as transformações sociais, económicas e religiosas iniciadas no século XVI, e sobretudo desde a revolução liderada por Cromwell em 1640, os fundamentos da ordem social e política vigentes havia séculos foram fortemente abalados, o que deu origem a uma série de obras em que se discutiam esses fundamentos e procurava alternativas e que constituem a moderna filosofia política. Desde a revolução em Inglaterra que a nova ordem social e política, vinha sendo teorizada por autores como, Hobbes (1642, 1651), Locke (1690), Vico em Principi di una scienza nuova (1721), Mandeville em A Fábula das Abelhas (1723), Pascal e outros jansenistas, como Nicole (1733), Hume no Tratado da Natureza Humana (1739) e “Acerca do Comércio” (publicado em Discursos Políticos), Hutcheson, no Inquiry Concerning Virtue, Montesquieu em Esprit des lois (1748), Quesnay, o Abade Gabriel Bonnot de Mably, Steuart em Inquiry into the Principles of Political Oeconomnie (1767), Adam Smith no Tratado dos Sentimentos Morais (1759), Pudendorf em Direito da Natureza e das Gentes (1771). Mas foi noutra obra de A. Smith, Inquérito sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações (publicada pela primeira vez em 1776), que foram tratadas de forma mais sistemática as questões relativas ao que ficou conhecido como economia política, pelas relações estreitas que a teorização da actividade económica tinha com a filosofia política e a ética 1. A economia política, tal como estes filósofos a teorizaram, desenvolveu-se a partir do quadro da filosofia política. A lógica do mercado e da acumulação da riqueza como base para o ordenamento da sociedade no seu conjunto só pode ser compreendida a partir da problemática da refundamentação da ordem social, com base na autonomização da lógica política em relação à religião e à ética.. Hobbes ou Rousseau? No estudo que Dumont fez sobre o individualismo, e que aqui se vinha analisando até se recorrer a Weber para estudar os desenvolvimentos puritanos da doutrina calvinista e a sua relação com as transformações que durante os séculos XVI a XVIII ocorreram na actividade económica, na legitimidade política e no lugar do trabalho na ordem social, é dado particular destaque às filosofias políticas de Hobbes e de Rousseau, sobretudo pelo seu contributo para a constituição do político como esfera que emergiu na sociedade com relativa autonomia; mostrando ao mesmo tempo como a teorização dos processos sociais, embora despontasse, sobretudo na filosofia de Rousseau, permanecia subjacente e subordinada à lógica do domínio político – a uma lógica do ordenamento social, da soberania, fundada na vontade autónoma de indivíduos.

No Subcapítulo 2.1, já foi feita referência a uma mudança radical no modo de conceber a fundamentação da lei e da ordem social, quando Guilherme de Occam pôs em causa a concepção de uma ordem social (resultante da acção dos homens comuns) em conformidade com a ordem que Deus teria imprimido na natureza (tal com a interpretavam os teólogos). Viu-se então como, ainda para Tomás de Aquino, o homem 1 No seu conjunto, a obra de Smith (e de Hume) pretende fazer a legitimação a nível filosófico/ético de uma realidade económica emergente, mostrando como a paz social resulta da riqueza geral, mas pondo o assento na mediação de uma relação mercantil e nas instituições.

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é um ser social e seria possível à razão humana conceber uma ordem ideal a partir da observação e interpretação da natureza 2. Segundo a análise de Villey sintetizada por DUMONT (1992, p. 72), para Tomás de Aquino, o mundo comportaria ele próprio “uma ordem, classes onde se dispõe cada um dos seres singulares [3]” em resultado de “um sistema completo de relações entre indivíduos, acima dos indivíduos” com uma existência objectiva, independente do intelecto que as descobre nas coisas; “os «universais», como género ou espécie, as categorias ou classes de seres eram considerados como existindo realmente em si próprios, sendo por isso denominados «substâncias segundas»” (DUMONT, 1992, p. 72, citando Villey) . Este teólogo reconhecia o homem como “indivíduo privado em relação directa com o criador e modelo” (DUMONT, p. 71), mas, ao mesmo tempo, reconhecia, ao nível das instituições terrenas, cada homem como membro da comunidade, parte do corpo social 4. Contrariamente à patrística que, como já aqui se pôde ver (a propósito da Lei Natural), só admitia as instituições criadas pelos homens como “um remédio tornado necessário pelo pecado original” (idem) e a consequente «queda»5, Tomás de Aquino, tal como os gregos, reconhecia à comunidade um valor enquanto instituição racional” (idem).

Occam atacou esta maneira de ver, afirmando que devia ser estabelecida uma distinção nítida entre as coisas (res) por um lado, e por outro, os signos, as palavras, os universais: «As coisas não podem por definição deixar de ser ‘simples’, ‘isoladas’, ‘separadas’; ser é ser único e distinto... na pessoa de Pedro não há mais nada a não ser Pedro, e mais coisa nenhuma que dele se distinga ‘realmente’ ou ‘formalmente’. O animal ou o homem – como a animalidade ou a humanidade –, não são coisas, não são seres» (Villey, op. cit., p. 206, cit. in DUMONT, p. 80). Não há «substâncias segundas» como para Tomás de Aquino. Pode considerar-se esta posição como um antecedente da crítica à reificação das ideias e conceitos, mas é também uma negação da realidade das relações entre as coisas.

No que se refere ao Direito, resulta daqui a consequência que as leis feitas pelos homens não podem reivindicar uma fundamentação numa lei divina que os homens conceberiam a partir da interpretação da natureza. A lei feita pelo homem devia ser entendida como “a expressão do «poder» ou da «vontade» do legislador” (DUMONT, p. 73) – o que é a concepção fundamental da «teoria subjectiva» do direito – e o direito, que era concebido como o que devia ser uma relação justa entre seres sociais, passa a ser “o reconhecimento social do poder (potestas) do indivíduo” (idem), que está na base do Direito Natural moderno. Para os modernos, o que se designa por Direito Natural (por oposição ao direito positivo), “não trata de seres sociais mas de indivíduos, ou seja de homens, cada um dos quais se basta a si próprio enquanto feito à imagem de Deus e enquanto depositário da razão” (idem, p. 81) (E esta é a raiz do radicalismo liberalista).

A partir desta nova concepção do Direito Natural, os princípios fundamentais da vida social e política vão ser deduzidos das propriedades e qualidades inerentes a um arquétipo de homem hipotizado como um ser autónomo, sem qualquer laço social ou político, que teria vivido no estado de natureza antes da fundação do Estado ou mesmo

2 Tenha-se presente que para a grande maioria dos filósofos gregos, a natureza tem uma ordem intrínseca acessível à razão humana. 3 Que seriam, no dizer de Villey, “seres singulares como Pedro e Paulo, [...] entidades auto-suficientes da primeira espécie, «substâncias primeiras». 4 Na noção de corpo social como um todo de que os homens vivos são apenas parte, pode reconhecer-se a noção de todo social que vimos em Durkheim e Mauss. 5 Já se registou, no capítulo 4, que Dumont se baseia para esta análise nas obras de Enst Cassirier, The Myth of the State, de 1946, e de Michel Villey, La formation de la pensée jurídique moderne: Le franciscanisme et le Droit, de 1963.

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de qualquer sociedade. A mitologia judaico-cristã levou a que se fizesse coincidir esse estado natural hipotizado com o estado do homem antes da «queda» (Cf. Dumont, 1992, p. 44). É esta teoria moderna do Direito Natural que está na base das declarações dos direitos do homem aprovadas nas assembleias constituintes americanas e francesa. Sendo porque Deus fez os homens livres e iguais que a ordem social deve ser baseada na liberdade e igualdade.

DUMONT (idem ) considera que foi confundida a prioridade lógica do “homem considerado como ser autónomo, independentemente de qualquer laço social ou político”, com a anterioridade histórica, e que isso tornou a tarefa “paradoxal e ingrata”. Mostra-o na análise que faz da doutrina calvinista, mas também nas tentativas de Hobbes, de Locke e de Rousseau (e Hegel? V. DUMONT, p. 106) para superar ou evitar o paradoxo 6. E seria esse paradoxo que ressurgiria nas discussões em torno da Declaração dos Direitos do Homem7 e na sua aplicação e com a evolução da questão social ao longo do século XIX , tal como a descreve Robert Castel 8.

No presente capítulo 9, mostra-se, a propósito das obras de BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) e de DUBET (2001 e 2005) 10, como esta fundamentação dos direitos humanos numa igualdade de homens ideais se confronta hoje com as suas contradições: nomeadamente como a educação e a assistência se confrontam com a injunção da “obrigação de ser livre” e de ser igual, e com as noções de “desigualdades justas” e de “igualdades injustas”. Estas problemáticas estão para além da questão da

6 Cf . DUMONT pp. 87, 89, e 99-103 sobre os levellers (Referidos em 1690, no Segundo Tratado do Governo escrito por Locke, (cf. DUMONT, p. 89)] e sobre Babeuf . Segundo Dumont, o questionamento começa na igreja, com Lutero, para quem todos os crentes têm igual autoridade em matéria espiritual (os sacerdotes são ‘ministros escolhidos entre nós, que fazem tudo o que fazem em nosso nome’” (DUMONT, 1992, p. 86,) citando Lutero), e a reivindicação igualitária foi alargada/estende-se depois da religião para a política no decorrer da revolução inglesa, muito particularmente com os levellers (Mas muitos outros puritanos já o tinham feito, como mostra Weber – ver tb. DUMONT, p. 88, sobre Thomas Müntzer e as análises históricas de Cristopher Hill e de Lakoff) que extraíram todas consequências políticas da ideia de igualdade dos cristãos. Foram rapidamente derrotados, mas o movimento ressurgiu durante a revolução francesa com Babeuf e o Manifesto dos Iguais . Mais uma vez derrotados, foram no entanto movimentos operários de inspiração babeufiana que solicitam a Marx a escrita do Manifesto dos comunistas. Nas considerações que Raul Iturra (2007) faz em torno do Manifeste des égaux e de como Babeuf está na origem do comunismo é igualmente visível o carácter paradoxal daquela operação. Conforme Dumont faz notar, não se passa da concepção liberal do direito à igualdade e à liberdade, à concepção «socialista» que põe o enfoque na igualdade de facto, por uma simples “intensificação da revindicação” (DUMONT, p. 85), havendo uma profunda mudança de orientação. Dumont põe em evidência que, ao eliminar a propriedade privada para garantir a igualdade, se restringe o campo da liberdade (“e atribuem-se ao todo social novas[?] funções correspondentes”), e “no conjunto dos movimento e doutrinas socialistas e comunistas a igualdade [acaba por ter] um lugar secundário – já não é um atributo do indivíduo mas da justiiça social” (p. 85) – Está obviamente a pensar no igualitarismo individualista. Mas mesmo em relação ao indivíduo a posição de alguns comunistas, como por exemplo Marx, é mais complexa, como o próprio Dumont admite). Mas não considera as contradições entre as implicações do princípio de igualdade, de justiça e de liberdade que são inerentes à formulação liberal da “igualdade dos direitos e das oportunidades” (que seria “compatível com um máximo de liberdade de cada um”) e que a história tem posto em evidência. Neste capítulo serão analisadas algumas dessas contradições a partir da obras de Rawls, Boltanski e outros autores contemporâneos que procuram superar essas contradições no quadro de um pensamento liberal, embora não radicalizado. No Subcapítulo 2.5, ver-se-á que também algumas formulações de Durkheim resultam dos mesmos problemas. 7 É esta teoria moderna do Direito Natural que está na base das declarações dos direitos do homem aprovadas nas assembleias constituintes americanas e francesa. Sendo porque Deus fez os homens livres e iguais que a ordem social deve ser baseada na liberdade e igualdade. 8 Ver CASTEL, 1995 pp. 205 e 274-324 9 E no Subcapítulo 3.8. 10 Que em parte retoma Rawls; ver tb. BOUDON, 1981, p. 149, 164 e 170).

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dimensão social da igualdade na democracia 11 (ou são-lhe logicamente prévias), sem contudo a eliminarem.

O instrumento principal para estabelecer a sociedade ou o Estado ideal a partir da moderna teoria do Direito Natural foi a ideia de contrato. Segundo DUMONT (1992, p. 83), no século XVII, concebia-se a necessidade de pelo menos dois contratos sucessivos: “o primeiro, ou contrato «social» [semelhante ao contrato pelo qual se constituem as associações voluntárias], introduzia a relação caracterizada pela igualdade ou condição mútua de companheiros (Genossenschaft). O segundo, ou contrato político, introduzia a sujeição a um governante ou governo (Herrschaft)”. Como este autor faz notar (p. 85), citando Gierke, diferentemente do que acontece na “organização de companheiros” (Genossenschaft), na “unidade representativa” o representante é “necessariamente superior aos membros do grupo que representa”. Analisando estas concepções à luz do seu modelo de todo social hierarquizado por englobamentos sucessivos, considera que a dissociação dos dois momentos, um de associação igualitária e outro de subordinação, se deve à “incapacidade do espírito moderno para conceber sinteticamente um modelo hierárquico do grupo” (idem, p. 85), porque “a partir do momento em que se concebe não já o grupo mas o indivíduo como o ser real [o único ser/sujeito político real], a hierarquia desaparece, e com ela a atribuição imediata de autoridade a um agente do governo”. E porque o governante não dispõe de uma autoridade inerente ao todo englobante, a construção de um poder acima dos indivíduos só pode ser justificada pelo consentimento comum dos membros da associação.

A crise de poder e de legitimidade nos Estados europeus, sobretudo após os acontecimentos de 1640 em Inglaterra, com a incapacidade dos revolucionários em encontrarem uma alternativa à soberania monárquica, levou vários filósofos a procurar modelos de constituição do Estado em que os governos tivessem maior legitimidade. Hobbes suprimiu o contrato de associação e fez do contrato de submissão o ponto de partida da própria vida social (“levando ao seu ponto de ruptura a visão individualista e mecanicista” (DUMONT, p. 86) 12. Locke substituiu o segundo contrato pelo «trust» em que a propriedade é concedida (justificada) para dela ser feito um uso em benefício comum, e o poder delegado para a realização do interesse geral. E Rousseau suprimiu todo o agente de governo distinto do corpo social, que se reconstituiria, como escreve Dumont, “pela alquimia da «vontade geral»”, fazendo convergir e articulando a racionalidade dos indivíduos com a das instituições e procurando salvaguardar a liberdade 13.

De acordo com Dumont, estes filósofos reconhecem a dificuldade em combinar individualismo e autoridade, e em conciliar a igualdade com “a existência necessária de

11 Ver, por exemplo em DUMONT, pp. 85-88 e 103. CASTEL (1995) mostra como essa questão da dimensão social da igualdade se tornou predominante no século XIX. 12 Embora Dumont considere que Hobbes rompeu totalmente com a religião e a filosofia tradicional, não se pode esquecer as concepções de Séneca (Cf. DUMONT, 1992, pp. 44) sobre a justificação das instituições como resultado da «maldade» dos homens, e que para Ireneu, um Padre da Igreja, após a «Queda», Deus impôs aos homens “o medo de outros homens ... para os impedir de, tal como os peixes, se devorarem uns aos outros” (Ireneu cit. in em DUMONT, 1992, p. 47) – ou que Agostinho (Cf. DUMONT, p. 50) partilhava de convicções semelhantes. Mesmo que seja algo indefinida a localização do «estado de natureza» antes ou depois da Queda, ou que Hobbes tenha simplesmente em mente uma precedência lógica, ou proceda a uma abstracção redutora por subtracção, não se pode deixar de ver nas suas ideias uma influência das concepções estóicas e dos primeiros teólogos do cristianismo sobre a natureza humana.. Enquanto que a rejeição da concepção aristotélica do homem como ser social resultaria do entendimento por Hobbes de que a face animal e a face racional estão de tal forma misturadas que só a construção da civitas, da Commonwelth, permitiria a afirmação da racionalidade pura. 13 Cf. DUMONT, pp. 98 e 99.

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diferenças permanentes de poder, senão de condição, na sociedade e no Estado” (DUMONT, p. 86). E como se verá neste capítulo, é com este problema que filósofos e sociólogos continuam a confrontar-se ainda hoje.

Na análise que faz da teorização feita por Thomas Hobbes em Leviathan (o tratado sobre “a matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil”), Dumont mostra como este filósofo inglês do século XVII leva ao seu “ponto de ruptura” a especulação sobre o «estado de natureza» e a visão do indivíduo como soberano, deduzindo das qualidades do homem naquele estado a necessidade de submissão. Dumont encontra esta ideia também em Gierke, para quem Hobbes, embora “partindo de premissas arbitrárias,” obrigou “com uma lógica implacável” a filosofia individualista do Direito Natural a “atribuir uma personalidade única ao Estado” tornando o indivíduo todo poderoso, “ no fito de o forçar a destruir-se a si próprio no mesmo instante” (Gierke cit. in DUMONT p. 92). Porém, é com base nas análises de Raymond Polin, Politique et philosophie chez Thomaz Hobbes (1953), que Dumont vê o contributo de Hobbes para o desenvolvimento da ideologia da modernidade.

O autor dos Ensaios sobre o Individualismo entende que a justificação por Hobbes da submissão na sociedade implica - contrariamente ao que o próprio filósofo defendia - a natureza social do homem e não se restringe a uma esfera da acção humana que seria a política sem qualquer consideração de outros aspectos da vida social 14. Na caracterização do «estado de natureza» que é feita na Primeira Parte de Leviathan, embora a justiça esteja ausente, estão presentes, os costumes, o poder e a linguagem, assi como a razão que nela assenta 15. Para Dumont, trata-se portanto de “um estado social menos alguma coisa”, e é a submissão o que é subtraído do estado de sociedade nessa descrição do homem genérico 16. Com o contrato que introduz a submissão, passar-se-ia ao Estado, que nos termos de Hobbes, tenha-se presente,

... não é senão um homem artificial [...] no qual a soberania é uma alma artificial que dá vida e movimento ao corpo inteiro; [...] a recompensa e o castigo (mediante os quais cada nexo e cada membro vinculado à sede da soberania é induzido a executar o seu dever) são os nervos que fazem o mesmo que no corpo natural [...]; os contratos

14 DUMONT (1992, p. 90), embora discordando dela (sobretudo por considerar a posição de Hobbes como individualismo possessivo), refere também a análise de Macpherson (The Political Theory of Possessive Individualism, Hobbes to Locke, 1962), segundo a qual, Hobbes não partiria de uma cena política (passando pela guerra civil) mas de uma cena económica, caracterizada com base no Capítulo X da primeira parte de Leviathan em que Hobbes se refere ao poder, ao valor/estima/grandeza, à dignidade e à honra, em que o valor é definido como algo de tangível, relativo ao juízo dos outros e dele dependendo: “O valor [value or worth; Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 62] de um homem é como para todas as outras coisas o seu preço; quer dizer, aquilo que se daria pelo uso do seu poder ...”. Dumont discorda desta análise porque a economia não seria aqui senão uma metáfora, considerando que só no Capítulo XXIV, já no contexto da análise do Estado é que Hobbes trata verdadeiramente de questões económicas ao falatr da nutriição e da prociação o Commonwealth . (Ver-se-á na análise da obra de Boltanski e Thévenot sobre a “economia das grandezas” qual é a importância que as observações que Hobbes faz no Cap. X podem ter para a organização social e qual o seu profundo sentido económico, bem como o modo como foram retomadas por Hume e por Smith.) 15 Os homens na sua generalidade, o indivíduo humano na abstracção que Hobbes opera, é descrito numa linguagem mecanicista como um sistema de movimentos, de desejos e de paixões, mas tendo em consideração todas as modificações e complexificações introduzidas pelos costumes, pela linguagem e pelo pensamento. Raymond Polin analisa, em Politique et philosophie chez Thomaz Hobbes (1953), o tratamento que Hobbes faz da ideia de pessoa no Capítulo XVI de Leviathan. 16 “Não este ou aquele homem mas sim a humanidade “, na formulação de HOBBES (1989, p. 48) como Tierno Galvan e Sanches Sarto a traduzem . Cf. mais à frente, nota sobre crítica de Rousseau a Diderot sobre “o género humano”.

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mediante os quais as partes deste corpo se criam, combinam e unem entre si, asselham-se ao fiat, faça-se o homem, pronunciado por Deus na Criação. (HOBBES, 1989, p. 47) 17

Por outro lado, como faz notar Dumont, as relações entre os homens são

concebidas à semelhança da relação entre Estados, “das quais é dito que continuam no estado de natureza [... em que] a guerra dos interesses exclui qualquer transcendência de normas ou de valores. ” (DUMONT, 1992, p. 91) 18

. Ao aceitar a submissão à ordem política, o homem desfaz-se de alguns dos seus poderes em troca de segurança e conforto, porque a auto-suficiência do «estado de natureza» não o satisfaz. O que é valorizado como «vida boa/vita bona» não é a autossuficiência que o homem poderia ter no «estado de natureza» mas sim a do homem dependente do Estado -- tão estreitamente que se identifica com o soberano e com a ideia que este tem de «bem comum» (reencontrando assim a tradição de justificação da autoridade da realeza sacral desde a Índia ao cristianismo medieval). Ao ficar estreitamente dependente do Estado, o indivíduo passa a identificar-se com o soberano, reforçando-se assim a autoridade deste. Já se viu que esta ideia está subjacente a concepções puritanas da especialização, mas essa identificação do indivíduo com o soberano, ou com a comunidade, o todo social), está igualmente no cerne da teoria política de Rousseau 19, e é retomada por um grande número de filósofos e sociólogos desde Hegel a Durkheim 20. É por isso que Gierke, segundo DUMONT (1992, p. 92), “sempre em busca do reconhecimento da unidade moral do corpo social”, considera que Hobbes, embora partindo de premissas arbitrárias, obrigou, com uma lógica implacável, a filosofia individualista do Direito Natural a “atribuir uma personalidade única ao Estado”, tornando o indivíduo todo poderoso, “ no fito de o forçar a destruir-se a si próprio no mesmo instante” (Gierke cit. in DUMONT p. 92). Mas Dumont discorda de que se possa concluir daí que Hobbes seja um “holista”, tanto quanto discorda das leituras que se limitam a considerá-lo como um “individualista”, porque “o Estado não se orienta para um fim que o transcendesse, estando submetido apenas a si próprio”, ou seja, porque, não fazendo referência a um valor para além de si próprio, “o modelo da Herrschaft é esvaziado da virtude hierárquica que lhe é inerente e só é adoptado enquanto dispositivo de poder indispensável “ (DUMONT, 1992, p. 92). Mas também não seria individualista, na medida em que “reconhece que a igualdade não pode reinar como tal e sem obstáculo, e que o homem é um ser social -- e não um indivíduo – no que ao plano político se refere” (idem). Para Hobbes, o homem, não sendo naturalmente um ser social, é um ser político de um modo logicamente necessário. 17 Mais à frente, no capítulo de Leviathan com que inicia a segunda parte, sobre o Estado, Hobbes define-o como a personalidade (ou pessoa) de uma multidão que, na mutualidade dos múltiplos pactos realizados entre os homens, cada um instituiu como o autor de actos que visam utilizar a força e os meios de todos para assegurar a paz e defesa comum, sendo denominado soberano o titular dessa personalidade (ou pessoa. (Cf. HOBBES, 1989, p.146). 18 É visível aí uma influência do modo como Maquiavel concebe a acção política autonomizada da religião e da moral privada, que constitui uma base para o pensamento de Hobbes, contra a concepção por Agostinho de Hipona do povo como agrupamento de seres racionais unidos pelo amor em comum por alguma coisa que hoje se poderiam considerar os valores (Cf. DUMONT, 1992,.p. 49). 19 A principal diferença é que Hobbes parte do princípio de que o interesse geral só pode existir se a soberania é sedeada num indivíduo -- só a interpretação que esse indivíduo faz do bem comum e a identificação de todos os indivíduos com esse soberano permite constituir um interesse comum ( Pode reconhecer-se aqui a linha de pensamento de Maquiavel que recomendava ao príncipe fazer com que todos os cidadãos com ele se identificassem; Cf. HAYEK (1944, pp. 53-62) e a tradição liberal sobre a impossibilidade de os homens constituírem um interesse geral.), enquanto que Rousseau transfere para um colectivo, o povo, a soberania que na tradição política residia num indivíduo soberano. 20 A posição deste autor, depois de referida um pouco mais á frente neste capítulo, será analisada com mais profundidade no Subcapítulo 2.6.

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Este filósofo do pós-revolução inglesa no século XVII poderia, por isso, ser considerado um percursor da sociologia, embora não trate da sociedade enquanto universitas 21. Ver-se-á mais à frente, com base em Boudon (22) e após algumas considerações sobre Rousseau, como a corrente do “individualismo metodológico” analisa muitos fenómenos sociais com base em raciocínios que partem das alternativas disponíveis para homens que, numa situação abstracta semelhante à do «estado de natureza», se propusessem constituir uma sociedade 23. DUMONT (1992, p. 92) reconhece a Hobbes esse lugar na história das ciências sociais, embora assinale que para esse filósofo “o social se restringe ao político”, e encontre em Rousseau (e em Hegel) uma abordagem mais sociológica da natureza social do homem (e nalguns aspectos mesmo uma sensibilidade etnológica às diferenças).

Segundo DUMONT (1992, p. 93), a restrição do social ao político é inevitável para Hobbes porque, “se se partir do indivíduo, a vida social será necessariamente considerada na linguagem da consciência e da força (ou do «poder»)”, e “a acentuação da consciência e do consentimento produz imediatamente a acentuação da força ou do poder”, só se podendo passar do indivíduo ao grupo por meio de um «contrato», ou seja, “uma transacção consciente, um propósito artificial”; e, na ausência de hierarquia inerente à ordem social, só pondo em comum “de maneira mais ou menos inconsciente” as suas “forças e vontades” poderá constituir-se entre os “indivíduos contrastantes” uma autoridade 24. Hobbes separaria no homem, tal como o conhecemos na sociedade, dois níveis diferentes, que hoje se podem designar como pré-político e político, enquanto que Rousseau procuraria apreender mais profundamente a natureza social do homem, especulando sobre o que seria uma existência pré-social, “e por essa razão a descontinuidade entre os dois níveis será nele mais acentuada” (idem, p. 91), e mais radical a operação filosófica de “subtracção” (idem, p. 95). Quer um, quer outro, partem de uma descontinuidade entre o «homem da natureza» e o «homem político», de tal modo que para ambos o contrato social é o momento constitutivo da sociedade.

Mas é de sublinhar, mais do que o faz Dumont, que para Rousseau as qualidades do homem no «estado de natureza» estão mais próximas daquilo que os cristãos considerariam o seu estado antes da «queda», não partilhando tão inquestionavelmente os julgamentos de Séneca e de Ireneu ou de Agostinho, que vêm os homens como intrinsecamente maus, ou condenados a conviverem com base na maldade: No Discours sur l’origine et les fondements de l’inegalité parmi les hommes, estes seriam, segundo a natureza, livres e iguais mas as suas faculdades não estariam ainda desenvolvidas, nem diferenciadas, e portanto não seriam virtuosos nem maus 25. A ideia de que Rousseau

21 Universitas que, como DUMONT (1992, p. 84) sintetiza numa citação de Barker é: “... uma associação para todos os fins [...] que transcende a noção de direito, e cresceu e existe por si própria”. 22 Em Efeitos Perversos, pode ver-se que BOUDON considera vários paradigmas, (1981, p. 179), e como partilha a concepção que Rousseau tem do homem, nem virtuoso nem mau, e sublinhando como procura demonstrar (idem, p. 47) que os males sociais podem não ser causados por ninguém e não beneficiar ninguém, podendo ser prejudiciais para todos. 23 Ver BOUDON (1981, p. 160) sobre Rawls. Pode ver-se a influência do pensamento de Hobbes nalguns desses raciocínios de Raymond Boudon, bem como na caracterização que Friedrich Hayek (1967: “The Legal and Political Philosophy of David Hume” in Studies in Philosophy Politics, and Economics, NY: Simon & Shuster, 1967) faz do pensamento liberal como estando assente na profunda convicção da imperfeição da razão humana (e também na génese da obordagem de Boltanski e Thévenot (1991) à problemática da justiça e das desigualdades,. 24 Cf. HAYEK (1944, pp. 53-62) sobre Hume e Boudon em Efeitos Perversos sobre Rousseau) (Ver-se-á no subcapítulo seguinte, como Hegel concebe a consciência formando-se social e historicamente) 25 Cf. DUMONT, 1992, p. 95 e 98, e BOUDON, 1981, pp. 47, 151 e tv 21. Segundo Dumont, considerando que os “vícios” não seriam tanto próprios do homem quanto do “homem mal governado” (Rousseau, Narciso, cit. in DUMONT, 1992, p. 95); “todo o poder vem de

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teria idealizado um «bom selvagem» é portanto incorrecta e desvia a atenção do essencial dos problemas com que este filósofo se confrontou 26. Se o ”homem selvagem” concebido por Rousseau, isto é, o homem no «estado de natureza» é “bom” é somente na medida em que é desprovido de inveja e de qualquer má vontade para com os outros seres humanos, não porque procure o bem destes – embora como mostra Todorov em La vie commune, Rousseau entenda que o homem pode colocar-se a questão da relação entre o seu bem e o bem dos outros, retirando daí o conceito de “amizade”.

O conhecimento que este “homem selvagem” possui da natureza humana e da sociedade seria rudimentar (27) e, portanto, não teria em relação aos seus semelhantes qualquer má vontade hostilidade ou rivalidade, embora não tivesse em conta o bem estar do outro, tanto quanto teria o seu. Alguns autores falam mesmo em neutralidade indiferente, mas não nos podemos esquecer que Rousseau reconhecia na natureza humana um princípio de piedade resultante da identificação com o outro que Boudon (p. 152) designa por “altruísmo limitado”, sem que se possa falar em generosidade (Cf. ROUSSEAU, 1971, Discours ..., Vol. II, p. 134):

[...] reflectindo sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, acredito poder encontrar aí dois princípios anteriores à razão: um suscita em nós um vivo interesse pelo nosso bem-estar e pela nossa conservação; o outro inspira-nos uma repugnância material ao ver morrer ou sofrer qualquer ser sensível, e principalmente os nossos semelhantes. Parece-me que do concurso e da combinação que o nosso espírito pode fazer destes dois princípios, sem ter de recorrer ao da sociabilidade, resultam todas as normas do direito natural (ROUSSEAU, 1971, Vol. II, p. 210) O “homem selvagem” de Rousseau é sem dúvida «bom» se comparado com o

homem no “estado de natureza» tal como o concebem Hobbes e a tradição da patrística (e talvez já os estóicos). E esta diferença é muito importante para o tipo de raciocínios sobre a justiça, a igualdade e os princípios de organização social que foram deduzidos pela filosofia política a partir do que racionalmente poderia ser aceite como legítimo por homens que contratassem uma ordem social com a qual se comprometiam irreversivelmente 28.

Deus, reconheço-o; mas toda a doença vem dele também” (Rousseau no Contrato social, Capítuo III, citado por DUMONT através de Starobinsky), Rousseau tenta, no Contrato Social, desembaraçar a ordem social das suas taras, concebendo um Estado pequeno em que as interacções decorrem face-a-face Boudon faz notar que Rousseau considera a intensificação da interdependência como a mola principal para o contrato social, mas que se dá conta da impossibilidade de definir uma organização óptima dessa interdependência – mesmo assim procura uma igualdade na condição real dos homens e não uma igualdade formal de direitos. 26 Cf. Waldon de D. H. Thourau, que também ele está longe do bom selvagem; e cf. as críticas de F. Mónica – tb na educação existem problemas aspectos que são obscurecidos por não se ter em conta estes aspectos paradoxais. Mas a fixação em noções enganadoras, simplificando o pensamento de autores, também não ajuda ao seu esclarecimento. 27 Mas (segundo Rousseau) inclui a noção da existência de diferenças nas qualidades naturais dos vários homens. (Cf a questão das diferenças entre os homens que tendem para o “encontro” e que, para além dos custos da organização da interdependência (tv mesmo como um dos custos dela – da vida em sociedade) debvem ser controlados e reduzidos (outra ordem de questões resulta dos efeitos perversos desses dispositivos para reduzir ou eliminar os custos da organização, para que Boudon tb chama a atenção. 28 Cf. RAWLS. Cf. TODOROV, 1995, sobre o reconhecimento de diferenças à partida, que devem ser controladas (como de certo modo fazem Rousseau e Marx (Isto pode ser relacionado com Dumont, 1992, sobre Babeuf e com questão da igualdade no ponto de partida ou no ponto de chegada), ou a afirmação de uma igualdade formal à partida que justifica as desigualdades à chegada. Como diziam Todorov e Barcellona (1992), numa o ponto de partida é o a priori da igualdade (ponto de partida lógico (ético, ou ideológico, o pressuposto ou o ideal) ou ontológico – no pressuposto cristão de todos terem

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Rousseau tinha inteiramente a noção desta diferença e por isso no Discurso (pp. 161-162) dirige a Hobbes a crítica fundamental de que este caracteriza o estado de natureza pela oposição dos interesses individuais. Enquanto o problema de Hobbes era a redução dos custos sociais (o controlo) do conflito e da rivalidade inerente à natureza humana (visão pessimista dos seres humanos que foi desenvolvida pelo calvinismo (e na qual Hobbes assentou a sua concepção do fundamento da ordem social) e que está igualmente na base do pensamento político de David Hume e de todo o liberalismo wig), para Rousseau tratava-se de definir as condições em que os homens poderiam aceitar livremente constrangimentos (resultantes da vida em sociedade), ou regras que reduzem a sua liberdade nos casos em que a cooperação pode falhar mesmo que seja do interesse de todos e cada um cooperar, que todos estejam conscientes da vantagem dessa cooperação e o interesse em procurar essa vantagem não seja prejudicado por quaisquer sentimentos de hostilidade e de rivalidade 29.

Dumont prefere fazer notar que, quer Hobbes, quer Rousseau, “partem de premissas muito «individualistas» na aparência – de acordo com as concepções do meio contemporâneo – chegando através de uma lógica rigorosa a conclusões «anti-individualistas»”, e que ambos se “mostram sumamente preocupados em garantir a transcendência do soberano relativamente aos súbditos” ao mesmo tempo que a identificação destes com o soberano (DUMONT, 1992, p. 94). Ambos se teriam confrontado com um aspecto extremo e paradoxal do individualismo, que estaria relacionado com as consequências revolucionárias do projecto artificialista do individualismo extremo quando levado à prática 30; as quais, segundo Dumont, seriam

sido criados por Deus como irmãos e iguais) e o ponto de chegada a diferença hierárquica, na outra o ponto de partida é a diferença e o ponto de chegada o «encontro». BOUDON (1981)faz notar que Rousseau considera a intensificação da interdependência como a mola principal para o contrato social, mas que se dá conta da impossibilidade de definir uma organização óptima dessa interdependência – mesmo assim procura uma igualdade na condição real dos homens e não uma igualdade formal de direitos. 29 O interesse teórico da definição do homem selvagem feita por Rousseau é este. E nesse aspecto ele é superior ao da concepção do estado de natureza por Hobbes, complicada pelos preconceitos sobre a natureza maligna dos homens ; visão pessimista dos seres humanos que foi desenvolvida pelo calvinismo (e na qual Hobbes assentou a sua concepção do fundamento da ordem social) e que está igualmente na base do pensamento político de David Hume e de todo o liberalismo wig. Como Rousseau compreendeu e Boudon põe em evidência em diversas passagens de Efeitos Perversos da Ordem Social, a problemática da constituição de uma ordem social justa e legítima já é suficientemente complicada sem eles. E é a partir das concepções de Rousseau que se pode desenvolver uma ciência política que não esteja submetida a pressupostos tão particulares. 30 Na expressão de DUMONT (1992, p. 63), Calvino “encontra-se possuído pela vontade de agir no mundo e afasta por meio de raciocínios coerentes as ideias feitas que disso poderiam impedi-lo”. Dumont entende que para os puritanos, e sobretudo para os calvinistas, Deus é um arquétipo da vontade, “onde podemos ver a afirmação individual do próprio homem como vontade” mesmo opondo-se à razão.” (idem, p. 63). Uma das principais conclusões a que Dumont chega com o seu estudo da evolução do cristianismo tendo em vista identificar os principais passos da constituição da ideologia individualista que caracteriza a modernidade é que pela “aplicação sistemática às coisas deste mundo de um valor extrínseco imposto” e pela “identificação da nossa vontade com a vontade de Deus”, constrói-se “o modelo do artificialismo moderno em geral” em que o homem se concebe como «senhor e dono da natureza» (Cf. DUMONT, 1992, p. 65, citando Descartes). Mais do que a razão, para os modenos, seria a vontade associada a um valor transcendente que organiza o mundo. É por isso que no seu entender: “O artificialismo moderno enquanto fenómeno excepcional na história da humanidade só pode compreender-se como uma consequência histórica longínqua do individualismo-fora-do-mundo dos cristãos. E que aquilo a que chamamos o moderno «indivíduo-no-mundo» tem em si próprio, escondido na sua constituição interna, um elemento não percepcionado mas essencial de extramundaneidade” (idem, p. 65). Cf. GIDDENS (1985, p. 179) [Ver também Giddens em Consequências da Modernidade, sobre o “realismo utópico” e a “modelação contrafactual” que pode assumir uma forma de governo semelhante à

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tão perversas como as do comunitarismo ou as que este autor considera resultantes da conjugação, na teoria marxista, entre individualismo e comunitarismo 31. Citando uma passagem do Capítulo «Do Direito Natural e da Sociedade em Geral [do género humano] 32, na primeira versão do Contrato Social, Dumont mostra como Jean-Jacques Rousseau “estava profundamente consciente da insuficiência do individualismo puro e simples e trabalhava em vista de o salvar transcendendo-o”.

Esta perfeita independência e esta liberdade sem regra, ainda que tivesse continuado em companhia da antiga inocência, teria sido sempre um vício essencial e nocivo para o progresso das nossas mais excelentes qualidades, a saber, a falta dessa ligação das partes que constitui o todo. (Rousseau, cit. in Dumont, 1992, p. 95) 33

É noutra passagem do Contrato Social que Dumont considera ser ainda mais evidente essa dificuldade do pensamento de Rousseau:

Descobrir uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e através da qual, unindo-se a todos, cada um contudo obedeça apenas a si próprio e permaneça tão livre como antes!» É esse o problema fundamental ... (Rousseau, Contrato Social, Capítulo IV, cit. in DUMONT, p. 96)

“condução do carro de Jagrená”, embora Dumont esteja a pensar nos totalitaristas nazi-fascistas e comunistas – também há um “artificialismo” que resulta da radicalização do individualismo.] Segundo Dumont, considerando que os “vícios” não seriam tanto próprios do homem quanto do “homem mal governado” (Rousseau, Narciso, citado em Dumont, 1992, p. 95 – “todo o poder vem de Deus, reconheço-o; mas toda a doença vem dele também” CS cap III, cit por Dumont através de Starobinsky), Rousseau tenta, no Contrato Social, desembaraçar a ordem social das suas taras, concebendo um Estado pequeno em que as interacções decorrem face-a-face (Boudon faz notar que Rousseau considera a intensificação da interdependência como a mola principal para o contrato social, mas que se da conta da impossibilidade de definior uma organização óptima dessa interdependência). DUMONT (1992, p. 94) faz notar que, quer Hobbes, quer Rousseau, “partem de premissas muito «individualistas» na aparência – de acordo com as concepções do meio contemporâneo – e chegam através de uma lógica rigorosa a conclusões «anti-individualistas»” e ambos se “mostram sumamemte preocupados em garantir a transcendência do soberano relativamente aos súbditos, ao mesmo tempo que é sublinhada nos dois casos a identidade do soberano e do súbdito”. Ambos se teriam confrontado com um aspecto extremo e paradoxal do individualismo, que estaria relacionado com as consequências revolucionárias do projecto artificialista do individualismo extremo confrontado com a experiência (que, segundo Dumont, seriam tão perversas como as do comunitarismo ou as que este autor considera resultantes da conjugação na teoria marxista entre individualismo e comunitarismo – ver aqui mais à frente, conclusão de Dumont sobre Rousseau). 31 Pode ver-se no Subcapítulo 2.2, o que Dumont escreveu sobre o projecto artificialista e a superação do valor das relações entre os homens pelo valor da relação dos homens com as coisas. Pode ver-se aqui, um pouco mais à frente, a conclusão de Dumont sobre Rousseau 32 Ver nota de Dumont na p. 95. Segundo Derathé, citado por DUMONT (1992), este capítulo é uma réplica a Diderot: a ideia do género humano como «sociedade geral» é uma abstracção, “é só da ordem social entre nós establecida que extraímos as ideias daquela que imaginamos ..., e só começamos a tornar-nos propriamente homens depois de termos sido cidadãos” (Rousseau, cit. in DUMONT, 1992, p. 95). Mais à frente, quase a concluir a análise que faz da obra de Rousseau, Dumont insiste em mostrar como surge nessa obra uma percepção clara da necessidade de análise sociológica (e até a sensibilidade etnológica às diferenças) e o reconhecimento do homem como ser social [embora de forma idealizada], particularmente notável numa sociedade em que predominavam os pressupostos individualistas. Mas sublinha também que para Rousseau a liberdade era uma preocupação central e ele “reconhecia em si próprio o indivíduo como ideal moral [moralmente autodeterminado] e reivindicação política irreprimível” que estava na base da liberdade. Só que, compreendia as condições existenciais, sociais, de realização dessa liberdade (Cf. SARTRE, 1960a). 33 A ideia de que a melhoria do bem estar colectivo pode implicar a a diminuição da felicidade individual foi retomada por Durkheim em vários pontos da sua obra. Boudon chama a atenção para que “a teoria durkheimiana da anomia pode de facto ser lida como a tomada de consciência das consequências perversas geradas por certas estruturas de competição social”, mesmo que estas contribuam, como defendem os liberais, e Durkheim de certo modo aceita, para o bem comum (BOUDON, 1981, p. 14).

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Não encontrando solução, segundo DUMONT (1992), que não passasse pela “alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade” (idem), este autor vê no modo como Rousseau harmoniza a razão individual com a formação racional da «vontade geral» uma operação que teria o seu quê de alquímico.

O povo é soberano, e depois de reunidos os seus membros passa a reinar uma estranha alquimia. Da vontade individual de todos surge uma vontade geral que é qualquer coisa de qualitativamente diferente da vontade de todos, e que possui propriedades extraordinárias. Sem dúvida, não estamos muito afastados da persona moralis composita [a personalidade jurídica de um colectivo] de Pudendorf, também ela inteiramente diferente das personae moralis simplices que a constituem. Mas por outro lado a vontade geral é o soberano, e como tal transcende a vontade individual dos súbditos de maneira tão necessária como o governante de Hobbes estava colocado acima dos governados. O que começou como societas, ou associação torna-se universitas. (idem)

Mas, tal como Boudon mostra, ao contrário de Hobbes, que só encontra na pura e incondicional submissão a uma autoridade transcendente a possibilidade de reduzir os custos sociais do conflito e da rivalidade inerente à natureza humana, Rousseau procura definir as condições em que os homens aceitariam livremente constrangimentos (resultantes da vida em sociedade), ou regras que reduzem a sua liberdade (mas lhe permitem viver em sociedade) nos casos em que a cooperação pode falhar mesmo que seja do interesse de todos e cada um cooperar, que todos estejam conscientes da vantagem dessa cooperação e o interesse em procurar essa vantagem não seja prejudicado por quaisquer sentimentos de hostilidade e de rivalidade. E tal como também mostra aquele sociólogo, as concepções de Rousseau contribuíram de maneira decisiva para o desenvolvimento de uma ciência política que não esteja submetida a pressupostos éticos particulares 34.

Analisando a articulação entre o Discurso sobre a Origem da Desigualdade e o Contrato Social, BOUDON (1977/1981) põe em destaque que Rousseau, reafirmando a importância da intensificação da interdependência para a consolidação institucional das sociedades, se confronta com a impossibilidade de definir uma organização óptima dessa interdependência. Mas, diferentemente de Dumont não entende que o filósofo se fique pela constatação dos aspectos paradoxais, e considera que o tipo de reflexão sobre esses paradoxos, realizada sobretudo no Discurso Sobre as Causas da Desigualdade, é fundador de uma abordagem sociológica. E critica mesmo os que vêem entre as teses de Rousseau naquelas duas obras uma contradição lógica, considerando que se trata de uma contradição sim mas “no sentido daléctico” (BOUDON, 1981, p. 24).

Por seu lado, estando focado na questão do individualismo versus holismo, Dumont

procura demonstrar, com a seguinte citação do Capítulo I do Livro IV do Contrato Social (CS), como o holismo reemerge no conceito de “vontade geral” e quão longe leva Rousseau o seu propósito de libertar a sua concepção da “vontade geral” das vontades particulares dos indivíduos que, mais do que formá-la, devem interpretá-la.

Quando é proposta uma lei na assembleia do Povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se aprovam a proposta ou a rejeitam, mas se ela se conforma ou não com a vontade geral que é a deles; [...]. Quando assim o entendimento contrário ao meu leva a melhor, isso prova somente que eu me enganara, e que aquilo que pensava ser a vontade geral não o era. Se o meu entender particular tivesse levado a melhor, eu teria feito uma coisa diferente do que queria, e nesse caso é que não teria sido livre. (Rousseau, cit. in DUMONT, p. 96)

34 Cf. BOUDON (1977/81) sobre o Discurso sobre a Origem da Desigualdade ...

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Isto leva ao reconhecimento da necessidade de educação dos cidadãos, de formar os indivíduos para serem cidadãos 35, para sobrepor o interesse colectivo ao interesse particular nas suas decisões que contribuem para formar a vontade geral e na identificação do bem comum 36. Mas se, no exercício dessas decisões como cidadão, o interesse geral e o bem comum são invocados repetidamente em vão, põe-se um problema de responsabilidade do seu contributo para a formação da vontade geral. O exercício dos direitos e deveres de cidadania implica a responsabilidade pelas opções feitas enquanto cidadão. Sem isso, não há nada que se assemelhe a uma “soberania do povo”.

Mais à frente, Dumont volta a citar Rousseau, para mostrar até onde este teria ido no sacrifício do indivíduo:

Aquele que ousa a iniciativa de instituir um povo tem que se sentir em condições de transformar, por assim dizer, a natureza humana: transformar cada indivíduo, que por si próprio é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual esse indivíduo recebe de certo modo a sua vida e o seu ser; alterar a constituição do homem para a reforçar; substituir por uma existência parcial e moral a existência física e independente que todos recebemos da natureza. É necessário, numa palavra, que tire ao homem as suas forças próprias para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais ele não possa fazer uso sem o auxílio de outrem. (Rousseau, CS, Livro II, cap VII, cit. in DUMONT, 1992, p. 98)

É fácil apercebermo-nos, numa leitura de As Formas Elementares da Vida

Religiosa, como a que aqui foi feita no Capítulo 1, até que ponto estas palavras de

35 Isto deve ser tido em conta no Subcapítulo 3.7 em que se analisa os fundamentos da escola pública e as razões do seu “declínio” (DUBET, 2002),ou da ambiguidade da “missão que lhe é atribuída” . Na medida em que esse “declínio” e essa ambiguidade podem ser entendida à luz dos conflitos e “arranjos” crescentes entre o que BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) designam por “princípios da cidade mercantil” e os princípios “cívicos” e “industriais” de atribuição de diferentes “grandezas” aos homens, pode ser importante ver a discussão que estes autores fazem dessa necessidade de formação do cidadão para a viabilidade da ordem cívica tal como a concebe Rousseau. Da “vontade geral” tal como Rousseau a concebe, deduz-se um problema (uma necessidade) de educação para que cada um identifique e raciocine com base na ideia de procura de interesse geral – O próprio Rousseau reconheceu a necessidade dessa educação (Cf BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991). Como se deduz a necessidade de responsabilidade de cada um pelo seu voto ou pela sua acção como representante, que não se pode limitar à concepção da política como mercado (cf. OLSON, pp. 109-110, 117 e 119; e BOUDON, 1981, pp. p. 46 e 49 ) -- que o agora ministro da Solidariedade Social, Vieira da Silva, demonstrou ser a do PS, mesmo da sua “ala esquerda”, logo no primeiro debate na televisão em que participou a seguir à eleições em que este partido obteve maioria absoluta. 36 Marx (ver tb HABERMAS, 1990, sobre a Crítica à Filosofia do Direito, em que Marx começa a analisar a filosofia política de Hegel) desenvolve estes conceitos em dois sentidos diferentes. Por um lado, identifica no povo soberano uma cisão de interesses que põe em causa os fundamentos da sociedade (juntar críticas á noção de interesse comum que faz na Ideologia Alemã), procura a justificação ética e insiste na necessidade histórica para uma parte do povo, que é desprovida dos meios de produção da sua existência enquanto pessoas, denunciar a ruptura dos fundamentos da sociedade, dos quais é vítima. Por outro, identifica os interesses dessa parte, o proletariado como classe revolucionária, com o interesse geral e a dinâmica revolucionária (as instituições criadas pelo proletariado para o exercício do poder) como o processo de formação da vontade geral (Giddens em Consequências da Modernidade só reconhece legitimidade para o reconhecimento daquela identificação numa fase inicial e em função do sofrimento do proletariado; e, ao contrário de João BERNARDO (1991), e, em certa medida, de TOURAINE (1991 e 1997) e de CASTEL (1995), não vê qualquer dinâmica de criação institucional no movimento operário). A história do exercício desse poder por um partido em nome do proletariado e a evolução económica que reduziu quantitativamente o proletariado como classe que pela sua actividade produtiva multiplicava o capital, reduzindo por consequência o seu poder político, inviabilizaram a identificação do interesse do proletariado com o interesse geral, mas não permitem superar a identificação que Marx fez de uma ruptura nos fundamentos da sociedade.

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Rousseau se repercutem na obra de Durkheim. Dumont, mostra com uma citação de uma das primeiras obras deste autor como ele se baseou nas concepções políticas de Rousseau para fazer uma reflexão sobre a ordem social e a justiça, que o levaria, em A Divisão do Trabalho Social, a colocar-se perante a necessidade teórica de uma concepção do desenvolvimento individual no decurso da socialização do indivíduo em que houvesse uma harmonização entre a personalidade, a cultura e a estrutura social (em transformação) 37. Mas, já numa obra de juventude, Durkheim, que se formou academicamente como filósofo, atribui a este conceito um lugar central na sua concepção de uma nova ordem social. Dumont faz referência ao facto de muitos verem uma proximidade entre este conceito de Rousseau e o conceito de ”consciência colectiva” em Durkheim. E por isso faz uma citação dessa obra.

Uma vez que a vontade geral se define principalmente pelo seu objecto, não consiste unicamente nem mesmo essencialmente [...] no próprio acto do querer colectivo [...] O princípio de Rousseau difere portanto daquele através do qual por vezes se quis justificar o despotismo das maiorias. Se a comunidade quer ser obedecida [Cf. DTS p. 89], não é porque manda, mas porque comanda o bem comum [...] Noutros termos, a vontade geral não é constituída pelo estado em que se encontra a consciência colectiva no momento em que se toma a resolução; Essa é apenas a parte mais superficial do fenómeno. Para bem o compreendermos temos que ir mais fundo, até às esferas menos conscientes, e abordar os hábitos, as tendências, os costumes. São os costumes que fazem a ‘verdadeira constituição dos Estados [38]. A vontade geral é pois uma orientação fixa e constante dos espíritos e das actividades num sentido determinado, no sentido do interesse geral. É uma disposição crónica dos sujeitos individuais. [Cf natureza tácita do conhecimento fundamental, segundo Polanyi , e Berger e Luckmann] (Durkheim, em Montesquieu et Rousseau précurseurs de la sociologie, cit. in DUMONT, p. 97) Como já se viu no Subcapítulo 2.2, a liberdade de interpretação que é afirmada

pelo protestantismo pressupõe um quadro de interpretação em que a liberdade só existe na obediência e submissão à divindade, na abdicação de uma vontade própria e não na livre afirmação desta 39, e os indivíduos respondiam por essa interpretação, em última instância perante Deus. A definição de um interesse ou bem comum, tinha portanto como referência um bem comum que é Deus, o Bem em absoluto 40. Embora reaproximando a ideia de deus da ideia de sociedade, e sedeando esse bem comum no

37 O que o colocou perante a necessidade teórica de uma concepção do desenvolvimento individual no decurso da socialização do indivíduo em que houvesse uma harmonização entre a personalidade, a cultura e a estrutura social (em transformação). Necessidade teórica e carácter problemático da harmonização entre personalidade, cultura e estrutura social, com que os sociólogos se confrontam ainda hoje, tal como se verá nos subcapítulos 2.6 e 3.7 desta tese. 38 Dumont acrescenta em nota após esta citação de Durkheim (CS, Livro II, Capítulo XII), que a análise que este fez do Contrato Social só usou a segunda versão e tende a exagerar “o individualismo da obra”. Dumont acrescenta por isso uma passagem do referido Capítulo XII do Contrato Social, onde Rousseau é mais claro: “Falo dos costumes, dos hábitos, e sobretudo da opinião; parte desconhecida pelos nossos políticos, mas do qual depende o sucesso de todas as outras (...)”], o que o leva a dar atenção à religião e ao patriotismo nos seus trabalhos sobre a Córsega e a Polónia, e a falar da necessidade de uma “religião civil”]. Para Rousseau a unidade de uma sociedade preexiste aos seus membros e está presente no pensamento destes. Mas segundo DUMONT (p. 98), Rousseau apresenta esta univesitas que estaria subjacente à societas, como tendo sido criada por esta ex nihilo. 39 A propósito da liberdade de consciência, DUMONT (1992) escreve algo de semelhante a uma das ideias em que, como se verá, DUBET (2002) assenta a sua crítica ao programa institucional e a explicação do declínio deste em resultado das contradições da modernidade: “o indivíduo como valor (social) exige que a sociedade delegue nele uma parte da sua capacidade de fixar os valores. [... Mas] a ausência de prescrição que torna a escolha possível é [...portanto] de facto governada por uma prescrição mais alta” (DUMONT, 1992, p. 259). 40 Cf. WEBER, 1983, pp. 177-178, notas 203 e 209, p. 181, nota 227.

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mundo social e não num mundo transcendental, os iluministas e depois os republicanos não conseguiram prescindir totalmente da ideia de transcendência desse bem comum, dessa vontade geral da sociedade; daí a ideia de religião civil ou racional. Assim, para Saint-Simon “a ideia de Deus não é mais do que a ideia de inteligência humana generalizada” (Saint-Simon, citado em DUMONT, 1992, p. 105) 41. E assim se pode começar a compreender o contexto ideológico em que Durkheim escreve As Formas Elementares da Vida Religiosa.

Pode assim falar-se em liberdade com base na obediência e em obrigação de ser livre, e (como faz DUBET, 2001) deduzir, do carácter paradoxal destas formulações, a necessidade de programas institucionais para a formação da personalidade segundo princípios abstractos, de modo a assegurar a harmonia entre personalidade, cultura e estrutura social teorizada pela sociologia desde Durkheim a Parsons.

Concordando com Ernest Baker, Dumont vê Rousseau como um Janus virado simultaneamente para a escola histórica alemã e a sua idealização romântica do Estado nacional e para o Direito Natural moderno, esforçando-se por conciliar este com o Direito Natural antigo e por “reintegrar o indivíduo dos filósofos numa sociedade real” (DUMONT, 1992, p. 99). Baker considera que a confusão de Rousseau seria o resultado de não ter distinguido a sociedade do Estado: “a sociedade que é a nação é um dado da evolução histórica, que não foi criado por qualquer contrato de sociedade [...]. O Estado assente nesta sociedade pode ser, ou pode tornar-se num momento dado (como o tentou a França em 1789) o resultado de um acto criador dos membros da sociedade “ (Baker, cit. in DUMONT, 1992, p. 99) .

O povo em que Rousseau assenta a soberania é a sociedade, no sentido de universitas, politicamente organizado (em Estado) segundo princípios abstractos e conscientemente reflectidos. Mas a sociedade politicamente organizada em Estado não resulta de um acto instantâneo da vontade dos indivíduos que identificam um interesse geral. Como Durkheim viria a mostrar em Formas Elementares da Vida Religiosa, este interesse geral ou o bem comum tinham tomado havia muito a forma de divindade. Mas isso não significa que no contexto histórico da crise de legitimidade da modernidade não fosse necessário repensar o fundamento da ordem social e não fosse útil fazê-lo, nomeadamente imaginando uma situação em que os homens não tivessem vínculos, para compreender o que se poderia conceber como podendo ser livremente aceite e, por essa via racional, legitimável.

Considerando que, se se partir do indivíduo, a vida social será necessariamente considerada na linguagem da consciência, Dumont conclui que Rousseau “enfrentou a tarefa grandiosa e impossível de tratar na linguagem da consciência e da liberdade não apenas a política, mas a sociedade inteira” (p. 99). Mas, a rematar o ensaio, faz também

41 Cf. DUMONT, 1992, p. 87 sobre a vontade sobrenatural que se expressa através dos desejos mais íntimos dos homens e sobre a revolução como aplicação da verdade sobrenatural às coisas terrenas; o que pressupõe a crença em que “melhorar a vida do homem na terra faz parte das intenções de Deus e de que os homens [pelo menos os que obedecem a Deus] podem entender os fins de Deus e cooperar com ele na sua realização” – é esta lógica que leva no sec. XVI o movimento de camponeses liderado por Muntzer a exigir a condição de santos aos revolucionários; ideia que, despojada da problemática da salvação na vida eterna, subjaz ainda à concepção da acção revolucionária por Bakunin . A concepção desenvolvida por Rousseau da vontade geral, do interesse comum da sociedade e do bem comum da humanidade é uma das referências do comunismo, quer babeufiano, quer marxista, e pode ser relacionada com o modo como Marx parte/utiliza do conceito feuerbachiano de “ente-espécie” para definir a alienação nos Manuscritos de 1844 (cf. DURKHEIM, FEVR, 1985, p. 629). (Ver apontamento sobre Marx e o interesse comum em Subcapítulo 2.5 (juntar críticas á noção de interesse comum que faz na Ideologia Alemã)

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notar que a relação que aquele filósofo estabeleceu entre holismo e individualismo é perigosa se considerada como receita política, como acontece “sempre que a sociedade como um todo é ignorada e submetida a uma política artificialista”. O “holista” Dumont converge aqui com o “individualista” Hayek, tal como este “liberal” converge com o “socialista” Durkheim .

O liberalismo contra o keynesianismo e o construcionismo social em geral Inserindo-se na tradição liberal inglesa que faz remontar a David Hume, e em reacção ao neo-positivismo lógico que marcava o contexto da sua formação em Viena, o economista Fredrich Hayek (que se destacou por ter sido desde os anos 30 um dos principais opositores ao que designou por “racionalismo construtivista” keynesiano), desenvolve, em Individualism and Economic Order (1948) e em The Counter-revolution in Science (1952), uma crítica à tradição racionalista que teria origem em Descartes (42) e atingiria o seu auge com o marxismo, mas que passaria tanto por Rousseau quanto por Saint-Simon e Comte (e também por Keynes e Schumpeter 43); um racionalismo que, no dizer de Hayek (1967, Studies in Philosophy, Politics and Economics), pressupõe que temos o poder de modelar as nossas instituições e entende que as instituições sociais que mais beneficiam a humanidade foram e devem ser inventadas tendo em vista determinados efeitos, preferíveis aos que resultariam de processos espontâneos; ou, visando mais directamente as filosofias contratualistas, um racionalismo segundo o qual a sociedade só seria racional (44) na medida em que fosse o

42 Já Hume argumentava contra Descartes que as convenções sociais e as regras morais embora sejam o resultado da acção humana não são o produto de uma racionalidade consciente que as tivesse previamente desenhado). 43 Em The Road to Serfdoom (1944) Hayek explicava assim a inclinação de muitos técnicos para a planificação: “não há muitas dúvidas de que quase qualquer um dos ideais técnicos dos nossos peritos poderiam ser realizados num prazo relativamente curto se se tornasse o único objectivo da humanidade [...] . É a frustração das ambições no seu próprio campo que está na origem da revolta do especialista contra a ordem existente. É difícil suportar ver que permanecem por fazer coisas que todos admitem ser desejáveis e possíveis [...]. [Isso] cria adeptos da planificação que confiam em que seriam capazes de induzir nos directores de uma tal sociedade o sentido do valor que atribuem a esses objectivos particulares.” (1944, p. 53) (Não esquecer a capacidade social que é reconhecida aos gestores (e a diferente capacidade social dos vários grupos sociais) para imporem esse tipo de objectivos a outros, nas organizações e na sociedade em geral.). e acrescenta que o movimento da planificação “reúne quase todos os idealistas de ideias fixas (single-minded), todos os homens e mulheres que dedicam as suas vidas a uma única tarefa [...] o que faz deles os mis ansiosos pela planificação da sociedade e os mais perigosos se lhes fosse possível fazer isso – e os mais intolerantes do planeamento por outros.” (p. 55) No entender de Hayek, o planeamento só seria possível se houvesse um objectivo comum partilhado pela sociedade, mas enquanto os indivíduos valorizarem diferentemente os diferentes objectivos, não haverá consenso para os valorizar todos igualmente. A consequência é que os que conseguem uma “maioria” de apoiantes para os seus objectivos exercerão sempre uma coerção sobre a minoria obrigando-os a trabalhar para que os seus objectivos e interesses particulares sejam os perseguidos por toda a sociedade.” No Subcapítulo 2.2, são feitas referências ao modo como são tratadas por alguns puritanos as noções de common good e do general welfare, as quais são importantes para estas considerações. 44 Um racionalismo que entende “que as instituições que beneficiam a humanidade foram no passado e deverão ser no futuro inventadas tendo em vista os efeitos desejáveis que produzirão; que deveriam ser aprovadas e respeitadas na medida em que se pode mostrar que a os efeitos particulares que irão produzir em determinadas situações são preferíveis aos efeitos que qualquer outro ordenamento produziria; que nós temos o poder de moldar as instituições de tal modo que serão obtidos quaisquer possíveis conjuntos de resultados que preferimos a quaisquer outros; e que a nossa razão nunca deve recorrer a dispositivos mecânicos ou automáticos quando uma consideração consciente de todos os factores tornasse possível um resultado diferente do que resultaria de um processo espontâneo “ (HAYEK, 1967, p. 85 )

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produto de um projecto consciente (submetido à crítica da razão humana iluminada pelo conhecimento) e as pessoas a ela aderissem com pleno conhecimento das suas regras. A esta concepção, Hayek contrapõe uma concepção limitada, e em grande parte tácita (45), da racionalidade humana, inspirada nas concepções de D. Hume e baseada nas suas teorias (de Hayek) sobre o funcionamento dos mercados como formas de utilização de um conhecimento que está distribuído por vários indivíduos e que não pode ser reunido por nenhuma instância centralizadora (46): Para Hayek, “o mercado é um instrumento

Em The Counter-revolution in Science, HAYEK (1952) escreveu: “Indeed. any social process which deserve to be called «social» in distinction to the action of individuals are almost ex definitione not conscious. In so far as such processes are capable of producing a useful order which could have not been produced by conscious directions, any attempt to make them subject to such directions would necessary mean that we restrict what social activity can achieve to the inferior capacity of the individual mind.” Esta argumentação de Hayek mostra a relação entre estas concepções económicas e psicológicas e uma tradição filosófica inglesa em que Hayek se inspira referindo-se a D Hume (mas que se pode fazer remontar à visão pessimista dos seres humanos que foi desenvolvida pelo calvinismo e na qual Hobbes assentou a sua concepção do fundamento da ordem social) e que o faz convergir com Polanyi (mas tb Berger e Luckmann ou com Durkheim) na valorização do carácter tácito do conhecimento que está na base da ordem social. 45 Hayek converge com as concepções de Durkheim sobre os processos sociais, sobretudo no papel que atribui ao carácter tácito do conhecimento que está na base da ordem social (Cf. aqui Subcapítulo 1,). Também Polanyi 1958, Personal Knowledge, e 1966, The Tacit Dimension), assim como BERGER E LUCKMANN (1967/73) e mais tarde várias correntes da sociologia e da antropologia que estudaram o “conhecimento situado” (várias abordagens do “conhecimento situado” feitas por sociólogos e antropólogos como LAVE, COLE, ENGSTRÖM, que convergem numa Cultural Historical Activity Theory (CHAT) e mesmo MOSCOVICI, DOISE e FLAMENT, teorizararam o carácter tácito desse conhecimento. Para estes autores, a percepção identificatória e a classificação, toda a formação de conceitos assim como as competências de tipo skill, são tácitas. Este conhecimento, embora opere segundo regras complexas de determinação, não é conscientemente racional. Pollanyi considerava que “o conhecimento tácito é mais fundamental do que o conhecimento explícito: podemos saber mais do que podemos dizer e nada podemos dizer sem nos darmos conta de coisas sobre as quais poderemos nada saber dizer” [Cf. Giddens 2000,p. 60 sobre isto a propósito de Wietgenstein e Goffman]. Whithead chamou a atenção para o facto de que o avanço das nossas capacidades depende de colocar muito do nosso comportamento sob controlo tácito. Podemos fazer coisas com extrema destreza sem saber como as fazemos, sem sermos capazes de formalizar ou tão só explicitar os nossos processos. Muito do nosso comportamento não é, neste sentido racionalmente planeado. (Mas a generalização deste modelo de interacção para o funcionamento dos mercados é discutível e o conceito de Bourdieu de um comportamento estratégico inconsciente tem que ser tido em consideração na compreensão da natureza do comportamento e das interacções que estão em jogo num mercado, nomeadamente quando HAYEK procura “como estender a capacidade (span) da nossa utilização de recursos para lá da capacidade (span) de controlo da mente de cada um ; e portanto, como passar sem a necessidade de controlo consciente e como criar incentivos (inducements) que façam os indivíduos fazer o que é desejável (para quem ?) sem que ninguém ter que lhes que dizer o que fazer”, quando procura compreender como num mercado, a utilização dos diversos conhecimentos de muitas pessoas produz um resultado racional ou desejável (o que Boudon designa por efeito perverso porque não visado na acção de cada um, mas desejável na perspectiva da totalidade e racionalizável à posteriori nos seus processos ), sem que aquele conhecimento tivesse sido reunido ou que quem quer que fosse o pudesse ter reunido - “a utilização de um conhecimento de que ninguém pode dispor na sua totalidade” (1952, p. 78 ) — Hayek esquece que no próprio mercado estão em acção processos reflexivos e que a acção tem sempre em conta antecipações dos conhecimentos dos outros – daí derivam efeitos perversos que Hayek parece ignorar e que Boudon tem em conta – ver se nos modelos de Olson se tem em conta os conhecimentos dos outros—parece-me que nem sempre) 46 Hayek crítica “o ideal da ciência positivista que [os economistas teriam adoptado e que ...] seria baseado em «dados objectivamente especificáveis» que afadigadamente obtidos por indução num único corpo (um ofício central de planeamento), permitiriam explicações do particular”. E isto seria feito utilizando (procedimentos) a matemática para fazer inferências estatísticas No livro de 1948, pode ler-se: “A espécie de conhecimento que me tem ocupado (o conhecimento local do particular [do tipo do conhecimento distribuído que é utilizado no mercado]) é conhecimento de uma espécie que pela sua

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para a comunicação, a todos os interessados num particular bem, da informação relevante e numa forma abreviada e condensada” (HAYEK, 1952). O conhecimento seria assim integrado, mas sem racionalização a priori; e, do funcionamento dos mercados, resultaria uma racionalização com base na “utilização de um conhecimento de que ninguém, nem nenhuma organização, podia dispor na totalidade” 47. Tal como Hume estabelece uma relação entre uma ordem social baseada no mercado e certas características dos homens, Hayek, de certo modo em sentido inverso, estabelece uma relação entre o modo de utilização que, num mercado, os homens fazem dos seus conhecimentos parciais e o modo de constituição das instituições sociais, das leis e dos costumes que asseguram a ordem social 48. Como a racionalidade do mercado não resulta de um projecto constituído por uma mente humana, nem por várias mentes que conscientemente se reúnem para produzir um determinado resultado visado por todos e cada um, também as instituições não podem ser moldadas directa e conscientemente pelos homens que as fazem, resultando de “processos espontâneos” 49. Hayek reconhece em Hume e em Mandeville a origem da sua concepção da formação das instituições num processo de gradual evolução dos sistemas sociais ao longo do tempo, de que resultaria o que designa por formação espontânea de uma ordem.

Caracterizando essa ordem social pelo sistema de regras de conduta que se desenvolve como um todo estável e produtivo, mas de que os indivíduos não têm consciência, Hayek diz que “o indivíduo pode não ter ideia do que seja essa ordem geral que resulta de seguir regras como as da troca (kinship) do casamento ou da sucessão na propriedade, ou da função que esta regra geral possa ter” (HAYEK, 1967, p. 70), e acrescenta que “todos os indivíduos de uma espécie que existe comportar-se-ão desse modo porque grupos de indivíduos que se comportaram assim levaram a melhor sobre natureza não pode entrar para as estatísticas e, portanto, não pode ser reunido por qualquer autoridade central na forma estatística. As estatísticas de que uma tal autoridade central poderia dispor teriam que ser obtidas precisamente abstraindo das diferenças menores entre as coisas, acumulando como fontes de uma espécie, itens que diferem, quanto à localização, qualidade e outros particulares, de um modo que pode ser muito significativo para a decisão específica.” (1948, p. 83) 47 Hayek desenvolveu uma teoria sobre o conhecimento e sobre o funcionamento da mente e fala mesmo do lugar central de uma economia do conhecimento: Segundo este economista que começou por fazer em Viena estudos de psicologia, o problema central da economia é um problema de conhecimento como por exemplo o cálculo dos preços da forma a corresponderem a aos custos: “O problema que se pretende resolver é como a interacção espontânea de várias pessoas, cada qual possuindo somente fragmentos de conhecimento, tem como resultado que os preços correspondem aos custos [...]” (1948, p. 50) Este economista/psicólogo, articula a sua teoria sobre os mercados com a sua concepção de como pode ser regulada a conduta humana em sociedade, de um modo que se inspira assumidamente em D. Hume e mais geralmente no conservadorismo liberal inglês 47: “O problema é precisamente como estender a capacidade (span) da nossa utilização de recursos para lá da capacidade (span) de controlo da mente de cada um; e portanto, como passar sem a necessidade de controlo consciente e como criar incentivos (inducements) que façam os indivíduos fazer o que é desejável [para quem ?] sem que ninguém ter que lhes que dizer o que fazer” 48 Num artigo sobre Filosofia Política e do Direito de David Hume, publicado numa colectânea em 1967, Hayek refere-se explicitamente a esta relação ente a teoria do conhecimento e a filosofia política: “Não é por acaso que Hume desenvolve as suas ideias sobre a política e a lei no seu trabalho filosófico. Elas estão estreitamente relacionadas com as suas concepções filosóficas gerais, especialmente com as suas visão céptica dos ‘estreitos limites do entendimento humano. O que lhe interessava era a natureza humana em geral, e a sua teoria do conhecimento era concebida principalmente como um passo para a compreensão da conduta do homem como um ser moral e como um membro da sociedade. O que ele produziu foi acima de tudo uma teoria da criação das instituições humanas que se tornou a base da sua luta pela liberdade [...]” (HAYEK, 1967, pp. 110) As concepções de David Hume são analisadas com algum detalhe algumas páginas à frente, no contexto da análise da obra de BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) sobre a Justificação. 49 Em The Counter-revolution in Science, HAYEK (1952) que “os fenómenos complexos podem ser racionais (e estar na base do desenvolvimento e do progresso) mesmo na ausência de qualquer controlo consciente ou centralizado”.

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os que não se comportaram assim” (idem, 1967, p. 70) . É evidente a referência à teoria darwiniana, na concepção que Hayek tem de uma selecção evolucionária actuando sobre as regras de conduta através da viabilidade da ordem social que produzem 50. Porém, admitindo que as instituições criadas por grupos sociais dependem da sobrevivência desses grupos, nada se pode concluir, no quadro da teoria darwinista, sobre a superioridade de instituições ou a viabilidade no futuro (noutras circunstâncias) dos grupos sociais que nelas baseiam a sua estabilidade e produtividade. 51.

No “desenvolvimento espontâneo da sociedade” tal como é concebido por Hayek (e em geral pelo conservadorismo liberalista), tem lugar quer a tradição quer a mudança (mas sem saltos, sem revoluções, sem poder ser conscientemente visada), e ambos são explicados basicamente por uma mesma característica desse modo “espontâneo” de regulação da vida social 52. Tal como Durkheim 53, Hayek atribui uma grande importância ao carácter abstracto e simultaneamente tácito ou não consciente dos princípios que orientam a conduta social, e vê no carácter geral desses princípios, o quadro em que se pode desenvolver a liberdade humana e, portanto, a mudança 54.

A nossa submissão a princípios gerais é necessária porque não podemos guiar-nos na nossa acção prática pelo conhecimento e a avaliação completos de todas as suas consequências. Não sendo o homem omnisciente, a única maneira de dar liberdade ao indivíduo é através de regras gerais que delimitem a esfera em que as decisões são dele. [...] A nossa principal conclusão é que a ordem individualista deve assentar no reforço dos princípios abstractos e não em ordenamentos específicos. (HAYEK, 1948, p. 19)

É esta concepção da relação entre a liberdade e a lei que o leva a defender, no artigo sobre Hume, que os ideais abstractos de liberdade e justiça devem ser definidos pela negativa e não como metas/finalidades definidas positivamente, e que é a limitação das prescrições a um quadro geral que abre possibilidades em situações novas. A liberdade e a justiça assentariam no igual constrangimento de todos e cada a um conjunto muito geral de regras abstractas e ao princípio (de supremacia 55) da lei (ou do estado de direito, the rule of law), ou seja ao reconhecimento desses princípios abstractos como um valor superior (e inquestionável – até na medida em que resultariam de uma evolução natural que a razão consciente não poderia superar).

50 Na linha de raciocínio com base na ideia de que as regras morais são objecto de “selecção natural”, Hayek chama a atenção para o carácter positivo dos tabus (tomando a forma do que não se deve fazer), os quais actuando perla acção paralisante do medo e tomando a forma de comandos de uma vontade transcendente, estariam baseados em informação significativa acerca do nosso ambiente, e teriam um valor de sobrevivência quer para os indivíduos quer para as sociedades. 51 Berger e Luckmann, descrevem fenomenologicamente, em A Construção Social da Realidade, como poderiam decorrer esses processos de criação e reprodução institucional ao longo de gerações, mas, ao contrário do que Hayek pressupõe (ao falar de um sistema de regras de conduta que se desenvolve como um todo estável e

produtivo, mas também com a ideia de um quadro geral para a acção constituído por algumas leis abstractas fundamentais), estes autores consideram que não há necessariamente coesão entre as instituições, sendo mesmo pouco provável que isso aconteça. A coesão só pode resultar de processos conscientes de legitimação de uma ordem muito elevada que culmine na criação de “universos simbólicos” . Mas mesmo esse efeito de coesão desvanece-se, à medida que aumenta a “pluralidade desses universos simbólicos” e que um grupo social, ou mesmo cada indivíduo, fica colocado perante essa pluralidade . 52 Não a selecção natural em si, que é extremamente conservadora, só outros processos podendo explicar as transformações por que passaram as instituições e a sua diversidade entre os povos do globo. 53 Cf. aqui no Capítulo 1, as referências às concepções que Durkheim expõe em DTS, mas sobretudo em FEVR. 54 Cf. as referências a Durkheim e a Jack Goody, no início do Subcapítulo 2.2 desta tese, a propósito da liberdade de consciência tal como a concebiam os baptistas no sec XVI. 55 Este autor fala também da “precedência (primacy) do abstracto”

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Hayek vê na justiça inglesa baseada em leis não escritas um bom exemplo do modo como a lei deve regular a conduta social 56. A tradição inglesa passa, não tanto por uma atenção às especificidades de um dado caso, quanto por uma fundamental referência a princípios gerais de tal modo firmes e incorporados na mente de todos que isso lhes permite estar cientes do que deve ser feito ou é admissível que seja feito em casos particulares sem estar sempre a discutir as ideias abstractas 57.

Hayek sublinha e insiste na ideia de que é pela incorporação desses princípios abstractos, pelo seu carácter tácito, que se pode ser livre e progredir para novas realizações mesmo sem se ter uma ideia antecipada da forma que esse progresso irá ter. 58 Isto facilitaria à sociedade lidar com novas situações e aventurar-se no desconhecido, na medida em que a referência aos princípios abstractos define os limites do possível sem estar limitado ao que já tinha sido experimentado, facilitando a criatividade e promovendo assim a produtividade.

Reencontra-se aqui a ideia de que o reconhecimento da liberdade num nível de decisão depende da aceitação de uma prescrição de ordem superior 59. E, como sugere Durkheim, esse abstracto incorporado, no limite, é Deus. Mas podem ver-se aqui também algumas das características da liberdade de consciência que Weber detecta nos desenvolvimentos da ética puritana e que estariam na base da capacidade de expansão de um certo capitalismo. (E também no modo de entender a liberdade. Não esquecer que o princípio mais geral desta ética é a correcção e transformação do mundo de forma

56 Tal como Clifford GEERTZ (1983) sublinha em O Saber Local, dizer que estas práticas de justiça são uma forma de «direito consuetudinário» e portanto baseado nos «costumes» (termo que questiona) desvia a atenção dos princípios que subjazem a esse direito. E ele di-lo não só para a Inglaterra como para muitos outras culturas. (preferindo o conceito de justiça baseada em precedentes, ou seja nas considerações que o julgamento dos precedentes implicou). Cf. DURKHEIM (1991, DTS), sobre a passagem à “solidariedade orgânica” e os princípios que tomam uma forma abstracta e portanto discutível e discutida, enfraquecendo. 57 Em New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas (1978), Hayek concluia: “Embora o liberal deva exigir do direito que examine cada um dos valores ou regras morais da sua sociedade, ele sabe que pode e deve fazer isto aceitando como dada para esse propósito a maioria dos outros valores morais desta sociedade, e examinar aquela acerca da qual tem dúvidas (que está a por em causa) em termos da sua compatibilidade com o resto do sistema dominante de regras.” São as limitações deste procedimento que Rousseau procura superar ao hipotizar uma situação inicial em que tal sistema de valores não esteja definido, não se limitando portanto a analisar a compatibilidade de uma regra com as restantes mas sim procurando avaliar o conjunto das regras que constituem os princípios fundamentais da lei e da justiça numa sociedade, embora sem prescindir das características (qualidades) humanas – tal como elas se constituíram historicamente. 58 “Dado que toda a nossa vida consiste em fazer face a novas e imprevisíveis circunstâncias, não podemos fazê-lo com ordem decidindo antecipadamente todas as nossas acções particulares. A única maneira de darmos alguma ordem às nossas vidas é adoptando certas regras ou princípios abstractos para nos guiar e aderindo estritamente a essas regras no nosso modo de lidar com as novas situações que vão surgindo. As nossas acções formam um padrão coerente e racional, não porque tenham sido decididas como parte de um plano definido desde o início, mas porque em cada uma das sucessivas decisões limitamos a possibilidade de escolha pelas mesmas regras abstractas.” (1967, p. 90) Hayek (1979, Law, Legislation and Liberty, p. 176) escreveu: “Uma época de superstição é uma época em que as pessoas imaginam que sabem mais do que realmente sabem” (No sec. XX, uma “sobrestimação do que a ciência pode alcançar” [...] “O que a época do racionalismo - e do moderno positivismo – nos ensinou a ver (apresentou) como formações insensatas e sem significado, devidas ao acidentes do capricho humano, voltam a ser em muitos aspectos (circunstâncias), as fundações em que assenta a nossa capacidade para pensamento racional. O homem não é nem nunca será o senhor do seu destino: A sua razão fá-lo progredir sempre levando-o para o desconhecido e imprevisto onde aprende novas coisas.” “(...) Os fenómenos complexos podem ser racionais (e estar na base do desenvolvimento e do progresso) mesmo na ausência de qualquer controlo consciente ou centralizado (WEIMER, 1976, p. 283) -- mas constantemente sujeitos à influência da acção crítica: o que abre para o conceito de reflexividade, que GIDDENS (1992) coloca no cerne da sociedade moderna. 59 Ideia que no Subcapítulo 2.2 já tinha sido referida na formulação de Dumont e que, como se verá no cap 2.4, está na base da teoria ética de Kant

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a honrar Deus, magnificando o mundo como obra sua e portanto maximizando os recursos que se tem à disposição, quanto mais não seja, cada um a sua própria capacidade de trabalho. E não esqueçamos que, desde o sec XVII, a grandeza socialmente reconhecida aos homens era a sua capacidade de produzir riqueza. A liberdade era portanto entendida como a definição de limites muito amplos para a realização dessa riqueza.)

A defesa que Hayek faz das concepções inglesas de liberdade, lei e justiça é portanto a defesa de um quadro de justiça para o desenvolvimento do capitalismo: o reconhecimento do valor e adequação desse quadro para o desenvolvimento do capitalismo 60 . O que não é intelectualmente legítimo é reduzir o “desenvolvimento espontâneo da ordem social” a isto. Grande parte das instituições, mesmo em Inglaterra, teve origem no exercício da força e da dominação do mesmo modo que passou, nalgumas culturas mais do que noutras, por processos políticos que fizeram uso da razão e da elaboração de códigos escritos.

Impossibilidade de fundar a sociedade na definição de um “bem comum” Hayek, com base nos pressupostos liberalistas que vêm de D Hume, questiona a existência de um interesse geral (obviamente porque parte dos indivíduos e dos seus interesses particulares, e só por convergência desses interesses entende que se poderia constituir um interesse geral ) que permitiria a definição de um «bem comum», a procura do qual guiaria a “vontade geral”. Já no que se refere à formação das instituições e aos princípios (“naturalmente”) consensuais da lei, considera a existência de uma realidade social que se desenvolve sem plena consciência dos indivíduos (ou sem qualquer consciência) Está nesse aspecto próximo de Rousseau, de Dumont (61) e de Durkheim. Mas se a sua concepção da racionalidade limitada dos indivíduos e do carácter espontâneo da formação da ordem social que orienta as concepções sociais deste economista o faz ter uma posição próxima destes autores, as posições políticas de Hayek são essencialmente orientadas pelos pressupostos do pensamento humano e liberalista que, partindo dos indivíduos a quem se atribuem as qualidades adequadas

60 Um dos argumentos de Hayek em The Road to Serfdom (que é o de muitos liberais e que parece ter convencido muitos “socialistas”) é de que a liberdade pessoal e política só teria ocorrido no passado quando havia liberdade económica, e que a superioridade do “capitalismo” (que como doutrina económica, implica (entails) a libertação da coerção no mercado – [cf. D. Hume]) é devida à presença dessa liberdade, porque a competição nos mercados (tal como a luta pela sobrevivência na teoria darwinista), possibilita o progresso (sendo a competição no mercado essencialmente uma questão de tirar vantagem de consequências imprevisiveis das multiplas acções de indivíduos que fazem uso de uma informação incompleta). Haveria que reflectir sobre o caso da China sem esquecer que Dubet admite que pode haver capitalismo sem democracia. O interessante é que o capitalismo chinês procurou realizar, pelo menos até 2005, a máxima liberdade económica. 61 DUMONT (1992) parece seguir Baker na ideia de que: “A sociedade no sentido amplo, a universitas no sentido de um todo no interior do qual [cada] homem nasce e ao qual pertence sempre, que lhe ensina a sua língua e pelo menos semeia no seu espírito o material de que serão feitas as suas ideias”, (...] ‘não é constituída, nem nunca o foi, na base de um contrato. A sociedade é uma associação para todos os fins [...} que transcende a noção de direito, e cresceu e existe por si própria’ “(Dumont, p. 84, citando Baker). Dumont analisa como o jurídico e o político surgem nas obras de Hobbes e de Rousseau, autonomizando-se e de certo modo subsumindo esta realidade social de base, como mais tarde viria a acontecer com o económico nas obras da economia política . E, citando Gierke, DUMONT (p. 82), faz notar que: “A ideia de Estado como um todo orgânico, herdada do pensamento antigo e medieval, nunca se extinguiu por completo [...] Assim, é uma interpretação puramente colectiva da personalidade do povo que de facto predomina na teoria do Estado segundo o Direito Natural. O povo coincide com a soma dos membros do povo, todavia, ao mesmo tempo, quando se faz sentir a necessidade de um portador único dos direitos do povo, este é tratado como sendo essencialmente uma unidade englobante.” (Gierke, cit. in DUMONT, 1992, p. 82/3).

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(ver Hume) concebe a ordem social (assim como política e económica) na base da concorrência para a obtenção de bens que pelas suas características (naturais, como a escassez, ou politicamente constituídas, como a sua apropriação particular) são adequados a essa disputa concorrencial e a fazer a grandeza de um pequeno número, implicando a concorrência, o predomínio social da actividade económica e a precedência da lógica económica em relação à política.

Esta linha de pensamento está aqui próxima da de Rousseau ao valorizar os costumes a tradição e processos não conscientes na formação da “vontade geral”, mas ao contrário do filósofo francês, nega qualquer possibilidade de mudança conscientemente dirigida, mesmo que tenha em conta esse fundo social, devido à impossibilidade de haver um interesse geral, de todos os homens visarem um vasto conjunto de objectivos que seja comum, mesmo que se trate de objectivos fundamentais (tão gerais como os princípios que na tradição constituem o quadro geral para a acção)·.

Na medida em que as pessoas têm diferentes valores que se reflectem em diferentes objectivos, não seria possível o consenso que permitiria o empenhamento colectivo em acções que visassem um interesse geral, ficando-se por uma definição dos objectivos «comuns» por uma «maioria» que assim exerceria uma coerção sobre os que estão em minoria.-- O interesse assim definido não deixa de ser o interesse específico de um grupo, ou o compromisso de uma coalizão de interesses que só podem ser perseguidos à custa de outros. Não seria possível definir um bem comum ou um bem estar geral, havendo sim um leque (welter) de objectivos frequentemente incompatíveis e em conflito. A acção comum estaria limitada a áreas em que todos concordam haver fins comuns e em que o debate se limita ao modo de os alcançar. “As pessoas concordarem em que deve haver um planeamento central, sem estarem de acordo nos objectivos, é como se várias pessoas se empenhassem em fazer uma viagem juntos sem estarem de acordo sobre o destino [...] A incapacidade das assembleias democráticas para levar a cabo o que parece ser um mandato do povo causa inevitavelmente insatisfação com a instituições democráticas.” (Hayek, 1944 Road to Serfdoom, p. 62, cit. in Weimer, 1980, p. 274) E a delegação de autoridade a um corpo separado significa que lhe é dado “poder para tomar, com base na força da lei [...], decisões habitualmente descritas como “judging a case on its merits”)” ( idem, p. 66). E Hayek conclui apontando para a inevitabilidade de desenvolvimentos ditatoriais: “A aceitação de que o planeamento é necessário juntamente com a incapacidade das assembleias democráticas para produzir um plano, dá lugar à exigência cada vez mais forte que ao governo, ou a algum indivíduo, sejam dados poderes para actuarem pelo seu critério. Alarga-se a crença em que se as coisas devem ser feitas, as autoridades responsáveis devem ser libertadas dos procedimentos democráticos.” (idem, p. 67) Mas Hayek parte do princípio de que a ditadura é a forma mais eficiente de coerção, esquecendo séculos de ensinamentos, de algum modo sintetizados por Maquiavel, que mostram que política é a arte de fazer o maior número de pessoas identificar-se com os pontos de vista do governante; o que está além, ou aquém, da situação hipotética, e que faz abstracção do processo histórico e das relações de poder já estabelecidas, em que Rousseau se coloca quando procura definir o que poderia ser aceite por todos e portanto legítimo.

Segundo este autor, o perigo de perda de liberdade resultaria, no pós-guerra, do abandono da herança cultural e do indivíduo como entidade política e económica decisiva, com as suas diferenças individuais e as suas procuras de realização dos interesses próprios de cada um, e a sua substituição pelo activismo social (opondo-se ao espírito concorrencial), a “igualdade” e as restrições à concorrência. Como se viu, a tradição liberal define igualdade e liberdade como igualdade (formal) perante a lei, a

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qual, interiorizada nos seus princípios gerais, define o quadro em que cada um dispõe da mais ampla liberdade de decisão. Cada um é livre na medida em que é constrangido apenas pelas leis que se aplicam a todos os membros da sociedade, e a lei tem que ser o princípio máximo por todos respeitado em todas as circunstâncias e lugares. A igualdade que resulta deste governo pela lei é uma igualdade de oportunidades entendida como as oportunidades/possibilidades de cada um maximizar os seus talentos e conhecimentos e de concorrer com base neles num mercado 62. A prossecução dos interesses particulares seria legítima, desde que realizada numa base individual e concorrencialmente nos mercados. Como se não houvesse agrupamento para a realização de interesses, mesmo nos mercados de bens. E como se toda a vida social, incluindo a política não pudesse funcionar, precisamente com base na lógica de mercado, com coalizões 63.

Para o austríaco Hayek, tornado wig, tal como para o socialiste Durkheim, a “vontade geral”, o “espírito do povo” ou os princípios gerais do ordenamento social viabilizados pela «selecção natural», preexistiriam à sua expressão num voto maioritário (que é portanto implicitamente posto em causa com esta formulação) 64. Também a legitimidade da existência de partidos pode ser posta em questão no quadro desta concepção, a menos que se reconheça que eles representam sectores sociais com interesses legítimos que se sobreporiam ao interesse de uma sociedade que verdadeiramente só se constituiria a partir da composição legítima desses interesses – é em certa medida a concepção que subjaz à teoria dos grupos de pressão, mais democrática do que republicana – mas esta concepção democrática, pluralista e conflitual, abre a porta à legitimidade da luta de classes, à ruptura da sociedade sempre que um grupo se considere sistematicamente prejudicado pelas composições dos outros, sobretudo se o seu peso demográfico, económico ou em alguma outra esfera, não se reflecte nas tomadas de decisão política – o que coloca a questão da “lei de bronze da oligarquia” (formulada por Michels 65). Por isso, o simples princípio da maioria na tomada de decisões não basta para definir a democracia. Para que todos o respeitem é 62 São analisadas neste capítulo outras concepções de igualdade de oportunidades, como as de Durkheim e as de John Rawls, bem como as de BOLTANSKI e THÈVENOT (1991), que procuram definir essa igualdade de oportunidades segundo princípios de justiça social, e fazem a demarcação de uma concepção “mercantilista” dos fundamentos sociais, contra uma concepção que designam por “industrial”.. Focar-se-á também as críticas de BOUDON (1977/81) e de DUBET (2001 e 2005) a tais tentativas. 63 Cf. Mancur OLSON (1965/88) sobre a abordagem da política com base na teoria dos grupos de pressão. 64 Tenha-se em conta que nenhuma corrente política permanece indiferente perante este conceito de “vontade geral”. As organizações «comunistas» de modelo leninista, recorrem a esta concepção da formação da «vontade geral» na justificação do «centralismo democrático»). A fundamentação da «ditadura do proletariado» é bem diferente, assentando na crítica de Marx à ideia de um interesse geral ou de um bem comum (em A Ideologia Alemã). Mas, na medida em que retiram dos seus programas a realização da «ditadura do proletariado», é à concepção da vontade geral por Rousseau que fazem referência mais ou menos explicitamente. E todos os políticos, mesmo os mais «liberais», recorrem a ela, quando dispõem da maioria, para se apresentarem como falando e decidindo em nome de todo um povo, cuja vontade se teria manifestado como a de um ser unitário: «O povo português é inteligente!», «O povo português decide sempre bem!». E os resultados eleitorais exprimem «a suma sabedoria do povo», entendido como uma unidade pensante. Secundarizando, e procurando assim neutralizar, as diferenças ou mesmo as profundas fracturas subjacentes à expressão num voto – ou esconjurá-las com a fórmula mágico-religiosa da “vontade geral” e de uma «consciência colectiva» idealizada (a concepção de Durkheim

tende a ser mais empírica, embora também ele faça dela este uso político-ideológico – ver conclusão de FEVR) que lhe estaria subjacente e que, pelo menos para esses efeitos, todos celebram. Adorno, em Dialéctica do Iluminismo, fala a este propósito no «mítico respeito dos homens [ou dos povos?] pelos factos que eles mesmos produzem» (cito de memória). 65 Ver OLSON (1965/88) e BOUDON (1977/81, p. 39). Ver também a identificação que OLSON (1965/88) faz dos limites à acção política.

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preciso que ele seja exercido de modo a que todos sintam que os seus interesses são tidos em conta na definição do interesse comum que está na base da formação da vontade geral. E essa articulação de interesses particulares com interesse geral, ou o interesse do Estado, está muito próximo do entendimento que Maquiavel construiu da arte de governar. O “povo soberano” ou quem exerce a soberania em nome do povo, teria que obedecer aos mesmos princípios políticos que o “príncipe”. O que coloca a questão da necessidade de representantes que sejam especialistas (Cf. Hayek, p.275, que parece detestar os especialistas, mas não tanto os da política), ou, em alternativa, a necessidade de uma cultura política generalizada que se vai constituindo em todas as instâncias colectivas; o que remete para a o tema da racionalização da cultura e da reflexividade institucional e está para além da «simples» necessidade de educação dos cidadãos para a interpretação da vontade geral e para saberem secundarizar os seus interesses (a que procuram responder, como se pode ver aqui no Subcapítulo 3.7, as concepções republicanas da escola, nomeadamente a de Durkheim e de Ferry, transformando o programa institucional fundado na autonomia moral requerida pelos desenvolvimentos religiosos que aqui foram analisados no Subcapítulo 2.2). Dessa cultura política poderiam fazer parte saberes como os da teoria dos grupos de pressão ou os que Olson tem, como referência, mas desenvolvidos de um modo tal que não se tornassem instrumentos de poder de especialistas da política, nem ficassem limitados aos empreendedores de acção colectiva, mas sim de modo a serem usados em contextos institucionais integrados em processos de reflexividade institucional (Esta possibilidade é considerada nos subcapítulos 3.3, 3.9 e 4.4) 66.

Esta concepção, que ignora a crise aberta pela modernidade e não foi causada pelo racionalismo em si, o que faz é apresentar como um processo natural e geral de toda a vida social a regulação pelo mercado e a concorrência que lhe é inerente, com a escassez de bens que lhe está na base 67; como se a regulação pelo mercado fosse plenamente racional e não tivesse também os seus custos e efeitos perversos (sendo a competição no mercado essencialmente uma questão de tirar vantagem de consequências imprevisíveis das múltiplas acções de indivíduos que fazem uso de uma informação incompleta 68). É por não considerar isto que o pensamento de Hayek e dos liberais wig é profundamente conservador quando não é reaccionário em relação a instituições sociais que resultam das lutas dos trabalhadores ou outros grupos desfavorecidos. Na tradição do pensamento liberal (wig) inglês, com base numa “doutrina de evolução cultural” (completamente articulada antes que Darwin aplicasse as suas ideias à biologia), deve fazer-se o mais possível uso das forças espontâneas da sociedade: “ao favorecer o individualismo contra o intervencionismo (colectivista), o liberalismo combate propostas que limitem a liberdade em vez de propor maneiras de acelerar a evolução da sociedade” -- Mas realmente em muitas circunstâncias históricas, e tendencialmente em todas, o desenvolvimento económico exige uma intensificação da concorrência e os liberais não hesitam em fazer leis que para isso contribuam, mesmo que essas leis tenham por vezes a forma de desregulamentações,

66 Neste sentido, os “deficientes”, como todos os que estão numa situação de sofrimento e são obrigados à passividade, ou de algum modo são marginalizados, fazem parte do povo e a sua existência tem que ser considerada na definição do bem comum (Cf. AGOSTINHO de Hipona). A sua qualidade de cidadãos não se pode definir simplesmente pela sua existência e afirmação como indivíduos numa esfera política definida como um mercado.. Toda a política social ganha um sentido diferente se for vista com base nesta concepção, ou se for entendida com base na democracia como mercado de representação política e afirmação concorrencial de direitos e de interesses. 67 Cf. HABERMAS (1990) sobre direita hegeliana e a autonomização da economia 68 Cf. BOUDON (1977/81) sobre a inevitabilidade dos conflitos ideológicos e GIDDENS (1992) sobre a reflexividade.

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elas combinam-se com prescrições que não deixam às pessoas outra alternativa se não entrar no jogo da concorrência 69. É a questão da liberdade de acção económica que passa pelo desfazer de todo o tipo de vínculos entre os homens – a não ser ao princípio da lei 70. A liberdade ameaçada pela ideologia, ou o conflito inevitável? O liberalismo conservador e reaccionário tende a ver no socialismo (ou, como por vezes preferem dizer, no colectivismo, uma lógica de limitação da liberdade individual que lhe seria específica e que se tornaria necessária para poderem ser alcançados objectivos não naturais, esquecendo ou fazendo por ignorar que, tal como Rousseau e, de outro modo, Hobbes puseram em evidência, é qualquer tipo de vida social que coloca os homens perante a necessidade de definir essa liberdade, simultaneamente criando-a e limitando-a. O que o “socialismo” faz, tal como outras ideologias, é redefini-la. E, tal como mostra Boudon e a seguir se poderá ver, a questão para os homens é inesgotavelmente a da escolha e do conflito sobre a escolha dessa redefinição ou, nos termos de BOUDON (1981), sobre “a forma de organização da interdependência” com os custos que esta inevitavelmente comporta.

Para Boudon, essa definição é quase sempre objecto de conflito ideológico, isto é conflito sobre os tais princípios que devem reger quaisquer outros níveis de decisão 71. Qualquer tentativa, como a dos “liberais” para iludir a natureza desse conflito e naturalizar o processo que leva à adopção de um desses princípios não só é tão ideológica como as outras, como é uma manipulação intelectual obscurantista desta problemática. E nesse aspecto profundamente conservadora, reaccionária e anti-racional quaisquer que sejam as limitações que se reconheçam à racionalidade humana, a nível dos indivíduos ou das suas formas de diálogo 72.

69 CASTEL (1995) e J. BERNARDO (1976), referem com algum detalhe situações em que isso aconteceu desde o século XIV ao século XX. 70 Ver a máxima cantada em rap “FICAR RICO – POR QUALQUER MEIO – OU MORRER NA TENTATIVA – DE O FAZER”, em que a validade da lei se limita à probabilidade da se ser objecto da sua aplicação punitiva, ou à probabilidade de se escapar à punição – talvez nem haja cálculo e se aposte tudo na possibilidade de não se fazer regular pela Lei. 71 Cf. tb. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991. 72 É à luz destas considerações que deve ser analisada a oposição a que Habermas acaba por voltar entre emancipação da miséria e emancipação da humilhação, depois de ter valorizado nas obras de juventude de Hegel e de Marx a relação dialéctica e portanto a ligação indissolúvel entre interacção e trabalho (a ligação indissolúvel entre a dialéctica do reconhecimento na interacção social e ...) . A distinção e quase oposição entre libertação da coerção e libertação da necessidade (ver tb Durkheim) é de facto uma velha tese liberalista – reduzindo o “socialismo” e a teoria da praxis ao económico. Claro que também a doutrina liberal leva à autonomia e supremacia da lógica económica sobre a sociedade, mas isso é naturalizado, enquanto o marxismo, identificando na organização económica da produção material da vida um dos factores principais da transformação social, pretende orientá-lo num sentido filosoficamente definido e portanto acaba por condicionar o económico, de um modo que o liberalismo rejeita porque a lógica económica vigente foi desde o sec. XVIII orientada no sentido dos valores sociais que resultam da sua filosofia e que por essa via se impõem a toda a sociedade, impondo o princípio ideológico da concorrência para definição do valor dos homens tanto mais quanto a concorrência económica se intensifica. É conveniente manter presente a consideração de Todorov que o leva a assinalar nestas duas ideologias a distinção entre um igualdade afirmada em princípio, mas que justificaria a justeza das desigualdades finais e reais, e o reconhecimento da desigualdade à partida para promover o encontro e reconhecer a igualdade como uma possível e legítima condição para a vida em sociedade (a questão da redistribuição e a sua diferença da justiça social entendida como mera igualdade de oportunidades) – o que remete para Hegel e Marx sobre a ruptura da sociedade, como se pode ver nos subcapítulos 2.4 e 2.5.

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Um dos argumentos de Hayeck em Rood to Serfdoom é de que a liberdade pessoal e política só ocorreu no passado quando houve liberdade económica. E, além disso, que a superioridade do “capitalismo” é devida à presença da liberdade, porque a competição nos mercados permite (allows) o progresso.

Esta teoria da evolução cultural que originaria a formação espontânea de uma ordem social coesa, está em contradição com a valorização do pluralismo. Quanto mais não fosse, pela unificação de mercados sobre extensões cada vez maiores, entrariam em contacto e em concorrência instituições que seriam resultantes de diversos processos espontâneos.) Esta concepção de uma formação espontânea de uma ordem social coesa, confronta-se com a diversidade e heterogeneidade de instituições quando povos muito diversos entram em contacto estreito e permanente à medida que os mercados se unificam sobre extensões cada vez maiores. Para manter a coerência teórica, esta linha de teorização teria que conceber o mercado e não já a adaptação a um vasto conjunto de condições naturais, como o único factor de pressões selectivas (o que significa colocar a economia de mercado no comando). Foi o que fez, colocando a economia de mercado no comando de todo o desenvolvimento social, critério final de viabilidade de qualquer instituição social. E pressupondo que seria o sistema institucional que mais desenvolveu o mercado e que previamente conformou todas as interacções e instituições à lógica concorrencial (a sociedade inspirada pela ideologia liberalista) que levaria a melhor. Tal como a selecção natural só por si, na ausência de intensos factores de mudança, é conservadora e tenderia para a uniformidade, o pluralismo liberal, na medida em que hipervaloriza o mercado reconduzindo ao seu modo de funcionamento todos os processos sociais, tende inevitavelmente para a unicidade. Mas como o mercado mundial, à semelhança dos mercados locais, nacionais e coloniais, não é um espaço isento de relações de força, sendo mesmo fortemente estruturado por elas e por conflitos mais ou menos violentos cujo desfecho (o previsto resultado de hegemonia ideológica do liberalismo) não se produz sem que aos “princípios de liberdade de comércio” se acrescente o imperialismo sob várias formas incluindo a militar, nomeadamente em nome da superioridade das instituições conformes ao modelo liberal, para este efeito consideradas superiores, aquém da sua sujeição a qualquer processo selectivo “espontâneo”.

À escala da comunidade nacional (do povo-Estado) o liberalismo confronta-se igualmente com as contradições resultantes da sua concepção de um desenvolvimento social espontâneo que produziria uma ordem social coesa e a complexidade social e pluralidade ideológica resultante da história real e (como BOUDON, 1977/81, põe em evidência a partir da obra de Rousseau) da inexistência de uma definição óptima da forma de organização da interdependência.

O liberalismo pensa poder contornar os problemas com que se confrontou Rousseau (e, embora com uma resolução mais abrupta, também Hobbes), remetendo para um desenvolvimento natural, mas este está cheio de violência e variadas soluções para o problema da organização da interdependência: lealdade, solidariedade, submissão, livre consentimento das sanções que leva Sócrates a aceitar a condenação.

Se se considerar a oposição entre o tipo ideal de relações a comunitárias e o tipo ideal da relações societárias, pode dizer-se que o pensamento liberal tenderia a conceber uma evolução gradual de uma para a outra, ou melhor, a organização social segundo os princípios da sociedade, que seriam os individualísticos, seria o resultado dos mesmos processos evolutivos que os das instituições de tipo comunitário.

O liberalismo evitaria a questão do contrato que se coloca às ideologias individualistas, resultantes da filosofia do sujeito, imaginando que os homens continuariam no essencial a viver num estado de liberdade muito próximo do «estado de

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natureza», e que os únicos contratos legítimos seriam os que resultariam do livre entendimento entre um pequeno número de indivíduos (idealmente dois, pois, num contrato a três, a falta de cumprimento de um deles comprometeria a relação entre os restantes 73) para efeitos bem definidos e limitados. A evolução cultural e, portanto, suposta gradual e sem saltos asseguraria um fundo de princípios respeitado por todos. E por esse lado, os liberalistas valorizariam as instituições do tipo comunitário. Mas confrontam-se inevitavelmente com a pluralidade resultante do alargamento dos mercados. HABERMAS (1990) (e DUBET, 2001, no Capítulo 2) encontra este tipo de articulação entre a valorização do comunitarismo e o individualismo das sociedades/(de)mercado na corrente de pensamento de direita inspirado em Hegel, e que pretenderia a constante modernização na esfera da produção, ou seja da reprodução e multiplicação do capital, mas simultaneamente o fecho da crise aberta pela modernidade na esfera das instituições que regulam outras esferas da vida social (conservadores na cultura, nos costumes). Os liberalistas tendem, no entanto, a ser mais pluralistas e abertos à mudança em todos os campos (O que nos poderia levar de volta ao tema inicial do pluralismo). Quando querem acelerar as transformações sociais (quando as necessidades de relançar o ciclo de multiplicação do capital se fazem sentir mais imperiosamente, porque o crescimento económico está comprometido, ou porque está em risco a submissão dos homens) intensificam a concorrência, fazendo com que a lógica (o desejo segundo Hume) de acumulação de riqueza se estenda a todos os aspectos da vida social (comprometendo muitas vezes o resultado da tal evolução gradual das instituições sociais, consolidada pela tradição). Quando pretendem estabilidade (estabilizar o resultado do turmoil produzido por uma fase de intensa concorrência, ou evitar que as perturbações sociais atinjam o essencial da ordem social) valorizam essas instituições tradicionais.

73 Cf. OLSON, 1998, e BOUDON, 1981.

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2.3.2. A Impossibilidade de definir uma “organização óptima” da interdependência social torna o conflito ideológico inevitável A necessidade de intensificação da interdependência para a consolidação institucional das sociedades, confrontada com a impossibilidade de definir uma “organização óptima” dessa interdependência Já foi referido que, segundo BOUDON (1977/81), Rousseau reafirmando a importância da intensificação da interdependência para a consolidação institucional das sociedades, se confronta com a impossibilidade de definir uma “organização óptima” dessa interdependência. Num livro relativamente famoso da década de 70, Raymond BOUDON (1977 74) refere-se aos efeitos das acções individuais ou colectivas que não correspondem e podem ir (vão mesmo, com frequência) em sentido contrário aos resultados visados na acção (BOUDON, 1981 p. 11). Efeitos perversos, ou de composição, ou acumulativos, ou ainda, de agregação (mas não no sentido do conceito clássico da economia normativa 75– Cf. BOUDON, 1981, p. 15) 76, são por ele definidos como efeitos que resultam da justaposição de comportamentos individuais, sem estar incluídos nos objectivos visados pelos actores, e independentemente do resultado realmente produzido ser ou não desejável (para a colectividade ou para alguns dos indivíduos que participaram voluntariamente na acção). A perversidade consistiria em os indivíduos poderem: tanto (1) obter importantes benefícios para além dos procurados; como (2) alcançar os objectivos efectivamente visados, mas devendo suportar contemporaneamente consequências não desejadas; ou (3) alcançar os objectivos individuais mas produzir paralelamente males colectivos, ou outros bens colectivos não explicitamente visados na acção individual (como seria o caso do efeito da «mão invisível» que segundo A. SMITH (1776) garantiria a regulação dos mercados); ou ainda (4) em estes dois efeitos para a colectividade ocorrerem simultaneamente, mesmo que os indivíduos não alcancem os objectivos visados. Além disso, os resultados de uma acção visada e prosseguida por muitos indivíduos pode ter resultados muito diferentes para uns e para outros (como é o caso do aumento da desigualdade dos rendimentos, com o aumento da procura de instrução) 77.

Este autor dá grande importância às “implicações que a “omnipresença dos efeitos perversos têm para a teoria sociológica” (BOUDON, 1981, p. 17), podendo mesmo dizer-se que considera o modo como alguns pensadores abordaram essas

74 De que se usa aqui, para referência às páginas, uma edição italiana de 1981, por não se ter tido acesso a nenhuma edição francesa. 75 Tendo sido, ao longo do século XX, objecto da atenção dos economistas, não se limitam a essa esfera. Sempre presentes na vida social, estes efeitos constituem uma das causas principais de desequilíbrio e mudança social, mas podem também ser importantes para explicar situações de equilíbrio e continuidade. 76 Boudon diz preferir o termo “efeitos perversos” por que os mais frequente é o resultado ser contrário ao desejado e por ter como referência o uso que Goethe faz do termo quando define Mefistófole como “uma parte daquela força que procura sempre o mal e obtêm sempre o bem” (Goethe, cit. in BOUDON, 1981, p. 15) 77 BOUDON (1981, p. 19) refere-se também à previsibilidade, e a custos da eliminação de efeitos perversos. Estes conceitos permitem uma articulação com as problemáticas da reflexividade e indecidibilidade (que serão considerados em subcapítulos seguintes, sobretudo no Subcapítulo 3.9), na medida em que as várias alternativas para reduzir esses custos são objecto de conflito entre os homens (idem, p. 53-55). Boudon dá atenção aos custos dessa eliminação, ou redução de efeitos perversos, analisando casos em que “a neutralização de um efeito perverso comporta necessariamente a neutralização não intencional de efeitos colectivos e individuais desejáveis (Cf. pp. 12, 52, 54)

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situações fundador, quer de uma nova filosofia política, quer de um dos principais paradigmas da sociologia 78.

Boudon chama a atenção para os esforços desenvolvidos pelas colectividades para eliminar esses efeitos, estando algumas dessas situações no fundamento da ordem social (79) ou de limitações pontuais à liberdade individual, livremente consentidas (como a regulação do tráfico por semáforos – p. 12), ou sendo utilizadas por filósofos para as justificar, como no caso do uso que Rousseau faz da análise da probabilidade de cooperação entre dois homens no «estado de natureza» que, com vista à obtenção de maior benefício, se propusessem passar da caça individual a uma caça que implicasse estratégias cooperativas 80. Segundo BOUDON (p. 24 e 149), foi Rousseau quem demonstrou que da composição colectiva das acções individuais absolutamente livres, tanto quanto das formas de organização da interdependência, resultam efeitos perversos cuja eliminação, ou tão somente a redução, tem custos individuais e sociais. E terá sido Rousseau quem pôs em evidência que um desses custos é a restrição da liberdade 81.

No Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, Rousseau analisa a situação em que dois homens sem quaisquer vínculos ou antagonismos, conforme o axioma do “estado selvagem”, decidem passar da caça individual, que lhes proporciona pequenos animais como a lebre, a uma caça cooperativa que lhes permitiria caçar animais de maior porte, como o veado, mas assim que um deles vê uma lebre, abandona a estratégia cooperativa. O resultado é que, na melhor das hipóteses, um dos caçadores continua a poder dispor de um pequeno animal como alimento e o outro fica sem nada, ou também ele acaba por renunciar à estratégia cooperativa; e isto, mesmo que seja objectivamente maior a probabilidade de com essa

78 Fenómenos banais, comuns e aparentemente simples da vida quotidiana reentram num campo de investigação abstracta pouco familiar e complexa, fazendo recurso nomeadamente à instrumentação técnica da teoria dos jogos descoberta a partir do final do sec. XVIII. A lógica da situação faz com que os indivíduos se comportem todos da mesma maneira ou escolham entre um conjunto definido de alternativas (BOUDON, p. 11). Cf tb. pp. 17, 56, 86 e 124 (sobre o individualismo metodológico). Mas para Boudon, a noção de efeitos perversos implica uma concepção do comportamento humano como intencional. (cf. p. 17). Só num contexto analítico em que o comportamento humano é concebido como estando orientado pelos objectivos que pretende alcançar e pelas representações que tem dos modos adequados para procurar esses objectivos, é que faz sentido considerar efeitos perversos. Conforme Boudon afirma claramente, “o paradigma dos efeitos perversos não implica a imagem de um homo sociologicus «racional», mas implica a de um h. sociologicus «intencional» e é incompatível com o modelo corrente da sociologia contemporânea [que segundo Boudon era o do estruturalismo] de um H. sociologicus cujas acções tivessem a aparência de respostas determinadas pelas estruturas sociais” (BOUDON, 1981, p. 17) ou de qualquer modo “movido por forças sociais externas” (idem). 79 Cf. aqui no Subcapítulo 3.9 a análise da teorização de Giddens sobre a reflexividade como característica das sociedades modernas. 80 Por isso, Boudon está de acordo com Merton em que também pela atenção que deram à explicação de fenómenos sociais por esses efeitos compostos/perversos, filósofos como Rousseau, Adam Smith, Mandeville, Vico, Bossuet e, como mostra Boudon, tb. Marx, que as analisa como contradições (cf Giddens em CS), ou Spinoza devem ser considerados entre os percursores mais notáveis da sociologia. Mas, segundo Boudon, esta tradição (abordagem) (este paradigma p. 179 e ?), foi interrompida, após Marx, encontrando seguimento apenas em Lewis Coser e Michel Crozier; para além de Merton em 1936 com The Unanticipated Consequencies of Purposive Social Action, e do próprio Boudon. 81 A ideia de que a melhoria do bem estar colectivo pode implicar a a diminuição da felicidade individual foi retomada por Durkheim em vários pontos da sua obra. Boudon chama a atenção para que “a teoria durkheimiana da anomia pode de facto ser lida como a tomada de consciência das consequências perversas geradas por certas estruturas de competição social”, mesmo que estas contribuam, como defendem os liberalistas, e Durkheim de certo modo aceita, para o bem comum (BOUDON, 1981, p. 14) Segundo Boudon, até a justiça distributiva tem esses custos, sem que Rawls disso se dê conta.

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estratégia cooperativa obter maior benefício 82. Boudon considera que a análise que Rousseau faz desta situação esboça a teoria daquilo que, após aqui referida obra de Mancur Olson, se designa por sistemas de acção colectiva, mas a reflexão de Rousseau e Boudon diferencia-se da de Olson por se colocar claramente no domínio da ética política, que este autor parece evitar ou desdenhar 83. Provavelmente por isso, Boudon está mais interessado na teorização de Rawls do que na de Olson, como se verá um pouco mais à frente.

A situação analisada por Rousseau, como outros paradoxos analisados por filósofos no século XVII e início do século XIX, faz parte de um conjunto de situações que na moderna teoria dos jogos se designa por “dilema do prisioneiro” e cuja “estrutura de interacção” Boudon sintetiza em Efeitos Perversos e Ordem Social (Ver, BOUDON, 1981, pp. 25 e 97). O filósofo setecentista retira da análise dessa situação uma conclusão relevante para a filosofia política que é a de que a colaboração entre indivíduos livres de se descomprometerem unilateralmente do contrato pode falhar mesmo quando cada um tem vantagem em cooperar, e que, por isso, os contratantes (ou mais geralmente os homens em sociedade) podem ter interesse em criar dispositivos que os constrinjam à cooperação, nomeadamente sanções pela defecção.

Segundo Boudon, é face a este exemplo que se torna claro como “a famosa expressão “constranger o homem a ser livre”, que é retomada por Durkheim, e por Dumont (como aqui já se referiu como se verá no Subcapítulo 2.6) é uma contradição, “não no sentido lógico, mas no sentido dialéctico”, pois “a estrutura da interacção que pressupõe o axioma do Discurso sobre a Origem da Desigualdade tem como consequência o facto de os dois ‘selvagens” não poderem estar seguros de alcançar o objectivo que livremente decidiram perseguir, se não aceitarem ser constrangidos a realizá-lo”. Ver-se-á no subcapítulo seguinte, como Hegel parte desta constatação para pôr em evidência, na definição de contrato, o mútuo reconhecimento dos contraentes como homens que são livres de se comprometer e constantes no cumprimento dos seus compromissos. E BOUDON (1981, p. 25) sublinha que, estando face a efeitos perversos gerados pela total liberdade de acção característica do estado de natureza, no caso em que é pouco realista esperar a aparição da lealdade, e isso é tão mais provável quanto maior for o número de indivíduos envolvidos 84, a eliminação desses efeitos só pode ser conseguida com a introdução da constrição.

Em resumo, segundo Boudon, “a análise de Rousseau demonstra que uma mudança social fundamental, a institucionalização da constrição, pode resultar dos efeitos perversos gerados pelo «estado de natureza» [ou seja sem lealdade nem quaisquer restrições à liberdade], isto é, das situações em que cada um pode agir a seu belo prazer.

82 Com base numa análise matemática semelhante às que são feitas na teoria dos jogos (que é inútil reproduzir aqui dada a divulgação que esse modelo de análise tem tido), Boudon conclui que a probabilidade de renúncia à estratégia cooperativa é tanto maior quanto menor a diferença de benefício expectável, e que portanto não se pode considerar que o resultado será sempre esse, mas somente que esse resultado pode acontecer. 83 Ver BOUDON (1981, pp. 154 e sq) a propósito dos raciocínios dos indivíduos sobre os princípios da ordem social mais justa e durável, na perspectiva de uma ocupação concorrencial dos lugares na divisão do trabalho social, e no pressuposto de um estado de natureza em que ignorassem quais as suas possibilidades reais de ocupar os cargos mais desejáveis. 84 Olson mostrou em A Lógica da Acção Colectiva como um grupo sem comunicação, desorganizado (e sem grupos antagonistas) é incapaz de produzir um bem colectivo (tanto mais certo quanto um grupo é grande e indiferenciado) Cf. BOUDON (1981, p. 169 e ss.) sobre Rawls.

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Enquanto que Hobbes, como se viu, se limita a procurar reduzir os custos sociais do conflito e da rivalidade inerente à natureza humana, Rousseau procura definir as condições em que os homens aceitariam livremente constrangimentos, ou regras que reduzem a sua liberdade nos casos em que a cooperação pode falhar mesmo que seja do interesse de todos e cada um cooperar, mesmo que todos estejam conscientes da sua vantagem e o interesse em procurar essa vantagem não seja prejudicado por quaisquer sentimentos de hostilidade e de rivalidade. O interesse teórico da definição do homem “selvagem” feita por Rousseau é este. E, nesse aspecto, ele é superior ao da concepção do “estado de natureza” por Hobbes, complicada pelos preconceitos sobre a natureza maligna dos homens. Como Rousseau compreendeu e Boudon põe em evidência em diversas passagens de Efeitos Perversos e Ordem Social, a problemática da constituição de uma ordem social justa e legítima já é suficientemente problemática sem eles. E é a partir destas concepções de Rousseau que se pode desenvolver uma ciência política que não esteja submetida a pressupostos éticos particulares. A inevitabilidade do conflito ideológico

A problemática da formação da vontade geral e da participação na sua formação, isto é, da participação e representação política, também é tratada por Boudon com instrumentos analíticos provenientes da teoria dos jogos e a partir dos efeitos da acção colectiva. BOUDON (1981, p. 52) reconhece igualmente a Rousseau ter sido primeiro a confrontar-se com “a impossibilidade de definir instituições que garantam a representação dos interesses de cada indivíduo”. No Contrato Social, o filósofo iluminista procura definir “qual o tipo de organização representativa a adoptar para que sejam eliminados os efeitos perversos semelhantes aos do dilema do prisioneiro” 85.

Este tema foi, de certo modo, retomado por Buchanan e Tullock em The Calculus of Consent (1965), e é daí que partem criticamente quer Raymond Boudon quer Mancur Olson. Em O Cálculo do Consentimento é posto em evidência que a própria eliminação [ou redução] de efeitos perversos deste tipo tem, por sua vez, custos que devem ser considerados e que podem ser mais difíceis de suportar do que os próprios efeitos perversos que se pretende eliminar; embora os autores partam do princípio de que “cada organização tende a eliminar os custos que cada um impõe aos outros em qualquer situação de interdependência” ou seja, que a função principal de qualquer organização social é a eliminação desses efeitos perversos; e dão o exemplo da regulação do trânsito pelos semáforos, a qual só é preferível para além de uma determinável intensidade de tráfico. Mas, como BOUDON (1981,pp. 52) faz notar, a determinação desse limiar pode ser ela mesma objecto de discordância. Duma maneira geral, mesmo em situações que envolvem valores éticos ou interesses diferenciados (o que, se não se considerarem os peões, não é muito claramente o caso do tráfico automóvel) com o aumento do número de pessoas envolvidas, uma repartição assimétrica do poder, ou mesmo a delegação do poder a grupos limitados, os custos são tendencialmente inferiores aos de soluções em que todos mantém uma parcela igual do poder de decisão em cada situação e em que a interdependência não é regulada por nenhuma autoridade ou instituição 86. E, como faz notar BOUDON (idem, p. 53) uma vez mais, “a determinação do tipo óptimo [cf. Pareto] de organização da interdependência não pode ser determinado a não ser em situações extremas”, sendo vasta a “zona de incerteza” em que que se pode determinar de modo “objectivo” qual a “solução preferível”, o que leva à formação de

85 Ver BOUDON (1981, p. 52), sobre os custos da organização. 86 Cf. BERGER e LUCKMANN (1967/73), ou GIDDENS (1979/2000).

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partidos a favor de uma ou outra solução. A conclusão que se pode retirar da aplicação da análise da teoria dos jogos ao problema dos custos da organização da interdependência é que “ a relação entre a distribuição da autoridade e o nível dos custos de interdependência (a intensidade dos efeitos perversos) é complexa e varia segundo os casos considerados” e em situações de vastas “zonas de incerteza” o “conceito de distribuição óptima de autoridade não faz nenhum sentido” (BOUDON, 1981, p. 53) e, por isso, os problemas de organização dão frequentemente lugar a conflitos que podem assumir a forma de conflitos de valores 87, e a distribuição óptima de autoridade, não podendo normalmente ser definida de modo “objectivo”, resultará da conclusão desses conflitos entre os grupos interessados e dará lugar a novos conflitos (Cf. BOUDON, p. 56) 88.

A objecção que Boudon coloca à ideia de Buchanan e Tullock de que seria possível basear o consenso num cálculo, pode reforçar a proposta de Habermas em Teoria do Agir Comunicacional, de procurar o consenso pela argumentação (sob certas condições). Mas como se poderá avaliar no desenvolvimento deste subcapítulo, a objecção de Boudon pondo em evidência o papel dos valores também se pode aplicar à proposta de Habermas 89. Recorrendo aos trabalhos de Thomas Shelling sobre a segregação racial, Boudon dá outro exemplo em que se chega à conclusão de que os problemas de organização dão frequentemente lugar a conflitos, mesmo que “os males sociais” não sejam “causados por ninguém” e “não sirvam a ninguém” (BOUDON, 1981, pp. 47- 57). Aí se mostra, mais uma vez fazendo recurso ao tipo de análise da teoria dos jogos, que mesmo que cada habitante de uma comunidade com dois grupos bem definidos, “tolerasse muito bem que metade do seus vizinhos fossem do grupo diferente do seu”, e só procurasse outra habitação quando esse número ultrapassasse a metade, o resultado, a mais ou menos longo prazo, seria a segregação habitacional dos dois grupos, com um número relativamente escasso a viver numa zona de fronteira. Boudon conclui que face a uma situação social não desejada e provavelmente indesejável, quanto mais não fosse pelas tensões sociais que geraria, alguns proporiam a interferência na liberdade de acção e decisão dos indivíduos, a fim de conseguir a todo o custo a eliminação do efeito perverso, enquanto outros afirmariam que a escolha da habitação é uma liberdade individual essencial e irrenunciável, ou seja, acabaria por gerar-se uma oposição ideológica que poderia não existir na origem do processo de mudança social .

No Capítulo 5 desta tese, são analisadas algumas consequências deste tipo de intervenção, depois de discutir, no Subcapítulo 3.9, o significado histórico e epistemológico do uso social dos conhecimentos sobre as sociedade e das teorias/filosofias sociais que os organizam 90. Mas note-se desde já que uma das conclusões da análise que Boudon faz das consequências sociais dos efeitos perversos e 87 Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), sobre a diferença entre conflitos de valores e conflitos de interesses. 88 Boudon relaciona esta conclusão com a teorização de Dahrendorf segundo a qual os conflitos das sociedades industriais são sobretudo conflitos relativos à distribuição da autoridade. No Subcapítulo 3.3 ver-se-á também a relação com a análise que Bourdieu faz dos conflitos de legitimidade e das lutas simbólicas em torno de princípios que devem regular as relações sociais. 89 Poderá avaliar-se em que medida, após a análise da obra de Boltanski e Thévenot sobre a existência de diferentes princípios de acordo. 90 Olson refere outro exemplo histórico ligado á problemática racial, neste caso no campo sindical. Mas estes exemplos, como muitos outros que a corrente do individualismo metodológico apresenta fazendo recurso à teoria dos jogos, têm o inconveniente de passar ao lado de um quadro de conflito racial constituído historicamente. E esta é uma crítica que se pode estender à generalidade destas abordagens. Ver também GIDDENS em A Constituição da Sociedade, (1990, pp. 331 e 343, e em BOUDON, 1981 p. 25, 57 e 179).

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dos esforços que as sociedades fazem para os reduzir é “o carácter normal do fenómeno ideológico” (idem, p. 56). Nos subcapítulos 3.2 e 3.3, ver-se-á quais podem ser os contributos de Foucault e de Bourdieu para pensar neste quadro, sem se ficar num impasse lógico, nem relativismo absoluto. No Capítulo 5, sobretudo nos subcapítulos finais (mas também nos anteriores subcapítulos 3.7 e 3.8) pode ver-se como este carácter dilemático, para que Boudon chama a atenção, caracteriza as iniciativas no campo da educação em geral, e, com particular evidência, se encontra na problemática da educação especial, na medida em que valores como a diversidade, a igualdade e a eficácia e eficiência estão em confronto.

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2.3.3. Os princípios da ordem social que podem justificar desigualdades justas -- ou, a inevitabilidade das disparidades a que leva a igualdade de oportunidades O imperativo de igualdade de oportunidades John Rawls na sua teorização da justiça social parte do tipo de raciocínio dos filósofos contratualistas, analisando as posições que poderiam ter, face a diversas concepções de justiça (princípios que presidiriam à escolha das instituições sociais em que iriam viver), homens que estivessem inicialmente numa situação (“situação originária”) em que não soubessem nada da posição particular que lhes seria atribuída na sociedade em que estariam para empenhar-se, só tendo uma consciência mínima da natureza humana e da sociedade (que inclui a noção da existência de diferenças nas qualidades naturais dos vários homens) e em que os sentimentos que teriam uns para com os outros se caracterizassem pela (referida) neutralidade que exclui a inveja e se distingue do egoísmo; sem chegar à generosidade, também não teriam uma orientação egoísta. A estes critérios, que se inspiram em Rousseau, Rawls acrescenta um outro, com origem em David Hume (e que se pode fazer remontar a Hobbes), segundo o qual esses homens apreciariam “bens primários” como as riquezas 91, o poder e o desenvolvimento da personalidade 92, mas sem estabelecerem qualquer prioridade entre eles, ou conhecerem a sua «utilidade» relativa 93.

Se a esses homens fossem dados a escolher os princípios que deveriam reger as instituições de uma futura sociedade sem que pudessem saber qual a posição particular que lhes seria atribuída nessa sociedade, eles exigiriam como primeiro princípio, segundo Rawls, que as liberdades fundamentais fossem distribuídas igualmente e que as desigualdades sociais e económicas fossem, por um lado, reguladas (através de uma “justiça distributiva”) de modo a servir melhor os interesses dos indivíduos mais desfavorecidos 94, e por outro, que estivessem ligadas a posições e funções abertas a todos em condições de “igualdade de oportunidades”.

É neste ponto que é assinalada (por Boudon, mas também pelo próprio Rawls) uma dificuldade com a qual ainda se confrontam os sociólogos que retomam esta abordagem na viragem do milénio, como Boltanski ou Dubet. É essa dificuldade que leva Rawls a atribuir um lugar central ao conceito de igualdade de oportunidades que é, não só difícil de estabelecer como é mesmo difícil de definir na prática o que seja realmente; sobretudo porque se chega à necessidade desse conceito, precisamente, a partir da constatação de que existem entre os homens diferenças de talentos naturais, que, em justiça, não deveriam influenciar a referida concorrência no acesso às posições. Analisa-se no início do Subcapítulo 2.5 como a igualdade de oportunidades se constitui para Durkheim como um imperativo. Mas também Boudon procura esclarecer como Rawls chega a esse imperativo, como o deduz.

91 Para as riquezas desempenharem o papel que aqui se lhes atribui, os bens teriam que ter um carácter totalmente desligado dos homens e ser desejáveis por todos (tal como D. Hume estabelece e se verá neste subcapítulo, um pouco mais à frente). 92 Conceitos discutíveis, e em discussão ao longo dos primeiros capítulos desta tese; como referência elementar para a discussão do conceito de poder, pode ter-se em consideração o que GIDDENS escreveu em Central Problems in Sociological Theory (2000); mas o «poder» pode aqui ser tomado no sentido de valor pessoal reconhecido ou estima pessoal (value) tal como Hobbes o entende no Capítulo X de Leviathan. 93 Também o conceito de «utilidade» teria que ser esclarecido – ver, a este propósito, BOUDON, 1981, pp. 150 e 158. 94 Cf. Locke sobre o benefício comum do uso da propriedade privada.

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A desigualdade de condições económicas é considerada logicamente admissível porque, dado o carácter não invejoso atribuído a esses homens, não haveria qualquer razão para eles exigirem como princípio a igualdade dos bens primários de que cada um viria a dispor. Aceitariam mesmo de bom grado desigualdades, desde que daí resultasse um benefício para todos, ou seja, neste caso, benefício para cada um deles. Noutra formulação, Boudon considera que um sistema não igualitário seria preferido, desde que fosse assegurado a cada um “uma quantidade de bens primários pelo menos igual à que resultaria de um sistema igualitário em que todos tivessem uma determinada quantidade de «bens primários»” 95. Segundo Rawls, não conhecendo as suas inclinações e talentos, ou pelo menos, não sabendo quais as que seriam mais valorizadas na futura sociedade, mas sabendo que existem diferenças naturais entre os homens, seria admitido o princípio de que o acesso às diferentes posições e funções deve ser estabelecido por concorrência. Mas não se percebe porque é que, a partir da situação original de Rawls, as diferentes posições e funções deveriam ser diferentemente valorizadas. Só se algumas posições, relativamente escassas, como pressupõe Rawls 96, fossem desejadas por todos de modo igual, seria necessário prever um processo de concorrência para a elas aceder. De um modo geral a necessidade de concorrência só faz sentido se se hipotizar uma situação de relativa escassez de bens primários 97. E, numa situação de escassez, só com uma hipótese ou condição suplementar se pode pressupor que o facto de alguns acederem a maior quantidade de «bens primários» não implica que os outros tenham menos bens disponíveis do que numa condição de igualdade 98.

Na medida em que as diferentes “posições e funções” fossem ocupadas em resultado de diferentes «inclinações naturais», não haveria lugar à concorrência, a não ser que a distribuição de qualidades requeridas para cada função não coincidisse com a distribuição de qualidades inerentes à inclinações naturais. Se a diferenciação daí resultante não implicasse uma desigualdade no acesso a bens primários o problema da desigualdade não se colocaria 99. Como não se colocaria se as diferenças entre os homens fossem de um tipo tal que todos aceitassem a sua posição independentemente

95 Pode ver-se BOUDON, 1981, pp. 151, desenvolvido em p. 155, e também OLSON (1998), sobre as condições de acção num grupo relativamente grande mas com desigualdades no acesso aos bens – que de certo modo tem relação com as desigualdades na ordem doméstica e na sociedade tradicional. 96 Cf. BUDON, 1981, pp. 156-7. 97 D. Hume explica, com base no conceito de simpatia, que certos bens são desejados por todos porque a sua posse estaria na base da felicidade e do valor reconhecido a quem os detém. Mas, pela sua definição, só a escassez dá a esses objectos a qualidade necessária para o desejo da sua posse poder ser a base do funcionamento e ordenamento social. Pois só a qualidade social reconhecida aos seus detentores é medida da felicidade que proporcionam, isto é da sua utilidade social. A inveja é assim, para Hume, uma qualidade necessária dos homens para poderem constituir o tipo de sociedade que considera mais adequado/viável. Ao contrário de Rousseau que tem em conta os efeitos perversos para pensar os constrangimentos da ordem social, D. Hume entende que pode ser a inveja, um sentimento considerado moralmente negativo, a poder ter, sob certas condições, o efeito de produzir a ordem social. Hume entenderia portanto, em toda a sua ambiguidade, o sentido de perversidade que Boudon assinala em efeitos da agregação de acções individuais que são diferentes dos visados. É no entanto para já mais importante o tipo de abordagem que Rousseau fez desses efeitos. 98 BOUDON (1981, pp. 154-157) considera esta situação na análise que faz da teoria da justiça de Rawls, contestando, nomeadamente, que se possa deduzir da “situação originária”, definida axiomaticamente, que as desigualdades devam ser combinadas de modo a servir o interesse do grupo mais desfavorecido. E sugere que este poderia ser mais uma condição axiomática a juntar às restantes. Voltar-se-á a esta questão depois de analisar outro problema na formulação dos princípios de justiça por Rawls e de pôr em causa o próprio princípio de desigualdade. Ver, mais à frente neste capítulo, A Smith sobre a especialização que vai muito para além das diferenças naturais entre os homens, e no Subcapítulo 2.5, a propósito de Durkheim. 99 Cf. A Smith sobre a especialização que ultrapassa largamente a diversidade natural humana.

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de desigualdades no acesso a bens – Esses eram os modelos das filosofias políticas anteriores à crise da modernidade, em que funcionavam fortes factores de conformidade e cuja legitimação não passava, nem sequer teoricamente, pelo livre consentimento dos homens.

Ver-se–á como para D. Hume essa desigualdade não só é admissível como é mesmo uma condição base. E ver-se-á também como BOLTANSKI e THÈVENOT (1991) ou DUBET (2005) tomam essa desigualdade como uma situação inevitável, tratando-se somente de discutir o que poderiam ser desigualdades justas, e considerando nessa discussão situações em que se estaria, de acordo com estes princípios, perante igualdades que poderiam ser consideradas injustas. Uma das questões que é inevitável colocar face a estes raciocínios dedutivos a partir de condições ideais do tipo do «estado de natureza» é se, mais do que deduções, não se tratará de legitimações de situações sociais de facto, historicamente produzidas (legitimações que requerem grandes operações teóricas); sendo a situação original definida e as qualidades atribuídas aos homens nessa situação em função das características das instituições que se pretende legitimar. BOUDON (1981, pp. 151-152) esboça esta crítica nas considerações que faz sobre a teoria da justiça de Rawls 100. Isso é também facilmente perceptível no modo como D. Hume define as qualidades que devem ter os homens para o desenvolvimento de uma sociedade baseada no mercado.

Mas o pressuposto de que parte Rawls, como todos os que se ocupam com este problema, é que o resultado da diferenciação é a desigualdade 101 (que tende a aumentar com a divisão do trabalho 102), e isso porque sabem ser essa a situação social real que deve ser legitimada, ou cujas condições de legitimação procuram definir. O que coloca Rawls (bem como outros pensadores que procuram legitimar a ordem social baseada nas desigualdades resultantes da concorrência) perante a necessidade de definir a “igualdade de oportunidades” como condição de justiça. Vejamos como esse conceito é problemático, nos termos do próprio Rawls.

Admitindo que os homens, na “situação originária” definida por Rawls, aceitam o princípio de que há desigualdades económicas e sociais, e de que o único modo de regular o acesso às “posições e funções” mais desejadas é a concorrência, esses homens não poderiam porém admitir (como Rawls assume) que o resultado da concorrência fosse determinado por «talentos naturais», pois, sabendo que há diferenças entre os

100 Boudon mostra como, quer Rousseau, quer Rawls, afirmam deduzir os termos do contrato a partir das características do estado de natureza. Mas realmente o que fazem é definir esse «estado de natureza» ou «situação originária» em função da ordem social que pretendem legitimar. Quando muito definem algumas condições que uma ordem social já existente deveria respeitar para ser legitima, na medida em que mereceria o consentimento de todos os homens se estes decidissem, prescindindo da sua condição real, estabelecer um contrato – que é a tarefa de uma teoria geral da legitimidade das instituições. Mas esta formulação pode ser considerada como forçando as conclusões de Boudon. Do que não pode haver dúvida é que ele contesta, nomeadamente, que se possa deduzir da “situação originária”, definida axiomaticamente, que as desigualdades devam ser combinadas de modo a servir o interesse do grupo mais desfavorecido, sugerindo que este princípio, não podendo ser “deduzido” da “situação originária” definida axiomaticamente, seja no entanto considerado no âmbito da “teoria da legitimação das instituições” (Cf. BOUDON, 1981, pp. 154-159). Numa segunda parte do capítulo, (a partir da p. 160) , Boudon analisa a teoria da justiça de Rawls como uma “teoria intuicionista” e não como uma dedução de uma situação originária à maneira das teorias de Hobbes, Hume ou Rousseau. Mas não se retoma aqui essa análise. 101 Para não dar lugar a confusões entre o reconhecimento de diferenças naturais, não hierarquizáveis, nem diferentemente valorizáveis entre os homens, e a exigência de uma paridade entre homens que poderiam ser e são diferentes, seria melhor utilizar o termo disparidade em vez de desigualdade. 102 Hà diferenças que são resultado da disparidade, e portanto, constituem-se no decurso de processos de diferenciação não procurados ou não desejados por quem os vive. Essas diferenças são inevitavelmente marcadas pela diferente valoração das situações em que se desenvolvem.

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homens mas não podendo saber qual a sua posição relativa no leque dos talentos e inclinações que seriam mais valorizados na futura sociedade, nem quais seriam decisivos para competir no acesso às posições mais desejadas, podiam recear a eventualidade de serem irremediavelmente privados do acesso às posições desejáveis, senão mesmo condenados a uma posição inferior. A única saída que Rawls encontra para este impasse é a realização da «igualdade de oportunidades», entendida tal como já anteriormente Durkheim fizera em A Divisão do Trabalho Social, como neutralização dos obstáculos que podem impedir a igualdade das condições de concorrência. Pela negativa, pode dizer-se, como faz Boudon, que “não pode ser deduzido nenhum limite à igualdade das possibilidades a partir das premissas contidas na descrição da situação original (BOUDON, 1981, p. 151). Quando se procura definir pela positiva em que deve consistir a igualdade de oportunidades, confrontamo-nos inevitavelmente com um problema teórico (para além dos aspectos práticos da realização dessa igualdade em situações sociais concretas em que os homens que já dispõem de situações mais favoráveis dispõem geralmente do poder para as defender e fazem uso dele). Pode ver-se em BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), como este tipo de problemas pode ser encarado teoricamente, mesmo mantendo o pressuposto da existência de “desigualdades justas” e incidindo, portanto, sobre a justiça das provas e dos critérios de concorrência; os factores decisivos na competição seriam então, ou a obediência, ou a inspiração, ou o sentido do risco, ou o esforço, ou o valor que resulta da opinião dos outros.

Mas o problema que aqui se formula é de outra ordem, e leva a pôr recorrentemente em causa o princípio da concorrência e a natureza das diferenças entre as posições e funções. Se fosse possível eliminar todos os obstáculos que impedem a igualdade das condições de concorrência, como resultaria do “princípio de igualdade de possibilidades” tal como Rawls o formula, de maneira a que o acesso às posições mais desejadas não fosse determinado pelos “talentos” nem por aspectos de cada situação de concorrência que impedem a igualdade formal, outras qualidades que diferenciam os homens teriam que ser decisivas para um resultado final que, na concepção de justiça que Rawls e de todos os teóricos da justiça social assente na igualdade de oportunidades defendem como legitima porque deduzível da situação originária, é inevitavelmente a diferenciação.

O carácter e, sobretudo, a vontade como factor de “justa” diferenciação entre os homens As diferenças poderiam então resultar de diferentes influências sociais sofridas por cada um e incorporadas na personalidade. Mas, como as ciências sociais foram demonstrando ao longo do século XX, elas resultariam então de diferenças na condição social, e seriam, portanto, igualmente inaceitáveis do ponto de vista da justiça social 103.

Poderia bastar conceber de forma mais alargada a competição para as posições desejadas, de maneira a incluir uma fase mais ou menos longa de preparação. Se, de entre os que desejam uma posição, só alguns (ou alguém por eles) têm a clarividência da necessidade de preparação ou dos meios adequados a essa preparação, então colocar-se-ia de novo a questão dos talentos. 103 No Subcapítulo 2.6, ver-se-á como Durkheim esboça, em A Divisão do Trabalho Social, a teorização e o estudo sociológico deste processo, mas não retira daí consequências em relação à “igualdade na concorrência”, na qual, pelo contrário, vê um princípio fundamental de justiça social, sem o qual os contratos não teriam valor. No entanto, Durkheim, que não faz um raciocínio contratual a partir de uma situação originária em que os homens estariam no estado de natureza, não vê nenhum problema em que os dons e inclinações naturais fossem decisivos na distribuição das pessoas por funções em resultado da concorrência.

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Essas diferenças decisivas na competição para as posições mais desejadas poderiam também ser entendidas como resultantes do «livre arbítrio» numa série de situações anteriores à da presente situação de concorrência. Mas um livre arbítrio que nada tivesse a ver com a inteligência, o uso da razão, ou as inclinações naturais, (e estaríamos sempre confrontados com a inaceitabilidade de uma competição decidida pelos talentos) só podia dar lugar a desigualdades justas entre os homens se estas fossem o resultado das suas opões éticas. Ora uma superioridade de uns homens em relação aos outros em função do modo ético como fazem uso do livre arbítrio remete-nos para a ética puritana que aqui foi analisada no subcapítulo anterior. Os que vencem a concorrência em condições de igualdade formal seriam os “justos” e, em última instância de análise, “eleitos por Deus”, e aqueles que os homens reconhecem como “eleitos” seriam os que vencem a concorrência em condições de justiça. Levado ao limite, quer teórica, quer praticamente, o conceito de igualdade de oportunidades encontra a concepção providencialista da ordem social 104.

Em última análise, e teoricamente, a legitimidade de uma diferenciação entre os homens que desse origem a desigualdades justas só poderia assentar nas diferenças que Deus atribuiu aos homens – e não, portanto, numa legitimidade contratual. E, na prática, a noção de “igualdade de oportunidades”, ou é relativa e remete sempre para outro contexto factor de desigualdades, anterior ou mais alargado – podendo fazer-se um uso instrumental-político-ideológico do processo de decisão do do contexto a ter em consideração 105 – ou, assumida sem relativismo e instrumentalização, só poderia servir para legitimar diferenças morais, ou seja diferenças no «carácter moral» de cada um. Ver-se-á no desenvolvimento deste capítulo, com base na obra de BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), De la justification: l’economie des grandeurs, alguns critérios em que pode basear-se o reconhecimento dos “eleitos”, ou seja, dos “grandes”, para usar um termo com que estes autores reconhecem o encontro da sua teorização com as representações sociais 106. O que é relevante numa abordagem sociológica do conceito de «igualdade de oportunidades» é analisar os usos instrumentais-ideológicos que dele têm sido feitos. É o que aqui se fará nos subcapítulos 2.5, 3.3, 3.8, e, duma forma mais focada nas políticas educativas, nos subcapítulos 5.5 e 5.6, onde se analisará a relação do conceito de «igualdade de oportunidades» com o conceito de «escola inclusiva».

Se se reconhecem diferenças de natureza entre os homens, e se admite que as desigualdades são um resultado significativo das acções sociais e da vida em sociedade, ou mesmo uma condição necessária para que os homens levem uma vida livre em sociedade, como é que se pode esperar que estas não resultem daquelas?

Por isso, BOUDON (1981) considera que as formulações de Hobbes e de D Hume não são superadas pela abordagem de Rawls, e que Rousseau se confronta de modo mais consequente com os problemas resultantes da liberdade, da igualdade e da justiça. E, por isso, é fundamental uma distinção entre os sistemas ideológicos que fazem o reconhecimento de diferenças à partida, que devem ser controladas (como de certo modo fazem Rousseau e Marx), e os que fazem a afirmação de uma igualdade formal à partida, a qual justifica as desigualdades à chegada 107. 104 Ver formulação de Weber no subcapítulo anterior. 105 Ou, nos termos de BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), os princípios que fazem o reconhecimento da grandeza por que se medem os homens, e determinam as provas e os juízos com que a grandeza é atribuída a cada um. 106 Critérios que, como atrás foi referido, vão desde a obediência ao sentido do risco, passando pelo esforço. 107 Como já se viu, TODOROV e BARCELLONA (1992), põe em evidência que numa o ponto de partida é o a priori da igualdade -- ponto de partida lógico, ético, ou ideológico (o pressuposto ou o ideal) ou ontológico -- no pressuposto cristão de todos terem sido criados por Deus irmãos e iguais, e o ponto

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Quer pelos problemas identificados ao nível teórico de formulação de princípios, quer pelos problemas resultantes do inquinamento desses princípios quando confrontados com a realidade social, a realização, na prática, da igualdade de possibilidades implicaria uma constante, ou recorrente, anulação das diferenças entre os homens resultantes de anteriores processos de diferenciação concorrencial. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) passam por esta conclusão, mas sobretudo na medida em que têm em consideração os problemas resultantes do inquinamento dos princípios. Eles também reflectem sobre as questão das acentuadas diferenças de talentos mas isso leva-os ao estabelecimento de uma condição de reversibilidade na prova 108; e, no postfacio (p. 433 e sq), à questão do “perdão” e da “suspensão do juízo”.

De uma forma que, para alguns, pode ser muito surpreendente, os autores da Economia das Grandezas põem em evidência que, a um nível teórico, a “cidade mercantil” seria a que melhor corresponde a esta ideia de renovação constante da prova. Analisam-se em seguida a caracterização que estes autores fazem dessa “cidade mercantil” e, para tornar claro como ela pode ser distinta da cidade industrial, analisa-se parte da obra de Adam Smith e de David Hume , em que os princípios desta cidade teriam sido formulados com mais clareza.

A justificação da ordem social mercantil e os seus valores, ou como aquilo que faz a grandeza mercantil pode ser o fundamento de uma ordem social e de “desigualdades justas” Para Hume e Smith, como para Rousseau, ou mesmo para Hobbes, só a identificação de um «bem comum» permite fundar uma ordem social justa. E todos eles concordam que a definição mínima desse bem comum seria uma paz social em que a aceitação de inevitáveis (ou necessárias) desigualdades não assentasse na sua imposição por meios violentos. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 60) põem em evidência como a “economia política” foi teorizada (sobretudo por Hume e Smith, mas também por Pudendorf (1771 109) e outros filósofos do sec. XVIII) a partir da questão da «paz social» (110) e, mais geralmente, no quadro de uma reflexão ética 111. de chegada é a diferença hierárquica, enquanto que, na outra, o ponto de partida é a diferença e o ponto de chegada o «encontro». 108 De forma que para alguns pode ser totalmente surpreendente, eles põem em evidência que, a um nível teórico, a “cidade mercantil” seria a que melhor corresponde a esta ideia de renovação constante da prova. 109 Ver BOLTANKI e THÉVENOT, 1991, p. 62. 110 O «interesse geral» seria a «paz social», e a regulação das relações sociais (o ordenamento social das diferenças segundo os critérios de BOLTANKI e THÉVENOT, 1991) pela concorrência para a obtenção no mercado dos bens desejados é concebida de modo a assegurar essa «paz social». D. Hume define as características que devem ter os homens e os bens de modo a permitir essa regulação das relações sociais pelo mercado. Só nesta condição os interesses particulares se podem articular com o interesse geral, ou melhor , com o bem comum que seria a «paz social» e um ordenamento das diferenças que seja justo, isto é, que poderia ser aceite por todos nos seus princípios definidores, se no seu julgamento cada homem prescindisse da posição social que ocupa de facto, ou, nos termos do raciocínio contratualista, se apreciasse a validade desses princípios na ignorância da posição que de facto ocuparia nessa ordem social feita de desigualdades justas. “O bem-estar geral” seria assegurado pelo acesso que a todos proporcionaria aos bens. Este tipo de princípio, na medida em que correspondesse às exigências de Boltanski e Thévenot (1991, cap 1), promoveria esse acesso, quer pela reversibilidade das provas, permitindo ou prometendo a todos o acesso aos bens em algum momento, quer porque, ao eliminar os estatutos e a definição de diferenças a priori que levavam à constituição de classes, evita as descontinuidades e contribui para realizar uma situação próxima da scala naturae com que alguns teólogos cristãos medievais teorizavam uma ordem em que, devido às diferenças de natureza serem mínimas, todos teriam acesso ao benefício da iluminação divina. 111 Conforme mostram BOLTANKI e THÉVENOT, (1991), em De la justification: l’économie des grandeurs (em grande parte retomando as análises de A. HIRSHMAN, 1977), e Iturra, em A Economia Deriva da

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Ela [a economia política] parte de pessoas num estado de desordem original, à medida das paixões que as movem e que as conduzem à confrontação (ao afrontamento) [... e] apresenta uma possibilidade de acordo geral mostrando como a referência a um princípio único pode transformar o ardor furioso destes afrontamentos num bem-estar geral garante da paz social. O interesse dos particulares é assim posto em relação com o interesse de todos. (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 60) 112

Sendo Adam Smith discípulo de David Hume, as ideias de um estão muito ligadas

às do outro 113. Mas, devido ao carácter mais sistemático do programa de Adam Smith, BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 63 114) elegem a obra deste como sendo aquela que melhor permite a identificação dos princípios de um acordo social em que a desigualdade na detenção (apropriação) da riqueza e a ordem social seriam justificados pela actividade mercantil e pelo bem comum que dela pudesse resultar, mas têm que fazer referência a Hume para tornar mais claras as ideias de Smith e mostrar como uma ordem social pode assentar na concorrência desenfreada dos indivíduos. Nomeadamente o modo como “a paixão pelo ganho” (ou, mais geralmente a afirmação da superioridade), que em cada homem se sobreporia à generosidade e ao bem-querer para com os estranhos (estando também o cálculo e a razão em geral a ela subordinados), pode estar na base da ordem social 115, através de um encontro/jogo de paixões que incida sobre objectos com características adequadas à apropriação:

Religião, no seu conjunto, a obra de Smith (e de Hume) pretende fazer a legitimação a nível filosófico/ético de uma realidade económica emergente, mostrando como a paz social resulta da riqueza geral, mas pondo o assento na mediação de uma relação mercantil e nas instituições. 112 Ver tb. p. 69, sobre David Hume. 113 Embora o discípulo tenha tido mais trocas intelectuais com os iluministas, nomeadamente Rousseau. 114 Para explicar isto, Smith compara as regras de justiça às regras de gramática, elaboradas muito antes de serem postas em acção (Smith do Tratado dos Sentimentos Morais, cit. in BOLTANKI e THÉVENOT, 1991,

p. 61). E procurando estabelecer “os princípios gerais das leis e do governo” (idem, p. 63), sem passar por enunciados de leis de “polícia”, como teriam feito Platão e Cícero, afirma inspirar-se em Grotius para “formar uma espécie de sistema de princípios que se devem encontrar em todas as leis de todas as nações e servir-lhes de fundamento” (idem) (Já aqui se viu, a propósito de Hayek, como esta lógica é valorizada na tradição liberal, mas pode sublinhar-se aqui, diversamente do que faz Hayek, uma exigência de sistematicidade que só pode vir da reflexão sobre esses princípios que podem estar implícitos.) A referência a um princípio é algo de essencial na caracterização da legitimidade. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, pp. 96-104) acrescentam certas exigências para que esses princípios sejam legítimos. 115 Kenneth LUX, em Adam Smith Mistake (p. 114 Chapter Four: The Mistake) faz notar que, antes de Smith, Richard Cumberland e Francis Hutcheson, dividiam a motivação humana em duas categorias: “ they were quite clearly talking about “moral sentiments” on the one hand and selfishness on the other” e que o próprio Smith parte desta divisão para a refutação do egoismo (“selfishness”) no início da sua Theory of Moral Sentiments: “How selfish so ever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature, which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he derives nothing from it, except the pleasure of seeing it.” E considera esta preocupação de Adam Smith discordante de algumas afirmações que faz em A Riqueza das Nações, onde defende que “ Self interest, rather than benevolence promotes the social good and that, in fact, self interest is more effective im promoting the social good than benevolence,” e que os actores económicos, procurando apenas o seu lucro promovem um fim que naõ estava nas suas intenções: “ It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest” (Smith , cit. in K. LUX , p. 121). É nesta afirmação de Smith que este autor vê o que designa por “O Erro de Smith”(Smith’s mistake) , ao não dizer que “It is not only from the benevolence…”. E chama a atenção para que quatro frases antes Smith faz uso dessa ideia que aqui teria sido expressa com o “only”, quando, a propósito da origem da divisão do trabalho, comparando o comportamento dos animais com o dos homens, diz que aqueles são muito independentes e têm pouca necessidade da assistência de outros, enquanto que o homem tem uma necessidade quase permanente da ajuda dos seus semelhantes e não é em vão que espera isso unicamente (only) da sua benevolência, ou, pelo menos, do amor-próprio, e procura mostrar-lhes que é também vantajoso para eles que façam o que lhes é pedido. Ideia que como aqui se viu no Capítulo 1, está na base dos sistemas sociais de prestações totais tal como Mauss o descreve. (Em La vie commune, TODOROV (1959), fazendo a comparação entre os conceitos de simpatia, em D. Hume e amizade em J-J Rousseau, mostra como esta questão está

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sendo trocados num mercado em que o seu valor é definido como resultado da conjugação entre a raridade da sua oferta e os desejos concorrenciais da sua apropriação, o desejo de apropriação desses objectos (ou melhor, da grandeza social que a sua posse proporciona na ordem social) esses objectos constituem a base para uma relação social entre os homens, definindo um interesse comum e propiciando um bem estar geral que os leva a criar e respeitar convenções, estabilizando a sociedade 116. O social (a sociedade) seria assim sede de uma racionalidade, e de uma eticidade, que cada homem singular não teria enquanto ser isolado (Cf. Hobbes, 1651/1989 117 ) 118.

insuficientemente tratada pelos filósofos ingleses do sec. XIII. Na próxima subsecção, são feitas referências às considerações deste autor.) Lux lamenta que Smith veja a benevolência como operando apenas na doação de prendas e que não conceba que ela também tem que estar presente na troca em geral, na forma de honestidade, integridade, ou justeza, e considera a omissão daquela ideia na frase sobre os vendedores tão mais grave quanto ela se tornou a base para teses académicas. Ele critica Smith sobretudo porque a sua caução do interesse egoísta sem qualquer prestação elimina completamente o problema do comportamento humano Kenneth Lux sobre o comportamento humano: “Morality is always a matter of choosing, and situations ofmoral relevance always involve conflict of interest. One has to choose between the interests of “rightness” (which can be taken to mean honesty, justice, fairness, the concerns of the other, the public, society) and the interests of the self in disregard of rightness.” (Lux, op.cit., p.127). 116 Cf. Hume, pp. 606 e ss. da ed. fr. de 1982 do Tratado da Natureza Humana, citado em BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 64, 68-70, 73 e 77. Também Montesquieu fazia notar no Espírito das Leis (1748) que “é quase uma regra geral que por todo o lado onde os costumes são suaves, há comércio; e onde há comércio, há costumes suaves” (cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 68). E nos Princípios de Economia Política de Steuart (1767) é registada uma constatação que os comerciantes e políticos seguramente vinham fazendo pelo menos desde o sec. XVI: “Na medida em que o Estado começa a alimentar-se dos produtos da indústria, menos há que temer o poder do soberano. As engrenagens da sua administração tornam-se mais complicadas e [..] ele fica (de tal modo) a tal ponto ligado pelas leis da sua economia política que qualquer transgressão lhe causa novas dificuldades (cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 69, através de Hirschman, 1982, p.

83) HIRSCHMAN (1977, 1982) reconstituiu a história do tratamento das noções de paixão e de interesse que precedem a construção do sistema de Smith (e mais geralmente as argumentações desenvolvidas a propósito do liberalismo...) através da análise de uma sucessão de elaborações intelectuais das ideias de desejo, glória, amor-próprio, vaidade, apetite, virtude, etc. Sobre estas noções pode ver-se , por exemplo, HOBBES (1989), e BOLTANSKI E THÉVENOT (1991) sobre Pudendorf, na p. 62. Fazendo referência à obra de Hirschman, BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) mostram como não é nova a ideia de fazer do concerto ou do equilíbrio naturalmente resultante das paixões de posse (as

convoitises, ou cobiças) a base da ordem social (“uma ordem que supera a a confusão dos interesses particulares”). Ver tb. TODOROV (1995, pp. 16-34), que na mesma época chama a atenção em La vie commune para a existência de uma “tradição associal” no pensamento sobre o homem e a sociedade. Desde a justiça comutativa aristotélica que os escolásticos viam na regulação das trocas de bens e serviços entre os indivíduos, à “tradição jansenista que concebe o homem como colocando no lugar de um ‘único bem’ os ‘bens aparentes’ cuja ‘divisão’ vai no entanto contribuir para ‘unir os homens de mil maneiras” (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, citando Domat, Traité des lois, 1828), passando pelas obras de Vico (1725), Hume (1739) e Montesquieu (1748). (TODOROV, foca, além de Hobbes, Pascal e Kant, Freud, para quem (p. 63) o campo das relações human as seria “semelhante ao mercado”.) Pode ver-se aí que, para Vico, que não vai muito além de Hobbes e da tradição que esta herda do pensamento dos Padres da primitiva igreja cristã, é graças à providência divina que “as paixões dos homens deixados inteiramente ao interesse privado, que os fariam viver como animais ferozes na suas solidões, estas mesmas paixões deram origem às hierarquias civis que mantém a sociedade humana” E de Montesquieu, BOLANSKI e THÉVENOT (1991) citam entre outras, as seguintes observações: “Os homens têm a felicidade de estar numa situação em que, enquanto que as suas paixões lhes inspiram o pensamento de serem maus, têm contudo interesse em não sê-lo”; e, reduzindo ainda mais o papel da razão, “Esta nação sempre tão exaltada, poderia mais facilmente ser conduzida pelas suas paixões do que pela razão que nunca produz grandes efeitos no espírito dos homens” (Montesquieu , L’esprit des lois, 1748, cit in ...) 117 Hobbes define o Estado como a personalidade (ou pessoa) de uma multidão que, na mutualidade dos multiplos pactos realizados entre os homens, cada um instituíu como o autor de actos que visam utilizar a força e os meios de todos para assegurar a paz e defesa comum, sendo denominado soberano o titular dessa personalidade (ou pessoa) (Cf. HOBBES, 1989, p.146).

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Hume e Smith identificaram, na fixação do preço dos produtos (e portanto do trabalho para os produzir) num mercado onde todos seriam livres de vender os produtos do seu trabalho e todos seriam livres de concorrer para adquirir o que mais desejassem pagando um preço mais alto, o princípio de liberdade de concorrência em que poderia assentar uma paz social justa e o estabelecimento de um novo tipo de ligação entre os homens. (De facto, a expansão dos mercados a partir do século XII constituiu na Europa um movimento de libertação de muitos camponeses e artesãos em relação à ordem feudal. 119)

118 Kenneth LUX (p. 127) assinala também a passagem sobre a mão invisível: ”Smith states that in the pursuit of self-interest the individual is ‘led by an invisible hand’ to promote the social good, although that is no part of his intention. Furthermore, by pursuing self-interest he will be more likely to promote the social good than if he intentionally sets out to do so would seem to be telling us that if we want to find people who will best promote the public good, we should choose those who are essentially pursuing their own interest” (Há aqui a afirmação da prevalência da esfera econó mica sobre a política, ou somente a revindicação da sua indepe ndência ?) Mas faz notar que ao falar dos que “realy intend to promote the public good”, Smith devia ter dito apparently e não really, para ser consistente com outras afirmações. Dito assim, a totalidade das passagens sobre os vendedores e a mão invísivel é uma contradição e uma notável condenação das intenções verdadeiramente benevolentes, “O mero uso da adequada correcção em cada passagem teria evitado a imoralidade de encontrar uma justificação teórica e intelectual em nome da economia”. (Mas no texto de Lux não é inteiramente explorada a razão disso). E K. Lux prossegue: “… But in promoting his good ends through the means of justifyingself-interest he made a fateful mistake — a mistake which allowed people of much more dubious intentions than Smith, beginning with Thomas Malthus, to find justification or their own self interests in Smith’s name and work” E lembra que, tendo Smith considerado um “midle range” da motivação humana em que um “full range” abrange as paixões, bem como os interesses (“usando as definições que Hirschman dá destas forças na história da economia”), conclui que a economia devia reentrar nesse “midle range”: “ In the middle range of motivation are the interests, and these can be classified as benevolence and self-interest , or sefishness, [usando os termos de Smith] The conflict of intersts that we have been discussing is the conflict between the upward and the downward directions on this continnun …”, e conclui que a escolha entre essas direcções corresponde à escolha entre o bem e o mal, ou entre a virtude e o vício. Na crítica a Smith, Lux conclui que: “In his doctrine of self-interest, Smith made what can be called a transvaluation. That is, he reversed the poles of the continuum of motivation, at least in the middle range. In efect he said that bad was good and good was bad” (este problema pode ser relacionado com a ausência da hierarquia de valores e de situações tal como Dumont, 1992, a analisa). E Lux faz notar quanto Smith foi influenciado pela famosa frase de Bernard de Mandeville segundo a qual “private vice is public benefit”, e Lembra que “ the misuse of language, or misleading, is an important aspect of transvaluation. For Confuncius, the path back to morality lay, at least in part, in what he called ‘the rectification of names’: immorality flourished, according with the confuncian perspective, when things and actions were not called by thjeir correct names; the most serious instance of such misleading is when what is bad is called good and vice versa.” 119 Conforme Boltanski e Thévenot fazem notar no Capítulo 1 da sua obra já referida, a elaboração de um princípio superior comum a partir de uma nova forma de elo social é acompanhada pela crítica dos elos construídos que são conformes a outros princípios. Era o caso dos elos da domesticidade (e da protecção – que aqui foram referidos em subcapítulos anteriores) que limitavam a expansão do mercado no fim da idade média e de que ainda havia resquícios de relevo no tempo de Smith. A expansão e intensificação das trocas mercantis criou uma rede de relações que escapou gradualmente às subordinações feudais e senhoriais. Essa rede de relações esteve em alguma medida na origem de movimentos sociais religiosos protestantes, sobretudo os puritanos, mas, de modo geral, deu lugar a reivindicações político-sociais dos grupos sociais ligados ao comércio, que reclamavam a eliminação dos vínculos feudais e dum modo geral, a liberdade. Mas a liberdade reclamada por estes grupos era principalmente a libertação desses vínculos. E, como já se viu no Capítulo 2.2, a eliminação de tais vínculos implicava também o fim dos dádivas e da protecção que exprimiam a grandeza na ordem social que Boltanski e Thévenot designam por “doméstica” e que foi aqui caracterizada nos subcapítulos 1.1 a 2.1. Como escreveu Smith (de A Riqueza das Nações, p. 48, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991 p. 66), “as relações económicas entre os homens deviam ficar reduzidas, na nova ordem social teorizada por Smith, à contratação, à troca directa de bens ou à compra-venda”.

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Foi Hume quem primeiro tornou claro que os bens mais adequados a serem comercializáveis devem ser objecto do desejo (convoitise) da generalidade dos homens e devem ser perfeitamente alienáveis numa troca, mas ao mesmo tempo susceptíveis de serem apropriados como bens pessoais.

Hume distingue três espécies de bens: 1) os que permitem a “satisfação interior do espírito” e dos quais “estamos absolutamente certos de dispor (fruir)” (Hume, Tratado da Natureza Humana, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 69); 2) os que nos fazem beneficiar exteriormente mas que ninguém teria nenhuma vantagem em deles nos privar; e 3) os bens destacáveis das pessoas mas susceptíveis de serem apropriados por outras pessoas, estando por isso, “expostos à violência de outrem” e podendo “ser transferidos sem sofrer perda ou alteração”, bens de que “não há uma quantidade suficiente para responder aos desejos e às necessidades de cada um” (idem, p. 69) e que têm, por isso, as características óptimas para serem colocados num mercado e o desejo concorrencial da sua apropriação poder constituir uma base para o estabelecimento de um ordem social em que as diferentes grandezas dos homens se baseiam na capacidade de apropriação desses bens desejados por todos 120(uma justificação para as “desigualdades justas”, nos termos de Rawls, adoptados por Boltanski e Thévenot).

Mas muitos bens que não têm, pelas suas características naturais ou pelo modo como os homens se foram relacionando com eles, estas propriedades, podem ser forçados a tê-las, alterando as relações “técnicas” que com eles os homens desenvolvem, ou instituindo legalmente as condições da sua utilização. No limite, todos os bens dos 1º e 2º tipo considerados por Hume, podem ser transformados em bens do 3º tipo se deles se privar os homens e se se exigir trabalho e submissão para que os homens deles possam dispor. Através do equivalente geral do trabalho, todos os bens podem ser susceptíveis de beneficiar terceiros e de serem colocados no mercado. 121 Aquilo a que temos assistido, ao longo dos últimos séculos é a um processo de comercialização de todos os tipos de bens pela sua privatização e comercialização 122.

Por outro lado, a propriedade de bens com estas características está muito ameaçada, pelo que Hume reconhece a importância das convenções sobre a propriedade dos bens e as condições da sua alienação de modo a “conferir estabilidade à posse dos bens exteriores” (Hume, Tratado da Natureza Humana, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 70). Hume justifica a apropriação privada para controlar e tornar produtivo o egoísmo que seria a característica predominante nos homens: “É para conter este egoísmo que os homens foram obrigados a se separar da comunidade e distinguir os

Hume e Smith procedem à sistematização e fundamentação ética dessa reivindicação mostrando como nela se poderia fundar uma ordem social e política viável; viável sobretudo porque, de acordo com as exigências éticas da época e a necessidade filosófica de legitimação, aceitável por todos nos seus princípios. 120 Os objectos de troca devem ser facilmente destacáveis das pessoas mas ao mesmo tempo susceptíveis de serem apropriados como bens pessoais sem sofrer perda nem alteração, só nesse estado podendo ser apresentáveis num mercado e podendo suscitar pela sua raridade, uma ordem social baseada na concorrência pela posse desses bens. 121 É também por isso que a problemática da libertação da humilhação não pode ser separada da problemática da exploração; como aqui será discutido no subcapítulo seguinte, mas desde já é conveniente fazer notar que á o “código genético” (Cf. BAUDRILLARD, 1976) do capitalismo, aqui revelado por Hume, que as liga inextricavelmente, não Marx com a teoria da praxis. E os pouco mais de duzentos anos que decorreram desde aquelas formulações teóricas têm demonstrado que não se trata de especulações. 122 Pode ver-se como isso é colocado desde MARX (1971 e 1976) e Simmel em A Filosofia do Dinheiro no cerne da análise sociológica e filosófica (Cf. SEGRE, 1990), retomados por Luckas sobre a fetichização da mercadoria e por GIDDENS (1992 e 1994) .

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seus bens pessoais dos outros” (idem) (As características que os objectos devem ter relacionam-se assim com as características dos homens que devem libertar-se de todas as dependências comunitárias e constituir-se plenamente em indivíduos caracterizados pelos seus direitos pessoais de propriedade e de autonomia contratual.) Na tradição da filosofia política inglesa Locke já estabelecera que, para ser legítima e para legitimar a troca, a propriedade tem que basear-se no trabalho, pois só dele pode resultar uma primeira apropriação legítima 123. Como ficou claro no Subcapítulo 2.2, a riqueza, no quadro da ideologia puritana, só se justificava quando usada para produzir trabalho 124.

Assim Hume retoma Locke ao escrever: “Tudo no mundo se adquire pelo trabalho” (Hume, Political Discourses, 1752, (Do Comércio) p. 12, citado em SMITH, 1999, p.120, n2). Mas Hume não atribui ao trabalho um lugar tão central. Iniciando uma tradição na argumentação liberal que já aqui se viu em Hayek, valoriza a formação endógena daquelas convenções que seriam gradualmente instituídas “pela repetição da experiência dos inconvenientes que resultam de as transgredir”. O que ocupa um lugar central na sua concepção da ordem e progresso social é a liberdade de concorrência, sobretudo no comércio, não a produção, que até pode levar a uma diminuição da raridade e portanto a fazer com que certos bens percam os atributos que fariam com que contribuissem para a ordem social 125.

Para que a paz social seja assegurada pelo livre acesso de todos – nas condições da concorrência -- aos bens desejados, estes não só podem como devem estar disponíveis no mercado 126. E, por isso, todos os vínculos dos homens com as coisas devem ser abolidos 127. Isto implicava, segundo ele, também a dissolução de vínculos entre os homens: Quer os vínculos que os impedissem de aceder ao mercado como compradores e vendedores de bens exteriores e aí realizar livremente trocas e contratos, quer os que os impedissem de aí disponibilizar o seu trabalho e contratá-lo livremente 128. Hume e Smith compreenderam que o estabelecimento das relações de mercado como modelo para a regulação das relações entre os homens requer que quer os homens quer os bens

123 Locke em 1692, justifica a propriedade privada pelo “trust”, isto é, pelo uso que dela se faz em benefício de todos. 124 Esta ideia volta a ter um lugar central na teoria social da igreja católica formulada no sec. XX (desde Rerum Novarum) e que serve de base à ideologia dos gestores filiados na Opus Dei. 125 Pode ver-se nesta problemática o princípio da distinção que BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) fazem entre a “grandeza mercantil” e a “grandeza industrial”. Assim como se pode ver aqui a problemática de Baudrillard sobre a evolução do capitalismo de uma lei do valor baseada na utilidade para uma “lei estrutural do valor” – cf. tb. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 72) sobre o preço justo, “a coisa em espécie” e o equivalente geral – só a posição de espectador imparcial informado pelo mercado permite avaliar os diferentes produtos segundo um equivalente geral, pois ela permite “harmonizar os sentimentos e as afeições dos homens” (Smith Tratado dos Sentimentos Morais, p. 15) ou faz mesmo com que partilhem a paixão pelos mesmos bens, mais do que o reconhecimento do valor dos bens para a felicidade pela simpatia). 126 Cf. MAUSS (1985) sobre os bens de raiz como a terra e vários bens móveis mas associados à família. 127 A posição histórica de Hume pode justificar esta concepção, na medida em que ele se encontrava perante um processo de estabilização da instituição da propriedade reiniciado na sequência das conquistas e usurpações medievais, talvez desde o século XI e, mais acentuadamente, desde o fim da guerra dos cem anos. Mas nos últimos séculos, para além das usurpações coloniais, temos assistido sobretudo ao alargamento da esfera da propriedade privada, ou melhor apropriável e comercializável, em grande parte à custa de instituições constituídas (convenções instituídas) gradualmente, algumas delas ao longo de milénios. Vivemos nas últimas décadas uma extraordinária aceleração desse processo. 128 Embora no limite, mas com frequência, esse contrato pudesse implicar a perda de liberdade durante períodos mais ou menos prolongados. O essencial era disponibilizar no mercado para a actividade económica muito mais intensiva, ou seja, para a reprodução do capital, a força de trabalho de multidões até restringidas a formas de produção muito menos eficazes. Só se explica que a escravatura tenha sido compatível com estas concepções liberais e até tenha registado um incremento, se se considerar a novidade que era o grau da sua disponibilização comercial.

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(que os homens identificam como podendo e devendo ser comerciados) tenham características adequadas 129.

Como é bem claro no pensamento de David Hume, a liberdade de concorrência num mercado como princípio para uma paz social e um elo entre os homens depende da prévia identificação, por todos, do que são os bens mercantis (dos bens que podem e devem ser comerciados). E conceber estabelecer uma ligação entre os homens com base na sua procura concorrencial dos bens que desejam – a ligação ou elo mercantil, “ le lien marchand”, como dizem BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) -- implica também uma certa definição da natureza humana, que David Hume explicita e que Adam Smith retoma no Tratado dos Sentimentos Morais e na Investigação sobre as Causas da Riqueza das Nações 130. Ou seja, como lembram BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 60), requer uma definição do “entendimento humano ajustada às exigências de um princípio de concorrência” 131.

Já aqui se viu, a propósito de Hayek e da tradição de pensamento liberal, como David Hume, concebe a razão humana. Para este filósofo (crítico do racionalismo e do empirismo) a razão e o cálculo estão subordinados às paixões que levam os homens à acção, não havendo “disposição do espírito humano que tenha simultaneamente a força suficiente e a orientação necessária para contrabalançar o amor do ganho.” (Hume, op. cit., p. 609, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 69) e resultando, a ordem social, do jogo em que as paixões se restringem umas às outras. O social (a sociedade) seria assim sede de uma racionalidade e de uma eticidade que cada homem singular não teria enquanto ser isolado. A razão, tal como os indivíduos humanos estão em condições de dela fazer uso, seria apropriada para “o juízo sobre as causas e os efeitos” (Hume, idem, p. 523, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 69), e os seus melhores campos de aplicação seriam a mecânica e a aritmética. O cálculo mercantil seria um exemplo de como a razão é um mero instrumento ao serviço dessa paixão pelo lucro 132. Só a “paixão pelo ganho” (ou, mais geralmente a afirmação da superioridade), que em cada homem se sobreporia à generosidade e ao bem-querer para com os estranhos, poderia estar na base da ordem social, através de um encontro/jogo de paixões que incidisse sobre objectos com características adequadas à apropriação e comercialização, mas “não influencia nenhuma das nossas acções” a não ser nessas áreas

Mas Hume só consegue explicar a universalidade da “paixão pelo ganho” ou, pelo menos, que as pessoas estejam submetidas a uma paixão principal que as oriente para a posse de certos bens caracterizados pela sua raridade 133 (condições que reconhece

129 Já se viu como Dumont assinala, nas novidades ideológicas trazidas pela Reforma, a concepção das relações entre os homens subordinadas às relações entre os homens e as coisas – Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 71, sobre Séneca. 130 Ver Smith em A Riqueza das Nações, citado em BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 65 sobre a definição da inclinação natural dos homens para o comércio, a faculdade de se entenderem num mercado, de contratar de maneira convencional. E tb nos primeiros capítulos de A Riqueza das Nações, retomando as ideias do seu amigo D. Hume mas também as de Rousseau, a importância da “simpatia” e da capacidade para assumir a posição do “espectador imparcial” (assunto que será aqui retomado). 131 Estes autores acrescentam que “esta especificação da natureza humana está mais desenvolvida na obra de Smith do que nos ulteriores tratados de ciência económica, onde se encontra geralmente confundida com a racionalidade optimizadora”. Já aqui se viu como Hayek e a corrente da racionalidade limitada vão por outro caminho, de certo modo mais próximo de Hume e de Smith, mas que, não deixando de ter preocupações éticas, não tem, neste aspecto, o rigor dos filósofos setecentistas. O que distingue as abordagens de Rawls e de BOLTANSKI (com THÉVENOT, em 1991, e com CHIAPELLO, em 1999), é precisamente o retorno das preocupações éticas ao lugar central nesta treorização. 132 Viu-se, no Subcapítulo 2.2, o lugar que Weber assinala a esta ideia na ideologia puritana. 133 BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, fazem notar que: “Para que o elo mercantil (le lien marchand) possa servir para construir uma forma de acordo, é preciso que as pessoas estejam submitidas a uma

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necessárias para o estabelecimento de uma ordem social baseada no elo mercantil), com base na ideia de que qualquer objecto que seja visto como proporcionando prazer ao seu proprietário “agrada seguramente ao espectador por uma subtil simpatia com o possuidor” (Hume, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 73) .

Assim, ao analisar as características que os homens devem ter para participarem no mercado, Hume (134) acaba por atribuir à razão um papel bem mais importante, principalmente ao considerar indispensável a capacidade de assumir a “posição de espectador”, que permite aceder a um ponto de vista comum, libertando-se da influência das ligações domésticas (aqui já não só na sua dimensão legal ou estatutária, mas na sua dimensão cognitiva; embora as duas estejam ligadas, e disso os filósofos setecentistas estariam cientes muito antes de teorizações como a de Bernstein que descreve as socializações mais limitadas ao contexto local ou a orientação para significados restritos)

135: Pois que o prazer e o interesse de cada pessoa particular são diferentes, é impossível que os homens alguma vez se encontrem de acordo nos seus sentimentos e julgamentos, a menos que escolham um ponto de vista comum de onde possam observar o objecto permitindo a este aparecer como o mesmo a todos os homens. (Hume, Tratado da Natureza Humana, p. 713 da ed fr de 1983, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 77) 136.

paixão principal que as oriente para a posse de bens, que estejam portanto próximas do seu interese particular ao contrário do que caracteriza a forma de generalidade “cívica” [isto é, a forma de generalidade que deve guiar os cidadãos na sua contribuição para a definição da vontade geral, tal como a define Rouseau].” (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 71). Cf. Pudendorf in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 62 134 Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 71, 75 e 77. 135 Para SMITH (1999, p. 48), “as relações económicas entre os homens deviam ficar reduzidas, na nova ordem social por ele teorizada , à contratação, à troca directa de bens ou à compra-venda”. Hume e Smith procedem à sistematização e fundamentação ética dessa reivindicação mostrando como nela se poderia fundar uma ordem social e política viável (até porque, de acordo com as exigências éticas da época e a necessidade filosófica de legitimação) aceitável por todos nos seus princípios. Para explicar isto Smith compara as regras de justiça às regras de gramática, elaboradas muito antes de serem postas em acção (Tratado dos Sentimentos Morais, p. 201, cit. in Boltanski e Thévenot, p. 61) (cf Hayek

sobre Chomsky ). E procurando estabelecer “os princípios gerais das leis e do governo” (TSM, pp. 404, 405, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 63), sem passar por enunciados de leis de “polícia”, como teriam feito Platão e Cícero, afirma inspirar-se em Grotius para “formar uma espécie de sistema de princípios que se devem encontrar em todas as leis de todas as nações e servir-lhes de fundamento” (idem) (Já aqui se viu a propósito de Hayek, como esta lógica é valorizada na tradição liberal, mas pode sublinhar-se agora, diversamente do que faz Hayek, uma exigência de sistematicidade que só pode vir da reflexão sobre esses princípios que podem estar implícitos.) A referência a um princípio é algo de essencial na caracterização da legitimidade. Bolt arescenta certas exigencias para que esses princípios seja legítimos.

Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 77 sobre Hutcheson, que no Inquiry Concerning Virtue também fala da posição de espectador ligado à ideia de virtude c na procura da aprovação dos outros com base na nossa bienveillance (isto pode ser relacionado com a questão da “cidade mercantil vs cidade da opinião” – E relacionado também com Cabanis e com o que TODOROV (1995) escreve sobre Ro usseau e Smith a propósito da simpatia e da consideração que faz a g randeza dos homens no sentido que permite a máxima expansão de cada um – o que por sua vez tem relação com a questão do soberano interior e da realização de si (que Todorov relaciona com o reconhecimento, tal como Hegel) 136 Daí a necessidade de que a socialização seja orientada para valores abstractos e tendencialmente universais para que os indivíduos possam participar no “mundo mercantil, que é caracterizado por uma forte racionalidade, não obstante assentar nas paixões como motivação base para cada homem” (como se viu no capítulo anterior Weber considera que o protestantismo ascético teve um papel esencial na preparação cultural para o preenchimento dessas condição (ou) Analisou-se no capítulo anterior o

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São essas características que Smith desenvolve no Tratado dos Sentimentos Morais, referindo-se nomeadamente à “posição de espectador” e à “simpatia” necessária para interpretar e tirar partido das paixões dos outros, antecipando os seus desejos e levando ao mercado (ou produzindo para levar ao mercado) os produtos que pela sua raridade podem proporcionar maiores lucros 137. A “simpatia” é apresentada como um sentimento intermédio entre paixões como a cobiça e a ganância e o interesse pelas ciências e as artes, e, de algum modo, pelo bem estar dos outros. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 77/789) referem como Smith relaciona o “espectador imparcial” com o domínio de si estóico e com o mandamento bíblico de amar aos outros como a nós mesmos: “A primeira máxima do cristianismo é de amar os outros como a nós mesmos; e o grande preceito da natureza é de não nos amarmos senão como amamos os nossos semelhantes, ou, o que vem dar ao mesmo, como os nossos semelhantes são capazes de nos amar” (Smith em Tratado dos Sentimentos Morais ? (p. 21 de ed fr de

contributo que o protestantismo ascético terá tido para o preenchimento desta condição, para a realização dessa “natureza humana”) (ou noutros mundos regidos por “acordos” igualmente assentes em “princípios de justiça”, como os que BOLLTANSKY e THÉVENOT, 1991, caracterizam, nomeadamente na referência, na p. 78/79 e nas pp. (Cf . TODOROV La vie commune, 1995, p. 16, 28 e 36) , à concepção do “soberano” por Rousseau com base na construção de uma “jurisdição interior” a cada homem, dividido desdobrado interiormente num espectador imparcial e abstracto capaz de resistir ao julgamento dos outros que, sendo sempre os que em número mais ou menos restrito, são portadores de interesses e perspectivas parciais, mas simultaneamente representando esse julgamento por todos, pelo todo social; cf. “sobredestinatário” em Bakhtine) Cf. R Iturra em “Antropologia e Educação” sobre a necessidade de uma educação que ilustre os mecanismos e os pressupostos da sociedade concorrencial em que todos vivemos, e que também pode ser feita numa perspectiva crítica (cf. Gramsci) e comparativa. Cf. Boudon, 1981, sobre Rousseau. Já se viu como WEBER, 1983 (e nos estudos sobre os camponeses/operários da Pomerânia), chama a atenção para o modo como o capitalismo selecciona as características dos homens que são necessárias para que eles participem no mercado e contribuam para racionalidade económica e social que Hume e Smith lhe destinaram e Hayek virá a reconhecer e teorizar como sendo uma racionalidade innerente à estrutura da interacção, de certo modo uma racionalidade do próprio mercado superior à de cada um dos que mele agem – embora reconheça também e valorize o processo histórico da sua formação. Ora sem a racionalidade humana que Hume põe como condição e a valorização relativamente consciente que os homens fazem das instituições que garantem a paz social, não haveria mercado e muito menos este poderia ser pensado como um modelo de interacção. O mercado com as características que Hume valoriza só se realizara até ao sec. XVII de uma forma restrita no espaço e no tempo. Weber e R. Iturra (analisando os estudos de Weber sobre a Pomerânia no final do sec XIX) mostram como o capitalismo selecciona as atitudes que são características do “Homo economicus” . 137 A sociologia americana dos anos 50, desde os funcionalistas aos interaccionistas simbólicos, desenvolveu a análise dessas características psico-sociológicas, como BOLTANSKI E THÈVENOT (1991, pp. 81 e 82) mostram a propósito de Mead. (Cf. tb. DUBAR, 1997, sobre Habermas e DUBET, 2002, sobre o interaccionismo simbólico). A concepção de uma formação cultural da consciência por Hegel pode ser considerada um desenvolvimento (relacionada com ...) destes pressupostos da economia política, que fundam a ordem social na riqueza das nações, mas através da racionalidade e da eticidade de uma ligação mercantil entre os homens, segundo as (convenções) instituições da propriedade legitimada como resultante do trabalho, do contrato entre homens livres e da troca segundo um princípio de equivalência. Sendo igualmente na “simpatia” que assenta o desenvolvimento de uma paixão comum dos homens pela posse de determinados objectos, condição base para o desenvolvimento de um jogo de trocas que permita o equilíbrio das paixões (Cf. BOLTANSKI e THÈVENOT, 1991, pp. 61 a 64 e 67, 73 ), o interesse pessoal não é, porém, concebido como a soma ou a convergência de interesses de homens isolados da sociedade mas é, esse mesmo interesse, constituído socialmente. Não fica claro até que ponto as referidas paixões são constatadas na “natureza humana” ou são fundamentalmente pressupostas como condição logicamente necessária para o desenvolvimento de um tipo de acordo social. – mais do que constatadas elas são valorizadas sendo-lhes atribuído uma generalidade e essencialidade na constituição do carácter dos homens.

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1860) –, cit. in BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 78 )” 138. Sendo igualmente na “simpatia” que assenta o desenvolvimento de uma paixão comum dos homens pela posse de determinados objectos, condição base para o desenvolvimento de um jogo de trocas que permita o equilíbrio das paixões (Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 61 a 64 e 67, 73), o interesse pessoal não é, porém, concebido como o de um homem isolado da sociedade mas é, esse mesmo interesse, constituído socialmente. Não fica claro até que ponto as referidas paixões são constatadas na “natureza humana” ou são fundamentalmente pressupostas como condição necessária para o desenvolvimento de um tipo de acordo social. Simpatia, consideração, amizade e reconhecimento Confrontando as concepções de Rousseau com o entendimento dos gregos sobre as relações entre os indivíduos, para quem “o bem implica uma relação com o outro” (Aristóteles, cit. in TODOROV, 1995, p. 26), mas sem que a diferença de posições entre o eu e outro seja tematizada, e em contraste ainda mais acentuado com as concepções misantrópicas dos estóicos e cristãos, reavivadas pelos filósofos do século XVII e XVIII, TODOROV (1995, p. 27) assinala como uma novidade absoluta a ideia do filósofo francês sobre o tipo de necessidade que os homens teriam un dos outros. Para além do “amor próprio” (que Rousseau entende como vaidade e que estaria na origem da procura de honras e glórias à custa dos outros, ou pelo menos em concorrência com eles) e entre este sentimento e o “amor de si” que pode levar ao isolamento da sociedade, Rousseau identifica um sentimento (uma atitude) humano intermédio que levaria os homens a procurarem a “consideração” dos outros, a desejarem que osutros se intressasem pela sorte de cada um 139.

Desde que vivem em sociedade (mas isso significa em relação ao tempo histórico, desde sempre [140], os homens sentem a necesidadede atrair o olhar dos outros. O orgão especificamente humano são os olhos: ‘cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por eles.’ Outrem não ocupa assim uma posição comparável à minha, mas contígua e complementar: é necessário à minha completude. (TODOROV, 1995, p. 29, citando Rousseau)

TODOROV (1995, p. 29) faz notar que para Rousseau, o homem é “um ser que tem necessidade dos outros”, e que embora os efeitos do desejo de glória e de prestígio se assemelhem aos da vaidade, trata-se para esta filósofo, diferentemente da reflexão dos moralistas dos séculos XVII e XVIII, não de um “vício”, mas de “uma necessidade constitutiva da espécie”, um “limiar para além do qual, somente, se pode falar de humanidade”, e isto porque a socialidade é para aquele filósofo não um acidente ou uma

138 Cf. referência em nota de Weber à discussão deste princípio pelos puritanos) (o que remete quer para a certificatio puritana quer para a estima da opinião pública em Hobbes e faz perceber que há uma relação entre as duas. Este conceito de simpatia pode ser relacionado com o de “consideração” em Rousseau e com o de reconhecimento e de totalidade ética em Hegel, e ainda com a solidariedade orgânica em Durkheim (ver sobre isso Cabanis, em BOLTANSKI E THÉVENOT, 1991, p.76). 139 Cf. TODOROV, 1995, p. 28/29 e 35-36; cf. BOLTANSKI E THÉVENOT, 1991, pp. 33, 36 e 78. 140 Ao introduzir a referência a Rousseau, TODOROV (1995, p. 27) alerta para que o “estado de natureza”, seria, segundo aquele filósofo escreveu no Discours sur l’origine de l’inegalité , um estado que já não existe, um estado que provavelmente nunca existiu nem existirá, mas sobre o qual é necessário ter ideias correctas para poder ajuizar bem do nosso estado presente”, acrescentando que é frequentemente esquecido que “os primeiros ‘estadios’ da humanidade, imaginados por Rousseau, resultam de ‘raciocínios hipotéticos e condicionais’ ” (TODOROV, 1995, p. 27, citando Rousseau).

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contingência, mas algo de inerente à condição humana 141. Todorov põe isso em evidência com três citações de Rousseau:

Aquele que quis que o homem fosse sociável tocou com um dedo o eixo do globo e inclinou-o sobre o eixo do universo. Com este ligeiro movimento, vejo mudar a face da terra e decidir-se a vocação do género humano. (Rousseau, Essai sur l’originen des langues, cit. in Todorov, 1995, p. 30) Toda e qualquer ligação é um sinal de insuficiência: se cada um de nós não tivesse qualquer necessidade dos outros não procuraria minimamente unir-se a eles. Rousseau, Dialogues, cit. in TODOROV, 1995, pp. 30 )

Continuando a usar expressões bem características deste filósofo, Todorov faz notar que o exercício da faculdade de nos ligarmos afectivamente, de “attacher son coeur”, a seres que nos são estranhos, tem por efeito estender e reforçar o sentimento do nosso ser, sendo esta a fonte de vícios e de virtudes. E lembra que Rousseau fala do sentimento que cada um tem da sua própria existência como um equivalente do “amor de si” relacionando-o com o “instinto de conservação” 142, mas que ao inseri-la na perspectiva da socialidade a coloca na “ideia da consideração”; citando (p. 31) a conclusão de Rousseau no Discours sur l’origine de l’inegalité... : “O Selvagem vive em si mesmo, o homem sociável, sempre fora de si, não sabe viver senão da opinião dos outros, e é, por modo de dizer, desse julgamento que retira o sentimento da sua própria existência.” Comparando este conceito de “consideração” com o conceito de “simpatia” usado por Hume e por Smith, e vendo uma influência de Rousseau, testemunhada por um a recensão elogiosa feita pelo jovem Adam Smith em 1756, TODOROV (1995,p. 32) escreve:

O que ele [Smith] admira em Rouseau é o lugar reservado à piedade e, portanto, à sociabilidade; ele está feliz por encontrar um aliado no seu combate contra as teorias associais de Hobbes, La Rochefoucauld e Mandeville. Smith considera que a visão hobbesiana não pode dar conta da simpatia, pedra angular do seu próprio sistema, e que define de modo aproximativo como a faculdade de partilhar os sentimentos dos outros, quaisquer que eles sejam..

No Tratado Sobre os Sentimentos Morais, que publica quatro anos depois, Smith

coloca a procura da consideração na base da explicação das motivações das acções humanas, nomeadamente na procura da riqueza: “A natureza, formando o homem para a sociedade, [...] ensinou-lhe a encontrar o seu prazer ou o seu sofrimento nos olhares dos outros, conforme estes são favoráveis ou desfavoráveis” (Smith, cit. in TODOROV, 1995, p. 33). Tendo assinalado o contributo de Rousseau, Todorov considera que Adam Smith vai mais longe, ou é mais claro na superação da oposição que vinha sendo afirmada entre aspirações vaidosas e utilitárias, ou, nos termos de Hirshman, hoje mais usados, entre paixões e interesses:

Neste ponto, Adam Smith dá mais um passo do que Rouseau. Este atribuía o amor de si a todos os seres vivos, a ideia de consideração e a sua perversão, o amor-próprio,

141 Por isso, como faz notar TODOROV (p. 30): “A necessidade de ser olhado, a necessidade de consideração, estas propriedades descobertas por Rousseau, têm uma extensão sensivelmente maior do que a aspiração à honra”. Este autor, seguindo Charles Taylor, vê uma explicação para tais “descobertas” nas transformações sociais de uma época em que o reconhecimento da dignidade deixa de estar assegurado pelo estatuto e passando a ser visado por um grande número, torna-se também problemático, passando a ser objecto e reflexão. 142 Cf. TODOROV, 1995, p. 28.

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somente aos seres humanos. Smith, abandona qualquer ideia de um amor de si próprio do homem e autónomo [o amor-próprio]: o amor-próprio diz a verdade do amor de si, a acumulação egoísta de riquezas não é senão um meio ara se assegurar da consideração dos outros. (TODOROV, 1995, p. 34)

Antes de passar a algumas considerações sobre o “espectador imparcial” e a

necessidade de nos “olharmos através dos olhos dos outros”, que relaciona com os conceitos de “outro generalizado” (G. H. Mead), de “sobredestinatário” (Bakhtine)`, e com os conceitos de “consciência” e de reconhecimento, cujo tratamento por Hegel analisa criticamente (TODOROV, 1995, pp. 37-46), vendo no desenvolvimento por este filósofo uma traição à ideia de Rousseau, que não vê em Smith, TODOROV (idem, p. 35) conclui que, para Smith, como para Rousseau, “a fonte de todos os juízos está na referência a outrem” e que “os valores, portanto a ética como a estética, não podem nascer senão em sociedade”. Mas, como já se viu, a análise de Smith pressupõe um tipo bem definido de sociedade, e a fundamentação de um conjunto de valores em prejuízo de outros, cujo fundamento social não é menor. Sobre o “espírito” (atitude) concorrencial Numa tradição de pensamento que se pode encontrar desde os estóicos e o padres fundadores da igreja cristã, e que foi retomada por Calvino e por Hobbes 143, Hume, Smith e os utilitaristas em geral defendem que o “espírito” (atitude) concorrencial é natural (congenial) aos homens. Viu-se, com base na análise do estudos de M. Mauss sobre as variantes mais agonísticas da troca-dádiva (ou das ofertas com retribuição diferida e com acréscimo), em que a dádiva assume um carácter de desafio e regula continuamente as posições sociais, como o sentido de superação do outro pode estar associado à distribuição de bens de modo a que todos possam beneficiar dos recursos e dos bens produzidos. Duby discute, em Guerreiros e Camponeses, em que medida o sistema de crenças e de práticas do cristianismo medieval pode ter inibido o desenvolvimento económico, mas também contribuiu para a agregação social de povos muito distintos e para converter a sua economia de pilhagem numa economia de produção, de acumulação e de investimento em obras colectivas, e, por fim, numa economia de mercados. E, se GOODY (1987) demonstrou que a actividade comercial foi compatível com todos os tipos de religiões, tendo algumas delas contribuído para o seu incremento e racionalização, também deixa em aberto a possibilidade de o desenvolvimento do comércio na zona de articulação dos continentes asiático, africano e europeu estar relacionado com o aparecimento e a expansão de religiões monoteístas universais. Weber (em larga convergência com os dados de Troeltsche e a interpretação que deles viria a fazer Dumont) procurou pôr em evidência como algumas características específicas dessas religiões, desenvolvidas por várias correntes protestantes, podem ter constituído o impulso para uma actividade económica essencialmente concorrencial (e a generalização dos princípios concorrenciais a todos os sectores de actividade e de interacção social). Numa fase de declínio de alguns aspectos dessas doutrinas, esse espírito concorrencial (numa primeira fase, mais do que a racionalidade que Weber procurou focar) foi constituído, por uma corrente de filósofos com origem em Hobbes e com destaque para David Hume 144, na base para uma nova ordem social. Para aqueles ideólogos da concorrência e do individualismo, a atitude 143 Cf. TODOROV, La vie commune, 1995, pp. 23, 40, 41, 57. 144 É importante ter em atenção às diferenças do pessimismo de Hobbes ao cinismo de Hume, e ao utilitarismo (ver tb BOUDON, 1981, p. 160) de Smith.

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concorrencial teria sido refreada pelo sistema de crenças e práticas religiosas do cristianismo medieval e só teria sido libertada pelos movimentos religiosos, mas também políticos, do protestantismo, que tinham permitido a desvinculação dos laços que uniam os homens e as coisas aos homens 145. À parte factores circunstanciais ligados à extraordinária abertura da sociedade europeia em consequência do estabelecimento de rotas marítimas de comércio intercontinental a partir do final do século XV, e que criaram novas oportunidades a grupos sociais em emergência nas sociedades que se vinham desenvolvendo nas cidades europeias, a luta pela vida estava reduzida, para a maioria dos homens (como se viu na análise que Castel fez da evolução da questão social), à luta pela sobrevivência, e a libertação dos vínculos a que se refere D. Hume significou, antes de mais, precarização das condições de vida. A atitude concorrencial é tão natural como a atitude colaborativa (desde as “prestações sociais totais”, referidas por Mauss, à troca de serviços, que Iturra descreve na Galiza rural dos anos 70 do século XX), assim como a troca de protecção por subordinação (que esteve na base do feudalismo), ou como a exigência de partilha igualitária dos recursos e a pressão social para o nivelamento dos modos de vida. Não nos podemos esquecer que a pressão social para o nivelamento dos modos de vida, foi identificado por Mauss entre os esquimós, mas também, embora de forma mais contraditória, em muitos outros povos, e que, como assinalou Weber, era também característica dos primeiros movimentos sociais puritanos, voltando a ressurgir com protagonismo na História com os levellers e com Babeuf e o seu Manifesto dos Iguais, o qual, como mostra Iturra, tem continuação no movimento operário e comunista através do neo-babeufianos 146. A procura de “distinção”, que BOURDIEU (1979) refere como estando na génese do “espaço social” francês ainda na segunda metade do século XX, e que os antropólogos identificam na base das trocas rituais do tipo do potlatch, ou de formas mais moderadas de dádiva com agonismo como o kula, será tão antiga quanto a pressão social para o nivelamento, e os etnógrafos encontram-nas muitas vezes de forma articulada 147. Mostrou-se também, no final do Subcapítulo 1.3, como a procura de posições dominantes pode passar pelo equilíbrio (a gestão) entre a acumulação e a prodigalidade distributiva 148.

Pode ser considerada uma manipulação ideológica obscurantista (149) qualquer operação teórica pela qual se pretenda fundamentar/justificar uma ordem social, ou corrigi-la, com base exclusiva, ou preponderantemente, em uma destas atitudes como sendo a mais congenial ao homem: as operações teóricas de Hobbes ou de Hume, como as conclusões de Durkheim e as de Mauss no final do Ensaio sobre a Dádiva, e ainda os princípios do comunismo que Marx assenta numa antropologia com base na obra de Feuerbach (e Habermas critica, como se verá no Subcapítulo 2.5). E, sendo ideológicas, não é tão importante discutir os seus fundamentos antropológicos quanto as suas

145 Cf. Dumont sobre a valorização das relações dos homens com as coisas e a desvalorização das relações entre os homens. E cf. HABERMAS (1987 e 1990) sobre a libertação da miséria e a libertação da humilhação. 146 Como este autor insiste em recordar, foram os neo-babaufianos de Marselha, que solicitam a Karl Marx e F. Engels, em 1848, um outro Manifesto para comemorar a morte de Babeuf. 147 Durkheim refere-se, em DTS, ao modo como a moral se constroi simultaneamente sobre essas pressões contraditórias desses tipos. 148 M. Weber e R. Iturra, analisando os estudos de Weber sobre a Pomerânia, mostram como o capitalismo selecciona as atitudes que são características do “Homo economicus” 149 No sentido em que deve ser denunciada pelos interesses particulares que serve e os pressupostos que elege, relacionando os seus pressupostos com os interesses a que está ligada e os objectivos que visa.

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implicações sociais 150. E é com essa perspectiva que aqui se aborda a análise que BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) fazem das filosofias políticas que consideram terem mais repercussões sociais desde o século XVIII.

Mais do que a atitude natural dos homens, o que está em causa é o princípio de poder, ou, mais exactamente, o princípio de dominação (assumindo a diferença estabelecida por vários teóricos do poder 151) que, sendo mais ou menos voluntariamente aceite, ordena a sociedade 152. Pensando com a ajuda de conceitos de autores como Foucault, Bourdieu e Giddens, pode concluir-se que não há princípio de poder que institui a ordem. No contexto da análise da teorização de Boltanski e Thévenot em que estes autores submetem a determinados critérios de justiça diferentes princípios de ordem social identificados pelos filósofos no decorrer do século XVIII; melhor é dizer, que, na ordem social, há características que fazem a grandeza, e na base do comum reconhecimento dessas características de grandeza, alguns filósofos procuram identificar princípios e provas que poderiam (em princípio) ser aceites por todos os homens de modo a que eles considerem justas as desigualdades 153.

150 Como também são objecto de disputa ideológica algumas consequências que lhes podem estar associadas, como o maior ou menor «progresso», ou a maior ou menor «inovação» que permitem ou promovem, ou a menor ou menor «paz social» que asseguram. Mas não é esse tipo de implicações que aqui nos interessa. 151 Ver nomeadamente ver Giddens (2000) 152 Ao contrário de Boltanski e Thévenot, assume-se, seguindo entre outros autores, como Bourdieu em O Que Falar Quer Dizer, que a origem das relações de poder em que assenta esse princípio de poder se encontra no processo histórico de constituição da grandeza (superioridade) de alguns que, tanto como a justificação e a aceitação/reconhecimento do estatuto de grandeza, constitui o princípio de dominação que é reconhecido (e temporariamente aceite) como estando na base de uma ordem social. 153 Em Portugal, como em muitos outros países, desde o fim dos anos 70, enquanto a criação de cooperativas deixou de ser estimulada ideologicamente e apoiada financeiramente pelo Estado, este e todas as organizações que com ele se articulam formando o “Estado alargado” (J. BERNARDO, 1976 e 2003) promovem o “espírito de iniciativa empresarial”. Mas, ao contrário de épocas de expansão económica, a criação de pequenas empresas é entendida, pelos “tecnólogos sociais” (GIDDENS, 1990/91 e 1979/2000) (mais do que agentes de controlo simbólico no sentido de Bourdieu) e por muitas que criam empresas pessoais, como uma alternativa ao desemprego. Estas «empresas», que rarissimamente vão além de três ou quatro trabalhadores, com vínculos quase sempre precários, participam no processo produtivo, ou seja, de reprodução multiplicativa do capital, de uma forma semelhante ao sistema do putting-out na Inglaterra do sec XVIII (O sistema de subcontratação é hoje muito mais vasto e complexo e abrange empresas de grande dimensão, mas as pequenas empresas que aqui estão em causa são comparáveis aos pequenos artesãos que no máximo se associavam a mais dois ou três trabalhadores ou mobilizavam a capacidade de trabalho da família). Numa perspectiva capitalista, esta é a melhor das hipóteses, pois, como alternativa, podem só encontrar inserção na chamada economia social, concebida como uma esfera económica que não participa na reprodução multiplicadora do capital, como fazem Caillé e o grupo MAUSS, e podem ser consideradas um sucedâneo dos «ateliês de trabalho» do século XVIII, a que Castel se refere de uma forma que já aqui foi analisada no Subcapítulo 2.2. No Ssubcapítulo 2.5, e quase a terminar a argumentação desta tese, no Subcapítulo 5.6, voltar-se-á a estas questões. Até porque a economia social e as propostas de Caillé e do grupo MAUSS têm particular relevância em relação à inserção no «trabalho», na vida activa de pessoas com discapacidades. A promoção ideológica deste “espírito” pode ser assinalada igualmente na pressão sobre os médicos (e em certa medida também sobre os professores) para que assumam numa autonomia comanditada a participação nas organizações em que trabalham. Esta seria a nova forma de conceber o profissionalismo. Mais um exemplo de reflexividade entre teoria social e acção social – desde a teorização (funcionalista) por Parsons do mandato das profissões liberais, à valorização do profissionalismo (e aos efeitos negativos dessa atitude profissionalista – Ver, sobre isto, POPKIEWITZ, APPEL, e MAUROY e CATTOMAR) e à utilização da descrição das profissões com base no paradigma do poder, por Freidson e ?, para atacar “as corporações”. Esta última descoberta dos tecnológicos sociais que “conduzem o carro de Jagrená” (GIDDENS, 1992) passa completamente ao lado da problemática do ofício e da experiência do trabalho tal como a analisa Dubet, e sacrifica (ou deixa para um segundo momento) toda a problemática do saber, da formação, e da problemática da intermediação que caberia aos técnicos e peritos entre os clientes e os

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Princípios conflituantes de justiça e ordem social Tal como já foi posto em evidência neste subcapítulo, o reconhecimento dos limites da racionalidade impõe o reconhecimento de que não existe a possibilidade de definir uma organização óptima da interdependência, e portanto existem, na maior parte das situações, conflitos em torno dessa organização da interdependência que tendem a ser conflitos ideologicamente organizados em torno de princípios. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) mostram como alguns desses princípios podem ser definidos conformemente a determinados critérios que permitiriam constituir ordens sociais justas, e distinguem, dos conflitos em que se confrontam diversos desses princípios, aqueloutros conflitos em que se desenvolve uma argumentação com base num deles; sendo que a esses dois tipos de conflito atribuem uma racionalidade superior ao conflito e à argumentação que não passa por qualquer dos princípios de julgamento que consideram justos por obedecerem a determinados critérios de justiça, ou que é um arranjo de vários princípios (BOLTANSKI e THÈVENOT, 1991, cap X). O que estes autores não discutem suficientemente são as condições que fazem com que um dos princípios se sobreponha a outro numa formação social (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, Cf Cap VII e IX) ou numa situação (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 174, 186).

É a análise desses princípios alternativos a partir das filosofias políticas do século XVIII que BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) fazem em De la justification: L’economie des grandeurs. Dos princípios para a ordem social que se deduzem da filosofia política, da ética e da economia política de David Hume e Adam Smith resultaria uma atribuição de “grandeza” com base em “provas” e “julgamentos” que valorizariam o “sentido do risco” e do aproveitamento das oportunidades para a obtenção de riqueza. Dos princípios para a ordem social que se deduzem da obra de Rousseau resultaria uma atribuição de grandeza com base em provas e julgamentos que valorizariam o sentido do bem comum, do empenhamento em obras colectivas, da colaboração, da partilha e da responsabilidade – grandeza que se exprimiria na “representatividade”. Dos princípios para a ordem social que se deduzem das propostas de Saint-Simon, em larga medida retomadas por Durkheim resultaria uma atribuição de grandeza com base em provas e julgamentos que reconhecem o mérito com base na eficácia na produção de objectos avaliados pela sua utilidade, pela eficiência no uso dos recursos, pela capacidade de programar transformações. As “provas” para atribuição de “grandeza” podem ainda basear-se noutros critérios que têm a ver com a “inspiração” e realização pessoal (referindo-se a Agostinho de Hipona, mas também toda uma corrente moderna que valoriza a criatividade de tipo artístico), a “imagem” ou “opinião” públicas (Hobbes), a obediência e sentido da pertença filial ou grupal, ou ainda a capacidade de estabelecer conexões e envolver-se em “projectos” (BOLTANSKI e CHIAPPELLO, 1999).

É fácil, de ver que todos estes critérios se encontram presentes numa amálgama em todos os níveis de organização da actividade educativa. Um dos contributos de Boltanski e dos autores com quem trabalhou é mostrar que têm diferentes fundamentos e analisar as condições para a sua articulação e coexistência ou as consequências da sua amálgama ou confrontação. Outro contributo que se pode expor rapidamente tem a ver com a recursividade das provas, as consequências de uma situação de permanente julgamento, da “suspensão” ou “perdão” dos efeitos desse julgamento. Que a grandeza seja atribuída com base em provas sempre renováveis é essencial para que a atribuição

sistemas periciais/abstractos, nos termos em que Giddens reformula profundamente, como se pode ver no Subcapítulo 3.9 desta tese.

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de grandeza não se confunda com a avaliação da pessoa em si. No entanto, uma situação de permanente julgamento é extremamente perturbadora para todos. Um dos problemas que resultam de uma escola mais virada para objectivos de valorização pessoal do que para a instrução com base em corpos de saberes bem constituídos e em competências bem identificadas e avaliáveis de forma objectiva e padronizada (de que os testes são uma forma exemplar que não se desenvolveu por acaso) é que a avaliação tende a incidir sobre as pessoas mais do sobre os seus desempenhos em tarefas/provas organizadas segundo critérios bem definidos e coerentes 154. 2.3.4 A economia autonomiza-se da ética? 155 Porque a economia (a interacção regida pela economia) acaba por constituir o modelo para a ordem social, é importante focar a análise não só na perspectiva da ética e da filosofia política que é a do Tratado dos Sentimentos Morais, mas alargando a análise à obra em que Adam Smith trata mais especificamente de economia política. Sobretudo pelas repercussões que teve no desenvolvimento da teoria económica e na acção de muitos agentes na esfera autonomizada da actividade económica. Em A Riqueza das Nações, partindo do princípio (já exposto no Tratado sobre os Sentimentos Morais 156), de que todos os homens trabalham para melhorar a sua situação, afirma que o mercado favorece uma divisão do trabalho em que cada um se dedica a fazer o que melhor é capaz, levando à produção de muito mais bens do que se cada um tivesse que produzir tudo o que necessita, e que esta divisão do trabalho, associada ao incremento das trocas, está na origem da riqueza das nações 157. Não produzindo a maior parte do que necessita para se reproduzir como indivíduo da espécie (e como membro de uma cultura), e para manter ou melhorar a sua posição social, cada homem teria que trocar a maior parte dos bens que produz por outros bens de que necessita ou deseja e que outros produzem 158, procurando obter um preço em função do que lhe custou a produção, e em função dos bens de que necessita para se reproduzir e para reinvestir na sua produção específica; preço que seria, no entanto, condicionado pela procura daquilo que tem para trocar e a oferta que outros estejam fazendo de produtos iguais ao que ele produz (SMITH, 1999, Capítulo 5). Aumentando a diferenciação das actividades e a extensão geográfica da rede de trocas, cada indivíduo deixaria de poder fazer directamente a troca com quem tem o que ele necessita ou deseja 159. Essa troca, bem como a fixação do

154 Esta questão é discutida mais aprofundadamente no Subcapítulo 3.7. 155 Reagindo de imediato à colocação desta questão, numa leitura de textos preparatórios desta tese, Raul Iturra escreve: “Seria impossível, está provado por todo antropólogo que tem feito trabalho de campo. A ética é manipulada pela economia, como Malinowski, Evans-Pritchard, Goody, Godelier, Guideri, Sahlins, salientam, entre outros, como Polanyi e a sua equipa. Quem melhor analisa a ideia, é Anton Chayanov, em 1905, em debate com V. Lenin.” 156 Ver p. 54 de ed. fr. de TSM, e BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, p. 74 157 Cf. SMITH, 1999, capítulos 1, 2 e 3 do Livro I de Riqueza das Nações. 158 Cf. SMITH, 1999, p. 89 e p. 119. 159 Já aqui se viu no Subcapítulo 1.2, com a ajuda de Mauss (ver MAUSS, 1985 sobre troca e sobre moeda) que a hipótese da troca directa como forma inicial não é muito credível: Mauss explica no Ensaio sobre a Dádiva porque é que ela deve ser considerada uma simplificação de sistemas complexos de troca-dádiva. E nesse subcapítulo foi usada a expressão “oferta com retribuição diferida”, precisamente para chamar a atenção para o diferimento na estruturação da sociedade, cultivando a interdependência entre os homens. Claro que o tipo de interdependência promovido pelo mercado com as características que Hume e Smith valorizam é completamente diferente da interdependência que dá lugar a instituições como o kula ou o potlatch.

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preço, passaria assim a ser mediada por um mercado de carácter mais abstracto em que é usado um meio de troca, nomeadamente a moeda, mas que tem como referência um equivalente geral para as trocas que é o trabalho que o dinheiro pode comprar (idem, p. 119). Em resultado da especialização do trabalho e do comércio a longa distância, teriam surgido no mercado bens que pela sua raridade seriam objecto de particular concorrência de desejos, alcançando preços que não tinham uma relação tão directa com o que custava produzi-los e levá-los ao mercado, proporcionando lucros aos que os comerciavam (idem, pp. 160 e sq.). Esse mercado, determinando os preços através da relação entre oferta e procura (resultante da necessidade e do desejo de bens) num espaço indefinido (e num tempo em que se entrecruzam os ciclos do consumo, da produção e do reinvestimento do dinheiro acumulado), orientaria a escolha da produção a realizar (idem, p. 163/4), cada vez mais, em função de necessidades abstractamente definidas pelo preço que um produto pode ter no mercado (idem, Capítulo 7). Por isso, A. Smith identifica as mercadorias que podem gerar mais riqueza como sendo os bens que são desejados (ou que se podem tornar desejáveis), os “wants”, mais do que os bens necessários à estrita reprodução biológica ou mesmo de necessidades básicas e gerais associadas a formas de vida socialmente definidas, “needs” 160. Poderia dizer-se que, nesta situação, a riqueza seria aquilo que se acrescenta em cada ciclo de investimento de dinheiro, investimento em matérias-primas e provisões, produção e troca por mais dinheiro (compra e venda). Dos capítulos 6 e 7 de A Riqueza das Nações, pode concluir-se sinteticamente que, no entender de Smith, embora este não o diga claramente, esse acréscimo e as diferenças nesse acréscimo são o resultado do trabalho, entendido como capacidade de produzir com destreza, despendendo tempo e aplicando a força, mas também, e sobretudo, utilizando conhecimento dos instrumentos e processos de produção, capacidade de mobilizar e organizar outros homens para a produção (de organizar o grupo social, que pode ser só a família), e sentido do investimento em produções susceptíveis de gerar mais riqueza (idem, capítulos 6 e 7) 161.

Não implicando equivalência dos produtos trocados, nem igualdade dos indivíduos que interagem (mas tão só a sua liberdade, autonomia e legitimidade da posse), o reconhecimento do outro, da sua identidade, da sua individualidade, pode mesmo passar pelo reconhecimento da sua “grandeza” numa ordem social, num “mundo” ou numa “cidade”, conforme mostram Boltanski e Thévenot em De la justification. O ajustamento recíproco de expectativas, na troca de mercadorias ou noutras interacções pode passar pelo reconhecimento das “grandezas” dos intervenientes numa transacção comercial, definidas essas “grandezas” segundo os princípios que os actores reconheceriam como regendo essa interacção 162.

Outros princípios podem fundamentar uma “ordem social” baseada em “desigualdades justas”, como os identificados por BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) a partir da “cidade de Deus” descrita por Agostinho de Hipona 163, bem como

160 Teoria já desenvolvida no Tratado dos Sentimentos Morais, e que é deduzida dos pressupostos de D. Hume sobre o desejo e apropriação dos bens que fazem a grandeza social dos homens, como sendo a base da ordem social. 161 Optou-se, neste ponto do desenvolvimento da argumentação da tese, por uma síntese das concepções da economia política do século XVIII que não segue exactamente a exposição de Smith, e que sugere o desenvolvimento de uma sociedade mercantil, e depois capitalista, a partir da produção artesanal e da organização corporativa da sociedade segundo uma lógica predominantemente “industrial”, porque se entendeu que essa leitura da história estaria mais próxima da que faziam Hegel e Marx, cujas ideias constituem o foco da análise na secção seguinte.) 162 Cf. interaccionismo e Berger e Luckmann (1973), mas também Boltanski e Thévenot (1991), sobre “situação”. 163 O reconhecimento de uma vida de pecado a que se renuncia após o encontro com a verdade do cristianismo, ou seja, a radical assunção, pela criatura humana, da responsabilidade pela sua natureza,

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princípios da ordem e justiça na esfera doméstica, teorizados pela filosofia política do século XVIII para legitimar o poder do rei 164. É a possibilidade de haver diversos princípios a reger diferentes interacções que leva aqueles autores a definir vários princípios de “acordo” que regem “cidades” ou “mundos” dentro dos quais é mais fácil o ajustamento de expectativas e o reconhecimento de desigualdades como justas. Só num segundo momento, estes autores analisam os “conflitos”, “críticas”, “composições de compromisso” e “arranjos” que resultam da coexistência de diferentes princípios.

Importa esclarecer que, segundo os princípios puramente mercantis que

BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) identificam a partir dos tratados de A. Smith, o reconhecimento de diferenças na interacção não incidiria sobre o grau de acumulação de propriedade (165). O que faria a “grandeza” de um indivíduo neste mundo de trocas seria a contribuição para a produção de riqueza, que passaria pelo reinvestimento e pelo continuo pôr em jogo da riqueza adquirida 166. Valorizada é a sua participação no “jogo das trocas” (167) e a capacidade de interpretar e antecipar as emoções dos outros, os seus desejos, que seria inerente à capacidade de “simpatia” tal como a definem Hume e Smith, e não a liberalidade e prodigalidade como esbanjamento, o “luxo” que MARX (1971, pp. 94-95 e 102-105) refere na sua análise da disputa entre duas correntes da economia política: “... é apenas uma disputa entre a Economia Política que se tornou claramente consciente da natureza da riqueza e aquela que ainda está sobrecarregada com recordações românticas, anti-industriais” (idem, p.104 ). Fazendo notar que nenhum dos lados “sabe como exprimir correctamente o assunto em disputa” (idem), Marx vê nas diferentes argumentações a equivalência teórica entre prodigalidade e poupança, riqueza e pobreza, pois uns (entre os quais refere Lauderdale e Malthus) “admitem que desejam o luxo a fim de criar trabalho, isto é, poupança” enquanto que os outros (entre os quais Ricardo e Say) “admitem que advogam a poupança a fim de criar riqueza, isto é luxo” (cf. MARX, 1991, p. 94/95) 168.

pelos seus afectos e as suas inclinações era, para Agostinho, o início da libertação e era efeito da graça divina (Cf. comentário de R. de Monticelli, em AGOSTINHO, Confessioni, 1991, p. 351) . 164 BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) tendem a conceber esses diferentes princípios como excluindo-se mutuamente do ponto de vista lógico; desenvolvendo uma crítica aos restantes “acordos” e aos arranjos entre eles. Nesta noção de que se podem encontrar diferentes conjuntos de princípios de justiça na base da legitimação da ordem social, pode ser valorizada a ideia de que, coexistindo no espaço e no tempo, eles entram frequentemente em conflito; embora se possam desenvolver esferas relativamente autónomas onde cada conjunto de princípios se pode desenvolver separadamente até um certo ponto. O modo como aqui se faz uso dessas ideias cruza-se assim com os conceitos de esfera social e cultural, inicialmente desenvolvido por Weber e o conceito de campo social, como campo de lutas, desenvolvido por Bourdieu. 165 Ver, por exemplo, SMITH, 1999, p. 120. 166 Weber entende que historicamente esse “espírito” foi desenvolvido pelos grupos sociais que aderiram ao protestantismo ascético e, portanto, esteve associado à acumulação de riqueza resultante da sua frugalidade de hábitos e do dever de reinvestir (fazendo assim coincidir riqueza com capital), mas numa lógica em que, se se pode falar de “jogo”, não se poderia falar de “aventura” nem de riscos não calculados. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), distinguindo a cidade industrial da cidade mercantil, caracterizam esta por uma valorização desse risco e dessa aventura, mesmo que aí continue a ser usado um cálculo. 167 A obra de Ferdinand Braudel é uma referência de fundo nesta análise mesmo quando não é citada. 168 Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 80?), e ITURRA (2002a, A Economia Deriva da Religião) sobre a leitura que Torstein Veblen viria a fazer desta questão no final do século XIX.

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O valor do trabalho concreto, ou o trabalho abstracto como valor equivalente geral nas trocas? Ao longo do Inquérito sobre a Riqueza das Nações (nomeadamente entre o Capítulo 1 e o Capítulo 2 do Livro I), existe uma oscilação entre uma teoria do valor dos bens relacionada com o “custo do trabalho” (de certo modo subordinada ao princípio da troca de equivalentes, característico da filosofia do direito natural, no âmbito da qual se desenvolveu um longo debate sobre o “preço justo”) e uma teoria do valor com base (exclusivamente) na concorrência no mercado 169. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), em De la justification: l’economie des grandeurs , relacionam esta oscilação com uma tensão existente na teoria económica entre o que designam por uma “grandeza industrial”, em que o valor dos bens está relacionado essencialmente com a sua utilidade, resultando o lucro da eficácia na produção destes, e o que designam por “grandeza mercantil”, em que o valor dos bens é determinado pela sua raridade, resultando, o lucro, do sentido de investimento na produção ou comercialização dos bens mais raros ou da capacidade de fazer desejar o que se tem para vender 170.

Estes autores desenvolvem as consequências daquelas duas lógicas, e de diversos fundamentos das diferentes “grandezas” que as pessoas e coisas podem ter em diferentes “mundos” regidos, cada um, por seus “princípios de acordo” social. É na “cidade industrial” que a questão da igualdade de oportunidades se coloca como faz Durkheim (e de certo modo Rawls), ao falar em A Divisão do Trabalho Social, da questão dos talentos que devem corresponder aos méritos, embora possam ser compensados 171. A “inovação” é nesta “cidade” uma resposta a necessidades concebidas funcionalmente por analogia a organismos e máquinas 172. Na “cidade mercantil”, o que importa não é a igualdade de oportunidades mas sim que todos tenham oportunidades e que sejam recompensados os que as aproveitam maximizando os seus talentos; e mesmo em resultado de posições previamente adquiridas – como se as oportunidades fossem ilimitadas e o seu aproveitamento não fosse muitas vezes feito em prejuízo de outros, mesmo para além do simples efeito de concorrência no seu aproveitamento – o que faz com que não seja respeitado uma das exigências éticas

169 Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 62 e 64. 170 Também a evolução do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro (Cf. BOUDON, 1984, em La place du desordre) poderia ser relacionada com essa tensão ou oscilação entre o predomínio de um princípio de raridade, resultante, em grande parte, de desejos associados à procura de distinção, e um princípio de utilidade, associado à necessidade, e eventualmente à vontade, de domínio sobre a natureza (e sobre os homens); assim como a tensão entre planificação e mercado, ou a oscilação entre regulamentação e desregulamentação da actividade económica pelo Estado; oscilação que passa agora por uma fase de desregulamentação, geralmente associada ao predomínio do que é designado por ideologia neoliberal. Isto tem que ser confrontado com o apontamento do que Baudrillard escreveu sobre a passagem da lei natural do valor à lei estrutural do valor e a indecidibilidade e oscilação entre as duas, com um recuo à lei natural e ao valor de troca sempre que há uma crise económica – quando os grupos sociais dominantes sentem necessidade de afirmar a predominância simbólica do capital. Segundo BAUDRILLARD (1976/1984) a lei estrutural do valor teria vindo a sobrepor-se à definição do valor quer pela utilidade quer pela raridade (produzida na relação da procura com a oferta. Pode ver-se nos subcapítulos 3.2 e 2.4 análises de FOUCAULT (1994) e de BAUDRILLARD (1976) que, de outros modos também têm em conta essa tensão ou permitem encontrar para ela outras explicações. 171 Central em Durkheim (DTS) é a igualdade para aplicar as suas capacidades em qualquer situação, de modo a garantir uma justiça em que cada um é diferenciado segundo os seus méritos e a garantir a máxima produção/eficiência global; a questão de Boltanski e Thévenot é algo diferente. 172 Marx tb. concebia as necessidades funcionalmente mas via a sociedade e os indivíduos como organismos em permanente desequilíbrio e tensão entre si e com o ambiente. A sua concepção da mudança é por isso mais dialéctica. Cf. Boudon, em La place du desordre, sobre a “dialéctica bem temperada” e os factores de mudança social.

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definidas pelos autores de De la justification. Pode mesmo falar-se em saber criar oportunidades, sobretudo arriscando. É isso que faz a diferente “grandeza” dos homens nesta “cidade”. A “inovação” e a mudança social resultam da procura/esforço por cada um para melhorar a sua posição social. Ou mantê-la, mas, num regime em que todos estão empenhados em melhorar a sua posição concorrencialmente, só um esforço constante para melhorar a sua posição permite manter a mesma posição relativa. Porque nenhuma posição relativa está assegurada e porque não seria legítima a sua defesa por meios que contrariassem os princípios da “cidade”, há permanentemente necessidade de tudo arriscar na procura de novas oportunidades, e nesse risco, nesse contínuo relançar do jogo, surgiriam novas oportunidades também para os outros, que tivessem ficado em desvantagem em provas anteriores, mas que realmente partem sempre em desvantagem para as novas corridas. Pode considerar-se que, na realidade, há uma conjugação destas duas “cidades” e que, quando os seus princípios estão em conflito, é a posição dos mais fortes que determina quais os princípios que prevalecem 173. Por isso é tão importante que cada um aproveite as “suas oportunidades”.

Estes autores chamam a atenção para o facto de Smith começar o Inquérito sobre a Riqueza das Nações por uma abordagem da divisão do trabalho como fonte da riqueza, que retomaria de Mandeville, mas afirmar claramente, no Capítulo 2, que a divisão do trabalho “não é uma consequência da sabedoria humana”. A necessidade de trocar não resultaria da especialização da capacidade de trabalho mas sim da “inclinação para a troca” resultante do desejo do que os outros têm, que seria própria de uma “natureza humana” analisada no Tratado sobre os Sentimentos Morais.

A antropologia económica (com destaque para Malinowsky) viria a analisar a natureza das trocas numa grande variedade de sociedades, mostrando como a troca de bens, associada a trocas simbólicas e a trocas sexuais na base da estrutura de parentesco, são essenciais para a coesão social. O carácter “natural” da propensão para a troca foi assim deslocado, numa lógica funcionalista que é particularmente adequada ao “princípio industrial de grandeza”, de uma “natureza” psicológica, para a “necessidade” de coesão das sociedades. Mas permanece em questão que essa propensão para a troca e a procura de lucro esteja na base do desenvolvimento económico, ou que seja, nos termos de ambas as referidas perspectivas, o principal factor de produção de riqueza 174.

Em A Riqueza das Nações pode ver-se que Smith começa por relacionar a riqueza exclusivamente com o trabalho 175, e o valor de um bem com a quantidade de

173 Cf. BOURDIEU (1979 e 1998) sobre lutas simbólicas e cf. BAUDRILLARD sobre indicidibilidade entre o valor de troca/lei de utilidade e a lei estrutural do valor. Também podem ser circunstâncias históricas, que escapam temporariamente de modo total ao controlo das classes dominantes, a tornar um dos sistemas de princípios prevalecente (Cf. BOUDON, 1984, sobre os factores e as modalidades da mudança social). 174 Algumas obras de síntese no âmbito da antropologia mostram a evolução desse debate: l’Essai sur le don, de Marcel Mauss, l’Enigme du don, de Maurice Godelier e, mais recentemente, Eu Dou, Tu Retribues: A Mais-valia na Reciprocidade de Raul ITURRA (2007). Além de Malinowsky, é passagem obrigatória nesse debate a obra de Emile Durkheim. Raul ITURRA (2002 e 2007) coloca-a (juntamente com a obra de Mauss) na charneira entre as problemáticas do socialismo e o desenvolvimento das ciências sociais. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, p. 64) sublinham o papel de Durkheim como reorganizador do “acordo” social com base nos princípios de uma lógica “industrial” definida inicialmente por Saint-Simon, de modo a articulá-la com o “acordo” social tal como o define Rousseau; definindo, sobretudo com o conceito de “solidariedade orgânica”, as bases para o Estado Social. 175 É também importante, por outro lado, fazer notar que o trabalho, tal como o concebe A. Smith, não coincide com o trabalho produtivo no sentido restrito do trabalho do artesão (ou o que começava a ser, então, o trabalho do operário fabril), de que resulta um produto -- ao contrário do que parece estar subjacente em algumas referências de HABERMAS (1987) ao conceito de trabalho em Hegel. Na

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trabalho que se pode comprar (com esse bem ou com dinheiro obtido da venda desse bem), identificando assim o trabalho como equivalente geral nas trocas:

O verdadeiro preço de todas as coisas, aquilo que elas, na realidade, custam ao homem que deseja adquiri-las é o esforço e a fadiga em que é necessário incorrer para as obter. Aquilo que uma coisa realmente vale para o homem que a adquiriu e que deseja desfazer-se dela ou trocá-la por outra coisa, é o esforço ou a fadiga que ela lhe pode poupar, impondo-os a outra pessoa [...] O trabalho foi o primeiro preço, a moeda original com que se pagaram todas as coisas. (SMITH, 1999, p. 119/120).

Seria somente devido à dificuldade em medir o trabalho (comparando trabalhos com características muito diferentes) que o valor na troca não pode ser calculado em “trabalho”, dando lugar à fixação do preço pelo “ajuste do mercado, de acordo com aquela espécie de igualdade que, embora não seja exacta, é suficiente para permitir levar a cabo as actividades da vida corrente” (idem, p. 121).

Estes pressupostos são sensivelmente diferentes dos que são desenvolvidos a partir do Capítulo 6. Mas já no Capítulo 5 se encontra uma referência ao diferente valor que o mesmo trabalho pode ter para quem trabalha e para a pessoa que com ela contratou a prestação desse trabalho: “embora iguais quantidades de trabalho tenham sempre o mesmo valor para o trabalhador, à pessoa que o emprega parecem ter, em certas ocasiões, um valor superior ao que têm noutras” (idem, 124). Isto porque, conforme faz notar Smith, a prestação do trabalho é trocada por quantidades dos mesmos bens que podem ser diferentes em várias ocasiões. A submissão do trabalho à mesma lógica de mercado que os outros bens, que resulta naturalmente do seu carácter de equivalente geral, coloca problemas que Smith nunca analisa 176. Nesta passagem resolve o problema dizendo que “ao patrão, o preço do trabalho parece variar como o das outras coisas, [mas] na realidade, são os bens que numas ocasiões são baratos e noutras caros” (idem).

Também começa por pressupor, no início do Capítulo 6, que, inicialmente, a totalidade do produto do trabalho pertencia integralmente ao trabalhador (cf. p. 148 e p. 174) mas com a apropriação particular da terra e de outras fontes de matérias primas, e com a gradual acumulação de riqueza susceptível de ser investida no processo de produção -- ou seja, capital --, considera justificado que o produto do trabalho seja partilhado com a renda e a remuneração do capital. A apropriação da terra é remetida para uma fase anterior aos “aumentos mais consideráveis da capacidade produtiva do trabalho” e nunca é justificada por uma lógica económica; sendo a renda legitimada

complexa diversificação das actividades económicas a que Smith faz referência, há operações de transporte, armazenamento, distribuição, inspecção, direcção, selecção, concepção, e outras de carácter ainda mais abstracto, como a promoção de valor dos bens que se tem para vender fazendo incidir sobre eles o desejo de grande número de homens, operações de negócio em geral, que no entender de Smith são igualmente trabalho, ou seja, fonte de riqueza e fundamento de apropriação – as quais, pelo que foi referido no parágrafo anterior, podem mesmo estar entre as formas de trabalho que mais riqueza produzem. 176 Pode considerar-se que a definição do trabalho como equivalente geral, mais do que valorizar o trabalho, constitui o fundamento da apropriação por outrem de todo e qualquer trabalho (e não só o do escravo) e, portanto, do carácter alienado da acção do homem assalariado. Ela seria a legitimação do assalariamento de homens livres e iguais (numa época em que o trabalho ainda era socialmente valorizado, de forma claramente negativa, como uma condenação, e em que a divisão social se baseava na distinção entre trabalho manual – mecânico (cf. CASTEL (1995) sobre Halbwachs? E MARX (1971) sobre J S Mill e a montagem) – e actividade criadora de riqueza). Por outro lado, a problemática do «preço justo» aplicada ao trabalho como mercadoria é ainda mais controversa.

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somente porque, considerada a posse da terra como um facto prévio (exterior 177) a qualquer processo produtivo e sendo o seu uso disponibilizado no mercado, este tem um preço resultante da sua raridade. A justificação que começa por ser apresentada para a parte do capital no produto do trabalho é semelhante:

Logo que começa a existir riqueza acumulada nas mãos de determinadas pessoas, algumas delas utilizá-la-ão naturalmente para assalariar indivíduos industriosos [178] a quem fornecerão matérias primas e a subsistência [só a garantia de subsistência, pelo menos ao longo de todo o ciclo económico de abastecimento, produção e venda, faria sentido], a fim de obterem um lucro com a venda do seu trabalho, ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor das matérias-primas. Ao trocar-se o produto acabado, por dinheiro, por trabalho ou por outros bens, numa quantidade superior à que seria necessária para pagar o preço das matérias primas e o salário dos trabalhadores, parte dela tem que constituir o lucro do empresário do trabalho, que arrisca o seu capital nessa aventura. O valor que os trabalhadores acrescentam às matérias primas consistirá, portanto, neste caso, em duas partes, uma das quais constituída pelos respectivos salários, a outra pelos lucros do patrão, relativos ao volume de matérias primas e salários por ele adiantados. Ele não teria qualquer interesse em empregá-los se não esperasse obter, coma venda do seu trabalho, um pouco mais do que o necessário para reconstituir a sua riqueza inicial... (idem, p. 148/9, cf p. 175) 179

E, um pouco mais à frente, Smith faz notar que “neste estado de coisas [...] deixa de ser a quantidade de trabalho habitualmente empregue na produção de um bem, o único

177 Cf. MARX (1971) sobre a propriedade territorial como a primeira forma de propriedade privada, mas esta já resultante do trabalho alienado. Para MARX (1971, pp. 31, 33, 37 e 40-43) o trabalho começou por ser alienado pela forma de apropriação da natureza que realizava e de que resultam objectos apropriáveis e susceptíveis de troca e não imediatamente fruíveis (p. ) 178 SMITH constata (idem, p. 176) que é muito rara a situação em que um trabalhador disponha do capital suficiente para comprar as matérias-primas e se manter até vender o produto do seu trabalho, mas não se interroga sobre as causas desta situação. Considerando que o valor dos salários resulta da contratação entre trabalhadores e patrões (idem, p. 176), Smith admite que os intervenientes não participam na negociação em condições de igualdade: “os patrões, sendo em menor número, têm muito maior facilidade em associar-se, além disso, a lei autoriza, ou pelo menos não proíbe, as suas coligações, enquanto proíbe as dos trabalhadores” (idem, p. 176/177) (Cf Mancur OLSON). Faz também notar que, por outro lado, em situação de disputa “um proprietário, um rendeiro, um dono de uma fábrica, ou um comerciante, poderiam normalmente subsistir um ou dois anos sem empregar um único trabalhador. [...] Muitos trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana [...] A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao patrão como o patrão lhe é necessário a ele, mas a necessidade não é tão imediata.” (idem, p. 176/7) Em resultado desta relação de forças, os salários podem descer até níveis que correspondam às necessidades de subsistência do trabalhador e da sua família (cf. p. 179). Smith não retira daqui quaisquer consequências em relação ao princípio do preço do trabalho ser concebido como determinado pelo mercado, concluindo somente, sempre segundo a lógica do mercado, que os salários só tendem a subir com o acréscimo de riqueza global produzida (p. 181), e sublinhando que “não é o volume da riqueza nacional num certo momento, mas o seu contínuo acréscimo que dá ocasião à subida dos salários do trabalho” (idem, p.182) . MARX (1971, p. 100), chama a atenção para uma contradição da Economia Política ao afirmar que a procura e a oferta tendem a equilibrar-se, e ao desenvolver uma teoria específica “a teoria da população” para explicar que a oferta de homens excede a procura. As considerações sobre as vantagens ou desvantagens da “melhoria das condições de vida das classes mais baixas do povo” (SMITH, p. 196) são ilustrativas do que os trabalhadores, excluídos de forma sistemática da posse dos meios de produção, podem esperar de melhor de um ordem social baseada no mercado como regulador da ganância e de outras paixões. Ficando claro que não seria, pelo menos naquela época, mesmo na mais florescente das nações, a partilha generalizada de tais paixões a fazer participar a grande maioria dos homens numa ordem social baseada na concorrência pela posse de bens raros. (Ver também, na p. 178, a referência que faz ao carácter violento das movimentações dos trabalhadores ) 179 Note-se que a segunda destas justificações é colocada na base da taxa de juro como componente da taxa de lucro.

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factor que pode determinar a quantidade por que ele poderia, normalmente, trocar-se ...” (idem, 150). Mesmo assim, continua a ser em “trabalho” (trabalho abstracto) que se exprime ou mede “o valor real das diferentes partes componentes do preço” (idem,152)

No desenvolvimento da obra (sobretudo nos capítulos 8 e 9) é a discussão do modo como se fixam as taxas de remuneração média (que também designa por “taxas naturais”) de cada um destes factores de produção (ou factores determinantes do valor), bem como a discussão de como é determinada pelo mercado a parte de cada um desses componentes do preço180, que acaba por ser o mais relevante para a compreensão de uma lógica económica baseada no mercado, muito mais do que no trabalho 181.

Muitas descrições que Smith fez do funcionamento dos mercados na época histórica em que viveu, pelo carácter de automatismo e generalidade que lhe é reconhecido ou atribuído, passaram a estar na base de antecipações e expectativas relativas a esses mercados, e sendo partilhadas por um grande número, se não a totalidade, dos intervenientes nesses mercados, tomaram a forma de “leis do mercado” 182. O que começou por ser concebido e legitimado como uma instância de equilibração e neutralização de paixões 183, autonomizou-se primeiro como uma esfera de racionalidade própria, tendo, a lógica de reprodução do capital, imposto a necessidade de um crescimento infinito da produção de mercadorias, e acabando a economia política por se impor como pensamento dominante a toda a sociedade (e toda a mobilização de recursos materiais e humanos passou a fazer-se segundo uma lógica autónoma, como Weber entende acontecer nitidamente a partir da viragem do século XIX para o XX) com repercussões que vão muito para além da paz social como bem comum que Hume identificava como resultado e impondo constrangimentos e sofrimentos que muitos não aceitariam livremente. Por isso, a compreensão das profundas transformações económicas políticas e sociais durante o século XIX passou, no entender de Marx, pela crítica da economia política – e ainda hoje a análise da economia política e da sua crítica é indispensável para a compreensão da situação económica e social actual, e nomeadamente das políticas educacionais e assistenciais e dos seus impasses 184.

180 Cf. tb p. 227, sobre a proporção entre o juro e o lucro, e p. 228, onde refere que os lucros altos tendem a elevar mais os preços do que os salários altos; os quais, provocando imediatamente uma subida de preços, acabariam por levar a médio prazo à baixa de salários, num mecanismo de autorregulação que descreve na p. 208.

(Cf pp. 159 e 211/212, e 221, onde se refere ao efeito da “inovação”) 181 Igualmente ilustrativa é a distinção entre lucro como remuneração do capital e lucro resultante de uma venda acima do “preço natural”( idem, 160) (que já deve incluir a remuneração do capital) e que é a mais característica da actividade mercantil. O “preço natural” é o preço para que tendem os preços de mercado (idem, p. 163) O preço natural varia com as taxas naturais de salários, lucros ou rendas. Admitindo Smith admite que os preços de mercado se possam manter durante longos períodos muito acima dos preços naturais (por causas “acidentais e, por vezes naturais e, ainda, certas determinações políticas ...”) mas faz notar que nunca se mantêm por muito tempo abaixo desses preços (idem, pp. 166 a 170). 182 Cf BOUDON ou OLSON, ou GIDDENS.

É esta instituição social, constituída em contextos histórico-geográficos bem precisos e assim teorizada, com essas teorizações a influenciarem, embora em diferentes graus, as práticas de uma grande diversidade de agentes, que Hayek descreve como um processo espontaneamente formado e capaz de gerar uma racionalidade que está para além da de cada agente ou da que resultaria da aplicação do conhecimento que um grande número de agentes, por maior que fosse, poderia reunir sobre esse mesmo processo. 183 Cf. BOLTANSKI e THÈVENOT, (1991), p. 68 e 69. 184 BOLTANSKI (Com THÉVENOT, 1991) não passou por aí em De la justification, mas não pode evitar fazê-lo em Le nouvel esprit du capitalisme, uma década depois, quando a ilusão social-democrática do capitalismo democrático começou a esgotar-se. Analisar-se-á esses efeitos no Capítulo 5, depois de ter considerado, no Subcapítulo 3.9, como este carácter de reflexividade é essencial na compreensão da sociedade moderna, não permitindo qualquer concepção de desenvolvimento espontâneo das instituições,

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Na formulação de Adam Smith, segundo a qual a riqueza é resultante do trabalho e é simultaneamente a capacidade de comprar (e de evitar) trabalho, é bem visível a natureza do capital como trabalho morto acumulado. Face à limitação do trabalho vivo disponível, o crescimento infinito do capital poderia ser visado através dum enorme crescimento dos meios de produção como máquinas que, resultando também elas do trabalho, o possam substituir 185.

Com a máquina a vapor, aplicada primeiro a teares e a outros instrumentos mecânicos e depois aos transportes, e com a mobilização de novas formas de energia mais concentradas e que permitiram forjar novas ligas metálicas com que se fabricaram novos instrumentos e máquinas, ocorreu, num curto período, um aumento extraordinário dos meios de produção, o que levou a uma deslocação de investimentos de capital para a produção de maquinarias, secundarizando os investimentos no comércio 186. O contínuo aumento de produção de mercadorias, condição básica para que o sistema capitalista assegure a ordem social pelo progressivo alargamento do bem estar a camadas cada vez mais largas da população, e o acesso destas à concorrência por bens definidos pela sua raridade no mercado (escalonando no tempo o acesso de camadas da população sucessivamente mais baixas na ordem social às vagas de novas mercadorias resultantes da quase constante inovação industrial, que foi a forma que tomou a conciliação da “abundância” de mercadorias com a sua raridade, essencial ao funcionamento do mercado 187), levou a que a “grandeza” industrial se afirmasse como princípio de um “acordo” social, destacável dos princípios relacionados com a “grandeza mercantil”. E esses princípios puderam também eles desenvolver a sua racionalidade, primeiro numa esfera própria, e depois a outras esferas da sociedade, nomeadamente a administração estatal, e outros aspectos da organização da vida social, desde os transportes, ao urbanismo, à saúde pública, pela higienização e a assistência hospitalar, e à educação estatal. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), mostram como se desenvolveu, com base nesse progresso, uma composição entre os princípios do que denominam “acordo que prescindiria da sua análise racional e dos esforços que com base nessas análises se fazem para transformar essas instituições; mesmo que se tenha em conta os limites que Hayek identifica na racionalidade humana, nomeadamente, e sobretudo, pela sua tendência ao abuso, a científica e a filosófica. Tal como já foi posto em evidência neste capítulo, o reconhecimento dos limites da racionalidade impõe o reconhecimento de que não existe a possibilidade de definir uma organização óptima da interdependência e, portanto, na maior parte das situações, existem conflitos em torno dessa organização da interdependência que tendem a ser conflitos ideologicamente organizados em torno de princípios. BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) mostram como alguns desses princípios podem ser definidos conforme determinados critérios que permitiriam constituir ordens sociais justas, e distinguem os conflitos em que se confrontam diversos desses princípios dos conflitos em que se desenvolve uma argumentação com base num deles; sendo que a esses dois tipos de conflito atribui uma racionalidade superior ao conflito e à argumentação que não passa por qualquer dos princípios de julgamento que considera justos por obedecerem a determinados critérios de justiça, ou que é um arranjo de vários princípios (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, cap X). O que estes autores não esclarecem, nem discutem suficientemente, são as condições que fazem com que um dos princípios se sobreponha a outro numa formação social (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, Cf Cap VII e IX) ou numa situação (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991, pp. 174, 186). 185 Com a mecanização, a definição do trabalho humano como equivalente geral, como esforço que pode ser comprado ou evitado, é posta em causa. É por isso que BAUDRILLARD (1976) considera que o capitalismo só sobreviveu na medida em que fez afirmar na economia e em todas as actividades humanas, a lei estrutural do valor. O crescimento infinito do capital pode ser pensado como a sua reprodução infinita pela acção humana orientada pelo desejo como poder, como se poderia dizer, tendo em mente a teorização que Foucault faz do poder em O Cuidado de Si. 186 Cf. BOUDON (1984) em La place du desordre sobre as “inovações”. 187 Cf. J. BERNARDO (1976) em O Inimigo Oculto, CASTEL (1995) e BOURDIEU (1979) sobre a translação.

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industrial” e os princípios que estão na base do que designam por “acordo cívico” (associados às transformações políticas dos últimos séculos) -- composição de princípios que caracterizaria o “Estado Social”

188.

188 Também CASTEL, 1995, e TOURAINE (1997) (este numa perspectiva mais crítica), se referem a esta composição de princípios mas utilizando outra terminologia e outro quadro teórico, com uma perspectiva mais histórica e não incidindo na identificação de princípios, nem fazendo a distinção entre as especificidades de uma ordem mercantil por comparação com uma ordem industrial, como fazem BOLTANSKI e THÉVENOT (1991).

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Lutas simbólicas em torno dos princípios de atribuição ou reconhecimento de grandeza, e estrutura do espaço social Relacionando o conceito de economia das grandezas (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991) com a análise do espaço social (das posições num espaço social) da França nos anos 70, feita por BOURDIEU (1979) com base no efeito da procura de distinção e da quantidade de capital possuído em cada uma de duas formas de capital (económico e cultural), e considerando a atribuição de grandeza a uma pessoa equivalente ao reconhecimento de uma posição social, pode dizer-se que os diferentes princípios de acordo social e de justificação para a atribuição de grandeza coexistem no mesmo espaço social, e que as petições de princípio no âmbito das relações sociais que se desenvolvem com base em cada um desses princípios, bem como as críticas que são feitas na base de outros princípios, correspondem às lutas que, segundo Bourdieu, se desenvolvem em campos de luta simbólicos para definir a predominância de uma forma de capital sobre outra (ou a autonomia relativa dos campos regidos por essa forma de capital) ou as “taxas” de conversão de uma forma de capital na outro (nomeadamente de conversão de “capital cultural” em capital financeiro, ou mais geralmente económico), bem como para regular as disputas em torno do valor relativo dos vários tipos de actividade. Ao distinguir seis grandes sistemas de princípios (a que BOLTANSKI e CHIAPPELLO, 1999, viria a juntar um sétimo) que permitiriam regular de forma “justa” as relações sociais 189, e no pressuposto de que esses diferentes princípios são mobilizados num mesmo espaço social), BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) sugerem a ideia de um espaço social com muitas das características estruturais com que Bourdieu o concebe, mas em que o eixo de diferenciação horizontal definido pela posse de capital cultural (190) e algumas condicionantes sociais da sua utilização (nomeadamente, a aquisição, reprodução e conversão em capital financeiro) seriam complexificadas pela consideração de, pelo menos, quatro dos sistemas de princípios de justificação/acordo social identificados por BOLTANSKY e THÉVENOT (1991): o mercantil (marchand), o da opinião, o industrial e o cívico. Isto facilitaria a utilização daquele esquema conceptual de Bourdieu em outras situações, e permitiria compreender a evolução do próprio espaço social francês durante os últimos trinta anos. A distinção entre o “mercantil” e o “industrial” permitiria compreender muitas das recolocações ideológicas e realinhamentos políticos que nestes anos têm surgido, por vezes surpreendentemente, e que estão na base do julgamento de que deixou de haver esquerda e direita ou que essa oposição estruturante do campo político e ideológico se esbateu ou se complexificou. Voltar-se-á a essa questão, nomeadamente nos subcapítulos 2.4, 3.8 e 5.6. Para já, importa referir a importância que nos últimos anos assumiu, de forma alargada a toda a sociedade, uma atribuição de grandeza que era característica das côrtes reais europeias nos séculos XVI a XVIII) e que se pode considerar baseada na “opinião” como princípio de justificação da grandeza. Os próprios autores de De la justification terão hesitado em destacar esses princípios que fazem a grandeza pela opinião dos príncipios que fazem a grandeza mercantil. A semelhança estaria sobretudo no modo como estes dois princípios se opõem ao princípio cívico (que, inversamente, se aproxima do

189 Ou seja, princípios que permitiriam acordos sociais baseados em desigualdades justas, porque justificadas por princípios e realizadas segundo processos/provas que respeitariam critérios universais. 190 O eixo vertical é definido pela quantidade de capital económico.

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princípio de inspiração (i) na oposição ao princípio de opinião) e talvez ao doméstico (d)191. A diferenciação dos princípios do mundo mercantil e do mundo em que a grandeza resulta directamente da opinião pode ser feita pelo modo como um e outro se relacionariam diferentemente com os princípios de acordo “industrial”, de que os princípios mercantis ou as relações sociais com base no acordo “mercantil” estariam muito mais próximas e de algum modo dependentes, sobretudo na época de início do grande desenvolvimento industrial em que ocorreu a formulação filosófica desses princípios, tal como são identificados por estes autores. Na segunda metade do século XX, modificou-se muito o posicionamento relativo dos “mundos” ou das esferas de actividade em que as relações sociais (e sobretudo a “atribuição de grandeza”) são justificadas ou reguladas por princípios que, segundo aqueles autores, definem os “mundos” “cívico” (c), “industrial” (u), “mercantil” (m) e “da opinião” (o). Abandonando algum rigor na referência ao uso dos termos pelos autores a que nos vimos referindo, pode dizer-se que a esfera política (cívica?) é hoje regulada como um mercado político regido por princípios de “opinião”), que os princípios mercantis ganharam peso ou dominam mesmo a esfera económica (a esfera da produção e consumo de mercadorias e de reprodução multiplicadora de capital / capacidade de impôr trabalho). E, finalmente, mas com grande relevância para alguns conceitos aqui discutidos (nomeadamente a identidade), pode dizer-se que, num contexto de extremada concorrência num mercado globalizado e universalizado em que cada um tem que maximizar os seus recursos e a grande maioria só dispõe de si como recurso, as identidades pessoais e sociais, grandemente ligadas a relações sociais regidas por princípios de opinião (imagem), se tornam elas próprias mercadorias e objecto de investimento estratégico; grande parte do jogo político passa a fazer-se pela afirmação das identidades 192. Num contexto social deste tipo, o conceito de capital cultural, no modo restrito como BOURDIEU (1979, La distinction) o caracterizou e o operacionalizou para efeitos de investigação, tem que ser repensado. A definição que Marx (e Smith numa perspectiva industrial) dá de capital, e que Bourdieu parece ter como referência, nomeadamente na concepção do capital cultural como subordinado ao capital económico, é posta em causa, na medida em que o capital, como trabalho acumulado, passou de capacidade de evitar trabalho (Smith e a distinção social), a capacidade de o comprar (Marx e o trabalho como mercadoria, dado ser definido como equivalente geral), e mesmo de o impor (o que recoloca o acento nas relações sociais, e na necessidade de reprodução multiplicadora do capital, não só por uma lógica económica restrita de manutenção do lucro e da taxa de lucro, mas também por uma lógica de poder, de manutenção do domínio de uns sobre outros, e de poder da economia sobre a totalidade da sociedade) 193.

191 Além disso, estes autores hesitam porque na teorização de Hume e de Smith, tal como aqui já foi referido, o reconhecimento da grandeza depende essencialmente da opinião dos outros, e portanto, a riqueza seria meramente instrumental para esse efeito. Embora na teorização destes filósofos o facto de a mediação ser feita pela riqueza ou por outros elementos não seja indiferente para a ordem social. 192 Não obstante, o cuidado de Boltanski e Thévenot em excluir “cidades” ou mundos” em que ocorresse a mercantilização das pessoas. 193 Analisando nesta perspectiva o conceito de capital cultural tal como Bourdieu o define, temos que nos interrogar: Que trabalho é que o “capital cultural” pode comprar ou impor? Qual o seu modo específico de reprodução multiplicadora? O capital cultural, nesta perspectiva, só poderia ser definido como a capacidade de evitar trabalho socialmente desvalorizado e “repugnante”, ou seja aquele que na divisão entre trabalho intelectual e

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Em conclusão Nas sociedades clânicas, todos partilham uma condição económica comum, sendo muito pequenas as diferenças individuais 194 (ou pelo menos as disparidades) possíveis e admissíveis no que se refere ao uso dos recursos, para além das diferenças que resultam das diversas habilidades – e, mesmo em relação às diferenças de riqueza daí resultantes, há vários factores de nivelamento a funcionar mais ou menos automaticamente (ou seja, mais ou menos institucionalizados). O nivelamento económico era uma condição de base quer para a sobrevivência económica, ou seja a viabilidade ecológica do grupo, quer para a coesão social que mantinha o grupo como tal e que levava à sua selecção positiva como entidade cultural. As diferenças (a própria ideia de diferença) eram trabalhadas culturalmente a nível mitológico (ou ideológico – em relação com as classificações totémicas) e, se implicavam uma hierarquização (sobretudo de valores e com inversões conforme os contextos 195) esta não tinha uma relação directa com a riqueza 196. A divisão social do trabalho económico era incipiente e as diferenciações sociais ligadas sobretudo a aspectos culturais. A mais significativa divisão do trabalho, entre homens e mulheres (ou mais geralmente conforme as bioclasses -- crianças, velhos), não tinha, obviamente, um carácter hereditário, e atravessava os grupos familiares e clânicos. Nas sociedades que se desenvolveram a partir das cidades da Mesopotâmia e daí se estenderam em direcção ao Mediterrâneo e ao Atlântico, onde a concorrência e a divisão do trabalho teriam levado, no modelo de Durkheim (1991, DTS), a uma crescente individualização e à necessidade de valorizar outros factores de coesão social, a a desigualdade que acentuava as disparidades ter-se-á constituído como o facto de

trabalho manual, é remetido para o extremo deste pólo. É esse que pode ser comprado e portanto evitado. Mas isso é feito mediante o capital económico e não pelo capital cultural em si. Uma reflexão sobre estas questões aponta para que não faria sentido criar a categoria do capital cultural. O que é referido por “capital cultural” e que, nos próprios termos de Bourdieu, seriam habitus/posições sociais – ligados a consumos e práticas culturais, é susceptível de reprodução e multiplicação, mas essa reprodução não se faz fazendo trabalhar culturalmente os outros. O único sentido em que o “capital cultural” teria uma existência como forma de capital específica, que como forma específica poderia impôr trabalho, é no de princípio de regulação da divisão do trabalho nas esferas de actividade e nos campos sociais caracterizadas pelo predomínio (no sentido quantitativo) do trabalho intelectual. Aí os detentores e mobilizadores de maior quantidade de capital cultural poderiam impôr aos outros as tarefas menos desejáveis (porque mais rotineiras, sem produto valorizado e em que o esforço dispendido não é acompanhado de um aumento correspondente de capacidades pessoais). Mas resta saber se essa imposição resulta da detenção de capital cultural ou simplesmente de um estatuto (uma posição social no campo específico) para explicar o qual o conceito de capital cultural pouco ou nada adianta. Também se poderia pensar em termos de capital cultural a divisão da actividade em esferas, subesferas e campos, mas também aí teria que ser demonstrado que é a existência específica do capital numa forma “cultural” (como se pode falar na existência do capital numa forma financeira ou na forma de meios de produção mais ou menos ligado às competências de um grupo social, como certos instrumentos ou máquinas que exigem destrezas específicas só adquiríveis por longas aprendizagens, muitas vezes ligadas á transmissão familiar ou contextos de tipo comunitário) que seria determinante ou reguladora dessa diferenciação em esferas. Provavelmente a detenção desse “capital cultural” regula a distribuição dos indivíduos pelas diferentes esferas, e a posição que ocupam em cada esfera de actividade e em cada campo social dentro dela (a esfera é mais definida pelo tipo de actividade, e pela divisão do trabalho a nível macrossocial enquanto o campo é mais definido pelas relações sociais a nível micro social, ou em nível institucionais e estruturais intermédios.) 194 Mais uma vez, é de ter presente o que GOODY (1987) escreveu sobre a diversidade e a liberdade de expressão nessas sociedades. 195 Cf. DUMONT (1992). 196 Cf. MAUSS (1985), e GODELIER (1999), sobre a diferença entre os homens ricos e as hierarquias religiosas.

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base, e foi a “igualdade” que surgiu como um conceito que tem que ser trabalhado ideologicamente (nomeadamente na igualdade perante a divindade, nas religiões monoteístas). É assim que se criam as condições que fazem com que a igualdade tenha nessas sociedades um carácter relativo – como Dubet tanto insiste em mostrar, dando a entender que isso seria algo de inerente ao próprio conceito de igualdade como valor; sem procurar as origens do próprio conceito nem relativizar as condições hiostorico-sociais em que surge.

A desigualdade económica e social, de natureza essencialmente individual, embora passe pelos grupos sociais de natureza familiar ou resultantes das alianças que os indivíduos constituem a partir das suas posições de poder/riqueza (e que visam o reforço dessas posições, mesmo quando são feitas com parceiros mais fracos 197), é diferente da desigualdade resultante da ocupação de posições sociais hierarquicamente definidas (ou seja, no quadro da análise que Dumont faz de sociedades hierárquicas, diferenciações associadas a valores sociais – ou princípios socialmente valorizados – que estão sujeitos a inversões conforme os contextos). Nas sociedades individualistas, a desigualdade constitui-se como um valor, no sentido em que a concorrência é assumida ou apresentada (naturalizada) como um princípio de organização social. E o único limite à diferenciação, à desigualdade, é a necessidade de coesão social, ou melhor, o risco de ruptura, de denúncia da sociedade pelos “vencidos” (nomeadamente na medida em que a recuperação se torna impossível, ou seja, na auto-compreensão “liberal”, a partir do momento em que as desvantagens acumuladas em fases anteriores da concorrência tornam impossível qualquer participação na “concorrência”) 198.

Por isso, uma sociedade que assenta o seu dinamismo na procura de vantagens concorrenciais mantém uma relação necessariamente contraditória com o conceito de igualdade. Por um lado, esta é pressuposta como condição geral da concorrência (apresentada ideologicamente como tal; e só entre iguais faria sentido falar em concorrência justa – por isso a desigualdade (supostamente criada na corrida), a superação da igualdade, é o resultado visado; uma justificação da diferente grandeza e o escalonamento dos homens segundo uma mesma dimensão, unanimemente aceite como sendo aquela que escalona os homens e as suas posições sociais 199), apresentada como uma verificação sempre renovável de uma igual condição de base, de uma condição de igualdade (Cf. BOLTANSKI e THÉVENOT, 1991). E, nesta ambivalência, ela é relativa, ou subordinada: é uma igualdade suposta de natureza face à qual a desigualdade, a superação dessa condição de natureza é o valor social-cultural. Por outro lado, essa desigualdade não pode ser levada demasiado longe, sob risco de ruptura social face às desigualdades a que se chega; face a um grau e permanência de desigualdades que leva a pôr em causa a igualdade ideologicamente pressuposta como de natureza, e sempre renovável. Se a igualdade como valor é relativa na ordem social

197 Diferentes das alianças clânicas, que podem visar (na consciência dos indivíduos ou na estratégia grupal definida em diálogo) igualmente o reforço de posições hierárquicas, mas se inserem numa rede muito vasta de interdependências que é regulada culturalmente, isto é, de modo não necessariamente consciente (refiro-me ao sistema, identificado e caracterizado genericamente por Mauss, de ofertas-trocas-penhores de aliança que envolvem pessoas como se fossem coisas e coisas que estão possuídas, indelevelmente ligadas às pessoas que as criaram ou usaram de modo legítimo). 198 Para Durkheim, não obstante pareça não o querer assumir, a justiça social só pode ser definida em função da necessidade de coesão social e portanto do nível de conflituosidade social (latente ou manifesta, é uma questão de inteligência antecipatória da classe dominante). A paz social é, para ele, a medida da coesão. 199 Cf. Marx, nos Manuscritos Económico-filosóficos (que aqui são anlisados no Subcapítulo 2.4), sobre o dinheiro como única medida de todas as coisas. Sobre o papel social do dinheiro, ver tb Simmel.

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concorrencial-capitalista, ela é, no entanto, um conceito central, nomeadamente na sua forma igualdade—(des)igualdade.

Nas sociedades hierárquicas, a contradição de uma natureza humana suposta simultaneamente como suficientemente idêntica para dar sentido à concorrência e suficientemente diferente para constituir a base para uma desigualdade que a concorrência (as provas) verifica e justifica, não se coloca. Os homens são igualmente homens, e as diferenças sociais são socialmente constituídas, para além de diferenças naturais. As instituições sociais hierarquizam algumas dessas diferenças e constituem outras, ao mesmo tempo que, por processos de inversão da hierarquia de valores e outras instituições promovem um mínimo de participação em recursos colectivos que garanta a coesão social, ou a paz social que é (também para Durkheim) a medida da coesão).

Tal como outro teorizador da concorrência como base da ordem social, Adam Smith, admite em A Riqueza das Nações, as diferenças “naturais” estão longe de poder explicar toda a especialização de funções, que ultrapassam largamente aquelas diferenças na amplitude das diversificações e das desigualdades, mas justificam as desigualdades que se desenvolvem num quadro concorrencial, e por vezes parecem mesmo ser usadas para explicar a necessidade dessa concorrência 200.

Ao não explicitar o que caracteriza a grandeza das posições sociais pela qual todos concorrem, a análise de Durkheim não vai muito além da Adam Smith e fica aquém da teorização de Saint-Simon, que explicita os critérios de grandeza. E ao assumir, como base para a ordem social, a interdependência resultante da especialização, que por sua vez resultaria da concorrência entre os homens, está muito próximo da relação que Weber identifica nos puritanos entre a ética e a ordem social. O seu apelo à “justiça social” é demasiado vago, abrindo para um campo de contradições que Rawls analisou, e Boltanski e Thévenot retomam em De la Justification.

É evidente que esta temática das “desigualdades justas” (201) e estas questões relativas às “provas” e à «igualdade de oportunidades» (202) são essenciais para pensar a educação 203, com as funções diferenciadora e integradora que lhe são inerentes 204. Tanto mais quanto a valorização da função integradora que tem surgido em muitos

200 Cf. BOUDON (1981) sobre a situação em que os indivíduos procuram o consenso sobre os princípios de organização social ignorando o lugar que iriam ocupar nessa sociedade. 201 Ver Rawls, BOLTANSKI e THÉVENOT (1991), DUBET ( 2002, 2004 e 2005) 202 Cf. Habermas e Kemis & Carr em EWERT (1991) e Sérgio GRÁCIO (1969), sobre a da «igualdade de oportunidades» na escola como legitimação de uma ordem concorrencial. 203 Para a problemática da aplicação de tais princípios de justiça às crianças e jovens com discapacidades, que é um dos focos desta investigação, cf. DURKHEIM (1991, DTS II, p.52) e BOLTANSKI e THÉVENOT (1991, pp. 433-436) sobre “perdão do julgamento”, “tolerância” e “suspensão” do julgamento e dos efeitos de atribuição de “grandeza” social). Evidentemente que se voltará a este assunto. Ele será mesmo o principal objecto do Capítulo 5. Para esse efeito deve ter-se em conta o facto de a Educação Especial ter sido incumbida pelo ME, em Portugal a partir dos anos 90, de um papel em relação a toda a problemática do insucesso escolar, sobretudo na medida em que este estaria na origem da exclusão da escola (mais do que da exclusão social na sua relação com o insucesso educativo). E chamar a tenção para a relação entre este alargamento das áreas problemáticas da intervenção da educação especial e a política de inclusão que se afirmou no campo da EE e em que a problemática dos deficientes era associada (ou englobada) na problemática da exclusão social e das desigualdades sociais em geral e políticas de igualdade de oportunidades e Escola para Todos) (Política em que converge a esquerda e a direita como se viu em Portugal nos anos 90 (com R Carneiro) e em França, onde mesmo a «Direita» insiste nela como resposta aos motins da «racaille» : desenterrando a Agência Para a Coesão Social e a Igualdade de Oportunidades. Sobre a “igualdade de oportunidades”, ver Sérgio Grácio nos anos 80) 204 Pode ver-se sobre esta questão o Capítulo 3 desta tese, bem como GOODSON (1997), ou MORROW e TORRES (1997).

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discursos políticos ultimamente (desde o final do século XX) não corresponde a um abandono dos pressupostos concorrenciais. Nos ultimíssimos anos (os primeiros do século XXI), cada vez mais, a escola é pensada em função da justificação de “desigualdades justas” 205, embora permaneça a valorização de uma função integradora cada vez mais necessária para a legitimação do que resta do Estado, e para a paz social e o consenso em torno de um bem estar social que só uma sociedade assente na economia concorrencial poderia assegurar 206.

205 Cf. DUBET, 2004, L’école des chances : Qu’est ce que une école juste ? Paris, Seuil. Que o autor começou por intitular : L’Égalité des chances: Pour une école juste. 206 Cf. discurso de apresentação da 1ª candidatura de J. Sampaio à Presidência da República; ou Dubet num Seminário na Universidade de Braga (2006): “Há Estados com economias capitalistas que não são democracias, mas não há democracias que não tenham economias capitalistas”. O que parece reflectir uma reflexão no seio dos «partidos socialistas» europeus a partir dos anos 80. O que parece manifestar uma reflexão no seio dos «partidos socialistas» europeus a partir dos anos 80. Daqui parecem deduzir que os democratas tudo devem fazer para desenvolver, ou assegurar o capitalismo.