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Edição nº 008 - Dezembro 2009 - Sig Admin Sistema Integrado de … · 2012-01-16 · Ficha Catalográfica elaborada pela Coordenadoria de Bibliotecas ... Os Conselhos Editorial

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Editor Executivo/CoordenaçãoCoordenação da Editora UNEMATOrganizaçãoProjeto Gráfico/Diagramação/CapaRevisãoRevisão de abstracts

Agnaldo Rodrigues da SilvaMarilda de Fátima DiasCarla Cristina de PaulaEdgar Bortoleto FerreiraMaristela Cury SarianCarla Cristina de Paula

Copyright © 2010 / Editora UnematImpresso no Brasil - 2010

Ficha Catalográfica elaborada pela Coordenadoria de BibliotecasUNEMAT - CáceresISSN: 1806-0331

EDITORA UNEMATAv. Tancredo Neves, 1095 - Cavalhada - Cáceres - MT - Brasil - 78200000Fone/Fax 65 3221 0080 - www.unemat.br - [email protected]

TTTTTodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Rodos os Direitos Reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou poreservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou poreservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou poreservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou poreservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou porqualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigoqualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigoqualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigoqualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigoqualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo184 do Código P184 do Código P184 do Código P184 do Código P184 do Código Penal.enal.enal.enal.enal.

Revista ECOS. Literaturas e Linguísticas. Coordenação de Agnaldo Rodrigues da Silva (Revista do Instituto de Linguagem). Cáceres-MT: Editora Unemat, 2010.

116 p.1. Literatura 2. Linguística

Semestral (Ref.: Agosto2008-Dezembro2008) Ano 6, n. 8

CDU: 81

Índices para catálogo sistemático

1.Literatura - 822.Linguística - 81

REVISTA ECOS - INSTITUTO DE LINGUAGEMAv. Tancredo Neves, 1095 - Cavalhada - Cáceres MT - Brasil - 78200000Tel: 65 3223 0038 - [email protected]

FAPEMAT - FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MATO GROSSORua 03 s/n - 3º andar - C.P.A. CEP 78050-970 - Cuiabá - MTTel 65 3613 3500 - Fax 65 3613 3502 - Prédio do IOMAT

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ANO VI, Nº 8ANO VI, Nº 8ANO VI, Nº 8ANO VI, Nº 8ANO VI, Nº 8ISSNISSNISSNISSNISSN: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331: 1806-0331

REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA ECOSA ECOSA ECOSA ECOSA ECOSESTUDOS DE LITERATURA,LÍNGUA E LINGUÍSTICA

Indexação:Sumários de Revistas Brasileiras (sumarios.org)

Fundação Biblioteca NacionalCapes/Qualis

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Agnaldo José Gonçalves – UNESPÁgueda Aparecida Cruz Borges – UFMTAna Antônia de A. Peterson – UFMTAna Maria Di Renzo –UNEMATBenjamin Abdala Junior –USPCélia Maria Domingues da Rocha Reis - UFMTEduardo Guimarães – UNICAMPElizete Dall’Comune Hunhoff – UNEMATElza Assumpção Miné – USPIsaac Newton Almeida Ramos – UNEMATJosé Camilo Manusse – Universidade Eduardo Mondlane/MoçambiqueJosé Carlos Paes de Almeida Filho - UNICAMPLiliane Batista Barros – UFPALuiz Francisco Dias – UFMGMaria dos Prazeres Santos Mendes – PUC/USPMário César Leite – UFMTMónica Graciela Zoppi Fontana – UNICAMPNelly Novaes Coelho – USPRita de Cássia Natal Chaves - USPTaisir Mahmudo Karim – UNEMATTânia Celestino de Macedo – USP/UNESPValdir Heitor Barzotto – UNESP/USPYasmin Jamil Nadaf – Academia Mato-Grossense de Letras

CONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITCONSELHO EDITORIALORIALORIALORIALORIAL

Agnaldo Rodrigues da Silva - UNEMAT (Presidente)Elza Assumpção Miné - USPInocência Mata – Universidade de Lisboa/PortugalJosé Camilo Manusse – Universidade Eduardo Mondlane/MoçambiqueManoel Mourivaldo Santiago Almeida – USPMaria dos Prazeres Santos Mendes – USP/PUCMaria Fernanda Antunes de Abreu – Universidade Nova de Lisboa/PortugalMónica Graciela Zoppi Fontana - UNICAMPRoberto Leiser Baronas - UNEMATTaisir Mahmudo Karim - UNEMATTânia Celestino de Macedo – UNESP/USPValdir Heitor Barzotto – USP/UNESP

CONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULCONSELHO TEMÁTICO CONSULTIVTIVTIVTIVTIVOOOOO

Universidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoUniversidade do Estado de Mato GrossoReitorVice-ReitorPró-Reitoria de Ensino de GraduaçãoPró-Reitoria de Pesquisa e Pós-GraduaçãoPró-Reitoria de Extensão e CulturaPró-Reitoria de Planej. e Desenv. InstitucionalPró-Reitoria de AdministraçãoPró-Reitoria de Gestão Financeira

Taisir Mahmudo KarimElias JanuárioAgnaldo Rodrigues da SilvaCarolina Joana da SilvaEmília Darci de Souza CuyabanoWeily Toro MachadoAnapaula Rodrigues VargasWilbum de Andrade Cardoso

DIRETDIRETDIRETDIRETDIRETOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTOR DO INSTITUTO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUO DE LINGUAAAAAGEMGEMGEMGEMGEM Ana Maria Di Renzo

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

LITERALITERALITERALITERALITERATURATURATURATURATURA

LINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICALINGUÍSTICA

Editorial ........................................................................................................ 07

J. J. VEIGA E FRANZ KAFKA: FABULADORES DE UM MUNDO “DESLOUCADO” ... 11Carla Cristina de Paula

A DICOTOMIA AUTOR-PERSONAGEM: A IMAGEM DE AUTORIA NA LITERATURA ... 17Elizete Dall´Comune Hunhoff

“O LODO” E SEU SUBSTRATO FANTÁSTICO....................................................... 23Irene Severina Rezende

MEMÓRIA E IDENTIDADE EM OS MENINOS MORENOS, DE ZIRALDO, E NAS RUASDO BRÁS, DE DRAUZIO VARELLA ..................................................................... 31Leonice Rodrigues Pereira

AVALIAÇÃO EM LITERATURA ............................................................................ 39Jochen Schulte-Sasse

O LUGAR DA LITERATURA REGIONAL NO ENSINO ............................................ 55Marta Helena Cocco

PAPEL DO VIAJANTE NA UTOPIA, DE THOMAS MORE ........................................ 61Olga Maria Castrillon-Mendes

PELAS RUAS DO PASSADO: NOTAS SOBRE LUANDINO VIEIRA E ONDJAKI ............ 69Vera Maquêa

A SEMÂNTICA NA GRAMÁTICA BRASILEIRA APÓS A INSTALAÇÃO DA NGB:UMCAMPO DISCIPLINAR OU UM TERMO SUPLEMENTAR? ..................................... 77Neuza Zattar

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: FISSURAS NA FORMULAÇÃO ................................... 85Silvia Regina Nunes

A CONCORDÂNCIA NOMINAL DE GÊNERO NA COMUNIDADE CACERENSE ..... 91Jocineide Macedo Karim

O POLÍTICO NA LÍNGUA: “TRAMANDO” SENTIDOS .......................................... 103Rejane Centurion

Normas para apresentação dos originais .......................................................... 113

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EDITEDITEDITEDITEDITORIALORIALORIALORIALORIAL

A Revista Ecos é um periódico que publica textos científicos da área de Letras. O periódico

tornou-se um veículo de divulgação para os docentes-pesquisadores no âmbito da Literatura, da Língua

e da Linguística, cuja produção acadêmica circula pelas IES brasileiras e estrangeiras, com textos inerentes

aos estudos acadêmicos.

A revista é uma iniciativa da área de pesquisa em Literatura Comparada, da Universidade do

Estado de Mato Grosso, com financiamento, por meio de fomento, recebido da Fundação de Amparo à

Pesquisa do Estado de Mato Grosso. A publicação tem sido semestral, cujos textos reunidos atribuem à

revista um caráter temático.

A excelência dos textos e o reconhecimento dos docentes-pesquisadores resultaram na indexação

do periódico pelos Sumários de Revistas Brasileiras (sumários.org) e na inserção no Qualis da Capes,

dando suporte à circulação do conhecimento de forma mais consistente. Nessa direção, a revista recebe

textos num fluxo contínuo de mestres e doutores das IES de todas as naturezas jurídicas, sejam do Brasil

ou do exterior.

Esta edição apresenta o 8º número do periódico e as temáticas permeiam, nas áreas das

literaturas, quer na prosa, na poesia ou no teatro, além dos estudos culturais. No que concerne aos

estudos de línguas/linguísticas, as reflexões teóricas voltam-se para as línguas materna e estrangeiras,

bem como às teorias dessas notáveis áreas de conhecimento.

Os Conselhos Editorial e Temático Consultivo desejam uma boa leitura a todos e aguardam,

para publicação, novas pesquisas científicas para ampla divulgação.

A Equipe

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RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este artigo analisa o fantástico na obra de J. J. Veiga, um dos pioneiros da literatura fantástica no Brasil.É unânime a opinião dos críticos em considerar a fantasticidade como o elemento definidor das narrativas doescritor. Ao compará-lo com Franz Kafka, tentamos decifrar a chave para o insólito de sua ficção. A impressão deestranheza, a atmosfera de irrealidade impressa em seus textos advém das “experiências dos limites”, termo usadopor Todorov em sua Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique (1970). Assim como Kafka, Veiga sugere arealidade a partir do estranho, do extraordinário, do irreal, empregando uma visão transfiguradora, organizada emtorno de situações marcadas pela decadência e pelo insólito. À semelhança do escritor tcheco, o estilo de Veigacorresponde à sua visão de mundo, descrevendo a irracionalidade de nosso tempo. É justamente pelo absurdocontido em sua ficção que o autor expressa o absurdo presente na realidade visível.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: J.J. Veiga; literatura fantástica; Franz Kafka; estranhamento; irreal; sobressocial; absurdo.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This article is an attempt to analyze the fantastic element in the work of J. J. Veiga, author considered oneof the pioneers of fantastic literature in Brazil. It is unanimous the opinion of the critics in considering the fantasticelement as the defining characteristic in his stories. By comparing him to Franz Kafka, we try to reveal the key to theestrangement of his fiction. The impression of strangeness, the atmosphere of unreality in their texts comes from the“experience of limits,” a term used by Todorov in his Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique Introduction à la literature fantastique (1970). LikeKafka, Veiga suggests the historical and social reality from the strange, the extraordinary, the unreal, making use ofa transfiguring vision, organized around situations marked by decay and unreality. As well as the Czech writer, Veiga’sstyle corresponds to his vision of reality, describing the irrationality of our time. It is just by the nonsense containedin his fiction that the author expresses the absurdity in the visible reality.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: J.J. Veiga; fantastic literature; Franz Kafka; estrangement; unreal; unusual; absurdity; nonsense.

A fantasia, tanto no universo intraliterárioquanto extraliterário, é um tema extremamenteinteressante e sedutor. Associada à imaginação eao desejo, tornou-se uma área de difícil definiçãoe articulação. De fato, o valor da fantasia pareceresidir precisamente nessa resistência à definição,em suas qualidades fugidias.

Dentre as mais variadas formas literárias dafantasia, encontra-se a literatura do sobrenatural,que se caracteriza pela presença de elementosirreais no universo da narrativa. Entretanto, osobrenatural ou irreal tem se mostrado presenteem diferentes gêneros, ultrapassando a fronteirada narrativa fantástica, na qual se constitui traçodominante e imprescindível. Muitos autores têmrecorrido a temas do universo meta-empírico,caracterizando situações ou personagenssobrenaturais em suas obras, sem, contudo,conferir a eles caráter predominante na estruturaçãogeral do texto. Podemos citar como exemploMachado de Assis, que em Memórias póstumasMemórias póstumasMemórias póstumasMemórias póstumasMemórias póstumasde Brás Cubasde Brás Cubasde Brás Cubasde Brás Cubasde Brás Cubas, surpreendeu o público leitorbrasileiro ao conceder a voz narrativa a um

“defunto autor” que conta sua vida do além-túmulo. Em um momento em que sesupervalorizava a representação realística domundo, Machado introduz um elemento de índolefantástica na narrativa, instaurando um fator deestranhamento no texto pela admissão de umasituação irreal e inusitada: a narração feita deum plano diferente, do pós-morte. Contudo, anão ser pelo narrador meta-empírico, nada maisem Memórias Memórias Memórias Memórias Memórias evoca o fantástico, pois oobjetivo do autor não era tornar sua narrativafantástica.

No Brasil, um dos nomes pioneiros naliteratura fantástica é J. J. Veiga. É unânime aopinião dos críticos em considerar afantasticidade ou o elemento fantástico como oelemento marcante das narrativas do autor.Entretanto, não há no escritor “fantasmas, nembruxas e tampouco fadas e príncipes comuns àliteratura que, desde o século XVII, convencionou-se chamar de fantástica. O fantástico de Veigasão as situações dolorosas contrárias à razão”(CAMPEDELLI, 1982, p.101). A impressão de

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estranheza, a atmosfera de irrealidade impressaem seus textos advém das “experiências doslimites”, definida por Todorov em Introdução àIntrodução àIntrodução àIntrodução àIntrodução àliteratura fantásticaliteratura fantásticaliteratura fantásticaliteratura fantásticaliteratura fantástica (1992) como a experiênciado homem inserido em situações de exceção, ouseja, em situações que lhe escapam ao controle eà compreensão.

As personagens veiguianas vivem osmomentos mais difíceis de sua experiência comocidadãos em um contexto de crise, de tensão sociale psicológica. Dessa situação excepcional,extraordinária, modificadora da normalidade davida cotidiana, emerge o insólito nos textos doescritor. Entretanto, ultrapassando o insólito,encontramos nessas narrativas a tomada deposição de Veiga ou a discussão, como o autorprefere chamar, dos problemas, conflitos e crisesmais frequentes do mundo contemporâneo. Pormeio do fantástico, o escritor mantém um debateenvolvendo a condição humana e oentorpecimento aparente do homem face aosavanços da era moderna e seus consequentesefeitos sobre ele. Em Veiga, o acontecimento insólitoexerce, na profundidade da narrativa, o papel dedesvendar e questionar um processo inexorávelna vida do ser humano.

Nesse sentido, o autor se aproxima de umadas características da obra de Franz Kafka, aproblematização das situações de impotência doindivíduo face ao poder absoluto reinante em suavida ameaçando-a de destruição, sem encontraruma saída para esse tipo de alienação infinita.Como o escritor tcheco, Veiga busca acompreensão da existência humana em seusaspectos mais contundentes numa trama insólitae irreal. É pela problematização fabulosa doconfronto entre o homem e o mundo à sua voltaque surge o absurdo nos textos do autor.

Ao analisar A metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfose, uma das obrasmais conhecidas de Kafka, observamos aobjetualização na ficção da automatização dohomem moderno, a perda de sua individualidade,o desperdício da potencialidade humana mediantea mecanização da vida pela pressão do progressoe do avanço tecnológico e científico. Antes dofato terrível de ser transformado em inseto, Gregorera um funcionário exemplar, seguidor obedientedas exigências do trabalho e da família. Tinha setornado “uma criatura do chefe, sem opiniãoprópria nem raciocínio” (KAFKA, 1997, p. 8) eagora via sua humanidade perdida para sempre.

Pelo absurdo da narrativa, Kafka chama a

atenção para a submissão excessiva do serhumano ao sistema vigente, que acaba portransformá-lo numa peça inumana de umaengrenagem menos humana ainda. QuandoGregor se dá conta de sua triste condição, já estáreduzido a uma coisa, sendo impossível convenceralguém de que, por trás de sua aparência horrível,ainda existe um ser humano. Pela reificação, Kafkasinaliza para a pressão desumanizadora do mundocontemporâneo, assoladora do espírito contestadordo homem, forçando-o a adaptar-se à infelizcondição de mais um artefato da gigantescamaquinaria capitalista.

Kafka e Veiga instauram o mundo às avessaspelo sobressocial, definido como o “existenteanormal”, ou seja, situações que embora pareçampossíveis perante as leis naturais, revelam-seabsurdas e despropositais por infringirviolentamente o que o bom senso, a convençãosocial estipulam como cotidiano, familiar,ordinário, sólito, normal. O sobressocialcaracteriza-se por se afastar totalmente docostumeiro, embora sem ofender a natureza.Assim, o mundo irreal das narrativas de Kafka eVeiga não tem origem numa outra ordem que nãoa real. Mesmo em A metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfose, em que sepoderia pensar numa ordem divina ousobrenatural para a transformação de Gregor,estamos diante de algo passível de acontecer: oprocesso da metamorfose é explicável pelas leisnaturais, portanto, não está ligado a umafenomenologia meta-empírica. O sentimento deestranheza surge pelo fenômeno ocorrer em umapessoa e a transformação ser inesperada e nãopossuir motivação ou causas aparentes que aexpliquem ou justifiquem.

A grande semelhança entre os dois escritoresé a opção pela narrativa absurda como forma detransfigurar a realidade empírica no universoficcional. A preferência por esse tipo de discursorevela sua recusa em aceitar o realismo tradicional,verdadeiramente arbitrário, que, de acordo comBella Josef (1986, p.184), “está tão longe darealidade quanto qualquer narração fantástica”.

Kafka, e mais tarde Veiga, são legítimosrepresentantes de uma literatura que prefereabandonar a visão realista do mundo e adescrição direta da realidade imediata. Suasnarrativas poderiam ser descritas como“laboratórios da ficção” pela técnica do“desloucamento” (os neologismos “desloucado”,“desloucamento”, “desloucar”, do alemão

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verrücken, que significa deslocar e ver-rücket,particípio do verbo que, como adjetivo, significalouco, foram usados por Günter Anders, 1993,em sua descrição do mundo kafkiano). Pelodeslocamento e enlouquecimento da aparênciaaparentemente normal do mundo sãotranscendidos os limites do cognoscível, do pré-estabelecido, da apreensão unilateral das coisas,para recriar o invisível do mundo visível,instaurando novas significações. O impossível eo não comprovado são vividos, ainda que no revésdo absurdo, como meio de mostrar que assituações inusitadas são contraditoriamente as maiscomuns. O estilo simples, lúcido, “real”, no sentidode jamais deixar quaisquer dúvidas sobre arealidade – em contraste com característicasartificiais ou inventadas – da matéria narrada,descrita ou meditada, no entanto narra, descrevee pensa o chocantemente inacreditável.

É estabelecida assim uma nova ordemdiscursiva de contestar a desordem do mundo e oabsurdo do real, articulando-se na novaorganização textual. O ato de “desloucar” ofereceum olhar inédito e original sobre o lado obscuro eindefinível do universo humano.

O absurdo da obra tem como funçãoconfirmar o caráter alucinante do mundo – ouniverso de Kafka e Veiga é, ao mesmo tempo,fantástico e rigorosamente verdadeiro. O“desloucamento” afirma a realidade, despindo dasaparências o contexto das coisas, sem, contudo,induzir à abstração total. Pelo contrário, a cadamomento em que nos deparamos com umarealidade despojada do invólucro da aparênciasentimos mais e mais sua reafirmação. É por essejogo de sombras, pela projeção de realidadesfluídicas e tênues, sem conteúdo com os quais,entretanto, até pouco tempo estávamosacostumados a lidar, como se fossem coisas plenasde vitalidade ou como um princípio consagradopelo tempo, que Kafka e Veiga fixam a percepçãoabsurda do lado absurdo da vida e das relaçõeshumanas, extraindo assim os efeitos surpreendentesde suas ficções.

No plano do absurdo, os elementos“desloucados” encontram-se submetidos a poderesdesconhecidos geradores de angústias e incertezas.O mundo organizado e familiar entra em crise ese reveste de um elemento que escapa àconsciência do indivíduo. A contradiçãocausadora da sensação de absurdo em Kafka eVeiga poderia ser colocada nos seguintes termos:

o homem participa de um mundo no qual nãopenetra, é estranho e precisa se identificar. Nocaso do escritor tcheco, estranho por ter sua visãocontaminada pela sensação de não pertencer nemao mundo judeu, nem ao tcheco ou ao alemão,ou ao mundo burocratizado, o mundo que contae não conta com ele, ou seja, o mundo do poder.A redenção almejada não é, pois, a do mundo,mas a do não estar no mundo. Veiga, à semelhançade Kafka, também institui uma voz narrativa paraa qual o homem não pertence ao mundo, porém,num sentido inverso, pois se as personagenskafkianas pretendem a redenção pelo ingresso nomundo, o herói de Veiga insiste na sua resistênciaao mundo do poder, pela consciência de que aliberdade é a razão maior do viver humano.

Essas “situações dolorosas” é umapreocupação de muitos autores contemporâneos,é uma constante em Kafka e faz parte daconsciência artística de J. J. Veiga. Em Kafka, porexemplo, Gregor Samsa é transformado numacoisa repugnante e imprestável (A metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfose)e Josef K. (O processoO processoO processoO processoO processo) é condenado e executadomesmo sendo inocente por um tribunal absurdo einsólito, regido por uma lei mais insólita ainda;em Veiga, as personagens se deixam massacrarpor um poder extraordinário e desconhecido,tornando-se autômatos movidos por uma realidadeestranha e imperscrutável. Contudo, a visão dosdois escritores é a mesma: o homem reduzido afantoche, desumanizado e controlado pelas mãospoderosas do desenfreado e incessante fluxo davida moderna que, no entanto, esse mesmohomem desejou e tanto contribuiu para criar.Ironicamente, como o doutor Frankenstein, ohomem torna-se vítima do monstro que tãoansiosamente gerou.

Aparentemente, poder-se-ia considerar essasobras, pelo estranho mundo absurdo em quedesfilam suas personagens, como um tipo deliteratura transcendental, visando apenas àfabulação, à criação de outras realidades,desconexas desta, do real vivenciado por nós.Entretanto, esses textos, como qualquer outro textoliterário, foram produzidos a partir de edeterminados por um contexto social, não podendoser entendidos de maneira isolada. A formatomada por qualquer texto da literatura do absurdoé determinada por um número de elementos quese interseccionam e interagem de formas diferentesem cada trabalho individual. O reconhecimentodesses elementos coloca o autor em relação a

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determinantes históricos, sociais, econômicos epolíticos tanto quanto a sua tradição literária.

Assim como Kafka, Veiga sugere a realidadehistórico-social a partir do estranho, doextraordinário, do irreal, empregando uma visãotransfiguradora, organizada em torno de situaçõesmarcadas pela decadência e pelo insólito. Àsemelhança do escritor tcheco, o estilo de Veigacorresponde à sua visão da realidade, descrevendoa irracionalidade de nosso tempo. É justamentepelo absurdo contido em sua ficção que o autorexpressa o absurdo presente na realidade visível.O texto convence muito mais pela reestruturaçãocriativa do contexto social em sua organizaçãogeral do que pela referência direta ao mundoexterior. Desta forma, seus textos transmitem umprofundo sentimento da vida, pois, mesmoseguindo os impulsos criativos de sua imaginação,penetram fundo no real exatamente por não secomprometer em realizar um trabalho documental.O leitor tem a sensação de estar em contato comquestões vitais, de estar participando, aprendendo,aceitando ou negando a realidade apresentada,como se estivesse envolvido nos problemaslevantados por ela.

Veiga e Kafka presenciaram momentos difíceisna história de seus países, dos quais não podiamfugir. Por mais que devamos considerar os aspectosimanentes à obra literária, cuja significação nãopode nem deve atrelar-se apenas às relações extra-literárias, parece difícil ignorar o suporte da histórianesses dois casos. Veiga faz a seguinte declaraçãodurante uma palestra proferida no Instituto deEstudos da Linguagem da UNICAMP:

a minha literatura, a partir do segundo livro,que é A hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantes, sempre estevepresa à atmosfera política do país. Eu semprequeria, terminado um livro, que o livro seguintefosse diferente. Que fosse um livro com maisclaridade... Mas, se eu fizesse os livros que euqueria fazer, eu acho que estaria fraudando arealidade, forçando a mão para mostrar umasituação que não era real. Então, eu não tinhaoutro jeito senão continuar fazendo os livrosque a situação política, o clima político-socialnão só permitiam, mas acho que também pediamque eu fizesse. (1989, p. 27-28).

Kafka (apud ANDERS, 1993, p. 11) escreveem seus diários: “Acolhi vigorosamente o que háde negativo no meu tempo – ao qual, aliás, estoumuito ligado e que tenho direito, não de combater,mas, até certo ponto, de representar”.

Mesmo representando a realidade dolorosa ecrítica em dois momentos históricos e em pontosgeográficos distintos, observamos a semelhançana forma expressiva através da qual essesmomentos foram recriados pela imaginaçãoartística. Ambos os escritores recorrem ao absurdopara transfigurar um outro absurdo – o absurdopresente na própria realidade. Assim, mais umavez, as obras de Kafka e Veiga são inovadoras,pois se afastam de uma impressão de realidademesclada a uma reprodução do existente à medidaque tentam traçar uma busca pela verdadehumana, pelo distanciamento da realidade objetivae externa, enquanto a ela remete, peloengendramento criativo e imaginário, umarealidade artística, subjetiva, ficcional. A tradiçãorealista da verdade explícita é substituída pelainvestigação da verdade implícita, objetivandorevelar as camadas não visíveis da realidadeaparente. E, para tanto, insistem no absurdo.

Veiga revela sua veia kafkiana ao comporromances como Sombras de reis barbudosSombras de reis barbudosSombras de reis barbudosSombras de reis barbudosSombras de reis barbudos,A hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantesA hora dos ruminantes, Aquele mundo deAquele mundo deAquele mundo deAquele mundo deAquele mundo deVVVVVasabarrosasabarrosasabarrosasabarrosasabarros, entre outros. Toda sua obra épermeada pelo tema da arbitrariedade dos sistemasde poder ao tratar os cidadãos; a luta do oprimidopara se livrar das garras do opressor, que sempreleva vantagem; a burocracia que emperra tudo efica fazendo o tal “jogo de empurra” com apersonagem, que, desesperada na busca de umentendimento ou ajustamento com ascoordenadas do sistema, deixa-se levar pelascircunstâncias até ser descartada ao atingir suainutilidade. Uma muito fina ironia e uma grandealegoria do governo ditatorial brasileiro dos anostrinta aos oitenta - com um pequeno espaço paraKubitschek, Goulart e Quadros, que, por meio deseus burocratas e patrulheiros, emperravam ouanulavam completamente a vida do cidadão –estão presentes também na obra do autor brasileirocomo uma herança kafkiana.

A impotência diante do sistema, combinadacom a inconformidade frente à ordem das coisasconduzindo a personagem para um fim trágicoou pelo menos infeliz, é a “lei de Kafka”, por meioda qual se esclarecem as novas relações dehipocrisia estabelecidas entre os homens a partirdo século XX: é preciso se enquadrar, fazer partedo sistema ou ser eliminado, mesmo as exigênciase normas parecendo impossíveis de cumprir ousimplesmente absurdas; é preciso fazer de contaque o sonho acabou e jamais haverá outraoportunidade de encontrá-lo, mesmo este saltando

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aos olhos, seja acordando numa manhãtransformado num inseto ou sendo obrigado avender a valiosa espingarda do rei da Síria.

1 - Doutora em Letras pela UNESP, campus deSão José do Rio Preto. Professora da área de línguainglesa da UNEMAT, campus universitário de AltoAraguaia. E-mail: [email protected]

Aceito para publicação em 01.06.2009

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ResumoResumoResumoResumoResumo: Neste ensaio cotejamos noções de autoria, de narrador e de personagem analisadas comparativamentenas obras Vito GrandamVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito Grandam – – – – – uma história de vôos e Águas de verão, sob a perspectiva de se conceber o autorcomo um elemento estético que pode ser o narrador, mas que não deve ser confundido com o autor da realidadeempírica.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: autor; narrador; literatura.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this essay we make an approach to notions of authorship, narrator and character analyzed comparativelyin Vito GrandamVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito Grandam – – – – – uma história de vôos and Águas de verão, under the perspective of conceiving the author as anaesthetic element that can be the narrator but cannot be confused with the author of the empirical reality.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: author; narrator; literature.

Ao lermos as obras Vito Grandan Vito Grandan Vito Grandan Vito Grandan Vito Grandan – umahistória de vôos (1995)

2 e Águas de verão (1995)

3,

percebemos, logo à primeira vista, que as mesmasapresentam o narrador em primeira pessoa,definindo um discurso dialogado das personagens.Para o dialogismo

4, o discurso direto é a

enunciação tanto das personagens quanto donarrador. Portanto, a presença do autor se fazpresente na fala, que soa como se fosse umdiscurso direto de uma só voz, representandodiretamente o objeto a que se refere.

Todavia, a respeito da relação autor-personagem, segundo Bakhtin (2000, p.28), oautor e o herói são seres distintos. O autor éelemento constitutivo da obra e não um meroportador de vivências anímicas. O que equivale adizer que o autor é a energia formativa que nãoocorre em uma consciência psicologicamenteconcebida, pois ele é um produto culturalsignificante e estável que manifesta sua reação naestrutura de uma visão ativa da personagem. Emsuma, o autor é um elemento estético que podeser o narrador, mas não deve ser confundido como autor da realidade empírica, o ser ético e socialda vida. Este é desconsiderado na visãobakhtiniana, pois, se fosse levado em conta, odiscurso polifônico deixaria de existir.

Assim, a noção de autor como energiaformativa é que torna possível a heteroglossia

5,

dentro da própria voz, da produção discursiva donarrador-personagem, em romances como VitoVitoVitoVitoVitoGrandam e Águas de verãoGrandam e Águas de verãoGrandam e Águas de verãoGrandam e Águas de verãoGrandam e Águas de verão e da própriaépoca em que estes foram escritos:

O autor-criador contribuirá para esclarecer ohomem-autor. Um autor não é o depositário deuma vivência anterior, e sua reação global nãodecorre de um sentimento passivo ou de umapercepção; o autor é a única fonte de energiaprodutora das formas, a qual não é dada àconsciência psicologizada, mas se estabiliza emum produto cultural significante (BAKHTIN,2000, p.28).

É a partir do entendimento de que o herói égerado enquanto um todo determinado em cadaum dos seus componentes que se poderádeterminar os critérios de conteúdo e de forma,aplicáveis aos diversos tipos de heróis. ParaBakhtin, o autor e o herói não aparecem como oscomponentes do todo artístico, mas comocomponentes da unidade transliterária, constituídapela vida psicológica e social. Sendo assim, AliceVieira, em Águas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verão, não estabelecerelação de correspondência com o autor-criadore este com o herói, pois suas relações são denatureza diferente: estes são componentes da obra,enquanto a autora-mulher (ou autor-homem) écomponente da vida. Assim, servir-se de uma fontepressupõe que se tenha compreendido seuprincípio produtor, pois:

O autor é o depositário da tensão exercidapela unidade de um todo acabado, o todo doherói e o todo da obra, um todo transcendentea cada um de seus constituintes consideradoisoladamente. Esse todo que assegura oacabamento ao herói não poderia, por princípio,ser-nos dado de dentro do herói, o herói não

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pode viver dele e inspirar-se nele em sua vivênciae em seus atos, esse todo lhe vem – é-lheconcedido como um dom – de outra consciênciaatuante, da consciência criadora do autor. (p.32).

Assim, esse autor não só vê e sabe tudoquanto vê e sabe o herói em particular e todos osheróis em conjunto, mas também vê e sabe maisdo que eles, vendo e sabendo até o que é porprincípio inacessível aos heróis; é esse excedentede que se beneficia a visão e o saber do autor, emcomparação com cada um dos heróis, que forneceo princípio de acabamento de um todo – o dosheróis e o do acabamento da existência deles, ouseja, o todo da obra. Por isso, tem-se em VitoVitoVitoVitoVitoGrandamGrandamGrandamGrandamGrandam uma personagem-narradora que sesurpreende com suas próprias constatações,embora, de alguma forma, essas mesmasconstatações já tenham sido antecipadas ao leitorpelo autor. A personagem-narradora se entristecequando descobre, numa análise subjetiva, quehavia perdido a mãe para o técnico de basquete,que ambos, mãe e técnico, estavam namorando;porém, ao leitor, tal fato fora introduzido desde omomento em que o adolescente narra a falta decarinho entre os pais, da partida do pai, ou, ainda,do relacionamento da mãe com o técnico debasquete do filho.

Porém, diferentes visões oferecem a esseassunto diferentes abordagens. Para RolandBarthes, autor tem outra concepção:

Autor é uma personagem moderna, produzidasem dúvida por nossa sociedade na medida emque, ao sair da Idade Média, com o empirismoinglês, o racionalismo francês e a fé pessoal daReforma, ela descobriu o prestígio do indivíduoou, como diz mais nobremente, da “pessoahumana”. (BARTHES, 1998, p.66).

Para Barthes, a literatura é feita com a mão,não com a voz. Literatura se escreve, portanto, éescritura. Um texto se reescreve indefinidamente àmedida que é lido e só se escreve no momentoem que é lido, já que a leitura é a condição daescritura. O confronto de ideias entre Barthes eBakhtin é uma oportunidade para precisarconceitos que vimos empregando, como tambémé uma forma de examinar a atualidade dasformulações bakhtinianas. Assim, trabalha-se naconvergência entre voz e escritura, as quaisdesencadeiam posturas inquietantes nasformulações de ambos os autores. Esses conceitos

são relevantes para saber o grau desserelacionamento, visando a situar o grau dessarelação entre dialogismo e escritura (MACHADO,1995, p.96).

As formulações de Barthes contradizem as deBakhtin, pois este já eliminara tal autor de suaabordagem ao defini-lo do ponto de vista estético,não ético. Entretanto, torna-se relevante estaabordagem comparatista, pois se percebe queBarthes também afirma que a voz está na escritura,quando diz que “é a linguagem que fala, não oautor” (p.66). Embora as obras de Ziraldo

6 e de

Alice Vieira apresentem um romance tematizadopela memória discursiva, ambos, na voz de suaspersonagens-narradoras, reconstroem fatos e osrelatam num tempo muito diferente do tempo real,isso porque os eventos narrados se perdem notempo e a personagem principal não existe.

Percebe-se que, por trás do relato do narrador,tem-se um segundo, o relato do autor sobre oque narra o narrador, e, ainda, sobre o próprionarrador, pois seus discursos apresentam constanteinteração. O discurso do narrador é igualmente odiscurso de outrem (BAKHTIN, 1998, 118). Porisso, o discurso do narrador, segundo Bakhtin,ocorre em dois planos: no plano do narrador eno plano do autor que fala nessa narração eatravés dela. Então, tem-se um falar indireto, nãouma língua, mas por meio de uma língua, de ummeio linguístico alheio e, por fim, por intermédioda refração das intenções do autor.

Portanto, nas obras citadas, há duasconsciências, sem haver duas posições de valores;há duas pessoas e, em vez do eu e o outro, hádois outros. O princípio de alteridade do heróinão se acha expresso. As obras Vito GrandamVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito Grandame Águas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verão mostram, cada uma, um autoraparentemente ingênuo, narração em primeirapessoa, que sendo um elemento constitutivo daobra de arte, não coincide com o herói. Esse autornão tem de enfrentar a super resistência do herói,no nível de sentido da vida, pois ambos são osoutros.

Em Vito GrandamVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito Grandam, a personagem-narradoradecide ser um escritor, assim, poderia maisfacilmente relatar os fatos acontecidos, sem ocompromisso com a fidedignidade biográfica. Otexto então apresenta uma dicotomia entre apersonagem-narradora e o narrador, sendoalgumas vezes dirigido a diferentes níveisnarrativos, como Genette (apud REIS; LOPES,2000) discorreu na significação da metalepse, ou

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seja, na intrusão do narrador, produzindo um outroefeito, no interior do próprio texto. O procedimentometaléptico acontece quando o narrador, emdiálogo ameno com o leitor, faz menção deconduzi-lo pelos meandros da história:

Esta pergunta é importante para minha carreirade escritor. Se ele confirmar que ser escritor éassim, desisto na hora, quero lá viver uma vidaangustiada dessas?Agora, imagina, você está vivendo um dosmomentos mais terríveis da sua vida e, em vezde sofrê-lo começa a narrá-lo para você mesmo.Que coisa terrível. (ZIRALDO, 1995, p.18).

Insinuam-se discretamente relações quepossam existir entre o extradiegético e o diegético,isto é, entre o autor e o narrador, entre o mundoreal e o mundo possível, configurado no universoda ficção.

A personagem-narradora, em VitoVitoVitoVitoVitoGrandamGrandamGrandamGrandamGrandam, é quase uma pessoa adulta e estáperdida na mata, justamente quando retorna desua viagem apoteótica pelo Oriente, vindo parareencontrar seu amigo de infância; a partir daí,ocorre toda a trajetória novelística. Marta, deÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verão, também faz uma retrospectivade sua história, partindo de sua infância, antesdo nascimento da irmã caçula, Maria Izabel.

Os autores põem parte do final da história nocomeço da narração, mostrando ao leitor opresente antes do passado, dando uma dimensãorealista ao que poderia ser um simples jogo deimaginação; assim, a obra torna-se homóloga àestrutura psicológica do ser humano: ações dopresente que se esclarecem com o mergulho nopassado. Simultaneamente, liberta o enredo dalinearidade, oferecendo também uma coerência euma síntese que noutra disposição talvezfragmentasse a unidade coesiva. Pois, se no textoVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito GrandamVito Grandam a história da infância ou a dosalvamento se situasse antes do acidente na mata,tal ordem implicaria contar outros fatos omitidospela elipse antecipatória. A ordem escolhidacorresponde a uma síntese que supera um possívelmalogro artístico em perfeito logro poético.

Um autor é um homem de seu tempo.“Ninguém cria do nada”, diz Benjamin AbdalaJúnior (1989, p.23). Assim, têm-se, nos autores,representações reais de suas atuações enquantocidadãos partícipes de tudo o quanto os envolve.Por isso, o leitor encontra na obra desses autoresuma dualidade artística: literatura e pintura,

literatura e história, isso porque, ao lado danarrativa propriamente dita, há uma rica descriçãopictórica, bem como o reconhecimento de fatoshistóricos subjacentes à trama. Quando se diz queum artista é um homem do seu tempo, talafirmação, nesse caso, parece evidente:

Há pouco asfalto nas minhas recordaçõesinfantis, a não ser sob as rodas do skate do Vitoe de seus malabarismos. No mais, o mato verdecerca a minha vida. Nasci na maternidade doSilvestre, fui criado na Gávea e no JardimBotânico; passava meus fins de semana cercadopelos morros verdes de Vera Cruz; fui estudaringlês e aprender a ser homem em plena selvaamazônica, fiquei amigo da onça de pataquebrada que urrava de noite numa jaulaenorme no horto central do acampamento deCarajás. E, se ficar parado aqui, devo morrerneste verde escuro buraco da Pedra Bonita. OVictor e eu e nosso mesmo destino: nossa mata,nossa alma. (ZIRALDO, 1995, p.30).

A luz e as cores que se espalham na descriçãodo cenário evocam antecedentes, mostrando umrealismo extremo. O autor-homem, da obra VitoVitoVitoVitoVitoGrandamGrandamGrandamGrandamGrandam, por ser também um desenhista, umilustrador na vida real, consegue explorar maisprofundamente os aspectos sinestésicos: tato, visão,audição; trabalha as palavras de tal forma queleva o leitor a visualizar o quadro reproduzido,interpretando seus multissignificados: um homemsubmetido à sensibilidade artística.

Percebe-se também que o autor ziraldianoprocura explorar a presença do bilinguismo,ilustrando o enredo com o uso de vocábulos eminglês, como no exemplo: skate; também denunciaa necessidade de aprender a língua inglesa,embora a personagem-narradora esteja em plenaselva amazônica. A essa ambivalência Bakhtindenominou de dialogia interna do procedimento,pois expressa simultaneamente diferentes visões demundo. Também Alice Vieira recheia seu texto comexpressões estrangeiras: cowboys, grenat, sarau...as quais mostram o contraste cultural exploradopela romancista, internalizando no próprio discursoo conflito linguístico, embora tais características nãosejam o mais importante nas obras.

Ambos, tanto Ziraldo quanto Alice Vieira,podem ser interpretados, aos olhos dos leitores,como pessoas submetidas aos códigos damodernidade. Tudo é resumido nessa grande tela,ritmadamente, mostrando um sentimento engajadocom o mundo, compreendido pelos elementos

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linguísticos que denotam, significam, tanto com adescrição estática quanto com a dinâmica. A cenado cipó, como tantas outras, na infância dapersonagem-narradora de Vito Grandam Vito Grandam Vito Grandam Vito Grandam Vito Grandam (p.31-32), está repleta de cores. Não representa nenhumobjeto especificamente, mas mostra uma infinidadede quadros diferentes: “A equipe interplanetáriairia viajar num disco voador. Por isso sobe morroacima, não de forma reta, mas num movimentosinuoso”. Ao conhecermos a etimologia dapalavra imagem, que vem do grego (nimos =imi-tação e genes = nascido de), então,interpretamos a imagem nascida do imagináriodo autor, imagem que transmite ao espectador/leitor valores tanto estéticos quanto significativos.O passeio se desenrola em planos diferentes: nomeio do caminho mudam de direção; segue-seuma clareira, após esse lugar localiza-se o pontocentral do passeio – a árvore que contém o cipó– seguido dos vai-e-vens até a queda do herói. Adescrição da natureza obedece ao movimento doolhar pelo espaço, da parte inferior para a superior:“a árvore mais alta que já tinha visto nas matasdo Rio” (p.32). A árvore traz-nos a imagem davida, do bem e do mal em constante regeneração.A mata e suas subidas, suas descidas, seus cipós,a queda do tio lá do alto, sua aparente morte esua ressurreição são imagens que oferecem aoleitor um sentido que, na verdade, segundo MirceaEliade (1964, p.178), representam a aquisição deum saber: a personagem interpreta, aprende. Odeslize é lugar de interpretação. Pelo efeitometafórico, pode-se compreender a relação entrelíngua e discurso: a língua pensada (ORLANDI,1996, p.91).

Em Águas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verão, a personagem Martaapresenta a imagem constante do ciclo das águas.Nesse romance a narradora é uma presença forteque a todo o momento realiza uma interpretação,uma atividade da esfera do conhecimento em queum sujeito aprecia os fatos e tece comentários. Ooitavo capítulo traduz o gesto de interpretação dapersonagem ao avaliar a transformação queacontecia no movimento da casa, nas bagunçasdas crianças, na sabedoria contida na fala daempregada quando chegavam as chuvas, estasvistas por trás das janelas: “Apesar das palavrasde Rosalina ficávamos sempre inquietos quandovinha a chuva e – ela o garantia...- perfeitamenteinsuportáveis” (p.25). Configura-se a chuva comoum espaço recôndito, dominado pelo aquático:“de repente lembrava-se que a chuva lá fora não

era a brincar, não era imitação nenhuma: - Quetempo este!” (p.26). É um mundo marcado, pelanarradora, como repetitivo e monótono, por issoMarta correlaciona a repetição da mesma cenaano após ano e a procura noutras terras de águasdiferentes das que vinham das nuvens. A direçãodo olhar das personagens, através da vidraça,prende-se à linha do horizonte, o qual não ofereciaperspectivas, contrastando com a chuva, querepresenta a graça, a sabedoria, a fertilidade.Depois dos morangos e dos figos, a chuva era osinal de que a partida estava para breve. Eliadereafirma que as águas são sempre germinativas,regenerativas, simbolizam a substância primordialda qual nascem todas as formas. A partida, aságuas que não vinham da chuva, as outras águas,tudo oferece ao leitor a imagem da transformação,do cio e do aprendizado.

No capítulo dez de Águas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verãoÁguas de verão, apersonagem consegue enxergar a cor azul dascortinas do salão do hotel, os grandes corredores;observa os músicos, sente a tristeza de suasmelodias e as relaciona à tristeza de suas faces.O nascimento da menina Bé, então, representauma grande mudança na vida da personagem. Avisão, a audição, a percepção, ao seremdespertadas, revelam que o ser humano teve seussentidos embotados ao longo do tempo. Onascimento significa a aquisição de um saber,possível por promover frequentes indagações àpersonagem e a seus irmãos no transcorrer doepisódio.

Ao utilizarmos a expressão imagem e gestosde autoria, estamos fazendo da leitura um atosimbólico da prática discursiva do narrador. Asobras denunciam a necessidade de procurar-seum novo esquema de leitura, pois trata-se de umnarrar elaborado por um sujeito de acontecimentosocorridos com ele próprio, item imprescindível defidedignidade, do contrato que se estabelece entreele e o leitor; daí a objetividade na focalizaçãodos fatos. Isso obriga o leitor a atentar, no decursoda leitura, aos expedientes narrativos empregadose a dissociar nitidamente narrador de personagem.

1 - Doutora em Letras pela USP e professora daárea de Língua Portuguesa da UNEMAT, campusuniversitário de Tangará da Serra. E-mail:[email protected] - Mantive a grafia original do título quando desua publicação. A obra narra a história de umadolescente, cujo ídolo é o seu tio. Toda a narrativa

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se desenvolve a partir de um acidente ocorridocom ambos, tio e sobrinho, quando o segundotentava salvar o primeiro.3 - A história é contada pela personagem Marta,que, ao longo da narração, expõe os seus conflitosde adolescente.4 - Teoria bakhtiniana, a qual propõe que todotexto dialoga com outros textos.5 - Só existe onde houver diferentes pontos de visãoou sistemas de interação. Ex. eu/outro.6 - O autor Ziraldo Alves Pinto é conhecido nomeio social artístico-literário apenas como Ziraldo.

Aceito para publicação em 01.06.2009

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“O lodo”, conto publicado na obra OOOOOconvidadoconvidadoconvidadoconvidadoconvidado

1, em 1979, é um dos mais expressivos

contos murilianos, em que o fantástico surge comoexpressão de um problema ético-existencialprofundo: a recalcada consciência de culpa pelatransgressão de um interdito levantado pela Igrejae pela sociedade: o incesto. É em torno dessatransgressão, sem perdão, que gira o enredo doconto, sem que em nenhum momento esse “crime”seja mencionado diretamente. A nós, leitores, cabea tarefa de ir decifrando os índices que o autorvai jogando, aqui e ali, para que, ao final, atragédia, ali em causa, seja compreendida.

Na trilha do fantástico o texto narra em terceirapessoa onisciente a história de uma personagemque, de uma simples consulta com um psicanalista,ingressa numa sucessão de mal-entendidos,enquanto sua vida, aos poucos, deteriora-se, deum modo avassalador, sem que ele possuaquaisquer meios de defender-se dosacontecimentos insólitos e destruidores que se vãoalojando em seu cotidiano e o desalojando desua própria vida, já que perde, por completo, odomínio sobre si mesmo.

A trama em si é simples e ao mesmo tempoabsurda: Galateu, um pacato funcionário de umacompanhia de seguros, devido à “uma depressãoocasional”, aceita o conselho de um amigo e vaiconsultar o Dr. Pink, um psicanalista. Depois,desgostoso com o interrogatório a que foisubmetido (“perguntas imbecis sobre sua

ResumoResumoResumoResumoResumo: O presente estudo procura situar o conto “O lodo” do brasileiro Murilo Rubião, dentro da literaturafantástica. Trata-se de um texto crítico, provocativo, que apresenta uma realidade que se situa por detrás daaparência imediata e desafia as relações lógico-causais do racionalismo ocidental. A experiência do insólito étratada, após o exame dos estudos desse tipo de relato, como um locus privilegiado, onde a dúvida se instala embenefício da lucidez do homem na sociedade.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: fantástico; irreal; insólito; absurdo; realidade-insólita.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This study aims to place O lodo, a short story by the Brazilian writer Murilo Rubião within the fantasticliterature. This is a critical, provocative text which presents a reality that lies behind the immediate appearance and defieslogical-causal relations of the Western rationalism. After the examination of this type of narrative studies, the experienceof the unusual is treated as a privileged locus, in which doubt is established for the benefit of man´s clarity in society.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: fantastic; unreal; unusual; absurd; unusual reality.

adolescência”) (p. 89) e a acusação de que“carregava dentro de si imenso lodaçal” (p.89),decide não comparecer mais às consultas.Entretanto, é constantemente perturbado pelostelefonemas do médico, que exige sua volta. Elenão cede. Mas não tem mais sossego; nãoconsegue concentrar-se no trabalho, porque “opensamento girava entre o episódio sepultado noinconsciente e a curiosidade malsã do doutor Pink”(p. 91-92).

Tomava soníferos para dormir; tinha pesadelosterríveis e uma manhã, ao acordar, sentiu que seu“mamilo esquerdo desaparecera” (p. 92) e em seu“lugar despontara uma ferida sangrenta, abertaem pétalas escarlates” (p. 92).A partir daí, osabsurdos se sucedem: é obrigado a pagar altaquantia ao analista pelas consultas a que nãocomparecera; suas feridas cicatrizam-se compomadas, mas logo voltam a se abrir; as doresvão-se tornando insuportáveis; já não conseguelevantar-se da cama.

A tragédia de Galateu culmina com a chegadada irmã, Epsila, e o filho retardado que possui onome de Zeus e que o chama de pai.Despoticamente, ela o torna seu prisioneiro e odeixa sem os medicamentos que pudessem aliviaras dores das feridas. Aos poucos ele vaiapodrecendo, sob as vistas da irmã e do médicoque, “com o bisturi, limpou as pétalas da ferida”(p. 99). Com essa frase o conto termina.

A narrativa acaba, mas persiste em nós a

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sensação de que o insólito, que suscita ofantástico, vai prosseguir indefinidamente, numainevitável condenação, numa “repetição cíclica”do fato central acontecendo eternamente, o queconduz à negação do tempo, à introjeção daeternidade no fluir temporal, adicionando à almaa sensação de absurdo, como desejava o próprioRubião:

Nunca me preocupei em dar um final aos meuscontos. Usando a ambigüidade como meioficcional, procuro fragmentar minhas históriasao máximo, para dar ao leitor a certeza de queelas prosseguirão indefinidamente, numaindestrutível repetição cíclica. (p.4).

Em muitos depoimentos, Murilo Rubiãosempre frisava o grande paradoxo da criaçãoliterária: o prazer de criar histórias e a luta com apalavra e com o texto; apontava, também, que osescritores são, de certa forma, profetas dos temposmodernos, porque apreendem nas coisas umsentido que escapa aos outros, sendo a literaturauma transformação/deformação da realidade etal deformação, a nosso ver, é o que daria lugarao fantástico. A irrupção do fantástico, ourealismo-mágico (como conceituam muitosestudiosos de sua obra), em seus textos, é gradual,começando sutil e terminando denso,aproximando-se do absurdo, do grotesco, pararealçar reflexões de caráter existencial, semcompromisso com uma verdade absoluta.

Murilo nunca criou espaços surreais para assuas narrativas. Todas elas acontecem num espaçorealista, como requer o fantástico contemporâneo.A problemática existencial que transparece em suaobra é constituída com aparente naturalidade, atémesmo quando critica a sociedade mecanizada,como acontece, por exemplo, no conto “Oedifício”. Na maioria dos seus contos, o insólitoacontece num espaço realista, para deixartransparecer a relação opressor/oprimido, poisnele há somente uma “aparente aceitação domundo moderno”, com seu relativismo e misérias,o que revela, no fundo, um descontentamento doautor, tanto com o passado, como com a situaçãodo país à época em que criava suas histórias.

Rubião costumava dizer que não se viasensibilizado com as histórias de Julio Verne e queas lia com “pouquíssimo encantamento”; afirmavaque nunca lhe encantavam “os santos com seusmilagres”, nem os homens de outros planetas eque vivia mesmo intensamente os mistérios

insondáveis do nosso pequeno mundo, povoadopor gente frágil e egoísta, mas capaz de delicadasmágicas.

E, como num passe de mágica, em Rubião, ofato narrado, aparentemente absurdo, ganhaveracidade pelo poder das palavras tecidas peloautor. O seu discurso, em que o desejo parece terlivre passagem, vencidos os primeiros obstáculos,realiza uma trajetória abstrata e se desliga dasobrigações da verossimilhança realista, comopodemos observar na narrativa escolhida paraestudo. Nela, evidentemente, estamos no reino doimaginário - lugar em que tudo é possível, ondetudo pode acontecer, mesmo as coisas maisimprováveis, como um mamilo desaparecer e emseu lugar brotar uma “ferida sangrenta, abertaem pétalas escarlates”. É como se Murilo, aoregistrar o insólito na narrativa, registrasse oinexplicável da própria vida, ofício de todo o bomescritor: tecer o improvável com os fios do irreal.Esse autor nunca esteve tão atual, uma vez queestamos vivendo um tempo difícil de se entender,de pouca magia e de muitos absurdos.

Ao analisar a obra de Murilo Rubião, DavidArrigucci Jr apresenta-o como filiado ao mundoficcional de Kafka e precursor da modernanarrativa fantástica entre nós. O crítico mostra quedentro dessa mesma modalidade do narrar podehaver diferenças essenciais no tratamento do temasem que haja ruptura do fantástico em si.

Nesse sentido, o insólito, elemento essencial àtrama fantástica, aparece em quase todas asnarrativas de Rubião como metáfora do real, ou seja,como representação da experiência histórica do nossotempo, numa dimensão do irreal “carregado deverdade humana e histórica”, mas que deixa entrevero quanto são tênues as fronteiras entre o real e oirreal. Isso se deve ao comportamento mecanizadodo mundo em que vivemos que de tão regido pornormas burocratizadas, perde a capacidade deestranhar o absurdo. Em função disso, Arrigucci Jrvê aí o fantástico.

Se em Cortázar e Borges o fantástico se constróipelas artimanhas dos processos narrativos, emRubião ele nasce da maneira de narrar, própriadesse mineiro, que não revela “apreensão diantedo inesperado”, porque, segundo Candido (1999,p. 105), “aqui [na literatura] se situa o aparenteparadoxo de dar forma à fantasia, a fim decompreender melhor a realidade”.

Para que tenhamos disposição para aceitaras narrativas fantásticas de Rubião, é necessárioque acreditemos no mundo que nos apresenta o

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autor e no qual agem as suas personagens. Sóassim poderemos perceber como insólitos osacontecimentos que se dão com elas, isso porqueo relato fantástico pode se valer de diferentesestratagemas, como os que apontaremos a seguir.

O escritor fantástico apresenta, em primeirolugar, como verossímeis fatos “aparentementerealistas” que servem de tela para o surgimentodo inexplicável. Em segundo lugar, usa deprocedimentos tais que, na narração do “eu”(TODOROV, 1992), o relato atribuído ou a adoçãode um ponto de vista de uma personagem facilitaa identificação do leitor. Em terceiro lugar, eleintroduz o questionamento do protagonista ou donarrador com a ajuda da modalização e dosconotadores, essencialmente aqueles de tipocognitivo, que ao permitirem avaliar afantasticidade do acontecimento, garantem aaparição da dúvida, ensinando a nós, leitores, acapacidade de raciocínio do herói e do narradore nos convence a adotar a mesma linha dequestionamento. Finalmente, ele impõe quejulguemos por nós mesmos o próprioacontecimento, deixando a “porta aberta” a todasas explicações possíveis ou impossíveis.

Montague Rhodes James (apud TODOROV,1992, p. 31) afirmava que: “Às vezes é necessárioter uma porta de saída para uma explicaçãonatural, mas deveria acrescentar: que esta portaseja bastante estreita para que não se possa usá-la”. A estudiosa Nelly Novaes Coelhoreafirma essaideia ao acrescentar que “o maravilhoso, oimaginário, o onírico, o fantástico [...] deixaramde ser vistos como pura fantasia ou mentira, paraserem tratados como portas que se abrem paradeterminadas verdades humanas” (p. 9, grifos daautora).

Podemos constatar a falta de saída para aspersonagens murilianas, ao ler qualquer uma dasnarrativas desse escritor, pois nelas as portas seabrem somente para ampliar e diversificar a visãodo leitor a respeito da problemática socioculturalinstalada no texto. Nos contos de Rubião, a farsae o insólito ocupam o espaço da realidade. Temos,então, a literatura posta em questão, a crítica daliteratura implícita numa narrativa queintencionalmente se situa na superfície dos eventosnarrados, enquanto os elementos essenciais datrama permanecem ocultos, ou ambiguamentesituados.

Em “O lodo”, o passado é ausência. Mas,nos contos anteriores, o passado, dado como

forjado, é, entretanto, objeto da narrativa. Em “Oex-mágico”, bem como em “O lodo”, ele ésimplesmente suprimido. A diferença é substancial.Enquanto sequência de acontecimentos narrados,o passado é “real” e nós, leitores, ainda que opassado só exista no encobrimento do texto que orevelaria, não podemos desconhecê-lo. Ele seimpõe durante todo o relato: narra-se a históriado que não é dito, evento memorável que dariasentido aos acontecimentos da ação ficcional.

Estamos assim, nessa narrativa, em plenodomínio do fantástico, como “representação” deuma culpa recalcada - verdadeiro motivo da tramae que já é anunciada metaforicamente pela epígrafeusada no conto: “Tu abriste caminho aos teuscavalos no mar, através do lodo que se acha nofundo das grandes águas” (HEBACUC, III, 15).

O uso de epígrafes bíblicas é uma notávelcaracterística da obra de Murilo Rubião que sedesdobram num jogo intertextual: uma leitura iniciale isolada revela apenas o referente bíblico oupoético; já uma leitura mais atenta e crítica permitetraçar uma profunda interdependência alegóricaentre epígrafe e conto.

Segundo o significado simbólico ou míticocontido na ideia da epígrafe de O Lodo,os cavalosdo mar,que Netuno fez surgir das ondas marinhas,simbolizam as energias cósmicas, as forças cegasdo caos primitivo. Enquanto no plano psíquico, o“cavalo” simboliza os desejos exaltados, osinstintos. Temos, portanto, desde o início, o índicedo instinto primário (o incesto) que seria o motivodesencadeador da trama.

Jorge Schwartz chama a atenção para o fatode que todas as epígrafes revelam um momento aser alcançado, embora nos textos de Murilo nãohaja o jogo de “comprovação” da profecia:

[...] nem esta se concretiza “a posteriori”, massim na “durée” da escrita, no nível da próprialinguagem. O perpétuo acontecer, repetitivo ecircular, reduz a um eterno presente o tompretensamente futuro da voz profética. Estapassa a ser assim máscara pretensamente futurada voz profética. (p. 11).

De fato, a epígrafe não se situa ali para indicaro que está por vir, mas o que está sucedendo notempo mesmo do relato, sem caminho visível paraqualquer retorno.

A ação, na narrativa em estudo, é introduzidano imperfeito do indicativo, criando, no entanto,dado o estilo vívido do relato, construído em

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períodos curtos e declarações em discurso direto,tanto do narrador quanto do médico, uma impressãode simultaneidade com os fatos narrados.

Em si mesmas, as reações da personagemGalateu, inicialmente um ser imerso na indiferença,com sua sensibilidade pervertida, não causamestranhamento nem despertam quaisquersuspeitas. Ele vive o sentimento do que, em termospsicanalíticos, denomina-se “resistência”, bastantecomum em pacientes no início de um tratamentodessa espécie.

Na verdade, o expediente menor, fruto de suaprópria iniciativa, surte efeito, como seus esforçossurtiriam, caso lhe fosse dado escolher. Mas essapossibilidade lhe é negada reiteradamente. É aexterioridade que ameaça, adoece e deteriora nãosó sua saúde, como seu poder decisório:

Dois meses decorridos, a consciênciatranqüilizada, Galateu se dividia entre a rotinado escritório e os encontros com a mulher dodiretor. O analista não voltara a importuná-loe pensou ter ficado livre dele. (p. 93).

Como ainda podemos observar, um problemaaparentemente banal – uma depressão ocasionalda personagem – gera problemas muito maiores,que se vão tornando intransponíveis. Galateu nãopode mais decidir sobre os fatos intervenientes emsua vida e vai aderindo a uma passividade quasecompulsiva. O medo sobrevém inesperadamentediante da circunstância do tratamento e do queeste poderá trazer à tona.

Notamos que há um interdito na vida deGalateu, isto é, há algo que ele não revela, nema narrativa esclarece:

Procurou concentrar-se no trabalho, mas opensamento girava entre o episódioepisódioepisódioepisódioepisódiosepultado no inconscientesepultado no inconscientesepultado no inconscientesepultado no inconscientesepultado no inconsciente e a curiosidademalsã do Dr. Pink. Insurgia-se contra essaintromissão em sua vida, receoso de que omédico pressentisse a verdade toda. [...]Preocupado quanto aos objetivos do analista,esforçava-se por fugir de uma cena quequequequequejulgara esquecida para semprejulgara esquecida para semprejulgara esquecida para semprejulgara esquecida para semprejulgara esquecida para sempre. (p. 61,grifos nossos).

Nesse “episódio sepultado no inconsciente”,há uma sugestão de incesto que se ajusta bem àimagem da cena que era preciso esquecer. Trata-se de um interdito que envolve não só a irmã deGalateu, mas as mulheres, de modo geral, o queé deixado claro de modo intencionalmente direto

e vulgar em um dos seus diálogos com Dr. Pink:“É bom pegar o dinheiro agora, caso contráriodarei melhor destino a ele: mulheres” (p. 90).

Affonso Romano de Sant’Anna ,,,,, ao refletirao refletirao refletirao refletirao refletir

sobre o desejo e sua interdição, afirmasobre o desejo e sua interdição, afirmasobre o desejo e sua interdição, afirmasobre o desejo e sua interdição, afirmasobre o desejo e sua interdição, afirmaque “se a história do homem é a históriaque “se a história do homem é a históriaque “se a história do homem é a históriaque “se a história do homem é a históriaque “se a história do homem é a históriade sua repressão, estudar o desejo e ade sua repressão, estudar o desejo e ade sua repressão, estudar o desejo e ade sua repressão, estudar o desejo e ade sua repressão, estudar o desejo e ainterdição é uma maneira de penetrarinterdição é uma maneira de penetrarinterdição é uma maneira de penetrarinterdição é uma maneira de penetrarinterdição é uma maneira de penetrarmelhor nessa mesma história” (p. 9).melhor nessa mesma história” (p. 9).melhor nessa mesma história” (p. 9).melhor nessa mesma história” (p. 9).melhor nessa mesma história” (p. 9).

Em muitos dos contos de Murilo Rubião, oobjeto de desejo é a mulher, a qual funciona comoelemento interditor. “O lodo” está incluído entretais contos, em que a personagem Galateu temcomo objeto de desejo as mulheres – o que vemosde modo explícito na sua fala. E sua irmã, Epsila,no espaço da interdição se encontra, culturalmenteconstituída, como sendo o proibido, apesar deque a própria narrativa inicialmente encobre ofato do incesto, deixando os leitores cheios dedúvidas – se existiu, realmente, na biografia dapersonagem central, o envolvimento com a irmãou não.

Naturalmente que a questão não se fecha comessa observação e a ambiguidade permanece norelato, o que aumenta a estranheza dosacontecimentos que se vão sucedendo no tempoda narração. No entanto, nos persegue – e aopróprio Galateu, embora isso não seja declaradode modo explícito – a ideia de que a personagemse encontra a purgar uma culpa ou um delito.

Ao examinarmos a escolha dos nomes,pensamos em Galateu e como a escolha desse nomeé significativa no contexto da narração do conto. Seo associarmos a Galatéia, veremos que, na mitologiagrega, há mais de uma versão desse mito.

Em uma dessas versões, Galatéia era filha deNereu – o “velho do mar”, por excelência, que sesitua entre os deuses que detêm as forçaselementares do mundo – e de uma divindademarinha siciliana. A jovem era muito bela, comuma pele branca como leite, segundo a etimologiado seu nome. Ela habitava no mar calmo. Eraamada pelo ciclope, Polifemo, filho de Poseidón eda ninfa Toosa, mas amava o belo Ácis, filho dodeus Pan – deus dos pastores e rebanhos. Umavez, quando os amantes se encontravamdescansando à beira do mar, Polifemo osdescobriu. Ácis tentou fugir, mas o furioso gigantelançou uma enorme rocha que o esmagou.Galatéia, muito triste, pediu socorro à ninfa Toosa,que o converteu em um rio de águas límpidas elhe deu o nome de Ácis.

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Em outra versão, Galatéia era uma cretenseque tendo tido uma filha ameaçada de morte pelomarido, que queria só filhos varões, veste-a semprede menino. Mas, ao crescer, torna-se uma belamoça e o marido começa a desconfiar. Para livrá-la da ameaça de morte, Galatéia pede à deusade Leto que transforme a filha em rapaz. Dessatransformação nasce Leucipo.

Entre as diferentes versões sobre o mitoLeucipo, há uma diretamente ligada à personagemde “O lodo”. Nessa versão, Leucipo aparece comoexcelente guerreiro que, ao incorrer na cólera deAfrodite, foi por esta condenado ao castigo deapaixonar-se pela própria irmã, tornando-se seuamante.

Impossível sabermos se tais mitos (ou qualdeles) teriam sido utilizados conscientemente porMurilo Rubião. Fato, aliás, que não importa muitopara análise de seus rastros no conto aqui emcausa. Importante é notar que a onomástica nãoé mera causalidade em sua obra. O aspectorelevante na leitura do mito é o desalojamentobrusco de uma realidade por outra, ameaçadora.Assim como Polifemo subverte o destino de Galatéiae Ácis, os acontecimentos insólitos que têm lugarna vida da personagem de “O lodo” modificamradicalmente a sua vida até a aniquilação.

É em face dessa “culpa” de Galateu, a queo homem parece condenado, desde temposimemoriais, haja vista Prometeu acorrentadoPrometeu acorrentadoPrometeu acorrentadoPrometeu acorrentadoPrometeu acorrentado,de Ésquilo, que traz o tema da culpa e da expiaçãocomo sendo um dos dilemas da condição humana,ou mesmo a culpa de Adão, ao desobedecer aoCriador, que se debate a consciência de Galateu.

Ainda por essa culpa, que ignora suaverdadeira razão de ser, que “lodo” se insere nouniverso fantástico ou absurdo criado por Kafka,no início do século XX, a partir da tragédia deGregor Samsa, em A metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfoseA metamorfose.Kafka,criador do estranhamento e da incredulidade naliteratura, percebeu perfeitamente que a fantasiaexacerbada, sem o vínculo com a realidade, erauma fantasia em desuso, que já não agradava aoleitor do século XX.

Nós, leitores, vamos, nessa narrativa, aospoucos descobrindo que o sentimento de culpa éa causa invisível dos problemas e sofrimentos queGalateu vai tendo que suportar. Observamos, porexemplo, a relação da doença, contrastivamente,com a etimologia do nome “Galatéia”. O que seriaseiva vital transmuda-se em patologia. Os mamilosse abrem para destilar odores doentios e fétidos.

Galateu é um ser que sofre, e sofre cada vezmais intensamente, pois todos os seus esforços semostram inúteis. Recusando-se a se encontrar como conhecimento profundo de si mesmo, recusa-se, por conseguinte, a modificar sua vida natotalidade de seu conteúdo, assim, fecha ocaminho a qualquer possibilidade de mudar suaconduta, negando a si mesmo, a lei da evolução.Poderíamos dizer, voltando à epígrafe, que ocavaleiro perde o domínio completo sobre suapossível montaria – os cavalos – e as forçasmaléficas do “lodo” o remetem à mesmaqualidade deste, matéria orgânica sem remissão.A palavra determina a condição existencial. Emvez de se constituir em artefato construído a favordo homem, a palavra volta-se contra ele e odestrói.

O nome do deus olímpico maior é atribuído àcriança, situando-a no espaço da figura paterna,já que Zeus é o “pai dos deuses”. LembrandoCronos, o pai que engolia os filhos para evitarque se cumprisse a profecia de que um deles odestronaria. Mas, ao chegar à idade adulta, Zeusobrigou o pai a vomitar os seus irmãos, aindavivos, e o encerrou sob a terra.

Na narrativa, também, ao tempo em que oespaço do pai é ocupado, o filho deformado queo ocupa desencava o acontecimento do passado,rasurado no relato em termos de verbalização: ointerdito, o incesto, do qual teria nascido o seranormal, estigma da queda no lodo, que marcaa perda de uma redenção possível. Portanto, opai (Galateu) tem seu espaço vital roubado, emprimeiro lugar, pelo gesto da criança, que “acendea luz da cozinha”, onde Galateu se encontravatentando escapar da vigilância da irmã e dasituação de prisioneiro a que se vira reduzido, umavez que a irmã havia cortado todos os seuscontatos com as outras pessoas.

Ora, “acender a luz” é irrefutavelmente omomento em que a situação de “emparedado”(ARRIGUCCI JR, 1999) desvela-se por completo:Galateu ali está, posto a nu, diante de sua situaçãosem saída, ainda enfatizada pela verbalização dofilho Zeus: “- A mãe escondeu as chaves”. Nãohavia mais para onde fugir, para onde ir: Galateusabe que chegou o momento em que a culpaemergiu e não há mais saídas.

Uma linha tensional crescente conduz essanarrativa para a radicalização do continuum doabsurdo incontrolável, pois independente dasações individuais. Vemos, perplexos, em face dos

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acontecimentos, a liberdade (ou o livre arbítrio)ser inteiramente anulada: Galateu não temescolha, a não ser aceitar a nova condição deprisioneiro.

Se o fantástico se caracteriza - para retomaros termos de Castex (1951, p. 7) , por uma“intrusão brutal do mistério na vida real”, em “Olodo”, estamos diante do mistério que correspondeàquilo que os teóricos de hoje denominam umacontecimento insólito que deve, imperativo, serda ordem do impossível, do inexplicável. Ofantástico visa a confrontar o real e o irreal e agerar uma dúvida, no texto e no leitor, para queeste se abstenha de resolver o mistério,provocando, assim, o “escândalo”, termo criadotambém por Castex. O escândalo do conto, então,está centrado no continuum do absurdo, queparece se repetir eternamente e que não équestionado pelo leitor.

Se o fantástico se mostra o gênero da dúvida,do questionamento do real, da contestação daordem estabelecida, parece lógico que sejaigualmente rebelde a toda tentativa de submetê-lo às amarras da razão, das regras, das teorias,de uma ordem.

Assim também nos parece que as obrasfantásticas de Murilo se recusam a uma “resoluçãodo mistério”, antes abrindo para o questionamentoe para a dúvida. Ou seja, nem as personagensnem as cenas, necessariamente, precisamcorresponder ao real a que está acostumado oleitor dos livros realistas, estando estescomprometidos, em sua maioria, com arepresentação mimética da realidade. E,sobretudo, se a “realidade não tem a menorobrigação de ser interessante”, como disse JorgeLuis Borges, ao desarrumar o real, a narrativafantástica torna-se extremamente intrigante.

1 - Doutora em Estudos Literários de Literaturasde Língua Portuguesa pela USP e professora daUNEMAT, área de Literaturas de LínguaPortuguesa, campus de Tangará da Serra. E-mail:[email protected]

Aceito para publicação em 01.06.2009

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Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: Este texto apresenta uma leitura comparada de duas narrativas de memória infanto-juvenis – Os meninosOs meninosOs meninosOs meninosOs meninosmorenosmorenosmorenosmorenosmorenos, de Ziraldo, e Nas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do Brás, de Drauzio Varella, em que seus narradores, ao rememorararem suasexperiências infantis, tratam da complexidade da formação do povo latino-americano. 

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: memória; narrativa; diversidade; cultura; povos.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This paper presents a comparative reading of two juvenile memory narratives – Os Meninos Morenos,by Ziraldo and Nas Ruas do Brás, by Drauzio Varella – in which their narrators, by using remembrances of theirchildren’s experiences, deal with the complexity of Latin-American formation people.  

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: memory; narrative; diversity; culture; people.

No uso de um discurso em primeira pessoa,os narradores

2 de Os meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenos (2004),

do escritor Ziraldo, e o de Nas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do Brás(2001), de Dráuzio Varella, apresentam-seimbuídos de elevada carga de experiências de vidae conhecimento – este com 58 anos e aquele com72 anos de idade. Ambos interpretam e recriamas recordações de uma infância passada numespaço e tempo muito distinto do mundo que oscercam no momento da narração.

Ziraldo o recria no texto como um dos“meninos morenos”, que além de referir-sediretamente ao tema principal do texto, é umaexpressão que intitula a narrativa. O autor refere-se a si mesmo como a um representante da grandemaioria dos habitantes da América Latina, cujapele, demais aspectos físicos e culturais trazem ostraços essenciais e marcantes de inúmeras etniase culturas de povos de origem local (o índio) epovos oriundos das mais diversas regiões doplaneta que aqui, neste continente, encontraram-se e se misturaram:

Quando o homem branco chegou na minhaterra, encontrou meninos com carinha igual ade todos os meninos que viviam nas florestasúmidas da América ou nas altas montanhas dosAndes. Depois eles trouxeram os negros daÁfrica, que não queriam vir. E vieram tambémos árabes e outras gentes da Ásia. E todos semisturaram sem registro e sem cartório.(ZIRALDO, 2004, p.6).

Tanto Ziraldo quanto Varella, talvez este deforma mais direta e acentuada, tratam em seus

textos de algo bastante peculiar à espécie humanadesde as suas origens: o desejo de enraizar-se emum determinado local, conviver com o habitual eo tradicional e de deslocar-se de um espaço aoutro, rompendo obstáculos, aventurando-se como novo e com o diferente. De acordo com a históriada humanidade, antes de ser sedentário, o homemfoi nômade. É próprio de sua natureza o desejode transitar por outros mundos distintos, muitasvezes, distantes das terras onde nascera. ParaDomenico De Mais (2000, p. 163), a “aldeia e oporto, o deslocamento e a caverna convivem elutam dentro de nós, como necessidades biológicasherdadas da Pré-história, ambas vertentesindispensáveis ao percurso da civilização”. Acompreensão da natureza autobiográfica ememorialística das narrativas em estudo e daperspectiva do narrador terá como base de reflexãoa crítica de Antonio Candido (1986), “Poesia eficção na autobiografia”, referente às obrasliterárias de escritores mineiros produzidasrecentemente e qualificadas como autobiografiaspoéticas e ficcionais.

Ao analisar as memórias de Drummond,Candido aponta que o narrador poético realizaum duplo afastamento do seu eu presente:“primeiro, como adulto que focaliza o passadoda sua vida, da sua família, da sua cidade, dasua cultura, vendo-os como se fossem objetos decerto modo remotos, fora dele; segundo comoadulto que vê esse passado e essa vida, não comoexpressão de si, mas daquilo que formava aconstelação do mundo, de que ele era parte”(CANDIDO, 1987, p. 56). Se, de um lado, o texto

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literário narra a história do eu no mundo de formaparticular, de outro generaliza, na medida em queao tratar da existência específica de um indivíduo,acaba por tratar da história e biografia de umgrupo, isto é, de toda uma coletividade.

Para melhor entender que o particular, aexperiência do eu estão intimamente ligados aouniversal na narrativa memorialística, seránecessário lançar mão dos estudos realizados pelosociólogo Halbwachs (2004), para quem o atode lembrar está diretamente ligado às relaçõesinterpessoais e coletivas. A memória individualsurge a partir da memória coletiva: as lembrançasindividuais são constituídas no interior dos grupos,cuja memória está ligada à esfera maior datradição, que é a memória coletiva de cadasociedade. Halbwachs contraria, então, osargumentos de Bérgson (1999), seu mestre: navisão bergsoniana, o passado poderia ser revivido,isto é, continuar intacto em nossa memória,podendo vir à tona a qualquer momento.

Para Halbwachs, lembrar significariareconstruir com o olhar do presente, imbuído detodo conhecimento e experiências adquiridos nodecorrer de nossa vivência, as percepções dopassado. Nesse sentido, guardamos lembrançasde cada momento de nossa vida e as reproduzimosao longo de nossa existência através das quais seconfigura, continuamente, a construção de nossaidentidade (cf. HALBWACHS, 2004a, p. 111).Assim, o estudo do referido sociólogo sobrememória é um suporte teórico imprescindível parase pensar a formação identitária do sujeito nomundo contemporâneo, na qual a relação com ooutro se estabelece na constituição de um povo,tendo por base a mistura de elementosprovenientes das etnias e culturas pertencentes adiversas nacionalidades.

Para refletir sobre hibridização no processoformação do homem latino-americano, tão bemenfocada nos textos, lançamos mão dasabordagens de Benjamim Abdala Junior (2002) ede um de seus principais apoios teóricos, osestudos do historiador Serge Gruzinsk (2001). Deacordo com Gruzinsk, a globalização não é umasituação inédita na história da humanidade,própria do mundo contemporâneo, como écaracterizada pela maioria das pessoas queabordam o referido assunto: o século XVI secaracterizou pela expansão ibérica. Da mesmaforma que o século XX é o século americano, oséculo XVI foi o século ibérico.

Os acontecimentos do renascimentoconstituem como princípios elementares para oprocesso da globalização de todas as instânciasda sociedade. Dá-se, então, a expansão domundo ocidental, que resulta em uma contínuamestiçagem em diversas partes do mundo. Destemodo, observa-se que “as primeiras mestiçagensde projeção planetária aparecem, assim,estreitamente ligadas às premissas da globalizaçãoeconômica iniciada na segunda metade do séculoXVI” (GRUZINSKI, 2002, p. 18). Partindo dopressuposto de que todas as culturas são híbridase que qualquer mistura de elementos culturais eétnicos existe desde o início da experiência humanana terra, não se pode afirmar que a globalizaçãoimplica no surgimento de uma nova ideologia nocontexto do mundo moderno. De acordo comGruzinski, toda cultura é formada no decorrer dahistória por meio da dinâmica dos inúmeroscontatos entre os povos. Como diz Abdala Junior(2002), a natureza hibrida das culturas tem comoconsequência a abertura de caminhos para arenovação do pensamento, no sentido de ampliaro leque das reflexões básicas. Desse modo, essasreflexões teóricas nos subsidiarão no estudo dasnarrativas memorialistas focalizadas neste texto, quetão bem abordam processo de fusão de culturasna constituição do povo latino-americano,especialmente, do povo brasileiro.

O médico e escritor Drauzio Varella, neto deespanhóis e portugueses, dá relevância no iníciode seu texto à vinda de seus avós para o Brasil noinício do século XX, fazendo questão de se colocarcomo parte e fruto desse acontecimento marcantepara a história, cultura brasileira e latino-americana de modo geral, que é a chegada dosimigrantes, procedentes de diversas partes domundo, mais especialmente da Europa, paratrabalhar no lugar do escravo negro, libertadonaquela época por não atender mais aos requisitosdo Capitalismo.

O Brasil e demais países do “novo mundo”constituíam-se como uma “terra prometida” paraaqueles que, nos seus países de origens(pertencentes ao “velho mundo”), viviam sequiosospor uma vida menos desprovida, de melhorqualidade: “No começo do século, muitoseuropeus, cansados da guerra e da pobreza emque viviam, emigravam para o Brasil” (VARELLA,2000, p.6). Dentro dessa abordagem, opesquisador Herbert S. Klein (1999, p. 14-15), aotratar dos fatores de expulsão ou de atração

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responsáveis pela imigração, numa visão crítica,aponta que poucos são aqueles que migram pordesejo de mudança ou de aventura. Em suaperspectiva, o deslocamento em massa de pessoasdo “velho mundo” para o “novo mundo” se dá,então, pela busca de sobrevivência. Se pudessemescolher, jamais optariam por deixar suas casas,suas tradições, suas comunidades de origem.

Ao falar de sua infância vivida às margensdo grande rio Doce, em Minas Gerais, o narradorde Os meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenos coloca-se como umpersonagem comum, representando não só ascrianças da região onde viveu, mas de todo umpaís ou mesmo de um continente: “Quem sabeessa gente morena que hoje habita o Brasil inteironão vai ser, no livro de História Geral do anoquatro mil, por exemplo, um povo que surgiu nasAméricas?” (2004, p. 6). Ao traçar um diálogodireto de seu texto de memórias autobiográficascom a poesia de Humberto Ak’abal - um poetaguatemalteco que também versa sobre sua vidade menino, com quem o narrador declaraidentificar-se – Ziraldo projeta-se como parte docorpo de intelectuais que discutem e pensamatualmente a complexa realidade étnica e culturallatino-americana.

Ao traçar o perfil do homem latino-americano,por meio do relato de sua história pessoal, acreditoque o Narrador queira trazer para reflexão apossibilidade da união desses países que podemconstituir-se entre si uma comunidade, levandoem consideração as diversas características emcomum que possuem. Essa visão de Ziraldo estáem consonância com a abordagem de AbdalaJunior. Para este, em oposição ao processo dedesagregação dos Estados nacionais, muitopresente no mundo atual, pode acontecer ocomunitarismo, o qual propiciará o surgimentode uma agregação supranacional:

Se pensarmos com os pés no Brasil e a cabeçadeslocando-se para outros territórios que nosinteressam, duas formas de articulação político-cultural se nos impõem: aquelas que apontampara a América Latina e as que têm em seushorizontes os países da língua portuguesa. [...]Num mundo de fronteiras múltiplas, torna-sepoliticamente indispensável ao pensamentocrítico considerar o sentido estratégico dessasassociações comunitárias supranacionais, combase no comunitarismo cultural. (ABDALLAJUNIOR, 2002, p. 31).

Ao analisar o percurso de desenvolvimento da

humanidade, observa-se que a cultura se constróihistoricamente e de maneira dinâmica, porintermédio do contato entre diferentes povos e diversasculturas (cf. ABDALLA JUNIOR, 2002, p. 21). É oque se dá com a chegada dos imigrantes na primeirametade do século XX à América Latina, fato esterepresentado nos primeiros capítulos de Nas ruasNas ruasNas ruasNas ruasNas ruasdo Brásdo Brásdo Brásdo Brásdo Brás pela chegada ao Brasil dos avós doprotagonista, vindos da Espanha e de Portugal:“Como outros estrangeiros, meu avô foi morar noBrás” (2000, p. 07). O sujeito, ao se deslocar, nãosó transforma-se a si mesmo, mas também o outrocom quem mantém contato. Dessa maneira, ohomem, ao habitar um novo espaço, contribui paradar a este uma nova face, transformando assim suacultura, seus valores e, enfim, todo o modo de vidade que passa a fazer parte.

As ações da narrativa de Varella concentram-se na grande São Paulo e, em especial, em um deseus bairros, o Brás. Este adquire relevância nanarrativa, considerando que dados extratextuaisapontam o referido espaço como destaque quantoao aspecto da diversidade cultural e étnica. Noperíodo de 1880 a 1980, metade dos cinco milhõese meio de imigrantes que vieram para o Brasilficaram em São Paulo. Além do mais, avalia-seatualmente que, na capital paulistana, existem maisde cem etnias ali representadas.

As ruas do Brás constituem um espaço emconstante metamorfose, marcado pelosacontecimentos do período industrial. O Brás éum bairro da cidade São Paulo de maior destaqueno que diz respeito à dinâmica da imigração,devendo considerar que é lá que situava a famosaHospedaria do Imigrante. Construída em 1886,com o objetivo de abrigar todos os imigrantes osquais chegavam de navios aportados em Santose encaminhá-los para o trabalho. A hospedariatinha capacidade para acolher até três mil pessoas.Aproximadamente dois milhões e meio deimigrantes e sessenta nacionalidades diversaspassaram por lá. Tamanha era a concentração deimigrantes italianos no referido bairro queespanhóis, portugueses e brasileiros, como relatao narrador, eram vistos ali como figuras estranhas.Observe-se, ainda, que o evento da imigraçãoganha relevância na obra de Varella com apresença da foto, no primeiro capítulo, registrandoa chegada dos imigrantes ao Porto de Santos(2000, p. 07).

A obra Nas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do Brás revela o ladoavesso e contraditório das grandes potências

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européias tanto nos aspectos culturais, quantonos políticos e econômicos. Grande massa depessoas, de baixo poder aquisitivo, oriunda dospaíses europeus, por conta das dificuldades emque viviam, são pressionados a migrarem paraas terras do além mar em busca de melhorescondições de existência. Dando prosseguimentoa essa reflexão, o mapa “morenocêntrico” deZiraldo (2004, p. 74-75), que coloca a Américado Sul na sua posição central, também vai nacontramão do eurocentrismo: “Hoje resolvidesenhar o mapa de novo, do jeito que eu faziaquando era menino. Só que agora vou trocar ocentro do mapa de lugar. Vou fazer o mapa-múndi com a terra dos meninos morenos no meiodo mundo” (p. 73). Em sentido contrário aoeurocentrismo, também foi a atitude de Ziraldoque alinhavou seu texto não só à tradição literáriaeuropéia ou norte-americana, mas especialmenteà poesia de um latino-americano, HumbertoAk’abal.

O branco colonizador, ao se instalar naAmérica Latina, trouxe com ele sua forma política,a sua cultura e a sua história. O historiadoreuropeu e mesmo os oriundos de outros paísesprivilegiaram “a história do Ocidente emdetrimento da história do resto do mundo” eespecialmente a “história nacional em detrimentoda história de seus vizinhos” (GRUZINSKI, 2001,p. 55). Ao colocar no centro do mapa-múndi aAmérica Latrina, creio que o narrador de OsOsOsOsOsmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenos não está apenas agindo nosentido inverso ao pensamento eurocêntrico, masassumindo seu ponto de vista a partir de seu lugarde origem, pois se assume étnico-culturalmentecomo fruto dessa mistura planetária presente nocotidiano de cada um de nós.

Dessa forma, Ziraldo, por meio de seu texto,chama-nos a atenção para o fato de que “oocidental não é mais o universal”. O narradormostra-se consciente da importância do seu espaçoe de sua cultura de origem na constituição de suaidentidade, mas sem descartar a importância dacultura e etnia do homem ocidental na suaformação, principalmente através das origens damãe, cuja família era constituída por “uma misturadanada”, inclusive de pessoas brancas, isto é, deorigem européia, pois havia “gente de olho verde,de cabelos negros, de cabelos louros, de rostofino, de rosto largo, [...] de pele muito morena,pouco morena...” (2004, p. 71). Na suaabordagem, Ziraldo não descarta os elementos

oriundos do pensamento da tradição ocidental quelhe são relevantes para a reflexão sobre a naturezade seu texto, ao referir-se à obra de FernandoPessoa ou ao tratar, de forma direta ou indireta,das ideias proustianas a respeito da memóriainvoluntária, como acontece nesta passagemreferente à figura importante do seu avô: “Convivicom esse homem por quase cinqüenta anos. Todavez que ouço a chuva tamborilando no telhado,sinto uma enorme sensação de aconchego esegurança” (p. 13).

Nesse sentido, Ziraldo não dá primazia apenasao autóctone em detrimento dos valores europeus,considerando que o pensamento e os valoresculturais indígenas não se apresentam mais dentrode seus contornos e estado de “pureza”. O seuenfoque está sempre no surgimento de um povodiferente através da mistura de várias etnias e culturas.

Ao centrar-se no espaço das ruas, como estádito no próprio título do livro - Nas ruas doNas ruas doNas ruas doNas ruas doNas ruas doBrásBrásBrásBrásBrás - a narrativa de Varella institui como seu oespaço externo à casa. O espaço íntimo daconvivência familiar aparece muito pouco descritopelo narrador. Como se tratava de um menino,cabia a ele dominar o espaço fora e distante daresidência. Às meninas não lhes era permitidoafastar do interior ou dos arredores da casa e nemparticipar das brincadeiras masculinas, ocorridasgeralmente nas ruas do bairro. Constatação estaque nos remete aos valores morais e sociais daépoca. Nos anos quarenta e cinquenta do séculopassado, tempo da narrativa, apesar de a mulher,muitas vezes, já dividir com o marido a função deprover a casa e a família, não lhe era consentidomuito do que era realizado pelo homem.

Da mesma forma que o Brás é um espaçoimportante por abrigar representantes de diferentespovos em decorrência da imigração em São Paulo,Lajão, onde o herói de Ziraldo passou suainfância, mesmo sendo uma pequena cidade, foimuito importante quanto a essa dinâmica dosencontros interpessoais de diversas nacionalidadese culturas, considerando o fato de a mesma sediaruma importante estação da ferrovia Vitória-Minas,ponto de passagem das pessoas. O próprio nomeda cidade carrega em seu sentido histórico algoimportante nessa abordagem, pois Lajão se referiaa uma grande laje de pedra na qual aportavam,em tempos passados, embarcações quepercorriam o curso do rio Doce. Deve-seconsiderar ainda que este teve grande valor comovia de acesso à região para os europeus que

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vinham em busca da conquista de Minas Geraise do Espírito Santo. O rio Doce serviu como viade ligação dessa região com o mundo,contribuindo assim para que houvesse o encontroentre pessoas de origens distintas.

Nesse texto, o “menino moreno” (oprotagonista) corresponde, de forma dialógica, aum personagem de uma outra obra de Ziraldo,publicada pela primeira vez em 1996, O meninoO meninoO meninoO meninoO meninodo rio Docedo rio Docedo rio Docedo rio Docedo rio Doce, por priorizar o próprio rio enquantoum elemento relevante em suas memórias. Omenino, personagem desta obra, identifica-se como próprio rio Doce, o qual aparece com muita forçapoética na narrativa e também na formação dopersonagem principal de Os meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenos:“As foscas lembranças do Lajão me levavam tambémpara um quintal dividido por uma cerca eavançando para o mistério até chegar à beira dorio grande, um barranco alto de onde eu via o riomais largo do que o mar...” (2004, p. 14).

Dessa forma, o rio, representação simbólicado tempo e do próprio curso das memórias, assumesentido sublime no texto de Ziraldo, especialmente,na constituição do personagem principal, cujaidentidade pode estar relacionada metaforicamenteà densidade de sentidos da figura de um rio.

O rio com o fluir de suas águas é tambémsímbolo da fertilidade, da morte e de renovação.A corrente de suas águas representa o curso davida e da morte. E a sua descida rumo ao oceano,como acontece com o rio Doce, resultando noajuntamento das águas, significa o retorno aoprincípio, isto é, o fim de um ciclo e o início deum outro. Conforme a antiga concepção grega,o rio possuía um sentido muito rico, a quem os gregoscultuaram como um dos deuses. O rio possuía umsentido carregado de mistérios; ao mesmo tempoem que tinha o poder de irrigar, transportar os barcos,tinha também o poder de submergir, inundar eafundar as embarcações. Assim, ao mesmo tempoem que o rio era venerado, era também temido (cf.CHEVALIER, 1994, 780-781).

Essa gama de sentidos que tem o rio podeequipará-lo, metaforicamente, ao homem comtodos seus enigmas, complexidade e riqueza emsua constituição. Dessa forma, o penetrar na buscapela compreensão do homem latino-americano,focalizado por Ziraldo e indiretamente abordadopor Varella, é como penetrar nos percalços daságuas turvas de um grande rio em períodos decheias. Desse modo, o ser humano pode seridentificado com o rio, na sua acepção complexa,

cheia de mistérios e surpresas.Em O menino do rio DoceO menino do rio DoceO menino do rio DoceO menino do rio DoceO menino do rio Doce, de Ziraldo, o

protagonista e a própria narrativa têm suaexistência confundida com a do rio, pois esta éinterrompida, no final do livro, com a seguintepassagem: “o rio se desmancha no azul da águasalgada do mar. Onde a história do homem queveio vindo com o rio – menino feito de água –agora vai começar...” (ZIRALDO, 1996, p. 28).As reticências, além de significar o possívelprosseguimento da narrativa, indicam, enfim, acontinuidade das águas do rio num novo ciclo,representando o começo da vida adulta doprotagonista, que agora sai para o mundo comoo rio que se desmancha no mar. Nesse sentido,no curso de seus relatos, o narrador, em terceirapessoa do discurso, faz a seguinte reflexão: “pelorio vai se para o mundo” (p. 24).

No livro de Varella, o contato do protagonistacom o rio também representa essa sua busca pelomundo, quando ele, livre dos cuidados maternos,na sua caminhada rumo à adolescência econsequentemente à sua fase de homem crescido,lidera o grupo de meninos até mais velhos que elenas suas conquistas cada vez mais amplas, tantono que diz respeito ao espaço físico, quanto aosaspectos social e psicológico: “Era muito difícilchegar até as águas do rio. O barranco era alto einclinado” (2000, p. 59-60). O rio, naquelemomento, lhes é apresentado através de uma gamade significados muito contraditórios: ao mesmotempo em que lhe é temido, o rio representa oproibido, proporciona-lhe aventura e a sensaçãode liberdade, palavra esta que intitula um doscapítulos do texto. Ao falar do rio, Varella quertambém abordar o processo de transformaçãoocasionado pelo progresso em São Paulo. É,então, a ação do homem quebrando o percursoda natureza: “Naquela época o rio Tietê não erapoluído como hoje” (p.59).

O narrador de Varella coloca em sua perspectivacerta dose de saudosismo em relação às experiênciasvividas na infância. Nem as doenças e as mortesfrequentes pela falta de recursos da medicina daépoca afetaram o olhar positivo do narrador, nãosó de Varella, na sua linguagem direta de médico,mas também de Ziraldo, que lança mão de umalinguagem bastante subjetiva e brincalhona paratratar dos acontecimentos trágicos da sua infância:“Os bichinhos que matavam muitos de meusparceiros da infância não eram visíveis a olho nu”(1996, p.39).

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Ziraldo, ao tratar do passado, recria suaslembranças por meio de um discurso recheadode figuras, imagens e simbologia, revelando assimsua capacidade bastante reconhecida em lidar como amplo universo das palavras.

O fluxo das águas do rio, nas duas narrativasem análise, remete-nos ao fluxo da narrativa, quetraz à tona as experiências vividas pelosprotagonistas em tempos remotos. O mergulhonas recordações, através da memória, é tãocomplexo e emblemático como o mergulho nascorrentezas de um rio. É um mergulho tambémdo ser, no seu “eu”, mas em constante diálogocom o outro. Ao voltarem para si, para o seumundo em particular, esses narradores tambémtratam de questões essenciais e profundas daexistência humana.

A experiência pessoal é confundida com avisão externa do mundo da sociedade, pois aautobiografia se transforma numa“heterobiografia, história simultânea dos outros eda sociedade”, mas sem prejudicar o cunhoindividual, que é o filtro de tudo na narrativa(CANDIDO, 1987, p. 56).

Varella constrói esse percurso em busca doseu ser por intermédio de uma linguagem direta eobjetiva, a qual conta, para sua clareza, com asilustrações das fotos e desenhos, além do contrastemarcado pela grafia das letras pretas sobre o papelde cor branca.

Ao analisar os aspectos formais da obra OsOsOsOsOsmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenosmeninos morenos, observa-se que a sua grafiae seu designer têm por base a utilizaçãopredominante da cor marrom, “cor da terra”,expressão esta que aparece com muita frequênciaem toda a narrativa. O colorido da capa,assinalado pelo desenho de diferentes pessoas comroupas de cores diversificadas, somado à fototambém colorida de Ziraldo ao lado das criançasguatemaltecas na contracapa, correspondesemanticamente a essa ideia de mistura deelementos diversos, distintos e que está emconsonância com a simbologia da cor marrom,se considerar o processo de aquisição desta,constituído pela fusão do vermelho com o preto.

Ao analisar a simbologia da cor marrom,percebe-se que a mesma pode estar associada àprópria terra latino-americana, ao “enraizamento”de pessoas nesse continente, oriundas de diversasregiões do planeta, e à perspectiva de futuroapresentada, num primeiro momento, pelocolonizador e, num segundo momento, pelos

imigrantes. O colorido diversificado expressa,então, a vida e em especial toda a dinâmica demistura de povos, que apesar dos seus contrastes,dão origem a um novo povo. Nesse sentido, érelevante analisar o uso do marrom em váriastonalidades (através da monocromia), nacomposição da maioria dos desenhos, cujoscontornos, muitas vezes, não são bem definidos.Esse aspecto acentuado pelas letras em poucocontraste com a cor bege do papel - que tambémnão contrasta com o colorido bastante diversificadodas ilustrações da capa e de alguns poucosdesenhos no corpo do texto (em que há apredominância do vermelho, uma das coresresponsáveis pela aquisição do marrom) -contribui na narrativa para uma atmosfera deimprecisão e de subjetividade. A indefinição nãose dá só em relação ao olhar do narrador, mas,especialmente, em relação à perspectiva do leitor,pois cabe a este definir o sentido daquilo que lê.Esse fato é condizente à própria natureza damemória definida pelo narrador de Os meninosOs meninosOs meninosOs meninosOs meninosmorenosmorenosmorenosmorenosmorenos, para quem a falta de contornos precisosdas imagens lembradas é decorrente do longoespaço de tempo existente entre o momento danarração e o momento dos acontecimentosrelatados:

Quero voltar porque preciso esclarecer tantashistórias. Ali vivi dos três aos seis anos. Todasas lembranças são neblinosas e fora de ordem.A anta que, todas as tardes, atravessava a vila,caminhando calmamente em direção ao rio é,na minha lembrança, uma mancha negraflutuando, em câmara lenta, numa nesga de luz.(2004, p. 11).

A linguagem subjetiva ganha força tambémpelo aspecto sombrio, peculiar ao texto de Ziraldo.Há ausência de luz tanto nas cenas descritas,quanto nos desenhos monocromáticos. Aatmosfera noturna ganha ênfase em toda anarrativa, especialmente, na sua conclusão, cujaabordagem dá à lua a cor marrom. Segundo onarrador, a lua não deve ser representada na suaforma habitual, mas na cor “dos meninosmorenos” (2004, p. 91). O caráter fosco presentenessa narrativa, ligado à ideia de imprecisão, podeser relacionado à própria complexidade e à difícilempreitada que é esta viagem para dentro de si,a busca da compreensão do “eu” através darememoração. E, ao rememorar o seu passado, osujeito desvenda a si enquanto um ser universal.

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Se entendermos que as experiênciasparticulares do narrador é parte de um todo dasociedade na qual está inserido, podemos tambémanalisar, na perspectiva do sociólogo Halbwachs(2004), p.55), que a memória individual é “umponto de vista sobre a memória coletiva”, pontode vista este que se transforma conforme o lugarocupado pelo “eu” que rememora e essasmodificações se dão também conforme as relaçõesestabelecidas pelo indivíduo com diferentes meios.

Tanto Ziraldo quanto Varella iniciam anarrativa com uma passagem, cujo protagonistaé a figura imponente do avô, determinado a realizara empreitada de uma travessia. No primeirocapítulo de Nas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do BrásNas ruas do Brás, o avô paternodo protagonista atravessa o mar para estabelecer-se no Brasil e em Os meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenosOs meninos morenos, o avômaterno, a quem o menino (personagem principal)tanto venera, muda com toda sua família de umlugarejo para outro situado às margens do rioDoce. A ligação entre o protagonista e a figurado avô, em ambas as obras, representa aproximidade estabelecida entre si pela criança epelo velho em nosso contexto sociocultural,cabendo, ao último, o papel de narrar, voltar aopassado, em especial, ao passado da infânciavivida remotamente, a qual interessa muito àcriança do presente da narrativa, sequiosa emouvir histórias, cujos protagonistas sãopersonagens da sua faixa etária (período este dasdécadas de trinta, quarenta e/ou cinquenta, emque a televisão ainda não reinava no espaçodoméstico). Agora velho, o narrador, no tempoda narração, também se identifica com o avôcontador de histórias lá de sua infância e volta-separa esta. Assim, o avô, isto é, a figura do velho,ocupa um papel fundamental na constituição danarrativa de memória, que é puxar e entregar aoneto esse “fio” de todas as recordações,envolvendo a memória dos antepassados dafamília e da sociedade a que pertence.

Ambas as narrativas são concluídas com umfato noturno e festivo: a festa de despedida doherói de Varella, que sai do Brás, cumprindo aíuma fase de sua vida - a da infância - e o sonhode seu pai e a festa natalina, de “um anoqualquer”, de Ziraldo. A noite indicasimbolicamente o fim de um ciclo e o começo deuma nova fase da existência: o menino deixa deser criança para dar início à vida de homemcrescido. A noite festiva pode representar tambémo término do trabalho do narrador e o início da

caminhada do leitor, que deverá lidar com aluminosidade (objetividade) do texto de Varella etatear no “lusco-fusco” do texto de Ziraldo,composto por uma linguagem bastante poética esubjetiva, constituída por um forte lirismo.

A memória individual não se processa deforma independente, ela tem como apoio aspercepções provocadas pela memória coletiva. Aconstituição de uma memória autobiográfica,pessoal, traz como base de apoio a convivênciacom vários grupos durante toda a vida. E essasmemórias ancoradas nas percepções e lembrançascoletivas são responsáveis pela constituiçãoidentitária do sujeito. Ao alinhavar suas lembrançasdas experiências que vivenciou, inserindo-se comoparte de uma sociedade, o narrador das duas obrasprocessa uma espécie de ajuntamento, colagemou bricolagem dos fragmentos e preenchimentode lacunas por meio do imaginário, de tudo querestou das recordações de seu passado. É umaespécie de ajuntar os cacos, no mundo modernomarcado pela fragmentação, em que a narrativa,o rememorar, apesar do pouco espaço que usufrui,possui grande responsabilidade no sentido detornar o individual parte integrada de um todo.

1 - Mestre em Letras pela USP e professora da UNEMAT,área de Literaturas de Língua Portuguesa. E-mail:[email protected] - O conceito de “narrador” utilizado neste textotem por base a abordagem de Antonio Candidoem “Poesia e ficção na autobiografia”, ensaio quecompõe o livro A educação pela noiteA educação pela noiteA educação pela noiteA educação pela noiteA educação pela noite, de 1987.

Aceito para publicação em 01.06.2009

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IIIIIAo longo dos anos cinquenta, sessenta e no

início dos anos setenta, foi publicado centenas,talvez até milhares

2 (SCHÜLING, 1971; SCHULTE-

SASSE, 1976) de artigos e livros sobre avaliaçãoliterária na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,nos países germânicos, na União Soviética, naPolônia e de certa maneira, na França. Quantoao ponto culminante dessa obsessão relativa àsquestões de valor, a problemática foi enfrentadaem 1965 e 1969, quando alguns dos críticosliterários mais conhecidos no mundo chamado“Ocidental”, mas também na Alemanha Oriental,na Polônia e na União Soviética, publicaram todauma série de artigos e livros sobre avaliaçãoliterária. Menos nos Estados Unidos e AlemanhaOcidental, contei sessenta e duas publicações demaior importância sobre questões de valor estéticodurante um período de cinco anos. Esse númeroseria, bem entendido, consideravelmentemultiplicado se quisermos incluir publicaçõesrelativas à crítica literária, que tocam igualmenteem questões de avaliação. Pois, de fato, toda críticaliterária pressupõe a compreensão disto queconstitui a essência da arte – da função da artena vida do homem. Toda premissa que concerneà função da arte implica, entretanto enecessariamente, uma hierarquia de valoresaceitos. A maior parte das críticas são, de fato,conscientes das premissas axiológicas subjacentesà prática da crítica. O crítico e poeta americanoYvor Winters, por exemplo, declara em um artigoinfluente no seu tempo e intitulado “Problems fora Modern Critic of Literature” (1956) quedeveríamos ter “uma idéia clara da função daliteratura em geral, e isso para que possamosavaliar as formas à luz desta causa final”(WINTERS, 1957, p.24).

À primeira vista, minha declaraçãorelativa à abundância de publicações que tocamem questões de valor contradizem as primeiraslinhas de um ensaio recente e importante deBarbara Herrnstein Smith sobre as ContingênciasContingênciasContingênciasContingênciasContingênciasde valorde valorde valorde valorde valor.

É um detalhe curioso dos estudos literários naAmérica que um dos conjuntos de problemasmais veneráveis, mais centrais, maissignificativos em matéria de Teoria, e inevitáveissob o plano pragmático, dentre os problemasrelativos à Literatura, não fosse objeto depesquisas sérias desde os anos cinqüenta. Façoalusão aqui ao fato de que não apenas o estudoda avaliação literária foi, como poderíamosdizer “negligenciado”, mas também que toda aproblemática do valor da avaliação foiesquivado e explicitamente descartado pelomundo das letras3 . (SMITH, 1983, I).

É certamente verdade que – de maneira maisou menos paralela à voga de textos sobre osproblemas axiológicos – houve movimentos críticosde importância igual que se esforçaram emdescartar completamente questões de avaliação.Anatomy of CriticismAnatomy of CriticismAnatomy of CriticismAnatomy of CriticismAnatomy of Criticism (1957), de Northrop Frye,que faz um apelo para que as questões axiológicassejam deixadas de lado na prática da pesquisa epara que aceitemos “o julgamento do valor diretodo bom gosto, fundado sobre uma informaçãocerta”, é o caso idôneo mais conhecido. Entretanto,Herrnstein Smith não entendeu que sua declaraçãofosse limitada a tais gestos de exclusão deliberada:esta declaração devia incluir igualmente textosrelativos aos problemas axiológicos. HerrnsteinSmith refaz o processo de encobrimento, queremonta a tempos distantes, a partir de umaperspectiva em que o discurso tradicional sobreavaliação foi recentemente descartado. Asdiscussões tradicionais sobre o valor pressupõemsempre a pré-existência e a força de valoresestéticos; eles se desenvolvem no quadro de umsistema estabelecido ou aceito de valoresdiferenciados e concentram sua atenção sobre aregulação do conhecimento dos valores. Oferecidoo interesse que ela traz ao papel global que tocamaos valores na reprodução cultural das sociedadeshumanas, Herrnstein Smith tenta, em contrapartida,compreender mecanismos pelos quais as diferentesculturas privilegiam certos objetos e, assim,suprimem a contingência fundamental de todosos valores. O problema de saber se os valores

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são relativos ou absolutos, que paralisou opensamento tradicional em matéria de avaliaçãodurante tanto tempo, pôde assim se vertransformado em questão histórica e econômica.Se os valores não são “nem uma propriedadeinerente dos objetos nem uma projeção arbitráriados temas, são melhores do que os produtos dadinâmica de um sistema econômico” (SMITH,1983, II). Assim, a análise dos mecanismos pelosquais tais sistemas se reproduzem ou não deslocaa preocupação tradicional relativa à validade dosvalores que já se encontram sempre presumidos.É nesse sentido que Herrnstein Smith tem razãointeiramente em afirmar que o mundo universitáriose esquivou às questões concernentes ao valor.

No presente ensaio, eu não seguirei ocaminho de Herrnstein Smith; prefiro me restringirao interior das fronteiras do discurso estabelecidoem matéria de valor e questionar se o discursocontém signos que nos permitiriam ler contra suaprópria natureza e descobrir motivações encerradasque não encontram expressão direta em seusobjetivos explícitos. Depois, sobre a base de minhacrítica, questionarei se uma prática crítica diferenteque evitaria os problemas a serem analisados retornaao domínio do concebível e qual deveria ser a direçãoda pesquisa para conceber uma tal prática. A fimde preparar essa empreitada, começarei por esboçaralguns elementos fundamentais do discurso crítico-literário sobre o valor.

Toda discussão dos valores estéticos éinfluenciada por normas não estéticas e os valoresrepresentados em literatura. Em seu ensaiointitulado “Fonction, norme et valeur esthétiques,en tant que faits sociaux” (Função, norma e valorestéticos enquanto fatos sociais), o estruturalistade Praga, Jan Mukarovský (1970, p. 103), vaiinclusive definir a obra de arte como “umaverdadeira junção de valores não estéticos(extrínsecos) e nada mais além desta junção”. Ovalor estético de uma obra de arte nasce damaneira em que ela organiza os valores nãoestéticos; o valor estético “não é outra coisa queuma [...] expressão sumária da totalidadedinâmica de suas relações recíprocas”. Antes depoder abordar a questão de saber como – segundoo discurso estabelecido que trata da questão dosvalores – a organização textual de valoresexteriores à obra pode se transformar em valoresestéticos, é preciso nos perguntar como as normase os valores “externos” são “comumente” re-presentados em literatura.

A literatura contém elementos ideológicos cujovalor semântico continua a ser determinado emparte pelo seu contexto sócio-histórico e psico-histórico. O nível mais importante em que aliteratura funda sua natureza normativa(ideológica) é aquele das constelações depersonagens e estruturas da trama. A narraçãode histórias pode ser descrita como um processoideológico de comunicação porque ela não sesepara da atitude da narrativa a mediatizar asignificação de uma maneira indireta, gráfica, nãoconceitual, isto é, ao construir modelos explicativosde comportamentos e atos – pelos quais os leitoreschegam a compreender ou elaborar suas própriasexperiências. A ficção pode fazer o papel de umtal modelo porque os personagens literáriosfuncionam como paradigmas ideológicosjustapostos. Os leitores são assim conduzidos aavaliar o aspecto dos personagens, aos quais elesse identificam de maneira favorável. Em outrostermos, no decorrer do processo de narração, ospersonagens literários se veem atribuir uma sériede normas e valores seguindo uma ordemhierárquica; isso é suscetível de modificar a reaçãodos leitores. Em termos textuais, essas normas evalores podem – conforme a semântica estruturalde Greimas – ser descritas como marcadoressemânticos (isto é, ideológicos). Tais marcadoresnão servem para caracterizar os personagensenquanto indivíduos, mas em situá-los enquantoconstruções ideológicas consistentes que podemassumir funções em meio à constelação ideológicado texto. Os marcadores semânticos de um dadopersonagem literário podem, portanto, seremdescritos como feixes marcadores, geralmentecoerentes; na “grande” literatura, eles podem sermais amplos e mais complexos e, também, maissujeitos a variações que na literatura popular.Contudo, em todos os casos, eles identificam maisou menos claramente o personagem.Considerando que esses marcadores podem ser(e eles são muitas vezes) ideologemas extraídosdo contexto sócio-histórico, a literatura se firmaao ter a possibilidade não apenas de construiroposições de valores intrínsecos entre osmarcadores semânticos ou seus equivalentes – ospersonagens literários –, mas ainda em incorporarou reconstruir oposições de valores do contextosocial em meio às oposições que descreve anarrativa. É assim, portanto, que pela base desuas constelações de personagens, a literaturarefaz, de maneira mais ou menos complexa, as

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oposições de valores da realidade social (epsicológica) que pressentem uma pertinênciaideológica. Os elementos que constituem asconstelações ideológicas não permanecemnaturalmente num estado de equilíbrio estático.Em literatura, a estrutura da trama se desdobrasobre o eixo temporal; ela se transforma assim emuma lógica de intriga e sujeição das constelaçõessemânticas do texto a um processo intrínseco deavaliação em que o leitor está comumenteinconsciente.

Até aqui, este esboço se aplica às duasformas de narração literária, aquela da “grande”literatura e a da literatura “de massa”. O discursotradicional sobre avaliação introduz este estadodas categorias em que pretendemos que eles sãoe mesmo fazem a distinção entre os textos degrande e os de pouco valor. O grau decomplexidade ou de ambiguidade (New Criticism),de “profusão da tensão estética” (WolfgangKayser; Walter Müller-Seidel), o equívoco, a“polissemia” ou “a fecundidade da interpretação”(Wellek/Warren; Max Wehrill) supõem separar o“bem” do “mal”. A organização ou o poderformador, especificamente estético da arte,integram os elementos externos na “ordemcomposicional e na ordem gramatical (de talmaneira) que eles sejam considerados em umtecido de relações” e que se encontrem

liberados de seus limites próprios e suacaracterística unilateral, ainda que gerem umamultiplicidade de significações. Estas, em suamultiplicidade, não podem ser refletidas demaneira conclusiva. Os elementos integradosproduzem significações representativas emesmo simbólicas, para outras formas de vida,outras épocas e outras representações.(EMRICH, 1964, p. 983).

O modo de organização textual que caracterizaa “grande” literatura é considerado redutor daligação entre o texto artístico e o contexto social;ele permite nos liberar das pressões sociais e refletira significação artística, fazendo-se, dessa maneira,fio condutor das necessidades da vida.

A argumentação característica do uso dessescritérios toma o aspecto seguinte (cito aqui umensaio escolhido aleatoriamente, escrito em 1969pelo crítico americano Murray Krieger):

Cada um dos aspectos (de uma obra de valorcontribui [...]) para nos manter cativos no mundode seus símbolos e impede que fujamos rumo

ao mundo dos referentes, além disso, rumo àação, ao mundo das relações externas, onde ocognitivo e/ou ético têm tendência a descartaro que não é estético; [...] a poesia em primeirolugar [...] recria suas significações a partir deseu próprio sistema [...] Todo ato crítico, sob acondição que seu objeto seja um poemaadequado [...], é uma luta e um compromissoentre a estrutura simbólica intraduzível que é opoema e os símbolos mais banais que são aíaplicados pela crítica. Esses símbolos defineme limitam sua visão. É assim que cada ato críticose faz também uma luta e um compromisso entrea nova visão da obra única e seu gênero e avisão antiga de seu leitor, a qual só procura sereforçar. Há nisso uma dupla atividade,aparentemente paradoxal, que 1 / permite aoleitor consciente de si mesmo (isso que narealidade não deixa de ser uma outra expressãopara o termo “crítico”) da compreensão da obraunicamente pela base das categorias de visãoque ela apresenta – isso que quer dizer: somentepela redução da obra ao que o “eu” anteriorpermitirá – e, todavia, 2 / o conduz a ampliarsua visão a fim de que este se adapte à novidadeque a obra apresenta. Nesse último caso, suavisão limitada se torna menos limitada, suavisão antiga foi renovada, literalmentereconstituída em alguma coisa de maiscompleta, refrescada pela qualidade daimediatez, até receber uma nova definição. Seele apenas se livra de uma primeira metadedessa dupla atividade – se ele só utiliza a obrapara reforçar sua visão e adapta à sua visãogenérica pré-existente – então, é claro, ele negouà literatura, assim como a relação de troca quemantemos com ela, sua função própria, que é ade fazer de si mesma mais que – ou um serdiferente de – isto que era, formar ao modo devisão da literatura [...].

Qualquer que seja nossa decisão sobre o temada situação ontológica do objeto literário, suaexistência, significação e valor, antes queentremos em choque com ele, sabemos que sópodemos falar através dos resquícios dessechoque. Assumimos, não somos maisinteiramente os mesmos. Tentamos falar comprecisão do que nos tocou e do poder doimpacto assim ampliado. É provável queforneceremos a visão unilateral habitual distoque modificou e de uma espécie de adversárioque encontramos e que nos corrigirá; se outrostiveram encontros similares, suas descriçõesserão todas também parciais e egoístas?Ninguém poderia negar o encontro, ninguémpode negar a que ponto ele foi mudado e,entretanto, cada um terá sua versão pessoal,

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cada um fará seu próprio balanço. (KRIEGER,1969, p. 301, 304, 308, 309).

Num estudo crítico das teorias de avaliaçãoliterária que escrevi em 1971 (1ª edição da obrade 1976), exprimi a opinião – com a qual, estandode acordo com tantas outras pessoas, em meio ànossa profissão, interessados pelo aspecto sócio-histórico das coisas, e politicamente engajados –que a nossa tarefa principal, visto serprimordialmente de intelectuais que devemdesmontar o mecanismo da ideologia nareprodução cultural, consistia em criticar ospressupostos semânticos ou ontológicos dedeclarações tais quais àquela que precede. Aquestão que nos orientava era a seguinte: écertamente possível para uma obra de arte sedissociar, isto é, dissolver seus materiais semânticos,as configurações semióticas que ela emprega, suasestratégias retóricas da História? Ou melhor, aarte já está sempre imbricada, em parte se rebelanisto que parece uma luta pelo poder em matériade comunicação, a uma competição pelasignificação numa dada sociedade? A resposta ébastante clara. Uma vez que descobríramosnumerosas interconexões entre os textos literáriose seus contextos sócio-históricos, pensamos terfundamentado sobre uma base sócio-histórica umnovo modo não somente de interpretação, masainda de avaliação estética. Nosso critério final erao reconhecimento ou a recusa, para a obra dearte, em lutar pela emancipação de grupos ouclasses oprimidas e pela criação de formas estéticasportadoras de significações socialmente pertinentes.Como éramos ignorantes em matéria de arte e nãoacreditávamos na superioridade da obra de artebem intencionada, mas superficial, critérios taiscomo a complexidade, a ambiguidade e a ironiadavam voltas em nosso discurso. Acreditávamosque o reflexo estético de significação socialmentepertinente tinha um efeito imediato e liberador sobreas atitudes e a conscientização. É raro queampliemos nosso interesse até nos preocupar comuma análise crítica da situação e da função daarte, de seu impacto sobre a maneira com que oshomens, nas sociedades modernas, reagem aoconteúdo artístico.

Do ponto de vista do qual analisamos afunção da arte enquanto instituição nas sociedadesmodernas, a crença idealista em uma autonomiasemântica e estética da arte, por um lado, e, poroutro, uma avaliação sociocrítica da arte, levamem relação a um continuum histórico

(compreendido comumente como estruturado deum ponto de vista histórico-filosófico), ambos têmmais em comum do que aparenta à primeira vista.Ambos partilham uma fé numa arte que expõe osvalores estéticos e que é capaz de ordenar assignificações. Ambos comportam uma crença emuma conexão essencial, indispensável entre asignificação e os valores estéticos, mesmo se umdos dois, uma vez aproximados, tende a separara significação de seu contexto mais que o outro.Ambos partilham, enfim, de uma crença nacomunicação ordinária considerada como umfenômeno fundamentalmente polêmico e, em todocaso, por um processo que revela a lógica daidentidade e pelo qual a “verdade” pode serencontrada. Eles partilham a opinião segundo aqual a arte seria, de uma maneira ou de outra,uma medida de reorganizar os elementos dacomunicação ordinária de uma forma que fariada arte algo de particular. Para citar E. D. Hirsch,que forneceu muitas contribuições ao debate sobreo valor estético, quando este causava antipatia:

Os valores que aderem necessariamente a umadescrição da significação são aqueles quesubsistem entre a significação e as atitudessubjetivas que a constituem. Em outras palavras,os únicos julgamentos de valor inevitáveis nocomentário literário são aqueles que sãonecessariamente subentendidos nainterpretação. Uma interpretação dasignificação não saberia evitar os julgamentosde valor correlativos à significação e éimpossível representar uma impossibilidadeontológica. (HIRSCH JR., 1969, p. 329).

A literatura é considerada pontualmente comouma estrutura significativa cujos princípios deestruturação são derivados de atitudes axiológicasque determinam nossa visão de mundo. CitandoHirsch novamente:

A interpretação (descrição) de uma obra literáriaé necessariamente correlativa aosposicionamentos, específicos, do sujeito, queconstituem sua significação [...] Os efeitos ejulgamentos de valor subsistemnecessariamente na relação entre assignificações e esses posicionamentossubjetivos que lhe são correlativos. Essesjulgamentos de valor são, portanto, inerentes àdescrição literária. (1969, p. 331).

É evidente que apesar de algumas mudançasterminológicas, essa citação poderia se tornar uma

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espécie de declaração que encontramos emnumerosas publicações que tratam de questõesde valor e que apresentam um comprometimentosócio-histórico. O “posicionamento subjetivo” setornaria o de um grupo ou de uma classe socialou, ainda, de um período histórico e assim pordiante. Os críticos, motivados em termos sócio-históricos e que utilizam argumentos materialistas,pressupõem igualmente que a obra de arte de valoré uma estrutura significativa organizada junto aum sistema de valores. Eles pressupõem tambémque a arte é, em geral, numa certa medida, umdomínio de simulação em que os valores, assignificações, as identidades se encontram emconcorrência. Tal posicionamento não está,certamente, tão distante quanto poderíamos crernaquele do idealista liberal, para quem a obra dearte é o símbolo de uma “esfera pública liberal”:portanto, o meio graças ao qual uma comunidadede críticos reflete sobre a complexidade dasignificação, de uma maneira que entretecem umarelação estreita com uma noção ideal de debatepúblico. Numa tal perspectiva, a arte permite aum público liberal se livrar de uma reflexão sobreos valores que guiam a interação comunicacionalem uma sociedade burguesa. O que faz o públicorefletir em seu modo de ser. Em outras palavras, aorganização estética da significação na grandearte estabelece uma relação de jogo entre osleitores e a significação. Essa relação tem,entretanto, um efeito prático de grande porte. Elapermite à literatura se tornar um objeto deinterpretação, conquanto, simultânea etemporariamente, suspendamos toda aplicação dasignificação, assim interpretada à práxis.Considera-se que a interpretação e a avaliaçãoda literatura só se interessam pela discussão deuma significação que poderia fornecer em potênciauma orientação para a ação, porém, de cujaaplicabilidade prática é constantemente suspensano momento mesmo de sua discussão estética. Ainterpretação da arte, numa tal visão, não podeou não deveria ser determinada por um interessequalquer extrínseco; ela não deveria sequer serconcebida para desconstruir normas e valores quea obra apresenta, nem assegurar, para isso, emefeito imediato, fora do domínio estético.

Numa perspectiva “pós-moderna”, que é ade uma reflexão crítica sobre o efeito que pode tera diferenciação da sociedade sobre a diferenciaçãofuncional, parecida com o discurso tal como aarte, as teorias de avaliação marxista e idealista-

liberal, escritas no mesmo lapso temporal, revelamsurpreendentes afinidades. Ao designar a arte comouma configuração que se apropria da realidade,as teorias marxistas colocam, é claro, ênfase sobrea especificidade histórica das obras de arteindividuais. Mas elas também veem a arte comoum meio graças ao qual o público adquire umsaber interpretando constantemente estruturas designificação. Para isso, também, consideramos asestruturas estéticas como intrinsecamente infinitas(e, assim, elas fazem da interpretação uma tarefaque não será jamais finalizada), mesmo se adelimitação da obra individual pelas fronteirasexternas, formais, obriga o crítico a estabeleceruma relação mútua e recíproca entre a arte e odesdobramento da História, considerada como umprocesso de emancipação. As duas aproximaçõestratam da literatura como se tudo isso que conta,nessas questões de valor, fosse as formas doconteúdo (inclusive a organização estética) e ovalor das obras individuais. As discussões sobre ovalor não levaram em conta a possibilidade deum poder de formação, produzido pelos princípiosinstitucionais da estruturação, que subdeterminamos conteúdos estéticos e as atitudes axiológicasdo sujeito.

Como sustentarei a seguir, o estatutoinstitucional da estética determina, namodernidade, o discurso sobre avaliação. Este,todavia, fracassou em voltar sua atenção críticasobre o estatuto que teve o poder de elaborar.Resulta disso que os críticos têm muitas vezes apreocupação de não enredar nas fronteiras entreestética e não-estética. Uma tal preocupação nãoé possível após conseguirmos descartar a questãoda diferenciação funcional das instituições e dosdiscursos (por exemplo, formulando a hipótesesegundo a qual a separação entre arte e vida éuma coisa natural) e depois que aceitamos apremissa segundo a qual a consciência humanaé um órgão homogêneo e unificado, livre de umassujeitamento à ditames institucionais. A exclusãosistemática das questões concernentes àdiferenciação funcional é – claro – mais aparentepara autores que apoiam a hipótese da existênciade um cosmos ordenado de valores humanos eque sustentam que existe uma continuidade entreos valores estéticos e os que não são. Hirsch, porexemplo, mantém

que um ensaio técnico, uma conversaçãocomum ou, ainda, um poema [...] possuemvalores próprios, necessários; é óbvio, os

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valores diferem, mas a estrutura deargumentação a favor de sua existência é amesma. Prosseguindo, não há nenhuma razãoavaliável em isolar a literatura e a arte no meiode um misterioso domínio ontológico separadode outras realidades culturais [...] Prestamosmelhor serviço às ciências humanas aceitandoe não deplorando o fato de que os valores daliteratura formam um continuum com todos osoutros valores partilhados na cultura humana.(HIRSCH JR., 1969, p. 331).

Numa tal concepção, a arte não é tãofacilmente percebida como um meio desocialização que deve ser colocada sob a guardade árbitros do poder, em matéria de políticacultural.

Contudo, a esmagadora maioria das teoriasde avaliação justapõem a comunicação estéticae a comunicação cotidiana; isso se encontraliberado de servidões às quais são submetidas.Essas teorias pressupõem certa noção do texto,da leitura e da função estética considerada emrelação às outras funções. O fato mesmo de queo discurso sobre avaliação não viola, como écomum, as fronteiras institucionais da arte, isto é,que ele não recusa sua projeção crítica sobre essasfronteiras e que ele aceita e afirma assim adiferenciação institucional, característica dassociedades modernas, constitui em si um objetode pesquisa que vale a pena. No que segue, nãodiscutirei a possibilidade de avaliação literária oua existência de valores estéticos, mas de maneiramais elaborada a função (estética) nas sociedadesdesenvolvidas, do discurso universitárioestabelecido que trata de avaliação e destinado auma elite instruída

3. Esse discurso reflete a função

que a estética, em seu todo, tem assumido cadavez mais ao longo do processo de modernização.

I II II II II IO papel não estético que cabe à estética (em

última análise) no meio das sociedades modernasfuncionalmente diferenciadas se torna visível desdeo instante em que as teorias da avaliaçãointroduzem critérios cujo objetivo é separar aestética da vida cotidiana. De tais critérios, os queavançam, designam a verdadeira razão deapreciação específica que liga a arte às sociedadesmodernas. Na citação de Murray Krieger, esseelemento remonta à superfície quando o autordefende que “critérios como a ironia, aambiguidade, o paradoxo e a tensão recebem um

valor, enquanto são as razões de impedir a“evasão” rumo ao “mundo dos referentes e, alémdisso, rumo à ação, rumo ao mundo das relaçõesexternas, nas quais o cognitivo e/ou ético tendema excluir o que é apenas estético” (KRIEGER, 1969,p. 301). O moral e o cognitivo são dois domíniosda reprodução de uma sociedade que foram maistrabalhados pelos processos de modernização. Areprodução material e tecnológica, para designarem termos diferentes o saber, assim como areprodução política ou moral da sociedade sãoambos determinados por uma lógica de identidadecujas bases filosóficas foram estabelecidas ao longoda história da filosofia ocidental durante o períodoque vai de Descartes à Kant. Os critérios da lógicade identidade que concernem à verdade ou àcorreção, a título de exemplo, constituíram a forçametodológica que guiou, nas sociedadesmodernas, as tentativas de se apropriar e explorara natureza. A lógica de identidade que subentendeo modo de reprodução material e cultural desociedades modernas eliminou, em seudesenvolvimento vitorioso através do tempo, aalteridade qualitativamente significativa aosubmetê-la às pressões de um pensamentoidentitário. Sob um plano psicológico, odesenvolvimento vitorioso da lógica de identidadeconduziu ao estabelecimento e à dominação deum modo de subjetividade que produziuidentidades do “Eu” egocêntrico. A modernizaçãosignificou a servidão ou a eliminação da diferençaqualitativa pela diferença quantitativa, que se tratade uma diferença tão bem colocada entre os sereshumanos quanto entre identidades semânticas,entre culturas ou não importa o quê. O argumentoé tão amplamente conhecido a ponto de não sernecessário comentá-lo aqui.

Há outra coisa que resulta desse efeito bemconhecido da modernização, e que é maisimportante na visão da posição específica quejunta a arte ao mundo moderno. Se nosconscientizamos de que a identidade é alienação– falamos de identidade e de alienação numsentido metodológico, psicológico ou social –,torna-se então claro que a eliminação daalienação comporta sempre uma dissolução pelomenos parcial da identidade. A emergência deum grau mais alto de identidade e diferença naorganização psicológica, cognitiva e social dassociedades modernas favoreceu a nostalgia,concomitante, os modos de existência que foramcapazes de sublevar ou desagregar,

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temporariamente, a diferenciação social, isto é, aalienação ou a distância. É esse desejocomplementar de desmantelar as fronteirasestabelecidas em torno das identidades namodernidade – complementar das pressões sociaisque obrigam a nos conduzir como seres racionaise a nos livrar de tarefas racionais – que se encontrana raiz da função e da apreciação específicas daarte na modernidade.

Quando consideramos a teoria e a práticada avaliação estética numa tal óptica, podemosver que ambas são guiadas por uma concepçãosubjacente de arte, que é o sonho de umamediação ou de uma reconciliação de identidadee da dissolução: este sonho, ainda aquele de umasuperação da alienação ou de identidade ealteridade. Quando Krieger fala do valor daambiguidade, da ironia ou da complexidadeartísticas, ele participa – com apenas o empregode uma terminologia moderna, um outro – projetokantiano de estabelecer, pela imaginação humana,um domínio que não seja determinado pelaspressões de identidade e de racionalidade. Osonho liberal de uma discussão, sem embate, dasignificação é inerente à sua definição da “colisão”entre uma obra de arte e o leitor; ele reflete o mesmodesejo de mediação entre a delimitação e adissolução. Minha opinião é que se trata de umideal onipresente nas teorias de avaliação que nãopodem, no final das contas, ser compreendidasnuma dupla perspectiva sócio-histórica e psico-histórica. Quando, por exemplo, Roman Ingardemfala de “harmonia polifônica” da arte ou quandoNicolai Hartmann sonha uma “generalidadeintersubjetiva” dos valores – isto que depois nãolhe significa “nada mais que a unidade daquelesque tomaram a atitude que convém (adäquatEingestellten)” (HARTMANN, 1953, p. 322), elesexprimem um desejo característico da modernidade:aquele de uma comunidade, de um lugar adescartar da sociedade, onde a alienação e oisolamento foram abolidos e onde, ao mesmotempo, a “verdade” pode ser determinada pelapesquisa estética da superação daincompatibilidade e da oposição de significaçõesfragmentadas e esfaceladas. E mesmo quandooutro crítico declara: “Cada obra permaneceinesgotável. Quando a refletimos, nos sentimosimpulsionados como se tivéssemos asas” (TRUNZ,1952, p. 65-68), a imagem do voo exprimemanifestamente um desejo de violar as taxionomiasque devem, permanentemente, ser reconhecidas

no comportamento cotidiano. No mais, aconotação sexual da metáfora da asa é tãoevidente (na sua Traumdeutung, Freud notou que“muitas vezes, sonhar em voar ou planar enfatizao desejo sexual”). Essa metáfora, uma das maiscomuns no discurso sobre avaliação literária(SCHULTE-SASSE, 1976, p. 65), exprime o sonho,inculcado pela sociedade, de abandonar aspressões da realidade e da lógica.

A distinção entre identidade e dissolução, querefaz a superfície na retórica do discurso sobreavaliação, tem como conotação a distinçãopsicanalítica entre processo primário e secundário.Sobre o plano ontogenético, assim como o dafilogenia, tal distinção é claramente importante.Ela nos permite, por exemplo, compreender anecessidade que o indivíduo tem de estratégias,graças às quais poderá construir conjuntos oudados de símbolos e normas que permitem umamaestria de aproximação e revolta contra aindiferenciação do processo primário. Ela nospermite ainda compreender, em termospsicológicos, a emergência de estratégias desistematização, hierarquização e polarização paraos seres humanos; ela nos permite enfimcompreender, em termos psicogenéticos, o desejolatente de experiências de dissolução, a presençade contra-estratégias destinadas a generalizar aseparação do sujeito e do objeto e o gosto porassociações não lógicas. Mas quando essadistinção refaz a superfície num contexto crítico-literário e determina a retórica das teorias deavaliação, ela se transforma em uma dialéticaestática entre dois aspectos complementares dasubjetividade moderna. Ela se refere aqui a uminstinto que visa a reconciliar, sobre um modosimbólico e imaginário, a necessidade dedelimitações cartesianas que o processo decivilização obrigou o gênero humano a adotar –e, sempre mais – de um lado, que do outro, odesejo romântico de dissolução. É a um dadosociogenético e psicogenético, relativo àemergência da subjetividade moderna, quereaparece sob a forma de um desejo de presença,de satisfação intemporal, que muda nossacompreensão das formas estéticas e seu valor. Aprocura estética de um reconhecimento do mitono meio da modernidade, por exemplo, contémsempre um desejo de desmantelamento dasbarreiras entre os indivíduos e entre sujeito e objeto– entre os seres humanos e a natureza.

As artes foram, é claro – principalmente há

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duzentos anos – relembrando, representação detal desejo mítico. Os romances nos quais pensamosrotineiramente quando tratamos as descrições deexperiências de dissolução ou de descentramentoem literatura são romances no sentido medievaldo termo, de histórias de amor ou, geralmente,de histórias sentimentais. Na “grande” literatura,parecem ser limitadas à tradição do romantismo.É óbvio, isso é uma simplificação expressamenteexagerada. Numa obra fascinante, que apresentaexatamente essa dimensão mítica no romanceanglo-americano, Gabriele Schwab (1987)mostrou como e porquê de tempos em tempos osromances modernos apresentam a obsessão dosseres à pesquisa de experiências dedescentramento ou de modos de experiências quereconciliam a tendência dicotômica dasubjetividade. Moby DickMoby DickMoby DickMoby DickMoby Dick, para citar apenas umexemplo, é este mito moderno, cuja imensidadedo oceano dá a Ishmael a ocasião de reencontraras camadas da subjetividade moderna enterradaspelo processo de civilização. A doença ou aloucura podem constituir uma matéria tão idôneapara a descrição de tais desejos quanto as formasde dissolução erótica. Em sua análise do romancede Saul Bellow, Sylvia Plath, J. D. Salinger, PhilipRoth, John Updike, entre outros, Richard Ohmannavançou assim a tese segundo a qual o romancetípico dos anos sessenta ou setenta, que exprimemum desejo compensatório de dissolução, estavacentrado sobre a doença e lembranças da infância:

A personagem se agarra à infância como únicadefesa contra as relações sociais capitalistas epatriarcais e a maior parte do tempo um homemou uma mulher, já instalado num papel de adulto,mas que traz apenas a aparência de ser ummembro da sociedade, produtivo e bemadaptado. (OHMANN, 1983, p. 215).

É assim que mesmo o romance de críticasocial é definido por um desejo de dissolução:

Quase sempre, essas visões de um caminhomelhor nos dirigem rumo ao passado e, muitasvezes, em direção a uma infância individual emque o “Eu” é absorvido em meio ao amorfamiliar e em que a sociedade se encontra tãolongínqua, fora do olhar [...] Em quase nenhumdesses romances há um domínio do erotismobem-humorado que esteja liberto da falsidadedas relações sociais e nos quais poderíamosencontrar a unidade infantil do corpo e doespírito. (OHMANN, 1983, p. 215).

Por mais importantes e difundidos que sejamesses elementos de obras individuais na artemoderna, bem mais importante é a maneira emque o mesmo desejo determina o estatuoinstitucional da arte nas sociedades modernasfuncionalmente diferenciadas. De acordo com odiscurso sobre avaliação, a arte forneceu àhumanidade um modo de experiência que não ésimplesmente complementar ou compensatório emum sentido linear: ele não oferece simplesmenteuma experiência imaginária da dissolução pelaqual suspende temporariamente a necessidadepsicológica e cognitiva de pensar e de se comportarem termos de identidade. Mais ainda,supostamente representa um modo de experiênciaque reconcilia a oposição entre identidade edissolução; ele subverte assim o próprio processode diferenciação estrutural que a modernidadesuscitou.

É com ironia que podemos constatar que ofardo da redenção do qual encarregamos a arteconduziu – e, em particular, da segunda metadedo século XIX até os anos setenta do século XX – auma hipóstase e a uma reificação da noção devalor artístico que submete a arte a essa lógica daidentidade que é considerada ultrapassada.Herrnstein Smith tem razão em afirmar que a

tendência em toda axiologia estética formal foide explicar as constâncias e as convergênciasem meio às qualidades próprias aos objetos e/ou por hipótese de um conjunto de traçosuniversais e de explicar as variabilidades e asdivergências pelos erros, as falhas e os pré-julgamentos dos sujeitos individuais4 . (SMITH,1983, p. 15).

Essa tendência à reificação dos valores nãocontradiz em nada minha tese segundo a qual odiscurso sobre avaliação é determinado por umdesejo de experiências imaginárias de dissolução.Pois o desejo de fixar sua identidade naestabilidade de uma entidade ou de um universaltranscendente é idêntico ao assujeitamento do“Eu” a um outro “eu”. Tal submissão do “Eu” aum outro equivale à transgressão emocional, oisola da identidade; ela encontra, portanto,também, sua origem num desejo de ultrapassar aoposição entre identidade e dissolução. E mais:sustentar que a experiência estética é capaz dereconciliar identidade e dissolução não impedeque a própria reconciliação seja subordinada pelodesejo de uma experiência de descentramento; a

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experiência estética fornece uma dissolução emsegundo grau. Minha opinião é de que o desdémhabitual das elites culturais sobre o que se chamakitsch é ampliado pelo fato de que a arte e o kitschtêm funções próprias aos olhos de seus públicosrespectivos. O kitsch oferece experiênciascompensatórias de uma maneira linear, nãorefratária – no tocante à reconciliação imagináriade identidade e da dissolução. Não hesito emrepresentar livremente situações sentimentais àsquais o leitor supõe identificar de maneira maisdireta possível. Os críticos têm razão, portanto,em chamar o kitsch um “gozo de si, que estimulaos objetos kitsch”, um “gozo de si cujo prazer puro(que não tem motivação estética nem lúdica)zomba de seu próprio estado” (GIESZ, 1971, p.48,40).

Assim, por mais diferentes que possam ser aexperiência narcísica do kitsch e o prazer maiscontrolado ao qual aspira à elite cultural, todaexperiência estética é, nas sociedades modernas,subdeterminado por um desejo fundamental deexperiência de descentramento. A razão dessasubdeterminação se encontra no fato de que aarte, enquanto instituição, está integrada a umasociedade dominada por certa lógica deidentidade. O estatuto da arte em uma sociedadefuncionalmente diferenciada será, portanto, sempresubdeterminada pela lógica de identidade própriaque contribui para contrabalançar, fornecendoexperiências estéticas. Em uma perspectivapsicanalítica, poderíamos dizer que o conceito devalor, em matéria de arte, conceito enrijecido pelopositivismo e que caracteriza o discurso sobreavaliação, encontra-se ao fornecer e ultrapassara inquietação dos homens. O enrijecimento dosvalores estéticos e sua transformação em místicorefletem uma “tendência histórica a se agarrarcoletivamente a fatos não contestáveis assim comoa fenômenos originais, ‘os arquétipos’, as‘categorias fundamentais’ antropológicas ouontológicas, todas imutáveis” (KILIAN, 1971, p.101-102). Uma tal tendência pode ser

interpretada hipoteticamente como um sintomade inquietude ou de defesa contra a inquietude.Uma consciência histórica, quando ela perdeuo sistema de referência, estática ou absoluta,que formava uma barreira tradicional, sente-seameaçada por uma perda parcial da realidade.

Por mais incompatíveis que possam ser numprimeiro momento, tal tendência, ao fazer do valor

um místico e um desejo de experiência dedescentramento, ambos têm a mesma funçãopsicológica.

O estado paradoxal da estética, nas sociedadesmodernas, que estrutura as teorias de avaliação,é assim determinado pela aceitação inicial, pelaarte moderna, do projeto da modernidade tal qualfoi descrito por Kant. Essas teorias persistem empensar, em termos de identidade, ao considerar,fora da arte, a comunicação à maneira de luta;têm a arte como uma instituição indispensável àsociedade porque ela fornece à humanidade ummeio no qual as leis de identidade sãosimultaneamente preservadas e suspensas e queprotege, portanto, o pensamento humano da atrofiasemântica.

I I II I II I II I II I IDefenderei a prática que tenta descobrir

estruturas de significação inerentes àsconfigurações narrativas como uma atividadecrítica essencial e indispensável, sobretudo se asconfigurações narrativas, como é frequentementeo caso, dissimulam os interesses ideológicos degrupos sociais que elas reúnem em si. Qualquerque seja o grau o qual pode ser modificado,dependendo da validade desta crítica, por nossareflexão sobre as condições preliminares e sobreas possibilidades desta atividade crítico-ideológica,bem como sobre a possibilidade de suainstitucionalização, é essencial se apropriar de talcrítica, mesmo se as regras polêmicas da lógicade identidade a determinam na prática. É precisoque haja um lugar, no meio da sociedade, paraempreendimentos intelectuais que revelem asimplicações ideológicas que apresentam asconfigurações narrativas e as estratégias deavaliação das intrigas. O próprio termo“avaliação” consegue pelo menos uma coisa: aênfase se desloca de um objeto hipostasiado, talqual o valor, em direção a um processo crítico, deuma substância de valor rumo a uma função, eem direção a uma prática cuja ênfase se encontracolocada melhor sobre o ato de avaliar, realizadopelo sujeito do que sobre um objeto de valor.

Porém, afirmaria hoje que num certo intervalode tempo isso se tornaria uma atividade críticamarginal, pelo menos nas sociedades quechamamos “pós-modernas”. O lugar desta críticapode ser definido, mas sua importância émodificada pelos deslocamentos do modo dereprodução cultural das sociedades

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contemporâneas que fazem a prática tradicionalde avaliação literária – ao supor que aquela tentaverdadeiramente ser crítica – ineficaz ao olhar deseus próprios objetivos. No que segue, comentareia obsolescência dessa noção de avaliação quepodemos fazer remontar ao projeto demodernidade, tal qual foi formulado por Kant.Todos os problemas como aqueles da interpretação,de avaliação são, ao mesmo tempo, questõesrelativas à possibilidade de uma autoconstituiçãoda subjetividade. Em sua análise do movimentoda juventude alemã – dos anos de 1900 –,caracterizado por uma tentativa de se liberar dasnormas e dos valores da sociedade pequeno-burguesa, Erik Erikson lançou uma teoria de queessa revolta estava definitivamente condenada aofracasso, porque ela só estava preocupada com oconteúdo normativo e que ela negligenciou emreconhecer a questão do consentimento,inconsciente, subjacente, a identificar e a sesubmeter a um Outro autoritário: ela, assim,permitiu às relações, fixas e estáticas, de dominaçãodo objeto sobre o sujeito e do sujeito sobre o objeto,ao permanecerem intactos. A argumentação deErikson é significativa para uma teoria e umaprática de avaliação literária, porque ela implicauma falha e a prática da avaliação literáriatradicional e de avaliação crítica fundamentadasobre a ideologia, conforme se desenvolveudurante os anos sessenta e como foi praticadageralmente durante os anos setenta, seguindo ateoria crítica da Escola de Frankfurt. Sobre a basede sua superioridade moral conforme ela éincluída, essa práxis confronta, na sua essência,uma posição a outra – como o fazia o movimentoda juventude analisada por Erikson – semreconhecer em questão o pressuposto de um sujeitoteleológico e dominador, subjacente à sua teoriada manipulação. Em outras palavras, os fantasmasda onipotência e as autossatisfações narcísicas deuma subjetividade teleológica, conforme asnarrativas encarnam através dos heróis do tipohollywoodiano – esperamos nos descobrir nasligações com os heróis e que seja de nosso deverutilizá-los como critério de julgamento de todo ato–, estão em correlação, sobre os planos estruturale psicológico, com a crença idealista nasuperioridade moral de nossos próprios ideais.Muito frequentemente, a crítica fundamentadasobre a ideologia é insuficiente, porque “ela tentaapenas se desfazer dos conteúdos conscientes dopensamento burguês, enquanto continua a se

identificar com as estruturas de identidadeinconscientes da consciência burguesa” (KILIAN,1971, p. 60).

Também a avaliação e a interpretação, comoforam praticadas desde meados do século XVIIIaté um passado recente, não prestava contas dadiferença entre as estruturas de significaçãoconscientes e inconscientes, impressas nos sereshumanos pela interação social. O modo deleitura, que está na base dessa prática,pressupunha a existência de sujeitos capazes demaestria na significação que eles comunicavam– embora essa significação fosse “inesgotável”.Uma tal suposição leva em consideração, demaneira apenas parcial, isto que significa que aformação do sujeito advém “como um convite-a-se-identificar em meio aos símbolos e figurassimbólicas, pai e outros” e que as estruturas dosobjetos reproduzem “por séries de aplicações”(KILIAN, 1971, p. 60). A formação dos sujeitos sófoi considerada em relação a uma mudançaconsciente que – a despeito de todas suascomplexidades intrínsecas – permaneceria, no finaldas contas, submetida a uma lógica de identidade.Se é verdadeiro que tais séries de aplicações nãose produzem igualmente em dois níveis decomunicação que não sejam conscientes, umanova tarefa se desenvolve então para a críticacultural (tanto quanto para a própria literatura) –tarefa que não pode ser denominada avaliação,a não ser de maneira inadequada. A práticaestabelecida de avaliação colocava, comohipótese de base, como vimos, que asconfigurações semânticas interiorizadas, expressasem literatura, não podem ser substituídas oudeslocadas, a não ser por configurações míticasou narrativas novas. A avaliação era a atividadecrítica ligada a tais substituições narrativas. Tantoque a avaliação permanecerá uma atividade críticaguiada por premissas da lógica de identidade euma Bewusstseinsphilosophie idealista serátotalmente impossível se instaurar num processocrítico que escape às armadilhas da lógica deidentidade, isto é, um processo que muda anatureza de nossa percepção do mundo e denossas estruturas inconscientes. O problema deuma prática crítica é inexoravelmente ligado àpossibilidade de tais mudanças de natureza.Tradicionalmente, a avaliação é praticada noâmbito das Luzes e sempre se afastou a necessidadede trabalhar sobre um texto inconsciente.

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IVIVIVIVIVComo vimos, a institucionalização específica

da arte na modernidade produziu um efeitofundamental sobre o modo de sua recepção. Elatende a isolar a recepção estética de outrosdomínios da prática humana e desvincula assimtodo efeito que a arte, enquanto setor de economiapolítica da significação, poderia ter sobre outrossetores dessa economia. O conteúdo da arte ésubmetido a um processo de abstração em que aorigem se situa na diferenciação funcional dasociedade. O discurso estabelecido, que trata daavaliação, participa deste desenvolvimento e oestabiliza, favorecendo uma forma de reflexãoestética que consiste em meditações autônomassobre as obras singulares. Uma prática crítica, quenem sempre é preliminarmente submetida aosprincípios da estruturação funcional das sociedadesmodernas, deveria refletir a possibilidade dedesfazer as barreiras institucionais que separam aarte da vida e assim fazer sair a arte do gueto dafuncionalização abstrata. Até onde possovisualizar, isso só pode ser feito sobre um caminhoque tem pertinência, inicialmente, da naturezaretórica da literatura e, em seguida, da necessidadeque os seres humanos têm de vivenciar, de utilizarfiguras de retórica purificando-as, a fim de realizarsuas experiências materiais. A economia políticada significação artística e a experiência materialinscrita no corpo e no espírito devem estarentrecruzadas se quisermos que a arte sejaconduzida fora do gueto da funcionalizaçãoabstrata, onde se encontra.

É por isso que gostaria, neste ponto preciso,de fazer um breve retorno histórico, a fim declarificar o problema em questão. Quais mudançashistóricas podemos reconstituir à ideia, tãoamplamente aceita atualmente, de um sujeito queé o produto de estruturas programadas, gravadasnele ao longo do processo de socialização?Parece-me que a resposta mais fácil consiste emlançar um breve olhar sobre o romantismo alemãoem seus primórdios que, não é poucacoincidência, deslocou todo o complexo deatividade crítica ao centro de seu interessehistórico. Os primeiros românticos são vistos numconfronto a um processo social que elesdescreveram como um processo que conduzia auma dominação, universal por fim, do valor damudança. Mas, ao mesmo tempo, elesreconheceram que a subjetividade se tornaria umproblema – no fundo e à medida que a sociedade

tomasse a forma de uma estrutura totalizada etotalizante. Em meio à modernidade, os sujeitosconhecedores não podem mais se justapor a umatotalidade social, de maneira que, enquantoligados pelo conhecimento, livres e centrais, pelomenos supõe ser, eles se justapõem, segundo omodelo cartesiano, a um objeto sobre o qualdesejam se livrar de uma pesquisa.Consequentemente, o pensamento românticoenfrentou a questão fundamental: a subjetividadepode se constituir de maneira livre de todadominação se o contexto social medíocre estáinevitavelmente gravado no sujeito? Considerandoque a resposta dos românticos culminou numajustificação teórica da crítica literária, gostaria deesboçar brevemente agora esta resposta.

O ponto de partida filosófico do pensamentoromântico foi a Wissenschaftslehre, de Fichte.Nessa obra, Fichte admitiu o postulado que o atode colocar o não-eu (ou seja, os objetos mentais)precede todo pensamento pessoal, fornece a basede identidade e é de natureza pré-consciente. Issosignifica concretamente que a dissociação de umsujeito que percebe e de seu objeto não poderiaser eliminado ou ultrapassado e que o “Eu” sóexiste como uma coisa sempre preliminarmentepreenchida de percepções. Não poderíamosremontar até a origem das próprias percepções;somente podemos comparar diferentes percepçõesentre elas e favorecer umas em detrimento deoutras, seguindo as regras da lógica. Para umateoria da crítica literária, isso significaria quepodemos criticar, preferir ou rejeitar normas evalores representados na literatura, no decorrerde uma discussão sem limite de duração, mas queconcluímos, no melhor dos casos, que só podemse justificar pela sua lógica intrínseca. É esseprecisamente o modelo epistemológico subjacenteà teoria e à prática de avaliação, conforme sãodesenvolvidas nos anos cinquenta, sessenta e noinício dos anos setenta, que se trata, aliás, de teoriasde avaliação idealista-liberal, crítico-ideológica oumarxista-ortodoxa. De certa forma, os primeirosromânticos reconheceram que tal aproximação énão apenas incapaz de eliminar as inscrições datotalidade social no “Eu”, mas que é estabelecidano pensamento logocêntrico como o únicopensamento possível. Todavia, era precisamenteo objetivo do pensamento romântico expulsar “arazão petrificante e petrificada”, para retomar umaexpressão de Novalis. Os românticos acreditaramque poderiam conseguir isso graças a uma forma

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de prática crítica que tinha a obra individual comoponto de partida de uma reflexão infinita. Ainfinitude dessa reflexão não devia ser de naturezalinear e progredir de um elemento de significaçãosingular a um outro, mas ela não devia estarfundamentada sobre a complexidade do contextohistórico e da História em seu conjunto. Aconcepção romântica da crítica, conforme foianalisada por Walter Benjamin, tinha por objetivo“elevar o pensamento acima de todas as pressõessociais até um grau tal” que a possibilidade deuma autoconstituição da subjetividade surgisse“como por magia graças à percepção perspicazda hipocrisia das pressões” (BENJAMIN, 1983).A arte em seu conjunto é o centro onde atravessaa reflexão pela qual a autoconstituição dasubjetividade pode ser empreendida.

De um ponto de vista atual, somente é maisfácil retornar os pressupostos idealistas de um talpensamento contra si mesmo. É certamenteverdadeiro que o ponto de partida dos românticosé a suposição de que nada está gravado no “Eu”que não possa se desprender por força da reflexão.Assim como eles supõem que a crítica, enquantoreflexo puramente positivo e afirmativo da arte “devalor”, é na medida em que tem os efeitoslibertadores que foram descritos. Em seguida, queeles não consideram isto que denominam polêmica,ou seja, uma crítica dos produtos da cultura demassa, como sendo menos do mundo essencialpor uma prática crítica. Em outros termos, osromânticos ainda não perceberam que asinscrições materiais, nos espíritos e nos corpos dosindivíduos, de uma totalidade que não podia maisser compreendida, são objetivadas na cultura demassa e que o “Eu” considerado como peça dessainscrição da totalidade social não pode se evadir,a não ser trabalhando no fundo estas inscrições –prática crítica que teria necessidade de serorganizada como práxis coletiva. Contudo, aconcepção romântica da crítica contém ideias asquais toda prática crítica nas sociedades modernasdevem aderir. Novalis, por exemplo, consideravaque a significação social da arte se situa no fatode que ela é um meio de iniciar atividades críticase “nada mais” (NOVALIS, 1960-1975, II, p. 142).Opondo-se deliberadamente a Fichte – ésignificativo que esse seja um ponto de referênciamaior na teoria da comunicação de Habermasque, por sua natureza, revela, de maneirasemelhante, da lógica da identidade –, FriedrichSchlegel escreveu: o que é importante não é um

“não-eu, mas um contra-eu, um tu”. Os primeirosromânticos não se preocupam em descobrirnormas e valores fixados no nível do conteúdo,mas, antes, em institucionalizar uma práxis críticaque guia um princípio de diálogo fundamentadosobre a diferença qualitativa da alteridade e sobrea necessidade de não se contentar em inventar,mas em se submeter aos acontecimentos aleatóriosda linguagem. Esses acontecimentos podemconduzir a novas formas linguísticas capazes deabrir novos modos de percepção. Novalis disse:“Eu sou não na medida em que eu me anuncio,mas na medida em que eu me supero” (NOVALIS,II, p. 196) – superação que não pode advir a nãoser pela linguagem. Esse processo de superação(Aufhebung) tem, contudo, necessidade não apenasde um meio linguístico que possa suscitar a atividade,mas ainda disto que Novalis chamou de contra-Eus, prestes a defender a atividade em comunhão.É assim que a literatura pode, para citar de novo aspalavras de Novalis, tornar-se o meio da “mais altasimpatia e co-atividade” (II, p. 533).

Esta tradição fundamentada pelos primeirosromânticos – conceber a crítica e avaliação comoum processo social capaz de desmantelar asinscrições da totalidade social na subjetividade –foi levada mais adiante e recebeu uma inflexãomaterialista na concepção de autores como WalterBenjamin, Bertolt Brecht, bem como Oskar Negt eAlexander Kluge.

Para citar o poeta e crítico alemão Carl Einsteinque é, provavelmente, um dos primeiros pós-modernistas radicais avant la lettre e que, atérecentemente, parecia ter caído no esquecimento,a arte deveria permitir ao indivíduo “se opor amortais generalizações, ao empobrecimentoradical do mundo, e romper os canais dacausalidade e a rede de significações do mundo(Neetze der Versnnung)” (PENKERT, 1970, p. 91).Einstein define a alucinação, a fantasia ou aimaginação como princípios dominantes, sobre oplano estilístico de uma tal arte. Ele situa a atitudehumana a fantasiar no inconsciente. Para ele, trata-se de uma força criadora em estado de mudançapermanente, ativa” (OEHM, 1976, p. 19), que seexprime estilisticamente como a “livre conexão designos funcionais contraditórios”; ela vai além da“causalidade e das conexões lógicas” (PENKERT,1970, p. 28).

Nas alucinações, o Eu recente, diferenciado,está morto; os níveis de consciênciarecentemente adquiridos caem e todas as

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lembranças, adquiridas ou habituais, sãosuprimidas. O observador se torna nãohistórico; as variações ordenadas, as fachadassecundárias desaparecem; entretanto, oobservador consente agora numa liberdadepouco comum, frente à tradição da história.(OEHM, 1976, p. 60).

No projeto de revolução cultural de Einstein,o intelectual do futuro deveria tentar ajudar asmassas a “formar suas próprias convençõesapropriadas ao real” (EINSTEIN, 1973, p. 315) eressuscitar, assim, a função social que tinha a artenos tempos pré-modernos, isto é, organizar emimagens e em poemas “as impressões e asexperiências comuns” (EINSTEIN, 1973, p. 81) deum grupo social. Considerando que todas “asfigurações ideais” que tratasse de formas estéticasfechadas ou de sistemas conceituais têm, “emúltima análise”, por objetivo “questões de poder”(EINSTEIN, 1973, p. 213 e 218), para Einstein,nem a perspicácia conceitual nem aquela quesuscita a estética podem ser definitivas.

A perspicácia revolucionária, por exemplo,apenas é uma ligação útil entre uma faseultrapassada de nossa compreensão darealidade e uma nova fase. Tal conhecimentojamais é, artisticamente falando, dissociado desuas pré-condições concretas [...] É somentenesse sentido que o pensamento pode serprodutivo. (EINSTEIN, 1973, p. 192 e segu.).

Einstein enfatiza constantemente abilateralidade paradoxal de todo conhecimento,insiste no fato de que toda perspicácia individualsignifica “uma retenção de funções”, um “pontode parada”, uma estabilização dos acontecimentosem curso. A arte não pode, portanto, jamais sermimética. Quando atinge seu objetivo, ela nosfaz conscientes de experiências históricas, concretase, simultaneamente – se dissolvem neste efeitoprático – morto.

Nessa perspectiva é necessário também veras tentativas, muitas vezes incompreendidas, deWalter Benjamin, de salvar a narrativa como umfato social de importância para o futuro: elepensava que apenas o meio formado pela narrativapodia permitir que fossem trabalhados emprofundidade as experiências inscritas em nós eque elas adquirem uma transparência – ainda queapenas relativa. É também nessa ótica que épreciso ver o que Brecht denomina a “GrandePedagogia”, que não é somente uma teoria do

teatro, mas também uma teoria da prática crítica.Em seus aspectos teóricos, senão em suas relaçõespráticas, a concepção de Brecht de tal prática éde longe a mais avançada em sua forma.

Brecht sempre concebeu seu teatro épico, quelhe valeu a celebridade, como uma forma deprática teatral de transição, que aceitava tudo,mesmo o fato de que devia ser executado noquadro restrito da instituição de arte burguesa.Ele denominou os objetivos sociais de seu teatroépico a “Pequena Pedagogia”, que temimportâncias diferenciadas do teatro do futuro doqual desenvolveu a concepção sob o nome de“Grande Pedagogia”:

A ‘Grande Pedagogia’ modifica completamenteo papel do ator. Ela elimina o sistema (ou seja,a dissociação) do ator e do espectador [...] Elasó conhece os atores que levam à frente seusestudos, conforme o princípio, lá onde ‘ointeresse do indivíduo coincide com o do Estado,a compreensão do ‘gesto’ determina o modo deatividade do indivíduo’. [É assim que] a imitaçãodo ator se torna a parte principal da pedagogia.Em contrapartida, a Pequena Pedagogia não chegaa uma democratização do teatro, a não serdurante o período de transição da primeirarevolução. (No teatro da Pequena Pedagogia), adualidade (da cena e da sala) permanece intacta5.(STEINWEG, 1976, p. 51).

O propósito na intenção de acabar com adualidade da sala e da cena se encontra naconvicção de Brecht: inicialmente, todo processoimportante de aprendizagem alcançado deveencontrar sua base na experiência concreta,corporal, de atitudes ou de ação social e que, emsegundo lugar, apenas a experiência contínua deatitudes ou de ações desfavoráveis e mutuamenteexclusivas por “jogos de imitação” poderá ter umefeito durável. Isso significa que ele quer que osatores desempenhem papéis diferentes,incompatíveis, durante a mesma representação, afim de que aprendam, ou seja, que eles tenham aexperiência, o efeito corporal de uma condutasocial específica. Em outros termos, os atores, quedesempenham doravante por si mesmos, deveriamfazer, em seu próprio corpo e mudando-oconstantemente os papéis, a experiência dadiferença ideológica que trazem as atitudesbinárias.

Por causa da natureza problemática daautorrepresentação, da natureza dupla darepresentação e do ser que Brecht concebeu a

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“Grande Pedagogia” como um meio que abreum caminho infinito de autorrepresentações, doqual só podemos nos aproximar pela compreensãode nosso ser. Tais representações não sãoconcebidas no objetivo de um conhecimentocontemplativo melhor que aquele de uma práxissocial.

A técnica da alienação ou da distanciaçãoutilizada nas peças de Brecht, consideradas hojecomo seus clássicos, visa ao espírito deespectadores isolados. Estes são levados a seconfrontarem de maneira contemplativa nasignificação da peça, fundamentalmente damesma maneira que o leitor define pelas teoriastradicionais de avaliação, sendo levado aconfrontar e avaliar uma obra de arte de valor.No teatro considerado por Brecht para o futuro,não há mais espectadores, nada mais que osatores que desempenham agora para si mesmos.Esses atores fariam, em seus próprios corpos etrocando constantemente de papéis, a experiênciada diferença ideológica que trazem as atitudesbinárias. Brecht pressupunha que as estruturas quenos inscrevem a práxis social determinam nãoapenas a forma de nossos pensamentos, masainda todo nosso corpo, ou seja, os gestos e osmodos de comportamento inscritos em nossocorpo. Para Brecht, nossa luta contra a hegemonia– e a prática crítica não é outra coisa – não éjamais unicamente uma luta por significaçõesespecíficas.

Em razão das afinidades que sugeri entre oprojeto de Brecht e o início do romantismo, parecesignificativo que a “Grande Pedagogia”, que elebusca em meio às trocas de papéis, a deslocar asidentidades fixas e a mediar diferentes identidades,encontra um modelo no motivo de mudança depapéis da escrita romântica. De maneira análogaà de Brecht, os românticos empregam esse métodopara impedir o “Eu” de encontrar sua própriaidentidade, excluindo o “Outro” e, fazendo isso,excluem a si mesmos em relação ao outro.

VVVVVMinha tese foi que as preocupações

tradicionais relativas às questões de valor eram, esão ainda, fundamentadas sobre uma noçãoespecífica (e uma práxis) da leitura, do público,da significação e do sujeito enquanto agentesocial. Minha segunda tese foi que o conceito deavaliação, isto é, a discussão e a estimação deestruturas de significação, que merecem o exame,

foi removida por mudanças históricas e, sobretudo,por aquelas do modo de reprodução cultural dassociedades contemporâneas. (SCHULTE-SASSE,1988). A condição pós-moderna parece tornarindispensável uma prática crítica diferente quemudaria a ênfase de uma discussão sobre asestruturas de sentido rumo às práticas criativasque expulsam as estruturas existentes e fazemperceber significações fora de estruturas deidentidade estabelecidas. O sonho kantiano deuma “validade subjetiva universal” da arte erafundamentado sobre o pressuposto de que – comodisse E. D. Hirsch – a “significação de uma obraliterária pode ser conhecida apenas se adotamosa configuração mental específica que constitui estasignificação” (1969, p. 327). Deixando de lado aquestão de saber se tal adoção é apenas possível,eu defenderia que mesmo se ela for possível, nãoé desejável. Pelo fato das mudanças sociaisabalarem essas adoções, o objetivo da práticacrítica é mais desejável que seu sucesso.

Uma estimação adequada das possibilidadesde uma prática crítica em meio às sociedadescontemporâneas pressupõe, é claro, uma análisedas forças que dominam verdadeiramente asociedade ocidental de nossos dias. Para citaralguns dos principais elementos pertinentes dessecontexto, há, inicialmente e em primeiro plano, acapacidade do capital, nas sociedadescontemporâneas, de influenciar a organização dosdesejos humanos – do ponto de vista do sub-eupara dispersá-los, e do ponto de vista deste paraorganizá-los de maneira diferente – e de controlaras imagens que refletem esses desejos. Asideologias organizam ainda o sub-eu. Mas há,também, sentimentologias, se podemos criar umneologismo, que são organizadores disto. OEstado encontrou, e encontra ainda, seu objetivona organização ideológica dos sub-eus, isso quesignifica identidades ideológicas, enquanto ocapital se interessa sempre mais na organizaçãosentimentológica dos eus. Num grau limitado,portanto, o capital se encontra em oposição aosinteresses do Estado. Por fim, repito, ofuncionamento, sem embate, da reproduçãoideológica da sociedade, que tem por centro osub-eu, é sempre da mais alta importância. Odiscurso estabelecido, que trata da avaliaçãoliterária, é compatível com esse interesse doEstado.

Poderíamos dizer que o Estado é a instituiçãodeterminante da modernidade; o equivalente

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psíquico do modo de organização do Estadomoderno era um sub-eu forte, enquanto seuequivalente estético era o texto narrativo bemordenado – nas constelações de personagens destetexto, o sub-eu, ideologicamente bem ordenado,podia se inserir por um ato de identificação. Acirculação do capital e de imagens capitalizadasdestrói todo o processo e muda de maneira decisivao modo de reprodução cultural nas sociedadescontemporâneas.

Guy Debord mostrou como as imagens, osretratos, os fragmentos ou os blocos de narração,e mesmo até os fisionômicos, são convertidos emcapital na fase tardia do capitalismo e como elesformam uma corrente de imagens que podem sercontroladas a partir de algumas posiçõesprivilegiadas. A configuração ideologicamentecomplexa da narração fechada não é mais a formacaracterística sob a qual apresentamos a ideologia,como era o caso à época do capitalismo triunfante;somos atualmente confrontados com a imagemportadora de valor, comercializável, à situaçãovisual imediatamente transparente. Possuir taisimagens é possuir capital e o capital que elasrepresentam reflete o capital investido nelas.

Resta-nos colocar a questão de saber se asmudanças em meio às sociedades, nisto que éconveniente chamar de mundo ocidentalindustrializado, mudanças das quais somos astestemunhas no momento atual, não exigem maisque uma prática crítica que poderíamos descrevercomo uma prática da política da linguagem. Énesse ponto preciso que os contornos de umaprática diferente no quadro das sociedadescontemporâneas começam a se realçar.Contrariamente à prática tradicional da avaliação,a práxis crítica é aqui concebida como umaorganização semântica da experiência humana:necessária e, contudo, sem fim, ela não podejamais ser outra coisa que uma aproximação e seencontra, sempre, numa certa medida, já obsoleta.Tal organização depende de acontecimentosaleatórios no interior da linguagem.

1 - Traduzido do inglês por Henry Diament e dofrancês por Madalena Machado. Pós-doutora emLiteratura Brasileira pela Sorbonne (França) eprofessora da UNEMAT da área de Literaturas deLíngua Portuguesa e Teoria Literária, campus dePontes e Lacerda. E-mail: [email protected] - Certa bibliografia apresenta apenaspublicações sobre o tema do Kitsch antes de 1971,

enumerada com 819 títulos; minha própriabibliografia (seletiva) dá uma lista de 317 títulos sobreo problema da avaliação literária antes de 1975.3 - Não significa que o discurso sobre avaliaçãoemergente atualmente em pleno Terceiro Mundotenha uma função diferente. Ao contrário, aspressões da modernização parecem impulsionara inteligência do Terceiro Mundo na mesmadireção; ver Edgar Wright (1973) e Rand Bishop(1975), dentre outros.4 - Ver nota 2.5 - Numa série de publicações, Steinweg quasedescobriu somente e interpretou a Lhrstücktheoriee ressuscitou sua prática. Cf. igualmente ReinerSteinweg, Das Lehrstück. Brechts Theorie einerpolitisch-ästhetischen Erziehung (Stuttgart, 1972),e Bertolt Brecht, Die Massnahme. KritischeAusgabe mit einer Spielanleitung, Reinert Steiwegéd. (Frankfurt, 1972).

Aceito para publicação em 01.06.2009

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Todas as reflexões, discussões, projetos depesquisa ou extensão e até mesmo eventosartísticos de que tenho, de alguma forma,participado ou tenho testemunhado, nos últimosanos, em Mato Grosso, sempre me instigam arelacioná-los com o ensino. Assim, no âmbito daliteratura produzida em Mato Grosso(compreendida como a definiu primeiramenteYasmin Nadaf

2, referindo-se a obras produzidas

por mulheres, seguida por Hilda Magalhães3, que

estendeu o critério independentemente de gênero,depois Carlos Gomes de Carvalho

4 e, antes,

ainda, de forma subentendida em suahistoriografia, Rubens de Mendonça), em virtudedas várias ações públicas e privadas,institucionalizadas ou pessoais que têm sidorealizadas no sentido de formação do cânone, decriação de grupos de pesquisa, de recuperaçãode obras esgotadas ou quase extintas, deorganização de antologias com base empublicações de periódicos, de análise crítica deobras publicadas, de estudos sobre a constituiçãodas identidades locais por meio de obras de arte,de incentivo à publicação de novos autores, etc.,sinto-me desafiada a tratar de uma etapafundamental dessas ações, que é o ensino. Nãome ocuparei do consumo da literatura em outrosespaços que não a sala de aula. Também assinaloque esta é uma discussão inicial, bastante marcadapela experiência adquirida durante a práticadocente não apenas universitária, mas tambémcom o ensino médio há alguns anos atrás. Espero

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Este artigo pretende evidenciar a relevância da inclusão, nos currículos escolares, de obras produzidasna região em que os estudantes vivem, pela importância da literatura como conhecimento também da realidade doentorno e da reflexão sobre a formação do cânone nacional. Assinala-se, nessa inclusão, o cuidado com oscritérios de seleção de obras e uma reflexão sobre identidades culturais.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: identidades culturais; regionalismo; ensino; literatura mato-grossense; currículo escolar.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article aims to highlight the need of including literary works produced in the region where studentslive in their school curriculum, due to the importance of literature as well as encouraging the identification of theirreality and reflection on national canon formation. Both the criteria of selection of works and reflection on culturalidentities are taken into consideration.

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: cultural identities; regionalism; teaching; mato-grossense literature; school curriculum.

que possa ser acrescida, posteriormente, inclusivecom experiências, críticas, sugestões e pesquisasde outros profissionais.

Antes de focalizar a literatura regional, iniciouma discussão bastante aprofundada porpesquisadores de várias regiões do Brasil sobre adiluição do conteúdo da literatura, no ensinomédio, num componente curricular mais amplo,o das linguagens, nos atuais parâmetroscurriculares. Opondo-se a essa diluição, lemosem Orientações curriculares para o ensinoOrientações curriculares para o ensinoOrientações curriculares para o ensinoOrientações curriculares para o ensinoOrientações curriculares para o ensinomédio - l inguagens, códigos e suasmédio - l inguagens, códigos e suasmédio - l inguagens, códigos e suasmédio - l inguagens, códigos e suasmédio - l inguagens, códigos e suastecnologiastecnologiastecnologiastecnologiastecnologias (OCEM, doravante), a posição quedefende a autonomia e a especificidade daliteratura, assinada por consultores e leitorescríticos, entre eles, Ligia Chiapini, HaquiraOsakabe e Maria Zélia Versiane:

Embora concordemos com o fato de que aLiteratura seja um modo discursivo entre vários(o jornalístico, o científico, o coloquial, etc.), odiscurso literário decorre, diferentemente dosoutros, de um modo de construção que vai alémdas elaborações lingüísticas usuais, porque detodos os modos discursivos é o menospragmático, o que menos visa a aplicaçõespráticas. (OCEM, 2006, p.49).

Um dos pontos de vistas opostos ao das OCEMaponta como uma das soluções a formação doprofessor, ou seja, a ideia de que a dicotomialíngua-literatura não faz sentido quando oprofessor possui um conceito amplo de

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linguagem5. Não me estenderei sobre essa

discussão, mas reconheço que ela antecede a quedispõe sobre o regional.

Este recorte, entretanto, concentrar-se-á nesseúltimo aspecto, percorrendo, antes, um caminhoque vai do geral ao particular. Pensando aliteratura como conhecimento e a formação doleitor como uma das mais importantes funções daescola, vemo-nos diante de um cenário em que aliteratura, fora da escola, concorre com outrasformas midiáticas, em que prepondera a culturade massa. Na escola, em tese, seu locus maisimportante, a disciplina perde a autonomia. Assim,antes de mais nada, parece ser urgente a defesada especificidade da disciplina ou docompromisso do profissional de letras para entãodiscutir – o que não faremos aqui - o que asementas contemplam e como o ensino tem sidorealizado.

Outro item importante, para seguir no viés daexclusão, também discutido nas “OCEM”, são asfalhas apresentadas nos programas curriculares pré-estabelecidos em livros didáticos e apostilas (emque se privilegia a história da literatura, e não oestudo aprofundado das obras literárias), poisembora garantam algumas vantagens, expõemfraturas, como a não inclusão das literaturas ditasregionais, item que nos interessa aqui:

Podem-se destacar alguns pontos positivos esimultaneamente negativos da adoção dahistória da literatura no ensino tal qual se temcristalizado: 1. resolve o problema da seleçãode obras, pois constitui um corpus definido enacionalmente instituído, mas elimina aspeculiaridades regionais. (p. 76).

No caso de Mato Grosso, se admitimos aexistência de uma literatura regional ou, pelomenos, de uma literatura com todas as possíveisvariações de temas, estilos, etc. produzida em MatoGrosso, temos de admitir que há, no nosso caso,a presença do livro e do autor, consideradas asrelativas proporções em comparação a outrasregiões, e há a do leitor, mas essa é ainda tímida.Sobre a existência de literatura como sistema, emMato Grosso, Mario Cezar Silva Leite (2005)acentua a sua configuração a partir de certosmomentos históricos, instituições (Instituto Históricoe Geográfico e Academia Mato-grossense deLetras) e atores, em convergência com o discursoregionalista:

A partir de determinado momento específicoorganiza-se um sistema literário tendo comofator central o discurso regionalista que deu, edá desde então, uma certa coesão entre os trêselementos envolvidos, escritores-obra-leitores,e estabelece um certo conjunto - isto é, o sistemaorganiza-se a partir e em torno do discursoregionalista; segundo, este sistema assimorganizado não pode ser pensado sem seconsiderar, como parte absolutamente interna desua configuração, as figuras centrais de suafundação; e, terceiro, também não pode serpensado sem se considerar a produção literária,biográfica ou histórica, os discursos, criados-elaborados sobre essas figuras – responsáveispela construção efetiva de suas imagens. Daí que,por ora, parece-me indispensável sinalizar para acentralidade das duas instituições citadas acima epara duas das mais emblemáticas figuras de todoeste processo, no primeiro momento regionalistamais identificável: Dom Aquino Corrêa e José deMesquita. (LEITE, 2005, p. 237).

Dentre os três elementos do sistema cujafórmula vem de Antonio Candido

6, o último, como

já dissemos, ainda é deficitário no caso de MatoGrosso. Para resolver tal questão (reduzido númerode leitores), universidades locais têm começado ainvestir na formação de professores para o ensino,trazendo à cena obras e respectivas leituras críticas,com vistas à multiplicação desse conhecimentonas escolas.

Por que é importante que o currículo contempleobras regionais? A resposta parece tão óbvia quea pergunta poderia ser igualmente assimconsiderada. Mas, quando o assunto é ensino,nunca é demais repetir. Se pensamos a literaturacomo forma de conhecimento e como um “direitode todo cidadão”

7, conforme Candido, não

podemos privar esse cidadão da reflexão, dopensamento crítico acerca da realidade do seuentorno, o que é possível por meio de obras cujostemas incidam sobre o local (não apenas comoespaço geográfico, mas, sobretudo, local comoespaço de reflexão sobre a vivência de seres danatureza, inclusive os humanos, considerados emsua historicidade). No caso de obras produzidasno local, com temas que tendem à“universalidade”, é inegável a importância de seobservar como o artista que habita determinadoespaço (por mais que peregrine, viaje por outros)imagina e recria o mundo a partir de um pontode referência e como dialoga com outros mundos.

Também é importante, a partir da inclusão de

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obras produzidas na região e que tenham méritoqualitativo, discutir, tanto para as publicadascontemporaneamente, mas, sobretudo, no casodas extemporâneas, o porquê de não fazem partedo cânone nacional apresentado em apostilas elivros didáticos. Considerando que uma dashipóteses a ser formulada seja a do distanciamentogeográfico do eixo Rio-São Paulo, onde seconcentram as principais editoras e a maiordensidade demográfica, além dos aspectoseconômicos, cabe refletir, na sala de aula, sobreos critérios de constituição do cânone e sobre asformas como a região tem sido representada aolongo do tempo, em textos literários e impressosem geral (como jornais e revistas) e como essasrepresentações adquirem caráter performativo epassam a constituir as subjetividades/identidadesdos habitantes de uma região.

Partindo da suposição de que o ensino daliteratura regional esteja garantido, antecipo duaspreocupações relativas a seu ensino. Uma é a deque as obras regionais ocupem o merecido espaçopor méritos qualitativos e que não destituam oespaço de outras obras importantes, canonizadasou não, de outras literaturas, para que a regiãoou o regional não se sobreponha a outros critériose não ocorram fatos como os relatados porOsakabe e por ele considerados um equívoco:

Considerando grandes nomes da histórialiterária, Shakespeare por exemplo, comosinônimos da dominação branca, muitas foramas vozes favoráveis a sua eliminação doscurrículos escolares, em benefícios de nomesmais locais, de maior presença na vida imediatadas diferentes comunidades. Evidentemente oque se pretendia, num primeiro momento, nãoseria a substituição de um padrão por outro,mas uma ampliação do universo cultural, quedeveria necessariamente contemplar asproduções mais significativas da históriapróxima. Mas, o equívoco se instalou comoverdade moral e gerou discussões confusas emque se misturavam história cultural, conquistaspolíticas, avanço científico e também bastantecomplacência teórica. (OSAKABE, 2005, p. 39).

Sobre o mérito qualitativo, no caso de MatoGrosso, em que as obras consideradas regionais(as produzidas na região independentemente dotema) são muito pouco lidas, o consumo e acirculação não servem como parâmetro para medira qualidade, aliás, esses itens não servem comoparâmetro em nenhuma literatura. Então, aqui

reside o papel fundamental da pesquisa, sediada,predominantemente, nas universidades, que deverevelar as qualidades de um texto e, maisimportante, a publicação dessa pesquisa, de modoque alcance toda a comunidade escolar, nãoapenas a universitária. É sabido que falar sobrequalidade em arte constitui tema polêmico,especialmente hoje - na chamada pós-modernidade ou modernidade tardia, etc. -, emque o estético tem sido deslocado em favor dopolítico. É preciso atentar para que o político nãoseja um “tiro pela culatra”, fazendo com quegrandes obras da literatura e o respectivoconhecimento que as mesmas encerram não sejampreteridas ou lidas apenas por uma parcelaprivilegiada de estudantes, justamente os que jáse encontram na posição centro-incluídos.

Tratando-se da inclusão/exclusão de certasobras regionais do cânone nacional, é evidenteque, num primeiro momento, está-se garantindoa afirmação do local frente à tentativa dehomogeneização e padronização do gostopretendida pelo mercado global. Sobre o assunto,Walnice Vilalva (2008) assinala a presença dashistoriografias regionais como a afirmação dadiferença e alteridade diante da pretensa ideia deunidade e integração das historiografias nacionais:

O adjetivo, qualquer que seja ele, cearense,sergipano, mato-grossense, etc., deflagra nãoum exacerbado juízo de individuação esingularização, quer seja regional, quer sejalocal, mas nomeia precisamente o espaço daexclusão: aquilo que não pertence ao nacionalou à brasileira. Nessa proposta historiográficasalta o desejo de sobrevivência, de leitura e devalorização dos textos catalogados. (VILALVA,2008, p.13).

Nesse sentido, o ensino da literatura regionalé ainda mais importante, porque contribui para oreconhecimento e a afirmação da diferença.Pensando a literatura e seu ensino em qualquernível, teríamos a diferença do regional frente aonacional. Enquanto os currículos escolaresapresentarem a velha configuração (períodos eescolas literárias brasileiras), o regional seriadefinido pelo espaço do reconhecimento e dainclusão. Dentro da própria região, recomenda-se o cuidado para que algumas das obras quepertencem ao corpus denominado regional nãoproduzam a afirmação de identidade única de umaregião, e sim de identidades, já que nela nunca

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houve e cada vez menos há/haverá uma vivênciahomogênea. É preciso pensar sobre como algunsmodos de viver e alguns símbolos culturais existemno local, assinalando que nada existe casualmente(embora possam fazer parte da natureza, não“caíram do céu”).

A pergunta a ser feita é: os símbolos da minhacultura podem ser resultado de produções eprocessos relacionados a algum tipo de poder?Pode-se estender esse raciocínio ao próprioquestionamento do cânone. Incluir algumas obrasno repertório dito nacional significa, dentro daregião, escolher, dentre todas, aquelas que melhora representariam (a região) de acordo comdeterminados critérios. Isso não significa julgar aformação do cânone local, apenas chamar aatenção para o fato de que ele também é umaprodução. Por essas razões, há a preocupaçãode que o ensino da literatura regional nãocontribua para a formação/consolidação de umaconcepção essencialista de cultura, em que seconsidera tudo o que é “nosso/meu” de valormaior e melhor do que o que é do outro.

A partir de uma experiência com alunos degraduação em Letras, em que essa hipótese foiconfirmada

8, sugeri que o ensino de uma literatura

considerada regional deve incluir, na análise dasobras, discussões sobre a constituição dasidentidades, sobre o conceito de região nas váriasáreas do conhecimento e sobre o regionalismo.Pode-se, também, em currículos do ensino superior,debater, comparativamente, o modo como oregionalismo literário tem sido constituído nasdiferentes regiões brasileiras, nas diferentestemporalidades.

Essa proposta surgiu pela atualidade do tema,dadas as novas configurações espaciais de paísese regiões por conta da globalização e, também,como advertência para que o ensino de literaturanão sirva à consolidação de concepçõesessencialistas de cultura, nem a justificativasufanistas que, num primeiro momento, podem soarcomo atitudes ingênuas e inofensivas, mas,posteriormente, podem desencadearfundamentalismos com reflexos nas atitudes dossujeitos (no convívio social) sobre os quais tenhamagido os signos das identidades. Um dessesfundamentalismos pode ser o literário, baseadona exaltação de todas as obras produzidas no esobre o local e no desprezo a outras, talvez demaior mérito, por serem de outros locais.

Outro fundamentalismo se verifica quando

convivem, num mesmo espaço, pessoas dediferentes identidades culturais, caso de MatoGrosso, hoje, por ser um território de confluênciade vários fluxos migratórios e imigratórios. Jáobservei, pessoalmente, casos de discriminaçãopelas identidades culturais, por pessoas que nãoas compreendem como resultado de produçõesdiscursivas, em que a suposta identidade damaioria prevalece, ou prevalece a identidade dogrupo de maior poder econômico. Daí resultampreconceitos de todo o tipo. Nesses casos,considero fundamental a atuação da escola e,especificamente, do ensino da literatura regionalcom ementa que contemple o estudo da formaçãodas identidades, para que o debate e a reflexãodaí originados seja o responsável pelo respeito àdiferença, em acordo com o que diz a respeitoTomás Tadeu da Silva (2000):

Na perspectiva da diversidade, a diferença e aidentidade tendem a ser naturalizadas,cristalizadas, essencializadas. São tomadascomo dados ou fatos da vida social diante dosquais se deve tomar posição. Em geral, aposição socialmente aceita e pedagogicamenterecomendada é de respeito e tolerância paracom a diversidade e a diferença. Mas será queas questões da identidade e da diferença seesgotam nessa posição liberal? E, sobretudo:essa perspectiva é suficiente para servir de basepara uma pedagogia crítica e questionadora?Não deveríamos, antes de mais nada ter umateoria sobre a produção da identidade e dadiferença? Quais as implicações políticas deconceitos como diferença, identidade,diversidade, alteridade? O que está em jogona identidade? Como se configuraria umapedagogia e um currículo que estivessemcentrados não na diversidade, mas na diferença,concebida como processo, uma pedagogia eum currículo que não se limitassem a celebrar aidentidade e a diferença, mas que buscassemproblematizá-las? (SILVA, 2000, p.73).

A presença da literatura na escola/universidade é imprescindível, inclusive a regional.Não constitui problema o educando/leitororgulhar-se do local onde vive, das coisas da suaterra. Pelo contrário, é importante porque afirmao seu valor. No caso da literatura, entre outros,traz à tona também reflexões sobre a formação docânone, como já foi assinalado. O problemaapenas surge quando o orgulho passa a ser índicede uma suposta superioridade diante do outro ede uma ingênua compreensão de cultura, o que

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deve e pode ser evitado. Não custa repetir: o ensinoque problematiza a produção das diferenças podeser um grande aliado na formação das sociedadessustentáveis, tão defendidas nos discursos políticos.

Enfim, o lugar do regional na literatura,instaurado pelo político e pelo estético, deve sergarantido em todas as escolas e universidades.

1 - Mestre em Estudos da Linguagem pela UFMTe Doutoranda em Letras e Lingüística pela UFG.Professora de Literaturas da Língua Portuguesa daUNEMAT, campus de Tangará da Serra. E-mail:[email protected] - Em artigo publicado nos anais do VI SeminárioNacional Mulher e Literatura, em 1996, diz Yasmin:“ deve-se entender por essa literatura, aquela quefoi e está sendo produzida pelas mulheres nascidasem Mato Grosso que escrevem em Mato Grossoou em outras regiões, bem como pelas mulheresde outras regiões que escrevem em Mato Grosso”(NADAF, 1996, p.467).3 - Hilda Gomes Dutra Magalhães definiu comoliteratura mato-grossense “os textos escritos porautores que nasceram em Mato Grosso ou quenele residem (ou tenham residido), contribuindopara o enriquecimento da cultura do Estado”(MAGALHÃES, 2001, p.3).4 - Sebastião Carlos Gomes de Carvalho, emantologia de poemas, diz: “Considero como mato-grossenses não apenas os natos mas igualmenteàqueles que, vivendo aqui, produziram, eproduzem, a sua obra literária” (CARVALHO,2003, p.15).5 - Sobre esse tema, ver o artigo de Beth Brait,“Leituras, formas vivas de surpreendersignificações”, publicado pela Editora da UEL.6 - Candido distingue manifestações literárias deliteratura e, para haver esta última, impõe anecessidade de um sistema formado principalmentepor estes denominadores: “a existência de umconjunto de produtores literários, mais ou menosconscientes do seu papel; um conjunto dereceptores, formando os diferentes tipos de público,sem os quais a obra não vive; um mecanismotransmissor, (de modo geral, uma linguagem,traduzida em estilos), que liga uns aos outros”(CANDIDO, 2000, p.23).7 - Candido assevera o “direito à literatura” emartigo assim concluído: “Uma sociedade justapressupõe o respeito dos direitos humanos, e afruição da arte e da literatura em todas asmodalidades e em todos os níveis é um direito

inalienável” (CANDIDO, 2004, p.191).8 - A pesquisa foi publicada integralmente no livroO ensino de literatura produzida em MatoO ensino de literatura produzida em MatoO ensino de literatura produzida em MatoO ensino de literatura produzida em MatoO ensino de literatura produzida em MatoGrossoGrossoGrossoGrossoGrosso: regionalismo e identidades.

Aceito para publicação em 01.06.2009

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A viagem tem surgido como o espaço idealpara a ficção e a utopia. Propicia o distanciamentodo olhar, abre espaço para a criação literária etem o poder de alterar o significado do tempo eda história. Os descobrimentos no Novo Mundo,por exemplo, redesenharam a cartografia universalpela incorporação de uma novidade no universodo conhecimento. O viajante é o indivíduo defora que observa, analisa, pesquisa, compara eavalia, o que lhe permite descobrir novosparâmetros e criar. Desta forma, cada época geraacontecimentos que se revelam emblemáticos paraas transformações do mundo. No dizer de Ianni(2000), são “travessias” porque há sempre algode coletivo no movimento, nas inquietações, nasdescobertas e nas frustrações dos que seencontram, criando elementos de tensão, deconflitos e mesclando ou dissolvendo concepçõese valores. Tal mobilização, ligada pela viagem (realou imaginária), é uma forma de autodescobertae/ou de conhecimento do outro.

Uma dessas passagens obrigatórias na históriada civilização tem lugar nos séculos XV e XVI, vistoscomo períodos de grandes transformações nomundo. O Renascimento, notadamente o que sedesenvolveu na Itália, revitaliza a cultura e o saberda Antiguidade Grega, esta representada como otopos ideal onde se desenvolveu uma forma devida orgânica, regida por valores ético-morais.Os gregos eram contrários à ideia de expansãoda sociedade regida por padrões econômicos, pelaindustrialização e pelo desenvolvimento do

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Este artigo discute o papel do viajante Hitlodeu na obra UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia (1516), de Thomas More, observandoos elementos que compõem o conjunto harmônico da obra. Como caracterizadora do gênero utópico, é portadorade um projeto humanista de transformação social baseado em critérios racionais que poderiam resultar em melhoriasde vida comum dos povos do Ocidente.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: utopia; viajante; sociedade ideal; Thomas More; gênero literário.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This article discusses the role of the traveler Hitlodeu in Utopia (1516) by Thomas More, noting theelements which make up the whole harmony of the narrative. As a defining work of the utopian genre is the bearer ofa humanist project of social transformation based on rational criteria that could result in improvement of people´slife in the West.

KeywordsKeywordsKeywordsKeywordsKeywords: utopy; traveler; ideal society; Thomas More; literary genre.

indivíduo que degenerava o Estado. Esse conflitodará origem à tragédia que comportou, na suaessência, a crise do sagrado e a erupção doindivíduo. Surgiu a ideia do homem públicovoltado para o comércio, para a busca de riquezasadvindas, principalmente, das conquistas efazendo parte de um projeto de ação em que oimportante era o grau de possibilidades deconstruir algo para adquirir status e consciênciado próprio destino.

No momento de desenvolvimento dessas ideiashumanistas e renascentistas, a América édescoberta. O que isso pode significar?

Primeiramente a compreensão do processo dedesenvolvimento do pensamento centrado nohomem e, a posteriori, a relação deste com anatureza. Antes ligado ao sagrado e à tradiçãoda polis, o homem passa a conceber sua existênciae construir seu próprio destino, o que significa dizerque podia escrever a vida e inventar umasociedade. Nessa ideia de forma de vidaconstruída pela vontade e pela razão reside agênese da utopia.

Visto desta forma, o velho mundo comoprojeção do novo é uma utopia em si, ou seja,uma criação histórica. Como exemplo, na Itália,Alexandre VI rompe a lógica do papado e toma opoder da Igreja no momento do descobrimentoda América para construir com o seu filho, CesareBorgia, um novo reino. Borgia, como grandemanipulador político, faz a divisão das terras naAmérica, propõe o Tratado de Tordesilhas, dando

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aos espanhóis a maior fatia das terras. Assim, opoder mercantil é transferido para a PenínsulaIbérica, gerando, por séculos, os maiores conflitospela posse, ocupação e, principalmente, pelaregulamentação dos limites no continenteamericano. A Igreja, no centro do mercantilismo,comanda a ação religiosa de auxiliar o processode povoamento das terras e a catequização doshabitantes por meio da Companhia de Jesus. Aobra missionária cristã transformou-se, assim, numpoder paralelo intimidador do poder centralportuguês no século XVIII, liderado pelo primeiroministro de D. José I, Marquês de Pombal,responsável direto pela expulsão dos jesuítas dasterras americanas.

Intrinsecamente ligada à viagem comoprincípio e estratégia ficcional (e não só comomovimento) e ao relato, a utopia será analisada,para o propósito deste texto, como decorrente danarrativa do viajante. Especificamente, proponhorefletir sobre o papel do viajante como alicerce dorelato utópico na obra UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia, de Thomas More.

Estrategicamente, More cria uma personagem(marinheiro português companheiro de AméricoVespúcio) e uma ilha de utopia está nas rotasdesses navegadores. Tais elementos estãoimbricados de modo a tornar visível acompreensão do conjunto harmônico compostopara caracterizar o gênero e o estilo narrativo,fundadores das novas concepções de pensamento.

O viajante humanistaO viajante humanistaO viajante humanistaO viajante humanistaO viajante humanista

O viajante do século XVI é herdeiro doHumanismo desenvolvido em Florença no séculoXIV quando, pela necessidade de se ter um discursounificador, recupera-se o espírito grego. Essediscurso nasce das ideias gestadas pelo Concíliode Trento. Como coloca Agnes Heller (1982, p.267-292), em Florença é criada uma escola dedifusão do saber grego e funda-se a AcademiaNeoplatônica e a Biblioteca Laurenciana, basesdo Humanismo italiano. Surge, assim, o ócio ético-epicurista do trabalho e a política torna-seimportante pelos movimentos de conturbaçãosocial, solo propício para o desenvolvimento dautopia.

Com tamanha proporção de mudançassociorreligiosas, emerge a noção de indivíduo, istoé, o homem como entidade que necessita criarsua própria história. Os Medici, de origemsocialmente baixa, passam a banqueiros e

financiadores da arte e da economia, determinandoo destino da cidade a partir da expansãoeconômica. Financiam a viagem de Colombo quese faz acompanhar de um florentino, AméricoVespúcio, em cujo nome se inspirará adenominação do Novo Mundo descoberto. EsseNovo Mundo foi alcançado por viajantesnavegadores, portugueses e espanhóis, em buscade novas terras, cumprindo tarefas oficiais oubuscando riquezas. Lembramos, aqui, que More,pela boca do amigo Pedro Gil, fala em ilha deutopia nas rotas dos navegadores, colocando aTaprobana como lugar de desembarque “pormilagre”, até chegar à Calicut, “onde encontrounavios portugueses que o reconduziriam ao seupais” (MORE, 1972, p. 166). A ilha como lugarprivilegiado será transformada em espécie de mitoou de explicação para muitas situações históricas,implícita na simbologia de outro mundo e o alémmaravilhoso, ou até mesmo de uma situaçãogeográfica de entre rios, demarcando fronteiras.

Nessa perspectiva, na ideia de insularismoreside a atitude mental que representa omicrocosmo fora da história, uma vez que a não-expansão econômica da sociedade utópica isenta-a da corrupção causada pelo desenvolvimento.Uma espécie de consagração da tranquilidadeestática que, uma vez rompida, dá lugar àdesagregação social. A ilha é a representaçãodessa atitude mental: um lugar isolado, longe doscontatos humanos que geram a atividadeeconômica, portanto, o lugar ideal para odesenvolvimento do espírito de uma sociedadeplástica, isto é, inventada.

Na ilha, o viajante, que é o elemento casualno relato utópico, ao firmar o diálogo com alguémda terra, assume o papel de analista dasprecariedades locais e de guia das ideias detransformação de uma sociedade movida pelaética e não pelos meios de produção: “Rafaelnotou entre esses novos povos instituições tão ruinsquanto as nossas, mas, observou também umgrande número de leis capazes de esclarecer, deregenerar as cidades, nações e reinos da velhaEuropa” (p. 168). Essa possibilidade de ver comoutros olhos, de outra maneira, proporciona aviagem e dá ao viajante poder para compararrealidades:

Rafael entremeava sua narrativa com asreflexões mais profundas. Examinando cadaforma de governo, analisava com umasagacidade maravilhosa, o que há de bom e

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verdadeiro numa, de mau e de falso noutra. Aoouvi-lo [...] era de pensar-se que vivera toda avida nos lugares por onde apenas passara.(p.168).

Contrariamente à ideia da viagem comoforma de enriquecimento, o viajante da UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopiaestá acima dos bens materiais para usufrutopróprio, como diz a personagem representativadesse universo:

Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus,retomou Hitlodeu. Creio ter cumpridosofrivelmente os meus deveres para com eles.Os outros homens só abrem mão de seus bensjá velhos e na agonia, e é ainda chorando, querenunciam ao que suas mãos desfalecentes nãomais podem reter. Eu, cheio de saúde e juventude,tudo dei aos meus parentes e amigos. Eles nãose queixarão espero, do meu egoísmo; nãoexigirão que, para cumulá-los de ouro, eu mefaça escravo de um rei. (p. 169).

Aqui a posição do viajante está acima do beme do mal. Não aceita se inserir nos negóciospúblicos, como se nota na forma como é inquiridopor More no que diz respeito à ciência e aostalentos: “embora não tivésseis o hábito dosnegócios, daríeis mesmo assim, um excelenteministro para o rei mais ignorante” (p.170).

Nesse sentido, Rafael retruca More e diz queprefere o sossego e não tem todas as qualidadesque lhe são atribuídas. Além do mais, os príncipes“ocupam-se muito pouco de bem administrar osEstados submetidos à sua dominação”, pois noconselho do rei reina a inveja, a vaidade e ointeresse (p.171).

Ligado ao arcebispo da Cantuária, queconheceu na Inglaterra, Rafael tece a ele grandeselogios e o apresenta a Gil, uma vez que More jáo conhecia. Vendo por esse lado, como diz MauroBrandão no prefácio à obra de More, as ideiasparecem vinculadas a John Morton, cardeal earcebispo de Canterbury, de quem herdou afranqueza rude presente na análise implacável dasociedade inglesa de seu tempo, quando era umperigo pessoal fazer tal acusação. Suas disposiçõesnaturais eram desenvolvidas pelo exercício e peloestudo e era “um dos mais firmes esteios do Estado”(p. 172).

Como demonstração de conhecimento dascoisas, o humanista vive o que pensa e prega. Odiálogo com o cardeal John Morton representa atolerância e o caráter do indivíduo dotado de

qualidades próprias ao espírito da época. Oviajante de More é aquele do humanismo epicurista,do bem estar social sem, entretanto, perder oespírito coletivo: “Os viajantes se reúnem parapartir em conjunto; munem-se duma carta dopríncipe que é um certificado de licença e que fixao dia de regresso” (p. 172). A carta é o sinal decontato e de veiculação das ideias a seremseguidas. Representa, portanto, o olhardiferenciado do visitador clássico que, ao chegar,traz a utopia plenamente realizada.

O viajante utópico: quem é?O viajante utópico: quem é?O viajante utópico: quem é?O viajante utópico: quem é?O viajante utópico: quem é?

A Utopia, Utopia, Utopia, Utopia, Utopia, de Thomas More, escrita em 1516,é uma obra seminal que funda o gênero literário emarca um período importante na história.

O autor foi grã-chanceler da Inglaterra noreinado de Henrique VIII, momento de grandesinjustiças sociais e misérias da sociedade feudal,com a maior parte das terras nas mãos do clero eda nobreza, agricultura em ruína, falta de trabalhono campo em consequência da industrialização.Como homem ligado às questões do seu tempo,More coloca-se contra essa sociedadedesorganizada e corrupta. Cria uma sociedadeimaginária, ideal, sem propriedade privada, osbens e o solo distribuídos equitativamente,harmonia entre cidade e campo, sem gastossupérfluos e luxos e o Estado como administradorda produção.

Nesse ideal de sociedade, a obra estácomposta de duas partes que dialogam entre si:uma discute a Inglaterra da época e faz o seudiagnóstico social. Outra apresenta a utopia, umpaís repleto de problemas muito parecidos comos vividos pela Inglaterra, só que plenamenteresolvíveis. Deixando de lado a ideia de progressoe de mudança social que danifica o homem e asinstituições, More cria uma forma de resolver osproblemas da sociedade por meio da invençãode uma Inglaterra baseada na ordem do coletivo,e não do pessoal ou privado.

Essa estrutura situa a história de modo aevidenciar uma caracterização das personagensmovidas pela narrativa em primeira pessoa, quecomeça com o prólogo e avança para constituir oespaço em que os interlocutores dialogam sobresuas ideias. More chega em Flandres com a missãode tratar e resolver querelas entre Henrique VIII eCarlos, príncipe de Castela. Constitui-sepersonagem-narrador do prólogo do Livro I “Eu

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fui, então, enviado à Flandres, como parlamentarcom a missão de tratar e resolver essa questão”(p.163). Conhece e se relaciona com Pedro Gil:“Durante a minha estada nesta cidade conhecimuita gente; mas nenhuma relação me foi maisagradável que a de Pedro Gil, antuerpiense deuma grande integridade [...] Modesto e semfingimentos, simples e prudente, sabe falar comespírito, e seu gracejo não é nunca uma injúria”(p. 164). Gil apresenta-o a Rafael Hitlodeu,descrito como homem de boa formaçãohumanística e um jovem português de caráteraventureiro: “conhece bastante bem o latim edomina o grego com perfeição. O estudo dafilosofia, ao qual se devotou exclusivamente, fê-locultivar a língua de Atenas de preferência à deRoma” (p. 165). Segue Américo Vespúcio em suasúltimas viagens, porém, não volta com ele para aAmérica. Atendendo a seu pedido, Vespúcioconcede-lhe fazer parte dos vinte e quatro queficaram nos confins da Nova Castela, pois “onosso homem não teme a morte em terraestrangeira”. Percorreu muitos paises, desembarcouem Taprobana e chegou a Calicut, onde“encontrou navios portugueses que oreconduziram ao seu país, contra todas asexpectativas ” (p.165-166). Aqui, há umasemelhança intrínseca com o epos camoniano,inserindo o passado e valendo-se de profeciaspara incorporar um futuro que se liga aosresultados das grandes navegações.

A ligação de Hitlodeu com figuras de grandesnavegadores coloca em discussão o pensamentopolítico de More. De certa forma, essa ligaçãocontraria o pensamento humanista estabelecido,conforme se vê na análise de Hankins (s/d, p.183-187) sobre o contrasenso de More pela suanão aceitação da ideia platônica de que osgovernantes deveriam obrigatoriamente serfilósofos. Entretanto, para More, a pressão sociale cultural conduz o indivíduo para as facilitaçõesdo dinheiro e do orgulho pessoal. Hitlodeurepresentaria, nesse aspecto, o ideal filosóficoprático embasado na abolição da hierarquia sociale da propriedade privada.

Assim, no viajante estaria resumida a vidaativa e a contemplativa, necessárias ao êxito daformação de uma filosofia superior e a necessidadede sonhar com grandes realizações. Nesseaspecto, More dialoga com Atenas no que tem denecessário para a sua concepção de sociedadepara além da concepção platônica e sua inovação

fará da utopia o gênero por excelência.Presentifica-se, no primeiro livro, uma sucessão

de narrativas: More narra sobre a sua missão, aterra em que chegou e as pessoas que conheceu.John Morton, com sutileza, impede o legista deopor-se a Rafael sobre a tolerância ao roubo. Gilnarra sobre o estrangeiro e suas qualidades.Finalmente, este narra a utopia, que constitui asegunda parte da obra, a sua essência que,segundo alguns estudiosos da obra moreana, foiescrita primeiro. Essas narrativas são construídaspelo diálogo, forma ideal da época para o debatecívico acerca de temas de filosofia e de política.Os interlocutores, homens virtuosos, encontram-se gozando do ócio (otium), livres das ocupaçõespolíticas, num ambiente bucólico onde tem inícioa conversa com o estrangeiro numa ambientaçãoque lembra a tradição pastoril. Portanto, More semantém ligado ao ideal do homem livre doscontatos que danificam o seu caráter e as suasaptidões.

O encontro com um navegante é o elementoque completa a utopia. Com o olhar diferenciado,Hitlodeu, “nombre compuesto de dos raícesgriegas y que significa ‘profesor de boberías’”(SERVIER, 1995, p. 41), constitui-se o narradorda UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia após fazer parte dos “vinte e quatroque ficaram nos confins da ‘Nova Castela’”(MORE, 1972, p. 165).

Por que More escolhe o viajante para ser onarrador da utopia?

Se More, Gil e John Morton constituempersonagens da história, Hitlodeu é o estrangeiro(marinheiro), o elemento ficcional, situação quelhe garante o status de passageiro, viajante queexecuta a “travessia” (IANNI, 2000) de um estadode espírito para a novidade da transformação.Sob esse aspecto, o Livro I inscreve-se nos valoressociais de virtudes importantes para os humanistasque somavam ao saber a experiência e o estudocomo valores intransferíveis e necessários aoconhecimento. Hitlodeu é o viajante sedento denovidades, que incorpora o espírito novo a serdifundido. Pela viagem adquire-se o poder decontar, lembrando-se que ao colocá-lo ao ladode Vespúcio, More configura o narrador datradição. Ou seja, aquele que deixa o seu espaçoem busca do Outro e, ao retornar, traz em si ahistória vivida e contada. O viajante é, ainda,aquele que está credenciado para, com o olharde fora, julgar os problemas e propor soluções.Desta forma, releva-se a importância dos relatos

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de viagem sobre terras recém-descobertas no NovoMundo por portugueses e espanhóis, o que denotao grau de circulação desses textos entre o públicoleitor da época, ávido das conquistas e dasaventuras entre povos exóticos.

Hitlodeu é, portanto, o viajante que encarnao ideal humanista e, ao dialogar com More-personagem, estabelece o grau decomplementaridade propícia à expansão docaráter da UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia e do seu autor. Ao encarnaresse ideal, coloca-se no lugar de More, reforçandoa sua posição antimedieval: “Nós nada lheperguntamos sobre esses monstros famosos quejá perderam o mérito da novidade: Cila, Selenos,Lestrigões, comedores de gente, e outras harpiasda mesma espécie que existem em quase todaparte. O que é raro é uma sociedade sã esabiamente organizada” (MORE, p. 168) e aaspiração do ideal de sociedade, pois

se de um lado não posso concordar com tudoo que disse este homem, aliásincontestavelmente muito sábio e muito hábilnos negócios humanos, de outro lado confessosem dificuldade que há entre os utopianos umaquantidade de coisas que eu aspiro verestabelecidas em nossas cidades. (p.165).

Ao viajante cabe conhecer e informar. Rafaeldiz a More:

Se tivésseis estado na Utopia, se tivésseisassistido ao espetáculo de suas instituições ede seus costumes, como eu, que lá passei cincoanos de minha vida, e que não me decidi a sairsenão para revelar esse novo mundo ao antigo,confessaríeis que em nenhuma outra parte existesociedade perfeitamente organizada. (p. 205).

Rafael tem a certeza do que fala e dosconhecimentos que conseguiu acumular durantesuas “travessias” por lugares desconhecidos, umavez que os indivíduos da utopia aprendem comos viajantes

[...] na escola dos náufragos aprenderam tudoque estes conheciam das ciências e artesespalhadas no império romano. Mais tarde,esses primeiros germens se desenvolveram, eo pouco que os utopianos tinham aprendido,levou-os a descobrir o resto. Assim, um únicoponto de contato com o mundo antigo bastoupara transmitir-lhes a indústria e o gênio.(p.206).

O contato que se tem com a viagem tambémé enaltecido por Rafael: Talvez a posteridadetambém esqueça a minha estada nessa ilhaafortunada, estada esta que foi infinitamentepreciosa para os seus habitantes, pois, por estemeio, puderam apropriar-se das mais belasinvenções da Europa” (p.207). Aqueles que têmoportunidade de ouvir o viajante nutrem-se doconhecimento. Então, o ato de contar édisseminador de culturas:

Pois então, disse eu a Rafael, fazei-nos adescrição dessa ilha maravilhosa. Nãosuprimais nenhum detalhe, suplico-vos.Descrevei-nos os campos, os rios, as cidades,os homens, os costumes, as instituições, as leis,tudo o que pensais que desejamos saber, e,acreditai-me, esse desejo abarcar tudo queignoramos. (p.207).

Entre os diálogos do primeiro livro e toda adescrição da cidade ideal, na segunda parte, háuma coerência interna semelhante a que pautoua vida de More. Nesse aspecto, as personagensparecem fundir o mérito da questão básicahumanista. Hitlodeu representa uma filosofiasuperior e um grande interesse pela geografia epela história e More, como personagem dodiálogo, “apela ao homem de boa vontade paraque cumpra com o dever de conselheiro aplicandouma forma de filosofia mais civil, isto é, maisprática” (HANKIS, s.d., p. 185).

Algumas finalizaçõesAlgumas finalizaçõesAlgumas finalizaçõesAlgumas finalizaçõesAlgumas finalizações

Numa conjunção de valores sem os quais seriaimpossível compreender o texto utópico, o homemda UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia, de More, é aquele que está inseridonas concepções ético-estóico-epicuristas. Ou seja,esse homem teria uma vida ativa de virtude emharmonia com a natureza, locus do ócio e daprática virtuosa, serenidade, atitude sábia,condução consciente da vida. A ideia básica dessesvalores é que os deuses são indiferentes aoshomens, então, cada qual deve escrever suaprópria história. O seu lugar é a natureza e nela aexistência deve ser organizada prazerosamente nabusca equilibrada entre o corpo e a mente.

Encarnando o ideal de More, Hitlodeu é ohumanista que comunga com essa tradição esustenta, como virtudes centrais, a justiça e aeducação que devem guiar a comunidade acimade tudo. Sua visão, embora pareça a de um

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conservador, tem compromissos com certosprincípios políticos pelos quais sacrificou a própriavida, protestando contra as manobras de HenriqueVIII, que queria estender o poder real à políticaeclesiástica.

No segundo livro, More pergunta o quedeveria mudar na sociedade para que ela possaassumir os valores humanistas e cristãos e o queaconteceria se uma sociedade premiasse as pessoaspelo mérito, e não pela riqueza ou linhagem. Moresugere, pela boca de Hitlodeu, que só a educaçãodos príncipes e oligarcas nas letras clássicas nãoresolve o problema, pois os defeitos da sociedadehumana se ligam ao dinheiro e ao orgulho. Aúnica saída para a liberdade dos vícios é aabolição da hierarquia social e da propriedadeprivada, elementos que serão demonstrados porHitlodeu no esboço do retrato dessa sociedade.

Ao viajante cabe, então, a possibilidade doolhar (ex)ótico, externo à realidade visível. Ou seja,a ele é possível não só observar, mas julgar ecriticar, propondo alternativas de mudanças paraalém do aparentemente válido. Assim, só oindivíduo que se distancia do real existenteconsegue dar novas configurações a ela.

Desta forma, o tema da viagem é central nanarrativa utópica, pois impulsiona o relato e acontação. Na ligação entre ambos encontram-separadigmas comuns, pois, pela viagem, ascende-se a um novo mundo. A UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia, conformeMinerva (s/d, p.45-46), nutre-se dela [viagem],pois a presença do viajante realiza três condiçõesessenciais: 1) é possível a descoberta do outroatravés do diálogo com o mundo posto pelo outro;2) a utopia está submersa sob o ponto de vistaexterno e 3) o valor do nosso mundo encarnadono viajante pode ser posto em discussão.

Assim, a viagem, unida ao relato do viajante,constitui importante ingrediente no interior do textoutópico, significando princípio e estratégiaficcional, e não só movimento. O viajante, quefará história no percurso e na construção dopensamento e das sociedades, exerce papelessencial na sedimentação do gênero. É opensador que idealiza uma sociedade centradanos valores coletivos, voltada para a res , sem serhomem público, e a história é construção humanalivre do sagrado e da natureza, ou uma concepçãodo real não percebida pelos sentidos, mas pelamemória.

Na necessidade da época de o homem poderorganizar a vida como melhor lhe aprouver, a

UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopia sintetiza a realização dos ideaishumanistas com base nos anseios de melhoriasocial. More, ao fundar o gênero, transforma-senum marco importante na literatura e na históriaocidental. A caracterização do viajantepersonificado em Rafael Hitlodeu é emblemática,numa época em que pensar o mundo significava,também, conhecer e ampliar a geografia. Oviajante forja o espaço e sintetiza o seu momentohistórico. Nele reside a síntese do mundo. Ouniverso está nele. A prova disso é a forma comoos relatos de viagem moldaram a mentalidade daépoca e fizeram escola.

Nos parâmetros dos séculos XV e XVI, comovimos, a riqueza de ideias foram seminais para aevolução do pensamento humano e locusrevitalizador da cultura antiga, gestora dopensamento moderno. Portanto, pensar a UtopiaUtopiaUtopiaUtopiaUtopiaa partir da contribuição de Thomas More significarefletir sobre o complexo do pensamento ocidentale a ideia do mundo racional como importantesfatores de (re)constituição do universo histórico eliterário.

1 - Doutora em Teoria e História Literária pelaUNICAMP e professora de Literatura da UNEMAT,campus universitário de Cáceres. E-mail:[email protected]

Aceito para publicação em 01.06.2009

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Primeiras palavrasPrimeiras palavrasPrimeiras palavrasPrimeiras palavrasPrimeiras palavras

As literaturas africanas começam a serpublicadas no Brasil, principalmente as de línguaportuguesa, em volume sensível, permitindovisibilidade aos seus autores. A editora Companhiadas Letras, de São Paulo, tem tido um papelimportante na divulgação da produção literáriade África. Autores como Mia Couto e José LuandinoVieira já estão disponíveis ao público leitorbrasileiro. Outras editoras iniciam também acontribuir nesse sentido.

Dois livros iconográficos da literatura angolanaforam publicados no Brasil em 2007: A cidadeA cidadeA cidadeA cidadeA cidadee a infânciae a infânciae a infânciae a infânciae a infância, de José Luandino Vieira, e Os daOs daOs daOs daOs daminha ruaminha ruaminha ruaminha ruaminha rua, de Ondjaki. Com esses livros, aliteratura angolana apresenta aos leitoresbrasileiros dois tempos da história de Angola,épocas separadas pelo marco da independênciaem 1975, afirmando, no entanto, um movimentode cortes e continuidades. Já os títulos desses livrosrevelam suas relações cronotópicas

2: a cidade,

com sua geografia mapeando ruas, espaços,

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: No passado e no presente, duas vozes da Literatura Angolana se cruzam, as de Luandino Vieira eOndjaki que podem ser tomadas como representantes de duas gerações bem distintas.. Em A cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaLuandino Vieira reedita um tempo deixado para trás, de revoltas e lutas, de utopias revolucionárias. Ondjaki em OsOsOsOsOsda minha ruada minha ruada minha ruada minha ruada minha rua reinventa uma cidade povoada de imaginação, com personagens de sua infância passeando pelasruas atuais de Luanda. As duas narrativas se aproximam no cenário de uma cidade, reconstruindo um mundo queinspira histórias mágicas. As duas obras se tocam e se distanciam num movimento que apresenta memóriascruzadas confundindo temporalidades complexas, objetivas e subjetivadas pelas experiências da infância. Nestetrabalho pretende-se discutir a perspectiva de dois livros escritos sob diferentes motivações e que guardam umdiálogo silencioso entre si pela abordagem do espaço da cidade na infância transformada pela memória.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: memória; infância; cidade; literatura angolana; José Luandino Vieira, Ondjaki.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: In the past and present, the voices of the writers Luandino Vieira and Ondjaki intersect, authors which canbe considered as representatives of two distinct Angolan Literature generations. In A cidade e a infância,A cidade e a infância,A cidade e a infância,A cidade e a infância,A cidade e a infância,Luandino Vieira reedits a time left behild, of revolts, struggles and revolutionary utopias. Ondjaki in Os da minhaOs da minhaOs da minhaOs da minhaOs da minharuaruaruaruarua recreates a city populated of imagination, with characters from his childhood walking through Luanda streets oftoday. Both narratives approach each other in the scene of a city, reconstructing a world that inspires magical stories.These works touch and distance themselves in a movement that presents crossed memories mixing complextemporalities, objective and subjectivized by childhood experiences. This article aims to discuss the perspective oftwo books written under different motivations, which keep a silent dialogue between themselves, by the space of thecity approach in the childhood transformed by memory.

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: memory; childhood; city; Angolan Literature; José Luandino Vieira; Ondjaki.

pessoas e práticas sociais e a infância, tempo dameninice restaurada e reinventada pela escrita.

Construídos com a matéria e os artifícios damemória, os dois livros revisitam o passado dacapital angolana; o primeiro, da dominaçãocolonial, e o segundo, dos processos demodernização que vieram com a independência.Em Luandino, cidade e infância estão intrincadasde tal modo que o espaço da cidade e o tempoda infância parecem tornar-se uma só categoria,entretanto, é a cidade, concretizada no desenhodas ruas, que predomina como lugar das diferençassociais, do preconceito e da segregação. EmOndjaki, os habitantes mirins, com suas peripéciase aventuras, consagram a infância como tempode fantasia e travessuras, aproximando as históriasde Os da minha rua Os da minha rua Os da minha rua Os da minha rua Os da minha rua a apontamentos e/oucrônicas do cotidiano. Desse modo, há umainversão cronotópica deste com relação a AAAAAcidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infância.

IIIIILuandino Vieira é de uma geração que assistiu

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ao final da segunda catástrofe, o início da guerrafria, os assombros da guerra colonial; participoudas lutas de libertação nacional, viu Angola nascerindependente e transitar para outras guerras. Sualiteratura surge no interior de um mundodesarranjado, privado de liberdade e em processode significativas transformações políticas e sociais.

É sabido que Luandino Vieira ficou preso pormais de uma década pela polícia política deSalazar e que muitos de seus livros trazem oassombro dessa experiência. Luandino nasceu emPortugal em 1935 e, ainda pequeno, foi com afamília para Angola, país que se tornou motivo eargumento fundamentais em sua obra literária.Segundo Rita Chaves (1999, p.159-160), “ainfância e adolescência passadas na área dosmusseques (Braga, Makulusu e Kinaxixi, etc.)deixaram intensas marcas na formação do homeme no trabalho do escritor”.

Ondjaki é filho da independência de Angola;nasce em Luanda em 1977 e encontra um mundoem franca transformação no movimento geral damodernização e da economia de mercado; dá-secom uma tradição literária da qual fazem partemuitos escritores como Manuel Rui, Pepetela,Paula Tavares e o próprio Luandino Vieira. Ouseja, quando Ondjaki publica seus primeiros livros,já existe uma Literatura Angolana consolidada.

Sendo a perspectiva do livro a da infância, éde se notar a abordagem das contradições dasociedade angolana no pós-independência,denunciando, de certa maneira, um lado do paísque dá continuidade aos vícios dos temposcoloniais. Nesse sentido, afirma Alexandre GomesNeves (2008), que “os contos de Os da minhaOs da minhaOs da minhaOs da minhaOs da minharuaruaruaruarua revelam traços da sociedade angolana, numaprosa apenas aparentemente inocente”.

Nesses dois livros os contos estão na fronteiracom diversos tipos de discursos, ora comcaracterísticas de textos jornalísticos, crônicaspoéticas e relatos de experiências, ora com o lirismopróprio da poesia moderna. São em geral curtose despretensiosos com relação à forma literáriado conto, embora estejam catalogados comocontos. Se os aspectos mencionados irmanam osdois livros, já não se pode dizer o mesmo sobreas temáticas, nem sobre a posição do narradordiante da matéria narrada.

A juventude que inspira essas histórias é forçaprodutiva tanto em A cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaquanto em Os da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha rua. Na perspectivado narrador, as histórias vêm através do passado

e no presente dos acontecimentos, fazendo oscilara visão do adulto em rememoração e a visão dacriança ao modo proustiano, no caso, pelo esforçode tocar o presente da infância de modo direto,sem mediação. Um artifício, evidentemente, masque modifica a construção do texto e cria o efeitode temporalidades distintas, como se podeperceber no conto “Encontro do acaso”, de AAAAAcidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infânciacidade e a infância, em que amigos da infânciaencontram-se anos mais tarde e o narradormistura magistralmente os tempos:

- Olá, pá, não pagas nada?!Um encontro de acaso. Um encontro cruel queme lembrou a meninice descuidada. Ele, eu eos outros. A Grande Floresta e o Clube doKinaxixi refúgio dos bandidos. Os sardões e ospássaros. A fuga da escola. (VIEIRA, 2007,p.11).

[...]

Cá fora, sumindo-se na escuridão, negra comoeles, os dois amigos cambaleavam abraçados.E o da harmónica tirava do instrumento umamúsica que parecia arroto de bêbado atravésde palhetas, mas que no fundo era a canção detodos nós, meninos brancos e negros quecomemos quicuerra e peixe frito, que fizemosfugas e fisgas e que em manhãs de chuvadeitávamos o corpo sujo na água suja e dealma bem limpa íamos à conquista do redutodos bandidos do Kinaxixi. (VIEIRA, 2007, p.15).

Nesse conto, o encontro que se dáinesperadamente entre antigos companheiros é omotivo que faz desencadear uma série dereminiscências do narrador, que contrapõe umaépoca da coragem dos meninos que penetravamno reino dos bandidos à decadência, na vidaadulta, dos meninos valentes, levando o narradora reconhecer “como são dolorosas asrecordações” (VIEIRA, 2007, p. 12). De dentro daescrita, o narrador afasta-se para mostrar umacena em que os amigos “cambaleavamabraçados”, como se quisesse trair o lirismo donarrador em primeira pessoa dessa história, cujavoz própria o traz de volta no mesmo parágrafo,mas já noutro tempo, o tempo da infância.

O cruzamento de temporalidades, obtidograças aos processos de memória que combinama lembrança e o presente da experiência vividana infância, dá-se de modo diverso em Os daOs daOs daOs daOs daminha rua. minha rua. minha rua. minha rua. minha rua. Em Ondjaki, o tempo tende a

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estabilizar-se e o uso constante dos verbos nasformas do pretérito cria uma narrativa mais linear,do ponto de vista temporal, que em LuandinoVieira. Neste, o encanto é quebrado pelo olharconstante do adulto que revisita a infância,fazendo interagir com ela a consciência damaturidade. Em Ondjaki, a permanência do tempono passado mantém o universo encantado dainfância, pleno de poesia, como em “Manga verdee o sal também”:

Uma pessoa quando é criança parece que tema boca preparada para sabores bem diferentessem serem muito picantes de arder na língua.São misturas que inventam uma poesiamastigada tipo segredos de fim da tarde. Eraassim, antigamente, na casa da minha avó. Notempo da Madalena Kamussekelle. (ONDJAKI,2007, p.79).

[...]

Trouxeram sal nas mãos bonitas em conchacom cheiro assim duma praia secreta. OPaulinho tinha um canivete e cortou as mangasaos bocadinhos. Cada um pegava um pedacitode manga verde, misturava com o sal e comiadevagar. Entre gargalhadas pequeninas, íamosdividindo o momento e a tarde, os olhares e osarrepios, os sons gulosos e as sujidades dasmãos que pingavam esquebras de suco para asformigas beberem. (ONDJAKI, 2007, p.81).

O mundo dos meninos na rua ou nas suasaventuras domésticas é raramente desestabilizadoem Os da minha rua, Os da minha rua, Os da minha rua, Os da minha rua, Os da minha rua, como, por exemplo,quando o narrador, em “nós chorámos pelo cãotinhoso”, conta a leitura na escola de “Nósmatámos o Cão Tinhoso”, do moçambicano LuísBernardo Honwana, cuja perspectiva narrativa éde uma criança, o que amplia a violência de quetrata o romance ao levar os meninos àcompreensão da história: “eu estava mais crescidona maneira de ler o texto, porque comecei a pensarque aquele grupo que lhes mandaram matar ocão tinhoso com tiros de pressão de ar era comoo grupo que tinha escolhido para ler o texto”(ONDJAKI, 2007, p.133).

Percebe-se que as histórias de Ondjaki nãopossuem o peso existencial que há em LuandinoVieira. A infância em Ondjaki é irreverente, quaseirresponsável. Tem-se a impressão que em Ondjakinão se analisa, se descreve e se narra o mundo,numa memória que guarda a infância pelo olhar

da criança. Sua literatura não é reflexiva, é alegriade recordar e brincar com as palavras como sebrinca com o mundo da fabulação asseguradopela proximidade entre o diário e a crônica comoregistros de memória. Semelhante orientação podeser encontrada no seu livro Bom diaBom diaBom diaBom diaBom diacamaradascamaradascamaradascamaradascamaradas, publicado em 2006.

Já a poesia que tinge a prosa de LuandinoVieira aparece, em muitos contos, carregada depólvora, e nas filigranas da palavra esmorece acrosta dura da vida, transmitindo a esperançapossível, revolucionária que enfrentou o mundosem sentido, mas real, da colonização. As relaçõescronotópicas nos dois livros são constitutivas dohumor de cada obra, ferindo a representaçãoliterária de múltiplos discursos e experiências queconstroem juntos a textualidade da literatura e dahistória.

I II II II II IA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infância foi publicado pela

primeira vez em 1957, quando Luandino aindaera José Vieira Mateus da Graça e tinha, portando,28 anos. Esse é o primeiro livro do autor angolano,mas já revelava as linhas de força de sua literatura,delineando os traços que seriam aperfeiçoadosanos mais tarde, atingindo a plenitude em obrasprimas como Nós, os MakulusuNós, os MakulusuNós, os MakulusuNós, os MakulusuNós, os Makulusu ou NossoNossoNossoNossoNossoMussequeMussequeMussequeMussequeMusseque.

Como lembra Cristiane Santana Silva (2008),em resenha sobre A cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infânciaA cidade e a infância,Luandino Vieira declara, em entrevista concedidaao jornal O Estado de São PO Estado de São PO Estado de São PO Estado de São PO Estado de São Pauloauloauloauloaulo por ocasiãodo lançamento de seu livro, que nesse livro jáestava definida sua proposta literária:

[...] Os sítios, cenários, locais e as gentes queiriam povoar meu imaginário aí aparecemesboçados. Na verdade, sem grande justeza ouprofundidade mas a escolha impôs-se-me: acidade, a nossa terra de Luanda, sobretudo oespaço dos musseques e suas gentes. Tambémo que do fundo da infância e da adolescênciasempre emergia e continua a emergir. É comumsaber que para quase todas as pessoas, e quiçámais para os que se fazem escritores, a infânciaé um manancial sem-fim e por toda a vida.Intenção literária não haveria muita. Ou eralimitada a conformar minhas intenções de serescritor como forma de participar no movimentocultural angolano que, naqueles idos de 1950,renascia com pujança político-cultural. (OEstado de São Paulo, p.5).

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Antes, porém, em prefácio à segunda ediçãoem 1977, Manuel Ferreira (2007, p.125) jáafirmava: “diríamos que o universo ao longo dosanos por ele explorado, nas suas linhas gerais,está já embrionado nestas dez histórias”.

O tom de princípio que faz de A cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e ainfânciainfânciainfânciainfânciainfância uma espécie de palavra fundadora naobra de Luandino Vieira já não é a aura de OsOsOsOsOsda minha ruada minha ruada minha ruada minha ruada minha rua, de Ondjaki. Entretanto, o livrode Ondjaki é quase um palimpsesto da primeiraobra de Luandino Vieira. Ondjaki, ao publicaresse livro, tem idade semelhante à que tinhaLuandino Vieira quando publicou A cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e ainfânciainfânciainfânciainfânciainfância, mas não é estreante como Luandino.São cinquenta anos que separam esses dois livros,revelando universos configurados em tempos eespaços variáveis e de profundas mudançaspolíticas e sociais.

Hoje, Ondjaki é um escritor conhecido pelomundo afora. Quando seu livro veio a públicono Brasil, em 2007, suas obras anteriores já tinhamsido traduzidas para o espanhol, italiano, francêse alemão e já haviam lhe rendido prêmios. Quemconhece o escritor não deixa de notar suaexpressividade e natureza otimista que combinahumor, refinamento crítico e crença em Angola.

O mundo de Luandino Vieira recebia essasqualidades como provocação e subversão e osprêmios eram de natureza diversa. A prisão,debitada de suas ideias, fez parte de um tempoem que não havia conciliação e que os homenssó podiam escolher entre duas coisas: estar contraou a favor do sistema político vigente.

Na Angola atual, o percurso democráticofavorece a crítica social que, em geral, é feita porintelectuais e escritores. Ainda que muito jovem,Ondjaki “mostra-se um prosador de grandesensibilidade, capaz de envolver o leitor ao mesmotempo em que revela traços marcantes de seuespaço social, sem esquecer o diálogo com a járica tradição literária de seu país” (NEVES, 2008).

Num encontro de literatura no Rio de Janeiroem novembro de 2007, os dois escritorescompuseram os fios de um bordado de 50 anosque separam a primeira edição de A cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e aA cidade e ainfânciainfânciainfânciainfânciainfância e Os da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha rua. Foi uma dascoisas mais bonitas de se ver: a literatura presenteno testemunho raro de dois escritores que estãoali para tratar do passado e do presente não demodo anacrônico, mas como continuidade vivade construção de uma literatura jovem, mas fortee vigorosa, como foi forte e vigorosa a infância e

a memória que constituem o alicerce desses doislivros.

O cronotopo dessas obras dialogam pelatransformação social e política da cidade deLuanda, que vem na memória da infânciatraduzida por dois jovens escritores.

I I II I II I II I II I INum texto inspirador sobre personagens

infantis na Literatura Angolana, Tânia Macedo fazas seguintes considerações:

Se a cidade de Luanda é o espaço privilegiadotrilhado pela maioria dos textos ficcionaisangolanos no pré e pós-independência, talvezpoucas personagens possam exemplificar astransformações pelas quais passou o país e aliteratura de Angola nos últimos cinqüenta anoscomo as infantis, na medida em que as váriasdenominações que elas recebem são osindícios dessas modificações, assim como asua configuração, que indica novas formas denarrar. Dessa forma, poderemos acompanharcomo essas personagens passam demonandengues a pioneiros, para chegar àstristemente famosas prostitutas infantis, as“catorzinhas”, ou aos “roboteiros”, criançastrabalhadoras dos mercados populares.(MACEDO, 2007, p.358).

Em Os da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha rua, Ondjaki celebra ainfância feliz. Oscilando entre a crônica e o diário,os 22 contos curtos de Os da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaOs da minha ruaapresentam o universo aberto da globalização,acontecimentos dos quais Angola também participacomo o restante do mundo, o contato com acultura brasileira pela teledramaturgia ou pelamúsica, bem como pela música norte-americana.

A infância é responsável pela visão lúdica daspersonagens nos dois autores, não importa ondeesteja seu presente, se em meio à paz ou aodesamparo da guerra, nos descompassos geradospela modernidade. Em Luandino Vieira, amaturidade demonstraria mais tarde o quedemonstra em geral a maturidade: um Luandinomais reflexivo e mais consciente do ofício deescritor que, no entanto, já se anunciava nesseprimeiro livro. O texto literário em suas mãos deartesão passará cada vez mais pelo fino lapidarda palavra, encostando o mundo épico da prosatradicional ao mundo desestruturante, presente namodernidade poética.

Sua narrativa, construída de períodos e fraseseconômicos, salta da página para um filme, numa

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apresentação dramática da própria narrativa. Afronteira do asfalto a separar dois amigos deinfância cujo afeto se via agora nas sutil e realmargem entre o musseque o bairro de cimento:

- E tu achas que está tudo como então? Comoquando brincávamos à barra do lenço ou àsescondidas? Quando eu era o teu amigoRicardo, um pretinho muito limpo e educado,no dizer de tua mãe? Achas...E com as próprias palavras ia-se excitando. Osolhos brilhavam e o cérebro ficava vazio porquetudo o que acumulara saía numa torrente depalavras.- ... que eu possa continuar a ser teu amigo...- Ricardo!- que a minha presença em tua casa... no quintalda tua casa, poucas vezes dentro dela!, nãoestragará os planos da tua família. (VIEIRA,2007, p.40).

O diálogo de Ricardo e Marina é apenas umdos inúmeros momentos do livro em que o narradortende a afastar-se para deixar no palco aspersonagens, dramaticamente representando seusdestinos. No interior das línguas angolanas,Luandino buscará o motivo e a impressão de seusmundos plurais e enriquecidos mutuamente nessecampo de contradições e adversidades.

Se a infância em Luandino Vieira é revisitada,o olhar do menino e o do moço se cruzam namemória de um tempo que exigia uma posturasevera diante da existência, nem por isso a infânciaperde sua vocação arteira, como podemos ler emalgumas das 10 histórias que compõem A cidadeA cidadeA cidadeA cidadeA cidadee a infânciae a infânciae a infânciae a infânciae a infância. Histórias tocantes como esta damenina branca e do menino negro, dos afetosdissolvidos no preconceito, na censura de ummundo racionalizado por esquivos e vis interessesque machuca o olhar do menino que lembra.

A cidade é o espaço por excelência de doismundos que se aproximariam cada vez mais eque revelaria cada vez mais as inconsequênciasde autoridades políticas que interferiram nassociedades africanas. Sendo a cidade umaaglomeração de civilidade, reserva deprosperidade, sinônimo de modernidade, ela éespaço sagrado da vida pública onde,paradoxalmente, a cidade revela as fronteiras doasfalto, as fronteiras entre pobres e ricos, entrebrancos e negros.

Sendo os títulos desses livros reveladores, acidade e a infância, mais que um espaço e umtempo, são simultaneamente espaço e tempo

articulados numa relação de interdependência,como pensou Bakhtin ao teorizar o cruzamentodessas duas categorias do pensamento. Esse jogo,exposto claramente no título de Luandino Vieira,encontra subterfúgio e reverência no título deOndjaki, designando a infância, de modoindefinido, no artigo definido “Os” da minha rua.

A população indeterminada de um mundo vaisendo trazida nas páginas do livro na cartografiade um país imaginário, de uma outra cidade, ainfância. A rua celebra a cidade de LuandinoVieira, uma Luanda que vivia os anos quentes queengendravam a independência: lugar de encontro,de separação, com suas margens infinitas que nãose continham na segregação, extrapolando oslimites daquela sociedade.

Ondjaki, na leveza do poeta falante,apresenta-se mais como um exímio contador dehistórias, o griot das narrativas orais, anunciandoa poesia do cotidiano pelo flash de uma memóriarelâmpago que ele assenta em detalhes sobre opapel, consciente daqueles que escreveram antesde si. Ao final, como que saindo do mundofabuloso, o narrador volta a absorver a realidadedo presente:

Deixei os braços pousarem na madeira inchadae húmida, abri um pouco a janela a pensar queisso de olhar a chuva de frente podia abrandaro ritmo dela, ouvi lá em baixo, na varanda ospassos da avó Agnette que ia se sentar nacadeira da varanda a apanhar fresco, senti quedespedir-me da minha rua era despedir-me dosmeus pais, das minhas irmãs, da avó e eradespedir-me de todos os outros: os da minharua. (ONDJAKI, 2007, p.145).

Em Ondjaki e Luandino Vieira, pela escritacomo restauração, as fronteiras se desmanchamno ar, comunicando uma comunhão do olharinfantil na memória de jovem que ainda nãoperdeu totalmente a inocência. Esses narradoressão representantes de um mundo que não podemais expressar-se por si mesmo. Estãoinalienavelmente ligados à experiência de criarmundos, fazer literatura, lutar com as palavras.Julgar esses livros significa considerar que existeuma Angola latente que pulsou no passado e quecontinua pulsando no presente, na força daredescoberta da infância, como um país estrangeiroque se visita no susto do acontecimento da escrita,como a memória.

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PPPPPalavras finaisalavras finaisalavras finaisalavras finaisalavras finais

Entre o adulto e a criança existe um tempovivo, presente, mas paradoxalmente deixado paratrás. O mundo da infância que acaricia uns eaterroriza outros submerge na consciência dessesnarradores autobiógrafos que restauram a belezada infância e a fantasia da meninice, ao mesmotempo que fazem lembrar o universo estéril da guerrae da violência, em meio a descobertas edeslumbramentos próprios da juventude.

A escrita começa a ser interrogada, pois empresença de outros tempos ela se volta sobre acapacidade de reter os traços do passado. É comose houvesse um reconhecimento do limite daarticulação verbal da linguagem, mediante acompreensão da impossibilidade de com elarecuperar o passado, ou mesmo percebersimultâneas e justapostas realidades. O tempo passaa ser uma categoria de fundamental importância,por articular espaços transformados historicamente,revelando tensões e contradições. Simultaneidadese justaposições coabitam na arena da memória edisputam, cada qual a seu modo, um lugar nocoração de uma totalidade impossível dentro danarrativa, propondo de modo lúdico o jogoconstante entre a cidade-memória e a infância-rua,como terminam por concluir os narradores deLuandino Vieira e Ondjaki, na voz deste último:

[...] senti que rua não era um conjunto de casas,mas uma multidão de abraços, a minha rua,que sempre chamou Fernão Mendes Pinto,nesse dia ficou espremida numa só palavra quequase me doía na boca se eu falasse compalavras de dizer: infância. (ONDJAKI, 2007,p.145).

Ler esses dois livros hoje é confrontar doismundos diferentes, como se um fosse escrito nodiálogo surdo e silencioso com o outro, na esferade um mundo que de tanto se inventar, deixa deser ele mesmo, como a memória e o própriopassado, matéria plástica e aberta a inclusivedesmaterializar-se em favor de transformadarealidade: a da literatura.

1 - Doutora em Estudos Comparados de Literaturasde Língua Portuguesa pela USP e professora deLiteratura da UNEMAT, campus universitário deCáceres. E-mail: [email protected] - Conceito desenvolvido por M. Bakthin a partirda investigação do desenvolvimento do gênero

romanesco, em que se consideram as relaçõesindissociáveis entre tempo e espaço narepresentação literária, na perspectiva dos laçosentre literatura e história.

Aceito para publicação em 01.06.2009

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Nesta reflexão em que o campo disciplinarSemântica

2 é colocado como questão central,

propomos analisar, na perspectiva da História dasIdeias Linguísticas, os sentidos da inscrição dessadisciplina na gramática brasileira após a instalaçãoda NGB, procurando observar que estatuto lhe édispensado – campo disciplinar ou termosuplementar – e como esse estatuto, no processode sua institucionalização, vai sendo construído,significado e re-significado no imaginário deprofessores e alunos que manuseiam a gramática.

Para compreender como se dá a constituiçãodesse lugar, tomaremos, dentre os movimentos dagramatização brasileira do Português estabelecidospor Guimarães (1996), o terceiro movimento emque se dá, além da denominação do idiomanacional como Língua Portuguesa (1946), dapublicação de Princípios de LinguísticaPrincípios de LinguísticaPrincípios de LinguísticaPrincípios de LinguísticaPrincípios de LinguísticaGeral, Geral, Geral, Geral, Geral, de Mattoso Câmara (1ª edição em 1941),História da Língua PHistória da Língua PHistória da Língua PHistória da Língua PHistória da Língua Portuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa, de SerafimSilva Neto (1952), A Formação Histórica daA Formação Histórica daA Formação Histórica daA Formação Histórica daA Formação Histórica daLíngua PLíngua PLíngua PLíngua PLíngua Portuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa, de Silveira Bueno (1955),a instalação da Nomenclatura GramaticalBrasileira (doravante NGB) em 1959, através de

ResumoResumoResumoResumoResumo: Na perspectiva da História das Ideias Linguísticas no Brasil, propomos analisar como se dá a inscrição docampo disciplinar Semântica na gramática brasileira após a instalação da NGB (1959), observando como oestatuto que lhe é dispensado na gramática, no processo de sua institucionalização, vai sendo construído, significadoe re-significado no imaginário dos sujeitos que manuseiam a gramática. Na Moderna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática Portuguesaortuguesaortuguesaortuguesaortuguesa(1961), de Evanildo Bechara, objeto de nossa investigação, mostramos que o autor, contrariando as recomendaçõesda NGB, introduz, nos espaços livres deixados pela incompletude do modelo oficial, a disciplina Semântica, ao ladoda Fonética, Morfologia e Sintaxe.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chavechavechavechavechave: História das Ideias Linguísticas; NGB; Moderna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática Portuguesaortuguesaortuguesaortuguesaortuguesa; Semântica.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: From the perspective of the History of Linguistic Ideas in Brazil, we propose to analyze how the inscriptionof the disciplinary field of Semantics happens in Brazilian grammar after the installation of the NGB (1959),observing in the process of its institutional introduction how the statute that it receives in grammar is progressivelyconstructed, signified and re-signified in the imagination of those handling it. In the Modern Portuguese Grammar(1961) of Evanildo Bechara, the object of our investigation, we show that the author, contradicting therecommendations of the NGB, introduces into spaces left by the incompleteness of the official model, the disciplineof Semantics along with Phonetics, Morphology and Syntax.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: History of Linguistic Ideas; NGB; Modern PModern PModern PModern PModern Portuguese Grammarortuguese Grammarortuguese Grammarortuguese Grammarortuguese Grammar; Semantics.

um ato do Governo, visando a unificar o ensinoda Língua Portuguesa nas instituições escolaresdo país.

Dois aspectos chamam a atenção na NGB:a) o título “Simplificação e Unificação da NGB”que significa dentro de uma história do ensinoprogramático da Língua Portuguesa, determinandoo processo de sua nomeação e do seufuncionamento, ou seja, trata-se de umacontecimento de política de língua que seconfigura como modelo ou padrão a ser adotadocomo forma de pôr fim às variações terminológicasdas gramáticas brasileiras em circulação à época;e b) o lugar da formulação da NGB que, aprincípio, silencia a Academia Brasileira de Letras

3,

instituição com autoridade para discutir e proporas reformas referentes às questões do ensino doportuguês do Brasil.

Outro aspecto já apontado por Guimarães(1996) e Baldini (1998) diz respeito à “falta defiliação teórica na NGB”. Com relação a essaquestão, diríamos que a autoria desse documento,amplamente representada por “filólogos e linguistasde todo País”, busca nacionalizar politicamenteum trabalho normativo que deseja ser aceito eunificado em todo o país. Desse modo, há que se

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considerar que essa mesma representatividade,pela pluralidade teórica que os constitui,discursivamente produziu o apagamento dasfiliações teóricas (européia e americana) járeferenciadas em algumas gramáticas publicadasno final do século XIX e início do século XX.

No entanto, o espaço constituído pela faltade filiação teórica na formulação da NGBflexibiliza o papel da unificação, abrindo brechasao gramático brasileiro de filiar-se às diferentescorrentes teóricas em movimento para criar novostermos, como forma de instalar o diferente (o aser dito) no mesmo (o já dito), ou, como dizOrlandi (2002, p.133): “Não há influências emuma só direção, mas relações de sentidos. Nãohá reprodução teórica, mas transferência, re-significação. Não há “recepção” de autores, mastrabalho histórico de significação dessas relaçõesentre gramáticos”.

Retomando a proposta inicial deste trabalho,tomaremos como corpus o documentoNomenclatura Gramatical BrasileiraNomenclatura Gramatical BrasileiraNomenclatura Gramatical BrasileiraNomenclatura Gramatical BrasileiraNomenclatura Gramatical Brasileira (1959)e a obra de Evanildo Bechara, ModernaModernaModernaModernaModernaGramática PGramática PGramática PGramática PGramática Portuguesa ortuguesa ortuguesa ortuguesa ortuguesa (1961), procurandoobservar se os sentidos da inscrição da Semântica,nessa gramática, são determinados pelo modelorecomendado pela NGB e que estatuto lhe é dado,enquanto disciplina linguística, em relação àFonética, Morfologia e Sintaxe, camposdisciplinares que ocupam lugares cristalizados nasgramáticas normativas brasileiras. Ou, ainda, seessa gramática adota o modelo oficial ou transpõeo paradigma da NGB.

Para analisar essas relações, inicialmenteapresentaremos o documento que trata daNomenclatura Gramatical Brasileira que,metaforicamente, vai funcionar como um divisorde águas, um antes e um depois da unificação doportuguês do Brasil, período em que a própriagramática de Bechara vai circular determinada pelaexpressão Com base na NGBCom base na NGBCom base na NGBCom base na NGBCom base na NGB (grifos nossos).

A A A A A SemânticaSemânticaSemânticaSemânticaSemântica na NGB na NGB na NGB na NGB na NGB

O edifício global da NGB compreende doispilares:

1) o primeiro é constituído pelas partes quechamarei de integrantes da gramática: Fonética,Morfologia e Sintaxe;

2) e o segundo, denominado Apêndice,compreende as Figuras de Sintaxe, GramáticaHistórica, Ortografia, Pontuação, Significação dasPalavras e Vícios de Linguagem.

Assim distribuído o rol dos termos na NGB,verifica-se que o domínio da Semântica não seinclui como parte integrante e, em função do seuapagamento no corpo da Nomenclatura, ossentidos desse domínio se dispersam e não seconstituem na discursividade da NomenclaturaGramatical Brasileira.

O Apêndice, enquanto parte acessória daNomenclatura, representa a extensão do texto daNGB que, por não traduzir todos os fatos/aspectosda língua, é sempre incompleto, e dada a suaincompletude, a ele pode-se acrescentar termosnovos ou modificados (ORLANDI, 1990). OApêndice procura ser os suplementos, os limiteslaterais, as partes que não se comportando nocorpo da NGB como integrantes, se transbordampara as margens.

A não inclusão da disciplina Semântica nocorpo da NGB nos leva a supor que há umadualidade de posições na Comissão que elaboroua NGB, na segunda metade do século XX, comrelação a esse campo: uma de resistência àinstituição de um novo saber (o diferente); e outra,tradicional, que procura manter o termoSignificação das Palavras, instituído nosprogramas oficiais de ensino (a repetição). Nessejogo entre resistir ao novo e manter a tradição,legitima-se a institucionalização dos estudos dostermos semânticos tradicionais mantidos nasgramáticas normativas e deixa-se de inscrever umaciência que se estabeleceu há mais de meio séculona Europa, antes do advento da NGB, no Brasil.

No texto “Nomenclatura Gramatical” (1972,p. 55-93), Mattoso Câmara, convidado paracomentar a nova Nomenclatura GramaticalBrasileira, destaca, na primeira aula, que seuobjetivo não é focalizar as ‘falhas’ da NGB(epidemia de termos novos e divergênciasdoutrinárias) por dois motivos, e a um deles refere-se dizendo: “elas (as falhas) são secundárias enão prejudicam profundamente as linhas mestrasdo edifício elaborado” (p. 57).

Nesse enunciado, a não-inclusão daSemântica no corpo da NGB não é questionadae nem apresentada como ‘falha’ pelo lingüistaque, ao falar das classes de palavras, usa essetermo não na perspectiva de uma disciplinadenominada ‘Semântica’, mas no âmbito dasignificação, quando diz que “a distinção entre onome e o pronome é de natureza semântica: onome designa ou nomeia, enquanto o pronomesitua”. E acrescenta que “o conceito, para o

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pronome, de palavra que fica em lugar do nomeé válido, mas no sentido semântico (palavra quesubstitui a “designação por uma “indicação” desituação)” (MATTOSO CÂMARA, 1972, p. 57).

A A A A A SemânticSemânticSemânticSemânticSemântica nas gramáticas publicadas nas gramáticas publicadas nas gramáticas publicadas nas gramáticas publicadas nas gramáticas publicadasantes da NGBantes da NGBantes da NGBantes da NGBantes da NGB

Constatada a não inclusão da Semântica nocorpo da NGB na segunda metade do século XX,período em que esse campo já se encontravainstituído e ramificado nos países da Europa, nosEstados Unidos, na antiga Rússia e também noBrasil, consideramos importante revisitar osprimeiros filólogos brasileiros, com o objetivo dedestacar o tratamento dado a esse campodisciplinar no final do século XIX e início do séculoXX, observando como essa disciplina é historicizadano corpo de suas gramáticas, se é tratada comoparte integrante da gramática (a Semântica nagramática), como suplemento (a Semântica àsmargens da gramática) e como parte não-incluída(a Semântica fora do corpo da gramática).

Para desenvolver essa análise, foramescolhidas as gramáticas consideradas pioneirasno movimento de gramatização brasileira doPortuguês: a Grammatica PGrammatica PGrammatica PGrammatica PGrammatica Portugueza,ortugueza,ortugueza,ortugueza,ortugueza, de JulioRibeiro, 10ª edição de 1911, a Grammatica daGrammatica daGrammatica daGrammatica daGrammatica daLíngua PLíngua PLíngua PLíngua PLíngua Portugueza para uso dosortugueza para uso dosortugueza para uso dosortugueza para uso dosortugueza para uso dosGymnasios, Lyceus e Escolas Normaes,Gymnasios, Lyceus e Escolas Normaes,Gymnasios, Lyceus e Escolas Normaes,Gymnasios, Lyceus e Escolas Normaes,Gymnasios, Lyceus e Escolas Normaes, dePacheco da Silva Junior e Lameira de Andrade, 3ªedição de 1907, Grammatica ExpositivaGrammatica ExpositivaGrammatica ExpositivaGrammatica ExpositivaGrammatica Expositiva, deEduardo Carlos Pereira, publicada em 1907, e aGrammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica Descriptiva de Maximino Maciel,7ª edição, publicada em 1918, a partir dosseguintes critérios:

1) a importância que tiveram na constituiçãodos primeiros estudos sobre o Português do Brasil,num momento de transição histórica epolítica: Monarquia/ República;

2) o nacionalismo/brasilidade dos gramáticosque, se opondo à tradição de Portugal, buscamfiliar-se às ideias filosóficas e científicas de outrospaíses da Europa;

3) a posição-autor do gramático brasileiro quepassa a legitimar o conhecimento produzido sobrea língua.

Antes de adentrarmos ao estudo dasgramáticas selecionadas, é preciso destacar queo uso do termo semântica é bem anterior àpublicação da obra Essai de SémantiqueEssai de SémantiqueEssai de SémantiqueEssai de SémantiqueEssai de Sémantique, deMichel Bréal, em 1897. Na Antiguidade já se

falava em semântica a partir dos estóicos, que sededicavam à análise semântica do sistema verbalgrego, e dos estudos de Aristóteles, que via nafrase (logos) e não nas palavras isoladas algo maisao nível semântico, pelo fato de a frase afirmar ounegar um predicado ou fazer uma declaraçãoexistencial. A semântica também esteve presentena obra linguística dos hindus, “considerada sobtrês epígrafes principais: teoria lingüística geral esemântica; fonética e fonologia; gramáticadescritiva” (ROBINS, 1983, p. 109).

Tomaremos para análise as gramáticas naseguinte ordem:

a) Grammatica PGrammatica PGrammatica PGrammatica PGrammatica Portugueza,ortugueza,ortugueza,ortugueza,ortugueza, de JulioRibeiro – 10ª ed., 1911.

Nessa gramática mantém-se o Prefácio dasegunda edição (1884), na qual Julio Ribeiro dizque segue a distribuição de matérias proposta porBain, lógico inglês, a quem faz a seguintereferência: “Cumpre notar que, ao dar à luz em1881 a primeira edição desta grammatica, euainda não tinha visto A Higher English Grammar”.

Essa gramática é constituída de duas partes:Parte Primeira: Lexeologia;Parte Segunda: Syntaxe – Generalidades.Como podemos observar no quadro de

matérias acima, a disciplina Semântica nãoaparece inscrita. Essa ausência pode serjustificada: a) pela influência que o inglês Bainexerceu sobre Julio Ribeiro na organização daspartes da gramática, como ele próprio afirma: “Omeu modo de expor, a ordem que segui em distribuiras matérias é de Bain”; e b) a temporalidade doacontecimento na obra de Julio Ribeiro: à épocada publicação da primeira edição de suagramática, em 1881, os estudos sobre a Semântica(histórica) encontravam-se em discussão naEuropa.

No entanto, ao tratar dos termos semânticostradicionais, Julio Ribeiro remete a doissemanticistas, notadamente a Bréal, para explicitaros exemplos de homonímia, conforme a nota:

(1) É mister distinguir aqui os equívocos,multívocos ou multisenses (Ch. André), isto é,os vocábulos sujeitos a várias significações maisou menos conexas, que constituem o fenômenode polissemia. (BRÉAL, 1992, p.352, grifos doautor).

Na parte que trata dos “Elementos Mórficosdas Palavras”, Julio Ribeiro, ao definir a

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linguagem, atribui sentidos às palavras pelosdiferentes papéis e usos que representam

A linguagem, intérprete da inteligência, é uminstrumento de análise: com efeito, as palavrasservem para distinguir os seres, os objetos, asqualidades, as substâncias reais ou abstratas,as ações, os estados das pessoas, das coisas,todas as manifestações da vida, todos osfenômenos, até mesmo os que caem sob odomínio da imaginação e do futuro, ocontingente, o absurdo, o impossível. (1911,p. 59).

Convém destacar que a inserção do itemAdditamentos (p. 351) na gramática de JulioRibeiro é justificada por seus editores emcumprimento aos programas

4 do ensino oficial.

b) Grammatica da Língua PGrammatica da Língua PGrammatica da Língua PGrammatica da Língua PGrammatica da Língua Portuguezaortuguezaortuguezaortuguezaortuguezapara uso dos Gymnasios, Lyceus e Escolaspara uso dos Gymnasios, Lyceus e Escolaspara uso dos Gymnasios, Lyceus e Escolaspara uso dos Gymnasios, Lyceus e Escolaspara uso dos Gymnasios, Lyceus e EscolasNormaesNormaesNormaesNormaesNormaes, de Pacheco da Silva Junior e Lameirade Andrade – 3ª edição aumentada, 1907.

O título dessa gramática tem umadeterminação pedagógica pelo complemento quea particulariza: “para uso dos Gymnasios, Lyceuse Escolas Normaes”, e o índice compreende duaspartes:

Livro I: Lexicologia;Livro II: Syntaxe.Sob os efeitos da lógica, quando dizem que a

gramática se assenta sobre a base da história eda comparação, considerada como único métododo ensino racional, os autores dedicam umcapítulo à Semântica que, em função da inscriçãoque veio a ocupar, constitui-se como parte daMorfologia.

No capítulo que trata da Semântica (p. 464),Pacheco da Silva Junior e Lameira de Andradedesenvolvem estudos sobre o sentido das palavrasfundamentados no princípio da analogia e nométodo da comparação:

1. Todas as mudanças de sentido se fundam nacomparação e analogia, mas dos objetosmateriais; dos ideais sensíveis é que os homenspassaram aos abstratos. 2. A influência desta lei é sempre óbvia diretaou indiretamente.3. As palavras sofrem, no dobrar dos anos, trêsmudanças principais no tocante ao sentido: 1.º,a que depende da associação de idéias e dosentido novo que ela desenvolve, daespecialização, enfim; 2.º, a que é determinadapelo sentimento encomiástico ou degradativo;

3.º, a que acompanha a evolução sintática dalinguagem. (p. 467-468).

A partir desses princípios, os gramáticosdefinem a Semântica como a parte da gramáticaque estuda as mudanças de sentido das palavras.

c) Grammatica Expositiva,Grammatica Expositiva,Grammatica Expositiva,Grammatica Expositiva,Grammatica Expositiva, de EduardoCarlos Pereira – Adaptada ao 1º, 2º e 3º annodos Gymnasios – 1907 .

Na apresentação do Prólogo, ao afirmar que“É na fonologia, morfologia ou sintaxe históricasque nós encontramos a razão de ser das regrasatuais da gramática expositiva sobre a pronúncia,sobre a forma dos vocábulos, ou sobre osprocessos sintáticos”, o autor deixa clara a suaposição quanto a não-inclusão do campodisciplinar Semântica no corpo de sua gramática.

A posição do autor é reforçada pelos princípiosque ele utiliza para desenhar a estrutura de suagramática: a) “não partir a gramática empequenos, multiplicando ao extremo as divisões esubdivisões”; b) “classificar os fatos e prendê-losna unidade de um todo harmônico”.

O autor sistematiza “os fatos numerosos dalíngua em grupos ou classes subordinadas a leis[...]” e divide a gramática em duas partes:

1. Lexeologia;2. Syntaxe.No entanto, a posição contrária do autor à

partição da gramática em divisões e subdivisõesse rompe ao apresentar uma numerosa sucessãode fatos da língua, agrupados em outrossubcampos destacados no índice da gramática.

Tendo percorrido a extensa lista de nomesdistribuídos no índice, em busca de algum termoque se relacionasse aos estudos da significação,verificamos que esses estudos não constam de suagramática, mas chamou-nos a atenção, no finalda 1ª parte, Lexeologia, o item “Outras classesde palavras” que, segundo o autor,

Classificadas e estudadas as palavrasisoladamente em seu elemento ideológico,podemos ainda classificá-las do ponto de vistacomparativo de certas analogias de função,função,função,função,função,forma forma forma forma forma e significaçãosignificaçãosignificaçãosignificaçãosignificação, bem como deoposiçãooposiçãooposiçãooposiçãooposição de sentido. (p.149, grifos do autor).

Nessas classes, vamos encontrar o estudo dostermos semânticos sob a denominação de:Analogia de função (palavras nominativas,modificativas, conectivas); Analogia de forma

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(palavras homônimas, parônimas e cognatos);Analogia e oposição de sentido (palavrassinônimas e antônimas), numa clara referência aosprincípios de Darmesteter (grifos do autor).

d) Grammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica DescriptivaGrammatica Descriptiva – Baseada nasdoutrinas modernas – de Maximino Maciel – 7ªed., 1918.

Essa gramática compreende quatro partes:1. Phonologia;2. Lexiologia;3. Syntaxilogia;4. Semiologia.Na apresentação do “Plano Synoptico”, o

autor justifica o quadro de matérias através daseguinte nota:

Mantemos a nossa divisão, porquanto está deacordo com os fatos da língua. Além disso, têmsido para nós fundadas e refundidas muitasteorias em matéria de língua portuguesa, a fimde que seja a gramática a interpretação autênticados fenômenos da língua. (1918, p.IX).

O enunciado “Mantemos a nossa divisão”nos permite dizer que essa divisão já consta deedições anteriores, e convém destacar que naedição de 1901, Maximino, ao propor essa mesmadivisão, justifica a inclusão da Semântica, nãocomo parte integrante de sua gramática, mas comoum ramo definido no campo da Semiologia.

A divisão tripartida da generalidade dosgramaticógrafos – fonologia, lexicologia esintaxiologia – não tem mais razão de ser, depoisque o estudo da significação se individualizou,constituindo por si um ramo definido, máximecom os estudos de Darmesteter que usa do termosemântica para designar a teoria lógica dasignificação. (1901, p. 3).

Nessa gramática, Maximino define aSemiologia como “o tratado da significação daspalavras em todas as suas manifestações” econcebe a Semântica como “o tratado dasignificação das palavras e das mutações oualterações de sentido, que podem experimentar notempo, no espaço, impostas pela evolução dalíngua” (p.411).

Vejamos o que essas definições têm em comume no que elas se distinguem. Ambas tratam dasignificação das palavras, sendo que para aSemasiologia, a significação da palavra não sereduz a um único aspecto ou fato da linguagem,

ela está presente em todas as manifestações dalinguagem; já para a Semântica, as mudanças/alterações de sentido das palavras são históricas,internas à língua e determinadas pela evoluçãoda língua.

Em resumo, observa-se que essas gramáticas,independentemente do lugar teórico de seusautores e do momento histórico-linguístico em queforam produzidas, apresentam particularidades quesão significativas no modo como os gramáticosse filiam, organizam e estruturam seus compêndios,que ora os aproximam e ora os distanciam:

a) todas as gramáticas compreendem duaspartes: Lexeologia e Sintaxe, com exceção da deMaximino, na qual são acrescidos os campos deFonologia e Semiologia;

b) todas as gramáticas, exceto a de JulioRibeiro, apresentam título determinado por umcomplemento adicional;

c) todas, sem exceção, incluem os termossemânticos tradicionais;

d) Julio Ribeiro e Eduardo Carlos Pereira nãoincluem a Semântica no corpo de suas gramáticas,mas fazem referência a Michel Bréal;

e) Pacheco da Silva e Lameira de Andradeincluem a Semântica como parte da Morfologia;

f) Maximino Maciel, embora silencie ossemanticistas que o influenciaram, inclui aSemântica no campo da Semiologia.

Observa-se nessas posições que as doutrinassemânticas oriundas da Alemanha, Inglaterra eFrança se filtram em alguns desses compêndiosem lugares que não as legitimam, deslocando-as, por assim dizer, para um lugar secundário nocorpo dessas gramáticas.

Diria que o silenciamento da Semântica comodisciplina linguística, pelos lugares em que ainscrevem, tem uma determinação histórico-linguística: tratando-se de uma ciência que seinstitui no século XIX – época conhecida como ummarco dos estudos comparativo e histórico daslínguas, ela migra para o Brasil Imperial nummomento em que o trabalho de filiação é nascentee vai coincidir com a constituição da história dagramatização brasileira do Português, maisprecisamente, no segundo período.

A gramática de BecharaA gramática de BecharaA gramática de BecharaA gramática de BecharaA gramática de Bechara

A Moderna Gramática PA Moderna Gramática PA Moderna Gramática PA Moderna Gramática PA Moderna Gramática Portuguesa –ortuguesa –ortuguesa –ortuguesa –ortuguesa –Com base na Nomenclatura GramaticalCom base na Nomenclatura GramaticalCom base na Nomenclatura GramaticalCom base na Nomenclatura GramaticalCom base na Nomenclatura GramaticalBrasileiraBrasileiraBrasileiraBrasileiraBrasileira, 2ª edição, 1961, lançada após a

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inscrição da NGB no terceiro movimento degramatização do Português do Brasil, pelaCompanhia Editora Nacional, em São Paulo, foidedicada À memória de M. SAID ALI, mestre eamigo, na passagem do primeiro centenário deseu nascimento.

A escolha dessa gramática deve-se,principalmente, a dois aspectos que considerobasilares para o desenvolvimento deste trabalho:trata-se de um dos primeiros compêndios a serempublicados após a instalação da NGB e do ajusterecomendado pela nova lei configurado pelocomplemento: Com base na NomenclaturaGramatical Brasileira. Ou seja, trata-se de umagramática na vanguarda das mudanças oficiaisque complementa o nome com o carimbo darecomendação explícita da NGB: “Com base em”.

Bechara divide a sua gramática em 7 partes:1. Fonética e Fonêmica;2. Morfologia;3. Sintaxe;4. Pontuação;5. Semântica;6. Noções Elementares de Estilística;7. Noções Elementares de Versificação.Convém destacar que a gramática de Bechara,

mesmo estampando no título o complemento “Combase na NGB”, produz uma ruptura com omodelo oficial, ao introduzir a Semântica comoparte integrante. Então, o que estaria significandoesse complemento? Um lugar de aparentedestaque em cumprimento à recomendação oficial,como forma de posicionar-se a favor da unificaçãodo ensino do português do Brasil? Oupreenchendo os espaços deixados livres pelaincompletude do documento?

A posição de Bechara com relação à inclusãoda Semântica fica evidenciada no enunciado quesegue:

Seguimos a Nomenclatura GramaticalBrasileira. Os termos que aqui se encontrareme lá faltam, não se explicarão por discordânciaou desrespeito; é que a NGB não tratou dea NGB não tratou dea NGB não tratou dea NGB não tratou dea NGB não tratou detodos os assuntos aqui ventiladostodos os assuntos aqui ventiladostodos os assuntos aqui ventiladostodos os assuntos aqui ventiladostodos os assuntos aqui ventilados. (grifosnossos).

Bechara começa o tópico sobre Semânticadefinindo-a como “o estudo da significação dosvocábulos e das transformações de sentido porque estes mesmos vocábulos passam” (p. 417).Ou seja, o vocábulo, no decorrer de sua história,nem sempre mantém o seu sentido original que,

por variados motivos, ultrapassa os limites de seusentido primitivo, assumindo novos valores.

Essa definição de Semântica remete a algunselementos da definição formulada por MaximinoMaciel, no que diz respeito às alterações de sentidodeterminadas pela evolução da língua.

Para Bechara, a “significação dos vocábulosestá intimamente relacionada com o mundo dasidéias e dos pensamentos” (p. 417). Ecomplementa dizendo que as associações entre omundo das ideias e o pensamento dão origem aoque se chama, em literatura, imagem; as imagensda linguagem que, pela sua natureza, não diferemmuito das que brotam da imaginação dos poetase dos escritores

5 (p. 418).

Bechara apresenta entre as principais causas(imagens de linguagem) que provocam amudança da significação das palavras: ametáfora, a metonímia, braquilogia ouabreviação, eufemismo, alterações por influênciade um fato de civilização

6, etimologia popular.

No final de seu estudo sobre a Semântica,Bechara, ainda, apresenta uma Pequenanomenclatura de outros aspectos semânticos quecompreende: polissemia, homonímia, sinonímia,antonímia e paronímia.

ConcluindoConcluindoConcluindoConcluindoConcluindo

Nesta reflexão, esperamos ter mostrado, naModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática PModerna Gramática Portuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa,ortuguesa, deEvanildo Bechara, como a Semântica foihistoricizada e como o autor, nos espaços livresdeixados pela incompletude da NGB, inscreve aSemântica, enquanto ciência linguística, no corpode sua gramática como uma das partesintegrantes, ao lado das disciplinas Fonética,Morfologia e Sintaxe.

Esse acontecimento funda uma memória nocampo do ensino do português do Brasil: aopreencher o lugar deixado livre na NGB com ainscrição da Semântica em seu compêndio,Bechara abre caminho para que os demaisgramáticos possam escolher ou introduzir asciências linguísticas que se colocam no âmbitodas discussões no exterior e no Brasil nesse período,e se inscrever na história da língua comoconstrutores de novos conhecimentos sobre alinguagem.

Nos compêndios gramaticais analisados,observa-se que os sentidos dos lugares ocupadosou não pela Semântica se apagam, irrompem nos

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espaços da gramática e se estabilizam na medidaem que o seu estatuto adotado pelas gramáticaspassa a significar. Desse modo, ela é silenciadae/ou apagada nos compêndios de Julio Ribeiro ede Eduardo Carlos Pereira, emerge na obra dePacheco Silva Junior e Lameira de Andrade,aparece na gramática de Maximino Maciel comoparte de outros domínios e, finalmente, instala-seno lugar das disciplinas consideradas integrantesna obra de Bechara.

Esta reflexão pretende contribuir para osestudos da significação da linguagem, mostrandoque é possível analisar os lugares que a Semânticaocupa nas primeiras gramáticas brasileiras, naNGB e na gramática de Bechara e os seus efeitos,na perspectiva da História das Ideias Linguísticas,da Filologia, da Análise de Discurso, da Semânticada Enunciação e de outros campos teóricos, pelotratamento dado à linguagem e ao sentido.

Tratando-se de uma disciplina inesgotávelpelos estudos do significado das palavras e/ouexpressões e dos sentidos que produz nas relaçõesentre pensamento/mundo/linguagem e sujeito/língua/história, a Semântica abre um leque depossibilidades para analisar a linguagem nas suasdiferentes interfaces, relações e controvérsias nosdiversos campos da Linguística e nas gramáticasbrasileiras.

1 - Doutora em Linguística pela UNICAMP eprofessora da UNEMAT, área de Linguística,campus universitário de Cáceres. E-mail:[email protected] - Cf Brigitte Nerliche (1993), a Semântica(histórica) como disciplina linguística emergeinicialmente na Alemanha, na filologia clássica,com os cursos de Karl Reisig sobre a gramáticalatina; na Inglaterra desenvolve-se a partir dasreflexões semióticas de Benjamin Smart e na Françaa semântica se constitui sobre as reflexõeslexicográficas de Littré e Darmesteter e sobre anatureza da linguagem e da comunicação de Bréal.Segundo a autora, a obra de Bréal, Essai deEssai deEssai deEssai deEssai deSémantiqueSémantiqueSémantiqueSémantiqueSémantique (1897), estabelece a Semânticahistórica como disciplina teoricamente fundadaenquanto parte de uma linguística geral einternacional (nossa tradução).3 - Fundada em 1897, a Academia é reconhecidapelo Governo três anos mais tarde, quando suaspublicações se tornam oficiais. A Academia nãoparticipava de todas as discussões das reformasque lhe diziam respeito e nesse impasse cabia ao

Governo a determinação e a legalização dasreformas (Cf. SOUZA, Tânia C. Clemente de;MARIANI, Bethânia S. C., 1996).4 - Referem-se ao Programa de Português para osExames Preparatórios, organizado por FaustoBarreto em 1887, a pedido do Diretor Geral daInstrução Pública, Emídio Vitório (Cf. GUIMARÃES,1996, p. 129).5 - O autor se baseia na obra de A. Grégoire,TTTTTraité de Linguistiqueraité de Linguistiqueraité de Linguistiqueraité de Linguistiqueraité de Linguistique, 1923, p. 93-94 (comleves adaptações para o português).6 - Refere-se a uma das causas que Darmesteterapresenta: “a ação de uma civilização” (2000,p. 123).

Aceito para publicação em 01.06.2009

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Neste trabalho, compreendo a divulgaçãocientífica conforme Orlandi (2005), ou seja,“textualização jornalística do discurso científico”e analiso seu funcionamento enquanto circunscritaao eixo da formulação do dizer, isto é, dointradiscurso, na relação com o interdiscurso, suaconstituição. O objetivo é compreender seus efeitosno discurso da propaganda.

A divulgação científica, afirma Orlandi (2005,p.151), é “interpretação de uma ordem de discursoque deve, ao produzir um lugar de interpretaçãoem outra ordem de discurso, constituir efeitos desentidos que são próprios ao que se denomina‘jornalismo científico’”. A autora observa que aencenação pode nos mostrar muito sobre ofuncionamento da divulgação científica, pois “vai-se além da enunciação, trabalhando-sediscursivamente com a projeção, através demecanismos imaginários, dos lugares enunciativosem posições sujeitos” (ORLANDI, 2005, p.155).

A autora lembra a importância de analisarmos

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Observo o funcionamento da divulgação científica no discurso da propaganda com o objetivo decompreender os efeitos dessa formulação. Analiso, pela perspectiva materialista, textos verbais e visuais publicadosna Seção Gôndola da revista SaúdeSaúdeSaúdeSaúdeSaúde, da editora Abril. Tenho algumas questões que norteiam a análise: Como adivulgação científica funciona na formulação da propaganda? Que sentidos são instaurados nesta formulação?Concluo que o imaginário de língua que circula no espaço discursivo da seção da revista é o de língua transparente,o que aponta para uma noção de que os sentidos são originais, únicos. Contudo, pela noção de efeito metafórico,instaura-se uma falha nessa literalidade, pois o controle e a administração da interpretação não se completa e issose mostra na tensão instaurada entre a formulação dos textos, afetados pela divulgação científica, e os movimentosda subjetividade que funcionam no discurso da propaganda.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: língua; discurso; divulgação científica; propaganda.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: I observe the functioning of the scientific diffusion in the publicity discourse in order to understand theeffects of this formulation. I analyze, from the materialist perspective, verbal and visual texts published in theGondola Section of SaúdeSaúdeSaúdeSaúdeSaúde magazine (Abril). I have some questions which guide the analysis: how does thescientific diffusion work in the formulation of the publicity discourse? What meanings are established in this formulation?I conclude that the imaginary language that circulates in the discursive space of the magazine is a transparentlanguage, pointing to a notion that the senses are original and unique. However, the notion of metaphorical effectinstitutes a lapse in this literality because the control and administration of the interpretation is not complete, and thisis shown in the tension established between the texts formulation, affected by scientific diffusion, and the subjectivitymovement in the publicity discourse.

KKKKKeywords: eywords: eywords: eywords: eywords: language; discourse; scientific diffusion; publicity.

a encenação que a imprensa produz ao textualizara informação científica. Para Orlandi (2005), “odiscurso jornalístico não é mero receptáculo, ele éum meio, no sentido material” e os meios não sãoindiferentes aos sentidos, não são apenas veículosneutros. É o caso, portanto, do funcionamento dadivulgação científica na propaganda, conforme aanálise que estamos propondo, porque a revistanão é um mero receptáculo em que são depositadasas informações, mas, nesse caso, ela faz funcionara linguagem científica de maneira particular pelamaterialidade simbólica do anúncio.

Ao teorizar o funcionamento do sentido,Orlandi (2001), retomando Pêcheux (1997), dizque a metáfora é “a tomada de uma palavra poroutra, ou seja, transferência, o modo como aspalavras significam”

2. Estabelece, a partir dessa

noção, “que não há sentido sem metáfora”, ou,especificamente:

[...] o sentido é sempre uma palavra, umaexpressão ou uma proposição por uma outrapalavra, uma outra expressão ou proposição; e

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é por esse relacionamento, essa superposição,essa transferência (metaphora), que elementossignificantes passam a se confrontar, de modoque se revestem de um sentido. Ainda segundoeste autor, o sentido existe exclusivamente nasrelações de metáfora (realizadas em efeitos desubstituição, paráfrases, formação desinônimos) das quais uma formação discursivavem a ser historicamente o lugar mais ou menosprovisório. (ORLANDI, 2001, p.44).

O efeito metafórico é condição dofuncionamento da linguagem, ou seja, odeslocamento na maneira de compreender ametáfora reformula a posição comumente adotadasobre o sentido como uno e o compreende paraalém da dicotomia literal/não-literal. É através datransferência (metaphora) de sentidos, na relaçãoentra as palavras, que se materializam a não-evidência, a não-literalidade desses sentidos.

A análise: trajeto de sentidosA análise: trajeto de sentidosA análise: trajeto de sentidosA análise: trajeto de sentidosA análise: trajeto de sentidos

Neste recorte, analiso a materialidadesimbólica constituída por vários textos publicadosna Seção Gôndola da revista SaúdeSaúdeSaúdeSaúdeSaúde, da editoraAbril. É uma seção que apresenta, em cadanúmero da revista, um produto (alimentício,terapêutico, etc.) que está à venda tanto em lojasespecializadas, quanto em lojas comuns. Junto àimagem do produto há o comentário de umprofissional da respectiva área que informa aosleitores sobre a utilidade para o tratamento dealgum problema de saúde (físico ou mental, porexemplo). Pode, também, simplesmente, como nocaso da propaganda de produtos alimentícios,informar sobre seus nutrientes e índices calóricospara, de acordo com a revista, promover umconsumo “consciente”.

Nosso corpus constitui-se de uma série detextos

3 que apresenta diversos produtos cujo

objetivo seria minimizar os problemas ocasionadospelas varizes. A textualização é realizada de duasmaneiras: formulada verbalmente e visualmente,nesse caso, como infográfico

4.

No texto “Tire o Peso das Pernas” há aapresentação de um produto especialmenteindicado para o tratamento das varizes: umaalmofada confeccionada, de acordo o anúncio,“em poliuretano e tem a inclinação certa paraauxiliar a circulação do sangue” (SZEGO, 2005,p.10). Segundo a revista, tal produto foi produzidoem cor azul e tem mais ou menos um metro de

comprimento. A formulação do enunciado seguea seguinte ordem: informa o leitor sobre aspropriedades do produto (design especial,inclinação certa para auxiliar a circulação dosangue), sobre seus benefícios (indicada no pós-operatório, evita feridas, atenua dor nas pernas,etc.) e sobre sua confecção e garantia dequalidade (desenvolvida em parceria com umaequipe de médicos do Hospital das Clínicas deSão Paulo). Encontra-se, também, no rodapé dapágina da revista, o endereço eletrônico dofabricante.

Dois outros textos, “Veias dilatadas”(infográfico) e “Muito além da estética”, explicamo aparecimento, a evolução das varizes e asconsequências para quem tem a doença. Umterceiro texto, “Armas certeiras”, apresenta os tiposde cirurgia existentes para dar cabo das varizes.Os dois primeiros estão reproduzidos a seguir:

[1] - VEIAS DILATADAS

1 – As válvulas se abrem para o sangue passare se fecham para que ele não faça o caminhoinverso.2 – Quando esse mecanismo não funcionadireito, o sangue reflui e fica malparado dentrodos vasos. (SZEGO, 2005, p.10).

[2] - MUITO ALÉM DA ESTÉTICA

As varizes indicam mau funcionamento dasválvulas encarregadas de controlar o fluxo dosangue. Bombeado pelo coração, ele seguepelas artérias para levar oxigênio às células eretorna pelas veias, onde se localizam as taisválvulas. Se forem defeituosas, um pouco desangue reflui, fica estacionado e dificulta otrânsito. a veia, então, se dilata e inflama,provocando todo o desconforto. “A causa égenética, mas situações como ficar muito tempoem pé ou sentado, usar anticoncepcional,ganhar peso e mesmo a gravidez favorecem oproblema”, explica o cirurgião vascular KasuoMiyake, de São Paulo. As mulheres são maisvulneráveis. Os homens, porém, nem sempreescapam das veias que SALTAM AOS OLHOS.(SZEGO, 2005, p.10).

Minhas questões são as seguintes: Como adivulgação científica funciona na formulação dapropaganda? Que sentidos são instaurados nestaformulação? Tenho algumas hipóteses para isso,pois, nesse movimento, há uma encenação que:[1] instaura efeitos de objetividade para a

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linguagem (texto em terceira pessoa) e [2] fazfuncionar um imaginário de ciência autônoma, unae uniforme, de acordo com um projeto continuístade ciência, sustentado pelo pensamento positivista.

Relações entre o verbal e o visual: oRelações entre o verbal e o visual: oRelações entre o verbal e o visual: oRelações entre o verbal e o visual: oRelações entre o verbal e o visual: ofuncionamento interdiscursivofuncionamento interdiscursivofuncionamento interdiscursivofuncionamento interdiscursivofuncionamento interdiscursivo

No caso do primeiro recorte, constituído pelosdois primeiros textos apresentados acima,observamos, na materialidade visual, a constituiçãode efeitos de velocidade, pela direção do caminhopercorrido pelo sangue, para a explicação de comose dá o aparecimento das varizes, colocando emfuncionamento um imaginário de que dentro docorpo humano há uma pista de corridas, ou umavia de tráfego intenso (pensando que as veias eartérias funcionam como vias de locomoção) emque sangue, células, válvulas estão em constantemovimento, ora se tocando, ora parados, ora emmarcha-ré.

No corpo humano são instauradas imagensdo tráfego de carros, abrindo a possibilidade designificação do sistema circulatório. A seleção e aorganização de palavras como fluxo,fluxo,fluxo,fluxo,fluxo,bombeado, segue, retorna, ficabombeado, segue, retorna, ficabombeado, segue, retorna, ficabombeado, segue, retorna, ficabombeado, segue, retorna, ficaestacionado, dificulta o trânsitoestacionado, dificulta o trânsitoestacionado, dificulta o trânsitoestacionado, dificulta o trânsitoestacionado, dificulta o trânsito, funcionandointerdiscursivamente na relação corpo humano-trânsito, desloca sentidos, tidos como transparentesnuma textualização de discurso científico e o queocorre neste deslocamento é um efeito-metafórico.

Em as varizes indicam mauas varizes indicam mauas varizes indicam mauas varizes indicam mauas varizes indicam maufuncionamento das válvulas encarregadasfuncionamento das válvulas encarregadasfuncionamento das válvulas encarregadasfuncionamento das válvulas encarregadasfuncionamento das válvulas encarregadasde controlar o fluxo do sanguede controlar o fluxo do sanguede controlar o fluxo do sanguede controlar o fluxo do sanguede controlar o fluxo do sangue, as válvulasválvulasválvulasválvulasválvulasfuncionariam como um guarda de trânsito, ou umsemáforo que regularia o tráfego viário a fim deevitar acidentes. Dessa forma, constitui-se oimaginário de que se o fluxo do sanguefluxo do sanguefluxo do sanguefluxo do sanguefluxo do sangue forbem orientado, necessariamente, o risco deacidentes será menor, pois o motorista dirigirá commais cuidado e atenção e não perderá o acessoao lugar desejado, portanto, não precisará refluirrefluirrefluirrefluirrefluire correr o risco de entrar na contramão.

Todo esse trajeto é parte de um já-dito, masque dito de outra forma e em outra situação,desloca o sentido das palavras em destaque. Há,também, um deslocamento de ordem discursiva(discurso do trânsito, da regulação, disciplina)para o discurso médico, apontando para umaadministração da interpretação.

Em bombeado pelo coraçãobombeado pelo coraçãobombeado pelo coraçãobombeado pelo coraçãobombeado pelo coração, cabeperguntar: o que/quem é bombeado? Certamente

a resposta será: o sangue. Mas algo o bombeia,algo o faz funcionar, isto é, o coração. Pelo efeito-metafórico, funciona a imagem de que um motor,no caso, o coração, é que faz o corpo (carro) semovimentar, levando o sangue (combustível) àspartes necessárias ao seu funcionamento. São asparáfrases carro/corpo, motor/coração,combustível/sangue que me permitem levantaressas hipóteses, pois o mesmo (no sentidodesignado por Orlandi) funciona diferente nessaspalavras.

No enunciado veias que saltam aos olhosveias que saltam aos olhosveias que saltam aos olhosveias que saltam aos olhosveias que saltam aos olhosse estabelece uma relação com a expressão veiasveiasveiasveiasveiasdilatadas,dilatadas,dilatadas,dilatadas,dilatadas, que constituem o imaginário da formaantiestética como as varizes se mostram nas pernasdas pessoas. Uma paráfrase possível poderia serveias que se destacamveias que se destacamveias que se destacamveias que se destacamveias que se destacam, contudo, nãoinstauraria o mesmo efeito de sentido que remetea um plano que constitui, conforme o título “Muitoalém da estética”, uma vantagem que beneficiarianão só a aparência, mas também a saúde. Aoformular saltam aos olhos,saltam aos olhos,saltam aos olhos,saltam aos olhos,saltam aos olhos, materializa-se umasupervalorização estética das pernas na busca pelaperfeição da forma física das pessoas, e é adivulgação científica que faz circular esseimaginário.

No texto “Arma certeira”, a formulação do títuloconstitui outras relações interdiscursivas, pois osmétodos cirúrgicos próprios à erradicaçãoerradicaçãoerradicaçãoerradicaçãoerradicação dasvarizes são apresentados como armas que,predicadas como certeiras, desde já instauramefeitos de sentidos bélicos, de luta.

Comumente há, na divulgação científica, oumesmo no discurso científico

5, essas formulações.

Toma-se a luta, numa remissão ao interdiscursode outras formações discursivas, como: “luta pelasobrevivência” ou “lutar com todas as forças”,relacionadas ao discurso cotidiano e funcionandofortemente pelo imaginário de que a vida, por sisó, já é uma luta constante. A partir destefuncionamento, acredito que se realiza a migraçãopara outros discursos, como a da saúde física e/ou mental. Conforme o recorte:

ARMAS CERTEIRASARMAS CERTEIRASARMAS CERTEIRASARMAS CERTEIRASARMAS CERTEIRAS

Estes são métodos eficazes para DAR CABOdas varizes segundo Kasuo Miyake:

Cirurgia:Cirurgia:Cirurgia:Cirurgia:Cirurgia: o médico amarra as duas pontas daveia doente num fio de náilon para removê-la.Fibra óptica: Fibra óptica: Fibra óptica: Fibra óptica: Fibra óptica: ela percorre a veiaDISPARANDO JATOS de raio laser. O vaso SE

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DESINTEGRA e é reabsorvido pelo organismo.Cryo-laser:Cryo-laser:Cryo-laser:Cryo-laser:Cryo-laser: é a combinação de ar gelado elaser. O primeiro anestesia a região e osegundo QUEIMA a veia.Cryo-glicose: Cryo-glicose: Cryo-glicose: Cryo-glicose: Cryo-glicose: além do ar gelado, oespecialista injeta glicose para DESTRUIR ovaso. (SZEGO, 2005, p.10).

Os efeitos-metafóricos se materializam,circunscritos ao título Armas CerteirasArmas CerteirasArmas CerteirasArmas CerteirasArmas Certeiras, naseleção de palavras como dar cabo,dar cabo,dar cabo,dar cabo,dar cabo,disparando jatos, se desintegra, queima edisparando jatos, se desintegra, queima edisparando jatos, se desintegra, queima edisparando jatos, se desintegra, queima edisparando jatos, se desintegra, queima edestruirdestruirdestruirdestruirdestruir,,,,, instaurando efeitos de sentidos queremetem a ação bélica.

Por exemplo: em dar cabo,dar cabo,dar cabo,dar cabo,dar cabo, uma leiturapossível seria: matar ou exterminar, porque numsentido de luta, de guerra, um inimigo semprequer dar cabodar cabodar cabodar cabodar cabo do outro. Em disparando jatos/disparando jatos/disparando jatos/disparando jatos/disparando jatos/se desintegra, queima/destruirse desintegra, queima/destruirse desintegra, queima/destruirse desintegra, queima/destruirse desintegra, queima/destruir,,,,, amplia-seainda mais a rede interdiscursiva, pois, além dodiscurso bélico, constitui-se uma especificidade:é uma luta moderna que está sendo travada. Nela,as armas não utilizam mais projéteis, mas sim raioslaser em jatos que desintegram imediatamente ooponente. É o real da história que se materializana língua, uma vez que na medicina, atualmente,já se utilizam raios a laser que desintegram pedrasnos rins, por exemplo, ou seja, nessa formaçãodiscursiva, os inimigos, diariamente.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Nessa rede de formulações constituída a partirdo funcionamento da divulgação científica nodiscurso de propaganda, compreendo algunspontos:

A circulação do discurso da propaganda, naatualidade, coloca em cena uma linguagem quese presta à sedução do sujeito-leitor, oferecendo-lhe um mundo de prazer, satisfação pessoal,felicidade, conforto pela aquisição de um produto.Um imaginário de atendimento às expectativas easpirações do consumidor. Um discurso que circulafortemente na formação capitalista.

A ideia de guerra é positivada pela revista.Constitui-se, via interdiscurso, um imaginário deque o homem deve ser sempre o melhor, o maisforte, o vencedor, conforme as metáforas bélicas:dar cabo, disparando jatos, se desintegra, etc.

Esses anúncios, que funcionam no espaçopróprio de enunciação do discurso jornalístico,quando são textualizados na divulgação científica,encenam a credibilidade e a legitimidade do

discurso científico, o que, para o discurso dapropaganda, por sua constituição (objetivosprincipais da instituição jornalística: objetividadeda linguagem, imparcialidade, neutralidade,isenção, etc.), é imprescindível.

Há, nessa encenação, o que Orlandi (2005,p.152) denomina como o efeito de exterioridadeda ciência, ou seja, “a ciência sai de si, sai deseu próprio meio para ocupar um lugar social ehistórico no cotidiano dos sujeitos, ou seja, elavai ser vista como afetando as coisas a saber nocotidiano da vida social”. Exterioridade que, anosso ver, instaura efeitos de visibilidade,importância e necessidade inquestionável para odesenvolvimento e a manutenção da saúde para/na sociedade.

Pela formulação dos textos, constitui-se umaposição-sujeito (jornalista) que dá informaçõesclaras e consistentes sobre os produtos ao sujeito-leitor/consumidor. O imaginário de língua quecircula nesse espaço discursivo (revista) é o deque a língua é transparente e de que os sentidossão únicos, originais

6. Contudo, pela noção de

efeito metafórico, instaura-se uma falha nessaliteralidade, pois o controle e a administração dainterpretação não se completa e isso se mostra natensão que se instaura pela formulação dos textos,afetados pela divulgação científica, e osmovimentos da subjetividade que funcionam nodiscurso da propaganda.

1 - Mestre em Letras pela UEM e professora daárea de Linguística da UNEMAT, campus de Pontee Lacerda. E-mail: [email protected] - Retomando Lacan (1966).3 - Texto utilizado aqui como materialidade que,imaginariamente, apresenta começo, meio e fim(cf. ORLANDI, 2005).4 - O texto infográfico articula discursividadesdistintas ao ser organizado de maneira diferenteem relação a outros textos. Essa organização,digamos, particular, instaura um exterior de ciênciaque produz efeitos de objetividade e literalidade.Põe em funcionamento, também, o imaginário deque a imagem (fotografia, desenho...) pode“ampliar” o conhecimento do leitor.5 - Sobre a subjetividade no discurso científico,ver Coracini (1991).6 - Conforme a noção de esquecimento formuladapor Pêcheux (1997).

Aceito para publicação em 01.06.2009

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORACINI, Maria J. R. Um fazer persuasivoUm fazer persuasivoUm fazer persuasivoUm fazer persuasivoUm fazer persuasivo:o discurso subjetivo da ciência. São Paulo: Educ;Campinas-SP: Pontes, 1991.

ORLANDI, Eni P. Análise do discursoAnálise do discursoAnálise do discursoAnálise do discursoAnálise do discurso: princípiose procedimentos. Campinas-SP: Pontes, 2001.

______. Discurso e texto:Discurso e texto:Discurso e texto:Discurso e texto:Discurso e texto: formulação e circulação

dos sentidos. Campinas-SP: Pontes, 2005.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discursoSemântica e discursoSemântica e discursoSemântica e discursoSemântica e discurso: umacrítica à afirmação do óbvio. Campinas-SP:Editora da Unicamp, 1997.

SZEGO, Thais. Gôndola. RRRRRevista Saúdeevista Saúdeevista Saúdeevista Saúdeevista Saúde, SãoPaulo, Editora Abril, n.261, p. 10, jun. 2005.

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IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

A língua constitui um instrumento essencialpara a interação do homem com sua comunidadee, através dela, o homem expressa suas ideias,transmite de geração em geração seus costumes etradições. A língua é dinâmica, pois a todo instanteem que é usada ocorre sua renovação e, ao longoda história, ela sofre constantes transformações.

Cada falante é, a seu tempo, usuário etransformador de sua língua. Em razão disso, epara o conhecimento real da cultura de umadeterminada comunidade, não basta pesquisar suahistória, seus costumes ou seu modo de viver.Portanto, é necessário vivenciar e observar a formaparticular da comunidade se expressar por meioda língua e entender a realidade que a circunda.

Em determinadas regiões do país, asvariedades linguísticas, ainda inexploradas,oferecem desafios a pesquisadores da área daSociolingüística, embora em todas as comunidadesexistam variedades que são consideradas“superiores”. Há sempre uma ordenação quevaloriza as variedades em uso de uma determinadacomunidade, refletindo a hierarquia dos grupossociais; ou seja, em uma comunidade existem asvariedades de prestígio e as não prestigiadas. Dessa

Resumo:Resumo:Resumo:Resumo:Resumo: No Estado do Mato Grosso coexistem diversidades linguísticas. Interessa-nos a variação na concordânciade gênero que ocorre na fala dos nativos de comunidades no interior do Estado. Resultados obtidos em levantamentoprévio apontam uma aparente substituição da variante regional, que conviveu durante muito tempo na comunidade,pela variante padrão. Partiremos do pressuposto de que o fato de as cidades do interior do Estado terem permanecidoalgumas décadas isoladas, por se limitarem com o a fronteira geográfica da Bolívia e, além disso, na faixa da fronteira,encontrarmos ainda uma população formada a partir do encontro entre os povos indígenas, supomos que os fatosapresentados venham a ser um dos fatores que influenciam a ocorrência de uma multiplicidade de variedades existentes.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: sociolingüística; variação lingüística; comunidade; concordância nominal.

Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: In the State of Mato Grosso, linguistic diversities coexist. We are interested in examining the genderconcordance variation that occurs in the native´s speech in the state community. Results obtained in a previous studyindicate an apparent replacement of the regional variation that has long lived in the community by the standardvariation. We start from the assumption that the cities in the state had remained isolated for some decades and hadlimitation for their geographic border with Bolivia. In addition, we find a population formed by the mixing ofindigenous people. We assume that the facts presented will be one of the causes which affect the occurrence of amultitude of existing varieties.

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: sociolinguistics; linguistic variation; community; gender concordance.

forma, a questão da língua padrão é consideradamuito importante em sociedades como a nossa,que associam a língua ao poder socioeconômicoe cultural.

No Estado de Mato Grosso, existe um campomuito amplo para a pesquisa linguística. Na cidadede Cáceres-MT, especificamente, as variedadeslinguísticas são muitas, devido à presença degrupos oriundos de várias regiões do país e daproximidade da fronteira com a Bolívia. Além disso,na faixa da fronteira, encontramos ainda umapopulação formada a partir do encontro entrepovos indígenas, oriundos das regiões bolivianas(chiquitano, guató e mojo) e pantaneira do AltoParaguai (bororo). Após passarem por váriasmudanças, os descendentes de índios foramlevados a inserir-se nessa comunidade e sãochamados de “bugres”, deixando de existir comogrupo indígena, mas portando uma novadenominação étnica.

Nesse espaço, focalizamos o fenômenolinguístico da variação na concordância nominalde gênero. Observamos que a ausência deconcordância de gênero se manifesta nacomunidade cacerense em três situações distintas:

1. Pela indiferença ao gênero no uso deartigos com predominância do uso do masculino,

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substituindo ou antecedendo palavras femininas:“vou nonononono mamãe” (grifos nossos);

2. A não-marcação do feminino nos adjetivos,os quais podem ser usados no gênero masculinoaplicados a seres femininos: “a infância eramaravilhosososososo” (grifos nossos);

3. O emprego de pronomes masculinos parase referir a seres femininos: “assim aqui em casaeu tiro roupa de Vaninho, tiro meu”.

A variação da concordância nominalA variação da concordância nominalA variação da concordância nominalA variação da concordância nominalA variação da concordância nominalde gênerode gênerode gênerode gênerode gênero

As descrições da variação na concordânciade gênero na língua portuguesa falada no Brasilnão levam a conclusões tão unânimes como naconcordância de número. Essas descrições são,na verdade, de certo modo, contrastantes. Arespeito da variação na concordância de gênerodos adjetivos que se situam à direita do substantivoe nos processos de predicação, Amadeu Amaral(1920) afirma: “adjetivo e o particípio passadodeixam, freqüentemente, de sofrer a flexãogenérica: essas coisarada bunito, as criança távumquéto, as criação ficarum pestiado”. Rodrigues(1974) confirmou essa variação ao estudar avariedade.

Já Marroquim (1934), ao pesquisar alinguagem popular do Nordeste, atingiu resultadosque indicam a direção contrária à maioria dostrabalhos já realizados. O autor afirmou que“perfeita concordância de gênero entre o adjetivoe o substantivo”. Nessa mesma direção, Veado(1982), pesquisando uma microrregião rural doEstado de Minas Gerais, concluiu que a regra deconcordância de gênero ocorre de modo geraltanto na língua falada como na escrita. Essasafirmações contrastam com a afirmação deAmaral e de Rodrigues.

Ferreira (1994) relata uma pesquisa realizadana Vila de Helvécia, município de Mucuri,localizado na Zona Fisiográfica do Extremo Sulda Bahia, no início dos anos 60. Os inquiridoresdo Atlas prévio dos falares baianosAtlas prévio dos falares baianosAtlas prévio dos falares baianosAtlas prévio dos falares baianosAtlas prévio dos falares baianos(apudFERREIRA, 1994) entraram em contato com acomunidade para apurar se eram verídicas asinformações verbais de que existiam, ainda,naquela área, vestígios de um falar crioulo naboca da população quase toda de negros.

É válido destacar que a comunidade deHelvécia, na Bahia, permaneceu isolada por muitotempo, devido ao difícil acesso. Certamente, os

nativos conservaram sua cultura, fixando um modopróprio de falar, o que reforça o entendimento deque as variedades linguísticas de uma comunidadeestão estreitamente associadas ao seu próprioprocesso de formação cultural.

Já Lucchesi e Macedo (1997) observaram,entre outros fenômenos, a variação daconcordância de gênero no português faladopelos índios no Parque Nacional do Xingu. Ospesquisadores concluíram que o nível de nãorealização da concordância de gênero no sintagmanominal atingiu um percentual de 80% do totalde 907 sintagmas nominais que constituíram abase dos dados da análise. Os autores afirmaramque esses resultados ocorreram pela aquisiçãoprecária do português como segunda língua.

Lucchessi (2000) voltou a pesquisar acomunidade de Helvécia e estendeu seu estudo auma outra comunidade no interior da Bahia,coincidentemente chamada Mato Grosso. Nessacomunidade, os resultados da pesquisa mostraramque o quadro de variação está estruturado emrelação à concordância nominal de gênero. Jáem Helvécia, há evidência de que a variação naconcordância de gênero é o resultado de umprocesso anterior de transmissão linguísticairregular. O resultado da análise mostrou um nívelde variação um pouco inferior aos cinco pontospercentuais, demonstrando que há um processode mudança em curso na comunidade deHelvécia. Esse quadro mostra a mudança emrelação à situação anterior, quando a variaçãoera mais ampla, como afirma Ferreira (1994).

Lucchesi (2000) ainda afirma que nasobservações que fez junto a sete comunidadesafro-brasileiras isoladas no interior dos Estadosda Bahia, Piauí e Espírito Santo, a variação naconcordância de gênero na comunidade deHelvécia-Bahia foi confirmada por uma análisesistemática. Embora para as demais comunidadeso pesquisador não tenha realizado uma análisesistemática dos dados, suas observações nãoconstaram a variação na concordância de gênerono interior do sintagma nominal, mas apenas nasrelações de predicação, em frases como: “As coisastá muito caro”.

A variação na concordância de gêneroconstitui, no panorama linguístico brasileiro, comopudemos observar, um fenômeno bem maislocalizado do que a variação na concordânciade número, dependendo muito das razõeshistóricas de colonização de cada região.

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Com relação à concordância de gênero nofalar da comunidade de Cáceres-MT, notamos queos cacerenses utilizam vários modos de seexpressar, por meio da linguagem padrão regidapelas normas da gramática e também pelalinguagem regional. Nesta última, os habitantesnativos tendem a não concordar em gênero osadjuntos com o núcleo do sintagma nominal everbal ou o predicativo com o sujeito, nas orações.Tendo isso em conta, restringiremos nosso estudoà variação exclusivamente de concordância – nívelmorfossintático de análise - que se verifica nointerior do Sintagma Nominal e na relação depredicação no nível da frase, quando o núcleodo sintagma é constituído de uma palavrafeminina.

Procedimentos metodológicosProcedimentos metodológicosProcedimentos metodológicosProcedimentos metodológicosProcedimentos metodológicos

Para descrever e analisar um fenômeno devariação linguística, detectado na fala doshabitantes nativos da cidade de Cáceres-MT,optamos por utilizar uma metodologia que sesustenta na perspectiva da SociolinguísticaVariacionista Laboviana, desenvolvida pelopesquisador norte-americano William Labov. Pormeio de uma investigação sistemática, priorizamosuma abordagem estritamente sincrônica, utilizando,como suporte para a análise quantitativa dosdados, o Programa Estatístico VARBRUL.

Na fala dos nativos da comunidade deCáceres, pesquisamos a variação na concordânciade gênero. Como exemplo, citamos alguns trechosde entrevistas que representam a materializaçãodo fenômeno na fala dos nativos:

(7) “Só que chegou no Elaineno Elaineno Elaineno Elaineno Elaine que era...”.“EsseEsseEsseEsseEsse Jocineide, nunca minhas crianças...”“Minha mãeMinha mãeMinha mãeMinha mãeMinha mãe tinha o pitinho dela, mas se ele ele ele ele elesentasse aqui cê num“sentia cheiro de pito de minha mãeminha mãeminha mãeminha mãeminha mãe...”“Vou no casa no casa no casa no casa no casa de mamãe”. (grifos nossos).

Conforme a teoria da Sociolinguística, asdimensões da amostra devem ser suficientes paraque se possa observar, com segurança, a variaçãono tópico analisado, bem como para que possamser consideradas as influências de fatores relativosà estrutura social da comunidade de fala, como:a idade, o sexo, a escolaridade dos informantesda comunidade de fala. As técnicas utilizadas naconstituição da amostra de fala em que se baseiaesta investigação e de outros fatores que

constituem os contextos linguísticos para expressara mesma informação é denominada de varianteslinguísticas.

O conjunto dessas variantes linguísticasconstitui a variável linguística a ser analisada.Dessa forma, a escolha do uso de determinadavariante é condicionada por vários fatores quepodem ser linguísticos e extralinguísticos.

Entretanto, a ação de cada fator para essecondicionamento não é isolada. Dessa forma, cadacontexto de ocorrência da variável analisadaresulta da combinação específica dos valoresigualmente variáveis de cada fator. A interferênciade cada fator é medida separadamente, já quenos contextos de fala as ações dos fatorescondicionadores são simultâneas.

A análise foi feita a partir da codificação nosvalores atribuídos aos fatores linguísticos eextralinguísticos que foram selecionados.Primeiramente, o programa foi rodado e apresentoua atuação de cada fator condicionador. Dessaapresentação, constam as frequências de usoassociadas a cada um dos valores das variantes eo nível de significância dos resultados obtidos.

O resultado final é constituído pelo percentualde frequência de cada um dos valores de todas asvariáveis selecionadas pelo Programa comoestatisticamente relevantes. Esses pesos relativosmedem a frequência, numa escala que vai de zeroa 99. O valor acima de 5 pontos indica uma açãocondicionadora e quando da aplicação dedeterminada variante, os valores inferiores a 5indicam uma ação desfavorecedora, sendo queos valores próximos apontam para a neutralidadedo fator.

Dada a especificidade de cada etapa dotrabalho investigativo, dividimos os procedimentosmetodológicos em alguns tópicos, a saber: o corpuse a constituição das amostras, a coleta de dados,a entrevista e a transcrição.

O O O O O corpuscorpuscorpuscorpuscorpus e a constituição das amostras e a constituição das amostras e a constituição das amostras e a constituição das amostras e a constituição das amostras

O corpus analisado nesta pesquisa foiconstituído com base em amostras de fala obtidasatravés de entrevistas gravadas na cidade deCáceres-MT. Essa amostra de fala é composta de36 entrevistas realizadas com informantes dacomunidade, feitas de acordo com as técnicas dapesquisa sociolinguística (cf. LABOV, 1966; 1972),que foram adaptadas à realidade sociocultural dacomunidade.

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Observando o comportamento linguístico dosfalantes da comunidade cacerense em relação àsocorrências das formas variantes da língua eprincipalmente das variantes em estudo,relacionamos essas formas variantes a fatoreslinguísticos e extralinguísticos. A variáveldependente a ser analisada é constituída pelaatuação ou não do mecanismo de concordânciade gênero no sintagma nominal e verbal somenteem palavras femininas. A partir da observaçãodo uso na comunidade, selecionamos as varianteslingüísticas presença e ausência de concordância,essa última subdividida em ausência total e parcial.

Os casos em que todos os constituintes dosintagma nominal estão marcados para feminino,concordando com o núcleo do sintagma, foramclassificados como presença de concordância degênero. Já os fatores extralingüísticos (sexo, idadee escolaridade) foram selecionados a fim deconhecer a possível influência exercida por elesem relação ao estudo na variação deconcordância nominal.

Para a definição das dimensões da amostrabásica desta investigação, seguimos os seguintescritérios:

a) que os informantes e seus pais tivessemnascido na cidade de Cáceres;

b) que pertencessem às faixas etárias de 20 a30 anos; de 31 a 50 e de mais de 51 anos, como grau de escolaridade em nível de 1°, 2° e 3°graus.

Optamos por um total de dois informantespara cada célula, que totalizou trinta e seisinformantes. Escolhemos moradores do centro dacidade, pois os mesmos têm uma situação socialmais privilegiada, acesso fácil à escola, aotrabalho, a uma vida social mais ativa e, noentanto, utilizam-se das variantes linguísticas emestudo em suas falas nos diversos momentos deinteração na comunidade.

EntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevistaEntrevista

Decidimos utilizar como fonte de dadosentrevista com falantes da comunidade. Estas foramcolhidas com base no método de entrevistasugerido por Labov (1972) e Labov (TARALLO,1997).

Analisando as sugestões feitas por Labov eprocurando adequá-las ao contexto dacomunidade cacerense, o planejamento para acoleta de dados foi efetuado da seguinte maneira.

Primeiramente, ocorreram contatos para definir odia e o horário mais adequado para a realizaçãodas entrevistas. Já no segundo momento, asentrevistas foram gravadas, por meio de diálogose narrativas. O nível de formalidade das entrevistasé, no geral, bem próximo ao informal, já que oobjetivo é o de gravar a fala regional dacomunidade. Os assuntos versaram sobreexperiências vividas pelos informantes, querelembraram as brincadeiras da infância, a escola,as festas, as rezas, os desfiles, os medos, as tristezas,enfim, o seu cotidiano.

Antes da gravação da entrevista, utilizamosuma ficha a ser preenchida com alguns dadospessoais importantes que funcionam comocomplementares à análise: nome, idade, grau deescolaridade, local de nascimento e profissão.

O total de horas gravadas foi deaproximadamente trinta horas (30h), numa médiade cinquenta minutos (50 min) para cadainformante. Os dados foram registrados por meiode gravador portátil – na maior parte das vezes,na residência do informante, local determinadono primeiro contato.

A transcriçãoA transcriçãoA transcriçãoA transcriçãoA transcrição

Para garantir a fidelidade dos dados, asentrevistas foram cuidadosamente transcritas; opadrão de transcrição utilizado foi o sugerido porMarcuschi (1986) e Cintra (1992). O levantamentodas ocorrências do tópico analisado foi feitodiretamente nos textos orais e também após adigitação dos textos escritos da transcriçãoortográfica das entrevistas. Nessa transcrição,buscou-se preservar ao máximo as característicasda fala dos informantes no nível da morfossintaxee, especificamente, o que concerne àconcordância nominal de gênero.

A transcrição foi armazenada em computadorpessoal, com a utilização do processador de textoWord, versão Windows, da Microsoft. A partir dadigitalização do texto foram selecionados ecodificados apenas os trechos contendo a variaçãoda concordância de gênero. Os códigos foramsalvos no Word e transferidos para o ProgramaEstatístico VARBRUL.

Analisando a variaçãoAnalisando a variaçãoAnalisando a variaçãoAnalisando a variaçãoAnalisando a variação

Enfocamos a análise dos dados com base nateoria da Sociolinguística Variacionista. Analisamos

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a frequência em que ocorre a variação naconcordância de gênero na fala de doisinformantes de ambos os sexos, considerando-sea faixa etária e o grau de escolaridade (primeiro,segundo e terceiro graus) por célula. Optamospor utilizar ordem numérica para representar cadainformante.

No conjunto da amostra analisada, foramdepreendidas 1.059 ocorrências de sintagmasnominais femininos e 115 casos em que a relaçãode concordância se estabeleceu no nível dosintagma verbal em palavras femininas.

O que se observa é um contraste acentuadoquanto à aplicação da concordância segundo onível analisado, seja o Sintagma Nominal ou oSintagma Verbal. No primeiro caso, 96% dos dadosapresentaram presença de concordância degênero, o que corresponde a 1.018 ocorrências,como em (1). 4% restantes se distribuem entreausência total de concordância (29 ocorrências),tal como em (2), e ausência parcial deconcordância (12 ocorrências), como em (3):

( 1 )( 1 )( 1 )( 1 )( 1 ) “Na casa de minha avó”.( 2 )( 2 )( 2 )( 2 )( 2 ) “Urtima festa que passei no donaFeliciana Motta roubaram o São Sebastião”.( 3 )( 3 )( 3 )( 3 )( 3 ) “Já, não teve mai nada dissoantigamente nós brincávamos hoje não brincammais nós brincávamos até moça! Sabe? A turmanosso era grande...”.

Com relação ao sintagma verbal, o predomíniotambém foi de presença de concordância,emboramenos acentuada que no caso do SN. 115ocorrências no nível do sintagma verbal em casosfemininos, 81 (70%) apresentaram concordânciaplena de gênero, como em (4), e 41 ocorrências(4%) se caracterizaram pela ausência total deconcordância,tal como em (5):

(4) “Minha mãe era cozinheira”(5) “Não era difícil a bola também era feito demeia (risos) era feito de meia a bola, vocêenfiava bastante... O que desse, né! De enfiarlá dentro assim roupa velha, alguma coisa, agente enfiava e fazia a bola”

Desse modo, é possível uma primeiracaracterização dos contextos em que ocorre avariação na concordância de gênero. O empregoda concordância, segundo a norma padrão, está,principalmente, circunscrito ao nível do SN, emque encontramos um alto índice de presença de

concordância. Observa-se, por outro lado, que ocacerense utiliza a regra de concordância no SVcom uma frequência bem menor que no SN; dessaforma, a regra não-padrão – ausência deconcordância,na relação entre o predicativo e osujeito da oração, é muito mais utilizada, atingindo30% de aplicação da regra.

Ressalte-se que a variante ausência parcialde concordância ão apresentou uma diferençasignificativa em relação aos casos de ausênciatotal de concordância, ão pela qual as ocorrênciasdessas duas variantes foram amalgamadas nadiscussão dos demais grupos de fatores.

A variação de concordância segundoA variação de concordância segundoA variação de concordância segundoA variação de concordância segundoA variação de concordância segundoo o o o o sexosexosexosexosexo do informante do informante do informante do informante do informante

GRÁFICO 1: FGRÁFICO 1: FGRÁFICO 1: FGRÁFICO 1: FGRÁFICO 1: Frequência de ocorrênciasrequência de ocorrênciasrequência de ocorrênciasrequência de ocorrênciasrequência de ocorrênciasda variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente (presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.ausência de concordância) ausência de concordância) ausência de concordância) ausência de concordância) ausência de concordância) em relação àem relação àem relação àem relação àem relação àvariável sexo.variável sexo.variável sexo.variável sexo.variável sexo.

O gráfico acima apresenta a variação deconcordância segundo o sexo do informante. Nonível do SN, a análise mostra que a presença deconcordância no sintagma nominal atingiu omesmo percentual, sendo 96% em ambos os sexos(correspondendo a 587 casos na fala das mulherese 431 na fala dos homens). Quanto à varianteausência de concordância, a porcentagemtambém foi idêntica, apenas 4% de aplicação daregra na fala de ambos os sexos (25 ocorrênciasna fala das mulheres e 16 na fala dos homens).Constata-se, assim, que não há diferençassignificativas entre homens e mulheres quanto àvariação de concordância de gênero no nível doSN. Os índices apresentados na variante presençade concordância podem refletir uma aparentetendência à homogeneidade dos padrões de

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comportamento linguístico da comunidadecacerense nesse contexto.

Por outro lado, observa-se uma diferenciaçãonos índices de concordância no nível do SV,apresentados na fala de ambos os sexos (79%que equivale a 64 ocorrências na fala de mulherese 50% que equivale a 17 ocorrências na fala doshomens). O emprego da variante não-padrãoatingiu o mesmo resultado: 17 ocorrências na faladas mulheres, que equivalem a 21 %, e 17ocorrências 50% na fala dos homens, o queexpressa um alto índice de ausência deconcordância na fala dos informantes do sexomasculino.

Apesar de apresentarem o mesmo número deocorrências na variante ausência de concordânciano SV, o índice na fala dos homens é mais alto.Ou seja, eles é que mantém viva a variante não-padrão. O que se percebe nesse contraste é queos homens usam mais a variante não-padrão queas mulheres. Na verdade, as mulheres estariammais afetadas pela pressão normativa que oshomens, dessa forma, elas estariam maisorientadas na direção do modelo de prestígio.Esses resultados indicam a mesma direção dosresultados de Palma (1984), que realizou umapesquisa na cidade de Cuiabá-MT sobre avariação fonológica entre os segmentos africadose fricativos:

Em se referindo à influência do grupo sexo,pudemos verificar que o sexo masculinoapresenta menor contribuição à ocorrência deforma com segmentos fricativos, ou seja, comsegmentos de prestígio. Isto nos leva a concluirque os “homens” são mais conservadores queas “mulheres”. São, poderíamos dizer, menospreocupados com o cumprimento das normassociais. (PALMA, 1984, p. 86).

Estabelecendo uma relação nos índicesapresentados nas figuras 1 e 2, verificamos queapesar de existir o predomínio da presença deconcordância na fala das mulheres, o índice deausência de concordância no SV superou o índicede ausência de concordância no SN. Issodemonstra que a variante ausência deconcordância ainda se mantém na fala dasmulheres, apesar da influência de vários outrosfatores que forçam o condicionamento da variantepadrão na fala da comunidade.

Portanto, o que se observa no gráfico 1 podeser um reflexo da facilitação ao acesso da

comunidade por meio da integração dacomunidade com outros municípios e Estadosbrasileiros, além de outros fatores, como: os meiosde comunicação, a escola, o sexo, a idade. Dessaforma, o modo de vida alcança novos rumos enovos comportamentos numa sociedadecapitalista, em que a variedade padrão passa aser mais valorizada. Assim sendo, as demaisvariáveis serão analisadas a partir dessa visão, ade que a aparente mudança advém da influênciados fatores sociais.

A variação segundo o grau deA variação segundo o grau deA variação segundo o grau deA variação segundo o grau deA variação segundo o grau deescolaridade escolaridade escolaridade escolaridade escolaridade do informantedo informantedo informantedo informantedo informante

GRÁFICO 2: FGRÁFICO 2: FGRÁFICO 2: FGRÁFICO 2: FGRÁFICO 2: Frequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasda variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente (presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.ausência concordância)ausência concordância)ausência concordância)ausência concordância)ausência concordância) em relação à em relação à em relação à em relação à em relação àVVVVVariável Escolaridade.ariável Escolaridade.ariável Escolaridade.ariável Escolaridade.ariável Escolaridade.

Os resultados das análises da atuação daescolaridade sobre a variação da concordânciade gênero no sintagma nominal na variantepresença de concordância totalizaram 1.018ocorrências, sendo 355 ocorrências (92% na falado 1º grau), 288 ocorrências (99% na fala do 2ºgrau) e 375 ocorrências (98% na fala do 3º grau).Com relação aos resultados da variante ausência

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de concordância, o total foi de 41 ocorrências,sendo que 30 ocorrências (8% na fala do 1º grau),3 ocorrências (1% na fala do 2º grau) e 8ocorrências (2% na fala do 3º grau). Essesresultados confirmam, embora não de formaacentuada, a associação entre maior escolaridadee maior uso das formas padrão.

Observa-se que há uma diferença de 7% e6% entre os dados colhidos de falantes com o 1

o

grau (ensino fundamental) e aqueles colhidos defalantes que possuem o 2

o e o 3

o graus,

respectivamente. Apesar de pequena, essadiferença já é estatisticamente relevante. Ou seja,falantes mais expostos à influência da norma culta,por meio da escola, tendem a utilizar com maisfrequência a variante padrão – presença deconcordância. O inverso também é verdadeiro:os falantes que apenas completaram o ensinofundamental são aqueles que menos aplicam aconcordância no âmbito do SN em palavrasfemininas.

A segunda figura do gráfico 2, por sua vez,apresenta os resultados da atuação da variávelescolaridade sobre a variação de concordânciano nível do sintagma verbal. Da mesma forma doque constatamos para as ocorrências no SN, asdiferenças percentuais não são acentuadas entreos três graus de escolaridade. Nos três casos,predomina a presença de concordância comíndices significativos: 64% (32 ocorrências) no 1°grau, 67% (16 ocorrências) no 2°grau e 80 % (33ocorrências) no 3° grau. Se, no entanto,compararmos apenas os extremos – 1

o e 3

o graus,

observamos uma diferença percentual que deveser levada em conta: 16%. Quanto à varianteausência de concordância, chegamos ao total de34 ocorrências, sendo 18 (36%) no 1º grau, 8ocorrências (33%) no 2º grau e 8 ocorrências(20%) no 3º grau. É preciso assinalar, porém, queesse resultado vai no sentido esperado àqueleobservado no caso do SN, ou seja, o que severifica é que os falantes com grau de escolaridademais alto aplicam mais a concordância queaqueles que possuem apenas o 1

o grau.

É interessante observar que se no contexto deSN a diferença mais significativa está na passagemdo 1º para o 2º grau, no contexto de SV é entre o2º e o 3º grau que se dá um aumento expressivono emprego da concordância. Pode-se hipotetizarque a não-concordância no contexto de SN é umaforma mais saliente e estigmatizada. Por isso,percebe-se uma preocupação maior em eliminá-

la, que fica visível no contraste entre os índices de1º e 2º graus. Já a não-concordância no contextode SV seria uma variante menos saliente e que sómais tarde sentiria o efeito da escolaridade.

A variação na concordância segundoA variação na concordância segundoA variação na concordância segundoA variação na concordância segundoA variação na concordância segundoa idadea idadea idadea idadea idade do informante do informante do informante do informante do informante

GRÁFICO 3: FGRÁFICO 3: FGRÁFICO 3: FGRÁFICO 3: FGRÁFICO 3: Frequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasda variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (presença vs.presença vs.presença vs.presença vs.presença vs.ausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordância) em relação à) em relação à) em relação à) em relação à) em relação àVVVVVariável Idadeariável Idadeariável Idadeariável Idadeariável Idade

No nível do SN, os resultados demonstram,de forma consistente, que os membros dacomunidade cacerense utilizampredominantemente a variante presença deconcordância na fala, que totalizou 376ocorrências (99%) na fala dos informantes de 20a 30 anos, 386 ocorrências (97%) na fala dosinformantes de 31 a 50 anos e 256 ocorrências(91%) na fala dos informantes com + de 51 anos.Notamos, porém, uma leve diferenciação entre asduas primeiras faixas etárias e a terceira: nas duasprimeiras, o índice manteve-se estável, muitopróximo de um uso categórico; na terceira faixa-etária, o índice de 91 % de presença deconcordância mostra, no entanto, que há uma

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leve tendência entre os mais velhos a aplicar menosa concordância.

Esse último resultado é significativo, poisdemonstra que os informantes com + de 51 anosmantêm, com um grau maior de resistência, avariante ausência de concordância de gênero,que atingiu 9% de aplicação da regra (25ocorrências). Já a faixa etária de 20 a 30 anosatingiu apenas 1% de aplicação da regra (5ocorrências) e os informantes de 31 a 50 anosatingiram 3% de aplicação da regra (11ocorrências) da variante não-padrão. Osresultados indicam que os mais velhos estãomantendo a variante que, segundo relatos dehabitantes antigos da comunidade, é característicado falar local, apesar da atuação de diversosfatores (os meios de comunicação, a escola, osexo, a idade, etc.) que levam o informante aprocurar uniformizar a sua fala, do uso por meioda variante-padrão.

Essa associação entre a faixa etária dos maisvelhos e a forma não-padrão fica muito maisevidente quando analisamos os dados de variaçãono nível do sintagma verbal. Observamos umcontraste bem marcado entre as duas faixas maisjovens e a terceira faixa, a dos mais velhos.Enquanto os primeiros se mantêm relativamentepróximos aos índices gerais, os falantes mais velhosse distanciam significativamente daquelesresultados, revelando uma fala marcada fortementepela variante ausência de concordância.

Esses resultados indicam, aparentemente, queestá ocorrendo um processo de mudançalinguística, na medida em que a variante não-padrão resiste principalmente na fala dos maisidosos. Essa tendência pode estar sendocondicionada por vários fatores, dentre os quaispodemos citar: o fluxo de movimentos migratórios,a expansão dos meios de comunicação de massa,a abertura da rodovia federal BR 070, a atuaçãoda Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT).

Os fatores socioeconômicos e culturais acimacitados criaram as condições para que tivesse inícioum nivelamento linguístico, que tende a eliminar amarca característica da região, em função do padrãode realização da regra de concordância de gênero.

Se essa tendência parece inegável, osresultados da análise também nos mostram quemesmo entre os falantes que se aproximam maisda variante padrão, há diferenças a seremconsideradas. O índice de 79% (38 ocorrências)

de presença de concordância SV para os falantesde 20-30 anos e 74% (26 ocorrências) na fala de31-50 anos, em contraposição ao índice de 53 %(17 ocorrências) na fala dos informantes com +de 51 anos, indicam a substituição da varianteregional. Contudo, o resultado da varianteausência de concordância no SV atingiu 21% (10ocorrências) na fala da 1ª faixa etária, 26% (9ocorrências) na fala da 2ª faixa etária e 47% (15ocorrências) na fala da terceira faixa etária. Essesresultados sugerem um processo de mudança.

A variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasvariáveis sexo e escolaridade do informantevariáveis sexo e escolaridade do informantevariáveis sexo e escolaridade do informantevariáveis sexo e escolaridade do informantevariáveis sexo e escolaridade do informante

GRÁFICO 4GRÁFICO 4GRÁFICO 4GRÁFICO 4GRÁFICO 4: FFFFFrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasda variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente da variável dependente (presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.(presença vs.ausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordância) em relação as) em relação as) em relação as) em relação as) em relação asVVVVVariáveis Sexo e Escolaridadeariáveis Sexo e Escolaridadeariáveis Sexo e Escolaridadeariáveis Sexo e Escolaridadeariáveis Sexo e Escolaridade

A partir do gráfico 4, apresentamos oscruzamentos das variáveis linguísticas eextralinguísticas para observarmos ocomportamento dessas variáveis com relação àfrequência de uso da variante presença vs.ausência de concordância de gênero.

Na primeira figura do gráfico temos osresultados do SN segundo o sexo e o grau de

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escolaridade. Tanto os homens quanto as mulherescom o 1° grau de escolaridade aplicam em 92 %da regra de concordância, diferenciando apenasno número de ocorrências (234 ocorrências nafala das mulheres e 121 ocorrências na fala doshomens). Dessa forma, ambos os sexos empregamem apenas 8% (20 ocorrências na fala dasmulheres e apenas 10 na fala dos homens) avariante não-padrão (ausência de concordância).

Com relação aos resultados do 2º grau, noSN as mulheres atingiram 100% (134 ocorrências)de aplicação da regra de concordância, emcontraposição aos homens, que atingiram 98%(154 ocorrências). Desse modo, os resultados davariante ausência de concordância atingiramsomente 2% (3 ocorrências) na fala dos homens.Já os resultados do 3º grau atingiram o índice de98% para ambos os sexos, diferenciando apenaso número de ocorrências (219 ocorrências na faladas mulheres e 156 na fala dos homens). Por isso,a variante ausência de concordância atingiuapenas 2% (5 ocorrências na fala das mulheres e3 na fala dos homens).

Os resultados da figura 1 mostram que aaplicação da regra de concordância no SN équase total. Desse modo, a atuação da varianteausência de concordância teve um índice baixo epercebemos que o fator principal dessa diferençana atuação das variantes é o grau de escolaridade.Com esse resultado, reafirmamos o argumento quequanto maior o grau de escolaridade, menor afrequência da variante ausência de concordância.

Na figura 2, temos resultados diferentes paraas variáveis sexo e escolaridade no SV. Essesresultados mostram que as mulheres dacomunidade cacerense estão usando alto índiceda variante padrão, e esse índice aumentaconforme o grau de escolaridade. No 1º grau, nafala das mulheres, a presença de concordânciaatingiu 76% (26 ocorrências) em oposição aoíndice de 36% (6 ocorrências) na fala dos homens.

Com relação aos resultados do 2º grau, oíndice de atuação da variante presença deconcordância atingiu 81% (13 ocorrências) na faladas mulheres e apenas 37% (3 ocorrências) nafala dos homens. Um índice alto e quasesemelhante foi registrado na fala de ambos os sexosno 3º grau, 81% (25 ocorrências) na fala dasmulheres e 80% (8 ocorrências) na fala doshomens. Esses resultados indicam uma diferençano uso das variantes com relação ao sexo e ograu de escolaridade. Mulheres são mais

propensas a usar a variante padrão, que é avariante de prestigio na comunidade. E esse usoaumenta na medida em que aumenta o grau deescolaridade.

Portanto, observamos que os homens dacomunidade cacerense utilizam bem mais a varianteausência de concordância na fala do que as mulheres.E essa variante está circunscrita principalmente na falados informantes do 1º e 2º graus.

A variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasA variação segundo o cruzamento dasvariáveis idade e sexo do informantevariáveis idade e sexo do informantevariáveis idade e sexo do informantevariáveis idade e sexo do informantevariáveis idade e sexo do informante

GRÁFICO 5: FGRÁFICO 5: FGRÁFICO 5: FGRÁFICO 5: FGRÁFICO 5: Frequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasrequência das ocorrênciasda variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (da variável dependente (presença vspresença vspresença vspresença vspresença vsausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordânciaausência de concordância) em relação às) em relação às) em relação às) em relação às) em relação àsVVVVVariáveis Idade e Sexoariáveis Idade e Sexoariáveis Idade e Sexoariáveis Idade e Sexoariáveis Idade e Sexo

Os resultados de freqüência da variantepresença de concordância da figura 1 apontamaparentemente para o alto uso da variante padrãona fala de ambos os sexos, diferenciando-seapenas no número de ocorrências. Na faixa etáriade 20 a 30 anos, na fala das mulheres atingiu oíndice de 99% (245 ocorrências) e na fala doshomens o índice foi de 98% (131 ocorrências).Na fala de ambos os sexos na faixa etária de 31 a50 anos, atingiu o índice de 97%, diferenciando

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apenas no número de ocorrências (189 na faladas mulheres e 197 na fala dos homens). Já osresultados dessa variante na fala dos informantesde + de 51 anos na fala das mulheres o índiceatingiu 90% (153 ocorrências) e na fala doshomens 93% (103 ocorrências).

Com relação aos resultados da varianteausência de concordância da figura 1, temos paradestacar que a única atuação representativa foina faixa etária dos informantes com + de 51 anos,em ambos os sexos. Na fala das mulheres, o índicefoi de 10% (17 ocorrências) e na fala dos homens(8 ocorrências). Nas demais faixas etárias, o índiceficou definido em torno de 1% a 3% de atuaçãoda regra. Esse resultado é insignificante para ateoria da Sociolinguística.

Portanto, no nível do SN, a variável idadetem mais peso que a variável sexo; se compararmosos resultados gerais para sexo e idade,separadamente, vemos que homens e mulheresapresentam exatamente os mesmos índices depresença e ausência no SN. Já na variante idade,aparece uma diferenciação, embora pequena,segundo a idade, refletindo o resultado dessavariável, ou seja, os falantes mais velhos usamrelativamente com maior frequência a variantenão-padrão, sejam eles homens ou mulheres.Diante desses fatos, podemos considerar a atuaçãoda variável idade como o condicionador principalno uso da variável padrão na fala da comunidadecacerense.

Com relação aos resultados da figura 2, osíndices indicam a importante atuação da variantepresença de concordância na fala da comunidadetanto em relação à fala das mulheres como nafala dos homens. Na primeira faixa etária, de 20a 30 anos, a atuação da variante presença deconcordância, o índice é de 83% (33 ocorrências)na fala das mulheres e 62% (5 ocorrências nafala dos homens). Já na segunda faixa etária, de31 a 50 anos, no uso da variante presença deconcordância, o índice é de 86% (18 ocorrências)na fala das mulheres e 57% (8 ocorrências nafala dos homens). A diferença está na atuação nafaixa etária de + de 51 anos, que atingiu 65%(13 ocorrências na fala das mulheres) e 33% (4ocorrências na fala dos homens).

Dessa forma, os resultados da varianteausência de concordância do gráfico 2 indicamum alto índice de uso dessa variante,principalmente na fala dos informantes com + de51 anos. Na primeira faixa etária, o índice foi de

apenas 18% (7 ocorrências na fala das mulheres)e 38% (3 ocorrências na fala dos homens). Já nasegunda faixa etária, o índice foi de 14% (3ocorrências na fala das mulheres) e 43% (6ocorrências na fala dos homens). A diferença estácircunscrita na terceira faixa etária na fala dasmulheres, que atingiu 35% (7 ocorrências) e 67%(8 ocorrências na fala dos homens).

Portanto, os resultados no nível do SVdemonstram que as duas variáveis se mostramrelevantes: mantém-se a diferença entre homense mulheres – eles apresentam índices maiores denão-concordância, independentemente da idade.Mas a variável idade atua fortemente tanto sobrea fala feminina quanto masculina: há umatendência clara a se ter índices maiores da variantenão-padrão quanto mais velho for o informante.

É importante ressaltar que mesmo havendoessa diferença entre as faixas etárias atuando entrehomens e mulheres, os dois sexos se diferenciam,porque com os homens observamos uma gradaçãocrescente de uso da variante não-padrão: osfalantes mais jovens usam menos essa varianteque o grupo intermediário e estes menos que ogrupo mais velho (embora haja um degrau maisacentuado de diferença: 24%).

Já com as mulheres, a diferença entre os doisprimeiros grupos não é significativa do ponto devista estatístico (4%). A grande diferença (em tornode 20%) se estabelece entre esses dois grupos e oterceiro (dos mais velhos).

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Nesta pesquisa optamos por estudar afrequência da variação na concordância nominalde gênero sob o enfoque da Sociolingüística, poisessa área do conhecimento afasta-se do tipo deanálise que considera apenas categoriasgramaticais para o entendimento das varianteslinguísticas, estudando os fenômenos linguísticosa partir de uma perspectiva mais ampla. ASociolinguística apreende a variação linguísticaem sua relação com o contexto social em queessa variação está inserida.

Os instrumentos teóricos e metodológicos daSociolinguística foram decisivos para quepudéssemos mostrar a frequência da variação eidentificar os condicionadores mais decisivos naaplicação da regra e constatamos: foram os sociais.

Desse modo, é possível uma caracterizaçãodos contextos em que ocorre a variação na

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concordância de gênero. O emprego daconcordância, segundo a norma padrão, está,principalmente, circunscrito ao nível do SN, emque encontramos um alto índice de presença deconcordância. Observa-se, por outro lado, que ocacerense utiliza a regra de concordância no SVcom uma frequência bem menor que no SN; dessaforma, a regra não-padrão – ausência deconcordância,na relação entre o predicativo e osujeito da oração é muito mais utilizada, atingindo30% de aplicação da regra.

Acreditamos, porém, que esse resultado poderáser explicado pelo fato de que os falantes maisjovens estão mais expostos ao mercadoprofissional e, portanto, sofrem maior pressãonormativa. É preciso considerar que uma grandeparcela do mercado de trabalho dessacomunidade é mantida por migrantes das diversasregiões do país. Essas pessoas estranham não sóo modo de falar da região, como os costumes eas tradições, estigmatizam a comunidade e acabampor desprestigiar a sua fala e forçar a mudançalinguística. Portanto, os nativos tendem a perderos traços característicos da região, igualando-sea outras comunidades.

Com base nos resultados apresentados nestapesquisa, acreditamos que a influência dos fatoresidade e escolaridade foi determinante e nos levoua inferir que com essa incisiva atuação dosestabelecimentos de ensino, em um curto espaçode tempo, assistiremos à substituição total davariante regional pela variante padrão na fala dacomunidade cacerense.

Os resultados obtidos nesta pesquisa mostramcomo os fatores socioeconômicos e culturais criamas condições para o início de um nivelamentolinguístico, que tende a eliminar a marcacaracterística da região, em função do padrão derealização da regra de concordância de gênero.Portanto, os padrões linguísticos não podem sercompreendidos apenas em termos de suas relaçõesinternas, mas devem ser considerados como partede um contexto sociocultural mais amplo.

1 - Este artigo é parte dos resultados de um projetode pesquisa financiado pela FAPEMAT.2 - Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pelaUNESP e professora da área de Linguística daUNEMAT. E-mail: [email protected]

Aceito para publicação em 01.06.2009

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A sufixação nas gramáticas normativasA sufixação nas gramáticas normativasA sufixação nas gramáticas normativasA sufixação nas gramáticas normativasA sufixação nas gramáticas normativase em algumas escolas e domínios dase em algumas escolas e domínios dase em algumas escolas e domínios dase em algumas escolas e domínios dase em algumas escolas e domínios dasciências da linguagemciências da linguagemciências da linguagemciências da linguagemciências da linguagem

Ao falarmos em sufixação, é inevitável quenos venha à mente aquela tradicional lista desufixos presentes nas gramáticas normativas.Nestas, os fatos da língua são apresentados comodefinitivos, não-variáveis. Foi assim com asantigas (desde a grega e a latina) e, ainda, comas contemporâneas. Não seria diferente com ossufixos... A regra geral prescreve que um sufixo àdisposição numa lista de alguma gramática éacrescentado a um radical, emprestando-lhe seusentido geral, e, então, uma nova palavra surge.Dessa forma, a formação de novas palavras peladerivação sufixal assemelha-se a um processomecânico: basta usar um sufixo com o sentidopretendido constante numa lista de algumagramática e agregá-lo a um radical.

Consultamos quatro gramáticas normativas –cujos autores são Cegalla (1996), Bechara (1989),Melo (1970) e Cunha & Cintra (1985) – e pudemosconferir que a apresentação dos sufixos segue o

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O trabalho em questão consiste em discutir a sufixação sob o olhar da análise do discurso de vertentefrancesa. Nosso objetivo é pensá-la como um processo discursivo derrisório que visa a descaracterizar o discursopolítico do outro. Tal discussão aconteceu em nosso curso de mestrado e, para esta discussão, estabeleceremos,como recorte, trechos da análise propriamente dita, apresentando alguns dos resultados alcançados. A partir dotratamento verificado nas gramáticas tradicionais e em algumas correntes linguísticas, apresentaremos,fundamentados nos trabalhos de Authier-Revuz e Bonnafous, a leitura que a análise de discurso francesa pode fazerdo fenômeno em questão. Baseados em enunciados proferidos por políticos desde os escândalos do mensalão àreeleição e posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (maio de 2005 a 1º de janeiro de 2007), postulamos queos sufixos funcionam como modalizadores autonímicos derrisórios.

PPPPPalavrasalavrasalavrasalavrasalavras-----chave: chave: chave: chave: chave: sufixos; discurso político; modalização autonímica; heterogeneidade; derrisão; trama.

Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This work discusses the suffixation from the perspective of discourse analysis of French orientation. Ourgoal is to think of it as a derisory discursive process that seeks to mischaracterize the politic discourse of the other.This study was developed in our master degree course and we have selected some excerpts of the analysis itself,presenting here some of the reached results. From the treatment found in traditional grammars and some linguisticstheories, we present (based on the works of Authier-Revuz and Bonnafous) the reading the French discourse analysiscan make of this phenomenon. Based on statements pronounced by politicians since the “mensalão” scandals to there-election and inauguration of the president Luiz Inácio Lula da Silva (May 2005 to January 1, 2007) we claim thatthe suffixes work as derisory autonomic modalizers.

Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: suffixation; politic discourse; autonomics modalization; heterogeneity; derision; plot.

seguinte padrão: primeiramente, temos o sufixoou um grupo de sufixos; a seguir, o sentido gerale, para encerrar, alguns exemplos.

Outra constatação foi a de que desconsiderama homofonia

2 dos sufixos, preocupando-se mais

com a apresentação de listas do que com umverdadeiro estudo gramatical do processo dasufixação. Os sufixos homófonos são apenas umdos exemplos.

A creditamos que transpor um olhargramatical/ normativo às palavras é interpretá-las de forma a lhes retirar toda a suadiscursividade, desconsiderando o uso e ascondições de produção que as envolvem. Emoutras palavras, é desconsiderar que a línguapossui um funcionamento que é integralmentelinguístico e histórico. Ao buscar o sentido dapalavra, Saussure afirmara que “somente asvinculações consagradas pela língua nos parecemconformes à realidade, e abandonamos toda equalquer outra que se possa imaginar” (p. 80).Na verdade, assim o fazemos por estarmosinseridos numa cultura cuja tradição gramaticaldetermina a pesquisa aos compêndios e o

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empréstimo do sentido geral do sufixo ao radicalem questão.

Ao contrário das gramáticas normativas, queprescrevem regras e listam sufixos para a formaçãode palavras, o estruturalismo faz a descrição doprocesso. Para os teóricos dessa corrente, aderivação consiste na formação de palavras pormeio de afixos agregados a um morfema lexical.Os gerativistas, por sua vez, preocupam-se emexplicitar a capacidade/competência que umfalante tem em relação ao léxico de sua língua,tentando mostrar que o léxico é um lugar vital,não uma lista passiva de palavras com seussignificados. Com o funcionalismo, o parâmetroé o uso. Diferentemente das gramáticastradicionais, os exemplos são baseados na línguaviva, em uso, e não em prescrições. A partir douso em textos reais é que são mostradas as regrasque regem seu funcionamento. Finalmente, paraa teoria da argumentação, o sufixo tem umfuncionamento argumentativo. Fiorin (2006)sugere que repensemos a sufixação que, para ele,pode ter outras funções no jogo argumentativoalém de criar simulacros do discurso do outro.

O olhar da AD francesaO olhar da AD francesaO olhar da AD francesaO olhar da AD francesaO olhar da AD francesa

É comum ouvirmos, diariamente, palavrasnovas serem criadas por políticos: continuísmo,mensalão, quadrilheiro... Outras, por sua vez,serem ressignificadas: vampiro, sanguessuga,furacão, navalha... O mais comum ainda é quetais escolhas lexicais ocorrem com o objetivo dedescaracterizar o discurso do oponente. Isso nosinstigou, levando-nos a estabelecer o seguinterecorte para este trabalho: observar o processode formação de palavras denominado sufixação,no discurso político, em sua modalidade escrita.

Como corpus empírico, selecionamosenunciados proferidos por políticos (em gêneros esuportes diversos) entre os períodos de maio de2005 a 1º de janeiro de 2007, precisamente, doescândalo das denúncias do mensalão à possedo segundo mandato do presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva. Nesse período, ospartidos de oposição tentavam atacar os desituação

3 por meio do discurso desqualificador –

a mesma arma usada como estratégia de defesapela situação. Como apoio para seus “ataquesverbais”, formavam e ressignificavam as maisdiversas palavras possíveis. Dessa forma, a açãopolítica se realizava pela linguagem, sendo tais

palavras “hospedeiras” da ideologia dos partidospolíticos.

Ao enunciar, o sujeito político acredita ser oportador de uma certa autoridade, já que foraeleito pelo povo e se sente legitimado por isso.Como nosso corpus compreende o período entreo escândalo do mensalão, a eleição e possepresidencial, não nos surpreende encontrarmosenunciados nos quais os políticos de oposiçãousem da autoridade legitimada para fazerdenúncias envolvendo o governo, tentandoconstruir o ethos de “defensores” dos direitos dapopulação, “abrindo-lhe os olhos”, reservando àsituação o papel de defender-se de tais denúncias.Na verdade, ambos partidos se encontravam em“relações de forças”, num jogo de interesses porcargos políticos, realizando o que fosseconveniente para alcançarem o objetivo principal:a oposição na tentativa de ocupar o poder; asituação tentando manter-se nele.

Charaudeau (2006, p.92-3) acredita quedesqualificar seja um dos polos constitutivos dodiscurso político, sendo uma necessidade do sujeitopolítico rejeitar os valores do adversário. Dessaforma, a confrontação entre forças políticasantagônicas assemelha-se a uma guerra emperíodo eleitoral, exigindo dos concorrentes maisdo que um projeto interessante, mas também muitamalícia.

Destacamos, nesse trabalho, uma estratégiadiscursiva empregada pelos políticos a partir doformal na língua (a derivação sufixal), com oobjetivo de ofender uns aos outros e também dese defender (de forma ofensiva). Formações novase ressignificações de palavras com os sufixos –––––eiroeiroeiroeiroeiro e –ismo–ismo–ismo–ismo–ismo chamaram nossa atenção, levando-nos a refletir sobre o funcionamento discursivodesses sufixos, caracterizados em nosso trabalhocomo marcas de heterogeneidade constitutiva dosentido, como desqualificadores do discurso doOutro.

Se considerarmos apenas as contribuiçõesnormativas, a significação das palavras assumiráuma determinada conotação. No entanto,considerando as condições de produção nas quaisos enunciados foram produzidos e a formaçãodiscursiva na qual os sujeitos autores destesenunciados se inscrevem, postulamos que aspalavras passam a assumir uma conotaçãopejorativa, negativa. Nossa proposta é, então,analisar tais ocorrências inscritas em seu contextodiscursivo e mostrar a significação que assumem

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quando lidas numa perspectiva discursiva.Mostrar, pois, que os sufixos são mais do quepregam as gramáticas normativas – são tambémmarcas de heterogeneidade e derrisão.

O sufixo –eiroO sufixo –eiroO sufixo –eiroO sufixo –eiroO sufixo –eiro

Com as denúncias do mensalão, ocorridas apartir de maio do ano de 2005, formações novase ressignificações de palavras com o sufixo –eiro–eiro–eiro–eiro–eiroagentivo passaram a ser bastante utilizadas,principalmente por partidos de oposição aogoverno e pela mídia em geral.

MensaleiroMensaleiroMensaleiroMensaleiroMensaleiro é um bom exemplo. Nesse caso,o sufixo forma um substantivo que pode denotarprofissão, ofício ou agente. A palavra formada serefere aos políticos envolvidos nos escândalos domensalão, sendo a maior parte deles aliada aopartido do presidente da República (PT), o que fazaumentar ainda mais o número de críticas: “Assimcomo renunciar à ideologia deu certo para chegarao poder, talvez a renúncia à recuperação éticatambém dê certo – e os mensaleiros mensaleiros mensaleiros mensaleiros mensaleiros acabem devolta a Brasília a bordo de mandatos renovados”(PETRY, 17/05/06, p.47).

Este enunciado revela que o articulista criticatanto as atitudes individuais dos mensaleiros – querenunciaram à ética – quanto as do Partido dosTrabalhadores – que renunciou à sua ideologia.O partido que nasceu para reivindicar o direitodos trabalhadores não é mais o mesmo. Deacusador passou a alvo de acusações. Ao afirmarque os mensaleiros renunciaram à ideologia e àética, André Petry acusa toda a base aliada aogoverno petista. E ainda é irônico: se a renúnciaà ideologia deu certo, por que a renúncia àrecuperação ética também não o daria?

Mas, o que deu certo? A que se refere oenunciador? Acreditamos que esteja se referindoaos cargos políticos relacionados à presidênciada República, pois, como é sabido de todos, aimprensa atribui a conquista da presidência peloPT, em 2002, à mudança na condução dacampanha comparada às tentativas anteriores –um “Lulinha paz e amor”, sem radicalismos, quese alia a partidos de direita...

4 Enfim, o partido

perdeu a característica inicial, mas “chegou lá”.Por isso, conclui que talvez a renúncia àrecuperação ética mantenha “os mensaleiros” emBrasília.

MensaleiroMensaleiroMensaleiroMensaleiroMensaleiro, que, segundo uma leituraprescritiva, denotava “aquele que exerce um ofício

específico e por isso recebe uma quantia mensal”,não pode assim ser lido, pois não existe esse ofíciolegitimado. Na verdade, para que se receba essaquantia – o mensalão –, não há o exercício deum ofício, de uma atividade, mas escusos acordospolíticos do tipo “toma lá, dá cá”. Ao denominaros políticos da situação de mensaleirosmensaleirosmensaleirosmensaleirosmensaleiros, aoposição quer que seus “acordos” sejaminterpretados como uma atividade fixa, corriqueira,do dia-a-dia. Ou seja, fazer acordos políticosvisando ao benefício próprio está associado ao“mensaleiromensaleiromensaleiromensaleiromensaleiro”, assim como o ato de fazer pãesestá para um padeiro.

Vê-se, portanto, que alguns adjetivosformados a partir do sufixo –eiro (a), no contextopolítico, desqualificam o objeto referido, sugerindoa ideia de algo pejorativo, assim como tambémos substantivos formados por este sufixo, assumindouma conotação negativa, como postulamosanteriormente.

O sufixo –ismoO sufixo –ismoO sufixo –ismoO sufixo –ismoO sufixo –ismo

Dessa vez, o sufixo trabalhado aparece comdois sentidos distintos: formador de nomes de açãoou resultado de ação e formador de nomes queindicam maneira de pensar, doutrina que alguémsegue, ideologia. As palavras selecionadas foramdenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo (para o primeiro caso) e lulismolulismolulismolulismolulismo(para o segundo caso).

DenuncismoDenuncismoDenuncismoDenuncismoDenuncismo sugere, à primeira vista, osentido de denúncia. No entanto, os autorespreferiram a primeira forma. Não por acaso... Naverdade, denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo sugere uma conotaçãonegativa, sendo visto como um mal social:

O denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo é uma doença terminal dojornalismo que se manifesta em momentos decrise política profunda como a atual. É vital nãodeixar esse mal se instalar. A vacina contra odenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo passa pela apuração diligente,árdua e trabalhosa dos fatos que se julgaimperioso levar ao conhecimento da opiniãopública. (Editorial da revista Veja, 13/07/05, p.9).

Temos de aproveitar o fogo da batalha paraeliminar todo o lixo da corrupção e dodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo. Ou seja, não podemos aceitaro denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo, o banditismo, para punirapenas alguns corruptos e alcagüetes em trocada ‘inocentagem’ de outros. [...] Não se pode,sob nenhuma hipótese, premiar a criminalidadee o denuncismo.denuncismo.denuncismo.denuncismo.denuncismo. (JONES, 25/08/05).

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O primeiro enunciado revela a negatividadeagregada ao termo, sendo definido pelo autor comouma doença terminal do jornalismo, como ummal que precisa de vacina. Segundo o autor, essemal se manifesta em momentos de crise políticaprofunda, cujos disseminadores são os jornalistas.Ele sugere, então, que a vacina seja a apuraçãorigorosa dos fatos antes que estes se tornempúblicos, visto que muitas das denúnciasapresentadas não são baseadas em provasconcretas.

No segundo enunciado, Alberto da Silva Jonesdefine denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo como l ixo e, ainda,banditismo, colocando-o ao lado da corrupção.A situação política é descrita por ele como umabatalha na qual os políticos trocam acusações,sendo o denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo uma arma, inclusive paraos corruptos, que, por meio da delação premiada,têm suas penas abrandadas. Para Jones, éinadmissível o uso do denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo para puniralguns corruptos em troca da “inocentagem” deoutros. Ao afirmar Não se pode, sob nenhumahipótese, premiar a criminalidade e odenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo, considera este um crime queprecisa ser eliminado da sociedade.

Dessa forma, vemos que a palavradenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo é empregada, preferencialmente,pelos partidos de situação, alvos de acusaçõespor parte da oposição, que, por sua vez, almejamo poder. É uma forma de tentarem se defenderpor meio da própria palavra. Ao enunciaremdenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo, em vez de denúncia, ressignificamo sentido desta, passando a associá-la a termoscomo doença, banditismo, crime... De “ato ouefeito de denunciar”, a palavra passa a assumira seguinte conotação: “o ato de fazer denúnciassem basear-se em provas concretas, com o objetivode obter vantagens políticas”. Com isso, odenunciado se defende e ainda desqualifica odiscurso do outro.

Muito comum também são as formaçõestendo como radical nomes de pessoas, cujoobjetivo é expressar o pensamento/ ideologiadestas. Sendo Lula o situacionista, já era de seesperar que fosse o “alvo-mor”. Assim, combatere acabar de vez com o lulismolulismolulismolulismolulismo seria a melhorsaída encontrada pela oposição, que tentavadesqualificá-lo fazendo uso de discursosagressivos.

Ipojuca Pontes compara o fenômeno dolulismolulismolulismolulismolulismo ao do stalinismo:

Hoje, as provas contra Stalin sãoinquestionáveis e, se querem saber, a minhaopinião pessoal é de que existe, de certo modo,um dado precioso que demonstra a afinidadeeletiva entre os fenômenos do lulismolulismolulismolulismolulismo e dostalinismostalinismostalinismostalinismostalinismo da era do Grande Terror”.(PONTES, 17/07/2006).

Tudo o que foi considerado ruim na era deStalin é transferido para a de Lula, como sevivêssemos um Grande Terror. Aponta ainquestionabilidade das provas contra Stalin para,na verdade, acusar Lula, o presidente do país quevive a “Grande Corrupção”. Para Ipojuca, ambossubmeteram a grande massa à lavagem cerebralpor meio da propaganda oficial, no intuito de fazercom que suas “verdades” fossem tidas comoúnicas. Assim como Stalin afirmava não saber oque Nikolai Iejov (seu homem de confiança) fazia,impostando um ar de surpresa diante dasdenúncias de prisões e assassinatos em massa,Lula adotou a postura do dirigente que não sabiade nada nem muito menos do que faziam no seugoverno. Apesar de esclarecer que há umadistinção notável na gradação dos crimes emétodos, o autor os nivela como dois malessociais: o carniceiro socialista, que matou emmassa, e o ex-metalúrgico, que se deixoucorromper industrialmente. Supomos que a vontadedo autor é que um dia seja provado oenvolvimento de Lula nos escândalos decorrupção, já que hoje as provas contra Stalinsão inquestionáveis.

A necessidade de combater o lulismolulismolulismolulismolulismo étamanha que em muitos artigos lemos o decretode sua morte como uma tentativa de diminuí-lo.

A Folha On-line comentou, em 06/07/05,trechos de matérias publicadas em jornaisinternacionais a respeito das denúncias aogoverno Lula. Entre elas, destacamos a que serefere à morte do lulismolulismolulismolulismolulismo, definido como umcredo: “Mas nas últimas semanas tudo veio abaixoe foi decretada a morte do ‘lulismo’‘lulismo’‘lulismo’‘lulismo’‘lulismo’, como seucredo político é conhecido” (Internacional HeraldTribune, Folha on-line, 06/07/05).

No artigo denominado “A morte do PT-lulismolulismolulismolulismolulismo”, Alexandre Dias comenta que a derrotanas eleições de 1994 impulsionou o fenômenoPT-lulismolulismolulismolulismolulismo, porém, com a “caída” de seusprincipais mentores, morre o lulismo,lulismo,lulismo,lulismo,lulismo, sobrandoo petismo. Lula cai, mas seu partido não:

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O PT-lulismo foi um fenômeno políticoimpulsionado pela derrota nas eleiçõespresidenciais de 1994. [...] Mas, agora, olulismolulismolulismolulismolulismo morreu. Caíram seus principaismentores: Dirceu, Gushiken, Genoíno e,finalmente, Palocci. Sobrou o petismo. Umpetismo sem rumo, sem ideologia, sem utopia.Um petismo perdido entre os ideais que um diateve, e os ideais que hoje não tem. (DIAS, 29/03/06).

No entanto, com a vitória de Lula, fica claroque se algo morreu foi o petismo, não o lulismolulismolulismolulismolulismo.É o que podemos conferir na afirmação de ValterPomar, comentada por Felipe Neves:

O secretário de relações internacionais dodiretório nacional do PT, Valter Pomar,demonstrou nesta segunda-feira preocupaçãocom o futuro do partido e com o fenômeno‘lulismolulismolulismolulismolulismo’. ‘O elemento que tem que serpriorizado é o petismo’, disse. Com o termo‘lulismolulismolulismolulismolulismo’, Pomar se referia ao carisma dopresidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao fato deesse carisma ser capaz de angariar votos,independentemente da filiação partidária eideológica. (NEVES, 13/11/06).

Vemos, pois, que o termo lulismolulismolulismolulismolulismo foiconstantemente referido durante o período eleitoral,inclusive como o de uma doença: “O lulismolulismolulismolulismolulismo éuma psicopatia. [...] Se Lula for reeleito, é sinalque os brasileiros surtaram” (MAINARDI, Veja on-line, 08/07/06).

Diogo Mainardi desenvolve o artigo de formaque Lula seja visto como um psicopata. Não foi àtoa que escolheu o seguinte título: O lulismolulismolulismolulismolulismo-lelé.

Como último exemplo, destacamos trechos doartigo “A gênese do lulismolulismolulismolulismolulismo”, de Ricardo Antunes.Nele, o autor aponta Lula como um casoexcepcional de um operário brasileiro que assumiuprojeção política nacional. Reproduz, de formabreve, a trajetória de Lula – da migração donordeste ao momento atual, em que é visto comoum fenômeno:

[...] por detrás de sua aparente simplicidade,aflorava alguém que prezava cada vez mais oculto à personalidade, cultuava a condição lídere mesmo tertius, dentro do PT, o que acaboupor fazer proliferar, dentro e fora do partido, ofenômeno do lulismolulismolulismolulismolulismo. Se durante a década de1980, das mais ricas da história das lutassociais no Brasil, Lula soube se manter coladoaos interesses majoritários do mundo do

trabalho, na década seguinte, marcada peladesertificação neoliberal, Lula consolidou suamaior mutação. Que lhe custou a vértebra. E,sem ela, restou o lulismolulismolulismolulismolulismo. Estava concluídasua fase primeva. Gestava-se, então, o novo‘messias’ da política, dentro e fora do PT.Escolhido para desafiar o neoliberalismo,tornou-se o seu mais competente paladino.(ANTUNES, 20/02/06).

De acordo com Antunes, o prezo de Lula noculto à personalidade e à condição de lídercontribuíram para fazer proliferar a associação desua imagem a de um fenômeno. Passou por umamutação, não mais se mantendo colado aosinteresses trabalhistas, mas sendo escolhido paradesafiar o neoliberalismo, chegando a serconsiderado por Antunes com o novo ‘messias’da política, dentro e fora do PT. Não o “messias”salvador dos pobres, presidente de sindicato,mobilizador de greves, político de esquerda, oualgo parecido, pois, segundo Antunes, essa faseprimitiva passara (Estava concluída sua faseprimeva); agora é a vez do homem responsávelpela economia de um país, do presidente daRepública, e, por que não, do neoliberal? É comose tivesse passado a fase do “oba-oba”, dandolugar à fase “séria”.

Credo, doença, mal, loucura, psicopatia,carisma, messias... Eis alguns termos associadosao fenômeno do lulismolulismolulismolulismolulismo. Entre as críticas positivase negativas, essas foram as predominantes naúltima corrida eleitoral. Oposição e mídiaatacavam o mal desqualificando-o para bani-lo,tomando como uma das estratégias o empregodo sufixo -ismo-ismo-ismo-ismo-ismo. De “relativo a Lula”, lulismolulismolulismolulismolulismoera, na verdade, associado a tudo o que fosseruim e nocivo à sociedade.

Vê-se, portanto, que o emprego dos sufixospossibilitou uma significação negativa àsocorrências. Apresentamos, em seguida, umquadro que mostra as conotações das ocorrênciasconsiderando as leituras prescritiva e discursiva:

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Depois do batimento descrição, o daDepois do batimento descrição, o daDepois do batimento descrição, o daDepois do batimento descrição, o daDepois do batimento descrição, o dainterpretação...interpretação...interpretação...interpretação...interpretação...

Nosso trabalho dialoga com a proposta deJacqueline Authier-Revuz, que parte das formas dalíngua para mostrar as não-coincidências (ao invésdas evidências) que atravessam os dizeres. A autoraaponta uma inevitável heterogeneidade teórica queafeta a abordagem linguística dos fatos enunciativos,impondo a explicitação dos exteriores teóricos. Partirdas formas da língua inscreve o trabalho da autoranuma corrente enunciativa no sentido estrito, neo-estruturalista. Authier-Revuz não ignora a questãoda estrutura, dando um lugar para o conhecimentode sua articulação com a linguagem.

A autora (2004) classifica a heterogeneidadeem dois tipos: a constitutiva e a mostrada. Aprimeira ocorre quando o discurso é colocado emrelação de alteridade, não se mostrando no fiodo discurso. A segunda, por sua vez, faz referênciaà presença do Outro, podendo ser marcada (asglosas, as aspas, o discurso direto, o discursoindireto...) ou não-marcada (a ironia, aimitação...).

A autora se ancora em dois pontos de vistaexteriores à linguística para fundamentar aheterogeneidade constitutiva do discurso: odialogismo do círculo de Bakhtin e a psicanálisena interpretação lacaniana de Freud. Para oprimeiro ponto de vista, a interação com o discursodo outro constitui qualquer discurso. Para osegundo, o discurso se constitui atravessado pelodiscurso do Outro. Dessa forma, “todo discursose mostra constitutivamente atravessado pelos‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’”(AUTHIER-REVUZ, 2004, p.69). Trata-se daheterogeneidade da palavra e do descentramentodo sujeito.

Por tratar da enunciação, o trabalho deAuthier-Revuz se situa na região do esquecimento

número dois: “ao falarmos, o fazemos de umamaneira e não de outra e, ao longo de nossodizer, formam-se famílias parafrásticas que indicamque o dizer sempre podia ser outro” (ORLANDI,1999, p.35). Produz-se, por meio desseesquecimento, a impressão da realidade dopensamento (uma ilusão referencial), fazendo-seacreditar na relação direta entre o pensamento, alinguagem e o mundo. Assim, pensa-se que oque se diz só pode ser dito com aquelas palavrase não com outras, como se a relação entre palavrae coisa fosse natural. Ainda segundo Orlandi(1999, p.35), esse esquecimento atesta que “asintaxe significa: o modo de dizer não é indiferenteaos sentidos”. Esta autora ainda afirma que oesquecimento enunciativo é “semi-consciente emuitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a estamargem de famílias parafrásticas, para melhorespecificar o que dizemos”.

Considerando as condições de produçãosegundo as quais os enunciados foram produzidose a formação discursiva dos sujeitos autores dosenunciados, podemos afirmar que as formaslinguísticas analisadas deixaram as significaçõesque apresentavam comumente, passando aassumir significações pejorativas. Ao seremempregadas no contexto político, no confrontoentre discursos políticos da situação e da oposição,surgem para “mascarar” os reais efeitos de sentidopretendidos. Quando, por exemplo, um políticoda base do governo é chamado de mensaleiromensaleiromensaleiromensaleiromensaleiropor outro da oposição, este pretende que seconceba os acordos escusos daquele como umaatividade corriqueira realizada por um profissionalno assunto. Por outro lado, quando o políticoligado ao governo enuncia que isso édenuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo, encontra na própria palavra umaforma de autodefesa, já que o denuncismodenuncismodenuncismodenuncismodenuncismo nãose baseia em provas contundentes, desmerecendo,portanto, credibilidade.

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Somos conduzidos, então, com essasafirmações, a Charaudeau (2006, p.23), paraquem “a palavra política é cheia de armadilhas”.

Os efeitos de sentido provocados pelasocorrências em questão, em seus contextosespecíficos de realização, não coincidem com seusentido prescritivo, não são óbvios, transparentes...Assumem outro sentido, não-coincidente. Porém,gostaríamos de deixar claro que essas formas não-coincidentes não derivam da intencionalidade, masde uma “negociação obrigatória” do enunciadorcom as não-coincidências (ou heterogeneidadesenunciativas) que atravessam seu dizer.

Ao transferirem um outro sentido (não óbvio)aos termos empregados, tanto os políticos daoposição quanto os da situação antecipam o efeitode sentido pretendido por meio da própria formalinguística. É o que Authier-Revuz chama deconfiguração enunciativa da reflexividademetaenunciativa – a modalização autonímica daenunciação atravessada por sua auto-representação opacificante. O dizer se representade forma reflexiva e opaca, tendo-se um sujeitoque retorna ao discurso para negá-lo. Desta forma,quando as ocorrências apontadas são enunciadasem seus contextos específicos, ao mesmo tempoem que são enunciadas são também comentadasatravés de um dizer que se volta para si mesmo.Trata-se do fenômeno da metaenunciação, que,segundo Authier-Revuz (1998, p.166), vem a sero efeito de retorno reflexivo pelo qual umaenunciação ao se produzir se reveste de umcomentário sobre ela mesma. Esse comentário éque vai manifestar o esforço em tratar dos outrossentidos que existem no contexto.

As ocorrências analisadas são, portanto,estritamente reflexivas, já que num único ato deenunciação há um dizer seguido de um comentáriodesse dizer:

Neste ‘retorno do dizer’ [...], o discurso sobre aprática da linguagem emerge dessa prática, nospontos do dizer que, para se completarem,requerem ‘o a mais’ de um comentário: nessespontos se conjugam os dois planos da prática eda representação, como parte dessa prática,sendo a dimensão imaginária dasrepresentações do dizer parte estritamenteintegrante, portanto, do fato de dizer. (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.181).

Ao tratar da oposição entre explícito vs.interpretativo, tendo como objeto o discursorelatado, aponta três níveis:

- formas marcadas, unívocas;- formas marcadas que exigem um trabalho

interpretativo;- formas puramente interpretativas.Gostaríamos de destacar o segundo nível, o

qual é representado pelas “aspas, itálicos,entonação de modalização autonímica queapresentam uma marca, mas uma marca que deveser interpretadainterpretadainterpretadainterpretadainterpretada

5 como referência a um outro

discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1998, p.143).Transpondo as afirmações da autora ao nosso

objeto, acreditamos que os sufixos é que permitemque as ocorrências analisadas possam funcionarcomo formas marcadas que exigem um trabalhointerpretativo, já que, por meio delas, há um dizernão óbvio comentado pela própria forma em uso,exigindo, portanto, um trabalho interpretativo. Nocomentário, pudemos conferir que a forma usadapermite uma outra leitura, deixando seu sentidoliteral e prescritivo em função daquele que asituação discursiva exige. O sufixo é a própriamarca de heterogeneidade constitutiva de outroefeito de sentido.

O trabalho interpretativo parte da forma (ossufixos -eiroeiroeiroeiroeiro e -ismoismoismoismoismo) com função ideológica. Ossufixos representam, pois, as glosasmetaenunciativas de que fala Authier-Revuz.Manifestam-se na superfície do dizer e, como bemlembra a autora, não são da ordem do ornamento.Essas formas é que prendem os dizeres no jogodispersante das não-coincidências, sendocaracterizadas pela autora como “jogos sériosfundamentais”.

Com base no exposto, podemos concluir queos sufixos -eiroeiroeiroeiroeiro e -ismoismoismoismoismo funcionam, nasocorrências analisadas, como modalizadoresautonímicos. E mais: além de caracterizarem emseus contextos enunciativos, de forma simultânea,um uso e um comentário sobre o mesmo, o fazempra desqualificar o discurso do outro. São, portanto,modalizadores autonímicos derrisórios.

Por derrisão Bonnafous (2003, p.35) entendea “associação do humor e da agressividade quea caracteriza e a distingue da pura injúria”. É muitocomum seu uso no discurso político, visto que aodescaracterizar o discurso do oponente, obtém-secom isso vantagens políticas. Para Baronas (2004,p.156), a temática da derrisão

centra-se em questionar por meio da sátira aordem estabelecida e/ ou os valores largamentecristalizados em nossa sociedade. Talquestionamento tem como alvo preferido as

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mais diferentes autoridades sociais e se impõea ler sob diferentes facetas: nas charges, nascaricaturas, nos pastiches, nas piadas, nosjogos de palavras, etc.

Postulamos, assim, com base nos exemplosarrolados, que a sufixação se constitui em maisuma das facetas para se ler a derrisão, enquantouma estratégia que visa a descaracterizar ooponente, devendo, portanto, ser vista, a partirdo percurso que fizemos, como constitutiva dodiscurso político.

Quando os políticos empregam uma palavraligada a um dos sufixos em questão, o fazem para“mascarar” os reais efeitos de sentido pretendidos.Empregar os termos já existentes (denúncia,eleitoral...) revelaria o óbvio. Então, eles formamnovas palavras ou ressignificam as já existentes(denuncismo, eleitoreiro...). Dessa forma, eles“dizem sem dizer”, não se comprometendo comas não-coincidências que constituem tal dizer.Escondem-se, afinal, na significação discursivaque as palavras trazem. No entanto, é asignificação pejorativa que faz sentido; é esta queprecisa predominar, já que é a partir desta que ooponente é desqualificado. Em outras palavras, opolítico “trama” sentidos.

Assim, acreditamos que as condições deprodução – o cenário político brasileiro – e asformações discursivas dos sujeitos enunciadores– de oposição/ de situação – determinam o usoda modalização autonímica derrisória, sendo estanão intencional do sujeito enunciador, masconstitutiva do discurso político. Desta forma,inconsciente e ideologia se materializam nasformas com -ismoismoismoismoismo e -eiroeiroeiroeiroeiro para corroborar coma afirmação de que não há discurso sem sujeitonem sujeito sem ideologia.

1 - Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMT eprofessora da área de Língua Portuguesa daUNEMAT, campus de Tangará da Serra. E-mail:[email protected] - Segundo Rocha (1998, p.110), “sufixoshomófonos são sufixos que apresentam a mesmaseqüência fonética, mas sentidos e/ ou funçõesdiferentes”.3 - Gostaríamos de esclarecer que optamos peladenominação “discurso de oposição/ situação” enão “discurso de direita/ esquerda” em virtudeda situação política a qual se encontrava o país.4 -Em seu projeto inicial, nas primeiras

candidaturas, o PT declarava-se um partido deesquerda que não fazia alianças com partidos dedireita. Porém, a partir das eleições de 2002, seuperfil foi modificando-se. Com os escândalos domensalão, então, ficou mais difícil definir“esquerda” e “direita” na política brasileira.5 - Grifo da autora.

Aceito para publicação em 01.06.2009

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1.1.1.1.1. A revista Ecos publica artigos originais nas áreas de Literatura e Lingüística, em português, inglês eespanhol;2.2.2.2.2. Os artigos devem estar acompanhados de uma carta de encaminhamento, com nome e endereçocompleto dos autores;3.3.3.3.3. O recebimento dos artigos, sua aceitação ou recusa serão comunicados aos autores pela comissãoeditorial da revista;4.4.4.4.4. Serão fornecidos três (03) exemplares gratuitamente aos autores;5.5.5.5.5. Os trabalhos deverão ser digitados em Word for Windows, obedecendo à formatação a seguir:a) a) a) a) a) Configuração de página:- Tamanho do papel: A4- Margem superior e esquerda: 3,0 cm- Margem inferior e direita: 2,0 cm- Medianiz: 0 cmb)b)b)b)b) Título do trabalho:- Times New Roman 12, negrito, alinhamento centralizado.c)c)c)c)c) Nome do autor seguido da instituição e titulação- Autor: Times New Roman 10, negrito;- Nome da instituição: em caixa alta entre parênteses, alinhamento à direita.d)d)d)d)d) Artigos:- O artigo deverá vir acompanhado de um resumo (até 10 linhas) e 05 palavras-chave em português eem língua estrangeira, em Times New Roman 12, alinhamento justificado, com espaçamento simplesentre linhas.- Redação do artigo: Times New Roman 12, alinhamento justificado, com espaçamento simples entrelinhas, margem 1,5 de primeira linha.- As citações acima de três linhas deverão ser recuadas 4,0 cm da margem esquerda, com alinhamentojustificado, sem aspas e sem itálico.e)e)e)e)e) As referências bibliográficas devem vir ao fim do artigo, e não em notas de rodapé;f) f) f) f) f) As notas explicativas deverão vir em notas de fim, e não no rodapé;g)g)g)g)g) As citações e referências bibliográficas devem ser feitas de acordo com as normas da ABNT 6023/NBR, cuja obediência se constitui em um critério para aprovação do texto para publicação.h)h)h)h)h) As citações no corpo do texto e recuadas seguirão o seguinte modelo:- - - - - Citações Diretas: citações no corpo do texto menores que três linhas, entre aspas.- Se a citação ocupar um espaço maior que três linhas, deve ser: destacada do texto, recuada, comcorpo menor e sem aspas. Ex.: fonte 12 no texto, fonte 11 na citação.

[...] quase todos os exemplos de dialetos literários são deliberadamenteincompletos. O autor é um artista, não um lingüista ou um sociólogo, e suaproposta é antes literária que científica. Realizando seu compromisso entrea arte e a lingüística, cada autor toma sua própria decisão a respeito dequantas peculiaridades da fala de seu personagem ele pode representar deforma proveitosa. (IVES, 1950, p.138).

- Corte da citação: deve ser grafada com [...].- Incorreções: a expressão latina [sic] deve vir seguida da palavra grafada incorretamente.- Citação de citação: seguida das expressões apud e sobrenome do autor da obra consultada, fazendo-se desta última a referência bibliográfica completa.

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i)i)i)i)i) As referências bibliográficas devem obedecer ao alinhamento à esquerda e deverão ser nos seguintesmoldes:- Livros como um todo- Livros como um todo- Livros como um todo- Livros como um todo- Livros como um todoARROJO, R. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1992.

- Capítulos de livros- Capítulos de livros- Capítulos de livros- Capítulos de livros- Capítulos de livros- Autor do capítulo diferente do responsável pelo livro todoALKMIN, T. M. A variedade lingüística de negros e escravos: um tópico da história do português noBrasil. In: MATTOS E SILVA, R. S. (Org.). Para a história do português brasileiro. São Paulo: Humanitas,2001. p. 317-335.

- Único autor para o livro todo: substitui-se o nome do autor por um travessão de 6 toques após o “In”.PRETI, D. A língua oral e a literatura: cem anos de indecisão. In: ______. A gíria e outros temas. SãoPaulo: EDUSP,1984, p.103-25.

- Publicação periódica- Publicação periódica- Publicação periódica- Publicação periódica- Publicação periódicaMOLLICA, M. C. Por uma sociolingüística aplicada. DELTA, São Paulo, v. 9, n. 1, p.105-111, 1993.

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j)j)j)j)j) O trabalho deverá ser encaminhado para o endereço abaixo em 03 (três) vias impressas, bem comopara e-mail da revista, e, no caso de haver, no texto, inserção de alfabeto fonético ou caractere especial,os textos deverão ser encaminhados, além de impressos, em disquete ou CD.

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